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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CANTO DAS SEREIAS
O CANTO DAS SEREIAS

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.


CONTINUA

6

 

As pessoas começam a perceber que algo mais faz parte da realização de um bom assassinato além de dois imbecis, um para matar e outro para ser morto — uma faca — uma bolsa — e uma rua escura. Planejamento, cavalheiros, agrupamento, luz e sombra, poesia, sentimento são agora considerados indispensáveis para tentativas dessa natureza.

O trabalho pode não resolver tudo, mas é uma ótima tática para desviar a atenção. Tony olhava para o monitor, rolando a tela pelas informações tabuladas que tinha colhido dos relatórios policiais. Satisfeito por ter incorporado tudo de útil, ele ligou a impressora. Enquanto ela vibrava e emitia seus ruídos repetitivos rumo à impressão, Tony abriu outro arquivo e começou a esboçar as conclusões que tinha formulado com base nos dados. Qualquer coisa, qualquer coisa para mantê-la a distância.

Ele estava tão absorvido pelo trabalho que mal percebeu o primeiro toque da campainha. Quando ela soou pela segunda vez, ele levantou os olhos, assustado, para o relógio. Onze e cinco. Se fosse Carol, ela teria chegado antes do que ele previra. Eles já tinham concordado que havia pouco sentido em começar o tour antes da meia-noite. Tony se levantou, inseguro. Como sabia seu telefone, não seria muito difícil para Angelica descobrir também seu endereço. Ele chegou à porta justamente quando a campainha tocava pela terceira vez. Arrependendo-se por não ter instalado um olho mágico, Tony abriu vagarosamente a porta.

Carol sorriu.

— Parece que você estava esperando o Faz-tudo — disse ela. Quando Tony não respondeu nada, ela acrescentou: — Desculpe, estou um pouco adiantada. Tentei ligar, mas seu telefone estava ocupado.

— Desculpe — murmurou Tony. — Eu devo ter deixado fora do gancho acidentalmente mais cedo. Entre, não tem problema.

Ele encontrou um sorriso em algum lugar dentro de si e guiou Carol até seu escritório. Quando chegou à escrivaninha, deslizou o telefone de volta para o gancho.

Carol percebeu que o telefone ocupado não tinha sido nenhum acidente. Dedução: ele não queria ser perturbado, nem mesmo pela secretária eletrônica. Provavelmente, como ela, Tony não podia resistir a um telefone que toca. Ela olhou para as folhas de papel depositadas na bandeja da impressora.

— Está na cara que você está bastante ocupado — disse ela. — E eu que pensei que você tinha demorado para abrir a porta porque tinha ido tirar uma soneca.

— Você dormiu? — perguntou Tony, notando que os olhos dela tinham mais brilho do que antes.

— Quatro horas, ou seja, cerca de dez horas a menos do que precisava. Tenho algumas informações para você, aliás.

Ela o informou de modo sucinto sobre os resultados de sua visita a Scargill Street, deixando de fora a hostilidade de Cross.

Tony ouviu com atenção, fazendo algumas anotações no bloco.

— Interessante — disse ele. — Não acho que haja muito sentido em deter os criminosos sexuais de novo, porém. Caso o Faz-tudo tenha ficha criminal, é mais provável que seja por delitos juvenis, arrombamentos, violência pequena, esse tipo de coisa. Ainda assim, já me enganei antes.

— Não nos enganamos todos um dia? A propósito, verifiquei com a equipe do sistema HOLMES, e não há ninguém lá que saiba alguma coisa sobre análise estatística para reconhecimento de padrão, então pedi ao meu irmão para ver o que pode fazer por nós. Devo dar a ele apenas algumas fotografias ou há outra forma de apresentar os dados?

— Acho que há menos chance de erro se ele trabalhar diretamente com as fotografias. Obrigado por resolver isso para mim.

— De nada — disse Carol. — Secretamente, acho que meu irmão ficou bem satisfeito com o pedido. Ele pensa que não o levo a sério. Sabe como é, ele cria softwares de jogos, e eu pego no batente.

— E ele tem razão?

— Sobre o quê? Se o levo a sério? Pode ter certeza que sim. Respeito qualquer um que compreenda algo tão distante do meu entendimento quanto computadores. Além disso, ele ganha quase o dobro do meu salário. Isso tem de ser sério.

— Não sei quanto a isso. Andrew Lloyd Webber provavelmente ganha mais num dia do que eu num mês, mas ainda assim não consigo levá-lo a sério.

Tony se levantou.

— Carol, se incomoda de esperar uns dez minutos? Preciso tomar um banho rápido para acordar.

— Tudo bem, fique à vontade. Fui eu que cheguei cedo demais.

— Obrigado. Quer um chá enquanto espera?

Carol balançou a cabeça.

— Vou dispensar, obrigada. Está frio lá fora, e não há muitos lugares em que uma mulher possa fazer xixi em Temple Fields de madrugada.

Quase com timidez, Tony pegou uma pilha de impressões e ofereceu a Carol.

— Comecei a trabalhar nas vítimas. Talvez você queira dar uma olhada enquanto me espera.

Ansiosa, Carol pegou os papéis.

— Eu adoraria. Estou fascinada por todo esse processo.

— Isso é apenas preliminar — enfatizou Tony, recuando até a porta. — Quer dizer, não tirei nenhuma conclusão ainda. Estou trabalhando para isso.

— Relaxe, Tony, estou do seu lado — tranquilizou Carol, enquanto ele deixava a sala. Ela o fitou por um momento, perguntando-se o que o perturbara. Achava que, quando se separaram à tarde, eles tinham desenvolvido uma descontraída camaradagem. Mas, agora, ele estava nervoso, distraído. Era porque estava cansado, ou porque se sentia desconfortável em tê-la sentada em sua casa? — Meu Deus, que importa? — resmungou consigo mesma. — Foco, Jordan. Aproveite o cérebro do homem.

Ela se concentrou na primeira folha e estudou os dados.

Adam S.

Paul G.

Gareth F.

Damien C.

Nº. da vítima

1

2

3

4

Data do crime

6-7/9/93

1-2/11/93

25-26/12/93

20-21/2/94

Morador de Bradfield?

Sim

Sim

Sim

Sim

Sexo

M

M

M

M

Origem étnica

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Caucasiano

Nacionalidade

Britânico

Britânico

Britânico

Britânico

Idade

28

31

30

27

Signo

Gêmeos

Câncer

Escorpião

Capricórnio

Altura

1m78

1m80

1m80

1m83

Peso

66,7 kg

61,7 kg

68,5 kg

72,6 kg

Porte

Médio

Magro

Médio

Médio

Musculatura

Boa

Média

Média

Excelente

Comprimento do cabelo

Acima do ombro

Até o ombro

Acima do ombro

Acima do ombro

Cor do cabelo

Castanho

Castanho-escuro

Castanho

Castanho-avermelhado

Tipo de cabelo

Ondulado

Liso

Liso

Encaracolado

Tatuagens

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Roupas

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Nenhuma

Profissão

Funcionário público

Professor universitário

Advogado

Policial

Local de trabalho

Centro da cidade

Zona sul

Centro da cidade

Subúrbios da zona sul

Carro

Ford Escort

Citroën AX

Ford Escort

Classic Austin Healey

Passatempos

Malhação, pesca esportiva

Caminhadas

Malhação, teatro, cinema

Restauração de automóveis

Residência

Casa moderna com terraço e garagem

Casa com terraço no estilo eduardiano; sem garagem

Casa não geminada num dos lados. Dos anos 30; sem garagem

Casa não geminada com terreno; garagem anexa

Estado civil

Divorciado

Morava sozinho

NPA

PR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

PA

NPR

Solteiro

Morava sozinho

NPA

NPR

Itens pessoais desaparecidos

Aliança, relógio

Relógio

Anel com selo, relógio

Relógio

Itens desaparecidos de casa

Fita da secretária eletrônica

Fita da secretária eletrônica

Nenhum conhecido

Nenhum conhecido

Histórico sexual conhecido

Hétero

Hétero

Hétero

Desconhecido

Visto pela última vez por conhecido

Bonde na volta do trabalho,

18h aprox.

Deixando o trabalho, 17h30 aprox.

Em casa, 19h15

Em casa, 18h

Ficha criminal

Não

Não

Não

Não

Conexão com a cena do crime

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Nenhuma conhecida

Status do local onde o corpo foi recuperado

Urbano

Urbano

Suburbano/rural

Urbano

Local do primeiro contato com o assassino

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Local da morte

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Desconhecido

Disposição do corpo

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Semioculto para causar pequeno atraso antes da descoberta

Oculto; necessária nota para polícia via jornal

Exposto abertamente, mas em área sem transeuntes até horário específico

Corpo posado?

Não

Não

Não

Não

* O corpo foi lavado?

Sim

Sim

Sim

Sim

Causa da morte

Corte na garganta

Corte na garganta

Corte na

garganta

Corte na garganta

** Amarras?

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Pulsos

Tornozelos

Mordaça adesiva

Marcas de mordida?

Não

Não

Não

Não

Possíveis marcas de mordida (ou seja, com carne removida)

Sim

Sim

Sim

Sim

Local das marcas

Pescoço (2)

Peito (1)

Pescoço (2)

Pescoço (3)

Abdômen (4)

Pescoço (3)

Peito (2)

Virilha (4)

Sinais de tortura ou ataque incomum

Sim (ver A)

Sim (ver B)

Sim (ver C)

Sim (ver D)

* LAVAGEM DO CORPO: Nenhum material com fragrância parece ter sido usado, sugerindo que o criminoso não está utilizando o processo de lavagem como uma forma de negação; em vez disso, alinhado com o restante do seu comportamento cauteloso, sugiro que essa lavagem pretende eliminar pistas forenses, já que o assassino parece ter tomado cuidado especial com as unhas. Raspagens em todas as quatro vítimas não mostraram nada além de traços de sabão sem perfume.

** AMARRAS: Nenhuma foi encontrada nos corpos, mas as autópsias revelaram hematomas congruentes com algemas nos pulsos, leves traços de adesivo, pelos ausentes e feridas em torno dos tornozelos condizentes com fita adesiva e com ataduras separadas, além de vestígios de adesivo no rosto perto da boca. Nenhum indício de vendas.

A: Adam Scott. Deslocamento de tornozelos, joelhos, quadris, ombros, cotovelos e várias vértebras. Condizente com o estiramento num potro. Leves cortes posteriores à morte no pênis e nos testículos.

B: Paul Gibbs. Várias lacerações no reto, esfíncter anal praticamente destruído e estripação parcial. Indícios de objeto pontudo inserido repetidamente no ânus. Também um pouco de tecido queimado internamente, sugerindo a possibilidade de aplicação de calor ou choque elétrico. Rosto espancado gravemente antes da morte; hematomas; ossos faciais e dentes quebrados. Cortes posteriores à morte nos genitais, mais pronunciados que em A.

C: Gareth Finnegan. Feridas irregulares de perfuração nas mãos e nos pés, com um centímetro de diâmetro aproximadamente. Lacerações na bochecha esquerda e no nariz, indícios de quebra de copo ou garrafa no rosto por agressor destro. Ombros deslocados. Possível crucificação? Feridas posteriores à morte nos genitais, praticamente castrado.

D: Damien Connolly. Deslocamentos similares a A, mas nenhum trauma espinhal significativo, excluindo a possibilidade de um potro. Grande número de pequenas queimaduras no formato de estrela no torso. Pênis cortado após a morte e inserido na boca da vítima.

Questão: As algemas de Damien Connolly ainda estão em sua casa ou no armário da polícia?

Questões: Por que os corpos sempre são descartados nas noites de segunda/manhãs de terça? O que acontece na segunda que permite que ele fique livre? Ele trabalha de noite e tem a segunda de folga? Talvez seja um homem casado que tem a segunda livre porque a esposa tem atividades com amigos, por exemplo, saídas com as amigas? Ou será que isso se deve à segunda-feira não ser uma noite tradicional para saídas noturnas e ele poder ter mais certeza de encontrar suas vítimas em casa?

Carol percebera que Tony tinha voltado, mas continuava lendo, somente levantando uma das mãos e acenando com os dedos para indicar que sabia que ele estava ali. Quando chegou ao fim do relatório, ela respirou fundo e disse:

— Bem, dr. Hill, você realmente esteve bastante ocupado.

Tony sorriu e se afastou do umbral da porta onde estava recostado.

— Não acredito que haja nada aí que você já não tenha registrado mentalmente.

— Não, mas ver as coisas dispostas assim de alguma forma torna tudo mais claro.

Tony concordou.

— Ele tem um tipo muito específico.

— Você quer conversar sobre isso agora?

Tony olhou para o chão.

— Prefiro deixar de lado a maior parte disso por enquanto. Preciso deixar a poeira baixar e analisar todo o resto das declarações de testemunhas antes de pensar num perfil.

Carol não pôde deixar de ficar decepcionada.

— Entendo — limitou-se a dizer.

Tony sorriu.

— Estava esperando mais?

— Na verdade, não.

Seu sorriso se ampliou.

— Nem mesmo um pouquinho?

O sorriso era contagiante. Carol sorriu de volta.

— Tinha esperança, talvez. Expectativa, não. A propósito, houve uma coisa que não entendi. NPA? PA? NPR? Quer dizer, não estamos falando em “Normas e Procedimentos de Auditoria” nem em “Pressão Atmosférica” aqui, estamos?

— Nenhum parceiro atual. Parceiro atual. Nenhum parceiro recente. Abreviatite. É uma doença que aflige todos nós nas ciências humanas, como psicologia ou sociologia. Precisamos confundir os não iniciados. Desculpe por isso. Vou tentar manter as coisas o máximo possível livres de jargão.

— Para não confundir policiais tontos como nós, né? — implicou Carol.

— É mais uma questão de autopreservação. A última coisa que quero é dar aos céticos mais lenha para pôr na fogueira. É difícil o bastante fazer com que aceitem que meus relatórios valem a pena serem lidos sem desinteressá-los com todo o palavreado pseudocientífico desnecessário.

— Acredito em você — disse Carol, ironicamente. — Vamos?

— Claro. Há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer agora para ver o que acha — avisou Tony. De repente, estava sério de novo. — As vítimas. Todos estão presumindo que esse assassino tem como alvo gays de Bradfield. Temos o maior público gay do país fora de Londres. No entanto, cada uma dessas vítimas não tem histórico conhecido de homossexualidade. O que isso lhe diz?

— Ele está no armário e só vai atrás de homens que estão no armário também? — arriscou Carol.

— Talvez. Mas, se todos eles estão ocupados se passando por héteros, como ele os encontra?

Carol ajeitou as bordas dos papéis para ganhar um instante.

— Anúncios em classificados pessoais? Linhas de bate-papo com vários usuários? Internet?

— Tudo bem, tudo isso são possibilidades. Mas não há evidência de nenhum desses interesses, de acordo com os relatórios dos policiais que pesquisaram suas casas. Nem mesmo um único caso.

— O que você está tentando dizer?

— Acho que o Faz-tudo não se excita com homens gays. Acho que ele gosta que sejam héteros.

• • •

O sargento Don Merrick concluiu que nunca se sentira mais aborrecido. Como se não fosse ruim o suficiente que ele tivesse Popeye atrás dele por causa da nova atribuição do chefe, agora era um servo para três mestres. Ele devia se certificar de que as ordens da inspetora Jordan eram desempenhadas enquanto ela não estava por perto, e devia também trabalhar com Kevin Matthews no caso de Damien Connolly, além de estabelecer uma parceria com Bob Stansfield no trabalho que ele e a inspetora Jordan já tinham concluído no caso de Paul Gibbs. Para completar, ainda estava passando a noite no Hell Hole.

Nunca, na sua opinião, um local recebera um nome mais adequado: era mesmo a profundeza do inferno. O Hell Hole se anunciava na imprensa gay como: “O clube que domina Bradfield. Uma visita e você se transformará num escravo. Você é obrigado a se divertir mais do que nunca no Hell Hole!” Tudo isso era um modo acanhado de dizer que o clube era o lugar para quem estivesse em busca de prazer com parceiros de sadomasoquismo e bondage.

Merrick se sentiu como a Branca de Neve numa orgia. Ele não fazia ideia de como devia se comportar. Nem mesmo tinha certeza se possuía a aparência correta. Optou por velhas calças Levis rasgadas que normalmente só viam a luz do dia quando ele estava fazendo reparos ocasionais na casa, uma camiseta branca lisa e a surrada jaqueta de couro que costumava usar em sua motocicleta antes de as crianças nascerem. No bolso de trás estavam suas algemas oficiais, na esperança de dar alguma verossimilhança à sua pose. Olhando em volta do bar mal-iluminado, Merrick identificou tanto brim e couro envelhecidos que esperava ver uma bandeira de SOS se erguendo sobre a pista de dança. Superficialmente, pelo menos, ele achava que podia representar bem o papel que desempenhava. O que em si era preocupante. À medida que seus olhos ficaram mais acostumados à pouca luz, o sargento reconheceu alguns de seus colegas. Em grande parte, pareciam tão desconfortáveis quanto ele se sentia.

Um pouco depois das nove, quando chegou, a boate estava praticamente vazia. Sentindo que dava incrivelmente na vista, Merrick pedira um passe de saída e voltou para as ruas. Vagou por Temple Fields por cerca de uma hora, parando num café para tomar um cappuccino. Pensava por que parte da clientela gay vinha lhe dirigindo olhares estranhos até que percebeu que era o único cliente que usava couro e brim. Claramente, ele transgrediu algum código de vestimenta não escrito. Desconfortável, Merrick engoliu o café escaldante o mais rápido que conseguiu e voltou para as ruas.

Sozinho nas calçadas e passagens de pedestres de Temple Fields, ele se sentiu vulnerável de verdade. Todos os homens que passavam por ele, estivessem desacompanhados, em casal ou em grupo, todos o olhavam de cima a baixo especulativamente, a maior parte dos olhares pausando em sua virilha. Por dentro, Merrick ficou envergonhado, arrependendo-se por ter escolhido um jeans que apertava tanto suas partes. Quando um casal de jovens negros passou, de braços dados, ele ouviu um dizer para o outro em voz alta: “Para um branco, até que tem uma bunda boa, hein?” Merrick sentiu o sangue subir até suas bochechas, indeciso se isso era raiva ou embaraço. Num momento de incrível clareza, percebeu o que as mulheres queriam dizer quando reclamavam de serem tratadas como objeto pelos homens.

Retornou ao Hell Hole, aliviado que o lugar estivesse cheio agora. A música disco vibrava em alto volume, com a batida tão forte que ele parecia senti-la dentro do peito. Na pista de dança, os homens vestindo couro adornado com correntes, zíperes e quepes de policial se moviam com energia, exibindo seus músculos enrijecidos como náutilos, estendendo para a frente a virilha no ar em paródias bizarras do sexo. Suprimindo um suspiro, o sargento forçou o caminho pela multidão até o bar. Ele pediu uma garrafa de cerveja americana, que tinha um gosto incrivelmente insípido para um paladar treinado a esperar a doçura característica das nozes do Newcastle Brown.

Virando-se de frente para a pista de dança mais uma vez, Merrick inclinou-se no balcão e analisou o ambiente, tentando desesperadamente evitar o contato visual com qualquer pessoa em particular. Já estava assim havia cerca de dez minutos quando percebeu que o homem de pé ao seu lado não estava verdadeiramente tentando que lhe servissem. Merrick olhou em volta para descobrir os olhos do homem fixos nele. Tinham quase a mesma altura, mas o outro exibia uma constituição mais larga e musculosa. Ele vestia calças de couro preto apertadas e uma camiseta branca. Seus cabelos louros eram curtos nas laterais, mais longos em cima, e seu corpo era tão bronzeado e liso quanto mobília do estilo Chippendale. Seu admirador ergueu as sobrancelhas e disse:

— Oi, meu nome é Ian.

Merrick ofereceu um sorriso minguado.

— Don — respondeu, aumentando a voz para se opor à música.

— Nunca vi você aqui antes, Don — disse Ian, aproximando-se de modo que seu braço nu pressionasse o couro gasto da manga de Merrick.

— É minha primeira vez.

— Então é novo na cidade? Você não parece daqui.

— Sou do nordeste — respondeu Merrick com cuidado.

— Isso explica. Um belo rapaz de Tinesyde — elogiou Ian, com uma má imitação do sotaque de Merrick.

Merrick sentiu seu sorriso se abater e morrer.

— Você costuma vir aqui, então? — perguntou ele.

— Nunca deixo de vir. Melhor bar na cidade para o tipo de cara que gosto. — Ian deu uma piscadinha. — Posso lhe pagar um drinque, Don?

O suor que escorria pelas costas de Merrick não tinha nada a ver com o calor do bar.

— Vou tomar mais um desses — disse ele.

Ian assentiu com a cabeça e se voltou para o bar, usando a multidão em volta de si como uma desculpa para se encostar em Merrick. O sargento olhou em volta do local, com o maxilar rígido. Ele notou um dos outros detetives da divisão de homicídios o observando. Seu colega deu uma piscadela grotesca e fez um gesto com o dedo bombeando o punho fechado da outra mão. Merrick desviou o olhar, ficando face a face com Ian, que tinha sido servido.

— Aí está, belo rapaz — disse Ian. — Então está à procura de um pouco de diversão esta noite?

— Só estou dando uma olhada na atividade gay local — disse Merrick.

— Como é lá em Newcastle, então? — perguntou Ian. — Animada? Tem para todo gosto, não é?

Merrick deu de ombros.

— Não sei. Não sou de Newcastle. Venho de uma cidadezinha na costa. Não é o tipo de lugar onde se consiga ser você mesmo.

— Entendo. — disse Ian, colocando uma das mãos sobre o braço de Merrick. — Bem, Don, se quiser ser você mesmo, veio ao lugar certo. E encontrou o cara certo.

Merrick rezou para que não parecesse tão aterrorizado quanto ficou.

— É com certeza agitado o bastante — arriscou.

— Podíamos ir a algum lugar mais tranquilo, se quiser. Há outro ambiente nos fundos daqui, onde a música não é tão alta.

— Não, estou bem aqui — recusou Merrick com rapidez. — Gosto da música, para ser franco.

Ian se moveu para a frente de modo que seu torso se inclinou contra o de Merrick.

— O que você curte, Don? Ativo ou passivo?

Merrick engasgou com a cerveja.

— Como é? — disse, arfando.

Ian riu e alisou os cabelos de Merrick. Seus olhos azul-claros brilharam travessos, prendendo o olhar fixo de Merrick.

— Você é mesmo um turista inocente, não é? O que estou querendo saber é: do que gosta mais? Meter ou levar? — Suas mãos se moviam para baixo até as calças de Merrick. Justamente quando o detetive pensava que seria alisado de uma forma que ninguém, exceto sua esposa, já fizera, a mão de Ian escorregou para o lado e fez o contorno para apalpar a bunda de Merrick.

— Isso depende — arriscou, com a voz rouca.

— Depende de quê? — perguntou Ian sugestivamente, aproximando-se tanto que Merrick podia sentir a ereção do outro homem contra sua perna.

— De quanto confio na pessoa com quem estou — respondeu Merrick, tentando não mostrar sua repulsa na voz ou na expressão facial.

— Ah, eu sou muito confiável. E você parece do tipo confiável também.

— E você não fica um pouco preocupado, por exemplo, com estranhos? Com esse serial killer à solta? — perguntou Merrick, usando a oportunidade para colocar sua garrafa vazia de volta no balcão e se afastar ligeiramente do corpo insistente de Ian.

O sorriso dele era arrogante.

— Por que deveria? Esses caras que estão sendo despachados não saem para lugares como este. É lógico que este não é o lugar onde esse canalha maluco os está apanhando.

— Como você sabe disso?

— Vi fotos nos jornais, e nunca vi nenhum deles no meio. E, acredite em mim, eu conheço bem o mundo gay. Foi como fiquei sabendo que você era o novo garoto na cidade.

Ian se aproximou outra vez e enfiou uma das mãos no bolso de trás de Merrick. Ele correu os dedos sobre o contorno rígido das algemas.

— Ei, isso parece interessante. Estou começando a imaginar como podia ser entre a gente.

Merrick forçou uma risada.

— Pelo que você sabe, eu podia ser o assassino.

— E daí se for? — disse Ian, com toda a segurança. — Não sou o tipo que a porra desse aloprado procura. Ele gosta de bichas no armário, não de homens machos. Se me pegasse, ele ia querer trepar, não cometer assassinato. Além disso, um sujeito bonitão como você não precisa matar ninguém para conseguir uma foda.

— É, bem, talvez tenha razão, mas como sei que você não é o assassino?

— Vou dizer uma coisa, só para provar que não sou, vou deixar você por cima esta noite. Você vai estar no comando e eu que vou usar as algemas.

Continue assim e não vai estar errado, Merrick pensou com seus botões. Ele esticou o braço e agarrou o pulso de Ian com força, removendo a mão dele do seu bolso.

— Acho que não — disse. — Não esta noite. Como falou, sou o novo garoto na cidade. Não vou para casa com ninguém até ficar um pouco mais íntimo. — Soltou o pulso de Ian e deu um passo para trás. — Bom conversar com você, Ian. Obrigado pelo drinque.

O rosto de Ian se alterou num instante. Seus olhos se estreitaram e o sorriso se desfez numa careta, com os dentes à mostra.

— Espere um minuto, rapaz do nordeste. Não sei com que tipo de boate mixuruca para criancinhas você está acostumado, mas, nesta cidade, não se entra num corpo a corpo com alguém e faz essa pessoa lhe pagar drinques se não estiver preparado para ir até o fim.

Merrick tentou fugir, mas a pressão dos corpos em torno do bar tornava qualquer movimento difícil.

— Lamento se houve um mal-entendido — disse ele.

O braço de Ian moveu-se rapidamente e segurou Merrick com firmeza logo abaixo do bíceps. A dor era excruciante. O sargento encontrou um momento para se perguntar que tipo de pessoa buscava ativamente dor como essa como parte de seu prazer sexual. Ian projetou o rosto tão próximo que Merrick conseguia sentir o mau hálito que aprendera estar associado ao abuso de anfetaminas.

— Não é um mal-entendido — retorquiu Ian. — Você veio aqui pelo sexo. Não há nenhum outro motivo para estar aqui. Então, sexo é o que vamos fazer.

Merrick, com um meio giro de corpo, golpeou o cotovelo com força abaixo do tórax de Ian. Ele expeliu o ar num rápido sopro e se curvou, largando o braço de Merrick no reflexo de segurar seu plexo solar.

— Não vamos, não — disse Merrick, gentilmente, distanciando-se no espaço que se abriu em torno dele como que por mágica.

Em seu caminho pelo local, um dos outros policiais disfarçados o acompanhou.

— Boa, sargento — sussurrou ele, com o canto da boca. — O senhor fez o que todos estamos querendo desde que chegamos aqui.

Merrick parou e sorriu para o policial.

— Você devia estar agindo em sigilo. Dance comigo, porra, ou dê o fora e deixe um desses veados cantar você.

Deixando o policial de boca aberta, Merrick caminhou até o outro lado da pista de dança e recostou-se na parede. A comoção que ele causara no bar tinha se aquietado. Ian forçou o caminho pela multidão, ainda segurando a barriga, e deixou a boate, dirigindo olhares virulentos para Merrick.

Sem demora, o sargento estava acompanhado novamente. Dessa vez, ele reconheceu sua companhia como um detetive de uma das outras divisões que havia se juntado à de homicídios naquele dia. Ele estava suando sob o peso da jaqueta e da calça, ambas de couro, que pareciam suspeitamente item padrão para motocicletas da polícia. O outro se inclinou para se aproximar de Merrick, de modo que não fosse ouvido pelo grupo em volta da pista de dança, e disse com urgência:

— Chefe, acho que tem um sujeito em que devemos dar uma olhada.

— Por quê?

— Eu o ouvi dizer para alguns caras que conhecia os que morreram. Estava se gabando disso, já que não havia muitos que podiam dizer isso. Dizia que o assassino deve ser um fisiculturista como ele, porque carregava corpos por aí. Ele estava falando que aposta que havia pessoas aqui esta noite que não sabem que conheciam um assassino. Se gabando assim, o tempo inteiro.

— Por que não o atrai você mesmo? — perguntou Merrick, com o interesse animado pelo que ouviu, mas relutante em tirar do policial o crédito de pegar um suspeito.

— Tentei começar uma conversa com ele, mas ele me deu um fora. — O policial deu um sorriso irônico. — Talvez eu não seja o tipo do cara, chefe.

— E o que lhe faz pensar que eu sou? — perguntou Merrick, sem ter certeza se estava sendo insultado sutilmente.

— Ele está usando o mesmo tipo de roupa que o senhor.

Merrick suspirou.

— É melhor você apontá-lo para mim.

— Não olhe agora, senhor, mas ele está de pé perto dos alto-falantes. Branco, tipo do norte europeu, quase um metro e setenta de altura, cabelos curtos escuros, olhos azuis, barba feita, sotaque escocês carregado. Vestido como o senhor. Bebendo um quartilho de cerveja Lager.

Merrick se recostou de novo na parede e lentamente analisou o ambiente. Ele encontrou o suspeito na primeira passagem de olhos.

— Encontrei, acho — disse. — Tudo bem, filho, obrigado. Finja estar puto quando eu sair.

Ele se afastou da parede e deixou o policial praticando sua aparência deprimida. Devagar, Merrick se moveu pelo local até ficar próximo ao homem que lhe tinha sido apontado. Ele tinha um corpo volumoso de levantador de peso e o rosto de um boxeador. Sua roupa era quase idêntica à de Merrick, exceto pela jaqueta, que tinha mais correntes e zíperes.

— Cheio aqui hoje — comentou Merrick.

— É. Muitos rostos novos. Metade deles provavelmente policiais — disse o homem. — Vê aquele babaca com quem você estava falando? Podia muito bem ter vindo na viatura panda da polícia. Já viu alguém mais obviamente intrometido na vida?

— Foi por isso que o mandei cair fora logo — respondeu Merrick.

— Sou Stevie, aliás — apresentou-se o homem. — Noite agitada essa que está tendo, com propostas indesejadas. Vi você dar um jeito naquele bundão mais cedo. Bom trabalho, cara.

— Obrigado, meu nome é Don.

— Prazer em conhecê-lo, Don. Você é novo por aqui, então? Com um sotaque desses, está na cara que não é daqui.

— Todo mundo se conhece por aqui? — perguntou Merrick, com um sorriso irônico.

— Praticamente. É uma verdadeira comunidade. Temple Fields. Principalmente o meio S&M. Vamos encarar a realidade, se você vai deixar alguém te amarrar, vai querer saber onde está se metendo.

— Pode crer, Stevie — disse Merrick, com sinceridade. — Ainda mais quando há um assassino à solta.

— Justamente o que quis dizer. Digo, não acho que esses caras que acabaram sendo mortos pensavam que iam receber nada além do que um trato mais bruto. Eu os conhecia, sabe. Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly. Cada um deles. Eu nunca teria imaginado que se envolvessem com isso. Isso mostra como são as coisas, não é? Nunca dá para saber o que se passa na cabeça das pessoas.

— E como você os conhecia, então? Achei que o jornal tinha dito que eles não eram conhecidos no meio gay — perguntou Merrick.

— Sou gerente de uma academia — disse Stevie, com orgulho. — Adam e Gareth eram sócios. Costumávamos sair para tomar um drinque de vez em quando. Esse Paul Gibbs eu conheci por meio de um amigo meu, que costumava tomar uma cerveja com ele. E o policial, Connolly, ele apareceu na academia depois que tivemos um arrombamento.

— Aposto que não há muitas pessoas por aqui que possam dizer que conheciam todos os pobres coitados — disse Merrick.

— Você tem razão, cara. Veja bem, eu não acho que o assassino tinha nada mais em mente que um pouco de diversão.

As sobrancelhas de Merrick se ergueram.

— Você acha divertido matar pessoas?

Stevie balançou a cabeça.

— Não, você não está me entendendo. Olha, não acho que ele planeje matar esses caras. Não. É meio um acidente, se você me entende. Eles estão brincando com seus jogos, e esse sujeito só se deixa levar pela emoção, e tudo sai do controle. Ele é obviamente forte, carrega esses corpos por aí e os descarta no meio da cidade, pelo amor de Deus. Não vai ser nenhum fracote, né? Se ele for um verdadeiro fisiculturista como eu, talvez não conheça sua própria força. Pode acontecer com qualquer um — acrescentou ele, após um momento de pausa.

— Quatro vezes? — indagou Merrick, incrédulo.

Stevie deu de ombros.

— Talvez eles tenham pedido por isso. Sabe o que quero dizer? O idiota provoca, e depois? Promete o que não consegue cumprir na hora do vamos ver? Já aconteceu comigo, Don, e vou lhe contar, houve vezes em que eu queria estrangular os cretinos.

O detetive que existia dentro de Merrick estava doido para agir. Carol Jordan não era a única policial de Bradfield que tinha lido muito sobre a psicologia do serial killer. Merrick lera casos onde os criminosos ficavam excitados com esse tipo de justificativa, vangloriando-se na frente de um terceiro. O Estripador de Yorkshire, ele sabia, tinha se gabado com seus comparsas que “comia” prostitutas. Ele queria Stevie numa sala de interrogatório. O único problema era como levá-lo até lá.

Merrick limpou a garganta.

— Imagino que a única maneira de evitar isso é conhecer antes as pessoas com quem a gente vai para a cama.

— É exatamente isso o que quero dizer. Você quer sair daqui? Talvez tomar uma xícara de café no restaurante? Para nos conhecermos um pouquinho melhor?

Merrick fez que sim.

— Claro — concordou ele, largando o resto de sua cerveja numa mesa próxima. — Vamos.

Assim que saíram, ele pôde mudar o rádio para o modo “apenas transmissão” e uma das equipes de apoio captaria o sinal. Depois, poderiam testar a bravata de Stevie na Scargill Street.

Embora já passasse da meia-noite, a rua do Hell Hole estava longe de deserta.

— Por aqui — indicou Stevie, apontando para sua esquerda. Merrick deslizou a mão para a jaqueta e ajustou a chave do rádio.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele.

— Tem um restaurante que fica aberto a noite toda em Compton Gardens.

— Ótimo. Eu poderia devorar um sanduíche de bacon.

— Aquela gordura toda é péssima para sua saúde — disse Stevie, a sério.

Enquanto davam a volta na esquina para o caminho que levava à praça, Merrick sentiu alguém saindo de uma porta escura atrás dele. Ele começou a se virar para o som das pegadas.

Igualzinho a uma explosão de fogos de artifício, foi seu último pensamento consciente quando uma explosão de luz irrompeu por trás de seus olhos.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 007

Não durou tanto quanto eu esperava. De modo surpreendente, Adam se mostrou mais frágil que o pastor-alemão. Após perder a consciência por causa do deslocamento de seus membros, foi impossível acordá-lo. Esperei por horas, mas nada parecia fazê-lo recobrar a consciência; nem dor, nem água fria, nem calor. Preciso admitir que foi uma decepção. Sua dor havia sido uma mera sombra da minha; sua punição, insuficiente para a traição que a provocara.

Terminei o que tinha de fazer, com organização e rapidez, logo após a meia-noite. Depois o retirei do potro e dobrei-o num resistente saco de lixo de jardim. Coloquei-o dentro de um saco de lixo preto do Bradfield Metropolitan Council. Levantar o peso morto pelas escadas do porão até o carrinho de mão foi difícil, mas minhas horas puxando ferro foram recompensadas.

Mal podia esperar para voltar ao meu computador e transformar a noite em algo transcendental. No entanto, ainda tinha trabalho a fazer antes que pudesse relaxar e me satisfazer. Dirigi até o centro da cidade um pouco acima do limite de velocidade permitido — nem tão rápido que me parassem por correr, nem tão devagar que despertasse a suspeita de estar dirigindo cuidadosamente por ter bebido. Cheguei à área gay atrás da universidade. Temple Fields costumava ser um local de estudantes, cheio de pequenos cafés, restaurantes, lojas e bares com preços e padrões baixos. Então, há cerca de dez anos, alguns bares se tornaram gays. Nossa Câmara Municipal de esquerda respondeu à pressão e fundou um centro gay e lésbico, que se mudou para o porão de um restaurante indiano. Isso pareceu acionar um efeito dominó e, em um ou dois anos, Temple Fields se tornara o circuito gay, e os estudantes héteros tinham se mudado para Greenholm na outra extremidade do campus. Agora, Temple Fields abrigava bares e boates homossexuais, bistrôs afetados, lojas que vendem artigos de couro e bondage e preços extorsivos de estadia noturna ao longo do canal.

À uma e meia da madrugada de terça-feira, ainda havia um número considerável de homens nas ruas. Dei algumas voltas de carro, concentrando-me na área em torno de Crompton Gardens. A praça estava escura; a maior parte dos postes de iluminação pública tinha sido vandalizada por motivos de privacidade sexual, e as finanças da Câmara Municipal iam muito mal das pernas para consertá-los. Além disso, nenhum dos estabelecimentos locais estava reclamando; quanto mais escura a praça, mais desejável a área e maiores os lucros.

Olhei em volta com cautela. Nenhuma movimentação. Puxei com dificuldade o saco até a ponta da mala, e depois segui, rolando-o e carregando-o, até o muro baixo. Deixei-o cair da beira com um baque e fechei o porta-malas da forma mais silenciosa que pude. Peguei um canivete do bolso, inclinei-me sobre o muro e abri uma fenda nos sacos. Puxei-os para soltá-los do corpo e os embolei.

Logo depois das duas horas, estacionei o carro de Adam a algumas ruas de distância da casa e caminhei de volta até meu 4x4 descartando os sacos numa lata de lixo no caminho. Às três horas, eu estava na cama. Apesar do desejo intenso de continuar meu trabalho, o cansaço me sobrecarregava. O que não é nenhuma surpresa, considerando a energia que despendi. Adormeci assim que desliguei a luz.

Quando acordei, rolei na cama e olhei para o relógio na parede. Em seguida, verifiquei meu relógio de pulso. Eu precisava aceitar aquela confirmação: eu dormira por treze horas e meia. Acho que nunca dormi por tanto tempo, nem mesmo depois de anestesia geral. A fúria e a ansiedade tomaram conta de mim. Queria sentar-me em frente ao computador para reviver e reconstruir meu encontro com Adam até que ele se assemelhasse com mais precisão às minhas mais recônditas fantasias, mas agora eu mal tinha tempo suficiente para tomar um banho e comer.

A caminho do trabalho, peguei uma edição final do Bradfield Evening Sentinel Times. Eu figurava na página dois do jornal:

CORPO NU ENCONTRADO

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado no bairro gay de Bradfield hoje cedo.

O funcionário da Câmara Municipal Robbie Greaves fez a terrível descoberta quando fazia a coleta de lixo rotineira na área de Crompton Gardens, em Temple Fields.

Agora a comunidade gay da cidade teme que esse possa ser o primeiro ato de um serial killer de gays, como o homem que recentemente aterrorizou os homossexuais de Londres.

O corpo foi encontrado entre arbustos atrás de um muro do parque, um mal-afamado local de encontro noturno de gays à procura de sexo casual.

O homem, que segundo relatos possuía quase trinta anos, ainda não foi identificado. A polícia o descreve como branco, com aproximadamente um metro e oitenta de altura, corpo musculoso, com curtos cabelos pretos ondulados e olhos azuis. Ele não tem sinais ou tatuagens características.

Um porta-voz da polícia afirmou: “A garganta da vítima foi cortada e seu corpo, mutilado. Quem quer que tenha cometido esse crime frio é uma pessoa violenta e perigosa. A natureza dos ferimentos indica que o assassino deve ter ficado coberto de sangue.

“Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e o corpo depositado no parque em algum momento durante a noite.

“Conclamamos qualquer cidadão que tenha estado em Crompton Gardens, área de Temple Fields, na noite passada, para se apresentar com o intuito de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com o máximo sigilo.”

Robbie Greaves, vinte e oito anos, funcionário da Câmara Municipal que encontrou o corpo, declarou: “Tinha acabado de começar a trabalhar. Passava pouco das oito e meia. Estava usando meu espeto para coletar o lixo. Quando toquei no corpo, pensei primeiro que era um gato ou cachorro morto. Então, levantei os arbustos e vi o cadáver.

“Era pavoroso. Vomitei, depois corri para o telefone público mais próximo. Nunca tinha visto nada assim na vida e espero nunca mais ver.”

Bem, pelo menos uma coisa eles acertaram. O homem foi morto em algum outro lugar e descartado em Crompton Gardens. Quanto ao restante... Se isso fosse alguma indicação das habilidades da polícia, acho que não tenho muito com que me preocupar. Por mim, estava tudo bem. A última coisa que queria era ir para a prisão, uma vez que já tinha escolhido o sucessor de Adam. Paul, eu sabia, seria diferente. Dessa vez, não teria de terminar em morte.


7

 

Todos os seus conhecidos depois descreveram sua dissimulação como tão pronta e tão perfeita que, se ao andar pelas ruas... ele tivesse acidentalmente esbarrado em qualquer pessoa, ele teria... parado para oferecer as mais cavalheirescas desculpas: com seu coração demoníaco remoendo o mais infernal dos propósitos, ainda assim ele pausaria para expressar a esperança afável de que o enorme malho, abotoado em seu elegante sobretudo, com vistas ao pequeno assunto que o aguardava cerca de noventa minutos depois, não tivesse infligido nenhuma dor ao estranho com quem colidira.

Carol virou pela rua principal e cortou caminho pelas vias secundárias para chegar a Crompton Gardens.

— Adam Scott foi encontrado bem aqui — disse ela, apontando para um local a meio caminho por um dos lados da moita de arbustos.

Tony assentiu com a cabeça.

— Você pode dirigir devagar pela praça, depois estacionar junto ao muro onde o corpo foi encontrado, por favor?

Carol fez conforme ele pediu. Enquanto eles rondavam a praça, Tony olhava pela janela concentrado, girando no assento algumas vezes para obter uma segunda espiada. Quando o carro parou, ele saiu. Sem esperar por Carol, ele foi até a calçada e circundou a praça. Ela saiu do carro e foi ao seu encalço, tentando ver o que Tony observava.

Nem os assassinatos nem as condições climáticas congelantes tinham mudado os hábitos dos que frequentavam Temple Fields. Portais e porões ainda abrigavam casais gemendo, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Alguns ficavam paralisados momentaneamente pelo som dos saltos de Carol na calçada, mas a maioria ignorava. Um ótimo lugar para ir se você gosta de voyeurismo, pensou Carol sarcasticamente.

Tony chegou ao fim das casas e atravessou a rua até a loja e o bar em frente. Lá, não havia casais copulando. O índice de crime da cidade ditava venezianas pesadas e grades nas janelas e portas. Ignorando-as, Tony olhou para os jardins no centro da praça, identificando o que vira nas fotografias. Não havia arbustos deste lado, somente o muro baixo. Ele mal notou dois homens passando por ele, embolados um no outro como competidores naquelas corridas em que as duplas correm juntas com as pernas atadas. Ele não estava interessado em mais ninguém a não ser no Faz-tudo.

— Você esteve aqui — disse ele para si mesmo. — Este não é um lugar em que chegou por acidente, é? Você caminhou por essa calçada, observou essas encenações de amor e afeição pelas quais as pessoas pagam. Mas não era atrás disso que você estava, não é? Você queria algo diferente, algo um pouco mais íntimo, algo pelo qual não precisasse pagar.

Como teriam sido essas aventuras de voyeurismo do Faz-tudo? Tony se concentrava.

— Você nunca teve um relacionamento normal com outra pessoa. As prostitutas não incomodam você, no entanto. Nem os michês. Você não os está matando. Não está interessado no que pode fazer com eles. São os casais que despertam seu interesse, não é? Eu compreendo, sei disso por mim mesmo. Será que estou projetando? Acho que não. Acho que você está procurando um par, o relacionamento perfeito, aquele com quem poderá ser você mesmo, alguém que o valorizará tanto quanto pensa que deve ser valorizado. E, então, tudo ficará bem. O passado não importará. Mas importa, sim. O passado é o que importa mais que tudo.

Ele notou subitamente Carol ao seu lado, olhando para ele com curiosidade. Provavelmente seus lábios estavam se mexendo. Era melhor ele ter cuidado, ou ela ia colocá-lo na gaveta com o rótulo “maluco” também. Ele não podia se dar a esse luxo, não se quisesse mantê-la ao seu lado por tempo suficiente para chegar ao resultado que precisava.

O último prédio naquele lado era uma lanchonete aberta a noite toda, com janelas opacas com a condensação. Na luz brilhante do lado de dentro, as formas se moviam como criaturas marinhas. Tony avançou e abriu a porta com um empurrão. Vários clientes o olharam antes de voltar às suas fritadas e cantadas. Tony voltou à rua e deixou a porta se fechar atrás de si com o sopro de ar que era como um suspiro.

— Não acho que você foi aí dentro. Não acho que queira ser visto como alguém sozinho num lugar destinado à companhia — concluiu.

O terceiro lado da praça consistia em alguns edifícios comerciais modernos. Em suas entradas, um grupo de adolescentes sem-teto dormia, enrolado em roupas, jornais e caixas de papelão. A essa altura, Carol o havia alcançado.

— Eles foram entrevistados? — perguntou Tony.

Carol fez uma careta.

— Tentamos. Meu pai costumava cantar um pouco de música folclórica. Quando eu era menina, ele cantava para mim o refrão: “Ah, mas seria o mesmo que tentar agarrar o vento.” Agora, eu sei o que significa.

— Bom assim, é?

Eles atravessaram até as casas no quarto lado da praça, passando por um par de prostitutas na esquina.

— Ei, bonitão! — gritou uma delas. — Podia fazer você se divertir mais comigo do que com essazinha cheia de frescura.

Carol bufou com uma risada.

— Isso sim é uma vitória da esperança sobre a experiência — disse ela ironicamente.

Tony nada disse. As palavras mal tinham penetrado seu devaneio. Ele continuou lentamente pela calçada pausando a cada poucos passos para absorver a atmosfera. Músicas conflitantes escapavam quase imperceptíveis na noite, vindas dos apartamentos e conjugados. O cheiro de curry flutuava na brisa que farfalhava os detritos e fazia bandejas de plástico de fast-food rolarem pelas calhas. A praça nunca estava inteiramente vazia, ele observou.

— Você despreza as vidas complicadas deles, não é? — disse para si mesmo. — Você gosta das coisas limpas, organizadas e em ordem. Em parte, é por isso que lava os corpos. Isso é pelo menos tão importante quanto apagar os vestígios forenses.

Ele virou na última esquina e andou até a traseira do carro de Carol, sentindo a primeira onda de confiança de que era capaz de mapear aquela mente complexa e gravemente distorcida.

— Ele provavelmente teve de se sentar aqui por alguns minutos para ter certeza de que não estava sendo observado — continuou Tony. — Dependendo do tipo de veículo que estivesse usando, podia ter levado apenas um minuto para retirar o corpo e jogá-lo por sobre o muro. Mas ele queria ter certeza de que ninguém estava observando.

— Colhemos depoimentos por toda a rua, de porta em porta, mas ninguém admitiu ter visto nada fora do comum — respondeu Carol.

— Vamos encarar a realidade, Carol. Quando se observa o que é comum por aqui, há muita margem para um serial killer. Tudo bem. Já vi o bastante. Podemos ir?

Cross entrou na sala de reuniões da delegacia com passos surpreendentemente leves, do jeito que as pessoas gordas andam muitas vezes, como se de alguma forma os movimentos suaves contradissessem o volume de seu corpo.

— Tudo bem, então, onde está o desgraçado? — berrou ele. Em seguida, percebeu uma figura magra, encostada contra a parede, que conversava com Kevin Matthews até ser interrompida por sua entrada.

— Senhor? — disse Cross, sobressaltado. — Não estava esperando o senhor aqui. — Lançou um olhar de puro veneno para Kevin Matthews.

Brandon se endireitou.

— Não, superintendente, eu não achava que estivesse. — Ele deu alguns passos até Cross. — Deixei instruções com a sala de comando que se alguma prisão fosse feita em relação aos assassinatos eu devia ser informado imediatamente. Este vai ser um caso de muita visibilidade quando chegar ao tribunal, Tom. Quero que nossa conduta seja considerada exemplar.

— Sim, senhor — respondeu Cross, com insubordinação. Por mais que Brandon dourasse a pílula, o que estava dizendo era que não acreditava que Cross fosse o homem para garantir que detetives zelosos em demasia fossem longe demais. Com Brandon passeando pelos corredores, nenhum suspeito de ser um serial killer sofreria acidentes lastimáveis enquanto estivesse preso. Cross voltou-se para Kevin Matthews.

— O que aconteceu exatamente?

Kevin, tão pálido de cansaço e estresse que as sardas sobressaíam em sua pele leitosa como se fossem alguma doença infecciosa grave, disse:

— Pelo que podemos concluir, Don Merrick saiu do Hell Hole com algum sujeito. Uma das equipes de apoio os viu. Don ligou seu rádio para iniciar a transmissão, então presumimos que ele queria selecionar esse sujeito para interrogatório. Eles estavam se dirigindo para uma lanchonete que fica aberta a noite inteira em Crompton Gardens, de acordo com os rapazes de apoio. Há um beco que é um atalho até os jardins, e eles seguiram por lá. A próxima coisa que a equipe ouviu foram os sons de uma luta. Eles correram até o local e encontraram Don no chão e dois sujeitos envolvidos numa briga. Prenderam os dois, que agora estão tomando um chá de cadeira nas celas.

— E quanto a Merrick? — indagou Cross. Apesar de todas as suas falhas, Cross era um policial leal aos colegas. Seus homens eram quase tão importantes para ele quanto sua própria carreira.

— Ele está na enfermaria levando pontos na cabeça. Veio numa ambulância. Tenho um dos rapazes lá com ele tomando um depoimento. — Kevin olhou para o relógio. — Ele deve chegar a qualquer minuto.

— Então, o que temos aqui? — interrogou o superintendente. — É um suspeito ou não?

Brandon limpou a garganta.

— Creio que podemos presumir que Merrick achou que valia a pena conversar com o homem que estava com ele. Quanto ao sujeito que os atacou, suponho que precisaremos esperar pelo depoimento de Merrick. Sugiro que o inspetor Matthews e um policial de sua equipe falem com o agressor, enquanto você e eu temos uma conversa preliminar com o suspeito de Merrick. Tudo bem para você, Tom?

Cross concordou, insatisfeito.

— Sim, senhor. E assim que seu rapaz voltar da enfermaria, Kevin, quero vê-lo. — Ele avançou até a porta, olhando sobre o ombro com expectativa para Brandon.

— Antes que possamos ir, Tom, acho que precisamos da inspetora Jordan e do dr. Hill aqui — disse o chefe de polícia assistente.

— Com todo o respeito, senhor, mas estamos no meio da noite. Precisamos mesmo estragar o sono do homem?

— Não quero começar a interrogar ninguém sobre os homicídios até que tenha a oportunidade de obter o aconselhamento do dr. Hill sobre como a entrevista deve ser conduzida. Além disso, os dois provavelmente ainda estão acordados trabalhando. A inspetora Jordan pretendia mostrar ao dr. Hill as cenas do crime esta noite. Você pode providenciar isso, inspetor?

Kevin olhou para Cross, que fez um leve sinal positivo com a cabeça.

— Sem problemas, senhor, vou avisar a inspetora Jordan agora mesmo. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita em nos dar uma ajuda.

Brandon sorriu e passou por Cross no corredor.

— Isso mostra o que acontece com sua coragem quando você vai para trás de uma mesa — murmurou Cross, sacudindo a cabeça numa simulação de pesar. — Acaba precisando de uma porcaria de um psicólogo para lhe dizer como interrogar um cretino das ruas.

A Canal Street ainda estava agitada. As pessoas entravam e saíam de boates, táxis deixavam e pegavam passageiros, casais dividiam seus kebabs e batatas fritas nas esquinas, michês e prostitutas observavam o tráfego lento, atacando ao menor sinal de oportunidade.

— Interessante, não é, como as áreas se tornam definidas? — disse Tony para Carol enquanto andavam rapidamente pela rua.

— Você está querendo dizer que essa é a zona de encontros públicos enquanto Crompton Gardens é o lado sombrio?

— E nunca um e o outro devem se encontrar — completou Tony. — É bastante animado para essa hora da noite, não é? As noites de segunda costumam ser mais tranquilas?

— Um pouco — disse Carol. — Algumas das boates fecham às segundas. E uma delas reserva uma noite só para mulheres.

— Então, provavelmente, não há tanto trânsito — refletiu Tony. Enquanto dirigiam pelas ruas, especulando sobre a rota de chegada do Faz-tudo, Tony ficou surpreso com o quanto a área que ele escolheu para suas duas primeiras vítimas era visível. Quase como se estivesse estabelecendo desafios para si. Agora, na esquina da viela que levava à porta lateral da Shadowlands, ele olhava ao longo da rua e refletia.

— Ele está ansioso para ser o melhor — disse baixinho.

— O quê?

— O Faz-tudo. Ele não escolhe as opções fáceis. Suas vítimas estão todas na categoria de alto risco. Seus locais de descarte de cadáveres não são lugares escondidos, obscuros e desertos. Limpa com cuidado os corpos sabendo o que seriam pistas para a perícia forense. Ele é mais esperto que nós, segundo pensa, e tem que continuar provando isso para si mesmo. Arriscaria um palpite de que a próxima vítima vai ser descartada em algum lugar muito, muito visível.

Carol sentiu um arrepio, que nada tinha a ver com o frio, percorrendo seu corpo.

— Não fale sobre o próximo corpo como se não fôssemos encontrá-lo antes disso — pediu ela. — É muito deprimente pensar assim.

Carol se adiantou no escuro beco sem saída.

— Pois bem, o segundo corpo, Paul Gibbs, foi encontrado neste lugar. Tudo que existe aqui é a saída de incêndio da boate Shadowlands.

— É escuro o bastante — reclamou Tony, tropeçando na borda de uma caixa de papelão.

— Nós sugerimos para o gerente que uma luz de segurança seria uma boa ideia, nem que fosse só para evitar um assalto quando estivesse fechando à noite, mas você está vendo como ele levou a ideia a sério — respondeu Carol, vasculhando sua bolsa de mão em busca de uma minilanterna. Ela a acendeu e o feixe de luz estreito revelou a silhueta de Tony numa prostituta de vestido vermelho de látex, que fazia um boquete num executivo de olhos turvos na saída de incêndio.

— Ei — gritou o homem, indignado. — Dê o fora, tarada intrometida!

Carol suspirou.

— Polícia. Feche a braguilha ou vai para o xadrez. — Antes mesmo de ela terminar a frase, a prostituta se levantou e se encaminhou para a entrada do beco o mais rápido que seus saltos altos permitiam. Percebendo que não valia a pena discutir agora que a prostituta tinha ido embora, o homem rapidamente fechou as calças e passou por Tony com um empurrão. Enquanto virava a esquina, gritou para ela:

— Frígida filha da puta.

— Tudo bem com você? — perguntou Tony, sua genuína preocupação era visível.

Carol encolheu os ombros.

— Quando comecei nesse trabalho, realmente me assustava quando esses caras me maltratavam assim. Depois percebi que o problema era com eles, e não comigo.

— A teoria é sensata. Como funciona na prática?

Carol fez uma careta.

— Às vezes vou para casa à noite e fico no chuveiro vinte minutos, mas nem assim consigo me sentir limpa.

— Sei exatamente o que quer dizer. Algumas das mentes perturbadas com que tive de lidar me deixam a impressão de que nunca mais terei um relacionamento normal com outro ser humano. — Tony desviou o olhar, sem querer que seu rosto o traísse. — Então, foi aqui que vocês encontraram Paul?

Carol avançou para ficar ao lado dele. Ela direcionou a lanterna para a entrada.

— Ele estava deitado aqui com alguns sacos de lixo em volta, de modo que não era imediatamente perceptível. A julgar pelas camisinhas jogadas ao redor, as profissionais do sexo tinham transado a noite inteira bem do ladinho de um cadáver.

— Suponho que já tenha conversado com elas?

— Sim, trouxemos todas aqui. Aquela que saiu correndo que nem uma barata tonta usa este ponto na maior parte das noites. Ela diz que teve um cliente em algum momento por volta das quatro da manhã. Sabe que foi a essa hora, porque o sujeito é um freguês assíduo que sai do seu turno na gráfica do jornal nesse horário. De qualquer forma, ela estava trazendo o tal cliente para cá, mas tinha um carro no caminho — disse Carol, com um suspiro. — Achávamos que tínhamos encontrado a resposta, porque ela se lembrava da marca, do modelo e da placa porque era o mesmo número da casa dela. Dois-quatro-nove.

— Não me diga. Deixe-me adivinhar. Era o carro de Paul Gibbs.

— Na mosca.

O bipe insistente do pager de Carol cortou a conversa, teimoso como um choro de bebê.

— Preciso encontrar um telefone.

— O que foi?

— Uma coisa sempre se pode garantir — disse Carol, correndo para fora do beco. — Nunca é boa notícia.

— Olhe, eu já contei a vocês tudo que sabia. Só encontrei esse sujeito Don no Hole, estávamos indo tomar uma xícara de chá e, de repente, houve um barulho de passos, e Don acertou o chão como se tivesse sido agarrado por Vinny Jones, e eu me virei e lá estava esse cara com um tijolo. Então, eu o prendi em flagrante, como a lei permite aos cidadãos, com um golpe de esquerda. E foi então que seu pessoal chegou numa muvuca, e aqui estou eu. — Stevie McConnell estendendo as mãos em frente de si. — Vocês deviam era me dar uma medalha, não me fazer um interrogatório.

— E você espera que acreditemos nisso? — Cross consultou suas anotações. — O tal de Ian atacou esse Don só porque tinha sido dispensado mais cedo na noite?

— Foi mais ou menos isso. Olha, esse Ian é conhecido na cidade. É totalmente pirado. Ele sai do sério muito rápido e pensa que é o todo-poderoso. Esse Don o fez passar vergonha direitinho, sabe, fez com que ele parecesse um maricas em vez de machão, então o seu suspeito queria se vingar. Escute, você vai me deixar ir embora ou não?

Cross foi dispensado de responder por uma batida na porta. Brandon se afastou da parede onde estava encostado e abriu-a. Ele trocou algumas palavras murmuradas com o policial do lado de fora, depois retornou.

— Interrogatório suspenso à uma e quarenta e sete da manhã — disse, inclinando-se por sobre Cross para desligar o gravador.

— Voltaremos em breve, sr. McConnell — prometeu Brandon.

Fora da sala de interrogatório, Brandon disse:

— A inspetora Jordan e o dr. Hill estão lá em cima. E o sargento Merrick voltou da enfermaria. Ao que tudo indica, ele está bem o bastante para analisar os acontecimentos da noite sozinho.

— Certo. Bem, é melhor ouvirmos o que ele tem a dizer, e depois podemos atacar o atleta.

Cross subiu as escadas com passos cadenciados até a sala de reuniões da delegacia, onde Carol, preocupada, observava Merrick. Tony sentou-se a alguns metros de distância, com os pés apoiados na borda de uma lixeira.

— Que diabos, Merrick! — berrou Cross vendo o curativo que cobria como um turbante a cabeça de Merrick, chamando bastante atenção. — Você não virou um daqueles malditos sikhs, virou? Céus, eu sabia que era um risco enviar uma equipe disfarçada para a boiolândia, mas não estava esperando fanatismo religioso.

Merrick sorriu, sem energia.

— Imaginei que assim o senhor não me mandaria vestir o uniforme de volta por ter vacilado.

Cross retribuiu com um sorriso desanimado.

— Vamos ver o que você tem a dizer, então. Por que tenho um otário escocês cheio de rebeldia no meu posto policial?

Brandon, alguns metros atrás de Cross, interrompeu:

— Antes que o sargento Merrick explore os eventos da noite, só quero explicar ao dr. Hill por que o arrastamos para cá em plena madrugada.

Tony se endireitou na cadeira e puxou uma folha de papel.

— Quando estava fazendo sua palestra outro dia — continuou Brandon, passando por Cross e sentando-se na beirada de uma mesa —, você mencionou que os psicólogos podem muitas vezes oferecer sugestões para os detetives sobre os métodos de interrogatório. Queria saber se você poderia aplicá-las a esta situação.

— Farei o melhor que puder — respondeu Tony, tirando a tampa de sua caneta.

— O que quis dizer com métodos de interrogatório? — perguntou Cross, desconfiado.

Tony sorriu.

— Um exemplo recente de minha própria experiência. Uma força a qual eu servia como consultor prendeu um suspeito em dois casos de estupro. Ele era do tipo machão, cheio de músculos. Propus que mandássemos uma policial do Departamento de Investigações Criminais para interrogá-lo, preferivelmente uma mulher pequena e muito feminina. Isso o enfureceu logo de início, porque tinha desprezo pelas mulheres e pensava que não estava sendo tratado com o devido respeito. Eu a instruí previamente para sugerir em sua linha de interrogatório que ele não poderia, de jeito nenhum, ser o estuprador, já que, para falar com franqueza, ela não achava que ele tivesse coragem. O resultado foi que ele explodiu de raiva e confessou os dois estupros para os quais tinha sido enquadrado e outros três crimes sobre os quais eles nem sabiam.

Cross não disse nada.

— Sargento Merrick? — perguntou Brandon.

Merrick relatou as experiências no bar, com pausas frequentes para pensar. No final de sua narração, Brandon e Carol olharam com expectativa para Tony.

— O que acha, Tony? Algum deles é uma possibilidade? — perguntou Brandon.

— Não acho que valha a pena considerar Ian Thomson como suspeito. Esse assassino é muito cuidadoso para se envolver em algo tão ridiculamente ostensivo quanto uma briga de rua. Ainda que Don não fosse um policial, provavelmente Thomson terminaria encrencado por ir atrás de alguém com um pedaço de tijolo. Mesmo numa cidade em que os ataques contra gays não são notórios por sua alta prioridade, em termos de policiamento — acrescentou ironicamente.

Cross fechou a cara.

— Os gays são tratados do mesmo jeito que todo mundo pelos policiais — explodiu.

Tony se arrependeu de não ter mantido a boca fechada. A última coisa que ele queria era entrar num conflito com Tom Cross sobre a política “gays e negros não contam” da polícia de Bradfield. Ele decidiu ignorar o comentário e prosseguir.

— Além disso, não há nada sobre o comportamento do assassino que sugira que ele é um gay sadomasoquista assumido. Claramente não é no meio gay que ele está selecionando as vítimas. Porém, segundo o seu ponto de vista, McConnell parece mais interessante. Sabemos o que ele faz da vida?

— Ele é gerente de uma academia no centro da cidade. A mesma academia que Gareth Finnegan frequentava — disse Cross.

— Ele não foi interrogado antes? — perguntou Brandon.

Cross deu de ombros.

— Alguém da equipe do inspetor Matthews falou com ele — interveio Carol. — Vi o relatório quando estava preparando o material para o dr. Hill — acrescentou ela às pressas, quando percebeu o início de uma carranca no rosto de Cross. Imagina se ele pensasse que ela estava tentando sabotá-lo. — Meu lixo de memória — continuou ela, tentando transformar o caso numa piada. — O tanto que me lembro era simplesmente um inquérito de rotina, uma verificação sobre se Gareth tinha tido algum colega ou contato específico na academia.

— Sabemos a situação doméstica de McConnell? — perguntou Tony.

— Ele divide uma casa com uns dois levantadores de camisa — disse Cross. — Ele alega que ambos estão no fisiculturismo também. Então, ele é um suspeito ou não?

Tony desenhava na margem de suas anotações.

— É possível — disse ele. — Quais são as chances de conseguir um mandado de busca?

— Com o que temos no momento? Não são boas. E não temos fundamento para a busca sem um. Nem sonhando poderíamos alegar que uma agressão de rua dá margem para fazer uma varredura na casa de McConnell atrás de indícios relacionados a assassinatos em série — disse Brandon. — O que procuraríamos especificamente?

— Uma câmera de vídeo. Qualquer indicação de que ele tem acesso a algum lugar isolado e deserto como um velho armazém, fábrica, casa abandonada, garagem com tranca.

Tony correu uma das mãos pelo cabelo.

— Fotografias Polaroid. Pornografia sadomasoquista. Suvenires de suas vítimas. As joias que desapareceram dos corpos.

Ele ergueu os olhos e se deparou com o sorriso de escárnio de Tom Cross.

— E vocês deviam verificar o freezer só pela possibilidade remota de que ele guarde os pedaços de carne que removeu dos corpos.

Ele sentiu um momento de satisfação quando a expressão de Cross se transformou em repugnância.

— Ótimo. Mas primeiro precisamos de algo mais para continuar. Alguma sugestão? — perguntou Brandon.

— Mande o sargento Merrick e a inspetora Jordan interrogá-lo. A conclusão de que o homem que ele tentou pegar é um policial vai desconcertá-lo, levá-lo a pensar que não pode confiar em seus instintos. Há uma chance também que ele tenha problemas com mulheres...

— É claro que ele tem problemas com mulheres — interveio Cross. — É um veado, porra.

— Nem todos os gays detestam mulheres — explicou Tony, com calma. — Mas muitos deles não gostam, e McConnell pode ser um deles. No mínimo, Carol o fará se sentir ameaçado. Situações só com homens lhe oferecem a oportunidade da camaradagem, então o privamos disso.

— Vamos tentar, então — disse Brandon. — Se o sargento Merrick estiver pronto.

— Estou dentro, senhor — concordou Merrick.

Cross dava a impressão de que não conseguia decidir se batia em Brandon ou em Tony.

— Sendo assim, posso muito bem me mandar para casa — explodiu.

— Boa ideia, Tom. Você já teve a sua cota de noites em claro ultimamente. Vou ficar por aqui, vendo no que dá o interrogatório de McConnell.

Cross saiu com passos pesados da sala de reuniões da delegacia, passando por Kevin Matthews no caminho. A atmosfera ficou indiscutivelmente mais leve com a ausência do superintendente.

— Senhor — anunciou Kevin —, parece que Ian Thomson não é um possível suspeito dos assassinatos.

Brandon franziu a testa.

— Achei que tivesse lhe dito para não mencionar os assassinatos. Nesse ponto, tudo que queremos é confrontar Thomson com a agressão.

— Não mencionei os assassinatos, senhor — disse Kevin, na defensiva. — Mas durante o interrogatório surgiu a informação de que ele trabalha três noites por semana como DJ em Hot Rocks. É uma boate gay em Liverpool. Ele trabalha segundas, terças e quintas-feiras. Seria fácil verificar se estava trabalhando na noite dos assassinatos.

— Tudo bem, mande alguém cuidar disso — ordenou Brandon.

— Sobrou o McConnell — lembrou Carol, pensativa.

— Vamos fazer o que combinamos — disse Brandon.

— Alguma dica? — perguntou Carol a Tony.

— Não tenha medo de ser condescendente com ele. Seja doce e leve, mas deixe claro que você é a policial de hierarquia superior. E, sargento Merrick, você pode fingir um pouco de gratidão.

— Obrigada — disse Carol. — Tudo bem, Don?

Eles deixaram Brandon e Tony juntos.

— Como está indo? — perguntou Brandon, levantando-se e espreguiçando-se.

Tony encolheu os ombros.

— Estou começando a ter uma noção dos assassinados. Há um padrão claro aqui. Ele é alguém que persegue as vítimas, tenho certeza disso. Devo ter o esboço de um perfil em um ou dois dias. Só foi a hora errada de atrair um suspeito.

— O que quer dizer com hora errada?

— Entendo por que quer minha opinião. Mas não gosto de saber sobre suspeitos antes de desenhar meu perfil. O risco é que eu distorça o perfil inconscientemente para que se adapte melhor ao suspeito.

Brandon suspirou. Ele sempre achou difícil ser otimista durante a madrugada.

— Vamos pensar nisso quando chegar o momento. Amanhã, a esta hora, nosso suspeito pode ser apenas uma lembrança remota.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 008

Conhecer Paul foi, de algum modo, mais excitante do que tinha sido com Adam. Em parte, porque eu sabia que agora podia lidar com as coisas se elas não saíssem do jeito que eu queria. Mesmo que Paul não fosse perspicaz para ver o que eu poderia lhe dar a mais do que qualquer outra pessoa, mesmo que rejeitasse o meu amor, mesmo que tivesse ido tão longe quanto Adam e, de fato, traísse a inevitabilidade de nossa parceria, eu sabia da existência de uma situação alternativa que poderia me proporcionar quase tanta satisfação quanto a realização daquilo que eu merecia.

Mas, dessa vez, eu tinha certeza de que conseguiria o queria. Adam, agora percebi, havia sido imaturo e fraco. Paul não era uma coisa nem outra, notei isso imediatamente. Para começar, ele não optara por morar na parte yuppie da cidade como Adam. Paul morava na zona sul em Aston Hey, um subúrbio revestido de folhas, adorado por professores universitários e terapeutas alternativos. Sua casa ficava numa das ruas mais baratas. Como a minha, dispunha de terraço, embora os dois quartos em cima e os dois embaixo fossem obviamente muito maiores. Ao contrário da minha casa, ele tinha um pequeno jardim na frente, e o quintal nos fundos possuía o dobro do tamanho, com vasos de terracota espalhados e banheiras cheias de flores e arbustos pequenos. Era o lugar perfeito para se sentar junto com alguém e tomar um drinque depois do trabalho, antes do jantar, em noites de verão.

Agora, com Paul, eu teria a oportunidade de morar em Aston Hey, aproveitar aquelas ruas tranquilas, andar no parque juntos, ser como os outros casais. Ele tinha um emprego interessante também — professor no Instituto de Ciência e Tecnologia de Bradfield, especializando-se em programas de CAD. Já tínhamos tanta coisa em comum. Era uma pena que nunca poderia lhe mostrar o que tinha alcançado com Adam.

Uma das maiores vantagens de não ter hipoteca é que eu tenho praticamente todo o meu salário para gastar livremente. A receita que tenho disponível é considerável para alguém da minha idade e que não possui dependentes. Isso significa que posso pagar por um sistema de computadores de última geração, com atualizações regulares para me manter bem na vanguarda tecnológica. Considerando que apenas um programa me custou quase três mil libras, ainda bem que não tenho nenhum parasita. Com meu novo sistema de CD-ROM, digitalizador de vídeo e software de efeitos especiais, foi preciso menos de um dia para importar os vídeos para o meu computador. Depois que estavam digitalizadas e instaladas, eu podia manipular e transformar as imagens para contar qualquer história que eu quisesse ver. Graças a outros vídeos pornôs previamente guardados no meu sistema, era possível até dar a Adam a ereção que ele não conseguira em vida. Finalmente, eu poderia fodê-lo, chupá-lo, enfiar nele os dedos e observá-lo fazer o mesmo comigo. Mas saber dessa possibilidade ainda não era o suficiente para salvá-lo. Nem mesmo meu computador e minha imaginação seriam capazes de me dar a alegria e a satisfação que ele poderia, caso tivesse sido franco sobre seu desejo por mim. E assim, todos os dias, ele precisava morrer de novo. A maior das fantasias, constantemente sendo mudada, moldada para se adequar a todos os meus estados de espírito e caprichos. Finalmente, Adam estava realizando tudo que ele podia ter fantasiado um dia. Era uma pena que não pudesse compartilhar o meu prazer.

Não era perfeito, mas pelo menos eu estava me divertindo mais do que a polícia. Pelo que lia, estava claro que eles não estavam chegando a lugar algum. A morte de Adam mal mereceu uma menção na mídia nacional, e mesmo o Bradfield Evening Sentinel Times desistiu após cinco dias. O corpo dele foi identificado depois de quatro dias, quando colegas preocupados não conseguiram receber nenhuma resposta do seu telefone ou sua campainha e relataram o desaparecimento. Eu tinha interesse nas qualidades que lhe atribuíam (popular, trabalhador, querido etc.) e senti um arrependimento passageiro pela estupidez de Adam, que me privou de uma amizade com eles. A repórter criminal do Sentinel Times tinha conseguido até achar sua ex-esposa, um erro que ele cometera aos vinte e um anos e do qual se livrou antes de fazer vinte e cinco. Os comentários dela me fizeram gargalhar.


A ex-esposa de Adam Scott, Lisa Arnold, de vinte e sete anos, lutava contra as lágrimas enquanto dizia: “Não acredito que isso possa ter acontecido.

“Ele era um homem simpático, muito sociável. Mas não era um beberrão. Não posso imaginar como essa pessoa doente conseguiu pegá-lo.”

Lisa, uma professora primária que, desde então, casou-se novamente, prosseguiu: “Não faço ideia do que Adam estava fazendo em Crompton Gardens. Ele nunca mostrou nenhuma tendência homossexual quando estávamos casados. Nossa vida sexual era bem normal. Se havia algo marcante nela era o fato de ser um pouco chata.

“A gente se casou muito jovem. A mãe de Adam o tinha criado para esperar uma esposa que lhe servisse como uma empregada, e essa não era eu.

“Então conheci outra pessoa e disse a ele que queria o divórcio. Ele ficou muito aborrecido, mas acho que era mais orgulho ferido.

“Não o vi mais desde que nos separamos, mas fiquei sabendo que estava morando sozinho. Sei que ele teve alguns casos nos últimos três anos, mas nada sério que eu saiba.

“Não consigo me acostumar com a ideia de que ele morreu. Sei que magoamos um ao outro, mas ainda assim estou arrasada por ele ter sido assassinado dessa maneira.”

Não acho que seja provável que o segundo casamento de Lisa dure a vida toda, já que a compreensão que tinha do funcionamento da mente masculina era tão escasso. Chato? Lisa era o único motivo pelo qual o sexo com Adam podia ser chato.

E quanto a me chamar de doente! Foi ela que virou as costas para um homem bonito e charmoso, que a amava tanto que ainda falava sobre ela para pessoas completamente estranhas três anos depois que ela o rejeitou. Eu sabia tudo sobre isso; eu o ouvi contar. Se alguém era doente, era Lisa.


8

 

Nenhum artista sem prática poderia ter concebido uma ideia tão ousada quanto a de um assassinato ao meio-dia no coração de uma grande cidade. Tenham certeza. Não foi nenhum padeiro obscuro, cavalheiros, ou limpador de chaminés anônimo que executou esse trabalho. Eu sei quem foi.

Stevie McConnell correu as duas mãos pelos cabelos num gesto de desespero.

— Olhe, quantas vezes tenho que lhe dizer? Era tudo garganta. Estava tentando me fazer de machão. Queria transar. Estava tentando parecer interessante. Nunca conheci Paul Gibbs nem Damien Connolly. Nunca vi nenhum dos dois na vida.

— Podemos provar que você conhecia Gareth Finnegan — disse Carol, com frieza.

— Tudo bem, admito que conhecia Gareth. Ele frequentava a academia, não posso fingir que nunca o encontrei. Mas, pelo amor de Deus, moça, o homem era advogado. Ele deve ter conhecido milhares de pessoas na cidade — arriscou McConnell, batendo na mesa com o punho firme.

Carol nem se mexeu.

— E Adam Scott? — continuou ela implacavelmente.

— Sim, sim — respondeu ele, com cansaço. — Adam Scott malhou na academia por um mês há uns dois anos, como teste. Ele nunca se associou. Esbarrei com ele algumas vezes num pub, tomamos um copo de cerveja juntos, mas isso foi tudo. Tomo drinques com muitas pessoas, sabe, não sou um eremita, droga. Céus, se eu matasse todo mundo com quem já estive num bar, vocês ficariam ocupados até o próximo século.

— Vamos provar que você conhecia Paul Gibbs e Damien Connolly. Você sabe disso, não sabe? — interrompeu Merrick.

McConnell suspirou. Suas mãos se fecharam, evidenciando os músculos dos fortes antebraços.

— Se fizerem isso, vão ter que inventar, porque não podem provar o que não é verdade. Não vou cair em nenhuma cilada para acabar condenado injustamente. Veja bem, se eu fosse mesmo esse maluco filho da mãe, acha que teria ficado para ajudar você? Ao primeiro sinal de perigo, eu teria dado no pé. Questão de lógica.

Parecendo entediada, Carol disse:

— Mas, quando aconteceu, você não sabia que o sargento Merrick era policial, sabia? Você possui algum álibi para a noite de segunda?

McConnell se recostou na cadeira e olhou fixo para o teto.

— Segunda-feira é meu dia de folga — informou. — Como disse, os caras com quem divido minha casa estão de férias, então era só eu, mais ninguém. Acordei tarde, fui ao supermercado para fazer minhas compras, depois fui nadar. Por volta de seis horas, dirigi até o cinema na rodovia, e fui ver o novo filme do Clint Eastwood.

Abruptamente, ele se sacudiu para a frente na cadeira.

— Eles vão poder confirmar. Paguei com cartão de crédito, e o sistema deles é todo computadorizado. Eles podem provar que estive no cinema — disse ele, triunfante.

— Eles podem provar que você comprou um ingresso — corrigiu Carol, laconicamente. Do cinema até a casa de Damien Connolly não demoraria mais que trinta minutos pela rodovia, mesmo levando em conta o trânsito na hora do rush.

— Pelo amor de Deus, posso lhe contar a porra do filme inteiro — disse McConnell com raiva.

— Você poderia ter assistido ao filme a qualquer hora, Stevie — pressionou Merrick gentilmente. — O que fez depois do cinema?

— Fui para casa. Cozinhei um bife e alguns legumes para mim. — McConnell pausou e olhou para a mesa. — Depois saí para a cidade por mais uma hora. Só para tomar um drinque rápido com alguns amigos.

Carol se inclinou para a frente, sentindo a relutância do interrogado.

— Em qual lugar da cidade? — indagou ela.

McConnell nada disse.

Carol se inclinou ainda mais, a ponta do nariz dois centímetros do dele. A voz dela era baixa, mas muito fria.

— Se eu tiver de pôr a sua cara na capa do Sentinel Times e enviar uma equipe para cada pub na cidade, vou fazer isso, sr. McConnell. Em qual lugar da cidade?

McConnell respirava pesadamente pelo nariz.

— The Queen of Hearts — respondeu, irritado.

Carol se recostou, satisfeita. Ela se levantou.

— Interrogatório terminado às três e dezessete da manhã — disse ela, inclinando-se para desligar o gravador. Ela olhou para McConnell.

— Nós voltaremos, sr. McConnell.

— Espere um pouco — protestou ele quando Merrick se levantou e os dois se encaminhavam para a porta. — Quando vou sair daqui? Você não tem nenhum direito de me manter aqui!

Carol se virou na entrada, sorriu com doçura, e disse:

— Ah, eu tenho todo o direito, sr. McConnell. Você foi preso por agressão, não vamos nos esquecer disso. Eu tenho vinte e quatro horas para infernizar sua vida antes mesmo que tenha de pensar em acusá-lo.

Merrick deu um sorriso de desculpas enquanto saía da sala no encalço de Carol.

— Desculpe, Stevie. A moça não está errada.

Ele alcançou Carol quando ela estava pedindo a um oficial para devolver McConnell à cela.

— O que acha, senhora? — perguntou Merrick enquanto saíam juntos.

Carol parou e observou-o com olhos críticos. A pele dele estava pálida e viscosa, os olhos tinham um brilho febril.

— Acho que você precisa ir para casa e dormir um pouco, Don. Você está um caco.

— Não se incomode comigo. Quanto ao McConnell, senhora?

— Veremos o que o sr. Brandon tem a dizer.

Carol se dirigiu às escadas, e Merrick a seguiu.

— Mas o que a senhora acha?

— À primeira vista, ele podia ser o criminoso. Não tem nada próximo de um álibi para a noite de segunda-feira, administra a academia onde Gareth Finnegan malhava, conhecia Adam Scott e ele mesmo admitiu que esteve no Queen of Hearts na noite de segunda-feira por uma hora. Com certeza é forte o bastante para ter carregado os cadáveres para dentro e para fora do carro. Tem ficha criminal, mesmo que sejam só algumas perturbações do sossego público e uma lesão corporal dolosa. E ainda gosta de sadomasoquismo. Mas tudo isso é circunstancial. Por enquanto, acho que não temos fundamentos para um mandado de busca — enumerou Carol. — E quanto a você, Don? Tem alguma intuição quanto a ele?

Eles viraram no corredor que levava à sala de reuniões da delegacia de homicídios.

— Tenho simpatia por ele — disse Merrick, com relutância. — Não podia imaginar que teria por um filho da mãe que vem cometendo assassinatos como esses. Mas, por outro lado, suponho que seja uma reação bem estúpida. Quer dizer, ele não é um homem de duas cabeças, né? Ele tem de ter algo em si mesmo que permita que as vítimas cheguem perto o bastante para que faça o serviço. Então, talvez seja mesmo Stevie McConnell.

Carol abriu a porta da sala de reuniões, esperando encontrar Brandon e Tony ainda sentados lá, abastecidos de café e sanduíches da cantina, mas a sala estava vazia.

— Para onde o chefe de polícia assistente foi agora? — perguntou Carol, o cansaço dando à sua voz um tom de exasperação.

— Talvez ele tenha deixado uma mensagem na recepção — sugeriu Merrick.

— E talvez ele tenha feito a coisa sensata e se mandado para casa. Bem, somos só nós esta noite, Don. McConnell pode esquentar um pouco a cabeça sozinho. Vamos ver o que os chefes têm a dizer pela manhã. Talvez a gente possa tentar conseguir um mandado de busca com a descoberta de que McConnell estava no Queens of Hearts. Agora, saia da minha frente e vá para casa dormir antes que sua Jean me acuse de levar você para o mau caminho. Durma um pouco. Não quero vê-lo antes do meio-dia, e, se sua cabeça estiver doendo, fique na cama. Isso é uma ordem, sargento.

Merrick sorriu.

— Sim, senhora. Até logo.

Carol observou Merrick voltar pelo corredor, preocupada com a lenta deliberação de seus movimentos.

— Don — chamou ela. Merrick se virou com um olhar inquisidor. — Pegue um táxi. Eu autorizo. Não quero você retorcido num poste de luz na minha consciência. E isso também é uma ordem.

Merrick sorriu, fez que sim e desapareceu de vista descendo as escadas.

Com um suspiro, Carol desceu da sala de reuniões para seu escritório temporário. Não havia mensagem em sua mesa. Maldito Brandon, pensou ela. E maldito Tony Hill. Brandon pelo menos devia ter aguardado até que ela terminasse seu interrogatório de McConnell. E Tony podia ter deixado algum aviso de quando esperava que eles se encontrassem para discutir o perfil. Resmungando, Carol seguiu Merrick até o lado de fora do prédio. Quando ela chegou ao hall de entrada, o oficial, atento à recepção, chamou:

— Inspetora Jordan?

Carol se virou para trás.

— Sou o que restou dela.

— O chefe de polícia assistente deixou um recado para a senhora.

Carol se aproximou do balcão e pegou o envelope que o policial lhe entregou. Ela o abriu e puxou uma única folha de papel. “Carol”, leu. “Levei Tony para uma pequena missão. Vou deixá-lo em casa depois. Por favor, esteja em meu escritório às dez da manhã. Obrigado por seu árduo trabalho. John Brandon.”

— Ótimo — disse Carol, com amargura. Ela ofereceu ao policial um sorriso cansado. — Por acaso sabe para onde o sr. Brandon e o dr. Hill foram?

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Desculpe, senhora. Eles não disseram.

— Maravilha — resmungou sarcasticamente.

Dê as costas um minuto e lá estão eles com seus jogos de meninos. Pequena missão mesmo. Que se dane, pensou Carol, enquanto voltava com passos decididos para o carro.

— Nesse jogo três podem jogar — disse ela, enquanto girava a chave na ignição.

Tony folheou a última das revistas e a devolveu à caixa do arquivo na mesa de cabeceira.

— Sadomasoquismo sempre me dá um leve nervosismo — comentou. — E esta coleção é particularmente desagradável.

Brandon concordou. A compilação de McConnell de pornografia consistia principalmente em revistas cheias de fotos coloridas e brilhantes de jovens bem musculosos, torturando uns aos outros e se masturbando. Algumas eram ainda mais perturbadoras, com imagens explícitas de casais masculinos satisfazendo-se no sexo com uma série de apetrechos sadomasoquistas. Brandon não conseguia se lembrar de ter visto exemplos mais desagradáveis, mesmo quando se envolvera por seis meses com a Delegacia de Costumes.

Eles estavam sentados na cama do quarto de Stevie McConnell. Assim que Carol e Merrick foram embora para o interrogatório, Brandon dissera:

— Seria útil para você ver onde McConnell mora?

Tony pegou sua caneta novamente e começou a desenhar na folha de papel.

— Podia me dar alguma ideia de como o homem é. E, se ele for o assassino, pode haver indícios que o liguem às mortes. Não digo armas do crime ou coisas assim. Estou pensando mais em suvenires. Fotografias, recortes de jornal e também as coisas sobre as quais falava antes. Mas é só uma hipótese, não é? Você disse que não havia chance de conseguir um mandado de busca.

O rosto melancólico de Brandon se iluminou com um sorriso estranho, quase malicioso.

— Quando a gente prende um suspeito, há coisas que podem ser feitas para contornar as regras. Está disposto?

Tony sorriu.

— Estou fascinado.

Ele seguiu Brandon descendo as escadas até as celas. O sargento de guarda largou às pressas o romance de Stephen King que vinha lendo e se levantou num salto.

— Está tudo bem, sargento — disse Brandon. — Se eu tivesse apenas uns poucos presos com que me preocupar, estaria aproveitando uma boa leitura também. Gostaria de dar uma olhada nos pertences de McConnell.

O sargento destrancou o armário e entregou uma sacola plástica transparente para Brandon. Dentro da sacola havia uma carteira, um lenço e um molho de chaves. Brandon a abriu e removeu as chaves.

— Você não me viu, não é, sargento? E não vai me ver quando eu voltar em algumas horas, vai?

O sargento sorriu.

— Não tem como o senhor ter vindo aqui. Eu certamente teria percebido.

Vinte minutos mais tarde, Brandon estava estacionando o Range Rover fora da casa com terraço de McConnell.

— Por acaso, McConnell mencionou que os dois sujeitos com quem divide a casa saíram de férias. Sorte a nossa.

Ele tirou uma caixa de papelão do porta-luvas e deu a Tony um par de luvas de borracha.

— Você vai precisar disso — avisou ele, deslizando duas delas pelas próprias mãos. — Se conseguirmos mesmo um mandado de busca, seria um pouco constrangedor quando a equipe de datiloscopistas entregasse a nós dois como principais suspeitos.

— Tem uma coisa sobre a qual estou curioso — disse Tony quando Brandon inseriu a chave na fechadura.

— E que coisa é essa?

— Isso é uma busca ilegal, certo?

— Certo — assentiu Brandon, abrindo a porta e entrando no hall. Ele apalpou a parede para achar o interruptor, mas não o acionou ao encontrá-lo.

Tony o seguiu, fechando a porta atrás de si. Somente então Brandon acendeu a luz, revelando o hall acarpetado e as escadas. Havia alguns pôsteres de fisiculturistas em quadros nas paredes.

— Então, se acharmos alguma prova, suponho que seja inadmissível no processo?

— Também está certo — disse Brandon. — Mas há expedientes para contornar isso. Por exemplo, se encontrarmos uma navalha suja de sangue debaixo da cama de McConnell, ela misteriosamente vai parar na mesa da cozinha. Então vamos ao juiz leigo, que tem a prerrogativa de emitir mandados, explicamos que fomos à casa de McConnell para verificar se ele falava a verdade quando disse que os amigos com quem dividia a casa estavam de férias, e por acaso olhamos pela janela e identificamos o que suspeitamos ser a arma usada para matar Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan e Damien Connolly.

Tony balançou a cabeça, com satisfação.

— Tendenciosos? Nós? Nunca, meritíssimo!

— Existem tendenciosos e tendenciosos — disse Brandon com severidade. — Às vezes, é preciso dar uma mexida nas coisas para a direção correta.

Tony e Brandon se moveram pela casa, cômodo por cômodo. Brandon ficou intrigado pelo método de Tony. Ele andava por um recinto, parava no meio do ambiente lentamente e analisava as paredes, a mobília, o revestimento do piso, as prateleiras. Só faltava farejar o ar. Depois, meticulosamente, abria os armários e as gavetas, levantava almofadas, examinava revistas, verificava títulos de livros, CDs, fitas cassetes e vídeos, manipulando tudo que tocava com o cuidado e a precisão de um arqueólogo. Em segundos, sua mente estava ocupada, analisando tudo que via e tocava, criando de forma vagarosa uma imagem mental dos homens que moravam ali, comparando-a constantemente com a imagem embrionária do Faz-tudo que estava se desenvolvendo em sua mente, como uma fotografia num fluido de revelação.

Você já esteve aqui?, perguntava-se ele. Isso parece com você, cheira a você? Você assistiria a esses vídeos? Esses CDs são seus? Judy Garland e Liza Minnelli? The Pet Shop Boys? Acho que não. Você não é afeminado. Pelo menos isso eu sei. E não há nada afetado ou afeminado na casa. Este lugar é tão agressivamente masculino. Uma sala de estar mobiliada em cromo e preto dos anos 1980. Mas essa não é uma casa de homens héteros, é? Nenhuma revista masculina, nem mesmo revistas de carros. Apenas jornais de fisiculturismo empilhados sobre a mesa do café. Olhe as paredes. Corpos masculinos, cobertos de óleo e brilhando, músculos parecendo madeira esculpida. Os homens que moram aqui sabem quem são e sabem do que gostam. Não acho que seja você. Você é controlado, Faz-tudo, mas não controlado assim. Uma coisa é manter-se reservado; ser forte o bastante para projetar uma imagem de forma tão coerente é outra completamente diferente. Sei como é, sou especialista nisso. Se sua identidade estivesse firmemente definida, como a dos caras que moram aqui, você não teria de fazer o que faz, teria?

Olhe os livros. Stephen King. Dean R. Koontz, Stephen Gallagher, Iain Banks. A biografia de Arnold Schwarzenegger. Alguns livros em brochura sobre a Máfia. Nada leve, nada gentil, mas nada bizarro também. Você leria esses livros? Talvez. Acho que gostaria de ler sobre serial killers, porém, e não há nada disso aqui.

Tony se virou lentamente para a porta. Foi um pequeno choque ver Brandon parado lá. Ele ficou tão absorvido por sua análise minuciosa que se esqueceu completamente de que estava na companhia de alguém. Tenha cuidado, Tony advertiu-se. Fique na sua cabeça.

Em silêncio, eles caminharam como uma tropa para a cozinha. Era espartana, mas bem-equipada. Na pia, havia uma tigela suja de sopa e uma caneca cheia até a metade de chá frio. Uma pequena prateleira de livros de culinária atestava a obsessão dos ocupantes por comida saudável.

— Peidolândia — observou Tony ironicamente, abrindo um armário cheio de potes de sementes.

Ele vasculhou as gavetas, prestando atenção às facas de cozinha. Havia uma pequena faca de legumes com a lâmina gasta de tanto ser afiada, uma faca de pão cuja lâmina tinha pequenas marcas causadas pelo tempo e uma faca de trinchar, dessas ordinárias, com o cabo manchado pela máquina de lavar louças.

— Essas não são suas ferramentas — disse Tony para si mesmo. — Você gosta de facas que trabalhem adequadamente.

Sem consultar Brandon, ele saiu da cozinha e subiu as escadas. Brandon o observou enfiar a cabeça no primeiro quarto e rejeitá-lo. Enquanto passava, viu que era obviamente o quarto do casal. Ele seguiu Tony até a porta em frente ao patamar da escada. No quarto de McConnell, Tony deu a impressão de ser transportado para um mundo só seu. O ambiente estava mobiliado com simplicidade e dispunha de uma cama de pinho moderna, uma cômoda e um armário. Uma série de troféus de levantamento de peso estava disposta no largo parapeito da janela, além de uma estante alta abarrotada com livros de ficção científica em brochura e muitos romances gays. Numa pequena mesa, havia um videogame e um monitor de televisão. Mais alto numa prateleira estava uma coleção de jogos. Tony examinou Mortal Kombat, Streetfighter II, Terminator 2, Doom e uma dúzia de outros jogos cuja tônica era ação violenta.

— Isso, sim, já é mais adequado — murmurou.

Ele ficou parado ao lado da cômoda, com a mão pousada para abrir uma gaveta. Talvez seja você, no final das contas, pensou ele. Talvez você deixe a sala de estar para os outros dois. E se esse for o seu único território? O que eu esperaria encontrar aqui? Queria os seus suvenires, Faz-tudo. Você precisa guardar algo consigo, caso contrário a lembrança se desfaz rápido demais. Todos precisamos de algo tangível. O spray de perfume descartado que conserva a fragrância dela e a invoca perante meus olhos como um holograma; a programação do teatro na primeira noite em que fizemos amor e tudo estava bem. Guardar as boas lembranças, jogar fora as ruins. O que você tem para me dar?

As primeiras três gavetas eram tão inócuas que chegava a ser decepcionante: roupas íntimas, camisetas, meias, roupas de ginástica e shorts. Quando Tony abriu a gaveta de baixo, ele suspirou com satisfação. A gaveta guardava os apetrechos de sadomasoquismo de McConnell — algemas, correias de couro, anéis penianos, chicotes e uma variedade de itens que, para Brandon, pareciam pertencer a algum tipo de laboratório ou clínica psiquiátrica. Quando Tony calmamente os retirou e os examinou, Brandon teve um arrepio.

Tony se sentou na cama e olhou em volta. Devagar, com cautela, ele tentou construir uma imagem do homem que morava naquele quarto. Você gosta de exercitar o poder pela violência, pensou ele. Gosta do fluxo da dor na sua experiência sexual. Mas não há sutileza aqui. Nenhum sinal de que você é um homem que planeja as coisas com cuidado e detalhe. Você cultua o próprio corpo. É um templo para você. Conquistou coisas, tem orgulho disso. Não é inadequado para a vida social. Consegue dividir uma casa com dois outros homens, e não é obsessivo com sua privacidade, já que não há tranca na porta. Não tem problema com sua sexualidade, e está confortável com a ideia de escolher um parceiro numa boate, desde que tenha a oportunidade de conhecê-lo um pouco primeiro.

Sua projeção de imagem foi interrompida por Brandon.

— Veja isso, Tony — disse ele com animação. O chefe de polícia assistente tinha vasculhado cuidadosamente uma caixa de sapatos cheia de papéis, a maioria recibos, garantias de eletrodomésticos, extratos de banco e cartão de crédito. A caixa estava quase vazia, mas agora ele segurava um fino pedaço de papel.

Tony o pegou. Era algum tipo de formulário policial. Ele franziu a testa.

— O que é isso?

— É o formulário que os motoristas recebem quando são parados por um policial e não têm os documentos em mãos. É preciso levá-lo a um posto policial dentro de um período determinado, para que possam verificar se tudo está em ordem. Veja o nome do policial — insistiu Brandon.

Tony olhou de novo. O nome, que a princípio parecera um garrancho confuso, de repente se tornou legível como “Connolly”.

— Reconheci o número dele — disse Brandon. — Mal dá para identificar o nome.

— Merda — sussurrou Tony.

— Damien Connolly deve tê-lo parado por algum delito de trânsito pouco importante, ou apenas para uma blitz, e pedido a ele que apresentasse seus documentos — supôs Brandon.

Tony franziu a testa.

— Achei que Connolly fosse responsável pela inteligência local. O que ele estava fazendo distribuindo multas de trânsito?

Brandon olhou por sobre o ombro de Tony para o pedaço de papel.

— Faz quase dois anos. Connolly obviamente não era um analista de antecedentes criminais na época. Ou estava passando um tempo como policial de trânsito, ou estava a serviço na área quando viu McConnell fazendo algo que não devia.

— Você pode verificar isso discretamente?

— Sem problema — respondeu Brandon.

— Você encontrou, então, não foi?

Brandon parecia assustado.

— Você quer dizer... que acha que isso encerra o caso? McConnell é o criminoso?

— Não, não — disse Tony, apressadamente. — De jeito nenhum. Tudo que quero dizer é que, se você puder rastrear a emissão da multa, deve conseguir fazer um juiz leigo lhe conceder um mandado de busca oficial baseado no fato de que McConnell conhecia três das quatro vítimas, o que extrapola a mera coincidência.

— Certo — disse Brandon, suspirando. — Então você ainda não está convencido de que McConnell é o assassino?

Tony se levantou e andou de um lado para outro no tapete, seu padrão geométrico denteado nas cores cinza, vermelho, preto e branco o lembravam da primeira e única enxaqueca que tivera.

— Antes de você encontrar isso, eu já tinha concluído que McConnell era o homem errado — explicou ele, depois de alguns momentos. — Sei que não tive tempo de sentar e escrever um perfil completo ainda, mas tinha a impressão de que estava começando a ter uma ideia de como era esse assassino. E há muitas coisas aqui que não se encaixam nessa imagem. Mas essa é uma enorme coincidência. Esta cidade é grande. Concluímos que Stevie McConnell conhecia ou pelo menos havia encontrado três das quatro vítimas. Quantas pessoas estarão nas mesmas condições?

— Não muitas — respondeu Brandon, com gravidade.

— McConnell ainda não me convence como o assassino, mas é possível que o homicida seja alguém que ele conheça, alguém que tenha conhecido Adam Scott e Gareth Finnegan por meio dele — continuou Tony. — Talvez até alguém que estivesse com ele quando recebeu essa multa de trânsito, ou alguém a quem ele apontou Damien. Você conhece esse tipo de coisa: “Aquele ali é o filho da mãe que me pegou por excesso de velocidade.”

— Não acha mesmo que seja ele, né? — perguntou Brandon, sem energia, a voz decepcionada. — Acho que é pouco provável. Afinal, não há prova que ligue a casa aos assassinatos — disse ele, com cautela. — Mas, você mesmo disse, é mais provável que esteja fazendo sua matança em outro lugar. Pode ser que ele guarde seus suvenires lá.

— Não é só a ausência de suvenires — disse Tony. — Normalmente, John, serial killers matam para transformar em realidade suas fantasias. Tipicamente, eles têm fantasias desenvolvidas até o ponto onde elas são mais reais para eles do que o mundo em volta. Não há nada aqui que sugira que McConnell seja esse tipo de personalidade. Tudo bem, ele tem uma pilha de revistas pornográficas. Mas a maioria dos homens da idade dele também tem, independentemente da orientação sexual. Ele tem jogos de computador violentos, mas milhares de adolescentes e homens adultos também têm. Existem, sim, muitos indícios que sugerem que Stevie McConnell não é um sociopata. Olhe ao redor, John. Essa casa inteira cheira a normalidade. O calendário da cozinha tem datas para pessoas que vem jantar. Olhe para aquela pilha de cartões de Natal na estante. Deve haver cinquenta deles lá. Veja as fotos de férias. Ele estava obviamente com o mesmo parceiro por quatro ou cinco anos, a julgar pelos locais e as mudanças de penteado. Stevie McConnell não parece ter problema em estabelecer relacionamentos com as pessoas. Tudo bem, também parece não haver nada relacionado à sua família, mas muitos gays, quando se assumem, perdem esse contato. Isso não significa que sua família seja desestruturada da forma que, geralmente, ocasiona a formação de um serial killer. Lamento, John. Não tinha certeza a princípio, mas quanto mais vejo, menos esse sujeito parece ser o criminoso.

Brandon levantou-se e recolocou cuidadosamente a folha de papel exatamente onde a encontrara.

— Lamento dizer isso, mas acho que tem razão. Quando o interroguei mais cedo, achei que ele era calmo demais para ser quem estamos procurando.

Tony balançou a cabeça.

— Não se engane quanto a isso. É possível que o cara certo seja calmo também. Não se esqueça, isso é algo que ele planejou com cuidado. Apesar de se achar o máximo, ele vai ter planos de contingência. Espera ser trazido para interrogatório mais cedo ou mais tarde. Vai estar pronto para vocês. Ele será razoável, agradável. Não vai parecer um trapaceiro. Será insípido, prestativo e não vai gerar nenhuma desconfiança aos seus detetives. O álibi dele vai ser nenhum álibi. Ele provavelmente dirá que esteve com uma vadia, ou fora numa partida de futebol sozinho. Vai acabar sendo eliminado de suas investigações porque outros suspeitos serão aparentemente mais interessantes.

Brandon conseguiu parecer ainda mais deprimido que o normal.

— Obrigado, Tony. Você realmente me animou agora. Então, o que sugere?

Tony deu de ombros.

— Como disse, é possível que McConnell conheça o assassino. Pode até ter suas próprias suspeitas. Eu o seguraria um pouco mais, o interrogaria duramente para saber o que sabe e quem ele conhece. Mas não dispensaria a equipe. Consiga um mandado. Faça uma busca completa, debaixo das tábuas do assoalho, no sótão. Nunca se sabe o que pode aparecer. Não se esqueça, posso estar completamente errado.

Brandon olhou seu relógio.

— Certo. É melhor eu devolver essas chaves antes do fim do turno do sargento de guarda. Deixo você no caminho.

Com uma última olhada para verificar se não tinham esquecido nada fora de lugar, Brandon e Tony deixaram a casa de McConnell. Quando se aproximavam do Range Rover, uma voz vinda da sombra disse:

— Bom dia, cavalheiros. Vocês estão presos.

Carol deu um passo à frente na luz do poste de iluminação.

— Dr. Anthony Hill e o chefe de polícia assistente John Brandon, estou prendendo os dois por suspeita de invasão. Não precisam dizer nada... — Nesse momento, foi vencida pelo riso.

Ao ouvir as primeiras palavras dela, o coração de Brandon foi à boca.

— Caramba, Carol — protestou ele. — Estou velho demais para brincadeiras como essa.

— Mas não para brincadeiras como essa aí, pelo visto — disse Carol, com ironia, fazendo um gesto com o polegar para a casa de McConnell. — Busca sem mandado, e na casa de um civil? Sorte a sua que não estou de serviço, senhor.

Brandon deu um sorriso cansado.

— Então por que você está rondando a casa do suspeito?

— Sou uma detetive, senhor. Achei que podia encontrar o senhor e o dr. Hill aqui. Algum resultado?

— Dr. Hill acha que não. E quanto ao seu interrogatório? — perguntou Brandon.

— Suas sugestões funcionaram muito bem, Tony. McConnell não tinha nenhum álibi a declarar para o assassinato de Damien Connolly, exceto por uma hora mais tarde na noite em que Damien podia já estar morto. O importante é onde ele estava naquela hora. Senhor, ele estava bebendo no pub onde o corpo foi deixado.

As sobrancelhas de Tony se ergueram, e ele inspirou forte. Brandon se voltou para ele.

— E então?

— É exatamente o tipo de coisa insolente que o Faz-tudo poderia aprontar. Talvez seja aconselhável conseguir alguém para verificar se ele é um freguês assíduo do estabelecimento. Se não for, isso torna o fato importante — explicou Tony devagar. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, foi dominado por um enorme bocejo.

— Desculpe — disse, bocejando novamente. — Não sou um notívago.

— Vou lhe dar uma carona para casa — disse Carol. — Acho que o chefe de polícia assistente tem alguma coisa para deixar na delegacia.

Brandon olhou para o relógio.

— Ótimo. Chegue às onze e não às dez, Carol.

— Obrigada, senhor — disse Carol, com sinceridade, enquanto abria seu carro para Tony. Ele despencou no banco do carona, incapaz de interromper a onda de bocejos que o tomava.

— Desculpe mesmo — conseguiu dizer, com uma bocarra. — Não consigo parar de bocejar.

— Você encontrou alguma coisa válida? — perguntou Carol, seu tom mais compreensivo que suas palavras.

— Damien Connolly o notificou alguns anos atrás por um delito de trânsito — respondeu Tony, sem animação.

Carol soltou um assobio.

— Na mosca! Pegamos o cara numa mentira dupla, Tony. McConnell disse a Don Merrick, a princípio, que tinha conhecido Connolly após um arrombamento na academia. Depois, na entrevista, ele negou jamais tê-lo visto. Disse que vinha mentindo para se fazer de interessante. Mas agora vem à tona que ele realmente o conheceu! Que sorte!

— Apenas se você acreditar que ele é o assassino — disse Tony. — Sinto muito em decepcioná-la, Carol, mas não acho que seja ele. Estou cansado demais para explicar tudo agora, mas, depois que elaborar meu perfil e o analisarmos, verá por que não consigo me animar com Stevie McConnell. — Ele bocejou de novo e recostou a cabeça numa das mãos.

— Quando podemos fazer isso? — perguntou Carol, lutando contra o impulso de arrancar os pensamentos dele aos solavancos.

— Ouça, me dê o resto do dia, e amanhã de manhã terei o esboço de um perfil para você. Que tal?

— Ótimo. Alguma outra coisa de que precise enquanto isso?

Tony não disse nada. Carol lhe dirigiu um rápido olhar de soslaio e percebeu que ele tinha cochilado. Isso é só para quem pode, pensou ela. Forçando-se a se concentrar, ela dirigiu pela cidade até a casa geminada de Tony, uma construção de tijolos da virada do século, numa rua tranquila distante alguns pontos de bonde da universidade. Carol estacionou. A lenta e suave diminuição do veículo até a parada total não perturbou Tony, cuja respiração se tornara audível.

Carol desprendeu o cinto de segurança e se inclinou para sacudi-lo de leve. A cabeça de Tony se ergueu num gesto assustado, os olhos ficaram esbugalhados e inquietos. Ele fitava Carol sem compreender.

— Tudo bem — disse ela. — Você está em casa. Caiu no sono.

Tony esfregou os olhos com os punhos, murmurando algo ininteligível. Com os olhos embaçados, voltou-se para Carol e deu um sorriso torto e sonolento.

— Obrigado por me trazer para casa.

— Sem problemas — disse Carol, ainda virada em seu assento, percebendo de modo intenso a proximidade dele. — Vou ligar para você à tarde, podemos marcar um horário para nos encontrarmos amanhã.

Tony, já acordado, se sentiu claustrofóbico.

— Obrigado de novo — agradeceu ele, retirando-se às pressas, abrindo a porta do carro e quase tropeçando na calçada, graças à combinação de pressa e sonolência.

— Não acredito que queria que ele me beijasse — disse Carol para si mesma enquanto observava Tony abrir a porta e subir o curto caminho. — Santo Deus, o que está acontecendo comigo? Primeiro, trato Don como uma mãe superprotetora, depois começo a me interessar pelos peritos.

Ela viu a porta da frente aberta, enfiou uma fita cassete no som e foi embora.

— Preciso é de férias — disse ela a Elvis Costello.

— You tease, and you flirt, and you shine all the buttons on your green shirt* — cantou ele de volta.

— Na noite passada, estávamos praticamente colocando o champanhe para gelar. Agora você está me dizendo que quer deixar McConnell ir embora?

Cross balançou a cabeça num gesto de exasperação tão antigo que provavelmente aparecia num vaso grego.

— O que aconteceu para mudar tudo? Ele apareceu com um álibi para rebater qualquer suspeita, foi isso? Estava se divertindo com o príncipe Edward e seus guarda-costas?

— Não estou dizendo para deixá-lo ir embora de imediato. Precisamos interrogá-lo mais detidamente sobre seus colegas, verificar se ele apresentou Gareth Finnegan e Adam Scott a alguém. E, depois disso, teremos que deixá-lo ir. Não há nenhuma prova real, Tom — disse Brandon, com cansaço. A falta de sono tinha transformado seu rosto numa máscara cinza que não teria parecido fora de lugar num filme de terror produzido pela Hammer Horror. Cross, por outro lado, tinha a aparência e a voz tão renovadas quanto uma criancinha que tivesse acabado de tirar uma soneca.

— Ele estava no Queen of Hearts naquela noite. Pelo que sabemos, estava com o cadáver de Connolly na mala do carro, aguardando apenas o fechamento do bar. Deve ser suficiente para fazer buscas no cafofo dele.

— Assim que tivermos indícios suficientes para conseguir um mandado de busca, nós o faremos — retorquiu Brandon, relutante em admitir que já tinha tomado aquela medida não ortodoxa. Mais cedo, ele pedira à sargento Claire Bonner que verificasse todas as prisões e multas de trânsito de Damien Connolly, supostamente pela chance remota de uma ligação com McConnell, mas, até agora, ela não havia descoberto a informação crucial que ele sabia que existia.

— Suponho que tudo seja culpa do Menino-Prodígio — disse Cross, com amargura. — Imagino que aquele psicólogo tenha dito que a infância de McConnell não foi infeliz o bastante.

Carol mordeu a língua. Era ruim o suficiente testemunhar essa luta de titãs sem lembrar a nenhum dos chefes que ela estava assistindo ao conflito.

Brandon franziu a testa.

— Já consultei a opinião do dr. Hill e, sim, ele acredita que, com base no que temos até agora, McConnell não é quem procuramos. Mas isso não é a principal razão pela qual acho que devemos soltá-lo. A falta de provas é muito mais importante para mim.

— E para mim. É por isso que precisamos coletá-los um pouco mais. Precisamos interrogar aqueles baitolas com quem ele estava bebendo na noite de segunda, para saber qual era o estado dele. E precisamos ver o que McConnell tem debaixo do colchão — disse Cross, com vigor. — Ficamos com ele preso por menos de doze horas, senhor. Temos o direito de ficar com ele até passar a meia-noite. Depois, podemos acusá-lo de agressão e solicitar aos juízes leigos um período de descanso para o interrogatório policial, o que nos dá mais três dias. Isso é tudo que estou pedindo. A essa altura, eu já o terei prendido. O senhor não pode dizer não para isso. Todos protestariam com veemência.

Errado, pensou Carol. Você estava indo bem até agora, mas a chantagem emocional acabou com as suas chances.

As orelhas de Brandon ficaram vermelho vivo.

— Espero que ninguém pense que o trabalho parou por causa do interrogatório — disse ele, com um componente de perigo em sua voz.

— O pessoal é dedicado, senhor, mas todos estão trabalhando no caso por muito tempo sem uma folga.

Brandon virou para o outro lado, olhando pela janela a cidade abaixo. Seus instintos lhe diziam para deixar McConnell ir depois que tivessem feito uma última tentativa de arrancar os contatos dele, mas ele sabia, sem precisar dos comentários inábeis de Cross, que ter um suspeito dera à divisão de homicídios um novo sopro de energia. Antes que ele pudesse tomar uma decisão, houve uma batida na porta.

— Entre — gritou Brandon, virando e deixando-se cair pesadamente na cadeira.

Os cachinhos cor de cenoura de Kevin Matthews apareceram na porta. Ele parecia um garoto a quem havia sido prometida uma viagem à Disneylândia.

— Senhor, desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber um laudo da perícia forense sobre o assassinato de Damien Connolly.

— Entre e nos informe, então — convidou Cross cordialmente.

Kevin deu um sorriso que era como um pedido de desculpas e deslizou seu corpo magro pela porta.

— Um dos peritos encontrou um pedaço de couro rasgado preso num prego do portão — informou ele. — É uma área protegida, o público não pode entrar simplesmente, por isso pensamos que pode ser importante. Obviamente, tivemos de desconsiderar as pessoas que trabalham no pub, e os carregadores que fazem entrega ali. De qualquer forma, descobrimos que o quintal foi caiado, e os portões foram pintados há apenas um mês, por isso não tivemos de procurar muito. O resultado é que ninguém admitiu possuir nada feito desse tipo de couro, então o mandamos para a perícia e pedimos que analisassem com urgência. O laudo acabou de chegar.

Ele estendeu o laudo para Brandon, ansioso como um escoteiro.

A passagem relevante tinha sido assinalada em amarelo. Ela saltou aos olhos de Brandon.

“O fragmento de couro marrom-escuro é extremamente incomum. A princípio, parece ser algum tipo de camurça. De modo mais significativo, as análises indicam que foi curado em água do mar em vez de um meio de curagem química especializada. Conheço apenas uma origem de couro assim: a antiga União Soviética. Como os fornecimentos regulares dos produtos químicos corretos eram difíceis de encontrar, muitos coureiros de lá ainda usam o velho método de curar com água marinha. Apostaria que o fragmento veio de uma jaqueta de couro originária da Rússia. Tecido desse tipo não está disponível comercialmente em nenhum outro lugar, pois não atende aos critérios de qualidade exigidos pelo comércio de varejo dos países desenvolvidos do Ocidente.”

Após a leitura, Brandon atirou o laudo para o outro lado da mesa na direção de Cross.

— Droga! — exclamou o superintendente. — Quer dizer que estamos procurando um russo?

Nota:
* “Você provoca, e flerta, e faz brilhar todos os botões da sua camisa verde.” (N. T.)


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 009

Li em algum lugar que os inquéritos de homicídios custam um milhão de libras por mês. Quando Paul demonstrou que era tão estúpido e traiçoeiro quanto Adam, comecei a perceber que as medidas que tive de tomar podiam ter um impacto importante nos impostos locais. Não que eu me importasse com alguns trocados a mais por ano no meu carnê de imposto; era um pequeno preço a pagar pela satisfação que tinha em lidar com a perfídia deles.

Fiquei muito triste com a deserção de Paul. Logo quando eu havia decidido o local para a celebração triunfante de nosso amor, ele me virou as costas e escolheu outra pessoa. Na noite em que fez sua primeira abordagem, não sei como cheguei em casa. Não consigo me lembrar de um único detalhe da viagem. Sentei-me no 4x4 no lado de fora da fazenda, gritando furiosamente contra sua superficialidade, sua incapacidade de reconhecer que era a mim que ele amava verdadeiramente. Minha raiva era tão intensa que perdi toda a coordenação motora. Praticamente caí do assento do motorista e cambaleei como uma pessoa embriagada para o refúgio de minha masmorra.

Subi no banco de pedra e abracei meus joelhos no peito enquanto lágrimas inéditas rolavam pela minha bochecha e batiam na pedra crua, manchando-a com uma cor tão escura quanto o sangue de Adam. O que havia de errado com eles? Por que não podiam se permitir ter o que sabiam que queriam?

Limpei os olhos. Eu devia a nós dois a transformação da experiência em algo tão rico e perfeito quanto possível. Era hora de novos brinquedos. Adam tinha sido o ensaio final. Paul seria a noite de estreia.

A desculpa do carro que não queria dar partida tinha me servido bem com Adam, então a usei com Paul. Funcionou perfeitamente. Assim que entrei em seu hall, ele chegou a me convidar para tomar um drinque enquanto eu esperava o homem da seguradora. Mas não caí em sua bajulação; ele tivera sua chance, e era tarde demais agora para que eu abortasse os planos que fizera para nossa união de acordo com minhas condições.

Quando recobrou a consciência, ele estava atado num berço de Judas. Levei alguns dias para construí-lo, já que precisei começar do zero. O berço de Judas foi uma das minhas descobertas em San Gimignano. Tinha visto apenas algumas referências a ele em meus livros, nenhuma delas esclarecendo como era construído exatamente. No entanto, em exibição, eles tinham o próprio modelo em condições de funcionamento. Tirei algumas fotografias para ampliar a do catálogo do museu e, com elas, elaborei um projeto exequível no meu computador.

Não é uma máquina que os inquisidores tenham usado muito, embora eu não saiba dizer exatamente o porquê. O museu de San Gimignano apresenta uma teoria que, francamente, me parece absurda. Junto com alguns dos outros textos explicativos, essa tola hipótese me dá a convicção de que os cartões foram escritos por alguma feminista tacanha e obcecada. A teoria é a seguinte: era aceitável usar instrumentos de tortura em mulheres, como peras vaginais, que dilaceravam o cérvix e a vagina; os chamados cintos de “castidade”, que rasgavam os lábios vaginais até formar uma polpa sangrenta; instrumentos que cortavam mamilos de modo tão eficiente quanto um cortador de charuto, porque as mulheres eram uma espécie distinta da dos inquisidores e, de fato, muitas vezes consideradas criaturas do demônio. Por outro lado, como defende essa teoria maluca, os instrumentos de tortura usados em homens tendiam a não ser direcionados aos órgãos genitais, apesar da maciez dessas regiões, porque — espere só para ver isso — os torturadores se sentiam inconscientemente ligados às suas vítimas e, portanto, qualquer mutilação infligida sobre seus paus e bolas era inimaginável. É óbvio que a redatora da legenda de San Gimignano está longe de ser alguém versado nos requintes do Terceiro Reich.

Meu berço de Judas, modéstia à parte, é uma obra-prima. Ele consiste numa estrutura quadrada com uma perna em cada canto, suportes para os antebraços e uma grossa tábua nas costas. Muito semelhante a uma cadeira de carpintaria primitiva, exceto que não há assento. Em vez disso, abaixo do espaço onde o assento devia estar, há um espeto cônico de farpas afiadas, preso às pernas do berço por escoras transversais de madeira resistente. Para o espeto, usei um dos cones grandes no qual o fio de algodão costumava ser enrolado em teares industriais. É possível comprá-los em lojas de suvenir de qualquer posto avançado do patrimônio da indústria. Cobri-o com uma folha fina e flexível de cobre e prendi a fita farpada em espiral no lado de fora. Adicionei meu próprio toque de requinte ao exemplo no museu de tortura: meu espeto era ligado por um fio de energia através de um reostato, permitindo-me aplicar choques elétricos de intensidade variada. A coisa toda estava aparafusada ao piso para evitar acidentes.

Enquanto estava inconsciente, Paul tinha sido mantido acima do espeto com uma tira de couro forte sob suas axilas, presa às costas da cadeira. Também prendi com tiras os dois tornozelos a uma das pernas da frente do berço. Assim que eu desatasse a tira, ele seria deixado à própria sorte, contando com os músculos da panturrilha e os ombros para afastá-lo do ferrão brutal, posicionado cuidadosamente logo abaixo de seu ânus. Como o berço era tão alto que apenas seus dedões do pé podiam chegar ao chão, eu não esperava que ele aguentasse por muito tempo.

Seus olhos registraram o mesmo pânico que eu vira em Adam, mas aquilo era inteiramente culpa dele. Eu lhe disse isso antes de retirar a fita de sua boca.

— Eu não fazia ideia, não fazia ideia — balbuciou ele. — Desculpe, desculpe. Você precisa permitir que eu me redima com você. Só me tire dessa coisa, e prometo que podemos ter um novo começo.

Balancei a cabeça.

— Robert Maxwell estava certo numa coisa. Ele disse que confiança é como virgindade: só se perde uma vez. Você tem uma alma traiçoeira, Paul. Como posso acreditar em você?

Ele passou a bater os dentes, embora não fosse, penso eu, devido ao frio.

— Cometi um erro — forçou-se a dizer. — Sei disso. Todo mundo erra. Por favor, tudo que peço é uma chance de consertar as coisas. Posso consertar, juro.

— Mostre-me, então — disse eu. — Mostre-me que está dizendo a verdade. Mostre-me que me quer. — Olhei fixamente para o pau murcho dele, pendente com seus testículos no espaço onde o assento deveria estar. Havia ansiado pela beleza, mas ele me decepcionara também nesse ponto.

— Nã-não aqui, não assim. Não consigo! — A voz dele subiu num patético lamento.

— É isso ou nada. Aqui ou em lugar nenhum — disse a ele. — A propósito, caso esteja se perguntando, você está preso a um berço de Judas.

Expliquei cuidadosamente como o berço funcionava. Queria que ele fizesse uma escolha baseada no conhecimento dos fatos. Enquanto falava, sua pele foi ficando cinza e viscosa com o medo. Quando mencionei a eletricidade, ele perdeu completamente o controle, deixando pingar mijo do pau, respingando no chão embaixo dele. O fedor de urina fresca subiu e me asfixiou.

Estapeei-o com tanta força que sua cabeça bateu com estrondo na tábua do berço de Judas. Ele gritou de dor e as lágrimas brotaram em seus olhos.

— Bebê sujo, bebê imundo — gritava para ele. — Você não merece meu amor. Olhe para você, se mijando e chorando como uma menininha. Não é um homem.

Ouvir as palavras de minha mãe saindo de minha boca destruiu meu autocontrole como nada mais poderia ter feito. Eu continuava batendo em Paul, deleitando-me com a destruição da cartilagem enquanto o nariz dele se desintegrava sob meus punhos. A raiva estava me deixando fora de mim. Ele me enganara para que eu pensasse que ele podia ser algo diferente do que era. Pensava que Paul fosse forte e corajoso, inteligente e sensível. Mas ele era apenas um pulha estúpido, covarde e promíscuo, um exemplo patético de homem. Como pude um dia imaginar que ele poderia ser um parceiro digno? Ele não estava nem resistindo, apenas ficava sentado miando como um gatinho, deixando que eu batesse nele.

Sem fôlego pelo esforço e pela raiva, finalmente parei. Dei um passo atrás e o fitei com desdém, observando suas lágrimas formarem linhas ao atravessarem o sangue em seu rosto.

— Você provocou isso a si mesmo — sussurrei. Todos os meus planos cuidadosos tinham ido por água abaixo.

Mas agora não queria lhe dar a segunda chance que tinha dado a Adam. Não queria o amor de Paul. Não, sob nenhuma circunstância. Ele não me merecia. Dei a volta no berço e peguei a ponta da tira.

— Não — choramingou ele. — Por favor, não.

— Você teve sua chance — falei furiosamente. — Você teve sua chance e a desperdiçou. Não tem ninguém a quem culpar a não ser a si mesmo, vindo aqui e mijando no chão como um bebê que não sabe se controlar.

Puxei a tira, apertando-a o bastante para que pudesse desprendê-la da correia. Depois, soltei-a.

Os músculos de Paul instantaneamente se retesaram, mantendo-o rigidamente no lugar, a um mero centímetro do espeto. Eu me movi para sua linha de visão e lentamente me despi, acariciando meu corpo, imaginando como seria sentir as mãos dele. Seus olhos se esbugalharam com o esforço enquanto ele tentava se manter no lugar. Sentei-me e, devagar, deliciosamente, comecei a me esfregar, a excitação aumentando enquanto observava sua luta para permanecer afastado do espeto angustiante.

— Você podia estar fazendo isso — disse com desdém, vibrando de tesão com o estremecimento de suas coxas e panturrilhas. — Podia estar fazendo amor em vez de estar lutando para manter seu rabo a salvo.

Se ele tivesse malhado como Adam, o prazer teria durado mais. Do modo como eram as coisas, seus gritos de agonia se misturavam aos meus gemidos de prazer. Gozei como um espetáculo pirotécnico, os fogos estourando dentro de mim e explodindo num orgasmo que me deixou de joelhos.

Ele tentou se soltar, mas as farpas só cortavam mais profundamente sua pele macia. Recostei-me na cadeira, saboreando as ondas de prazer que fluíam por mim depois do meu orgasmo. Os gemidos e os gritos de Paul eram um contraponto extravagante para minha satisfação sexual.

À medida que o tempo passava, ele mergulhava mais fundo no espeto, e seus gritos se moderavam tornando-se choramingos. Para minha surpresa, senti o desejo sexual surgir em mim mais uma vez. Depois do prazer intenso do meu primeiro orgasmo, queria que minha excitação fosse igual novamente.

Procurei a caixa com o interruptor elétrico do espeto, e pressionei o botão que fechava o circuito. Mesmo com uma corrente relativamente baixa, o corpo de Paul se contorcia num arco que quase o retirava do espeto, e um fino borrifo de sangue atingia o chão por cerca de meio metro em volta.

Igualei o ritmo de nossos corpos, a velocidade e a intensidade de nossa excitação mútua mantendo um compasso perfeito. Senti meus músculos tremerem como os dele enquanto eu me esfregava com minha mão. Quando gozei, meu corpo se curvou em sincronia com o de Paul, meus suspiros ecoando seus últimos gritos de agonia antes de perder a consciência.

Preciso confessar que me surpreendi com o quanto gostei da punição de Paul. Talvez porque ele tenha merecido muito mais que Adam, talvez porque eu tivera expectativas maiores quanto a ele a princípio, ou talvez simplesmente porque eu estava ficando melhor naquilo. Qualquer que fosse a razão, minha segunda incursão no assassinato me fez perceber que, finalmente, eu tinha encontrado minha verdadeira vocação.


9

 

Secamos nossas lágrimas e... descobrimos que uma interação que, considerada sob o aspecto moral, era execrável, e sem nenhuma base para defesa, quando submetida aos princípios do bom gosto, revela-se uma performance muito louvável.

— Tudo bem, Faz-tudo, é hora do show — disse Tony para a tela em branco de seu computador. Depois que Carol o tinha deixado em casa, ele cambaleou para o andar de cima, retirando os sapatos aos chutes e deixando sua jaqueta de beisebol acolchoada repousar onde caísse. Parando somente para esvaziar a bexiga, ele se afundou no edredom e caiu no sono mais profundo que tivera em meses. Quando acordou, já passava do meio-dia. Contudo, daquela vez, não teve a sensação de culpa pelo trabalho que deveria estar fazendo. Ele se sentiu revigorado, empolgado, até eufórico. A busca na casa de Stevie McConnell lhe dera uma nova certeza de que realmente entendia aquilo. Sabia, com absoluta clareza, que o Faz-tudo não vivia daquela maneira. E, embora não fosse algo que pudesse admitir para ninguém fora do círculo de colegas analistas de perfis criminais, perceber que provavelmente poderia se encontrar dentro da mente do Faz-tudo e mapear um caminho pelo labirinto tortuoso de sua lógica singular, gerava em Tony uma onda de prazer. Tudo que ele precisava agora era encontrar a chave da porta.

No escritório, Tony movia-se com velocidade pelas pilhas restantes de documentos, tomando notas enquanto prosseguia. Depois, fechou as venezianas e disse à sua secretária que não transferisse nenhuma ligação. Contornou a escrivaninha com sua cadeira de modo que ela ficasse de frente para a cadeira do visitante. Num lado do móvel, colocou seu gravador, ainda desligado. Andou até a porta e ficou de costas para ela, contemplando a sala. Um poema que lera certa vez ecoou em sua mente. Algo sobre uma estrada que se bifurcava numa floresta, e a importância de escolher o caminho menos trilhado. Pelo que podia lembrar, seus fascínios o tinham levado pela estrada menos trilhada. Era a estrada em que seus pacientes andavam, o percurso sombrio que levava para o mato crescido, fora da colorida luz solar do caminho aberto.

— Preciso compreender por que escolheu essa estrada, Faz-tudo — murmurou Tony. — É isso que faço melhor. Entende? Eu sei o que me atrai para essa estrada. Mas não sou como você. Posso voltar quando quiser. Posso escolher o caminho ensolarado. Não preciso ficar aqui. Tudo que estou fazendo é estudar suas pegadas. Ou, pelo menos, é isso que digo ao mundo. Mas sabemos a verdade, não é? Não pode se esconder de mim, Faz-tudo — continuou ele baixinho. — Sou igualzinho a você, sabe. Sou sua imagem no espelho. A caça que virou caçador. Caçá-lo é a única coisa que me impede de sermos iguais. Estou aqui, esperando por você. Fim da jornada. — Permaneceu ali por mais um instante, saboreando o que havia admitido para si mesmo.

Por fim, sentou-se na cadeira e se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas frouxamente.

— Tudo bem, Faz-tudo — disse ele. — Somos só você e eu. Vamos pular os preâmbulos: toda aquela parte em que fazemos a queda de braço verbal e você finalmente decide conversar comigo. Vamos direto ao ponto. Primeiro, quero dizer como estou impressionado. Nunca vi um trabalho mais limpo. Não digo apenas os corpos, quero dizer a coisa toda. Uma beleza o que fez. Nunca nenhuma testemunha. Deixe-me reformular. Nunca ninguém percebeu nada de significativo no que viu ou ouviu, porque deve ter havido pessoas que viram ou ouviram algo, mas não estabeleceram a relação entre as coisas. Como você conseguiu ser tão invisível?

Ele pressionou o botão vermelho do gravador da fita cassete, depois se levantou e andou até a outra cadeira.

Tony inspirou fundo e relaxou lentamente o corpo, usando técnicas de relaxamento para se colocar num leve estado de transe. Instruiu a mente consciente a se deixar levar e permitir que sua concentração acessasse diretamente tudo que sabia sobre o Faz-tudo e que respondesse por ele. Quando falou, até sua voz era diferente. O timbre era mais áspero, os tons mais graves.

— Eu me misturei. Tomei cuidado. Observei e aprendi.

Tony trocou de cadeiras novamente.

— Você obviamente fez um bom trabalho — elogiou ele. — Como você os escolheu?

De volta à cadeira do Faz-tudo.

— Gostava deles. Sabia que isso seria especial para eles. Queria ser como eles. Todos eles têm bons empregos, uma vida legal. Sou bom em aprender coisas. Poderia ter aprendido a ser como eles. Poderia ter me encaixado em suas vidas.

— Então por que matá-los?

— As pessoas são estúpidas. Elas não me compreendem. Sempre fui aquele de quem elas riam e de quem tinham medo depois. Não gosto que riam de mim e estou cansado de pessoas que me temem como se eu fosse algum animal prestes a atacá-las. Dei-lhes uma chance, mas eles não me deram nenhuma. Tive que matá-los.

Tony afundou de volta em sua própria cadeira.

— E depois que fez isso uma vez, percebeu que era a melhor coisa do mundo.

— Eu me senti bem. No controle. Sabia o que ia acontecer. Eu planejara tudo, e tinha funcionado!

Tony se surpreendeu com o grau de entusiasmo que exprimiu. Aguardou, mas nada mais pareceu emergir.

Retornou à sua própria cadeira.

— Não durou muito, não é? O prazer? A sensação de poder?

Na cadeira do Faz-tudo, ele se sentiu perdido pela primeira vez. Geralmente, ele descobria que a encenação soltava suas ideias, permitia que seus pensamentos fluíssem livremente. Mas algo estava atravancando as coisas. Esse entrave era claramente o centro da questão. Tony voltou para sua própria cadeira e pensou a respeito.

— Os serial killers vivem suas fantasias em seus crimes. O próprio crime nunca está à altura da fantasia, por isso ele tem força limitada. Seus detalhes são incorporados nas fantasias, que então são concretizadas num segundo assassinato, muitas vezes mais ritualístico. E assim por diante. Mas, à medida que o tempo passa, as fantasias têm cada vez menos poder de permanecer na lembrança. Os assassinatos precisam ficar cada vez mais próximos uns dos outros para manter o abastecimento da imaginação. Mas os seus assassinatos não se tornam mais próximos, Faz-tudo. Por quê?

Ele se moveu para o outro lado, sem esperança. Permitiu que sua mente se esvaziasse, deixando o lado consciente vagar, esperando que fosse chegar a uma resposta que satisfizesse sua ideia do Faz-tudo. Depois de alguns momentos, Tony sentiu-se saindo de sua mente consciente. De uma só vez, de um lugar que pareceu muito distante, uma risada grave ressoou por ele.

— Isso cabe a mim saber e a você descobrir — caçoou dele sua própria voz.

Tony sacudiu a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Confuso, levantou-se e abriu as venezianas. Era esse o resultado das técnicas alternativas. O interessante, porém, era o ponto no qual seu cérebro tinha encontrado um obstáculo. Esse foi um dos fatores no Faz-tudo que eram singulares. Os intervalos entre os assassinatos permaneciam constantes. Mesmo considerando que ele os filmasse, era notável.

A linha de raciocínio restaurou a vitalidade anterior de Tony, e ele decidiu fazer um desvio na seção de estudos de mídia da biblioteca da universidade onde analisou as edições passadas do Bradfield Evening Sentinel Times nas datas apropriadas. Uma análise cuidadosa das páginas de entretenimento revelou pouco em comum entre as quatro noites em questão, a menos que ele estivesse preparado para considerar que o cinema de arte local sempre mostrava comédias clássicas britânicas em preto e branco às segundas-feiras. Por alguma razão, ele não conseguia imaginar Um país de anedota estimulando fantasias sexuais homicidas. Finalmente, um pouco depois das sete, estava pronto para começar o perfil.

Ele começou com a advertência de costume.

O perfil de criminoso a seguixr destina-se apenas à orientação e não deve ser considerado um retrato fiel. O criminoso provavelmente não corresponde ao perfil nos mínimos detalhes, embora eu espere que haja um alto grau de congruência entre as características aqui descritas e a realidade. Todas as declarações no perfil expressam probabilidades e possibilidades, não fatos sólidos.

Um serial killer produz sinais e indicadores ao cometer seus crimes. Tudo que faz, conscientemente ou não, tem o objetivo de integrar um padrão. Descobrir esse padrão subjacente revela o raciocínio do assassino. Pode não fazer sentido para nós, mas, para ele, é crucial. Como sua lógica é muito idiossincrática, as armadilhas óbvias não vão capturá-lo. Sendo ele singular, igualmente singulares devem ser os meios para pegá-lo, interrogá-lo e reconstituir seus atos.

Tony continuou o perfil com uma análise detalhada das quatro vítimas incluindo tudo o que tinha colhido dos relatórios policiais sobre as circunstâncias domésticas, o histórico de empregos, reputação entre amigos e colegas, hábitos, condição física, personalidade, relacionamentos familiares, passatempos e comportamento social. Em seguida, transcreveu um curto resumo do laudo do patologista sobre cada homem, a natureza de seus ferimentos e uma descrição das cenas de crime. Depois, iniciou o processo crucial de organizar suas informações em padrões significativos, de modo que pudesse começar a tirar suas conclusões.

Nenhuma das quatro vítimas tem histórico de relacionamentos homossexuais, até onde se pode saber (não podemos eliminar uma orientação homossexual/bissexual secreta, mas não há indícios, em nenhum dos quatro casos, que sugiram isso). No entanto, cada corpo foi descartado numa área conhecida principalmente pela presença da comunidade gay. Os corpos foram deixados sobretudo em lugares que são notórios para a consumação de encontros sexuais casuais. O que isso diz sobre o assassino?

1. Ele é um homem desconfortável com sua própria sexualidade e escolhe deliberadamente homens que não são identificados abertamente como gays. Pode também ser que ele tenha feito uma abordagem sexual em suas vítimas no passado e tenha sido rejeitado. O assassino quase certamente não é um gay assumido; ele provavelmente reprime sua própria sexualidade com algum custo pessoal. Pode-se supor que tenha crescido num ambiente onde a masculinidade era muito valorizada e elogiada; e a homossexualidade, condenada, possivelmente por motivos religiosos. Se estiver numa relação sexual/doméstica, será com uma mulher. E quase certamente tem problemas sexuais dentro do relacionamento, provavelmente relacionados à potência.

Tony fitou a tela, abatido. Às vezes, ele odiava a forma como o trabalho constantemente o forçava a confrontar seus problemas pessoais. Será que seus próprios fracassos sexuais significavam que ele estava mesmo preso na estrada menos trilhada? Haveria uma noite em que alguma mulher teria ido longe demais, fazendo-o sair do controle, ao tentar traduzir o problema dele em algum comentário sob o ponto de vista feminino? Para Tony, era uma hipótese muito clara. Por isso Angelica estava segura. Quando ela o levava a se distrair, ele podia bater o telefone, em vez de lhe estapear o rosto ou algo pior. Melhor ficar fora de risco, pensou. Nem considere Carol Jordan. Você viu nos olhos dela que há um interesse não apenas na sua mente. Nem pense nisso, seu doente. Volte ao trabalho.

2. Ele despreza quem expressa sua homossexualidade abertamente. Pelo menos parte de sua motivação em usar esses locais de descarte é mostrar seu desdém por eles, bem como assustá-los. Ele também está demonstrando sua superioridade. “Olhe para mim, posso ir e vir entre vocês e ninguém me conhece. Posso profanar o seu lugar, e vocês não podem me impedir.”

3. Ele está, contudo, familiarizado com as áreas onde os gays socializam e selecionam parceiros sexuais. Pode ser que seu trabalho o leve à área de Temple Fields de vez em quando, talvez para fazer entregas ou para fornecer algum serviço para as empresas. Ele é fascinado pela cultura gay, a ponto de obter informações sobre o local específico do Carlton Park onde fica a cena gay.

4. Ele tem um grau elevado de autocontrole. Está dirigindo numa área populosa e descartando cadáveres sem se comportar de uma forma que chame atenção para si.

— Nem me fale — disse Tony com amargura. Ele se levantou e caminhou da janela até a porta. — Eu podia ter escrito o manual disso. — Desde que os valentões começaram a implicar com ele, o menor garoto da rua e da escola, ele aprendera as duras lições do autocontrole. “Nunca mostre que está magoado, isso só os encoraja. Nunca mostre que eles atingiram o alvo, isso só revela seus pontos fracos. Aprenda a pertencer ao grupo. Aprenda o vocabulário e a linguagem corporal; adquira o comportamento. Misture tudo junto e o que você tem? Um homem que não faz a mais remota ideia de quem é. Você tem um ator consumado, um falso ser humano que pode assumir determinada cor como um camaleão.” O milagre era que havia enganado tantas pessoas. Brandon claramente pensou que ele era um bom sujeito. Carol Jordan obviamente gostou dele. Claire, sua secretária, pensava que ele era o melhor chefe que ela já teve. Seu disfarce como ser humano estava funcionando, sem problemas. A única a quem não conseguia enganar era sua mãe, que ainda o tratava com o desdém maldisfarçado e que era tudo que ele conhecera dela. Por causa dele, seu pai os deixara, e não era de admirar, segundo ela. Não fosse a necessidade de manter boas relações com os pais, que seguravam as pontas nas questões financeiras, ela o teria largado em algum orfanato. Naquelas circunstâncias, teria mergulhado de cabeça em alguma carreira assim que conseguisse convencer a mãe a tomar conta do pequeno Tony. Ele fizera o máximo para ser bonzinho, como a vovó o havia instruído, mas nem sempre era fácil. Ela não era ruim, era apenas forçada pela sua própria criação à crença de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. A resposta de seu avô para a tirania doméstica foi correr para a loja de apostas, para o boliche e para a associação dos militares reservistas. Tony havia aprendido rapidamente o autocontrole da maneira difícil. Fora isso que acontecera ao Faz-tudo também? Esfregando a mão contra os olhos surpreendentemente úmidos, Tony se atirou de volta na cadeira e começou a digitar de forma frenética.

5. Sua situação doméstica e de trabalho lhe permite folgas nas noites de segunda-feira; ele não espera ser identificado em Temple Fields por ninguém que o conheça. Isso revela várias possibilidades: talvez tenha escolhido as noites de segunda-feira especificamente porque é seu dia de folga ou porque sua esposa/namorada não está em casa nessas noites; pode ter decidido matar às segundas porque foi o dia da primeira morte, o que deu certo, e agora isso tem um poder de superstição; ou pode ter decidido continuar matando nas segundas-feiras na expectativa de que isso fosse desviar as investigações. Ele é obviamente esperto, e não se deve presumir que um planejamento cuidadoso como esse esteja além de suas possibilidades.

Tony pausou para refletir, folheando as páginas de anotações que fizera. Ele ainda não pensava como o Faz-tudo, mas a mente desconcertante estava ficando cada vez mais próxima. Ele se perguntou novamente se esse envolvimento na lógica distorcida de assassinos era uma vivência indireta; a única coisa que o impedia de se juntar a eles. Deus sabe que houve momentos em que o impulso inevitável que surgia na mente deles parecia atraente. E houve vezes suficientes em que ele sentiu uma fúria assassina, embora ela geralmente se voltasse contra ele mesmo, em vez da pessoa com quem estava na cama.

— Já chega — disse Tony em voz alta, e voltou para a tela brilhante.

O criminoso é um serial killer organizado, que está tentando manter um intervalo constante de oito semanas entre os assassinatos. Essa uniformidade é, por si só, incomum, já que o padrão normal é que o espaço entre assassinatos diminua à medida que eles perdem seu poder de satisfazer as fantasias do assassino. Um motivo para prosseguir com essa regularidade pode ser a necessidade de passar muito tempo perseguindo sua vítima antes de matá-la. Assim, o prazer da expectativa, junto com o sabor das mortes anteriores, age como um freio. Também creio que o assassino esteja usando uma câmera para filmar suas atividades e que os filmes também estejam alimentando suas fantasias entre os assassinatos.

Tony parou para considerar o que havia escrito. O obstáculo. Sua análise provavelmente parecia boa o bastante para convencer os leigos, mas ele estava longe de ficar satisfeito com ela. Por mais que revirasse as ideias ou os dados, não conseguia chegar a uma explicação melhor. Com um suspiro, continuou.

Qual é a principal intenção dos assassinatos? Podemos descartar a matança no decorrer de atividade criminosa, como roubo armado ou arrombamento, assim como a hipótese de homicídio passional, egoísta ou com causa específica, como autodefesa, compaixão, motivos políticos ou disputas domésticas. Isso coloca os assassinatos na categoria de homicídios sexuais.

Todas as vítimas escolhidas estão na categoria de baixo risco. Em outras palavras, todas têm empregos e estilos de vida que não as tornam alvos vulneráveis. O outro lado disso é que o assassino não precisa assumir altos riscos para capturá-las e matá-las. O que isso nos diz sobre ele?

1. Ele está operando com níveis de estresse altíssimos.

2. Seus assassinatos são planejados muito cuidadosamente. Não pode se dar ao luxo de cometer erros, porque se o fizer seus alvos escaparão e o colocarão em risco, tanto físico como criminal. Ele é quase certamente alguém que persegue suas vítimas. Ele as escolhe cuidadosamente e estuda suas vidas em detalhes. De modo curioso, até agora ele não foi contrariado em sua escolha noturna. Isso é o resultado de planejamento cuidadoso, premeditação ou apenas sorte? Sabemos que a terceira vítima, Gareth Finnegan, disse à namorada que ia sair com os amigos, mas nenhum dos seus amigos homens ou colegas parece saber nada a respeito, e não está claro se ele foi sequestrado em casa ou se o contato ocorreu num lugar predeterminado. Pode ser que o assassino tenha marcado antecipadamente encontros com cada uma de suas vítimas, seja na casa delas ou em outro lugar. Ele pode até estar se fazendo passar por um vendedor de seguros ou algo similar, embora eu ache que seja improvável que tenha as habilidades interpessoais para desempenhar um trabalho desses com êxito profissional.

3. Ele gosta da excitação extra que andar na corda bamba lhe proporciona. Precisa dessa agitação.

4. Ele deve ter algumas regiões de maturidade emocional em seu disfarce que lhe permitem se manter no controle nessas situações altamente estressantes. Isso também pode permitir que resista ao padrão de histórico de trabalho medíocre tão comum entre criminosos em série. (Ver a seguir.)

A maior parte dos criminosos em série demonstra um grau de escalada, indicando a necessidade do assassino de alcançar mais emoções e melhor execução de suas fantasias. Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu.

Tony ergueu os olhos, assustado. O que era aquele barulho? Parecia a porta para o escritório externo sem divisórias, mas a essa hora da noite não devia haver ninguém nesse andar. Nervoso, ele se afastou da mesa do computador, guiando sua cadeira pelo carpete sobre rodinhas silenciosas, até que ficou atrás da mesa e fora da concentração de luz emitida pela lâmpada ao lado do computador. Prendeu a respiração e ficou ouvindo. Silêncio. A tensão começou a se dissipar gradualmente. Depois, de repente, um feixe de luz apareceu sob a porta de sua sala.

O gosto metálico do medo dominou Tony. A coisa mais próxima de uma arma de ataque em sua mesa era um pedaço de ágata que ele usava como peso de papel. Ele o agarrou e levantou furtivamente da cadeira.

Quando Carol abriu a porta, ela ficou surpresa ao encontrar Tony no meio da sala, suspendendo uma pedra na mão.

— Sou eu — soltou um grito com a voz esganiçada.

Os braços de Tony desceram para junto ao corpo.

— Ai, merda — disse ele.

Carol sorriu.

— Quem você estava esperando? Assaltantes? Jornalistas? O bicho-papão?

Tony relaxou.

— Desculpe — disse ele. — A gente passa o dia inteiro tentando entrar na cabeça de um sujeito pirado e acaba ficando tão paranoico quanto ele.

— Pirado — disse Carol, pensativa. — Esse é um daqueles termos técnicos que vocês psicólogos usam?

— Só entre quatro paredes — respondeu Tony, retornando à mesa e pondo a ágata de volta no lugar.

— A que devo o prazer da visita?

— Como a operadora parece não conseguir estabelecer um contato entre nós, pensei que era melhor eu vir pessoalmente — respondeu Carol, puxando uma cadeira. — Deixei uma mensagem na sua secretária hoje de manhã. Presumi que já tinha saído para trabalhar, mas você também não estava lá. Tentei novamente por volta das quatro, mas o seu ramal não atendia. Pelo menos foi o que presumi quando me disseram “vou transferir agora”, e acabei num buraco negro. E, é claro, agora os operadores já foram para casa e nem pensei em pedir o número de sua linha direta.

— E olha que você é detetive — implicou Tony.

— Essa é minha desculpa, pelo menos. Na verdade, não conseguia aguentar nem mais um minuto na Scargill Street.

— Quer conversar sobre isso?

— Só se eu puder falar com a boca cheia — disse Carol. — Estou morrendo de fome. Você pode sair para comer alguma coisa rapidinho?

Tony olhou para a tela do computador, depois de volta para o rosto marcado e os olhos cansados de Carol. Ele gostava dela, muito embora não quisesse se aproximar, e precisasse dela do seu lado.

— Deixe-me só salvar este arquivo, e vou embora daqui. Posso voltar mais tarde e terminar isso.

Vinte minutos mais tarde eles estavam atacando bhajis de cebola e pakoras de frango numa lanchonete asiática em Greenholm. Os outros clientes eram estudantes e aqueles de inveterada opinião que não haviam ainda se adaptado ao fato de que não estavam mais estudando nada exceto correção política.

— Não é exatamente algo que vá constar no Guia da Comida Saudável, mas é barato e alegre, e o serviço é rápido — desculpou-se Tony.

— Por mim, tudo bem. Sou mais ovo com torrada do que um Egon Ronay. Meu irmão ficou com os genes gourmet da nossa família — disse Carol. Ela olhou rapidamente em torno de si. A mesa para duas pessoas estava a menos de trinta centímetros da seguinte.

— Você me trouxe aqui de propósito para que não pudéssemos falar de trabalho? Um plano de psicólogo para refrescar minha cabeça?

Os olhos de Tony se arregalaram.

— Nem pensei nisso. Você tem razão, é claro, não podemos falar sobre isso aqui.

O sorriso de Carol iluminou seus olhos.

— Não tem ideia de quanto prazer isso me dá.

Eles comeram sem falar nada por alguns minutos. Tony quebrou o silêncio. Dessa forma, ele ficava no controle do assunto da conversa.

— O que a levou a escolher virar policial?

Carol ergueu as sobrancelhas.

— Porque gosto de oprimir os menos favorecidos e perturbar as minorias raciais? — arriscou ela.

Tony sorriu.

— Acho que não.

Ela empurrou o prato para um lado e suspirou.

— Idealismo de juventude — justificou. — Eu tinha essa ideia maluca de que a polícia deveria estar presente para servir e proteger a sociedade da ausência da lei e da anarquia.

— Não é uma ideia tão maluca. Acredite em mim, se tivesse lidado com as pessoas com quem eu costumava lidar, você se sentiria aliviada por elas não estarem nas ruas.

— Ah, na teoria tudo bem. É a prática que é uma baita decepção. Tudo começou quando estudei sociologia em Manchester. Especializei-me na sociologia das organizações e todos os meus contemporâneos desprezavam a força policial como uma organização corrupta, racista, sexista, cujo único papel era preservar o conforto ilusório da classe média. Até certo ponto, concordava com eles. A diferença era que eles queriam atacar as instituições pelo lado de fora, enquanto eu sempre acreditei que, se você quer mudanças fundamentais, elas têm que vir de dentro.

Tony sorriu.

— Sua subversivazinha!

— É, bem, acho que não percebia onde estava me enfiando. Davi derrubar Golias era fichinha comparado à mudança da polícia.

— Nem me fale — disse Tony, com entusiasmo. — Essa força-tarefa nacional podia revolucionar a taxa de elucidação de crimes graves, mas, da forma como alguns policiais veteranos a encaram, parece que estou montando um esquema para permitir que pedófilos sejam treinados como cuidadores de menores.

Carol deu uma risadinha.

— Você quer dizer que prefere voltar à ala trancafiada do hospital com os seus pirados?

— Carol, às vezes, sinto como se não tivesse saído de lá. Você não faz ideia de como é uma mudança revigorante trabalhar com pessoas como você e John Brandon.

Antes que Carol pudesse responder, o garçom chegou com seus pratos principais. Enquanto ele se servia de cordeiro e espinafre, frango karahi e arroz pilaf, Carol disse:

— Seu trabalho cria os mesmos problemas para ter uma vida pessoal que o trabalho policial?

Instantaneamente na defensiva, Tony respondeu com uma pergunta.

— O que quer dizer?

— Como disse antes, você fica obcecado com o trabalho. Passa seu tempo lidando com desmiolados e animais...

— E esses são só os colegas de trabalho — acrescentou Tony.

— É, isso. E você volta para casa à noite, depois de lidar com corpos desmembrados e vidas desfeitas, e esperam que você se sente, assista às novelas e aja como as pessoas normais.

— E a gente não consegue porque ainda está com a cabeça ligada nos horrores do dia — concluiu Tony. — E, com o seu trabalho, há as complicações extras da rotina em turnos.

— Exatamente. Então você tem os mesmos problemas?

Ela estava perguntando por mera curiosidade ou era uma forma indireta de descobrir sobre sua vida particular? Às vezes, Tony desejava poder desligar a parte de sua cabeça que tinha de analisar cada declaração, cada gesto, cada parte intrincada da linguagem corporal e só se deleitar com o prazer de jantar com alguém que parecia gostar de sua companhia. Percebendo de repente que deixara uma pausa longa demais entre a pergunta e a resposta, Tony disse:

— Provavelmente, sou ainda pior em me desligar do que você. Os homens geralmente parecem ficar muito mais obcecados que as mulheres. Digo, quantas mulheres que observam trens, colecionam selos ou são fanáticas por futebol você conhece?

— E isso interfere em seus relacionamentos pessoais — insistiu Carol.

— Bem, nenhum deles jamais durou o suficiente — respondeu Tony, lutando para manter a leveza na voz. — Não sei se posso atribuir isso ao trabalho ou a mim mesmo. Em grande parte, a última coisa que elas gritaram comigo enquanto saíam pela porta não foi “você e seus malditos pirados”, então acho que devo ser eu. E quanto a você? Como você lida com os problemas do emprego?

O garfo de Carol continuou seu trajeto até a boca, e ela mastigou e engoliu o bocado de curry antes de responder.

— Descobri que os homens não são muito compreensivos quanto a turnos, a menos que eles trabalhem em turnos também. Sabe como é, você nunca está lá com o chá na mesa quando eles têm de correr para aquela partida crucial de squash. Inclua aí também a dificuldade de fazê-los entender por que o trabalho fica na sua cabeça, e qual o resultado disso? Médicos residentes, outros policiais, bombeiros, motoristas de ambulância. E, na minha experiência, não há muitos deles que queiram um relacionamento com alguém igual. Acho que o trabalho exige demais da gente para que sobre alguma coisa. O último cara com quem me envolvi era médico, e tudo que ele queria fazer quando não estava trabalhando era dormir, transar e ir às festas.

— E você queria mais?

— Queria conversar de vez em quando, talvez até assistir a um filme ou ir ao teatro. Mas eu aturava a situação porque o amava.

— Então o que fez você terminar o relacionamento?

Carol olhou para o prato.

— Obrigada pelo elogio, mas não terminei. Quando me mudei para cá, ele decidiu que dirigir pela rodovia era muita perda de tempo, e que ele poderia estar trepando, então me trocou por uma enfermeira. Agora sou só eu e o gato. Ele parece não se importar com os horários irregulares.

— Ah — disse Tony. Ele tinha percebido a dor real implícita, mas dessa vez todas as suas habilidades profissionais não pareceram adequadas para a resposta.

— E você? Está envolvido com alguém? — perguntou Carol.

Tony balançou a cabeça e continuou comendo.

— Pensei que um cara legal como você, já teria sido fisgado há muito tempo — elogiou Carol, a provocação em seu tom encobria algo que Tony desejava estar imaginando.

— Ah, mas você só viu o lado charmoso. Quando é lua cheia, pelos saem das palmas das minhas mãos e eu fico ganindo para a lua.

Tony olhou de lado, de modo melodramático para Carol.

— Não sou o que pareço, mocinha — resmungou ele.

— Ah, vovó, que dentes grandes você tem — provocou Carol, em falsete.

— É para comer melhor o meu curry — Tony riu. Ele sabia que esse era o momento em que podia dar um passo à frente no relacionamento, mas ele tinha passado tempo demais criando defesas contra esses momentos de fraqueza para abandoná-las com tanta facilidade. Além disso, ele disse a si mesmo que não precisava de um relacionamento com ela. Tinha Angelica, e a amarga experiência lhe ensinara que era tudo com que podia lidar sem nenhuma disfunção.

— Então, quando você entrou nessa carreira esmagadora de almas? — perguntou Carol.

— Descobri enquanto trabalhava no meu doutorado em psicologia que eu odiava bancar o assertivo e falar em público, o que meio que eliminava o trabalho acadêmico. Então fui para a prática clínica — explicou Tony, passando facilmente para uma torrente de casos relacionados ao seu trabalho. Ele se sentiu relaxar, como um homem sobre um lago congelado que percebe que está de volta à terra seca.

Eles passaram o resto da refeição no terreno mais seguro representado por suas carreiras, e, quando o garçom veio limpar a mesa, Carol pediu a conta.

— Vou pagar, tudo bem? Nada a ver com feminismo; você é uma legítima despesa de trabalho — disse Carol.

Enquanto eles andavam de volta para o escritório de Tony, ele recomeçou:

— Então de volta ao trabalho. Conte-me sobre o seu dia.

A mudança brusca da conversa pessoal para a profissional confirmou para Carol a necessidade de manter certa distância de Tony. Ela nunca tinha visto ninguém se retrair tão rapidamente diante de um leve flerte. Era confuso, ainda mais considerando que ela tinha a sensação de que ele gostava dela. E ela não tinha dúvida sobre sua capacidade de atrair os homens. Pelo menos, perseguir o Faz-tudo lhe dava espaço e tempo para construir uma ponte entre eles.

— Tivemos um golpe de sorte nesta manhã. Pelo menos, é isso que todos nós estamos esperando.

Tony parou subitamente e se virou para encarar Carol.

— Como assim, sorte? — indagou ele.

— Não se preocupe, você não está sendo ignorado — disse Carol. — É algo que seria um detalhe insignificante na maioria das investigações, mas, como temos muito pouco com que prosseguir aqui, deixou todo mundo empolgado. Havia um fragmento de couro num prego perto do portão do quintal do Queen of Hearts. A perícia fez um trabalho de urgência com ele, e revelou-se que era bastante incomum. É pele de veado, e vem da Rússia.

— Ai, meu Deus — gemeu Tony baixinho. Ele se virou e andou alguns passos. — Não me diga, deixe-me adivinhar. Não dá para conseguir neste país, e provavelmente você precisa mandar alguém à Rússia para descobrir onde pode ser obtido, porque é muito desconhecido. Estou certo?

— Como diabos sabia disso? — perguntou Carol, alcançando-o e agarrando-o pela manga.

— Eu vinha esperando algo assim — explicou ele, simplesmente.

— Assim como?

— Uma escandalosa cortina de fumaça que faria a força policial inteira correr em círculos como cachorros atrás do próprio rabo.

— Você acha que é uma cortina de fumaça? — Carol quase gritou. — Por quê?

Tony esfregou as mãos no rosto e as passou pelos cabelos.

— Carol, esse cara foi tão cuidadoso. Ele tem agido com frieza quase perfeita na sua obsessão em não deixar pistas. Serial killers geralmente requerem um alto QI, e o Faz-tudo é, com toda certeza, um dos mais espertos que já encontramos, seja pessoalmente ou na literatura. No entanto, assim de repente, do nada, conseguimos não apenas uma pista qualquer, mas uma pista com algo tão incomum que só poderia ter sido deixada por um minúsculo segmento da população. E você me diz que acha que é de verdade? É exatamente o que ele está tentando conseguir. Aposto que todos vocês estão correndo feito barata tonta o dia inteiro tentando descobrir de onde vem esse pedaço obscuro de couro russo, não é? Ah, não me diga, deixe que eu adivinhe, aposto que agora uma divisão inteira da polícia está rastreando a vida de Stevie McConnell tentando descobrir onde ele conseguiu isso.

Carol olhou fixamente para ele. Parecia absolutamente óbvio quando ele explicava assim. No entanto, nenhum dos oficiais questionara a validade do pedaço de couro.

— Estou certo? — perguntou Tony, de modo mais gentil dessa vez.

Carol fez uma careta.

— Não uma divisão inteira. Só eu, Don Merrick e alguns detetives. Passei a maior parte do dia no telefone falando com presidentes de associações de levantamento de peso e fisiculturismo, tentando descobrir se McConnell já tinha feito parte de uma equipe nacional ou regional que tivesse competido na Rússia ou contra os russos. E Don e os rapazes ficaram investigando agências de viagem, tentando verificar se ele já esteve lá de férias.

— Ai, Jesus — gemeu Tony. — E?

— Cinco anos atrás, ele fazia parte da equipe de levantadores de peso do Noroeste e que competiu num lugar que na época se chamava Leningrado.

Tony respirou fundo.

— Filho da mãe azarado — disse ele. — Não esperava que a ideia de que isso tenha sido plantado de propósito tivesse ocorrido a alguns de vocês — acrescentou. — Não digo isso com condescendência. Percebo o quanto vocês estão mais próximos disso tudo e com que desespero querem pegar o filho da mãe. Só queria que alguém tivesse me contado mais cedo, antes que isso tomasse essa proporção enorme.

— Eu bem que tentei ligar para você está manhã — disse Carol. — Você ainda não disse onde esteve.

Tony admitiu o erro.

— Desculpe. Estou exagerando. Estava na cama, dormindo, com os telefones desligados. Fiquei exausto depois da noite passada, e sabia que não podia me concentrar em escrever o perfil a menos que dormisse um pouco. Devia ter verificado minha secretária eletrônica quando acordei. Desculpe, não devia ficar procurando falhas.

Carol sorriu.

— Vou deixar passar dessa vez. Só guarde o discurso assustador para quando pegarmos o Faz-tudo, está bem?

Tony fez uma careta.

— Não devia ser “se”?

Ele dava a impressão de ser tão vulnerável e falível, com os ombros caídos, a cabeça baixa, que o ímpeto de Carol superou a decisão que tomara havia apenas alguns minutos de manter certa distância. Ela avançou e puxou Tony num abraço apertado.

— Se alguém pode fazer isso, é você — sussurrou, esfregando o lado da face no queixo dele como um gato que marca seu território.

Brandon fitou Tom Cross, seu rosto era uma máscara de horror.

— Você fez o quê? — perguntou ele.

— Fiz uma busca na casa de McConnell — respondeu Cross, com beligerância.

— Achei que tinha dito categoricamente que não tínhamos o direito de fazer isso. Nenhum juiz do país vai aceitar que uma prisão de rua comum por agressão ofereça fundamento suficiente para suspeita de assassinato.

Cross sorriu. Era um sorriso fixo que teria eriçado os pelos de um rottweiller.

— Com o devido respeito, senhor, isso foi antes. Depois que a inspetora Jordan comprovou que McConnell esteve na Rússia, o quadro mudou. Não são muitas as pessoas que têm acesso a jaquetas de couro russo de origem obscura, afinal. Isso o enquadra. E há mais de um juiz leigo por aí que me deve uma.

— Você devia ter obtido minha aprovação — disse Brandon. — A última ordem que lhe dei sobre o assunto foi: nada de buscas.

— Tentei, mas o senhor estava numa reunião com o chefe — alegou Cross, com doçura. — Achei que era melhor malhar o ferro enquanto estava quente, já que não o tínhamos engaiolado indefinidamente.

— Então você desperdiçou mais tempo fazendo uma busca na casa de McConnell — constatou Brandon, com amargura. — Não acha que você e seus homens poderiam ter se ocupado com coisa melhor?

— Ainda não contei ao senhor o que achamos — disse Cross.

Brandon sentiu um aperto no peito. Ele não era um homem dado a premonições, mas o pressentimento que o tomava agora era tão palpável quanto qualquer fato concreto que tivesse examinado algum dia.

— Pense com muito cuidado no que vai dizer em seguida, superintendente — avisou ele, com cautela.

Uma careta momentânea de confusão passou pela fisionomia de Cross, mas ele estava muito tomado pela mensagem que trazia para se preocupar com as palavras do chefe de polícia assistente.

— Nós o pegamos, senhor — disse. — Com as calças na mão. Encontramos um dos cartões de Natal da empresa de Gareth Finnegan no quarto de McConnell, e um suéter que é idêntico ao que a namoradinha de Adam Scott disse que estava desaparecido em casa. Além disso, uma multa de trânsito com o número do distintivo de Damien Connolly. Acrescente a isso a conexão russa, e acho que é hora de acusar criminalmente a bichinha.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 010

É claro, a descoberta de que temos uma inclinação natural para algo não significa necessariamente que devamos perseguir cegamente essa coisa. Enquanto descartava o corpo de Paul, dessa vez numa entrada escura num beco em Temple Fields, eu já decidira quem seria meu próximo alvo. Porém, mesmo depois de uma experiência tão magnífica quanto a que compartilhei com Paul, não tinha intenção de repeti-la com Gareth.

Seria a sorte da terceira vez. Gareth, eu já sabia, era um homem de imaginação sexual rica e fértil. Mesmo enquanto eu digitalizava o desempenho patético de Paul no computador, já lamentava o fato de que, graças a Gareth, nunca teria a oportunidade de aperfeiçoar o talento extraordinário que tinha descoberto em mim. Com os recursos à mão, venho fazendo filmes como nunca vi. Os maiores filmes de todos os tempos. Se pudesse vendê-los, teria feito uma fortuna. Sei que existe um mercado. Muitas pessoas pagariam um bocado de dinheiro para observar Paul foder comigo em seus espasmos de morte no berço de Judas. E quanto ao que fiz com Adam... Vamos dizer apenas que ninguém jamais viu um 69 como aquele.

Como um mimo pessoal, fui ao cemitério em que Adam fora enterrado algumas semanas antes. O enterro tinha sido matéria no jornal da televisão local, que eu gravei em videocassete e estudei de modo que pudesse ter bastante segurança de onde ficava a sepultura. Depois de escurecer, percorri os túmulos e encontrei o de Adam em vinte minutos. Destampei o spray de tinta vermelha que trouxera comigo e pichei “PUNHETEIRO” num lado do granito cinza e “VEADINHO” no outro. Isso devia dar à polícia algo com que ocupar a mente.

Na noite seguinte, enquanto estava esperando que Gareth surgisse da firma de advogados da qual era sócio, resolvi passar o tempo lendo as hipérboles do Bradfield Evening Sentinel Times. Dessa vez, eu tinha ganhado a primeira página.

ASSASSINO DE GAYS ATACA NOVAMENTE?

O corpo mutilado de um homem nu foi encontrado nesta manhã no bairro gay de Bradfield.

A vítima foi deixada na porta da saída de incêndio da boate gay Shadowlands, num beco perto da Canal Street, no mal-afamado bairro de Temple Fields.

Esta é a segunda vez em dois meses que o corpo de um homem nu foi encontrado em locais de público gay.

Agora os residentes temem que um serial killer pervertido esteja perseguindo a numerosa comunidade homossexual da cidade.

A descoberta pavorosa de hoje foi feita pelo proprietário da boate, Danny Surtees, de trinta e sete anos, quando chegava para uma reunião com seu contador.

Ele declarou: “Sempre vou à boate pela escada de incêndio lateral. Estaciono meu carro no beco. Nesta manhã, a porta estava bloqueada por algo coberto com alguns sacos de lixo pretos.

“Quando segurei os sacos para tentar afastá-los da porta, eles se soltaram das minhas mãos, e vi que havia um corpo embaixo deles.

“Ele estava horrivelmente ferido. Não havia jeito de ainda estar vivo. Vou ter pesadelos com isso pelo resto da vida.”

O sr. Surtees disse que a entrada estava livre quando ele fechou a boate, um pouco depois das três horas da manhã.

A vítima, presumivelmente de pouco mais de trinta anos, ainda não foi identificada. A polícia o descreveu como branco, um metro e oitenta de altura, de constituição física média, com cabelos castanho-escuros na altura do pescoço e olhos castanho-claros. Apresenta uma cicatriz antiga de uma apendicectomia.

Um porta-voz da polícia declarou: “Acreditamos que o homem foi morto em outro lugar e que o corpo foi descartado no beco entre as três e as oito da manhã.

“Convocamos qualquer um que tenha estado na área de Temple Fields na noite passada para se apresentar a fim de ser eliminado como suspeito. Todas as informações serão tratadas com máximo sigilo.

“Neste estágio de nossa investigação, não há indícios que liguem esse assassinato ao homicídio de Adam Scott, há dois meses.”

Carl Fellowes, funcionário em tempo integral no Centro de Gays e Lésbicas de Bradfield, afirmou hoje que “a polícia diz que acha que não há uma ligação entre esses dois assassinatos.

“Em nome da comunidade gay da cidade, não sei o que me deixa mais preocupado — a ideia de que há um sujeito pirado por aí matando gays ou a ideia de que há dois deles.”

Não sabia se ria ou chorava. Uma coisa estava clara, no entanto. Os idiotas estavam longe de ter alguma ideia do que estava acontecendo. Eu, obviamente, fizera um bom trabalho ao esconder meus rastros.

Dobrei meu jornal, terminei meu cappuccino e fiz um aceno pedindo a conta. A qualquer minuto, Gareth surgiria de seu escritório e andaria pelas ruas da hora do rush até o bonde. Queria estar a postos para ele. Tinha algo muito especial planejado para esta noite, e queria ter certeza de que ele estava em casa sozinho para desfrutar.

 

 

 


CONTINUA