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O CASO BENSON / S. S. Van Dine
O CASO BENSON / S. S. Van Dine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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PHILO VANCE EM CASA

(Sexta-feira, 14 de junho — 8h30)

Tomei café da manhã casualmente com Philo Vance naquele célebre 14 de junho, o mesmo em que aparecera assassinado Alvino Benson — crime cuja lembrança ainda perdura. Não é que fosse coisa rara para mim tomar parte em seus almoços ou jantares, mas tomar café da manhã com ele, sim, era coisa extraordinária: era seu costume levantar tarde e permanecer incomunicável até o meio-dia, hora do almoço.
Motivara este encontro matinal um caso de negócios, ou antes, de estética. Na véspera, Vance fora à Galeria Kessler ver a exposição de aquarelas de Cézanne, da coleção Vollard, e convidara-me para almoçar, com o fim de me dar instruções acerca da compra de alguns quadros, que lhe interessavam particularmente.
O fato de eu ser o narrador desta crônica, explicam-no as minhas relações com Vance. Era tradicional na minha família, e isto desde muito tempo, a carreira jurídica, e quando terminei meus estudos preparatórios fui enviado, naturalmente, a Harvard, para não desmentir essa tradição enraizada. Foi ali que conheci Vance, um estudante reservado, satírico, cáustico até, que era o flagelo dos professores e o terror dos colegas. Por que me escolhera ele a mim, entre todos os estudantes da Universidade, para seu companheiro inseparável, é coisa que nunca cheguei a compreender perfeitamente. Minha simpatia por ele era facilmente explicável: fascinou-me; era para mim uma diversão intelectual de nova espécie. Mas é que em mim não encontrava ele o mesmo motivo de atração. Eu era, como ainda hoje, um indivíduo de qualidades vulgares, de espírito conservador, senão convencional. De qualquer maneira, porém, não tenho o espírito pesado, nem rígido, e a gravidade das leis mal influiu nele, de sorte que não demonstrei muita propensão para a profissão hereditária — e é possível que, inconscientemente, Vance encontrasse certa afinidade nesses traços do meu feitio. Há outra hipótese, sem dúvida muito pouco lisonjeira, e é que Vance, sentindo instintivamente em mim qualidades opostas, se apoiasse em mim como num esteio, compreendendo que a minha natureza era a antítese complementar da sua. Seja qual for, porém, a explicação, o certo é que andávamos sempre juntos, e que com o correr dos anos nossas relações vieram a se estreitar, a ponto de nos tornarmos inseparáveis.

 

 


 

 


Depois de formado, fui trabalhar na firma de meu pai — Van Dine Davis — e, após cinco anos de enfadonha aprendizagem, entrei como sócio mais moço. Sou hoje o segundo Van Dine da firma Van Dine, Davis Van Dine, com escritórios na Broadway, 120. Ao tempo em que meu nome começou a aparecer no papel timbrado da firma, Vance voltava da Europa, onde vivera durante meu noviciado nas leis, e, tendo-lhe morrido uma tia, que o instituiu herdeiro principal, chamou-me ele para habilitá-lo à posse dos bens herdados.

Foi o começo de uma renovação da antiga amizade, cujos laços eram muito fortes. Como Vance tinha aversão por tudo o que se referia a negócios, com o tempo vim a ser encarregado de todas as suas transações, seu procurador, enfim. Seus negócios eram bastante numerosos para me tomarem todo o tempo, e ele suficientemente abastado para se dar ao luxo de um factótum pessoal e jurista, de mais a mais; assim foi que deixei o escritório e devotei-me exclusivamente às suas necessidades e caprichos.

Se é certo que até ao dia em que Vance me chamou para discutir a compra dos Cézanne eu tinha abrigado no coração algum secreto remorso por ter privado a firma Van Dine, Davis Van Dine dos meus modestos conhecimentos jurídicos, não é menos certo que tal remorso se dissipou para sempre naquela memorável manhã; porque, a partir do caso Benson, e durante quatro anos, tive o privilégio de conhecer a mais assombrosa série de casos criminais que jamais desfilou perante os olhos de um novato. Sem dúvida, os horrendos dramas que presenciei durante aquele período constituem um dos mais espantosos documentos secretos na história da polícia deste país.

Foi Vance o principal personagem desses dramas. Empregando um método analítico e interpretativo que, ao que eu saiba, nunca tinha sido até então aplicado a investigações criminais, conseguiu achar a solução de muitos casos em que tanto a Polícia como o Promotor Público tinham fracassado. Minhas relações com ele permitiram-me não só tomar parte em todos os casos em que ele interveio, mas também assistir à maior parte das discussões que teve de sustentar com os magistrados; e, como sou naturalmente metódico, conservei um registro completo desses casos. Anotava, além disso, tão claramente como mo permitia a memória, os métodos psicológicos inéditos que usava para determinar a culpabilidade, conforme ele os expunha. E foi uma sorte que eu tivesse feito esse trabalho desinteressado de anotação e transcrição, pois hoje, que as circunstâncias me permitem, quando menos o esperava, publicar esses fatos, acho-me em condições de apresentá-los com uma multidão de minúcias, com todas as suas nuanças e complicado desenvolvimento — tarefa que não me seria permitido cumprir sem meus numerosos apontamentos e recortes.

Afortunadamente, também, o primeiro caso que chamou a atenção de Vance, enredando-o nas suas malhas, foi o assassínio de Alvino Benson. Não só porque foi uma das mais famosas causas de Nova York, mas porque lhe proporcionou uma excelente oportunidade para desenvolver seus raros talentos de raciocínio dedutivo; e, por sua natureza e magnitude, orientou-lhe o interesse para um ramo de atividades até então estranho às sugestões do seu temperamento e predileções habituais.

Se bem que o próprio Vance tivesse sido, por um pedido feito um mês antes ao Promotor Público, o agente involuntário da quebra da rotina normal de sua vida, o caso se lhe impôs, repentina e inesperadamente. Tudo, de fato, caiu sobre nós, antes que tivéssemos acabado nosso almoço naquela manhã de meados de junho, e veio suspender todas as negociações concernentes à compra dos quadros de Cézanne. Quando, nesse mesmo dia, visitei as Galerias Kessler, duas das aquarelas que Vance particularmente desejava tinham sido vendidas; e estou convencido de que, apesar do seu sucesso na elucidação do mistério do assassínio de Benson, e de ter poupado a vida ao menos de um inocente, jamais se julgou compensado da perda daqueles dois pequenos esboços, que tanto o cativaram.

Fui introduzido na sala por Currie, um velho e singular criado inglês, que exercia as funções de despenseiro, criado de quarto, mordomo, e em algumas ocasiões especiais, cozinheiro. Encontrei Vance sentado em uma vasta poltrona, metido em um chambre de surá e chinelos de camurça cinzenta, e com o Cézanne, de Vollard, aberto sobre os joelhos.

— Desculpe-me por não me levantar, Van, — disse ele, cumprimentando-me distraído. — Tenho todo o peso da moderna evolução da arte a descansar sobre as pernas. Além disso, você sabe que me fatigo muito sempre que me levanto cedo, como os plebeus.

Folheava as páginas do livro, detendo-se de vez em quando para examinar uma ilustração.

— Este Vollard, — observou afinal, — foi até liberal com o nosso país, que amedronta a arte. Mandou uma coleção muito boa dos seus Cézanne. Examinei-a ontem, com a devida reverência, e, devo confessar, com indiferença... porque Kessler me vigiava; escolhi os quadros que desejo que compres hoje, assim que a Galeria se abra.

Deu-me um pequeno catálogo, que lhe servira de marcador de página.

— Uma estúpida incumbência, bem sei, — acrescentou, com um sorriso indolente. — Essas delicadas manchas com todo o seu papel branco, provavelmente não terão significação alguma para o seu espírito de jurista. É que você não sabe que elas são tão diferentes como um arrazoado perfeitamente datilografado. E você decerto imagina que algumas Nfiguras estejam de pernas para o ar, em completa desordem — uma delas está, de fato, invertida, e contudo nem Kessler o percebe. Mas não se zangue, amigo velho. São ninharias inexpressivas, mas muito lindas e valiosas, quando a gente considera que estarão valendo muito mais daqui a alguns anos. É na verdade um excelente emprego de capital, para uma criatura amante do dinheiro, infinitamente melhor do que aquela companhia "Eqüidade dos Juristas", sobre a qual você falava tão eloqüentemente, ao tempo da morte de minha tia Agatha. (*)

(*) De fato, as mesmas aquarelas que Vance comprou por 250 e 300 dólares, quatro anos mais tarde tinham triplicado de valor.


Uma das paixões de Vance (se podemos chamar paixão a um entusiasmo puramente intelectual) era a arte — não a arte nó seu aspecto limitado, pessoal, mas na sua significação mais universal. E a arte não era apenas o seu interesse dominante, mas a sua principal distração. Era uma autoridade no conhecimento de gravuras japonesas e chinesas; e ouvi dele uma vez uma dissertação improvisada, diante de alguns convidados, sobre figurinhas de Tanagra que, se tivesse sido publicada, constituiria uma deliciosa e instrutiva monografia.

Tendo recursos que lhe permitiam satisfazer seu instinto de colecionador, possuía uma linda coleção de quadros e objetos de arte. Essa coleção era heterogênea somente nos caracteres superficiais: cada peça que obtinha apresentava algum elemento, de forma ou linha, que a aparentava com todas as outras. Um conhecedor encontraria a unidade e coerência de todas as peças de que se cercou, ainda que estivessem profundamente separadas no tempo, ou no destino, ou na aparência exterior. Descobri em Vance um dos raros seres humanos que colecionam com um ponto de vista filosófico definido.

Sua residência na Rua 38, Leste — os dois andares superiores de uma velha casa. lindamente remodelada e em parte reconstruída, com aposentos espaçosos e tetos altos — estava cheia, mas não atravancada de raros espécimes de arte oriental e ocidental, antiga e moderna. Seus quadros vinham desde os primitivos italianos até Cézanne e Matisse; e na sua coleção de desenhos originais figuravam trabalhos tão apartados como os de Miguel Ângelo e Picasso. Suas gravuras chinesas constituíam uma das mais belas coleções particulares do país, e havia entre elas muitos exemplares de Ririomin, Rianchu, Jinkomin, Kakei e Mokkei.

— Os chineses — disseme Vance uma vez — são na verdade os maiores artistas do Oriente. Foi o trabalho desses homens que exprimiu mais intensamente um largo espírito filosófico. Os japoneses, ao contrário, são superficiais: vai larga distância, na verdade, entre o souci pouco mais que decorativo de Hokusai e um Ririomin, que revela um pensamento profundo e senso artístico consciente. Até depois de degenerada, sob os manchais, a arte dos chineses mostra uma profunda qualidade filosófica — uma sensibilidade espiritual, por assim dizer. E nas modernas cópias de cópias, a que chamam estilo bunjinga, encontramos quadros de sentido profundo.

A universalidade do gosto de Vance em arte era notável. Sua coleção era tão variada como a de um museu. Compreendia uma ânfora negra, toda lavrada, de Amasis; um vaso pré-corintiano no estilo egeano; baixelas de Koubatcha e de Rhodes; cerâmica ateniense; uma pia italiana para água benta, de cristal de rocha, do século XVI; baixelas de estanho do período dos Tudors (muitas peças traziam a rosa dobrada de hall-mark) (*); uma placa de bronze de Vallfogona; alguns bronzes etruscos; um budista greco-indiano; uma estatueta da deusa Kuan Yin, da Dinastia Ming; lindíssimas gravuras de madeira do Renascimento; e alguns espécimes de marfim esculpido, bizantinos, carolíngios, e franceses primitivos.

(*) Marca do contraste, gravada pela Corporação dos Ourives de Londres, em objetos de ouro e prata, para garantir a sua autenticidade.

(Nota do Tradutor)


Seus tesouros egípcios compreendiam um jarro de ouro de Zakazik, uma estatueta de Lady Nai (tão bela como a do Louvre), duas lindas estrelas cinzeladas do Primeiro Período Tebano, várias pequenas esculturas, raras representações de Hapi e Amset, e diversas taças Arrentino, trazendo esculpidos dançarinos kalathiscos. Em cima de uma das suas estantes do tempo de James I, na biblioteca, onde se achava a maior parte das pinturas e esboços modernos, via-se um belo grupo de escultura africana — máscaras cerimoniais e estatuetas fetiches da Guiné Francesa, do Sudão, da Nigéria, da Costa do Marfim e do Congo.

Um desígnio determinado me levou a falar tão insistentemente do instinto artístico de Vance, porque para bem compreender as aventuras melodramáticas que começaram para ele naquela manhã de junho, é necessário ter uma idéia geral das tendências do homem e de suas secretas inclinações. Seu interesse pela arte foi fator importante — diria mesmo dominante — na sua personalidade. Nunca vi outro homem que se lhe assemelhasse tanto — um espírito tão diversificado na aparência e, ainda assim, tão fundamentalmente coerente. Era o que muitos chamariam de diletante, mas a designação seria descabida. De invulgar cultura, aristocrata de nascimento e instinto, conservava-se rigidamente afastado do mundo comum dos outros homens. Desprendia-se dele um indefinível desprezo por tudo o que fosse inferioridade. A grande maioria dos que com ele tinham contato consideravam-no esnobe; contudo, não havia traço algum de simulação no seu desdém e condescendência. Seu esnobismo tinha tanto de social como de intelectual. Detestava a estupidez mais ainda, creio-o, do que a vulgaridade ou o mau gosto. Mais de uma vez ouvi-lhe a citação da célebre sentença de Fouché: "Cest plus qu'un crime; c'est une faute." E pensava literalmente assim. Era francamente satírico, mas raras vezes mordaz; suas sátiras eram petulantes, juvenalianas. Talvez a melhor definição que lhe caiba seja: um espectador da vida, enfadado e desdenhoso, mas profundamente sagaz. Interessavam-no em alto grau todas as reações humanas, mas era o interesse do cientista, não do humanitário. Em todo caso, era homem de raro encanto pessoal. E até os que não podiam admirá-lo, sentiam igualmente que não podiam deixar de gostar dele. Seus modos um tanto quixotescos e um leve sotaque inglês — herança do tempo que passara em Oxford — podiam parecer afetação aos que não o conheciam bem. Mas nada, ou muito pouco, havia nele de poseur.

Era notavelmente belo, apesar da boca austera e cruel, como as bocas de alguns dos retratos dos Medici (*); além disso, mostrava certa ironia, no arrogante arquear das sobrancelhas. A despeito da aquilina severidade das linhas, o.rosto era muito expressivo. A testa, cheia e inclinada, era a fronte do artista antes que a do erudito. Os olhos, frios e cinzentos, muito separados. Nariz direito e delgado, queixo curto e proeminente, com uma fenda extraordinariamente profunda. Quando vi John Barrymore há pouco, no Hamlet, lembrei-me um pouco de Vance; e já anteriormente, numa cena de César e Cleópatra, representada por Forbes-Robertson, tivera uma impressão semelhante. (**)

(*) Particularmente os retratos de Bronzino, de Pietro de Medici e Cosimo de Medici, na Galeria Nacional, e o medalhão de Vasari, de Lorenzo de Medici, no Vecchio Palazzo, de Florença.

(**) Certa vez, por motivo de uma sinusite, Vance mandou tirar uma radiografia da cabeça, e na papeleta do diagnóstico foi ele descrito como "um acentuado dolicocéfalo" e um "nórdico desproporcionado". Vinham mais os dados: índice cefálico, 75; nariz leptorrino com índice 48; ângulo facial, 85; índice vertical, 72; índice súpero-facial, 54; distância interpupilar, 67; queixo masognata, com um índice de 103; sela túrcica, anormalmente grande.

 

Tinha cerca de 1,80 m de altura, era esbelto, dava uma impressão de força e resistência nervosa. Destro espadachim, fora o capitão do quadro de esgrima da Universidade. Mediocremente apaixonado pelos desportos exteriores, tinha como que um dom de fazer bem todas as coisas, sem nenhuma prática especial. No golfe, seu handicap era apenas três; e uma vez jogou no nosso time, no campeonato de pólo que disputamos com a Inglaterra. Detestava longas caminhadas, e não andaria cem metros a pé, se achasse meio de ir a cavalo. Sempre elegante no trajar — escrupulosamente correto nos menores detalhes — ainda que não exagerado. Passava um tempo considerável nos clubes; seu preferido era o Stuyvesant, porque, explicou-me, seus membros vinham na maior parte das fileiras da política e do comércio, e ele não seria ali jamais arrastado a discussões que requeressem algum esforço mental. Ouvia de vez em quando as óperas mais modernas, e era freqüentador assíduo dos concertos sinfônicos e recitais de música de câmara.

Cabe notar que era um dos mais destros jogadores de pôquer que tenho visto. E menciono este fato, não simplesmente por ser extraordinário e significativo que um homem do tipo de Vance preferisse esse jogo democrático ao bridge ou xadrez, por exemplo; mas porque grande parte do seu conhecimento da psicologia humana adquiriu-o jogando o pôquer.

Seu conhecimento da psicologia era realmente profundo. Dotado de uma faculdade de julgamento das pessoas instintiva e acurada, o estudo e a leitura tinham coordenado e racionalizado este dom em grau surpreendente. Conhecia bem os princípios acadêmicos da psicologia, e todos os estudos que fizera na Universidade ou se basearam nesse assunto, ou se subordinaram a ele. Enquanto eu me confinava num círculo estreito de prejuízos e contratos, direito privado e público, provas e autos, Vance fazia o reconhecimento de todo o campo da experiência cultural. Fizera o curso de história das religiões, dos clássicos gregos, de biologia, economia política e social, filosofia, antropologia, literatura, psicologia teórica e experimental, línguas antigas e modernas (*). Mas o que mais o interessava, creio eu, eram os cursos de Münsterberg e de William James.

(*) "A cultura, — disseme Vance, depois que nos tornamos a encontrar, — é poliglota; e o manejo de várias línguas é essencial ao conhecimento dos fatos intelectuais e estéticos do mundo. Os clássicos gregos e latinos são, de forma especial, corrompidos pelas traduções". Cito esta observação, porque suas onívoras leituras em outras línguas que não o inglês, além da prodigiosa retentiva de sua memória, transpareciam-lhe na conversação. E, embora possa parecer a muitas pessoas que ele fosse por vezes pedante ao falar, tenho procurado citá-lo literalmente na esperança de apresentar um retrato do homem, tal qual ele era.


Seu espírito era fundamentalmente filosófico — isto é, filosófico no sentido mais geral. Singularmente isento de sentimentalismos convencionais e de superstições vulgares, descobria facilmente, sob a superfície dos atos humanos, os impulsos e motivos que os determinaram. Era, além disso, resoluto tanto em evitar atitudes que cheirassem a credulidade, como no apego à fria e lógica exatidão nos processos mentais.

— Enquanto não abordamos todos os problemas humanos, — observou ele uma vez, — com a frieza e a indiferença de um médico examinando uma cobaia amarrada a uma tábua, temos muito pouca probabilidade de alcançar a verdade.

Levava Vence uma vida social ativa mas não animada — concessão que fazia a vários laços de família. Mas não era um animal social. Não me lembro de ter encontrado jamais outro homem com o espírito gregário tão pouco desenvolvido. E somente compelido é que participava de atividades sociais. De fato, um de seus negócios "obrigatórios" o retivera na noite anterior àquele memorável almoço de junho; não teríamos combinado antes a compra dos Cézanne. Vence falou largamente a respeito enquanto Currie nos servia morangos e ovos à Bénédictine. Mais tarde, dei profundas graças ao Deus da Coincidência pelo fato de as coisas se terem passado assim, porque se ele estivesse dormindo pacificamente às 9 horas, quando o Promotor chegou, eu teria perdido quatro dos mais interessantes anos de minha vida, e muitos dos mais perversos e atrevidos malfeitores de Nova York estariam até agora em liberdade.

Acabávamos de sentar para tomar a segunda xícara de café e fumar um cigarro, quando Currie, que atendera a um violento toque de campainha, introduziu o Promotor Público.

— Valha-nos Deus! — exclamou ele, erguendo as mãos em cômico espanto. — O maior flâneur e conhecedor de arte de Nova York já está de pé!

— E rubro de vergonha par isso, — replicou Vance.

Era evidente, contudo, que o Promotor não estava de ânimo alegre. Tornou-se repentinamente sério.

— Vance, trouxe-me aqui um caso grave. Tenho muita pressa, e venho apenas para cumprir minha promessa... Alvino Benson foi assassinado.

Vance ergueu as sobrancelhas lentamente.

— Realmente? — balbuciou ele. — Mas... bem que ele o merecia! E de modo algum vejo motivo para que você se amofine com isso. Sente-se e tome uma xícara deste café de Currie, que está incomparável.

E, sem esperar que o outro protestasse, ergueu-se e tocou a campainha.

Markham hesitou um ou dois segundos.

— Ora! Dois minutos mais não vão fazer diferença... Mas é só um gole.

E sentou-se defronte de nós.


II

 

NO TEATRO DO CRIME

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 9 da manhã)

 


John F. X. Markham, como já disse, fora eleito Promotor Público de Nova York, pela chapa Reforma Independente, durante uma das reações periódicas da cidade contra o Tammany Hall. Serviu os quatro anos, e teria provavelmente sido reeleito, se a chapa não tivesse sido dividida pelas trapaças políticas dos adversários. Era um trabalhador infatigável, e durante sua administração a repartição desempenhou papel saliente nas investigações civis e criminais. Incorruptível, granjeou não somente a admiração dos seus partidários, mas ainda a confiança dos que o haviam combatido.

Pouco depois de eleito, um jornal chamou-o de "Cão de Guarda", alcunha que se lhe apegou até ao fim do quadriênio. E, na verdade, foi tão escrupuloso e tão feliz nas suas investigações que ainda hoje seu nome é citado em discussões jurídicas e políticas.

Era Markham um homem alto e forte, já na casa dos quarenta; a aparência de juventude do rosto bem barbeado era logo desmentida pelos cabelos grisalhos. Não se podia dizer que fosse belo, segundo o padrão comum, mas tinha um ar de inconfundível distinção, e possuía uma soma de cultura social raramente encontrada em nossos modernos funcionários públicos. É certo que era de temperamento brusco e vingativo; mas essa rudeza esteava-se em sólida camada de boa educação, não se tratando — como é tão vulgar — de uma subestrutura! posseira mal revestida de uma crosta de delicadeza.

Quando não o atormentavam os cuidados e deveres do cargo, era o mais gentil dos homens. Mas bastas vezes o vi, em minhas relações contínuas com ele, mudar a atenção delicada em severa autoridade. Então dir-se-ia que uma nova personalidade — dura, indomável, símbolo da eterna justiça — despontara repentinamente no corpo de Markham; fui muitas vezes testemunha dessa transformação.

E naquela manhã, quando ele se sentou na minha frente, na sala de Vance, a dureza de expressão do rosto denunciava a profunda perturbação que lhe causara o assassínio de Alvino Benson.

Tomou rapidamente o café e, quando depunha a xícara na mesa, Vance, que o observava com ar divertido, perguntou-lhe:

— Mas por que está você assim preocupado com a morte de Benson? Não é possível que seja você o assassino, pois não?

Markham não deu ouvidos à caçoada.

— Vou à casa de Benson. Quer ir comigo? Você me pediu para tomar parte numa experiência e passei por aqui para cumprir a promessa que lhe fiz.

Lembrei-me então de que algumas semanas antes, quando se discutia, no Club Stuyvesant, o assunto dos crimes célebres de Nova York, Vance manifestara o desejo de acompanhar o Promotor em uma de suas investigações; e Markham prometera levá-lo consigo no primeiro caso importante que se apresentasse. O interesse de Vance pela psicologia das ações humanas sugerira o desejo, e a sua amizade com Markham, que datava de longos anos, tornara possível a realização.

— Você não esquece nada, não? — replicou Vance negligentemente. — É um dom admirável, ainda que nem sempre seja agradável.

Olhou para o relógio em cima da lareira: faltavam poucos minutos para as nove.

— Mas que hora inconveniente! Imagine se alguém me visse...

Markham moveu-se na cadeira, impaciente.

— Está bem, se você julga que a satisfação de sua curiosidade o compensa do vexame de ser visto em público às 9 horas da manhã, apresse-se. Claro que não vou levá-lo de roupão e chinelos. E como não posso esperar mais de cinco minutos que você se vista...

— E por que essa pressa, meu velho? — perguntou Vance, bocejando. — O sujeito morreu, sabe? Ele não pode escapar!

— Vamos, mexa-se. Este negócio não é um brinquedo. É muito sério, e pelo jeito vai causar um grande escândalo. Mas que faz você?

— Eu? Sigo humildemente o grande vingador do povo, — respondeu Vance, erguendo-se e fazendo uma reverência.

Tocou a campainha e ordenou a Currie que lhe trouxesse a roupa.

— Vou a uma recepção que o Sr. Markham convocou diante de um cadáver, e preciso de uma roupa elegante. Está bastante quente para vestir algo de seda?... E uma gravata cor de alfazema, pelo menos.

— Espero que não leve também seu cravo vermelho, — resmungou Markham.

— Ora, ora! — murmurou Vance. — Você, sem dúvida, esteve lendo Hichens. Tal heresia em um Promotor Público! Não, você bem sabe que nunca uso nada na lapela! Os enfeites caíram em descrédito. Os únicos remanescentes dessa prática são casquilhos e tocadores de saxofone... Mas diga-me alguma coisa acerca do falecido Benson.

Estava já vestido, com o auxílio de Currie, e gastara nisso 0 mínimo de tempo possível. Sob os motejos procurava ocultar a verdadeira avidez com que acolhia a nova experiência, que descortinava ao seu espírito vivo e observador dramáticas visões.

— Você conheceu um pouco Benson, creio-o, — disse o Promotor. — Pois bem, esta manhã, muito cedo, sua governanta telefonou para o posto policial comunicando que acabava de encontrá-lo sentado na sua cadeira preferida, na sala, completamente vestido, e com um tiro na cabeça. A notícia foi transmitida ao Quartel-General da Polícia, e meu assistente de serviço avisou-me imediatamente. Estava resolvido a deixar o caso seguir os trâmites normais da polícia, mas meia hora depois o major Benson, irmão de Alvino, telefonou-me, pedindo-me, como um favor especial, que me encarregasse dele. Conheço o major há vinte anos, e não me pude recusar. Assim, almocei às pressas e saí. A casa é na Rua 48, Leste. Quando passava na sua esquina, lembrei-me do seu pedido, e vim aqui para ver se você queria ir.

— Uma excelente idéia, — murmurou Vance, ajustando a gravata em frente de um espelhinho policromo ao lado da porta.

Depois, voltando-se para mim:

— Venha, Van. Contemplaremos o defunto Benson, e estou certo de que algum dos policiais de Markham descobrirá que eu detestava aquele atrevido e me acusará do crime; procurarei salvar-me, é claro, com o meu talento jurídico à mão... Nada de objeções — não é, Markham?

— Sem dúvida, — respondeu o outro prontamente, mas compreendi que preferia não me levar. Eu estava, porém, muito interessado no assunto para fazer uma objeção cerimoniosa, e acompanhei-os.

Quando seguíamos pela Avenida Madison, refletia eu, não sem estranheza, na singular amizade que ligava aqueles dois homens tão dessemelhantes, que seguiam a meu lado no auto. Markham — reto, formalista, um nadinha austero, e muito escrupuloso em todos os seus atos; Vance — distraído, ativo, afável e extravagantemente céptico em face das mais terríveis realidades. E no entanto essa diversidade de temperamentos parecia, de algum modo, a verdadeira pedra angular de sua amizade; era como se cada um visse no outro um inatingível campo de experiência e sensação, que ele próprio não possuía. Markham representava para Vance o sólido e imutável realismo da vida, enquanto que para aquele Vance simbolizava o espírito livre de cuidados, exótico, manhoso, de aventura intelectual. Sua intimidade, de fato, era maior do que parecia, e a despeito das exageradas lamentações de Markham sobre as atitudes e opiniões do outro, eu creio que ele respeitava a inteligência de Vance mais profundamente do que a de qualquer outro homem.

Parecia preocupado e carrancudo, rodando pelas ruas da cidade. Ninguém falara desde que saíramos de casa, mas, ao entrarmos na Rua 48, Vance perguntou:

— Qual é a etiqueta para estas cerimônias matinais, além de tirar o chapéu diante do corpo?

— Você conserva o chapéu na cabeça, — resmungou Markham.

— Ah! Como nas sinagogas, então? Que interessante! Por acaso a gente tira também os sapatos, para não confundir as pegadas?

— Não, — disse Markham. — Os estranhos conservam-se completamente vestidos — no que a função difere das reuniões vespertinas do seu meio elegante.

— Meu caro Markham! — respondeu Vance dando à voz entonação de tristeza, — lá aparece outra vez o terrível moralista que existe na sua natureza. Esta sua observação ficaria muito bem num membro da Liga Epworth.

Markham estava muito preocupado para acompanhar a tagarelice de Vance.

— Quero preveni-lo de uma ou duas coisas, — disse ele solenemente. — Segundo parece, o caso vai provocar grande ruído, e motivará ciúme e disputas, por causa da rivalidade com a polícia. Não me admirarei se for atacado e maltratado pela polícia por me ter metido neste assunto. Assim, convém que tome cautela e não os irrite. Meu ajudante, que já está lá, supõe que o Inspetor entregou o caso a Heath, um sargento do Departamento de Homicídios. Ora, este deve estar convencido, até agora, de que eu me encarreguei do assunto somente para ver meu nome nos jornais.

— Você não é seu superior hierárquico?

— Sim; e é isso mesmo o que torna a situação mais delicada... Oxalá o major não me tivesse falado!

— Oh! — disse Vance, suspirando. — O mundo está cheio de sujeitos como Heath. Que estupidez!

— Mas você está enganado, — apressou-se a dizer Markham. — Heath é um homem de bem; é na verdade uma criatura excelente. O fato mesmo de ter sido incumbido deste caso demonstra que interesse despertou ele na Chefatura. Ninguém ali me mostrará hostilidade por ter intervindo, mas eu é que desejo que a atmosfera seja tranqüila. Heath não vai gostar de me ver trazer dois desconhecidos; por isso. Vance, peço-lhe que imite a modesta violeta...

— E eu que prefiro a flamante rosa, se isso não o incomoda, — protestou Vance. — Não importa, daqui a pouco oferecerei ao suscetível Heath um de meus mais escolhidos cigarros Régie, de ponta cor-de-rosa.

— Se você fizer isso, — observou Markham sorrindo, — ele o prenderá como suspeito.

Paramos de repente em frente a uma velha residência de pedra escura, à direita da Rua 48, perto da 6.a Avenida. Era de muito boa aparência, construída em um terreno de vinte e cinco pés, numa época em que os arquitetos da cidade ainda davam atenção à estabilidade e à beleza. O desenho era vulgar, de acordo com as outras casas do grupo, mas esculturas de pedra na fachada e por cima das janelas davam-lhe um toque de luxo e certa personalidade.

Um patiozinho ladrilhado, mais baixo que a rua, separava-a do edifício, e uma alta grade vedava a frente. A única porta de entrada ficava no cimo de uma escada de dez largos degraus de pedra. À direita da entrada, duas grandes janelas protegidas por pesadas grades de ferro.

Considerável multidão de curiosos reunira-se em frente a casa; e nos degraus esperavam alguns jovens que, pela aparência de atividade, tomei por jornalistas. Um guarda abriu a porta do nosso táxi, e saudou Markham com um respeito exagerado, procurando depois, ostensivamente, abrir passagem para nós por entre a multidão embasbacada de ociosos. Outro guarda, parado no pequeno vestíbulo, reconhecendo Markham, manteve aberta a porta para nos dar passagem, e cumprimentou o Procurador com grande dignidade.

— "Ave, Caesar, te salutamus", — cochichou Vance, ironicamente.

— Sossegue, — murmurou Markham, — tenho amofinações que cheguem sem suas citações.

Quando atravessávamos a porta, de maciço carvalho esculpido, veio ao nosso encontro o ajudante Dindwiddie, um rapaz sério, trigueiro, rosto prematuramente enrugado, e que aparentava suportar sobre os ombros a maior parte das desgraças da humanidade.

— Bom dia, chefe, — disse, saudando Markham, como se se sentisse aliviado com a sua chegada. — Muito me alegro de vê-lo chegar. Este caso desvendará muitas coisas. É um assassinato premeditado.

Markham, concordando melancòlicamente, olhou para a sala e indagou:

— Quem está aí?

— Todos, a começar pelo inspetor-chefe, — respondeu Dindwiddie, encolhendo os ombros, desanimado, como se aquela presença fosse de mau agouro.

Nesse momento um homem de meia-idade, alto, volumoso, de pele rosada e bigode branco, aparado rente, apareceu à porta da sala. Ao ver Markham, veio direto a ele de mão estendida. Reconheci o inspetor-chefe O'Brien, do Departamento de Polícia. Depois dos cumprimentos de estilo, eu e Vance fomos apresentados. Saudou-nos a ambos, silencioso, e voltou à sala, com Markham e Dindwiddie, e eu e Vance os seguimos.

 

 

 

O salão, amplo, quase quadrado, e de teto alto, tinha acesso por uma larga porta dupla. Duas janelas davam para a rua, e na parede oposta, à direita, outra janela abria sobre um pátio ladrilhado. À esquerda desta janela, uma porta corrediça comunicava com a sala de jantar.

Era um tanto extravagante o luxo do salão. Quadros representando cenas hípicas, encimados por troféus de caça, ornavam as paredes. O soalho quase desaparecia, coberto por um tapete oriental, de cores vivas. Em frente à porta de entrada, a lareira com o manto de mármore cinzelado. Ã direita, colocado em diagonal ao canto, um piano de armário de nogueira com aplicações de cobre. Havia ainda uma estante envidraçada, de acaju, com cortinas floreadas, cheia de livros, um sofá, um tamborete veneziano, baixinho, incrustado de madrepérola, e, sobre uma mesinha de teca, um grande samovar de cobre. Uma mesa ao centro, de seis pés de comprimento, também marchetada de metal. Ao lado da mesa, perto do vestíbulo, com as costas para as janelas, estava uma espreguiçadeira de vime, com o espaldar alto, em forma de leque.

Nesta cadeira repousava o corpo de Alvino Benson.

Embora eu tivesse servido dois anos na frente, na Primeira Guerra Mundial, e tenha visto a morte sob aspectos terríveis, não pude reprimir um forte sentimento de desagrado à vista daquele homem assassinado. Na França, a morte parecia uma parte inevitável da rotina diária, mas aqui todo o ambiente era oposto à idéia de tal violência. O radiante sol de junho inundava o salão, e pelas janelas chegava até nós o contínuo rumor da cidade, que, apesar de suas cacofonias, dá uma impressão de paz e segurança, que acompanham o curso social da vida.

Tão natural era a postura do corpo, reclinado na cadeira, que se diria ia voltar-se e perguntar-nos por que lhe violávamos a intimidade. A cabeça repousava no alto espaldar. A perna direita descansava cruzada sobre a esquerda. O braço direito apoiava-se à mesa, e o outro no braço da poltrona. Mas o que dava à sua atitude maior impressão de naturalidade era um livro que conservava na mão, aberto, marcando ainda o polegar a página que sem dúvida lia, quando o mataram. (*)

(*) O livro era Só Negócios, de O. Henry, e, fato curioso, a página em que estava aberto era a da história intitulada "Um relatório municipal".


O tiro fora disparado de frente, e ferira-o na testa; o pequeno orifício circular da bala coberto agora de um coágulo de sangue, enegrecera. Uma grande mancha escura, no tapete, por detrás da cadeira, indicava a extensão da hemorragia causada pela passagem da bala através do crânio. Não fossem estes sinais, dir-se-ia que ele apenas interrompera a leitura para repousar um momento.

Vestia uma velha jaqueta e calçava chinelos de feltro vermelho, mas trazia ainda a calça e camisa de cerimônia, a que tirara o colarinho. Desabotoara a gola, sem dúvida para estar mais à vontade. Não era homem de físico atraente; quase calvo e mais gordo que delgado.

Era bochechudo, e a flacidez do pescoço, sem a sujeição do colarinho, avultava mais. Estremeci, diante dessa figura desagradável à vista, e voltei-me para os circunstantes.

Dois sujeitos agigantados, de pés e mãos enormes, chapéus de feltro puxados para a nuca, inspecionavam as grades das janelas. Ao que parecia, davam particular atenção aos pontos onde as barras pegavam na alvenaria; um deles até segurara uma das grades com ambas as mãos, e sacudia-a, como um macaco, para avaliar-lhe a resistência. Outro, de mediana estatura, e ar resoluto, com um bigodinho louro, inclinado sobre a chaminé, examinava com atenção o empoeirado cano de gás. Do outro lado da mesa um homem corpulento, num terno de sarja azul e chapéu-de-côco, examinava, com as mãos nos quadris, o mudo rosto reclinado na cadeira. O queixo quadrado, de prognata, era solidamente implantado. Os olhos, de um azul pálido, duros e apertados, fixavam intensamente o cadáver de Benson, como se pretendesse, tão-somente pelo poder de concentração, arrancar-lhe o segredo de sua morte.

Junto à janela do fundo, outro homem, de estranho semblante, examinava com uma lente um pequeno objeto. Reconheci, pelos retratos que já conhecia, o capitão Carlos Hagedorn, o mais célebre e afamado perito em armas de fogo de toda a América. Era um homem alto, largo de ombros, não muito simpático, de seus 50 anos; a roupa, preta e lustrosa, ficava-lhe muito folgada. O casaco, muito curto atrás, caía-lhe na frente até aos joelhos, e as calças ensacavam sobre os tornozelos, fazendo grotescas pregas. A cabeça, anormalmente desenvolvida, era redonda, e as orelhas pareciam enterradas no crânio. Um bigode áspero e grisalho ocultava-lhe completamente a boca, e formava uma espécie de lambrequim sobre os lábios. Há mais de trinta anos que o Departamento de Polícia de Nova York recorria a seus serviços, e ainda que lhe ridicularizassem, na Chefatura, as maneiras e o vestuário, era ali profundamente respeitado. Sua palavra era sempre acatada, tanto no que se referia a armas de fogo, como a ferimentos por elas feitos.

Ao fundo da sala, ao pé da porta da sala de jantar, ainda outros homens conversavam: o inspetor William M. Moran, comandante-chefe da Divisão de Investigadores, e o sargento Ernesto Heath, do Departamento de Homicídios, de quem já nos falara Markham.

Quando entramos na sala, acompanhando o inspetor-chefe O'Brien, todos interrogaram suas ocupações por um momento, e olharam para o Promotor Público com um ar desconfiado, mas respeitoso.

Apenas o capitão Hagedorn, depois de envesgar um rápido olhar para o lado de Markham, voltou à inspeção do delicado objeto que tinha na mão, com um ar abstrato e indiferente, que fez sorrir Vance.

Adiantaram-se o inspetor Moran e o sargento Heath, com grande dignidade; seguiu-se o inevitável aperto de mão — cerimônia que mais tarde observei ser uma espécie de rito entre a polícia e os membros da Promotoria do Distrito — e a nossa apresentação. Em poucas palavras, Markham explicou a nossa presença. O inspetor sacudiu amàvelmente a cabeça, mostrando que aceitava a intromissão, mas notei que Heath fazia que não ouvia a exposição de Markhan, e continuou a agir como se não existíssemos.

Em nada se assemelhava o inspetor Moran aos demais que ali se achavam. Regulava sessenta anos, tinha cabelos brancos e bigode escuro. Trajava irrepreensivelmente. Dava mais a idéia de um corretor bem sucedido de Wall Street do que de um oficial da polícia. (*)

(*) Soube mais tarde que o inspetor Moran fora presidente de um grande banco do Estado, falido durante o pânico de 1907; e que na administração Gaynor fora indicado para o posto de Comissário de Polícia.


— Confiei o caso ao sargento Heath, Sr. Markham, — explicou ele em uma voz melodiosa. — Parece que vai dar-nos muito que fazer. O próprio inspetor-chefe achou que devia animar as investigações iniciais, e veio trazer-nos o apoio moral da sua presença: está aqui desde às oito horas.

O inspetor O’Brien deixara-nos assim que entrou na sala, ·e do vão da janela da frente observava o trabalho com ar grave e impenetrável.

— Bem, — disse Moran, — vou-me embora. Tiraram-me da cama às sete e meia, e ainda não almocei. Agora que você está aqui, já não sou necessário... Até logo.

E tornou a apertar-nos as mãos.

Depois que ele saiu, Markham voltou-se para o seu ajudante:

— Dindwiddie, peço-lhe que se encarregue destes dois moços. São recrutas e querem acompanhar nosso trabalho. Explique-lhes as coisas enquanto falo com o sargento Heath.

Dindwiddie aceitou sem relutância a incumbência. Talvez ·porque lhe trazia o meio de dar vazão à sopitada excitação.

Voltamo-nos todos os três para o corpo do homem assassinado — o eixo trágico do drama, afinal — e ouvi Heath dizer, colérico:

— Suponho que veio para se encarregar do assunto, Sr. Markham?

Dindwiddie e Vance conversavam, e eu olhei para Markham com interesse, lembrando-me do que nos dissera sobre a rivalidade entre o Departamento de Polícia e a Promotoria. Ele sorriu amàvelmente e, com um movimento lento, apertou a mão de Heath.

— Não, sargento. Estou aqui para trabalhar com você, e quero que nossas relações sejam definidas desde já. De fato, não estaria aqui agora, se o major Benson não me tivesse telefonado, pedindo minha ajuda. Particularmente, desejo que meu nome não seja mencionado. Todos sabem — ou ficarão sabendo agora — que o major é um velho amigo meu; assim, será melhor, por todos os motivos, que minha intervenção no caso fique ignorada.

Heath murmurou alguma coisa que não pude apanhar, mas vi que serenara. Como todos os que tinham relações com Markham, sabia o que valia a sua palavra, e pessoalmente simpatizava com o Promotor.

— Se alguma honra advier deste caso, — continuou Markham, — será para o Departamento de Polícia; portanto, julgou que é melhor falar com os jornalistas... E, — acrescentou muito naturalmente, — se aparecer alguma censura, seus homens terão de arcar com ela também...

— É justo, — assentiu Heath.

— E agora, sargento, mãos à obra.


III

 

UMA BOLSA DE MULHER

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 9h30)

 


O Promotor e Heath aproximaram-se do cadáver, e contemplaram-no com atenção.

— Veja, — disse Heath, — atiraram de frente. Tiro certeiro, e forte também, pois a bala atravessou o crânio e foi bater ali no madeiramento da janela, — continuou, mostrando um ponto no painel, a curta distância do soalho, junto à cortina da janela mais próxima do vestíbulo. — Encontramos a lasca, e o capitão examina a bala.

E voltando-se para o perito:

— Então, capitão, há alguma coisa especial?

Hagedorn levantou vagarosamente a cabeça e encarou Heath com seu olhar de míope. Depois de alguns movimentos desajeitados, respondeu lentamente:

— Bala militar 45. Colt automático.

— Pode dizer de que distância foi disparado o tiro? — perguntou Markham.

— Sim, senhor, posso, —.replicou Hagedorn na sua monótona lentidão. — Entre cinco e seis pés, provavelmente.

— Provavelmente... — murmurou Heath com desdém. — Pode contar como certo, se o capitão o diz. Veja o senhor, nada menor do que uma bala 44 ou 45 pode matar um homem, e essas balas militares de aço atravessam um crânio como se fosse um queijo. Mas para ir incrustar-se no madeiramento, o tiro tinha de vir de muito perto; e, como não há sinal de pólvora no rosto, pode-se apostar em como a distância que o capitão deu é exata. Nesse instante ouvimos abrir e fechar a porta da frente e entraram o Dr. Doremus, chefe dos médicos legistas, e seu assistente. O médico apertou a mão de Markham e do inspetor O’Brien, e cumprimentou amàvelmente Heath.

— Sinto não ter podido vir mais cedo, — desculpou-se. Era um homem nervoso, com o rosto marcado de cicatrizes e as maneiras de um corretor de imóveis.

— Que aconteceu aqui? — perguntou logo, fazendo uma careta ao ver o corpo.

— É o senhor quem no-lo vai dizer, doutor, — retrucou Heath.

O dr. Doremus aproximou-se do assassinado com a indiferença do médico já endurecido por um longo tirocínio. Examinou atentamente o rosto — sem dúvida à procura de sinais de pólvora. Olhou para o orifício da testa, depois para a ferida irregular da nuca. Moveu os braços do morto, dobrou-lhe os dedos, inclinou-lhe um pouco a cabeça para o lado. Tendo assim verificado o estado de rigor mortis, voltou-se para Heath:

— Podemos estendê-lo naquele sofá? Heath indagou de Markham:

— Pode-se fazer isso?

Como Markham assentisse, acenou para os dois homens das grades e ordenou-lhes que deitassem o corpo no divã. A rigidez da morte conservava os membros encolhidos, e o doutor e seu assistente tiveram de estendê-los. Foi então despido o corpo, e o Dr. Doremus examinou-o cuidadosamente, à procura de outros ferimentos. Prestou particular atenção aos braços; abriu bem ambas as mãos e examinou-lhes as palmas. Afinal ergueu-se e enxugou as mãos em um grande lenço de seda de várias cores.

— A bala atravessou o frontal esquerdo, — anunciou ele. — Feriu um ângulo reto, atravessando completamente o crânio. O orifício de saída é na região occipital esquerda — base do crânio. Acharam a bala, não? Estava acordado quando o alvejaram, e a morte foi instantânea — provavelmente nem soube de que morria... Foi mais ou menos, segundo creio, há umas oito horas, talvez mais...

— Pelas doze e meia, para dar um tempo exato? — perguntou Heath.

O médico olhou para o relógio.

— É isso. Nada mais?

Ninguém respondeu, mas depois de breve pausa o inspetor-chefe disse:

— Desejávamos ter o seu laudo hoje, doutor.

— Perfeitamente — respondeu ele, fechando o estojo clínico e entregando-o ao assistente. — Mas levem o corpo ao Necrotério o mais cedo possível.

Depois de uma breve cerimônia de apertos de mão, ele saiu apressadamente.

Heath voltou-se para o investigador que estava parado ao pé da mesa quando ele entrou.

— Burke, telefone para a Chefatura, para que venham buscar o cadáver, e diga que o vistam. Depois volte para o escritório e espere-me.

Burke cumprimentou e desapareceu.

Heath dirigiu-se então a um dos homens que tinham estado inspecionando as grades das janelas da rua.

— Que achaste, Snitkin?

— Nada, sargento. Fortes como as de uma prisão. Ninguém poderia passar através destas janelas.

— Muito bem, — disse Heath. — Agora vocês dois vão com Burke.

Depois que eles saíram, ativo homem de terno de sarja azul e chapéu-de-côco, cuja esfera de atividade parecia concentrar-se na lareira, pôs na mesa duas pontas de cigarro.

— Encontrei isto no cano do gás, sargento, — explicou ele sem grande entusiasmo. — Não é muita coisa, mas nada mais achei.

— Está bem, Emery, — disse Heath, deitando um olhar descontente para o achado. — Você não precisa esperar. Ver-nos-emos depois no escritório.

Hagedorn avançou, com grande solenidade. — Creio que eu também posso ir. Levo esta bala; há nela alguns sinais especiais. Não precisa dela, sargento?

— Para quê? — perguntou ele, sorrindo. — Leve-a, mas não a perca.

— Não a perderei — assegurou Hagedorn em tom sério e aborrecido. E, sem dirigir sequer um olhar para o Promotor ou para o inspetor, saiu com um movimento levemente balanceado, que lembrava o de um grande anfíbio.

Vance, que estava a meu lado perto da porta, voltou-se e seguiu Hagedorn ao vestíbulo, onde conversaram em voz baixa por alguns minutos. Vance parecia fazer perguntas e, embora eu não estivesse bastante perto para ouvir tudo, apanhei algumas palavras: "trajetória", "velocidade inicial", "ângulo", "ímpeto", "impulso", "desvio", e outras que tais — e eu estava curioso sobre o que podia ter motivado o estranho interrogatório.

Quando Vance agradecia a Hagedorn suas informações, entrou no vestíbulo o inspetor O’Brien.

— Aprendendo rápido? — perguntou, sorrindo, a Vance, com ar protetor. E, sem esperar resposta, para o capitão: — Venha, eu o levarei à cidade.

Markham, que o ouvira, perguntou-lhe se teria lugar para Dindwiddie também.

— Certamente, Sr. Markham.

Saíram os três, e ficamos na sala com o Promotor e Heath. E, como se obedecêssemos a um impulso comum, sentamo-nos todos. Vance tomou uma cadeira junto da porta da sala de jantar, em frente àquela onde Benson tinha sido assassinado.

As maneiras e ações de Vance tinham chamado particularmente minha atenção, desde que chegáramos. Ao entrar na sala, ajustara cuidadosamente o monóculo. Esse gesto, apesar da aparente indiferença com que o executava, demonstrava nele interesse. Quando seu espírito era despertado por alguma impressão e desejava apanhar o assunto prontamente, punha logo o monóculo. Podia ver perfeitamente sem ele, e obedecia apenas a uma sugestão mental. Era como se o aumento de nitidez de visão influísse sutilmente na acuidade do seu espírito. (*)

(*) Os olhos de Vance eram levemente bifocais. O olho direito era astigmático, de 1/2, enquanto que o esquerdo era praticamente normal.


A princípio mirara o salão sem curiosidade, acompanhando com certo ar de apática fadiga o que ali se passara; mas, durante o breve interrogatório de Heath a seus subordinados, revelara-lhe o olhar satisfação irônica. Depois de algumas perguntas gerais feitas a Dindwiddie, passeara pela sala, aparentemente sem nenhum fim determinado, olhando para os vários objetos e móveis. Afinal, detivera-se a examinar o sinal da bala no painel; depois fora até à porta, esquadrinhando o vestíbulo com o olhar.

A única coisa, que parecera prender-lhe a atenção fora o cadáver. Parará diante dele por alguns minutos, estudando-lhe a posição, e chegou a inclinar-se sobre o braço espichado na mesa, como se quisesse ver exatamente como a mão do morto segurava o livro. A posição das pernas cruzadas, contudo, o interessara muito, e se demorara a estudá-las tempo considerável. Afinal, tornara a por o monóculo no bolso do colete, e viera juntar-se a mim e a Dindwiddie, perto da porta, onde se conservou de pé, olhando indiferentemente para Heath e os outros investigadores, até a partida do capitão Hagedorn.

Mal nos sentáramos, apareceu a ordenança à porta do vestíbulo.

— Está aí um homem do posto policial, que deseja falar com o oficial encarregado do caso. Mando-o entrar?

Heath assentiu, e um momento depois um grande irlandês vestido à paisana dava entrada na sala. Cumprimentou Heath, mas reconhecendo o Promotor, fez dele o alvo do seu relatório.

— Sou o agente McLaughlin, senhor, do posto da Rua 47, Oeste, — informou ele. — Estava de serviço nesta zona a noite passada. Mais ou menos à meia-noite, suponho eu, vi um grande Cadillac cinzento parado em frente desta casa. Chamou-me a atenção porque trazia atrás uma porção de utensílios de pesca e todos os faróis acesos. Quando ouvi hoje falar no crime, relatei isto ao sargento do posto, e ele ordenou-me que viesse aqui contar-lhe o fato.

— Perfeitamente, — comentou Markham e, com um gesto, entregou o assunto a Heath.

— Talvez isso signifique alguma coisa, — admitiu este, duvidoso. — Quanto tempo estaria parado aqui esse carro, agente?

— Uma boa meia hora, sem dúvida. Estava ali antes da meia-noite, e quando voltei, cerca de trinta minutos após, ainda aí se achava. Quando tornei a passar, porém, já se tinha retirado.

— Não viu mais nada? Ninguém no carro, ou ao pé dele, que pudesse ser o dono?

— Não, senhor. Nada vi.

Fizeram-lhe mais algumas perguntas semelhantes, mas nada mais se obteve, e despediram-no.

— Como quer que seja, — observou Heath, — a história do carro parado pode servir para entreter os jornalistas.

Vance estivera sentado durante o interrogatório de McLaughlin, quase cochilando — duvido até que tenha ouvido mais do que as primeiras palavras do agente — e depois, reprimindo um bocejo, levantou-se, foi até à mesa de centro e pegou numa das pontas de cigarro que tinham sido encontradas no combustor de gás da lareira. Rolou-a entre o polegar e o indicador, esquadrinhou-a, rasgou o papel com a unha e levou o fumo assim exposto ao nariz.

Heath, que estivera a observá-lo com raiva contida, inclinou-se para diante, perguntando-lhe em tom truculento:

— Que faz o senhor?

Vance ergueu os olhos, sinceramente espantado.

— Apenas cheirando o fumo. — respondeu com indiferença condescendente. — É fraco, mas uma mistura delicada.

Os músculos da face de Heath retesaram-se, enquanto ele replicava, irado:

— Pois faria melhor deixando-o onde estava, senhor. É perito em fumos? — continuou, depois de mirar Vance de alto a baixo.

— Oh! não, — respondeu suavemente Vance. — Minha especialidade são os cartuchos em forma de escaravelho, da dinastia dos Ptolomeus.

Markham interveio, diplomaticamente:

— Na verdade, Vance, você não devia tocar em coisa alguma aqui, estando as investigações no pé em que estão. Não sabe o que pode ter importância: aqueles cotos de cigarros podem vir a ser provas significativas.

— Provas? — repetiu Vance docemente. — Quem o diria! Engraçadíssimo...

Markham estava muito contrariado, e Heath, ainda que sentindo o sangue a ferver, não fez comentário algum; até forçou um sorriso desconsolado. Sem dúvida, achou que fora um pouco abrupto com o amigo do Promotor, embora isso ainda tornasse o amigo mais merecedor da reprimenda.

E não é que Heath fosse bajulador na presença dos superiores. Conhecia seu valor, e demonstrava-o, desempenhando as tarefas que lhe incumbiam com obstinada indiferença pelo seu próprio progresso político. Sua firmeza, e a solidez de caráter que decorria dela, granjearam-lhe o respeito e o apreço dos superiores.

Era grande, forte, elegante e ágil, como um boxeador bem treinado. Seus olhos azuis e duros eram singularmente brilhantes e penetrantes. Tinha nariz pequeno, o queixo oval e largo, a boca austera e direita, com os lábios sempre contraídos. Embora já bem perto, nenhum fio branco se percebia em sua cabeleira curta, cortada à Pompadour. A voz era áspera, mas ele raramente a erguia. Era, sob muitos aspectos, o tipo convencional do investigador. Mas havia nele também alguma coisa que lhe acentuava a personalidade, dir-se-ia uma força que lhe vinha do próprio mérito. E, naquela manhã, ao olhá-lo, senti que o admirava, a despeito de reconhecer nele certas limitações.

— Qual é a situação exata, sargento? — perguntou Markham. — Dindwiddie deu-me apenas informações gerais.

Heath pigarreou.

— Avisaram-nos pouco antes das sete. A governanta de Benson, uma Sra. Platz, telefonou para o posto dizendo que o encontrara morto, e pedia que mandassem alguém cá sem demora. A mensagem foi, sem dúvida, transmitida ao posto central da Polícia. Eu não estava lá no momento, mas Burke e Emery estavam de serviço, e, depois de avisarem o inspetor Moran, vieram para aqui. Já encontraram alguns agentes do posto local fazendo as diligências habituais. Chegando aqui, e inteirando-se da situação, o inspetor telefonou-me, pedindo-me que me apressasse. Quando cheguei, os agentes do posto local tinham saído, e tinham vindo outros três, do setor de homicídios. O inspetor telefonou também ao capitão Hagedorn — entendeu que o caso era bastante importante para chamá-lo imediatamente — e o capitão acabava de chegar quando o senhor entrou. O Sr. Dindwiddie veio logo depois do inspetor, e telefonou-lhe imediatamente. O inspetor-chefe O’Brien chegou pouco antes de mim. Interroguei a Sra. Platz e meus homens examinavam o local quando o senhor chegou.

— Onde está agora a Sra. Platz?

— Lá em cima, sob a guarda de um dos agentes do posto. Ela mora aqui mesmo.

— Por que fez menção da hora específica de doze e meia ao médico?

— A Sra. Platz disseme que ouviu uma detonação naquele momento, e supus que fosse o tiro. Suponho agora que foi o tiro

— isso concorda com outras coisas.

— Acho melhor conversarmos outra vez com a Sra. Platz,

— sugeriu Markham. — Mas primeiro diga-me: achou alguma coisa aqui na sala, alguma coisa que sirva?

Heath hesitou quase imperceptivelmente, depois tirou do bolso do casaco uma bolsa de senhora e um par de luvas compridas, de pelica branca, e colocou tudo em cima da mesa, em frente do Promotor.

— Apenas isto, que um dos homens do posto encontrou em cima da manta da lareira.

Depois de um exame distraído das luvas, Markham abriu a bolsa de mão e despejou o conteúdo sobre a mesa. Adiantei-me para olhar, mas Vance permaneceu sentado, fumando placidamente seu cigarro.

A bolsa era de fina malha de ouro, com um fecho de pequenas safiras. Menor do que as de uso comum, serviria para a noite somente. Os objetos que continha, e que Markham examinava, consistiam de uma cigarreira chata, de seda chamalotada, um frasquinho de Fleurs d'Amour, Roger et Gallet, uma caixinha de pó-de-arroz compacto, uma pequena e delicada piteira de âmbar marchetado, um batom em estojo de ouro, um lencinho bordado, de fino linho francês, com as iniciais "M. St. C." no canto, e uma chave Yale.

— Isto pode indicar-nos uma boa pista, — disse Markham, designando o lenço. — Suponho já examinou tudo cuidadosamente, sargento.

— Sim, e imagino que a bolsa pertence à mulher que estava em companhia de Benson ontem à noite. Disseme a criada que ele tinha um compromisso, e vestiu-se para jantar fora. Ela não o ouviu voltar; mas não será muito difícil descobrir essa M. St. C.

Markham tornou a pegar na cigarreira, e voltando-a de boca para baixo caiu sobre a mesa um pouco de pó de fumo. Heath ergueu-se imediatamente.

— Quem sabe se esses cigarros vinham desta cigarreira? — lembrou ele. Pegou na ponta que ficara intacta e examinou-a. — É cigarro de senhora, sem nenhuma dúvida, — continuou. — e parece ter sido fumado em piteira também.

— Peço perdão por dissentir do senhor, sargento, — disse Vance lentamente. — Estou certo de que me desculpará. Mas há um pouco de carmim no cigarro. Não se vê bem por causa da ponta dourada.

Heath lançou um olhar penetrante a Vance; estava muito admirado para se suscetibilizar. Examinou acuradamente o cigarro e voltou-se outra vez para Vance, perguntando-lhe com áspera ironia:

— Quem sabe se o senhor nos pode dizer também se os cigarros procedem deste estojo?

— A gente nunca sabe, não é? — respondeu Vance, erguendo-se indolentemente.

Pegou na cigarreira, abriu-a completamente, bateu-a contra a mesa. Examinou-lhe o interior minuciosamente, e um sorriso divertido contraiu-lhe os lábios. Metendo o indicador dentro da cigarreira, tirou um cigarrinho que fora evidentemente metido à força no fundo, e se achatara ali.

— Meus dons olfativos já não são necessários, — disse. — Mesmo à vista desarmada se conhece que os cigarros são, para falar franco, idênticos, não, sargento?

Heath sorria afàvelmente.

— Um ponto para o Sr. Markham, — disse, pondo cuidadosamente o cigarro e a ponta num envelope, que assinalou e meteu no bolso.

— Vê agora, Vance, — observou Markham, — a importância daquelas pontas de cigarro?

— Não posso dizer que sim, — respondeu o outro. — Que valor pode ter um toco de cigarro? Não se pode fumá-lo, creio eu...

— É uma prova, meu caro amigo, — explicou Markham pacientemente. — Sabe-se agora que a dona desta bolsa voltou para aqui com Benson ontem à noite, e ficou tempo bastante para fumar dois cigarros.

Vance arqueou as sobrancelhas, comicamente espantado.

— Sabe-se? Sabe-se, na verdade? Imagina-se isso, por enquanto...

— Só o que falta agora é encontrá-la, — replicou Heath.

— Se isso pode facilitar a pesquisa, — disse Vance lentamente, — digo-lhe que é bem moreninha; agora, não posso compreender por que vão incomodar essa senhora... Realmente, não posso, não posso saber.

— Por que diz que é uma moreninha? — perguntou Markham.

— E se o não for, — retrucou Vance afundando-se negligentemente na poltrona, — deverá consultar um especialista de beleza, para que lhe indique o cosmético que deve usar. Vejo que ela usa o pó de tonalidade raquel e o batom para morenas, de Guerlain, uma coisa que as louras não costumam fazer, meu caro.

— Cedo, naturalmente, à sua opinião de perito, — disse Markham, sorrindo. — Creio que teremos de procurar uma moreninha, sargento.

— É também a minha opinião, — disse este, rindo.

Era evidente que já perdoara inteiramente a Vance a destruição da ponta de cigarro.


IV

 

A VERSÃO DA GOVERNANTA

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 11 da manhã)

 


— E agora, — lembrou Markham, — podíamos percorrer a casa. Suponho que você já o fez, sargento, mas gostaria de ver a disposição das coisas. De toda maneira, não quero interrogar a governanta antes que removam o corpo.

Heath levantou-se.

— Muito bem, Sr. Markham. Eu mesmo gostaria de ver a casa outra vez.

Atravessamos o vestíbulo e seguimos pelo corredor que conduz à parte posterior da casa. No extremo, à esquerda, havia uma porta para o porão, mas estava trancada.

— O porão é utilizado agora apenas para depósito, — explicou Heath, — e a porta que dá para a rua está pregada. A Sra. Platz dorme em cima. Benson vivia aqui sozinho, e há muitos quartos desocupados. A cozinha é neste andar.

Abriu uma porta do lado oposto do corredor e entramos numa cozinha pequena, mas moderna. As duas altas janelas, que davam para o pátio ladrilhado atrás da casa, ficavam a uns dois metros e meio do chão, e eram guarnecidas por barras de ferro; tinham os postigos fechados e aferrolhados. Uma grande porta dava acesso à sala de jantar, situada atrás do salão. As duas janelas, que davam para um pequeno pátio ladrilhado, — um verdadeiro poço, entre a casa de Benson e a adjacente — estavam fechadas e eram também guarnecidas de barras de ferro.

Voltamos ao corredor e paramos um momento ao pé da escada que levava ao pavimento superior.

— É fácil de ver, — observou Heath, — que quem quer que tenha atirado em Benson entrou pela porta da frente. Não há mais nenhuma entrada. Como vivia só, parece que Benson temia um tanto os ladrões. A única janela que não tem barras de ferro é a que dá para os fundos da casa, e essa estava com os ferrolhos corridos; e apenas dá para o pátio interior. As janelas da frente, no salão, têm aquelas grades; logo, não podem ter sido utilizadas, nem para atirar dali, pois que Benson foi alvejado do lado oposto. É bem claro que o assassino entrou pela porta da frente.

— Parece que sim, — disse Markham.

— E perdoem-me por dizer isto. — observou Vance, — mas Benson o fez entrar...

— Sim? — retorquiu Heath indiferente. — Veremos tudo isso mais tarde, creio eu.

— Oh! Sem dúvida, — acrescentou Vance, secamente. Subimos e entramos' no quarto de dormir de Benson. Mobiliado com severo gosto, tudo nele estava em perfeita ordem: a cama feita mostrava que ninguém ali dormira naquela noite, e as cortinas estavam descidas. Nas costas de uma cadeira, a casaca e o colete de pique branco de Benson. Sobre a cama um colarinho postiço e uma gravata preta, atirados para ali, sem dúvida, quando Benson os retirara ao voltar. Um par de sapatos de entrada baixa ao pé da cama, ao lado de uma banqueta; em um copo dágua sobre a mesa de cabeceira, uma chapa de platina com quatro dentes. E sobre o toucador, uma peruca feita com admirável perfeição.

A peruca atraiu particularmente a atenção de Vance, que a examinou detidamente.

— Que coisa interessante! — comentou ele. — Parece que nosso defunto amigo usava cabelo postiço. Sabia disso, Markham?

— Sempre o suspeitei, — respondeu o Promotor, indiferentemente.

Heath, que ficara parado no limiar da porta, parecia um pouco impaciente.

— Neste andar há apenas mais um quarto, — disse, descendo para o vestíbulo. — É também um quarto de dormir, para hóspedes, segundo explicou a governanta.

Eu e Markham olhamos da porta, mas Vance permaneceu no topo da escada, absolutamente desinteressado pelos arranjos domésticos de Alvino Benson. Quando subimos ao terceiro andar, ele desceu para o vestíbulo; e, ao voltarmos da nossa visita de inspeção, encontramo-lo a olhar distraído para os títulos dos livros da estante.

Acabávamos de descer quando chegaram dois homens com uma maça. Era o rabecão que vinha buscar o corpo, para levá-lo para o Necrotério; e estremeci de horror ao ver a maneira brutal e indiferente como cobriram o corpo, puseram-no na maça, levaram-no da sala, e enfim o empurraram para dentro do carro. Contudo, Vance apenas dirigiu aos homens um ligeiro olhar, não lhes dando maior atenção. Encontrara um livro com uma linda encadernação de Humphrey-Milford, e estava absorvido nas ilustrações de Roger Payne.

— Parece-me que agora é ocasião de vermos a Sra. Platz, — disse Markham.

Heath foi à escada e deu uma ordem em alta voz. Sem demora entrou na sala uma mulher grisalha, acompanhada por um homem à paisana, que fumava um comprido cigarro. Era ela uma mulher simples, vestida à moda antiga, com um ar maternal, calmo e benevolente. Julguei-a logo muito inteligente e isenta de nervosismos, e sua atitude resignada veio confirmar minha primeira impressão. Sem embargo, parecia dotada daquela astúcia taciturna, tanta vez encontrada nos ignorantes.

— Sente-se, Sra. Platz, — disse Markham, cumprimentando afàvelmente. — Sou o Promotor Público, e desejo fazer-lhe algumas perguntas.

Ela sentou-se ao pé da porta e esperou, olhando ansiosa para nós. A voz delicada e persuasiva de Markham pareceu encorajá-la, porque suas respostas vieram cada vez mais fluentes. E o que resultou de um quarto de hora de interrogatório pode ser assim resumido:

A Sra. Platz era a única criada de Benson, e servia-o há quatro anos. Morava na casa, tendo seu quarto no terceiro andar, rios fundos.

Na véspera à tarde, Benson voltara do escritório mais cedo do que o costume — mais ou menos às quatro horas — e anunciara que não jantaria em casa. Ficara no salão, com a porta do vestíbulo fechada, e subira às seis e meia para vestir-se.

Saíra de casa mais ou menos às sete, mas não lhe dissera aonde ia. Apenas avisara que poderia voltar cedo, mas que não era preciso ficar à sua espera — conforme era costume quando trazia convidados. Fora a última vez que o vira vivo. Ela não o ouvira entrar quando voltou.

Às dez horas subira, e, como fazia calor, deixara a porta entreaberta. Despertara-a uma detonação, algum tempo depois. Assustada, acendera a luz da mesa de cabeceira, e vira então que já passara justamente meia hora da meia-noite, no pequeno despertador que tinha ali para a acordar de manhã. Como fosse tão cedo, tranqüilizara-se, porque Benson, fosse aonde fosse à noite, raramente voltava antes das duas; estes fato, mais o silêncio da casa lhe fizeram supor que o rumor que a acordara fora apenas a descarga de algum carro na Rua 49. Isso não lhe causara, pois, impressão alguma, e adormecera de novo.

Às sete da manhã descera, como costumava, para começar suas obrigações diárias, e, ao sair para ir buscar o leite e o creme, descobrira o corpo de Benson.

Todas as cortinas do salão estavam descidas e a princípio julgou que ele adormecera na cadeira, mas quando viu o sinal da bala e notou que a luz fora apagada, compreendera que estava morto. Fora imediatamente ao vestíbulo e telefonara para a Polícia, comunicando o crime. Lembrando-se depois do irmão de Benson, major Antônio Benson, telefonara-lhe também. Ele tinha vindo logo, chegando quase com os investigadores do posto da Rua 27, Leste. Fizera-lhe algumas perguntas, falara com os homens à paisana, e depois se retirara antes de chegarem os homens da Chefatura.

— E agora, Sra. Platz, — disse Markham, olhando para as notas que tomara, — uma ou duas perguntas ainda, e não a incomodaremos mais... Notou a senhora alguma coisa nos atos do Sr. Benson na noite passada, por onde possa supor que estivesse preocupado ou — como direi? — temesse algum acidente?

— Não, senhor, — respondeu prontamente a mulher. — Até parecia andar mais alegre nos últimos 'oito dias.

— Noto que a maior parte das janelas deste andar são gradeadas. Tinha ele medo particular de ladrões, ou temia que alguém invadisse a casa?

— Não... não era bem isso... — respondeu ela, hesitante. — É que ele costumava dizer que nesta cidade cada um tinha de se guardar a si próprio, porque — com o seu perdão, senhor —a polícia não era bem organizada; por isso se prevenia...

Markham voltou-se para Heath, sorrindo.

— Tome nota especial disso, sargento, para os seus arquivos. Sabe de alguém que tivesse ódio ao Sr. Benson, Sra. Platz?

— Nenhuma criatura, senhor, — respondeu a governanta com calor. — Era um homem esquisito a certos respeitos, mas todos pareciam gostar dele. Fazia ou recebia visitas constantemente. Não posso saber por que alguém o quisesse matar.

Markham tornou a olhar para as suas notas.

— Penso que por agora não há mais nada... E você, sargento, tem alguma coisa a perguntar?

Heath pensou um momento.

— Não, não me lembro de nada mais por enquanto... Mas a Sra. Platz, — acrescentou ele, dirigindo-lhe um olhar frio. — ficará aqui nesta casa, até que lhe seja permitido retirar-se. Queremos interrogá-la outra vez, mais tarde. Mas não poderá falar com pessoa alguma, compreende, Sra. Platz? Dois de meus homens ficarão aqui, de guarda.

Durante este interrogatório, Vance tomara apontamentos na folha de guarda de um caderninho de endereços; enquanto Heath falava, ele rasgou a folha e entregou-a a Markham, que, ao lê-la, franziu a testa e contraiu os lábios. Depois de uma ligeira hesitação, porém, dirigiu-se de novo à governanta.

— Disse há pouco, Sra. Platz, que todos gostavam do Sr. Benson. E a senhora mesma, gostava dele?

A mulher, desviando o olhar, replicou resolutamente:

— Oh! Eu, senhor, apenas trabalhava para ele, e não tenho queixa alguma do modo por que me tratava.

Contudo, e a despeito destas palavras, dava a impressão de "que, ou não gostava muito de Benson, ou desaprovava profundamente os seus atos. Markham, porém, não levou mais longe o assunto.

— Outra coisa, Sra. Platz, o Sr. Benson tinha em casa alguma arma de fogo? Sabia acaso se ele possuía um revólver?

Pela primeira vez, durante o interrogatório, a mulher pareceu agitada, assustada até.

— Sim... senhor... eu... penso que ele tinha um, — terminou ela, receosa.

— E onde o guardava?

Olhou ao redor, apreensiva, como se pesasse bem a conveniência de falar francamente. Depois respondeu em voz baixa:

— Naquela gaveta secreta da mesa de centro. O senhor... o senhor... aperte esse pequeno botão de cobre para abri-la.

Heath apressou-se a apertar o botão indicado. Surgiu uma gavetinha rasa, e dentro dela um revólver Smith and Wesson 38, com a coronha embutida de madrepérola. Pegou nele abriu-o e examinou o cilindro.

— Carregado, — disse, laconicamente.

Uma expressão de imenso alívio espraiou-se pelo semblante da mulher, que suspirou profundamente.

Markham se levantara e olhava para o revólver, por cima do ombro de Heath.

— É melhor que você se encarregue disso, sargento, ainda que não me pareça ter alguma relação com o caso.

Voltou para a sua cadeira e, examinando outra vez a nota que Vance lhe dera, dirigiu-se de novo à governanta:

— Mais uma pergunta, Sra. Platz. A senhora disse que o Sr. Benson veio mais cedo, tendo ficado nesta sala até à hora de jantar. Não recebeu nenhuma visita durante esse tempo?

Eu, que olhava atentamente para a mulher, julguei perceber que ela apertava com força os lábios. Seja como for, é certo que se endireitou na cadeira antes de responder.

— Não, senhor, que eu saiba.

— E na noite passada? A campainha tocou alguma vez depois que a senhora se recolheu?

— Não, senhor.

— Se tocassem teria ouvido, mesmo que estivesse dormindo?

— Sim, senhor. Há uma campainha justamente ao lado da minha porta, a mesma da cozinha. Toca em ambos os lugares ao mesmo tempo. Assim o quis o Sr. Benson.

Markham agradeceu-lhe e despediu-a. Depois que a mulher saiu, ele olhou interrogativamente para Vance.

— Que idéia foi a sua ao entregar-me aquelas perguntas? — Talvez eu me tenha enganado, — disse Vance, — mas, quando ela estava exaltando a popularidade do morto, pareceu-me que exagerava um pouco. Julguei descobrir uma antítese inconsciente no seu elogio, e isso me deu a idéia de que talvez ela mesma não estivesse tão encantada pelo patrão.

— E que foi que lhe deu a idéia da arma de fogo?

— Essa pergunta era um corolário das suas, Markham, a respeito das janelas gradeadas e do medo aos ladrões. Se Benson tinha medo de arrombadores ou de inimigos, trataria de ter armas à mão, não acha?

— Bem, — disse Heath. — Em todo caso, sua curiosidade desencavou um belo revólver, que provavelmente jamais servira.

— A propósito, sargento, — retrucou Vance, sem fazer caso do sarcasmo do outro, — que resultado pensa tirar desse lindo revolverzinho?

— Por agora. — replicou Heath com fingida gravidade, — deduzo que o Sr. Benson guardava um Smith and Wesson de cabo de madrepérola em uma gaveta secreta da sua mesa de centro.

— O senhor o diz, realmente! — atalhou Vance simulando admiração. — Oh! Que grande talento!...

Markham interrompeu as zombarias.

— Por que perguntou você se vieram visitas, Vance? É óbvio que ninguém mais esteve aqui...

— Oh! Outra fantasia minha. Senti um desejo ardente e impulsivo de ouvir o que diria a Sra. Platz.

Heath estudava Vance curiosamente. Dissipava-se-lhe a primeira impressão, e começava a suspeitar de que, sob o exterior distraído e amável do outro, se ocultava alguma coisa mais sólida do que a princípio julgara. Não o satisfizeram inteiramente as explicações que Vance dera a Markham, e parecia que desejava penetrar as razões verdadeiras das perguntas suplementares ao interrogatório a que o Promotor submetera a governanta. Era astuto, não lhe faltava habilidade de homem mundano, para compreender as intenções; mas Vance era diferente dos outros, daqueles com quem estava habituado a lidar, e era, para ele, um enigma.

Afinal, desistiu de decifrá-lo e aproximou a cadeira da mesa, dizendo com certa secura:

— Agora, Sr. Markham, vamos fixar nossas esferas de ação, para não duplicar o trabalho. Quanto mais cedo eu movimentar meus homens, melhor será.

Markham concordou prontamente.

— A investigação foi-lhe entregue completamente, sargento. Eu estou aqui para ajudá-lo em qualquer coisa de que necessite.

— É muita bondade sua, senhor, — replicou Heath. — Mas parece-me que haverá bastante trabalho para repartirmos... Creio que eu posso ver se encontro a dona da bolsa, e também destacar alguns homens para indagarem dos companheiros de vida noturna de Benson — a governanta poderá indicar-me alguns — que serão um ponto de partida. Procurarei também aquele Cadillac... Procuraremos depois as suas amizades femininas — que suponho eram em grande número.

— E eu poderei obter alguma coisa do major nesse sentido, — disse Markham. — Ele me dirá algo do que desejo saber. E por ele também saberei quem eram os seus associados nos negócios.

— Ia lembrar que o senhor poderia fazer isso melhor do que eu, — ajuntou Heath. — Precisamos de encontrar depressa alguma coisa que nos dê a pista para achar o resto. E creio que,, quando encontrarmos a senhora que jantou com ele a noite passada e voltou para aqui, saberemos muito mais do assunto.

— Ou muito menos, — murmurou Vance. Heath encarou-o e respondeu-lhe com petulância:

— Sr. Vance, já que deseja aprender alguma coisa destes negócios, deixe-me dizer-lhe que, quando alguma coisa sai de través neste mundo, é sinal certo de que se deve procurar uma mulher no caso.

— Ah! Sim, — disse Vance sorrindo. — Cherchez la femme... uma noção antiga. Até os romanos tiveram a mesma superstição — e exprimiram-na no seu — Dux Femina facti.

— Seja como for que a tivessem exprimido, tiveram a idéia acertada. E não admita que ninguém lhe diga o contrário.

Ainda uma vez Markham interveio, como diplomata:

— Espero que esse ponto seja resolvido depressa... E agora, sargento, se você não tem outra coisa a dizer, irei embora. Disse ao major Benson que o veria ao almoço, e talvez tenha alguma notícia para você logo à noite.

— Muito bem. Eu ficarei por aqui, a ver se há alguma coisa mais a observar. Mandarei guardar a casa e porei uma sentinela de vigia à Sra. Platz. Falarei com os jornalistas, informando-os do Cadillac desaparecido e do misterioso revólver na gaveta secreta. Acho que poderão entreter-se com isso... Se descobrir mais alguma coisa, telefonarei.

Depois de apertar as mãos do Promotor, voltou-se para Vance e, com grande surpresa minha e creio que também de Markham, disse-lhe amàvelmente:

— Passe bem, senhor. Espero que tenha aprendido alguma coisa esta manhã.

— O senhor ficaria positivamente confundido, sargento, se soubesse tudo o que aprendi, — respondeu negligentemente Vance.

Pela segunda vez notei no olhar de Heath aquela curiosidade maligna, mas foi só um segundo. E respondeu secamente:

— Pois estou contente com isso.

Saímos, e o guarda à paisana chamou um auto.

— Então é deste modo que nossa orgulhosa polícia chega aos misteriosos porquês dos assuntos criminais? Oh! — disse Vance, quando seguíamos para a cidade. — Markham, meu velho amigo, como podem aqueles rudes rapazes ser algumas vezes bem sucedidos quando procuram o criminoso?

— Você presenciou apenas os mais simples preliminares, — explicou Markham. — Há certas coisas em que devemos seguir a rotina — ex abundanti cautelae, como dizemos nós, os juristas.

— Mas, palavra! Que técnica! — suspirou Vance. Ah! quantum est in rebus inane! Como dizemos nós, os leigos...

— Você não dá muito pela capacidade de Heath, eu sei. — disse Markham com voz pacifica, — mas ele é muito hábil, e também é certo que é fácil desconhecer-lhe o mérito.

— Em todo caso, — murmurou Vance, — estou-lhe muito agradecido, e a todos, por me terem proporcionado ocasião de apreciar seu trabalho solene. Divertiu-me muito, para não dizer que me edificou. Chamou-me a atenção seu Esculápio oficial — pareceu-me um rapaz alegre, destituído de emoção, e incapaz de se impressionar com um cadáver. Na verdade, poderia ter tomado o crime como um sério meio de vida, em vez de ter estudado medicina.

Markham, que recaíra em inquieta meditação, conservou-se a olhar pela janela em sombrio silêncio, até chegarmos à casa de Vance.

— Não me agrada o curso que vão tomando as coisas, — disse por fim, ao dobrarmos a esquina. — Tenho um sentimento confuso a respeito deste caso.

Vance olhou-o com o rabo do olho, perguntando-lhe, em seguida, com insólita seriedade:

— Markham, você suspeita de alguém?

— Antes fosse assim... Os crimes premeditados não se descobrem facilmente, e este caso me parece particularmente complexo.

— Que idéia! — disse Vance, já quando o auto parava. — Pois eu o achei extraordinariamente simples.


V

 

COLIGINDO INFORMAÇÕES

 


(Sábado, 15 de junho — de manhã)

 


Certamente ainda não foi esquecida a sensação que despertou o assassinato de Alvino Benson. Foi um desses crimes que impressionam irresistivelmente a imaginação popular, cercado como foi de uma impenetrável aura de mistério — base de todo o romance. Muitos dias se passaram antes que viesse a luz definitiva esclarecer as circunstâncias do crime; e numerosos ignes fatui também apareceram, contribuindo para desorientar a opinião pública. E de todos os lados surgiam estranhas suposições.

Não era Alvino Benson uma figura romântica, sob nenhum aspecto, mas era muito conhecido, e sua personalidade estivera muito em evidência. Era membro da boêmia rica de Nova York — desportista apaixonado, jogador audacioso e folgazão profissional; e sua vida, lidando com o demi-monde, tivera seu esplendor. Suas façanhas nos cabarés e cafés noturnos foram por muito tempo o assunto predileto de histórias exageradas e comentários de vários jornais e revistas locais, que sustentam os exploradores de escândalos da Broadway.

Ao tempo de sua súbita morte, Alvino Benson mantinha com o seu irmão Antônio, uma agência de corretagem no número 21 de Wall Street, sob a firma Benson Benson. Os outros corretores da praça consideravam-nos como negociantes astutos, embora não muito escorreitos, no que respeita às leis e estatutos da Bolsa de Valores de Nova York. Extraordinariamente diferentes em gostos e temperamento, pouco se viam os dois irmãos fora do escritório. Alvino dedicava ao prazer todos os seus ócios, e era o freqüentador natural de todos os cafés mais importantes da cidade; quanto a Antônio, que era o mais velho, e servira como major na última guerra, levava uma vida tranqüila e simples, passando nos clubes a maior parte dos seus pacatos serões. Eram ambos, entretanto, populares nos seus respectivos meios, nos quais adquiriram muitos admiradores.

A paixão que o crime despertou no mundo comercial explica até certo ponto o interesse que lhe dedicaram os jornais. Além disso, a época era de calma no campo das notícias sensacionais, e daí o afã com que os jornais se apoderaram do assunto, dedicando-lhe páginas e páginas, mesmo as primeiras, com uma prodigalidade rara em tais casos. (*)

(*) Nem o célebre caso Elwell, que se deu alguns anos depois, e apresentava alguns pontos de semelhança com este, causou maior sensação, a despeito de ser Elwell mais vastamente conhecido do que Benson, e de estarem envolvidas nele pessoas de maior responsabilidade na sociedade. Em verdade, o caso Benson foi então lembrado várias vezes, e um jornal da oposição lamentou em editorial que John F. X. Markham já não fosse Promotor Público de Nova York.


Investigadores eminentes de todo o país tiveram de conceder entrevistas a jornalistas impacientes. Reviveu-se a história de muitos crimes célebres, que tinham ficado impunes. Jornais houve que contrataram videntes e astrólogos, para ver se esclareciam o mistério por diversos processos metafísicos. Esparramavam-se pelas páginas desses jornais fotografias e diagramas detalhados, que diariamente ilustravam as efusões jornalísticas.

Em todas as versões apareciam o Cadillac cinzento e o revólver Smith and Wesson, de cabo marchetado. Vieram à luz reproduções fotográficas de carros Cadillac "retocadas", e reconstruídas de acordo com a descrição do agente McLaughlin, algumas até ostentando os utensílios de pesca. Fora batida uma fotografia da mesa de centro de Benson, com a gaveta secreta ampliada, e reproduzida em medalhão. Uma revista dominical chegara até a pagar a um marceneiro uma dissertação sobre compartimentos secretos nos móveis.

Desde o início, a polícia julgara o caso Benson árduo e difícil. Uma hora depois que nós deixamos o teatro do crime, os agentes do Departamento de Homicídios, às ordens de Heath, começaram uma investigação sistemática. Devassaram toda a casa, leram toda a correspondência particular do morto, mas nada descobriram que pudesse trazer alguma luz sobre a tragédia. Nenhuma arma, além do revólver Smith and Wesson, fora encontrada; e uma segunda inspeção feita nas grades das janelas demonstrou que de fato estavam intactas. Isso indicava que, ou o assassino se servira de uma chave para entrar, ou o próprio Benson o introduzira em casa. Diga-se de passagem que a Heath repugnava ainda admitir esta última hipótese, apesar da afirmação positiva da Sra. Platz, de que nenhuma outra pessoa, a não ser ela e Benson, possuía a chave da porta.

À falta de um indício definitivo, além da bolsa e das luvas, o único meio era interrogar os amigos de Benson e seus sócios, na esperança de descobrir algum fato que fornecesse uma pista. Heath também confiava nesse processo para estabelecer a identidade da dona da bolsa.

Inútil foi o esforço feito para precisar onde Benson tinha passado o serão; muitos amigos seus foram interrogados, visitaram-se os restantes onde habitualmente jantava, mas ninguém pôde dizer que o vira naquela noite. Por outro lado, nenhuma informação geral de natureza útil apareceu, que pudesse guiar a polícia nas suas pesquisais. Aparentemente, Benson não tinha inimigos: não questionara seriamente com ninguém; e seus negócios marchavam na ordem habitual.

Era o major Benson, naturalmente, a pessoa indicada em primeiro lugar para dar informações, em vista do seu íntimo conhecimento dos negócios do irmão. E por isso mesmo o escritório da Promotoria pôs seu chefe em campo desde o primeiro momento. Markham almoçou com o major Benson no dia em que o crime foi descoberto e, a despeito do desejo que este mostraria de ajudar nas pesquisas — mesmo em detrimento do caráter do irmão —, sua contribuição foi de pouco valor. Explicou a Markham que, conhecendo embora a maior parte dos companheiros do irmão, não podia ainda assim designar nenhum que tivesse uma razão particular para cometer tal crime; nem sabia de ninguém que pudesse guiar a polícia na busca que esta fazia. Admitiu, contudo, que havia um aspecto da vida do irmão sobre o qual não estava muito bem informado, € lamentou não poder sugerir um meio de aclarar o mistério. Insinuou, porém, que o irmão tinha certas relações equívocas, aventurando a opinião de que talvez por esse lado se descobrisse um motivo para o crime.

Aproveitando as vagas e confusas sugestões do major Benson Markham pusera em campo imediatamente dois investigadores com instruções para fazer pesquisas apenas em torno das relações femininas de Benson, de modo que não surgisse a suspeita, por parte da Polícia Central, de uma usurpação de suas atribuições. E, tendo em conta o interesse que Vance demonstrara pelo interrogatório da criada, encarregara um homem de examinar e averiguar os seus antecedentes e parentescos.

Soubera assim que a Sra. Platz nascera em uma pequena cidade da Pennsylvania, de pais alemães, já falecidos, e que era viúva há dezesseis anos. Antes de vir para a casa de Benson, servira uma família durante doze anos, e deixara o lugar somente quando sua ama desfizera a casa, para ir morar em um hotel. Essa senhora, interrogada, dissera que a governanta tinha uma filha, mas nunca vira a criança, nem sabia nada dela. Nada havia nessas informações que se pudesse aproveitar, e o relatório foi ·escrito por mera formalidade.

Heath, embora não acreditasse na interferência do Cadillac cinzento no crime, determinara uma intensa busca em toda a cidade, e nisso os jornais prestaram considerável serviço — com a ampla publicidade sobre o carro procurado. Sucedeu, entretanto, um fato curioso, que deu à polícia a esperança de que esse carro trouxesse a desejada pista, esclarecendo o mistério. Um varredor de rua, tendo ouvido contar, ou lido, a história dos petrechos de pesca, narrou que achara duas canas de pesca, amarradas, num ·dos passeios do Central Park, perto do Columbus Circle. Restava saber se essas duas varas pertenciam ao equipamento do auto visto pelo agente McLaughlin. Podiam ter sido, sem dúvida, atiradas do carro em fuga; mas também podiam ter sido perdidas por qualquer outra pessoa que passasse pelo Parque. Nenhuma informação ulterior veio elucidar o assunto, e no dia seguinte à descoberta do crime, o caso não tinha adiantado um passo, no sentido de uma solução definitiva.

Nessa manhã Vance, mandara Currie comprar todos os jornais que tratavam do crime, e passara uma hora a ler as várias versões do assassinato. Não sendo seu costume olhar sequer para:um jornal, nem mesmo por acaso, não pude conter meu espanto ao ver seu repentino interesse por um assunto tão afastado dos seus hábitos regulares.

— Não, velho amigo Van, — explicou ele indolentemente, — não estou ficando sentimental, nem humano, segundo a palavra erroneamente usada hoje. Não posso dizer com Terencio "Homo sum, humani nihil a me alienum puto", porque a maior parte das coisas a que chamam humanas são-me completamente estranhas. Mas, veja você, esta agitaçãozinha provocada pelo crime parece-me interessante, ou, como dizem os cronistas, me intriga — estúpida palavra! — Van, você devia ler esta preciosa entrevista do sargento Heath. Ele gasta uma coluna inteira para dizer: "Nada sei!" Um rapaz de valor inestimável! Decididamente, começo a gostar dele!

— Pode ser — lembrei eu, — que Heath esteja ocultando dos jornais o que sabe, como tática diplomática...

— Não, —.retrucou Vance com um movimento melancólico de cabeça, — nenhum homem é tão isento de vaidade que se queira revelar ao mundo completamente desprovido dos poderes de raciocínio humano, como ele faz em todos esses jornais da manhã — pelo mero desejo de entregar um criminoso à justiça. Isso seria levar o sacrifício até à loucura.

— Markham pode saber ou suspeitar de alguma coisa que ainda não veio a lume, — disse eu.

Vance meditou um momento.

— Isso não é possível, — disse, por fim. — Ele conservou-se modestamente no segundo plano, em todo este palavrório jornalístico. Suponho que vamos examinar melhor o assunto, não?

Foi ao telefone, ligou para o escritório do Promotor, e ouviu-o convidar Markham para almoçar no Stuyvesant.

— E que resolveu sobre a estatueta de Nadelmann, no Stieglitz? — perguntei, lembrando-lhe a razão da minha presença na sua casa àquela hora.

— Não estou hoje disposto a contemplar a simplicidade grega, — respondeu, voltando aos seus jornais.

Dizer que sua atitude me surpreendia, é pouco. Em todo o tempo de nossa amizade, jamais o_ vira esquecer seu entusiasmo pela arte, preterindo-a por qualquer outra distração. E até hoje nenhum interesse mostrara pela lei ou pelos assuntos desta. Compreendi, entretanto, que alguma coisa fora do comum se elaborava no seu cérebro, e me abstive de comentários.

Markham chegou um pouco atrasado ao clube, e já estávamos aboletados à mesa, no nosso canto favorito, quando ele entrou.

— Oh! Meu Licurgo, pondo de parte as pistas novas e significativas que foram encontradas, e as importantes revelações que o público vai conhecer em um futuro muito próximo, e todas as outras tolices da mesma espécie — em que pé estão realmente as coisas?

Markham sorriu.

— Vejo que você leu os jornais. Que pensa das narrativas? — São típicas, não há dúvida. Têm o maior cuidado em não omitir coisa alguma, exceto o essencial.

— Sim? — indagou Markham jovialmente. — E posso saber o que considera você o essencial do caso?

— Não sei, mas como simples amador pareceu-me que a peruca do caro Alvino era uma coisa muito importante e essencial...

— Benson, sem dúvida, tinha a mesma opinião, não acha?

— E havia também o colarinho e a gravata...

— E, — acrescentou Markham, — não desdenhe a dentadura num copo.

— Positivamente, você é assombroso! Sim, é coisa essencial também. E aposto que o incomparável Heath nem sequer notou isso. Mas os outros Aristóteles presentes também fizeram observações incompletas.

— Confesse que as investigações de ontem não lhe causaram boa impressão.

— Ao contrário, causaram-me estupefação. Foi um conjunto de absurdos... Tudo o que podia ser um indício foi admiravelmente desprezado. E havia afinal uma dúzia de pontos de partida, todos eles se encaminhando na mesma direção, mas nenhum dos funcionários o notou, ao que parece. Estavam todos tão ocupados em esmiuçar futilidades, como examinar os tocos de cigarros, ou as grades das janelas — que são, de passagem, bem bonitas... estilo florentino.

Markham, meio divertido, meio vexado, interveio:

— Podemos ficar tranqüilos com a ação da polícia, Vance. Ela solucionará o mistério.

— O que me admira é a sua confiança, — murmurou Vance. Mas, confie em mim e diga-me: que sabe do assassinato de Benson?

Markham hesitava, mas afinal disse:

— Vou falar-lhe confidencialmente, já se vê. Esta manhã, depois que você me telefonou, um dos homens a quem incumbi de investigar a vida mundana de Benson disseme que encontrara a mulher que deixou a bolsa e as luvas em casa dele naquela noite seguindo a pista das iniciais. Soube a seu respeito fatos interessantes. Como eu suspeitava, foi quem o acompanhou ao jantar. É uma atriz, creio que de opereta, e chama-se Muriel St. Clair.

— Já é má sorte, — suspirou Vance. — Pois eu esperava que seus esbirros não encontrassem a dama... Não tenho o prazer de conhecê-la, senão mandaria um cartão de pêsames... Agora vai você, com toda a certeza, representar de juiz de instrução, e atormentá-la o mais que puder, não?

— Sim, certamente que hei de interrogá-la, creio que é o que você quer dizer!

Via-se que Markham estava preocupado, e pouco falou até ao fim do almoço.

Quando nos sentamos mais tarde, no salão de fumar do Clube, o major Benson, que estava a olhar melancòlicamente pela janela, avistou Markham, e veio para junto de nós. Era um homem de rosto cheio, fisionomia grave e bondosa, corpo vigoroso e desempenado, e aparentava cinqüenta anos. Cumprimentou-nos distraído, a mim e a Vance, e voltou-se todo para o Promotor.

— Markham, desde nosso almoço de ontem penso sem cessar no caso, e achei que devo dizer-lhe o que sei. Há um homem chamado Leandro Pfyfe, que foi muito amigo de Alvino, e que talvez lhe possa dar alguma informação útil. Não me lembrei dele ontem, porque não mora na cidade, mas em Long Island, quase sempre — creio que em Port Washington. É apenas uma idéia minha, pois não sei de nada que possa trazer luz neste horrível caso.

E respirou profundamente, como se quisesse abafar algum sinal de comoção. E era evidente que, apesar de sua habitual frieza, estava muito abalado.

— É uma boa lembrança, major, — disse Markham, tomando uma nota nas costas de uma carta. — Vou tratar disso imediatamente.

Vance, que durante este diálogo se distraíra a olhar pela janela, voltou-se para o major:

— Que sabe do coronel Ostrander? Eu o vi muitas vezes em companhia de seu irmão.

— Oh! — disse Benson, com um gesto de dúvida. — Era um simples conhecimento. De nada adiantaria interrogá-lo.

E, voltando-se para Markham, indagou:

— Certamente ainda não teve tempo de saber coisa alguma? Markham tirou o cigarro da boca, para volteá-lo entre os dedos, pensativo. Depois disse:

— Não digo isso. Consegui saber com quem seu irmão jantou na noite de terça-feira; e sei que essa pessoa voltou à casa com ele pouco depois da meia-noite.

Calou-se, pesando, quiçá, o que ia revelar, e continuou:

— O fato é que não me são precisas muitas provas para levar a acusação perante o tribunal.

A surpresa e o assombro se estamparam no rosto do major, que, pondo a mão no ombro do Promotor, disse-lhe, movendo vagarosamente a pesada mandíbula:

— Dou graças a Deus, Markham! Vá até ao fim, por mim, — pediu ele ainda. — E, se precisar de meu auxílio, estarei aqui no Clube até tarde.

Com estas palavras, saiu do salão.

— Parece-me falta de caridade importunar o major com perguntas logo depois da morte do irmão. — comentou Markham. — Mas, a vida tem que continuar...

— E para quê, meu Deus? — murmurou Vance, abafando um bocejo.


VI

 

VANCE DÁ SUA OPINIÃO

 


(Sábado, 15 de junho — 2 da tarde)

 


Continuamos a fumar em silêncio. Vance contemplava indolentemente Madison Square; Markham, carrancudo, olhava atentamente para um desbotado retrato a óleo do velho Peter Stuyvesant, que estava por cima da lareira.

De repente, Vance voltou-se com um sorriso sardônico para Markham, dizendo-lhe pachorrentamente:

— Espanta-me, Markham, ver com que facilidade se enganam os seus investigadores do crime, com isso a que chamam indícios. Uma pegada, um auto oculto, um lenço marcado, bastam para que se lancem a uma perseguição desenfreada, com o seu eterno Ecce signum! Palavra! Eu diria que seus rapazes estão sob a influência dos romances populares. Quando se convencerão vocês de que os crimes não podem ser descobertos por deduções baseadas apenas em indícios materiais e provas circunstanciais?

Esta crítica súbita surpreendeu-nos a ambos, ainda que conhecêssemos bastante o nosso amigo para perceber que seu tom plácido e loquaz mascarava um propósito deliberado.

— Estará você defendendo a tese de que se devem ignorar as provas tangíveis de um crime? — indagou Markham, com ar benevolente.

— Perfeitamente, — declarou Vance, com a maior calma. — Não são apenas inócuas, mas perigosas... O grande mal de seus homens, Markham, é que vocês se aproximam de um crime com a idéia preconcebida de que o criminoso é, ou meio louco, ou muito descuidado. Jamais se lembram, nem por acaso, de que, se um investigador pode ver um indício, também tê-lo-ia visto o criminoso, que, nesse caso, o teria ocultado, ou dissimulado, para que o não vissem. Nunca lhe ocorreu que, um sujeito bastante hábil para planejar e executar um crime com sucesso nos dias de hoje, é também, ipso facto, bastante astucioso para forjar quantos indícios possam ser úteis aos seus projetos? Seus investigadores não querem admitir que a aparência superficial de um crime possa enganar de propósito deliberado, ou que a pista que encontram tenha sido, muitas vezes, preparada para desorientá-los...

— Receio, — observou Markham, com indulgente ironia, — que apanharíamos muito poucos criminosos, se desprezássemos todos os indícios, circunstâncias e inferências... Em regra, os crimes não têm testemunhas presenciais.

— É esse o seu erro fundamental, — observou Vance, impassível. — Cada crime, como cada obra de arte, tem as suas testemunhas. O fato de não vermos o criminoso ou o artista em ação não tem importância. O moderno investigador criminal recusaria acreditar sem dúvida que Rubens pintou a Descida da Crus, da Catedral de Antuérpia, se tivesse provas suficientes de que o artista viajava, por exemplo, em serviço diplomático, quando o quadro foi pintado. E no entanto, meu caro amigo, tal conclusão seria absurda. Ainda que as deduções em contrário fossem tão concludentes que pudessem ser tomadas legalmente em consideração, o quadro por si só demonstraria irrefutavelmente que era de Rubens. Traz a marca indelével da sua personalidade e do seu gênio — que a ninguém mais pertence...

— Mas eu não sou esteta, — replicou Markham, agastado. — Sou apenas jurista. E, quando chega a hora de determinar o autor de um crime, prefiro provas tangíveis a hipóteses metafísicas.

— Preferências que o arrastarão inevitavelmente a erros lamentáveis, — retrucou Vance suavemente.

Acendeu lentamente outro cigarro e, lançando nuvens de fumo para o teto, continuou:

— Considere, por exemplo, as conclusões a que chegou neste crime. Você trabalha com a falsa — e grave! — idéia de que conhece a pessoa que matou o inefável Benson. Disse-o ao major, e disse mais que tinha provas quase suficientes para requerer uma prisão. Sem dúvida, você possui uma grande cópia do que os sábios Solons de hoje chamam indícios veementes. Mas a verdade é que você não deitou o olho sobre o verdadeiro culpado, de nenhum modo! Vai incomodar uma pobre moça, que entretanto nada tem a ver com o crime. Markham voltou-se.

— Você acha, então, que eu vou incomodar uma inocente, não é? Mas, como só eu e meus auxiliares conhecemos as provas que há contra ela, gostaria de que me dissesse por que misteriosos processos veio a saber que não é culpada...

— É muito simples, — replicou Vance, sorrindo zombeteiramente. — Você não vê o assassino, porque ele foi bastante astuto para não deixar qualquer prova que lhe desse a pista.

Falava com a tranqüila segurança de quem enuncia um fato evidente — fato que não admite argumento.

Markham ria desdenhosamente. E replicou como um oráculo:

— Nenhum malfeitor é tão astuto que possa prever todas as contingências. E o ato mais trivial tem íntimas relações, estreitos pontos de contacto com os que o precedem ou seguem. Aliás, é fato conhecido que todo criminoso, por mais cuidadoso que seja, deixa sempre algum fio, que o delata.

— Fato conhecido? — repetiu Vance. — Não, meu caro — apenas uma lenda, baseada na crença infantil de uma Nemesis implacável e vingadora. Compreendo que essa noção esotérica de justiça divina, inevitável, apele para a imaginação popular, como os ledores de buena-dicha, ou a mesa magnetizada; mas — palavra! — entristece-me pensar que você, amigo velho, possa dar crédito a essas místicas bagatelas...

— Não perca o seu tempo, — disse Markham com acrimônia.

— Passe em revista os crimes impunes que conhece, e os que foram descobertos, — continuou Vance, desdenhando a ironia do outro. — Crimes que desconcertaram totalmente os investigadores mais afamados. O fato é que só são descobertos, sempre, os planejados por imbecis. Aí está por que qualquer homem de moderada sagacidade, se premedita um crime, chega a efetuá-lo sem muita dificuldade, seguro de que não será desvendado.

— Quando um crime fica impune, — retrucou Markham, com riso escarninho, — é porque a polícia não teve sorte, não porque o criminoso possua uma inteligência superior.

— Pouca sorte, — repetiu Vance numa voz que chegava a ser suave — eis aí um eufemismo defensivo, que aparece para mascarar a incapacidade. A um homem engenhoso e inteligente, a má sorte não persegue... Não, velho amigo Markham, os crimes impunes são simplesmente crimes inabilmente planejados e executados. E acontece que o assassinato de Benson pertence a esta categoria. Entretanto, você afirma, após algumas horas de pesquisas, que está quase certo de conhecer o criminoso... e eu peço-lhe que me releve se discordo de sua opinião. Calou-se e ficou a fumar, pensativo.

— Os métodos dedutivos, artificiais e casuísticos de seus homens podem conduzir a qualquer parte, e a prova disso é essa infeliz moça, cuja liberdade você pretende arrebatar.

Markham, que até então procurara disfarçar seu ressentimento sob um sorriso desdenhoso, voltou-se muito excitado.

— Contudo, e falo ex cathedra, — proclamou como um desafio, — estou certo das provas que tenho contra a sua "infeliz moça".

Vance não se alterou, mas observou secamente:

— Ainda assim, eu sei que nenhuma mulher poderia ter cometido aquele crime.

Eu via que Markham estava furioso, e quando falou parecia que estourava.

— Nenhuma mulher poderia ter cometido o crime? Oh! E não se importa com as provas?

— Não, nem mesmo que ela o jurasse, e produzisse um tomo disso que vocês, vergônteas da lei, intitulam pomposamente provas irrefutáveis, — respondeu Vance plàcidamente.

— Ah! — retrucou Markham, sarcástico, — isso me faria supor que para você então nem a confissão tem valor?

— Sim, meu caro Justiniano, — respondeu o outro, com um ar de complacência. — Foi isso mesmo o que eu disse. Na verdade, as confissões são ainda piores do que isso — são francamente enganosas. Como a intuição das mulheres — tão encarecidas — elas podem ser alguma vez verdadeiras, mas isso só vem demonstrar que não merecem confiança alguma.

Markham rosnou desdenhoso:

— E por que iria alguém confessar, em seu detrimento, um crime, a menos que soubesse que a verdade fora descoberta ou viria provavelmente a sê-lo?

— Palavra, Markham, você me assombra! Permita que eu lhe murmure, privatissime et gratis, ao ouvido inocente, que há muitos motivos presumíveis para confissão. O medo, a tortura, a conveniência, o amor materno, o cavalheirismo podem levar à confissão. Também o que os psicanalistas chamam complexo de inferioridade ou desilusão, ou uma errada noção do dever, ou egoísmo pervertido, vaidade, enfim, cem causas diversas, podem levar alguém a fazer uma confissão — a mais enganosa e menos segura de todas as formas de prova. Até a própria lei, embora estúpida e pouco científica, a repudia, se não a confirmam outras provas.

— Você é eloqüente, e me aperta de todos os lados. Mas, se a lei repelisse todas as confissões, e desprezasse todos os indícios, como é seu desejo, a sociedade podia prescindir dos tribunais, e mandar fechar todas as cadeias.

— Um típico non sequitor de lógica jurista, — replicou Vance.

— Mas como reconheceria você o culpado?

— Há um método infalível para determinar a culpa e a responsabilidade humana, — explicou Vance. — Mas até agora a polícia se conservou na ignorância beatífica do seu poder e funcionamento. A verdade só pode ser descoberta por uma análise dos fatores psicológicos do crime, aplicados ao indivíduo. Os únicos indícios verdadeiros são os psicológicos — não os materiais. Um perito competente, por exemplo, não vai julgar e autentificar um quadro pelo exame da tela, nem por uma análise química dos pigmentos, mas pelo estudo da personalidade criadora revelada na concepção e execução da obra. Verifica se a obra encarna as qualidades de forma e de técnica, a expressão mental, que constituem o gênio — mais particularmente, a personalidade — de Rubens, de Miguel Ângelo, Veroneso, Ticiano, Tintoreto, ou do artista enfim, a quem se atribui o quadro.

— Creio que meu espírito é ainda muito primitivo, e só os fatos vulgares o impressionam, — confessou Markham. E no caso presente — lastimo-o, pela originalidade de sua analogia artística — possuo uma quantidade de fatos, que indicam todos que certa moça é... eu daria a criadora da obra criminosa intitulada O Assassinato de Alvino Benson.

Vance encolheu os ombros, quase imperceptivelmente.

— Quer você comunicar-me — confidencialmente, é claro — quais são esses fatos?

— Mas certamente, — acedeu Markham. "Imprimis": a moça estava na casa no momento em que o tiro foi disparado.

Vance fingiu dúvida:

— Oh! Palavra! Ela estava lá nesse momento? Que coisa extraordinária!

— É irrefutável a evidência de sua presença. Você sabe que foram encontrados na lareira da sala de Benson as luvas que ela usou no jantar, e a bolsa que levava consigo.

— Oh! — murmurou Vance, com um tom de leve súplica na voz. — Não era a moça, então, mas suas luvas e sua bolsa que estavam presentes — diferença diminuta e sem importância, sem dúvida, do ponto de vista judicial... Até deploro que meu espírito ignorante não possa aceitar as duas condições como idênticas. Por que minhas calças estão na tinturaria, concluirá você que eu lá estou também?

Markham voltou-se para ele vivamente.

— Também não significa nada, mesmo para seu espírito de leigo, em matéria de prova, que esses objetos necessários e tão íntimos, que a mulher usou durante o serão, fossem encontrados na manhã seguinte, na casa do homem que a acompanhara?

— Arrisco-me a ser tachado de bronco, mas digo que não.

— Mas, uma vez que a dama não teria usado esses objetos à tarde, e que não teria podido entrar naquela noite em casa de Benson na ausência dele sem que a governanta a visse, como então podiam esses objetos estar ali na manhã seguinte, se ela mesma não os tivesse deixado na véspera?

— Confesso que disso não tenho a menor idéia. Só a própria dama poderia satisfazer a sua curiosidade. Mas há várias explicações plausíveis. Nosso defunto Chesterfield poderia tê-los levado no bolso —' as mulheres estão sempre a sobrecarregar os homens com seus balangandãs e pacotes, arrulhando um pedido: "Podes levar isto no bolso?..." Também podia o verdadeiro assassino tê-los de algum modo apanhado e deixado na lareira de propósito para despistar a polícia. As mulheres, sabe?, nunca põem seus objetos em lugares tão afastados como lareiras e cabides. Deixam-nos, invariavelmente, sobre a poltrona preferida, ou na mesa de centro.

— E Benson também teria trazido no bolso os cotos de cigarro da dama?

— Coisas mais estranhas se têm visto, — retrucou Vance, imperturbável, — embora eu não lhe impute isso nesse caso... As pontas de cigarro, sabe?, podiam ser prova de uma palestra anterior.

— Mas é que seu desdenhado Heath teve a inteligência precisa para se informar da governanta e verificar que ela limpa a lareira todas as manhãs.

Vance teve um sorriso de admiração.

— Você é tão perfeito, não é? Mas... não pode ser essa,. decerto, a única prova que tem contra a dama.

— De modo algum, — assegurou Markham. — A despeito de sua desconfiança, a prova está confirmada.

— Não o duvido, vendo com que freqüência nossos tribunais condenam inocentes... Mas diga-me mais alguma coisa.

Markham prosseguiu com tranqüila segurança: — Meu agente, soube: primeiro, que Benson jantou só com essa mulher no Marseilles, um pequeno restaurante boêmio da Rua 40, Oeste; segundo, que discutiram; e terceiro, que saíram dali à meia-noite, entrando em um auto.

... Ora, o assassinato foi cometido meia hora depois da meia-noite; mas visto que a dama mora em Riverside Drive, número 80, Benson não podia acompanhá-la à casa — o que teria feito, naturalmente, se ela não o acompanhasse à sua — e estar de volta ao tempo em que o tiro foi disparado. E temos prova mais forte, de que ela esteve em casa de Benson. No apartamento da mulher, soube o agente que ela voltou à casa, realmente, perto de uma hora; estava sem luvas e não trazia bolsa, e foi preciso que lhe abrissem a porta com uma gazua, porque, conforme explicou,, perdera as chaves. Ora, você deve lembrar-se de que encontramos a chave na bolsa. E, para confirmar tudo isso, os cigarros apagados da lareira são iguais aos que você encontrou na cigarreira.. Parou para acender de novo o cigarro. Depois continuou: — Isso quanto a essa noite em particular. Logo que soube quem era, destaquei dois homens para investigarem sua vida privada. E justamente quando eu saía do meu gabinete eles me telefonaram. Descobriram que a mulher tem um noivo, um rapaz chamado Leacock, capitão do exército, e que poderia possuir uma arma como a que matou Benson. Para finalizar, este capitão Leacock almoçou com a moça no dia do crime, e esteve em casa dela na manhã seguinte.

Markham inclinou-se para a frente, e continuou, marcando a cadência das palavras com os dedos no braço da poltrona:

— Já vê você que temos o motivo, a ocasião, e o meio... E talvez ainda me diga que não tenho provas para acusar.

— Tudo o que você descobriu, meu amigo, poderia explicá-lo um menino inteligente. E — continuou, sacudindo tristemente a cabeça, — com tais provas, arrancam ao próximo vida e liberdade! Você me assusta! Tremo pela minha segurança pessoal...

Markham, irritado, retorquiu:

— Será você tão amável que me aponte, do vertiginoso pináculo de sua sabedoria, as falhas do meu raciocínio?

— Pelo que vejo, no que respeita à moça você não raciocinou: ligou apenas fatos sem relação entre si e daí saltou em uma conclusão falsa. E afirmo que é falsa, porque a contradizem todas as indicações psicológicas do crime — quero dizer, a única prova real, aponta, sem erro possível, para outra direção. E, — continuou, com um gesto largo e inusitada gravidade — se você prende essa mulher como assassina de Alvino Benson, acrescentará somente um crime — crime estúpido, deliberado e imperdoável — ao já cometido. Ora, entre matar um pilantra como Benson e comprometer a reputação de uma mulher inocente, parece-me que o primeiro caso é preferível.

Markham conteve um movimento de cólera, que lhe luziu nos olhos: eram amigos e, apesar de toda a divergência de caráter, compreendiam-se e respeitavam-se. Desse respeito mútuo procedia a franqueza rude e, às vezes, mordaz com que falavam.

Após um momento de silêncio, Markham sorriu, constrangido.

— Você me faz vacilar, — disse, gracejando. — Mas, de fato, ainda não resolvi a prisão da mulher.

Apesar do tom de motejo, percebi que falava meio a sério.

— Louvo-lhe a moderação: mas com certeza já se dispôs a atormentar a dama, e ver se a apanha em uma ou duas daquelas contradições tão apreciadas pelos magistrados — como se fosse possível a uma pessoa nervosa, ou inquieta, deixar de se contradizer quando o juiz a interroga sobre um crime que não praticou... Diria melhor — metê-la na grelha, reminiscência dos tempos em que se queimava gente na pira, não é?

— Com certeza que vou interrogá-la, — replicou Markham com firmeza, olhando para o relógio. — E, como um agente a levará ao meu gabinete daqui a meia hora, tenho de interromper esta deliciosa e edificante palestra.

— Espera realmente tirar dela alguma coisa que a inculpe, nesse interrogatório? Oh! Seria divertido testemunhar a sua humilhação... Mas presumo que a intimidação dos suspeitos faz parte dos arcanos judiciais.

Markham, que já se encaminhava para a porta, deteve-se a estas palavras, e refletiu um momento.

— Não vejo objeção particular para a sua presença, se deseja assistir.

Pareceu-me que esperava que o humilhado fosse Vance. E sem demora estávamos em um auto, a caminho da Corte Criminal.


VII

 

OS RELATÓRIOS — UMA ENTREVISTA

 


(Sábado, 15 de junho — 3 da tarde)

 


Foi pela porta da Rua Franklin que entramos no velho edifício de pilares de mármore desbotado e antiquadas volutas de ferro. Dirigimo-nos diretamente ao gabinete do Promotor no quarto andar. Ali, como em todo o edifício, tudo cheirava a antigüidade... Os altos tetos, os maciços madeiramentos de carvalho amarelo, os candelabros de bronze e porcelana, pendurados muito baixo, as paredes estucadas, cor de louro escuro, as quatro janelas, altas e estreitas, ao sul — tudo denunciava uma era morta da arquitetura e da decoração.

Cobria o soalho um grande tapete de veludo muito felpudo, da mesma cor parda das cortinas das janelas. Grandes e cômodas poltronas ao redor das paredes e, diante da mesa do Promotor — uma vasta mesa esculpida cujas gavetas chegavam até ao chão, posta debaixo das janelas, em frente à porta. À direita da cadeira giratória, de alto espaldar, outra mesa de carvalho esculpido. Muitas papeleiras, e um grande cofre de segurança. Ao centro da parede leste, uma porta toda decorada de grandes pregos de bronze, coberta por um reposteiro de couro, dava para uma sala estreita e comprida, comunicando o gabinete com a sala de espera; ali o secretário do Promotor e vários funcionários trabalhavam. Em frente a esta porta, outra conduzia ao santuário reservado do Promotor, e ainda outra, em frente às janelas, dava para o corredor.

Vance olhou distraidamente para os lados.

— Então isto aqui é a sede da justiça municipal!...

Foi até à janela e contemplou dali a Torre do Tombo, circular e cinzenta, situada em frente ao palácio.

— Ali estão as masmorras onde são encerradas as vítimas, com o fim de diminuir a competição da atividade criminal entre os cidadãos remanescentes. Que vista interessante, Markham!

O Promotor, sentado à sua mesa, examinava notas e mais notas na sua pasta de papéis.

— Dois de meus homens estão à espera para me falarem, — observou ele sem erguer a vista dos papéis. — Assim, se você quer ter a bondade de sentar-se, eu procurarei, com meus humildes esforços, solapar ainda mais a sociedade...

Apertou o botão oculto na mesa e apareceu à porta um rapaz ativo, de óculos de vidros grossos.

— Swacker, diga Phelps que venha cá, e diga também a Springer se já voltou do almoço, que venha daqui a cinco minutos.

O secretário desapareceu, e logo entrou um homem alto, feições de ave de rapina, ombros curvados, andar lento e desgracioso.

— Que há de novo? — indagou Markham.

— Encontrei alguma coisa, — respondeu o investigador em voz baixa e áspera, — que deve ser proveitosa para o senhor. Depois que lhe transmiti o relatório esta manhã, andei rondando a casa do capitão Leacock, a ver se obtinha alguma informação dos empregados; vi-o sair e segui-o por muito tempo: foi à casa da dama de Riverside Drive, e ali ficou cerca de uma hora. Voltou depois para casa, parecendo-me que estava desassossegado.

Markham refletiu.

— Talvez isso não tenha valor algum, mas em todo o caso estimo sabê-lo. Miss St. Clair estará aqui daqui a pouco, e saberei arrancar-lhe o que sabe. Nada mais por hoje... Diga a Swacker que mande Tracy aqui.

Tracy era a antítese de Phelps. Baixo, um nada robusto, porejava uma amabilidade estudada. O rosto gorducho e alegre, a roupa bem moderna e bem assentada. Usava pince-nez.

— Bom dia, Chefe, — cumprimentou em tom calmo e insinuante. — Soube que Miss St. Clair virá aqui hoje, e vim dizer-lhe o que soube, e que poderá servir no seu interrogatório.

Abriu um livrinho de notas e ajustou o pince-nez.

— Lembrei-me de indagar alguma coisa do professor de canto de Miss St. Clair, um italiano que trabalhou outrora no Metropolitan, mas que hoje dirige uma espécie de sociedade de canto coral, que fundou. Exercita aspirantes a prima donnas, e Miss St. Clair é uma de suas alunas prediletas. Falou-me simplesmente, sem se perturbar, e parece que conheceu muito Benson, que assistiu a alguns ensaios da moça, e que algumas vezes a convidou a acompanhá-lo de táxi. Reinaldo — é o nome do homem — julga que ele lhe pregou alguma peça. No inverno passado, quando ela cantou no Criterion, em uma pequena parte, Reinaldo servia de ponto, e Benson mandou à moça flores de estufa em tal quantidade, que dariam para encher o camarim da estrela, e ainda sobrariam algumas. Tentei saber dele se Benson estava fingindo de santo com ela, mas ele ou não sabia ou não quis dizer.

Tracy fechou o caderno e ergueu os olhos, perguntando:

— Isto serve de alguma coisa, Chefe?

— É ótimo. Continue trabalhando nesse plano, e torne a me falar na segunda-feira.

Tracy cumprimentou e saiu, e o secretário tornou a entrar.

— Springer está aqui. Pode entrar?

Springer era um tipo de investigador completamente diferente de Phelps e de Tracy. Era mais idoso, e tinha o ar sombrio e circunspecto de um dedicado guarda-livros de banco. Não se lhe atribuiria iniciativa, mas ao vê-lo compreendia-se que poderia desempenhar uma tarefa delicada com extrema perfeição.

Markham tirou do bolso o envelope em que anotara o nome dado pelo major Benson.

— Springer, há em Long Island um homem que desejo ver o mais depressa possível. Isso concerne ao caso Benson, e quero que você o descubra e o traga sem tardar muito. Se puder encontrar o nome na lista telefônica, não é necessário ir até lá. Chama-se Leandro Pfyfe. e creio que mora em Port Washington.

Escreveu o nome em um cartão e entregou-o ao investigador.

— Hoje é sábado. Se ele vier à cidade amanhã, que me procure no Stuyvesant. Estarei lá à tarde.

Quando Springer saiu, Markham tornou a tocar a campainha, e deu instruções ao secretário para fazer entrar Miss St. Clair assim que chegasse.

— Está aí o sargento Heath, — informou Swacker, — e deseja falar-lhe, se o senhor não está muito ocupado.

Markham olhou para o relógio que encimava a porta.

— Creio que tenho tempo. Mande-o entrar.

Heath, a princípio surpreso de nos encontrar no gabinete, cumprimentou Markham com o habitual aperto de mão, voltando-se depois para Vance com um amável sorriso.

— Adquirindo mais conhecimentos, Sr. Vance?

— Não posso dizer que sim, sargento, — retrucou Vance em tom brincalhão. — Mas venho aprendendo um grande número de erros, muito interessantes... Como vão as investigações?

O rosto de Heath ficou sério.

— É o que vim dizer ao Chefe. — E, dirigindo-se a Markham, continuou: — Este caso é um quebra-cabeça, senhor. Eu e meus homens ternos falado com uma dúzia de amigos de Benson, e não tiramos deles nem um simples fato de valor. Ou eles nada sabem, ou resolveram ser mudos como ostras. Todos se mostram muito perturbados — aterrados, confundidos — com a notícia do tiro. Mas ter uma idéia do modo por que isso se passou? Dirão a todos que não. O senhor já sabe o estribilho: "Quem quereria matar o bom do velho Al?" "Só um ladrão que não conhecesse o bom velho Al!" "Porque se conhecesse o bom velho Al, nem o próprio ladrão o teria feito..." Diabo! Deu-me vontade de matar alguns daqueles sujeitos, para que pudessem ir-se reunir ao seu bom velho Al.

— E nenhuma notícia do carro? — perguntou Markham. Heath gemeu o seu desgosto:

— Nenhuma palavra!... E isso é engraçado, com toda a publicidade a respeito. Aquelas varas de pescar foram tudo que conseguimos. Ah! O inspetor mandou-me hoje de manhã o laudo post-mortem; irias isso não nos traz nada de novo. Traduzido em linguagem humana, diz que Benson morreu de um tiro na cabeça, tendo todos os órgãos sãos. O que me admira é que não descobrissem que fora envenenado com uma fava do México, ou picado por alguma serpente africana, ou alguma outra coisa semelhante, para tornar o caso mais intrincado do que já é.

— Não desanime, sargento. Eu tive mais sorte: Tracy descobriu que a proprietária da bolsa jantou naquela noite com Benson. Ele e Phelps descobriram outros fatos suplementares, que também têm valor. E espero a dama dentro de um minuto, e descobrirei o que ela mesma sabe.

Por um momento, enquanto o Promotor falava, luziu nos olhos de Heath uma expressão de descontentamento, mas afastou-a logo. Indagou vários pormenores, e Markham deu-lhe todas as informações, inclusive a de Leandro Pfyfe.

— Assim que terminar a entrevista, eu lhe direi o que colhi,— concluiu ele.

Quando a porta se fechou depois de sair Heath, Vance olhou para Markham com um sorriso matreiro.

— Ele não é precisamente um dos super-homens, de Nietzche não? Receio que as sutilezas deste mundo complexo o fatiguem... E está tão desanimado... Eu senti na verdade satisfação, quando aquele rapaz tão ativo, de óculos espessos, anunciou a sua presença. Estou certo de que ele vinha dizer-lhe que prendera pelo menos seis assassinos de Benson...

— Sua imaginação voa muito alto, — comentou Markham.

— Mas é este o processo usual — se devo crer nas manchetes de nossos grandes jornais moralistas. Sempre julguei que, assim que se cometia um crime, a polícia desatava a prender a torto e a direito — para manter a excitação no público. Ora não vê você... Outra desilusão! Isto vai mal! Nunca perdoarei ao nosso Heath: ele traiu a confiança que eu tinha nele!

Entrou o secretário anunciando a chegada de Miss St. Clair.

Supus que íamos todos ter um pequeno desapontamento à vista dessa moça, quando ela entrou na sala, com passo firme e gracioso, a cabeça levemente inclinada para um lado, supercílios erguidos em atitude interrogativa. Era pequena e notavelmente bela, muito embora "bela" não seja a palavra própria para descrevê-la. Possuía aquela beleza quase exótica, que encontramos nos retratos de Carraci, e que adoçou a severidade de Leonardo, tornando-a ao mesmo tempo familiar e decadente. Eram os olhos escuros e muito espaçados; o nariz delicado e fino, a fronte espaçosa. Os lábios, muito suaves, eram quase esculturais na precisão das linhas. Descerrava-os um sorriso enigmático — ou antes a sombra de um sorriso. O queixo, redondo e firme, era talvez duro, examinado isoladamente, mas não em conjunto com os outros traços. Denotava-lhe o porte equilíbrio e certa força de caráter. E a serenidade exterior mal ocultava a sua poderosa emotividade. O trajo harmonizava com a personalidade: era convencional, é certo, mas um toque de cor e de originalidade aqui e ali, bastava para lhe dar um cunho de distinção pessoal e encantadora.

Markham ergueu-se cumprimentando-a com cerimoniosa cortesia, e ofereceu-lhe uma confortável poltrona estofada, fronteira a mesa. Inclinando imperceptivelmente a cabeça, relanceou os olhos para a cadeira, depois sentou-se em uma outra, pequena, próxima àquela.

— O senhor permite-me que escolha a cadeira para o interrogatório?

A voz era grave e sonora, — a voz de uma cantora muito treinada. Sorria ao falar, mas era um sorriso sem cordialidade: frio e distante, ainda que indicasse certa frivolidade.

— Miss St. Clair, — começou Markham, com uma severidade polida. — seu nome está intimamente ligado ao assassinato de Alvino Benson. Contudo, antes de dar qualquer passo definitivo, convidei-a a vir até aqui, para lhe fazer algumas perguntas. E aviso-a lealmente de que sua melhor defesa será a franqueza.

Calou-se, e ela, olhando-o irônica e interrogativamente:

— Agradeço-lhe o generoso conselho.

Markham olhou para uma nota escrita a máquina que tinha sobre a mesa, e a ruga da testa acentuou-se.

— A senhora deve saber que suas luvas e a sua bolsa foram encontradas em casa do Sr. Benson, no dia seguinte ao crime.

— Compreendo que reconhecessem a minha bolsa, mas como poderiam saber que as luvas também me pertenciam?

Lançou-lhe Markham um olhar percuciente. — Pretende dizer que não são suas?

— Oh! Não, — respondeu, com outro sorriso gelado. — Apenas admiro que o descobrissem, não conhecendo meus gostos, nem o número que calço.

— Pertencem-lhe, então, essas luvas?

— Se são Tréfousse, tamanho cinco e três quartos, de pelica branca e com altos canhões, certamente que são minhas. E desejaria que mas devolvessem, se fosse possível.

— Lamento-o, mas é preciso que fiquem aqui ainda por algum tempo.

Ela encolheu os ombros, com indiferença.

— Posso fumar?

Markham abriu imediatamente uma gaveta da mesa e tirou uma caixa de cigarros Benson Hedjes.

— Obrigada, tenho-os aqui. Mas estimaria muito se me desse minha piteira: tem-me feito muita falta.

Markham hesitava. Aquela atitude incomodava-o, positivamente.

— Empresto-lha com muito prazer, — disse, remexendo em outra gaveta. E apresentou-lhe a piteira. — E agora, Miss St. Clair, — continuou gravemente, — a senhora vai-me dizer como foram parar no salão de Benson aqueles objetos de seu uso.

— Não, senhor, eu não posso dizê-lo.

— Compreende a grave interpretação que sua recusa dará aos fatos?

— Não, realmente não pensei nisso, — respondeu, indiferente.

— Pois faria bem em pensar, — aconselhou Markham. — Sua situação não é para invejar; e a presença de objetos seus na sala de Benson não é a única coisa que a envolve diretamente no crime.

Interrogou-o com o olhar, e de novo o enigmático sorriso descerrou-lhe os lábios.

— Acaso tem provas suficientes para me acusar do crime?' Markham deixou a pergunta sem resposta.

— Conhecia muito Benson? Ela parou o golpe:

— O achado de minhas luvas e bolsa na sua casa bem pode atestá-lo, não é?

— É certo que se interessava muito pela senhora? — persistiu ele.

— Oh! sim! Demais, para a paz de meu espírito!... Mas trouxeram-me aqui para comentar as atenções que esse cavalheiro me dispensava?

Ainda desta vez Markham não deu ouvidos à pergunta.

— Onde esteve a senhora da meia-noite a uma hora, isto é, desde que saiu do "Marseilles", até chegar a casa?

— O senhor é admirável! — exclamou ela. — Parece que sabe tudo... Pois bem, só lhe posso dizer que durante esse tempo eu me dirigia para minha casa.

— A senhora gastou uma hora para ir da Rua 40 até à esquina da Rua 81 com a Riverside Drive?

— Precisamente, isto é, minutos mais, minutos menos, talvez.

— Alas como explica isso?

— Não o posso explicar... senão pelo fato da passagem do tempo. O tempo voa, não é verdade?

— Seu procedimento está-lhe causando dano. — preveniu Markham, já irritado. — Não vê que a sua situação é muito grave? Sabe-se que jantou com Benson, que saiu do restaurante à meia-noite, e que chegou a casa depois de passada uma hora. Meia hora depois da meia-noite o Sr. Benson foi assassinado; e na mesma sala em que ele apareceu morto apareceram também, na manhã seguinte, objetos de seu uso particular.

— Na verdade, tudo isso parece acusar-me, — concordou ela com estranha seriedade. — E digo-lhe isto, Sr. Markham: se meus pensamentos pudessem matar o Sr. Benson, ele estaria morto já há muito tempo. Sei que não se fala mal de um morto — há até um provérbio, começando assim "de mortuis", não é? — mas a verdade é que eu tinha razão para detestar intensamente o Sr. Benson.

— Como então foi jantar com ele?

— Já fiz essa pergunta a mim mesma uma dúzia de vezes, — confessou ela amargamente. — Nós, mulheres, somos tão impulsivas — fazemos sempre aquilo que não queríamos fazer... Mas sei como o senhor julga o caso: se eu tinha a intenção de matá-lo, o jantar seria o mais natural dos preliminares. Não é isto mesmo que pensa neste momento? Creio mesmo que todas as assassinas começam por jantar com as suas vítimas.

Todo o tempo em que falou esteve com o espelhinho na mão. Corrigiu a posição de negalhas da sua abundante cabeleira escura, imaginariamente desviadas, depois tocou de leve, com os dedos finos, as sobrancelhas arqueadas, como se retificasse algum traço de lápis mal dirigido. Inclinou a cabeça, examinou-se para ver se estava tudo em ordem, e só olhou outra vez para o Promotor quando acabou de falar. Dava a impressão nítida de que, no seu entender, sua aparência pessoal era muito mais importante do que o assunto da conversação. Palavra alguma lograria exprimir sua indiferença com tanta eloqüência como aquela pantomima.

Markham começava a exasperar-se. Outro que não ele teria sem dúvida empregado os meios que seu cargo lhe conferia para dominar-lhe a vontade. Mas Markham era diferente do tipo comum de Promotor: fugia instintivamente dos métodos terroristas, ameaçadores, especialmente no trato com senhoras. E, contudo, tomaria sem dúvida uma posição mais agressiva, se não lhe acudissem à memória as observações de Vance, no Club Stuyvesant. E devorava-o a incerteza, aumentada pela atitude evasiva da moça.

Por fim perguntou-lhe asperamente:

— A senhora não fez especulações consideráveis, por intermédio da casa Benson Benson?

Ela riu frouxamente, um riso musical e brando.

— Vejo que o major andou contando histórias... Sim, de fato, joguei sem tino. E não tinha necessidade disso. Creio que sou avarenta.

— Não perdeu muito dinheiro ali há pouco tempo? E o senhor Benson convidou-a a fazer um depósito adicional, e, finalmente, vendeu seus títulos, não é verdade?

— Antes não fosse, meu Deus! — lamentou ela, com um gesto trágico, receio, perfeitamente simulado. E agora, acusam-me de ter assassinado o Sr. Benson por uma vingança sórdida, ou um ato de justa desforra?

Sorria maliciosa, e ficou à espera da resposta, como se fosse aquilo um jogo de adivinhação.

Mas Markham continuou, dura e friamente:

— Não é verdade que o capitão Filipe Leacock possui uma pistola como a que serviu para matar o Sr. Benson — uma pistola Colt automática, tipo militar 45?

Ao ouvir o nome do noivo, ela estremeceu e faltou-lhe um momento a respiração. Abandonou o papel que estivera representando, e um fraco rubor espalhou-se-lhe nas faces, subindo até à fronte. Logo, porém, dominou-se, voltando à indiferença jovial que até então ostentara.

— Nunca indaguei do tipo nem do calibre das armas do capitão Leacock, — retrucou despreocupadamente.

— E não é verdade, — prosseguiu a voz imperturbável de Markham, — que o capitão Leacock lhe emprestou uma pistola, que levou à sua casa na manhã anterior ao dia do crime?

— Não é muito gentil da sua parte, Sr. Markham, — disse com ar constrangido, — imiscuir-se assim nas nossas relações — porque sou noiva do capitão Leacock, o que o senhor provavelmente já sabia.

Markham, que a custo se continha, levantou-se.

— Devo deduzir que a senhora se recusa a responder a todas as minhas perguntas, ou devo antes tentar tirá-la da perigosa posição em que se acha?

Ela pareceu refletir.

— Sim, — disse lentamente. — Não tenho coisa alguma para lhe dizer agora.

Markham inclinou-se e ficou com as mãos apoiadas na mesa.

— Compreende as conseqüências que naturalmente advirão dessa atitude? — inquiriu ameaçadoramente. — Os fatos que conheço, comprometendo-a no caso, unidos a essa recusa de dar qualquer esclarecimento, são motivos mais que suficientes para ordenar a sua detenção.

Eu olhava atentamente para ela, enquanto o Promotor falava' e pareceu-me ver que suas pálpebras tremeram levemente. Mas nenhum outro sinal deu de comoção. Encarou o Promotor com ar de desafio irônico.

Markham, de boca contraída, voltou-se à procura do botão da campainha da mesa; mas seu olhar caiu sobre Vance, e deteve-se indeciso. Correspondera ao seu um olhar severo, em que leu não somente o espanto, mas que lhe dizia também, e com mais eloqüência do que o diriam palavras, que estava a ponto de cometer uma tolice irreparável.

Por alguns momentos reinou na sala silêncio profundo. Então, Miss St. Clair, com a maior tranqüilidade, abriu o estojo e empoou o nariz. Quando acabou, olhou serenamente para o Promotor.

— Quer-me prender agora?

Markham refletia. Em vez de responder imediatamente, foi até à janela e ficou a olhar para a Ponte dos Suspiros, que liga a Corte Criminal à Torre do Tombo.

— Não, hoje não, — disse lentamente.

Deteve-se de novo em absorta contemplação; depois, como se sacudisse para longe a irresolução, voltou-se rapidamente e encarou-a de frente.

— Não vou prendê-la hoje, ainda, — reiterou com alguma aspereza. — Mas dou-lhe ordem de ficar em Nova York por agora. E, se a senhora tentar sair da cidade, então será presa. Creio que me entende.

Apertou um botão, e entrou o secretário.

— Swacker, faça o favor de acompanhar Miss St. Clair até lá embaixo e chamar um táxi para ela... E a senhora pode voltar para casa.

Ergueu-se a moça e cumprimentou-o levemente.

— Foi muito amável, senhor, emprestando-me minha piteira, — disse alegremente, depondo a boquilha na mesa.

E, sem mais palavra, saiu da sala.

Mal se fechara a porta, Markham tocou num botão. Logo se abriu a porta, que dava para o outro corredor, e entrou um homem de meia-idade, de cabeleira branca.

— Ben, — ordenou Markham rapidamente, — siga a mulher que Swacker vai conduzindo para a saída. Conserve-a debaixo de vigilância, e não a deixe escapar. Ela não pode sair da cidade, compreende? É Miss St. Clair, que Tracy desencavou.

Depois que o homem saiu, Markham voltou-se para Vance e encarou-o fixamente.

— Então! Que pensa você agora da sua inocente jovem? — perguntou com ar de triunfo marcial.

— É linda! — replicou Vance suavemente. — E que extraordinário domínio de si própria! E vai casar com um militar, não é? Ora! De gustibus... Houve um momento, Markham, em que temi que você pedisse as algemas ali mesmo. E, se o tivesse feito, velho amigo, havia de lamentá-lo toda a vida.

Markham olhou para o amigo por alguns segundos. Compreendia que a certeza de Vance se fundava em alguma coisa que um simples capricho, e foi isso que lhe deteve a mão, quando já ia prender a jovem. Contudo, observou:

— A atitude dela não levaria ninguém a acreditar na sua inocência; representou seu papel com diabólica habilidade, mas isso é o que faria qualquer mulher astuta, que se sentisse culpada.

— E você não notou que pouco se lhe dava que a julgasse culpada ou não? — Que ficou até um pouco desapontada quando viu que a deixava ir?

— Não vi nada disso, — retrucou o Promotor. Culpado ou não, Vance, ninguém quer ser preso...

— E, a propósito, — perguntou Vance, — onde estava o felizardo noivo, à hora em que Alvino morria?

— Pensa então que não examinamos esse ponto? — respondeu o outro desdenhosamente. — O capitão Leacock recolheu-se à casa, naquela noite, às oito horas.

— Sim? — retrucou Vance, indiferente. — Um rapaz modelo, esse camarada!

Markham tornou a encará-lo com olhar penetrante. Depois murmurou pensativo:

— Gostaria de saber que sábia teoria se agita hoje em seu cérebro. Agora, que deixei a moça em liberdade provisória — que é o que você queria — contra meu próprio julgamento, diga-me francamente: o que tem você aí escondido na manga?

— Escondido na manga? Eu?... Que metáfora desenxabida! Quem o ouvisse pensaria que sou algum prestidigitador!

Quando Vance desconversava assim, sabia-o Markham, era que não queria responder diretamente. Mudou, pois, de assunto.

— E você afinal não teve o prazer de presenciar minha humilhação, como profetizou.

Vance encarou-o com simulada surpresa.

— Não vi? Ora esta! Depois acrescentou, pesaroso:

— A vida é tão cheia de desapontamentos...


VIII

 

VANCE ACEITA UM REPTO

 


(Sábado, 15 de junho — 4 da tarde)

 


Depois que Markham telefonou a Heath, dando-lhe conta da entrevista, voltando ao Club Stuyvesant. Era costume do Promotor sair do gabinete aos sábados, à uma hora; mas ligara tal importância à visita de Miss St. Clair, que prolongara hoje o expediente. Mergulhado em profunda meditação, só falou quando nos sentamos no salão do Clube. Estava aborrecido.

— Puxa! Não devia tê-la deixado ir-se... Tenho a intuição de que é culpada.

— Oh! Realmente? Você é muito psicólogo! E tem-no sido a vida inteira, sem dúvida. Nunca notou que seus sonhos sempre se realizam? E não lhe tem acontecido também muitas vezes chamá-lo ao telefone justamente a pessoa em quem você estava pensando naquele momento? Um dom admirável! Lê também nas linhas da mão?... Por que não fez o horóscopo da dama?

— Até agora; — retorquiu Markham, — não tenho prova alguma de que a sua crença na inocência dela se baseia em coisa mais sólida do que as suas impressões.

— Ah! Mas, no entanto, eu sei que ela é inocente. E sei mais: nenhuma mulher poderia ter desfechado aquele tiro.

— Não alimente a idéia errônea de que uma mulher não pode manejar um Colt militar 45.

— Ora! — disse Vance, encolhendo os ombros à observação. — Os indícios materiais do crime não entram em meus cálculos — deixo-os a vocês, advogados, e aos que possuem deltóides salientes. Tenho outros, e mais seguros meios, para chegar às conclusões. Eis aí por que eu lhe disse que, se você prendesse qualquer mulher supondo-a a assassina de Benson, cometeria um erro vergonhoso.

Markham resmungou, indignado:

— Parece que você repeliu todos os processos de dedução, pelos quais se pode alcançar a verdade... Renunciaria, por acaso, inteiramente, a acreditar nas faculdades do espírito humano?

— Ah! Fala a voz do grande povo de Deus! — exclamou Vance. — Seu espírito é muito simbólico, Markham. Ele parte do princípio de que o que você ignora não é conhecimento, e que desde que você não compreende uma coisa, não há explicação para ela. Um ponto de vista muito cômodo... Liberta de toda a preocupação e incerteza. Não acha, Markham, que o mundo é um lugar agradável e cheio de maravilhas?

Markham resolveu aceitar tudo com paciência.

— Ao almoço falou você de um método infalível para descobrir os crimes. Quereria confiar esse profundo e inestimável segredo a um simples promotor?

Vance fez-lhe uma cortesia exagerada (*).

(*) A seguinte conversação, em que Vance explana seu método psicológico de análise criminal, é reproduzida, naturalmente, de memória. Contudo, foi-lhe remetido um exemplar dela, com o pedido de revisá-la e alterá-la no que fosse necessário: de modo que, tal como sai agora publicada, descreve a teoria de Vance, usando, praticamente, suas próprias palavras.


— Com muito prazer. — respondeu ele. — Referia-me ao conhecimento do caráter individual, à psicologia da natureza humana. Todos nós agimos de acordo com o nosso temperamento. Todo ato humano — importante ou trivial, pouco importa — é uma expressão direta da personalidade, e traz o cunho inevitável da sua natureza. Assim, um musicista, diante de uma página de música, pode dizer imediatamente se foi composta por exemplo por Beethoven, Schubert, Debussy ou Chopin. E um pintor, ao olhar para uma tela, conhece logo se é um Corot, um Harpignies, um Rembrandt, ou um Franz Hals. E assim como dois rostos não são exatamente iguais, duas naturezas também não podem ser; a combinação dos elementos que formam a nossa personalidade varia de indivíduo para indivíduo. E é por essa razão que, quando vinte artistas pintam o mesmo assunto, cada um o concebe e executa de maneira diferente. Cada quadro é uma expressão distinta, inconfundível, da personalidade do pintor... Não é tão simples?

— Sua teoria, — respondeu Markham com ironia indulgente, — seria compreensível, sem dúvida, para um artista. Mas confesso que meu vulgar espírito fica muito aquém do seu refinamento metafísico.

— É que o espírito que já se orientou no erro, despreza o caminho mais nobre, — murmurou Vance, suspirando.

— Há alguma diferença entre a arte e o crime...

— Não há nenhuma, psicologicamente, velho amigo. O crime assenta sobre os mesmos fatores de uma obra de arte — concepção, técnica, imaginação, iniciativa e organização. Além disso os crimes variam tanto em suas particularidades, aspectos e natureza, como as obras de arte. Na verdade, um crime planejado cuidadosamente denuncia, tanto como um quadro, a expressão individual do seu autor. E isso é que permite e facilita a pesquisa. Do mesmo modo que um perito de arte, analisando um quadro, pode dizer quem o pintou, ou chega a conhecer a personalidade e o temperamento do pintor, o perito psicólogo analisa um crime e sabe quem o cometeu, se o conhece, ou, no caso contrário, pode descrever com precisão quase matemática a natureza e o caráter do criminoso... E é este, meu caro Markham, o único meio seguro e inevitável de determinar a culpabilidade humana; todos os outros não passam de conjeturas que não se baseiam na ciência, e são incertos e perigosos.

Vance falara quase distraído; não obstante, a grande serenidade e segurança de sua atitude conferia às suas palavras um cunho de autoridade. Markham ouvira-o com interesse, apesar de não lhe levar a sério as teorias.

— Seu sistema, — objetou ele, — despreza de todo os motivos.

— Naturalmente, — replicou Vance, — porque esse fator não tem importância na maioria dos crimes. Cada um de né«. meu caro, tem uma porção de motivos para matar pelo menos alguns homens — os mesmos motivos que são invocados em noventa e nove por cento dos crimes cometidos. E, sempre que aparece um homem assassinado, ficam dúzias de pessoas inocentes, que, no entanto, tinham motivo igualmente poderoso para fazerem o que fez o assassino. Mas o que é certo é que o fato de ter um motivo para fazê-lo não prova, em hipótese alguma, que um homem é culpado — e tais motivos são tão universais como a rac,a humana. Suspeitar que um homem é assassino porque ele tinha um motivo para matar o outro, é o mesmo que suspeitar de que outro tenha fugido com a mulher do vizinho, porque ele tem pernas. A razão por que algumas pessoas matam e outras não, é assunto de temperamento — de psicologia individual. Tudo vem a dar no mesmo... E outra coisa: quando uma pessoa possui um motivo — um poderoso e tremendo motivo — ela pode conservá-lo oculto; pode até dissimulá-lo durante anos de preparação. E o motivo também pode surgir cinco minutos antes do crime, diante da descoberta inesperada de fatos passados há dez anos... Assim, vê você que a ausência de um motivo aparente em um crime, pode ser considerada mais comprometedora do que a presença dele.

— Vejo que vai ser difícil para você eliminar a idéia de cui bono na observação de um crime.

— Digo até que a idéia do cui bono é muito tola, para merecer discussão. Ainda assim, há mortes que aproveitariam a muita gente. Mate Sumner, e, com essa teoria, poderia prender todos os membros da Liga dos Autores.

— Em todo caso, a ocasião é um fator insuperável — e por ocasião entendo certas afinidades de circunstâncias e condições que tornam determinado crime, possível, plausível e útil para determinada pessoa.

— Outro fator sem importância, — asseverou Vance. — Pense nas ocasiões que temos diariamente para matar pessoas que detestamos! Ainda ontem, eu tive à minha mesa dez sujeitos aborrecidos — um dever social. Mal contive — à custa de grande esforço, confesso — o desejo de deitar arsênico no vinho. E isso porque pertenço a uma categoria psicológica diferente da dos Bórgias, só por isso. Ora, se eu estivesse resolvido a matá-los, teria procurado, como aqueles cinquecento patrícios, a oportunidade... E aí é que está a dificuldade — um indivíduo pode fazer a ocasião, ou dissimulá-la, se a tem, com falsos álibis e vários outros ardis. Lembre-se do caso do assassino que chamou a polícia, pedindo-lhe que entrasse em casa da vítima, antes que fosse cometido um crime ali, pois desconfiava disso, e depois entrou adiante e apunhalou o homem enquanto os guardas subiam a escada (*).

(*) Não sei a que caso se referia Vance, mas há muitos exemplos deste ardil no arquivo, e escritores de ficção policial têm aproveitado muitas vezes a idéia. O último exemplo encontra-se no livro Inocência do Tio Brown, de G. K. Chesterton, na história intitulada "O Falso Modelo".


— A presença ou proximidade — também não constitui prova o fato de a pessoa estar no teatro do crime no momento em que esse foi consumado?

— Ainda um erro. A presença de um inocente é muita vez aproveitada como um escudo pelo verdadeiro assassino, que se oculta. Um indivíduo ardiloso pode cometer um crime a distância, servindo-se da presença de um agente. Também pode obter um álibi, e depois ir ao teatro do crime, disfarçado e irreconhecível... Há muitos meios de estar presente, quando todos o supõem longe, e vice-versa... Mas o que não podemos jamais despir é a nossa própria personalidade e natureza. E é por isso que todo crime vai incidir inevitavelmente na psicologia humana — base fixa, indisfarçável, da dedução.

— O que me admira é que, em vista de suas teorias, não proponha você a demissão de nove décimos da força da polícia, e a instalação de uma ou duas daquelas grandes máquinas psicológicas de que os suplementos dominicais tanto gostam.

Vance fumava, pensativo.

— Já li alguma coisa a respeito. É um brinquedo interessante. Elas podem indicar, sem dúvida, certo aumento de força emocional, quando o paciente desvia a atenção das piedosas vulgaridades do Dr. Frank Craner para um problema de trigonometria esférica; mas se ligarem a um inocente os vários tubos galvanômetros, eletroímãs, placas de vidro e botões de cobre de um aparelho desses, e o interrogarem sobre algum crime recente, a agulha reveladora saltará como unia dançarina russa, impelida pelo terror nervoso do paciente.

Sorriu Markham com ar superior.

— Oh! Ao contrário, — respondeu Vance serenamente. — Ela girará do mesmo modo, mas não porque ele seja culpado. Se for um imbecil, a agulha saltará à direita e à esquerda, porque ao paciente repugna esse moderno instrumento de tortura. E, se for inteligente, girará ainda, excitada pelo cuidado dele em dissimular o divertimento que lhe causa a puerilidade de espírito da justiça, que confia em tais tolices.

— Você me comove profundamente. Sinto a cabeça andar à roda, como uma turbina... Mas há ainda muita gente que acredita que a criminalidade provém de um defeito do cérebro.

— É verdade, — acudiu prontamente Vance. — Mas é que infelizmente toda a raça humana possui esse defeito. Virtuoso é o que não tem, por assim dizer, a coragem de mostrar seus defeitos... Entretanto, se você quer falar do tipo do criminoso, então não nos podemos entender. Foi Lombroso, o predileto das revistas científicas de capa amarela, quem forjou a idéia do criminoso nato... Cientistas autênticos, como Du Bois, Karl Pearson e Goring, têm rebatido essas teorias idiotas e cheias de falhas (*).

(*) Pearson e Goring, há mais de vinte anos, fizeram uma investigação detalhada e catalogação dos criminosos profissionais da Inglaterra, e chegaram a demonstrar: 1) que a carreira criminosa começa as mais das vezes entre os 16 e os 21 anos; 2) que noventa por cento dos criminosos eram mentalmente normais; 3) que a maioria dos delinqüentes não são filhos, mas irmãos mais novos de criminosos.


— Sua erudição me derrota, — declarou Markham, chamando um garçom e pedindo outro charuto. — Consola-me, contudo, a certeza de que, por via de regra, o crime vem à tona.

Vance fumou ainda algum tempo em silêncio, contemplando pensativo, pela janela aberta, o nublado céu de junho. Depois explicou:

— É assombrosa, Markham, a quantidade de idéias absurdas que existem, acerca de criminosos. Não posso compreender como uma pessoa sensata pode acreditar na velha superstição de que "o crime vem à tona". Ele raramente "vem", meu caro; e, se tem de vir, para que um Departamento de Homicídios? Por que toda essa atividade vertiginosa da polícia, quando se descobre um cadáver?... Os poetas são responsáveis por essa mania. Foi Chaucer, provavelmente, quem a inaugurou, com o seu "O crime vem à tona", e Shakespeare a levou mais longe, atribuindo ao crime um órgão miraculoso, que fala como se fosse uma língua. E foi também algum poeta, sem dúvida, que concebeu a idéia de que o esqueleto sangra à vista do assassino... E você, como o Grande Protetor dos Crentes, ousaria dizer à polícia que espere tranqüila nos seus gabinetes, ou nos seus clubes, ou nos seus camarins favoritos — onde quer, enfim, que esteja de serviço, — até que o crime venha à tona? Pobre amigo! Se você fizesse isso, logo pediriam ao Governo a sua prisão como particeps criminis, ou requereriam que o internassem num hospício, como lunatico inquirendo (*).

(*) Muitos anos depois, Sir Basil Thompson, ex-Comissário Assistente da Polícia de Londres, escrevia no Saturday Evening Post: "Tome, por exemplo, o provérbio que "o crime vem à tona", que é empregado todas as vezes que um dos milhares de criminosos impunes é apanhado, por uma feliz coincidência, o que impressiona a imaginação popular. E é porque o crime não vem à tona, que todos se alegram quando isso acontece, e invocam um provérbio para patrocinar o fenômeno. O envenenador que cai nas mãos da justiça quase sempre já tinha cometido outros crimes sem despertar suspeitas, até que um dia se deixou apanhar, por algum descuido".


Markham resmungou apenas. Estava muito ocupado, cortando a ponta do charuto e acendendo-o.

— Creio que os homens da polícia têm outra superstição a respeito do crime, — continuou Vance. — e é que o criminoso volta ao lugar onde o cometeu. Esta noção é mesmo explicada por algum recôndito e místico fundo psicológico. Mas, eu posso afirmar-lhe que a psicologia não ensina esta absurda doutrina. Se alguma vez o assassino voltar a ver o corpo de sua vítima, por qualquer outro motivo que não seja retificar alguma falha que tenha deixado, então ele é digno de ser encerrado num manicômio... E quão fácil seria para a polícia apanhar os criminosos, se esta fosse a realidade! Bastava-lhe sentar-se comodamente ao pé do morto jogando para passar o tempo, até que o assassino voltasse, para escoltá-lo até à bastilha, não? O verdadeiro instinto psicológico de quem comete um crime leva-o, pelo contrário, a afastar-se até onde lhe seja possível, para fugir ao castigo (**).

(**) Sir Basil Thompson sustenta este ponto de vista em "Enganos populares sobre o crime" {Saturday Evening Post, 21 de abril de 1923).


— No caso presente, porém, — lembrou Markham, — não estamos esperando inativos que o crime "venha à tona", nem nos aboletamos na sala de Benson, à espera de que o criminoso volte ali.

— No entanto qualquer desses caminhos levá-los-ia ao mesmo insucesso que esse que escolheram.

— Como não sou dotado da sua singular introspecção, apenas posso seguir os ineficazes processos do raciocínio humano.

— Sem dúvida, — comentou Vance, condoído. — E os resultados que a sua atividade obteve até agora me forçam à conclusão de que um homem armado de um punhado de lógica jurídica pode resistir com sucesso aos mais obstinados e heróicos assaltos do senso comum.

Markham estava estimulado.

— Ainda a mesma cantiga da inocência de Miss St. Clair, não é? Contudo, em vista da ausência completa de provas tangíveis que apontem qualquer outro rumo, você deve reconhecer que não me fica caminho a escolher.

— Eu não reconheço nada disso, porque sei que há abundantes provas que apontam para outro rumo: o que acontece é que você não as vê.

— Acha? — retrucou Markham, já abalada a sua serenidade pela despreocupada segurança de Vance. — Pois, meu velho amigo, sinto profunda repulsa por todas as suas belas teorias; e desafio-o a que apresente uma simples peça dessa evidência que sabe existir.

Falara com aspereza, e acompanhara as últimas palavras com um gesto agressivo da mão estendida, que indicava julgar esgotado o assunto.

Pareceu-me que Vance também se tinha azedado um tanto.

— Markham, velho amigo, você bem sabe que eu não sou o vingador do sangue derramado, nem o defensor da honra da sociedade. É um papel fatigante.

Markham sorriu afàvelmente, mas não.replicou. Vance fumou em meditativo silêncio por algum tempo, depois, com grande surpresa para mim, voltou-se sereno para Markham, e disse-lhe tranqüilamente:

— Aceito seu repto. É uma coisa contrária a meus gostos; mas o problema me seduz: apresenta as mesmas dificuldades do caso do Concerto Campestre — uma questão de disputa de autoria (*).

(*) Durante alguns anos, o famoso Concerto Campestre do Louvre foi oficialmente atribuído a Ticiano. Vance, porém, tomou a peito convencer o diretor, Sr. Lepelletier, de que era um Giorgione; e o quadro foi reconhecido como deste artista.


Markham, que ia levar o charuto aos lábios, suspendeu o gesto bruscamente. Mal ouvira o repto, na sua expressão literal: Vance o pronunciara mais como um desafio verbal. E agora, na incerteza, perscrutava o rosto do amigo. Como pudera adivinhar que o seu repto inconsiderado, e lançado meio a sério, meio a gracejar, ia alterar por completo a história criminal de Nova York?

— E como pretende você proceder?

— Sou como Napoleão, — disse Vance com um gesto descuidado: Je m’engage, et puis je vois. Entretanto, quero que você me prometa todo o apoio de que carecer... e que refreará suas observações jurídicas.

Markham contraiu os lábios. Espantara-o a maneira inesperada por que Vance lhe aceitara o desafio; mas sorriu afavelmente, como se lhe parecesse, afinal, que não adviriam conseqüências muito sérias.

— Pois bem, — anuiu ele. — Dou-lhe a minha palavra... Vance, depois de acender outro cigarro, ergueu-se, preguiçosamente.

— Primeiro, vou determinar a estatura exata do criminoso. Isto constituirá uma prova indicatória demonstrativa, não é?

Markham encarou-o, incrédulo.

— Mas como o conseguirá?

— Valendo-me daqueles primitivos métodos dedutivos, que lhe merecem tão tocante confiança. Mas venha: voltemos ao teatro do crime.

Markham, irritado e perplexo, seguiu-o de má vontade, protestando:

— Mas você sabe que já retiraram o corpo; a esta hora tudo na casa deve ter sido posto em ordem.

— Melhor! — murmurou Vance. — Não sou particularmente afeiçoado à vista de cadáveres; e detesto a falta de ordem.

Quando entramos na Avenida Madison, ele chamou um táxi, e, sem uma palavra, nos fez subir.

— Isto é um disparate, — declarava Markham de mau humor, quando íamos a caminho. — Que espera você encontrar agora para guiá-lo? A esta hora tudo foi já obliterado.

— Ah! Meu caro Markham, — disse Vance, com fingida solicitude. — Que falta lhe faz a teoria filosófica! Se qualquer coisa, por mais pequenina que fosse, pudesse ser realmente obliterada, o universo deixaria de existir — estaria resolvido o problema cósmico e o Criador escreveria o C. Q. D. no firmamento vazio. A única probabilidade que temos de continuar nesta ilusão chamada Vida reside no fato de que o conhecimento é como uma decimal periódica. Nunca tentou, quando era criança, completar a decimal um terço, enchendo uma folha de papel inteira com o número três? Sempre lhe ficava a fração um terço. Se você pudesse eliminar o mais pequenino terço, depois de alinhar dez mil três, estaria resolvido o problema. Assim é a vida, meu caro. É unicamente porque nada podemos apagar, que continuamos vivendo.

Calou-se, fazendo um gesto com os dedos, como se fora uma espécie de ponto tangível em suas observações, e ficou a olhar sonhadoramente, pela janela aberta, para o céu azul.

Markham encolhera-se a um canto, mastigando morosamente o charuto. Percebia-se claramente que o dominava uma irritação importante, arrependido de ter lançado o desafio; mas era tarde para retroceder. Mais tarde confessou-me que nesse momento tinha a impressão de que fora arrancado a uma cômoda poltrona, para obedecer aos propósitos ridículos de um doido.


IX

 

A ESTATURA DO ASSASSINO

 


(Sábado, 15 de junho — 5 da tarde)

 


Quando chegamos à casa de Benson, um guarda sonolento, que se recostava na grade do pátio, veio ao nosso encontro. Olhou para mim e para Vance cheio de esperança, supondo-nos suspeitos, levados à casa do morto para um interrogatório. Recebeu-nos um investigador que já estivera ali na manhã do crime. Markham cumprimentou-o e indagou:

— Tudo vai bem?

— Sim, senhor, — replicou o homem amàvelmente. — A velha dama é dócil como um gatinho e uma soberba cozinheira.

— Deixe-nos a sós por agora, Sniffin, — disse Markham, ao entrar na sala.

— O nome do gastrônomo é Snitkin e não Sniffin, — corrigiu Vance depois que este saiu.

— Admirável memória! — murmurou Markham rudemente.

— Um defeito meu, — disse Vance. — Creio que você é uma dessas pessoas que nunca esquecem um rosto, mas não podem lembrar os nomes, não é?

Mas Markham não estava com disposição para gracejos.

— E agora, que me trouxe aqui, que pretende fazer? — perguntou, agitando a mão e sentando-se.

O salão estava como o víramos da primeira vez, mas tudo fora posto em ordem. As cortinas estavam erguidas e a luz da

tarde entrava em profusão, dando mais relevo aos ornatos do mobiliário.

Vance olhou ao redor e estremeceu.

— Estou meio inclinado a dar volta, — balbuciou. — Foi um caso claríssimo, de homicídio justificável, praticado por um decorador de interior indignado.

— Meu caro esteta, — declarou Markham, impaciente, — tenha a bondade de recalcar agora seus preconceitos artísticos, e tratar do problema... Mas se você receia o resultado, — acrescentou com um sorriso malicioso, — ainda é tempo de se retirar, salvando assim suas sedutoras teorias, ainda intactas.

— E permitindo que você mande uma moça inocente para a cadeira elétrica! — exclamou Vance, fingindo-se indignado. É só o cavalheirismo que me impede a retirada. Oxalá nunca tenha eu de lamentar, como o príncipe Henrique, uma negligência na galanteria!

Markham cerrou os dentes e lançou a Vance um olhar feroz.

— Começo a crer agora que há alguma coisa de verdade na sua teoria de que cada homem tem algum motivo para assassinar outro...

— Bem, — replicou Vance alegremente, — agora que começa a pensar como eu, permite que eu mande o Sr. Snitkin dar um recado?

Markham suspirou e encolheu os ombros.

— Fumarei durante a ópera bufa, se isso não prejudicar a representação...

Vance foi até à porta e chamou Snitkin.

— Faça-me o favor de pedir à Sra. Platz que me empreste uma fita métrica e um novelo de barbante; o Promotor precisa disso, — acrescentou, fazendo uma reverência para o lado de Markham.

— Não creio que você pretenda se enforcar, pois não? — perguntou este.

Vance olhou-o com ar de censura e depois disse suavemente: — Permita-me que lhe recomende o Otelo:


"Quão miseráveis são os que não têm paciência! "Que ferida jamais sarou, senão aos poucos?"

 

ou — descendo de um poeta para um espírito vulgar — deixe-me apresentar à sua consideração um pentâmetro de Longfellow: "Todas as coisas vêm às mãos do que sabe esperar". Falso, sem dúvida, mas consolador. Melhor o disse Milton no seu: "Também servem..." Mas Cervantes o exprimiu ainda melhor: "Paciência e baralha as cartas". Conselho sadio, Markham, e expresso livremente, como deve ser um bom conselho. Acredite, a paciência é uma espécie de último recurso — uma prática a adotar quando já nada há a fazer. Ainda assim, como virtude ela às vezes recompensa o que a pratica, embora eu admita que, ela seja por via de regra — outra vez como virtude — inútil. Quer dizer, é a sua própria recompensa. Entretanto, tem sido enfarpelada com vários trajos verbais: "escrava da tristeza" e "soberana sobre os maus regenerados"; "paixão dos grandes corações". Rousseau escreveu: A paciência é amarga, mas seu fruto é doce. Mas talvez seu espírito jurídico se incline para o latim: Superanda omnis fortuna ferendo est, segundo Virgílio. E Horácio também falou no tema: Durum! disse ele, sed levius fit patientia...”

— Por que não virá o diabo do Snitkin? — rosnou Markham.

Quase no mesmo instante abriu-se a porta e o investigador ·entregou a fita métrica e o barbante a Vance.

— E agora, Markham, a sua recompensa!

Inclinando-se sobre o tapete, arrastou a grande poltrona de vime para a posição exata em que estava quando Benson foi alvejado. Era fácil determiná-la, pelas impressões dos rodízios da cadeira sobre a felpa escura do tapete. Passou o barbante através do orifício que a bala deixara no espaldar, e pediu-me que segurasse a ponta, assentando-a no lugar onde a bala batera no madeiramento. Tomou então a fita métrica e, estendendo o barbante através do orifício, mediu a distância de cinco pés e seis polegadas de comprimento, fitando o ponto que correspondia ao lugar da cabeça de Benson, quando ele estava sentado na cadeira. Deu um nó no barbante, para indicar a medida, e esticou-o, estendendo-o numa linha reta desde a marca no painel, passando pelo orifício da cadeira, até ao ponto de cinco pés e seis polegadas em frente ao lugar onde repousara a cabeça de Benson.

— Este nó no cordão, — explicou ele, — representa o lugar exato do cano da arma que tirou a vida a Benson. Acompanha o raciocínio, não é? Tendo dois pontos da trajetória da bala — o furo na cadeira e o sinal no painel — e conhecendo também aproximadamente a vertical da detonação, que foi entre cinco e seis pés distante do crânio do homem bastava prolongar a reta da trajetória da bala até à vertical de detonação para determinar o ponto exato de onde fora disparado o tiro.

— Em teoria está muito bem, — comentou Markham; se bem que eu não veja vantagem de você se dar tanto trabalho para determinar um ponto no espaço... Isso carece de importância, porque você se esqueceu da possibilidade de um desvio da bala.

— Desculpe-me contradizê-lo, — disse Vance sorrindo. — mas ontem de manhã interroguei o capitão Hagedorn e soube que não houve nenhum desvio da bala... Hagedorn examinara a ferida antes de chegarmos, e estava bem certo do que afirmava. Em primeiro lugar, a bala bateu no frontal com um ângulo tal, que tornaria praticamente impossível qualquer desvio, mesmo que se tratasse de uma arma de menor calibre. Em segundo lugar, a pistola com que mataram Benson era de calibre tão grande — um 45 — e a velocidade inicial foi tanta, que a bala teria descrito uma reta, ainda que fosse disparada a maior distância do rosto do homem.

— Mas Hagedorn sabia qual a velocidade inicial? — perguntou ainda Markham.

— Perguntei-lhe e ele me explicou que o tamanho e a característica da bala e o cartucho expelido lhe revelaram tudo. Foi como ele soube que era uma Colt automática — creio que ele chamou-a "Colt oficial" e não uma Colt comum. O peso das balas dessas duas pistolas difere levemente: a da Colt comum pesa 200 gramas, enquanto que a da pistola militar pesa 250. Hagedorn, com um tato hipersensível, pôde, creio eu, perceber logo a diferença, muito embora eu não o acompanhe nos seus dons fisiológicos — minha natureza limitada, você sabe... Entretanto, ele pôde dizer que era uma bala de pistola Colt automática regulamentar, 45. Sabendo isso, sabia que a velocidade inicial era de 809 pés, e que a força do choque era de 329 pés — o que dá uma penetração de seis polegadas no pinho branco a uma distância de vinte e cinco jardas... Criatura admirável, este Hagedorn! Imagine você, ter a cabeça cheia desses extraordinários conhecimentos! Os velhos mistérios — por que um homem escolhe o violoncelo como meio de vida, ou aonde vão parar todos os alfinetes — são um brinquedo de criança, comparados a este — porque um ser humano devota anos de vida às idiossincrasias das balas.

— O assunto não é o que se pode chamar atraente, — disse Markham, aborrecido. — Assim, para argumentar, suponhamos que você achou o ponto preciso da detonação da arma. Aonde vamos chegar com isso?

— Enquanto eu seguro o cordão esticado, queira você medir a distância exata do nó ao soalho. Depois meu segredo será desvendado.

— Este jogo não me tenta, — protestou Markham. — Prefiro de muito a "locomotiva".

Contudo, tirou a medida.

— Quatro pés e oito polegadas e meia, — disse com indiferença.

Vance colocou um cigarro no tapete, no ponto que ficava diretamente debaixo do nó.

— Sabemos agora a altura exata em que a pistola estava erguida, ao deflagar... Você já apanhou o processo pelo qual cheguei a esta conclusão, não?

— Parece-me evidente.

Vance foi outra vez até à porta e tornou a chamar Snitkin.

— O Promotor deseja que lhe empreste sua arma por um momento. Quer fazer uma experiência.

Snitkin entregou a arma a Markham, não sem surpresa, dizendo-lhe:

— Está travado. Quer que destrave?

Markham ia recusar a pistola, quando Vance se interpôs:

— Está bem assim. O Sr. Markham não pretende atirar — espero-o...

Quando o homem saiu, Vance sentou-se na cadeira de vime, e pôs a cabeça bem em frente ao orifício da bala.

— Agora, Markham, queira ficar de pé no lugar onde o assassino parou, e erga a arma bem acima do cigarro que está no chão; depois mire deliberadamente minha têmpora esquerda... Tome cuidado, — continuou, com um sorriso encorajador, — não puxe o gatilho, senão jamais saberá quem matou Benson...

Markham executou tudo, ainda que contra a vontade. Quando estava apontando, Vance pediu-me que medisse a distância do cano da arma ao chão.

Era de quatro pés e nove polegadas.

— É exatamente isso, — disse Vance, erguendo-se. — Já vê, Markham, você tem cinco pés e onze polegadas; logo, a pessoa que matou Benson era mais ou menos da sua altura — com certeza não tinha menos de cinco pés e dez... Isso também é evidente, não?

A demonstração fora tão simples e clara, que Markham estava francamente impressionado; ficara sério, e olhou um momento para Vance, ainda carrancudo.

 

 

 

— Está bem; mas a pessoa que deu o tiro pode ter erguido a pistola mais alto do que eu.

— Não é possível, — retrucou Vance. — Fiz muito exercício de tiro para saber que quando um perito mira deliberadamente um alvo pequeno, mantém firme a arma e sobre uma reta entre seu olho e o objeto visado. A altura a que ergue a arma, em tais condições, determina acuradamente sua própria estatura.

— Esse argumento baseia-se na hipótese de que a pessoa que matou Benson era um perito e apontava deliberadamente um alvo pequeno.

— Não é uma hipótese, mas um fato, — declarou Vance. — Se a pessoa em questão não fosse um atirador exímio, não poderia — a uma distância de cinco ou seis pés ter escolhido a fronte, mas um alvo mais vasto — o peito, por exemplo. Escolhendo a fronte, é certo que visou deliberadamente, não? Além disso, se não fosse perito, e tivesse apontado para o peito, sem alvejar deliberadamente, teria disparado mais de um tiro, provavelmente.

Markham refletia.

— Concordo em que, em face disso, sua teoria parece plausível. O criminoso podia ter mais ou menos cinco pés e dez de altura; mas também podia abaixar-se e escolher depois o alvo.

— É verdade. Mas você esquece que a posição do assassino, neste caso, era perfeitamente natural? A não ser assim, teria atraído a atenção de Benson, que não seria apanhado desprevenido. E que foi apanhado desprevenido prova-o sua postura. Sem dúvida, o assassino podia ter parado um momento a poucos passos sem que Benson olhasse para cima... Deixe-me dizer-lhe, contudo, que a estatura do homem regula entre cinco pés e dez polegadas e seis pés e duas polegadas... Isso não lhe recorda nada?

Markham ficou calado.

— A deliciosa Miss St. Clair, — observou Vance com um sorriso escarninho, — não pode ter mais de cinco pés e cinco, ou quando muito seis pés.

Markham resmungou, mas continuou a fumar, abstrato.

— O capitão Leacock, aposto que tem mais de seis pés, não? Markham pestanejou.

— De onde lhe veio essa idéia?

— Você mesmo me disse. Não se lembra?

— Eu lhe disse?

— Não com as mesmas palavras, mas depois que eu mostrei a altura aproximada do assassino, e demonstrei que ela não correspondia de modo algum à da senhora que você suspeitava, vi que seu espírito ativo buscava outra orientação. E como o inamorato era a única orientação possível, concluí que você deixava que seus pensamentos vagassem ao redor dele. Se ele tivesse a estatura estipulada, você nada diria, mas quando argumentou que o assassino podia ter-se abaixado para atirar, lembrei-me de que o capitão era anormalmente alto... Assim, durante o seu fértil silêncio, meu amigo, seu espírito manteve-se em doce comunhão com o meu, e disseme que o cavalheiro não tinha menos de seis pés de altura.

— Vejo que também possui o dom de ler o pensamento... Agora fico à espera de vê-lo adivinhar o que escrevo.

Falava em tom irritado, mas era apenas porque lhe custava admitir a alteração de suas opiniões. Cedia aos poucos, ia-se submetendo ao domínio de Vance, mas ainda se apegava obstinadamente às primitivas convicções.

— Espero que você não refutará minha demonstração da estatura do assassino? — indagou Vance, com voz melíflua.

— De modo algum. Parece-me plausível... Mas o que me admira é que Hagedorn não tivesse descoberto uma coisa tão simples.

— Disse Anaxágoras que quem precisasse de uma lâmpada, devia enchê-la de azeite. Observação profunda, Markham, daquelas que parecem simples gracejo, e que no entanto contêm uma grande verdade. Uma lâmpada sem óleo é inútil... A polícia tem sempre grande quantidade de lâmpadas — todas as variedades, de fato — mas não tem azeite. Aí está por que não encontra nunca os culpados, a menos que não seja à luz do dia.

Já o espírito de Markham seguia outra direção; ele se ergueu e começou a passear pelo salão.

— Até agora não me passara, pela cabeça que o capitão Leacock pudesse ser o criminoso.

— Por que não lhe passara pela cabeça? Porque um de seus investigadores lhe disse que estava em casa, naquela noite, como um rapaz modelo?

— Creio que sim, — respondeu Markham, continuando a passear pensativamente. Depois, parando de repente, acrescentou:

— Não, não foi isso. Foi a quantidade de provas circunstanciais contra aquela Miss St. Clair... E note, Vance, a despeito da demonstração que acaba de fazer, você não destruiu nenhuma dessas provas. Onde estava ela entre meia-noite e uma hora? Por que foi jantar com Benson? Como vieram parar aqui suas luvas e sua bolsa? E como foram encontradas no fogão pontas de cigarro iguais aos seus? Elas formam o obstáculo, essas pontas de cigarro; e sua demonstração não me convence inteiramente — a despeito do fato de que ela é convincente.

— Com efeito! — disse Vance, suspirando. — Você é positivamente terrível. Não importa, pode ser que eu consiga lançar alguma luz sobre essas perturbadoras pontas de cigarro.

Chamou de novo Snitkin, entregando-lhe a pistola.

— O Promotor agradece-lhe. E faça o favor de trazer aqui a Sra. Platz. Desejamos conversar com ela.

Voltou, sorrindo amàvelmente para Markham.

— Desta vez, desejo conversar eu mesmo com a dama, se isso não o contraria. Ela possui elementos que você desdenhou completamente quando a interrogou.

Markham, apesar de cético, sentiu-se interessado.

— Cedo-lhe o terreno.


CONTINUA

PHILO VANCE EM CASA

(Sexta-feira, 14 de junho — 8h30)

Tomei café da manhã casualmente com Philo Vance naquele célebre 14 de junho, o mesmo em que aparecera assassinado Alvino Benson — crime cuja lembrança ainda perdura. Não é que fosse coisa rara para mim tomar parte em seus almoços ou jantares, mas tomar café da manhã com ele, sim, era coisa extraordinária: era seu costume levantar tarde e permanecer incomunicável até o meio-dia, hora do almoço.
Motivara este encontro matinal um caso de negócios, ou antes, de estética. Na véspera, Vance fora à Galeria Kessler ver a exposição de aquarelas de Cézanne, da coleção Vollard, e convidara-me para almoçar, com o fim de me dar instruções acerca da compra de alguns quadros, que lhe interessavam particularmente.
O fato de eu ser o narrador desta crônica, explicam-no as minhas relações com Vance. Era tradicional na minha família, e isto desde muito tempo, a carreira jurídica, e quando terminei meus estudos preparatórios fui enviado, naturalmente, a Harvard, para não desmentir essa tradição enraizada. Foi ali que conheci Vance, um estudante reservado, satírico, cáustico até, que era o flagelo dos professores e o terror dos colegas. Por que me escolhera ele a mim, entre todos os estudantes da Universidade, para seu companheiro inseparável, é coisa que nunca cheguei a compreender perfeitamente. Minha simpatia por ele era facilmente explicável: fascinou-me; era para mim uma diversão intelectual de nova espécie. Mas é que em mim não encontrava ele o mesmo motivo de atração. Eu era, como ainda hoje, um indivíduo de qualidades vulgares, de espírito conservador, senão convencional. De qualquer maneira, porém, não tenho o espírito pesado, nem rígido, e a gravidade das leis mal influiu nele, de sorte que não demonstrei muita propensão para a profissão hereditária — e é possível que, inconscientemente, Vance encontrasse certa afinidade nesses traços do meu feitio. Há outra hipótese, sem dúvida muito pouco lisonjeira, e é que Vance, sentindo instintivamente em mim qualidades opostas, se apoiasse em mim como num esteio, compreendendo que a minha natureza era a antítese complementar da sua. Seja qual for, porém, a explicação, o certo é que andávamos sempre juntos, e que com o correr dos anos nossas relações vieram a se estreitar, a ponto de nos tornarmos inseparáveis.


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Depois de formado, fui trabalhar na firma de meu pai — Van Dine Davis — e, após cinco anos de enfadonha aprendizagem, entrei como sócio mais moço. Sou hoje o segundo Van Dine da firma Van Dine, Davis Van Dine, com escritórios na Broadway, 120. Ao tempo em que meu nome começou a aparecer no papel timbrado da firma, Vance voltava da Europa, onde vivera durante meu noviciado nas leis, e, tendo-lhe morrido uma tia, que o instituiu herdeiro principal, chamou-me ele para habilitá-lo à posse dos bens herdados.

Foi o começo de uma renovação da antiga amizade, cujos laços eram muito fortes. Como Vance tinha aversão por tudo o que se referia a negócios, com o tempo vim a ser encarregado de todas as suas transações, seu procurador, enfim. Seus negócios eram bastante numerosos para me tomarem todo o tempo, e ele suficientemente abastado para se dar ao luxo de um factótum pessoal e jurista, de mais a mais; assim foi que deixei o escritório e devotei-me exclusivamente às suas necessidades e caprichos.

Se é certo que até ao dia em que Vance me chamou para discutir a compra dos Cézanne eu tinha abrigado no coração algum secreto remorso por ter privado a firma Van Dine, Davis Van Dine dos meus modestos conhecimentos jurídicos, não é menos certo que tal remorso se dissipou para sempre naquela memorável manhã; porque, a partir do caso Benson, e durante quatro anos, tive o privilégio de conhecer a mais assombrosa série de casos criminais que jamais desfilou perante os olhos de um novato. Sem dúvida, os horrendos dramas que presenciei durante aquele período constituem um dos mais espantosos documentos secretos na história da polícia deste país.

Foi Vance o principal personagem desses dramas. Empregando um método analítico e interpretativo que, ao que eu saiba, nunca tinha sido até então aplicado a investigações criminais, conseguiu achar a solução de muitos casos em que tanto a Polícia como o Promotor Público tinham fracassado. Minhas relações com ele permitiram-me não só tomar parte em todos os casos em que ele interveio, mas também assistir à maior parte das discussões que teve de sustentar com os magistrados; e, como sou naturalmente metódico, conservei um registro completo desses casos. Anotava, além disso, tão claramente como mo permitia a memória, os métodos psicológicos inéditos que usava para determinar a culpabilidade, conforme ele os expunha. E foi uma sorte que eu tivesse feito esse trabalho desinteressado de anotação e transcrição, pois hoje, que as circunstâncias me permitem, quando menos o esperava, publicar esses fatos, acho-me em condições de apresentá-los com uma multidão de minúcias, com todas as suas nuanças e complicado desenvolvimento — tarefa que não me seria permitido cumprir sem meus numerosos apontamentos e recortes.

Afortunadamente, também, o primeiro caso que chamou a atenção de Vance, enredando-o nas suas malhas, foi o assassínio de Alvino Benson. Não só porque foi uma das mais famosas causas de Nova York, mas porque lhe proporcionou uma excelente oportunidade para desenvolver seus raros talentos de raciocínio dedutivo; e, por sua natureza e magnitude, orientou-lhe o interesse para um ramo de atividades até então estranho às sugestões do seu temperamento e predileções habituais.

Se bem que o próprio Vance tivesse sido, por um pedido feito um mês antes ao Promotor Público, o agente involuntário da quebra da rotina normal de sua vida, o caso se lhe impôs, repentina e inesperadamente. Tudo, de fato, caiu sobre nós, antes que tivéssemos acabado nosso almoço naquela manhã de meados de junho, e veio suspender todas as negociações concernentes à compra dos quadros de Cézanne. Quando, nesse mesmo dia, visitei as Galerias Kessler, duas das aquarelas que Vance particularmente desejava tinham sido vendidas; e estou convencido de que, apesar do seu sucesso na elucidação do mistério do assassínio de Benson, e de ter poupado a vida ao menos de um inocente, jamais se julgou compensado da perda daqueles dois pequenos esboços, que tanto o cativaram.

Fui introduzido na sala por Currie, um velho e singular criado inglês, que exercia as funções de despenseiro, criado de quarto, mordomo, e em algumas ocasiões especiais, cozinheiro. Encontrei Vance sentado em uma vasta poltrona, metido em um chambre de surá e chinelos de camurça cinzenta, e com o Cézanne, de Vollard, aberto sobre os joelhos.

— Desculpe-me por não me levantar, Van, — disse ele, cumprimentando-me distraído. — Tenho todo o peso da moderna evolução da arte a descansar sobre as pernas. Além disso, você sabe que me fatigo muito sempre que me levanto cedo, como os plebeus.

Folheava as páginas do livro, detendo-se de vez em quando para examinar uma ilustração.

— Este Vollard, — observou afinal, — foi até liberal com o nosso país, que amedronta a arte. Mandou uma coleção muito boa dos seus Cézanne. Examinei-a ontem, com a devida reverência, e, devo confessar, com indiferença... porque Kessler me vigiava; escolhi os quadros que desejo que compres hoje, assim que a Galeria se abra.

Deu-me um pequeno catálogo, que lhe servira de marcador de página.

— Uma estúpida incumbência, bem sei, — acrescentou, com um sorriso indolente. — Essas delicadas manchas com todo o seu papel branco, provavelmente não terão significação alguma para o seu espírito de jurista. É que você não sabe que elas são tão diferentes como um arrazoado perfeitamente datilografado. E você decerto imagina que algumas Nfiguras estejam de pernas para o ar, em completa desordem — uma delas está, de fato, invertida, e contudo nem Kessler o percebe. Mas não se zangue, amigo velho. São ninharias inexpressivas, mas muito lindas e valiosas, quando a gente considera que estarão valendo muito mais daqui a alguns anos. É na verdade um excelente emprego de capital, para uma criatura amante do dinheiro, infinitamente melhor do que aquela companhia "Eqüidade dos Juristas", sobre a qual você falava tão eloqüentemente, ao tempo da morte de minha tia Agatha. (*)

(*) De fato, as mesmas aquarelas que Vance comprou por 250 e 300 dólares, quatro anos mais tarde tinham triplicado de valor.


Uma das paixões de Vance (se podemos chamar paixão a um entusiasmo puramente intelectual) era a arte — não a arte nó seu aspecto limitado, pessoal, mas na sua significação mais universal. E a arte não era apenas o seu interesse dominante, mas a sua principal distração. Era uma autoridade no conhecimento de gravuras japonesas e chinesas; e ouvi dele uma vez uma dissertação improvisada, diante de alguns convidados, sobre figurinhas de Tanagra que, se tivesse sido publicada, constituiria uma deliciosa e instrutiva monografia.

Tendo recursos que lhe permitiam satisfazer seu instinto de colecionador, possuía uma linda coleção de quadros e objetos de arte. Essa coleção era heterogênea somente nos caracteres superficiais: cada peça que obtinha apresentava algum elemento, de forma ou linha, que a aparentava com todas as outras. Um conhecedor encontraria a unidade e coerência de todas as peças de que se cercou, ainda que estivessem profundamente separadas no tempo, ou no destino, ou na aparência exterior. Descobri em Vance um dos raros seres humanos que colecionam com um ponto de vista filosófico definido.

Sua residência na Rua 38, Leste — os dois andares superiores de uma velha casa. lindamente remodelada e em parte reconstruída, com aposentos espaçosos e tetos altos — estava cheia, mas não atravancada de raros espécimes de arte oriental e ocidental, antiga e moderna. Seus quadros vinham desde os primitivos italianos até Cézanne e Matisse; e na sua coleção de desenhos originais figuravam trabalhos tão apartados como os de Miguel Ângelo e Picasso. Suas gravuras chinesas constituíam uma das mais belas coleções particulares do país, e havia entre elas muitos exemplares de Ririomin, Rianchu, Jinkomin, Kakei e Mokkei.

— Os chineses — disseme Vance uma vez — são na verdade os maiores artistas do Oriente. Foi o trabalho desses homens que exprimiu mais intensamente um largo espírito filosófico. Os japoneses, ao contrário, são superficiais: vai larga distância, na verdade, entre o souci pouco mais que decorativo de Hokusai e um Ririomin, que revela um pensamento profundo e senso artístico consciente. Até depois de degenerada, sob os manchais, a arte dos chineses mostra uma profunda qualidade filosófica — uma sensibilidade espiritual, por assim dizer. E nas modernas cópias de cópias, a que chamam estilo bunjinga, encontramos quadros de sentido profundo.

A universalidade do gosto de Vance em arte era notável. Sua coleção era tão variada como a de um museu. Compreendia uma ânfora negra, toda lavrada, de Amasis; um vaso pré-corintiano no estilo egeano; baixelas de Koubatcha e de Rhodes; cerâmica ateniense; uma pia italiana para água benta, de cristal de rocha, do século XVI; baixelas de estanho do período dos Tudors (muitas peças traziam a rosa dobrada de hall-mark) (*); uma placa de bronze de Vallfogona; alguns bronzes etruscos; um budista greco-indiano; uma estatueta da deusa Kuan Yin, da Dinastia Ming; lindíssimas gravuras de madeira do Renascimento; e alguns espécimes de marfim esculpido, bizantinos, carolíngios, e franceses primitivos.

(*) Marca do contraste, gravada pela Corporação dos Ourives de Londres, em objetos de ouro e prata, para garantir a sua autenticidade.

(Nota do Tradutor)


Seus tesouros egípcios compreendiam um jarro de ouro de Zakazik, uma estatueta de Lady Nai (tão bela como a do Louvre), duas lindas estrelas cinzeladas do Primeiro Período Tebano, várias pequenas esculturas, raras representações de Hapi e Amset, e diversas taças Arrentino, trazendo esculpidos dançarinos kalathiscos. Em cima de uma das suas estantes do tempo de James I, na biblioteca, onde se achava a maior parte das pinturas e esboços modernos, via-se um belo grupo de escultura africana — máscaras cerimoniais e estatuetas fetiches da Guiné Francesa, do Sudão, da Nigéria, da Costa do Marfim e do Congo.

Um desígnio determinado me levou a falar tão insistentemente do instinto artístico de Vance, porque para bem compreender as aventuras melodramáticas que começaram para ele naquela manhã de junho, é necessário ter uma idéia geral das tendências do homem e de suas secretas inclinações. Seu interesse pela arte foi fator importante — diria mesmo dominante — na sua personalidade. Nunca vi outro homem que se lhe assemelhasse tanto — um espírito tão diversificado na aparência e, ainda assim, tão fundamentalmente coerente. Era o que muitos chamariam de diletante, mas a designação seria descabida. De invulgar cultura, aristocrata de nascimento e instinto, conservava-se rigidamente afastado do mundo comum dos outros homens. Desprendia-se dele um indefinível desprezo por tudo o que fosse inferioridade. A grande maioria dos que com ele tinham contato consideravam-no esnobe; contudo, não havia traço algum de simulação no seu desdém e condescendência. Seu esnobismo tinha tanto de social como de intelectual. Detestava a estupidez mais ainda, creio-o, do que a vulgaridade ou o mau gosto. Mais de uma vez ouvi-lhe a citação da célebre sentença de Fouché: "Cest plus qu'un crime; c'est une faute." E pensava literalmente assim. Era francamente satírico, mas raras vezes mordaz; suas sátiras eram petulantes, juvenalianas. Talvez a melhor definição que lhe caiba seja: um espectador da vida, enfadado e desdenhoso, mas profundamente sagaz. Interessavam-no em alto grau todas as reações humanas, mas era o interesse do cientista, não do humanitário. Em todo caso, era homem de raro encanto pessoal. E até os que não podiam admirá-lo, sentiam igualmente que não podiam deixar de gostar dele. Seus modos um tanto quixotescos e um leve sotaque inglês — herança do tempo que passara em Oxford — podiam parecer afetação aos que não o conheciam bem. Mas nada, ou muito pouco, havia nele de poseur.

Era notavelmente belo, apesar da boca austera e cruel, como as bocas de alguns dos retratos dos Medici (*); além disso, mostrava certa ironia, no arrogante arquear das sobrancelhas. A despeito da aquilina severidade das linhas, o.rosto era muito expressivo. A testa, cheia e inclinada, era a fronte do artista antes que a do erudito. Os olhos, frios e cinzentos, muito separados. Nariz direito e delgado, queixo curto e proeminente, com uma fenda extraordinariamente profunda. Quando vi John Barrymore há pouco, no Hamlet, lembrei-me um pouco de Vance; e já anteriormente, numa cena de César e Cleópatra, representada por Forbes-Robertson, tivera uma impressão semelhante. (**)

(*) Particularmente os retratos de Bronzino, de Pietro de Medici e Cosimo de Medici, na Galeria Nacional, e o medalhão de Vasari, de Lorenzo de Medici, no Vecchio Palazzo, de Florença.

(**) Certa vez, por motivo de uma sinusite, Vance mandou tirar uma radiografia da cabeça, e na papeleta do diagnóstico foi ele descrito como "um acentuado dolicocéfalo" e um "nórdico desproporcionado". Vinham mais os dados: índice cefálico, 75; nariz leptorrino com índice 48; ângulo facial, 85; índice vertical, 72; índice súpero-facial, 54; distância interpupilar, 67; queixo masognata, com um índice de 103; sela túrcica, anormalmente grande.

 

Tinha cerca de 1,80 m de altura, era esbelto, dava uma impressão de força e resistência nervosa. Destro espadachim, fora o capitão do quadro de esgrima da Universidade. Mediocremente apaixonado pelos desportos exteriores, tinha como que um dom de fazer bem todas as coisas, sem nenhuma prática especial. No golfe, seu handicap era apenas três; e uma vez jogou no nosso time, no campeonato de pólo que disputamos com a Inglaterra. Detestava longas caminhadas, e não andaria cem metros a pé, se achasse meio de ir a cavalo. Sempre elegante no trajar — escrupulosamente correto nos menores detalhes — ainda que não exagerado. Passava um tempo considerável nos clubes; seu preferido era o Stuyvesant, porque, explicou-me, seus membros vinham na maior parte das fileiras da política e do comércio, e ele não seria ali jamais arrastado a discussões que requeressem algum esforço mental. Ouvia de vez em quando as óperas mais modernas, e era freqüentador assíduo dos concertos sinfônicos e recitais de música de câmara.

Cabe notar que era um dos mais destros jogadores de pôquer que tenho visto. E menciono este fato, não simplesmente por ser extraordinário e significativo que um homem do tipo de Vance preferisse esse jogo democrático ao bridge ou xadrez, por exemplo; mas porque grande parte do seu conhecimento da psicologia humana adquiriu-o jogando o pôquer.

Seu conhecimento da psicologia era realmente profundo. Dotado de uma faculdade de julgamento das pessoas instintiva e acurada, o estudo e a leitura tinham coordenado e racionalizado este dom em grau surpreendente. Conhecia bem os princípios acadêmicos da psicologia, e todos os estudos que fizera na Universidade ou se basearam nesse assunto, ou se subordinaram a ele. Enquanto eu me confinava num círculo estreito de prejuízos e contratos, direito privado e público, provas e autos, Vance fazia o reconhecimento de todo o campo da experiência cultural. Fizera o curso de história das religiões, dos clássicos gregos, de biologia, economia política e social, filosofia, antropologia, literatura, psicologia teórica e experimental, línguas antigas e modernas (*). Mas o que mais o interessava, creio eu, eram os cursos de Münsterberg e de William James.

(*) "A cultura, — disseme Vance, depois que nos tornamos a encontrar, — é poliglota; e o manejo de várias línguas é essencial ao conhecimento dos fatos intelectuais e estéticos do mundo. Os clássicos gregos e latinos são, de forma especial, corrompidos pelas traduções". Cito esta observação, porque suas onívoras leituras em outras línguas que não o inglês, além da prodigiosa retentiva de sua memória, transpareciam-lhe na conversação. E, embora possa parecer a muitas pessoas que ele fosse por vezes pedante ao falar, tenho procurado citá-lo literalmente na esperança de apresentar um retrato do homem, tal qual ele era.


Seu espírito era fundamentalmente filosófico — isto é, filosófico no sentido mais geral. Singularmente isento de sentimentalismos convencionais e de superstições vulgares, descobria facilmente, sob a superfície dos atos humanos, os impulsos e motivos que os determinaram. Era, além disso, resoluto tanto em evitar atitudes que cheirassem a credulidade, como no apego à fria e lógica exatidão nos processos mentais.

— Enquanto não abordamos todos os problemas humanos, — observou ele uma vez, — com a frieza e a indiferença de um médico examinando uma cobaia amarrada a uma tábua, temos muito pouca probabilidade de alcançar a verdade.

Levava Vence uma vida social ativa mas não animada — concessão que fazia a vários laços de família. Mas não era um animal social. Não me lembro de ter encontrado jamais outro homem com o espírito gregário tão pouco desenvolvido. E somente compelido é que participava de atividades sociais. De fato, um de seus negócios "obrigatórios" o retivera na noite anterior àquele memorável almoço de junho; não teríamos combinado antes a compra dos Cézanne. Vence falou largamente a respeito enquanto Currie nos servia morangos e ovos à Bénédictine. Mais tarde, dei profundas graças ao Deus da Coincidência pelo fato de as coisas se terem passado assim, porque se ele estivesse dormindo pacificamente às 9 horas, quando o Promotor chegou, eu teria perdido quatro dos mais interessantes anos de minha vida, e muitos dos mais perversos e atrevidos malfeitores de Nova York estariam até agora em liberdade.

Acabávamos de sentar para tomar a segunda xícara de café e fumar um cigarro, quando Currie, que atendera a um violento toque de campainha, introduziu o Promotor Público.

— Valha-nos Deus! — exclamou ele, erguendo as mãos em cômico espanto. — O maior flâneur e conhecedor de arte de Nova York já está de pé!

— E rubro de vergonha par isso, — replicou Vance.

Era evidente, contudo, que o Promotor não estava de ânimo alegre. Tornou-se repentinamente sério.

— Vance, trouxe-me aqui um caso grave. Tenho muita pressa, e venho apenas para cumprir minha promessa... Alvino Benson foi assassinado.

Vance ergueu as sobrancelhas lentamente.

— Realmente? — balbuciou ele. — Mas... bem que ele o merecia! E de modo algum vejo motivo para que você se amofine com isso. Sente-se e tome uma xícara deste café de Currie, que está incomparável.

E, sem esperar que o outro protestasse, ergueu-se e tocou a campainha.

Markham hesitou um ou dois segundos.

— Ora! Dois minutos mais não vão fazer diferença... Mas é só um gole.

E sentou-se defronte de nós.


II

 

NO TEATRO DO CRIME

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 9 da manhã)

 


John F. X. Markham, como já disse, fora eleito Promotor Público de Nova York, pela chapa Reforma Independente, durante uma das reações periódicas da cidade contra o Tammany Hall. Serviu os quatro anos, e teria provavelmente sido reeleito, se a chapa não tivesse sido dividida pelas trapaças políticas dos adversários. Era um trabalhador infatigável, e durante sua administração a repartição desempenhou papel saliente nas investigações civis e criminais. Incorruptível, granjeou não somente a admiração dos seus partidários, mas ainda a confiança dos que o haviam combatido.

Pouco depois de eleito, um jornal chamou-o de "Cão de Guarda", alcunha que se lhe apegou até ao fim do quadriênio. E, na verdade, foi tão escrupuloso e tão feliz nas suas investigações que ainda hoje seu nome é citado em discussões jurídicas e políticas.

Era Markham um homem alto e forte, já na casa dos quarenta; a aparência de juventude do rosto bem barbeado era logo desmentida pelos cabelos grisalhos. Não se podia dizer que fosse belo, segundo o padrão comum, mas tinha um ar de inconfundível distinção, e possuía uma soma de cultura social raramente encontrada em nossos modernos funcionários públicos. É certo que era de temperamento brusco e vingativo; mas essa rudeza esteava-se em sólida camada de boa educação, não se tratando — como é tão vulgar — de uma subestrutura! posseira mal revestida de uma crosta de delicadeza.

Quando não o atormentavam os cuidados e deveres do cargo, era o mais gentil dos homens. Mas bastas vezes o vi, em minhas relações contínuas com ele, mudar a atenção delicada em severa autoridade. Então dir-se-ia que uma nova personalidade — dura, indomável, símbolo da eterna justiça — despontara repentinamente no corpo de Markham; fui muitas vezes testemunha dessa transformação.

E naquela manhã, quando ele se sentou na minha frente, na sala de Vance, a dureza de expressão do rosto denunciava a profunda perturbação que lhe causara o assassínio de Alvino Benson.

Tomou rapidamente o café e, quando depunha a xícara na mesa, Vance, que o observava com ar divertido, perguntou-lhe:

— Mas por que está você assim preocupado com a morte de Benson? Não é possível que seja você o assassino, pois não?

Markham não deu ouvidos à caçoada.

— Vou à casa de Benson. Quer ir comigo? Você me pediu para tomar parte numa experiência e passei por aqui para cumprir a promessa que lhe fiz.

Lembrei-me então de que algumas semanas antes, quando se discutia, no Club Stuyvesant, o assunto dos crimes célebres de Nova York, Vance manifestara o desejo de acompanhar o Promotor em uma de suas investigações; e Markham prometera levá-lo consigo no primeiro caso importante que se apresentasse. O interesse de Vance pela psicologia das ações humanas sugerira o desejo, e a sua amizade com Markham, que datava de longos anos, tornara possível a realização.

— Você não esquece nada, não? — replicou Vance negligentemente. — É um dom admirável, ainda que nem sempre seja agradável.

Olhou para o relógio em cima da lareira: faltavam poucos minutos para as nove.

— Mas que hora inconveniente! Imagine se alguém me visse...

Markham moveu-se na cadeira, impaciente.

— Está bem, se você julga que a satisfação de sua curiosidade o compensa do vexame de ser visto em público às 9 horas da manhã, apresse-se. Claro que não vou levá-lo de roupão e chinelos. E como não posso esperar mais de cinco minutos que você se vista...

— E por que essa pressa, meu velho? — perguntou Vance, bocejando. — O sujeito morreu, sabe? Ele não pode escapar!

— Vamos, mexa-se. Este negócio não é um brinquedo. É muito sério, e pelo jeito vai causar um grande escândalo. Mas que faz você?

— Eu? Sigo humildemente o grande vingador do povo, — respondeu Vance, erguendo-se e fazendo uma reverência.

Tocou a campainha e ordenou a Currie que lhe trouxesse a roupa.

— Vou a uma recepção que o Sr. Markham convocou diante de um cadáver, e preciso de uma roupa elegante. Está bastante quente para vestir algo de seda?... E uma gravata cor de alfazema, pelo menos.

— Espero que não leve também seu cravo vermelho, — resmungou Markham.

— Ora, ora! — murmurou Vance. — Você, sem dúvida, esteve lendo Hichens. Tal heresia em um Promotor Público! Não, você bem sabe que nunca uso nada na lapela! Os enfeites caíram em descrédito. Os únicos remanescentes dessa prática são casquilhos e tocadores de saxofone... Mas diga-me alguma coisa acerca do falecido Benson.

Estava já vestido, com o auxílio de Currie, e gastara nisso 0 mínimo de tempo possível. Sob os motejos procurava ocultar a verdadeira avidez com que acolhia a nova experiência, que descortinava ao seu espírito vivo e observador dramáticas visões.

— Você conheceu um pouco Benson, creio-o, — disse o Promotor. — Pois bem, esta manhã, muito cedo, sua governanta telefonou para o posto policial comunicando que acabava de encontrá-lo sentado na sua cadeira preferida, na sala, completamente vestido, e com um tiro na cabeça. A notícia foi transmitida ao Quartel-General da Polícia, e meu assistente de serviço avisou-me imediatamente. Estava resolvido a deixar o caso seguir os trâmites normais da polícia, mas meia hora depois o major Benson, irmão de Alvino, telefonou-me, pedindo-me, como um favor especial, que me encarregasse dele. Conheço o major há vinte anos, e não me pude recusar. Assim, almocei às pressas e saí. A casa é na Rua 48, Leste. Quando passava na sua esquina, lembrei-me do seu pedido, e vim aqui para ver se você queria ir.

— Uma excelente idéia, — murmurou Vance, ajustando a gravata em frente de um espelhinho policromo ao lado da porta.

Depois, voltando-se para mim:

— Venha, Van. Contemplaremos o defunto Benson, e estou certo de que algum dos policiais de Markham descobrirá que eu detestava aquele atrevido e me acusará do crime; procurarei salvar-me, é claro, com o meu talento jurídico à mão... Nada de objeções — não é, Markham?

— Sem dúvida, — respondeu o outro prontamente, mas compreendi que preferia não me levar. Eu estava, porém, muito interessado no assunto para fazer uma objeção cerimoniosa, e acompanhei-os.

Quando seguíamos pela Avenida Madison, refletia eu, não sem estranheza, na singular amizade que ligava aqueles dois homens tão dessemelhantes, que seguiam a meu lado no auto. Markham — reto, formalista, um nadinha austero, e muito escrupuloso em todos os seus atos; Vance — distraído, ativo, afável e extravagantemente céptico em face das mais terríveis realidades. E no entanto essa diversidade de temperamentos parecia, de algum modo, a verdadeira pedra angular de sua amizade; era como se cada um visse no outro um inatingível campo de experiência e sensação, que ele próprio não possuía. Markham representava para Vance o sólido e imutável realismo da vida, enquanto que para aquele Vance simbolizava o espírito livre de cuidados, exótico, manhoso, de aventura intelectual. Sua intimidade, de fato, era maior do que parecia, e a despeito das exageradas lamentações de Markham sobre as atitudes e opiniões do outro, eu creio que ele respeitava a inteligência de Vance mais profundamente do que a de qualquer outro homem.

Parecia preocupado e carrancudo, rodando pelas ruas da cidade. Ninguém falara desde que saíramos de casa, mas, ao entrarmos na Rua 48, Vance perguntou:

— Qual é a etiqueta para estas cerimônias matinais, além de tirar o chapéu diante do corpo?

— Você conserva o chapéu na cabeça, — resmungou Markham.

— Ah! Como nas sinagogas, então? Que interessante! Por acaso a gente tira também os sapatos, para não confundir as pegadas?

— Não, — disse Markham. — Os estranhos conservam-se completamente vestidos — no que a função difere das reuniões vespertinas do seu meio elegante.

— Meu caro Markham! — respondeu Vance dando à voz entonação de tristeza, — lá aparece outra vez o terrível moralista que existe na sua natureza. Esta sua observação ficaria muito bem num membro da Liga Epworth.

Markham estava muito preocupado para acompanhar a tagarelice de Vance.

— Quero preveni-lo de uma ou duas coisas, — disse ele solenemente. — Segundo parece, o caso vai provocar grande ruído, e motivará ciúme e disputas, por causa da rivalidade com a polícia. Não me admirarei se for atacado e maltratado pela polícia por me ter metido neste assunto. Assim, convém que tome cautela e não os irrite. Meu ajudante, que já está lá, supõe que o Inspetor entregou o caso a Heath, um sargento do Departamento de Homicídios. Ora, este deve estar convencido, até agora, de que eu me encarreguei do assunto somente para ver meu nome nos jornais.

— Você não é seu superior hierárquico?

— Sim; e é isso mesmo o que torna a situação mais delicada... Oxalá o major não me tivesse falado!

— Oh! — disse Vance, suspirando. — O mundo está cheio de sujeitos como Heath. Que estupidez!

— Mas você está enganado, — apressou-se a dizer Markham. — Heath é um homem de bem; é na verdade uma criatura excelente. O fato mesmo de ter sido incumbido deste caso demonstra que interesse despertou ele na Chefatura. Ninguém ali me mostrará hostilidade por ter intervindo, mas eu é que desejo que a atmosfera seja tranqüila. Heath não vai gostar de me ver trazer dois desconhecidos; por isso. Vance, peço-lhe que imite a modesta violeta...

— E eu que prefiro a flamante rosa, se isso não o incomoda, — protestou Vance. — Não importa, daqui a pouco oferecerei ao suscetível Heath um de meus mais escolhidos cigarros Régie, de ponta cor-de-rosa.

— Se você fizer isso, — observou Markham sorrindo, — ele o prenderá como suspeito.

Paramos de repente em frente a uma velha residência de pedra escura, à direita da Rua 48, perto da 6.a Avenida. Era de muito boa aparência, construída em um terreno de vinte e cinco pés, numa época em que os arquitetos da cidade ainda davam atenção à estabilidade e à beleza. O desenho era vulgar, de acordo com as outras casas do grupo, mas esculturas de pedra na fachada e por cima das janelas davam-lhe um toque de luxo e certa personalidade.

Um patiozinho ladrilhado, mais baixo que a rua, separava-a do edifício, e uma alta grade vedava a frente. A única porta de entrada ficava no cimo de uma escada de dez largos degraus de pedra. À direita da entrada, duas grandes janelas protegidas por pesadas grades de ferro.

Considerável multidão de curiosos reunira-se em frente a casa; e nos degraus esperavam alguns jovens que, pela aparência de atividade, tomei por jornalistas. Um guarda abriu a porta do nosso táxi, e saudou Markham com um respeito exagerado, procurando depois, ostensivamente, abrir passagem para nós por entre a multidão embasbacada de ociosos. Outro guarda, parado no pequeno vestíbulo, reconhecendo Markham, manteve aberta a porta para nos dar passagem, e cumprimentou o Procurador com grande dignidade.

— "Ave, Caesar, te salutamus", — cochichou Vance, ironicamente.

— Sossegue, — murmurou Markham, — tenho amofinações que cheguem sem suas citações.

Quando atravessávamos a porta, de maciço carvalho esculpido, veio ao nosso encontro o ajudante Dindwiddie, um rapaz sério, trigueiro, rosto prematuramente enrugado, e que aparentava suportar sobre os ombros a maior parte das desgraças da humanidade.

— Bom dia, chefe, — disse, saudando Markham, como se se sentisse aliviado com a sua chegada. — Muito me alegro de vê-lo chegar. Este caso desvendará muitas coisas. É um assassinato premeditado.

Markham, concordando melancòlicamente, olhou para a sala e indagou:

— Quem está aí?

— Todos, a começar pelo inspetor-chefe, — respondeu Dindwiddie, encolhendo os ombros, desanimado, como se aquela presença fosse de mau agouro.

Nesse momento um homem de meia-idade, alto, volumoso, de pele rosada e bigode branco, aparado rente, apareceu à porta da sala. Ao ver Markham, veio direto a ele de mão estendida. Reconheci o inspetor-chefe O'Brien, do Departamento de Polícia. Depois dos cumprimentos de estilo, eu e Vance fomos apresentados. Saudou-nos a ambos, silencioso, e voltou à sala, com Markham e Dindwiddie, e eu e Vance os seguimos.

 

 

 

O salão, amplo, quase quadrado, e de teto alto, tinha acesso por uma larga porta dupla. Duas janelas davam para a rua, e na parede oposta, à direita, outra janela abria sobre um pátio ladrilhado. À esquerda desta janela, uma porta corrediça comunicava com a sala de jantar.

Era um tanto extravagante o luxo do salão. Quadros representando cenas hípicas, encimados por troféus de caça, ornavam as paredes. O soalho quase desaparecia, coberto por um tapete oriental, de cores vivas. Em frente à porta de entrada, a lareira com o manto de mármore cinzelado. Ã direita, colocado em diagonal ao canto, um piano de armário de nogueira com aplicações de cobre. Havia ainda uma estante envidraçada, de acaju, com cortinas floreadas, cheia de livros, um sofá, um tamborete veneziano, baixinho, incrustado de madrepérola, e, sobre uma mesinha de teca, um grande samovar de cobre. Uma mesa ao centro, de seis pés de comprimento, também marchetada de metal. Ao lado da mesa, perto do vestíbulo, com as costas para as janelas, estava uma espreguiçadeira de vime, com o espaldar alto, em forma de leque.

Nesta cadeira repousava o corpo de Alvino Benson.

Embora eu tivesse servido dois anos na frente, na Primeira Guerra Mundial, e tenha visto a morte sob aspectos terríveis, não pude reprimir um forte sentimento de desagrado à vista daquele homem assassinado. Na França, a morte parecia uma parte inevitável da rotina diária, mas aqui todo o ambiente era oposto à idéia de tal violência. O radiante sol de junho inundava o salão, e pelas janelas chegava até nós o contínuo rumor da cidade, que, apesar de suas cacofonias, dá uma impressão de paz e segurança, que acompanham o curso social da vida.

Tão natural era a postura do corpo, reclinado na cadeira, que se diria ia voltar-se e perguntar-nos por que lhe violávamos a intimidade. A cabeça repousava no alto espaldar. A perna direita descansava cruzada sobre a esquerda. O braço direito apoiava-se à mesa, e o outro no braço da poltrona. Mas o que dava à sua atitude maior impressão de naturalidade era um livro que conservava na mão, aberto, marcando ainda o polegar a página que sem dúvida lia, quando o mataram. (*)

(*) O livro era Só Negócios, de O. Henry, e, fato curioso, a página em que estava aberto era a da história intitulada "Um relatório municipal".


O tiro fora disparado de frente, e ferira-o na testa; o pequeno orifício circular da bala coberto agora de um coágulo de sangue, enegrecera. Uma grande mancha escura, no tapete, por detrás da cadeira, indicava a extensão da hemorragia causada pela passagem da bala através do crânio. Não fossem estes sinais, dir-se-ia que ele apenas interrompera a leitura para repousar um momento.

Vestia uma velha jaqueta e calçava chinelos de feltro vermelho, mas trazia ainda a calça e camisa de cerimônia, a que tirara o colarinho. Desabotoara a gola, sem dúvida para estar mais à vontade. Não era homem de físico atraente; quase calvo e mais gordo que delgado.

Era bochechudo, e a flacidez do pescoço, sem a sujeição do colarinho, avultava mais. Estremeci, diante dessa figura desagradável à vista, e voltei-me para os circunstantes.

Dois sujeitos agigantados, de pés e mãos enormes, chapéus de feltro puxados para a nuca, inspecionavam as grades das janelas. Ao que parecia, davam particular atenção aos pontos onde as barras pegavam na alvenaria; um deles até segurara uma das grades com ambas as mãos, e sacudia-a, como um macaco, para avaliar-lhe a resistência. Outro, de mediana estatura, e ar resoluto, com um bigodinho louro, inclinado sobre a chaminé, examinava com atenção o empoeirado cano de gás. Do outro lado da mesa um homem corpulento, num terno de sarja azul e chapéu-de-côco, examinava, com as mãos nos quadris, o mudo rosto reclinado na cadeira. O queixo quadrado, de prognata, era solidamente implantado. Os olhos, de um azul pálido, duros e apertados, fixavam intensamente o cadáver de Benson, como se pretendesse, tão-somente pelo poder de concentração, arrancar-lhe o segredo de sua morte.

Junto à janela do fundo, outro homem, de estranho semblante, examinava com uma lente um pequeno objeto. Reconheci, pelos retratos que já conhecia, o capitão Carlos Hagedorn, o mais célebre e afamado perito em armas de fogo de toda a América. Era um homem alto, largo de ombros, não muito simpático, de seus 50 anos; a roupa, preta e lustrosa, ficava-lhe muito folgada. O casaco, muito curto atrás, caía-lhe na frente até aos joelhos, e as calças ensacavam sobre os tornozelos, fazendo grotescas pregas. A cabeça, anormalmente desenvolvida, era redonda, e as orelhas pareciam enterradas no crânio. Um bigode áspero e grisalho ocultava-lhe completamente a boca, e formava uma espécie de lambrequim sobre os lábios. Há mais de trinta anos que o Departamento de Polícia de Nova York recorria a seus serviços, e ainda que lhe ridicularizassem, na Chefatura, as maneiras e o vestuário, era ali profundamente respeitado. Sua palavra era sempre acatada, tanto no que se referia a armas de fogo, como a ferimentos por elas feitos.

Ao fundo da sala, ao pé da porta da sala de jantar, ainda outros homens conversavam: o inspetor William M. Moran, comandante-chefe da Divisão de Investigadores, e o sargento Ernesto Heath, do Departamento de Homicídios, de quem já nos falara Markham.

Quando entramos na sala, acompanhando o inspetor-chefe O'Brien, todos interrogaram suas ocupações por um momento, e olharam para o Promotor Público com um ar desconfiado, mas respeitoso.

Apenas o capitão Hagedorn, depois de envesgar um rápido olhar para o lado de Markham, voltou à inspeção do delicado objeto que tinha na mão, com um ar abstrato e indiferente, que fez sorrir Vance.

Adiantaram-se o inspetor Moran e o sargento Heath, com grande dignidade; seguiu-se o inevitável aperto de mão — cerimônia que mais tarde observei ser uma espécie de rito entre a polícia e os membros da Promotoria do Distrito — e a nossa apresentação. Em poucas palavras, Markham explicou a nossa presença. O inspetor sacudiu amàvelmente a cabeça, mostrando que aceitava a intromissão, mas notei que Heath fazia que não ouvia a exposição de Markhan, e continuou a agir como se não existíssemos.

Em nada se assemelhava o inspetor Moran aos demais que ali se achavam. Regulava sessenta anos, tinha cabelos brancos e bigode escuro. Trajava irrepreensivelmente. Dava mais a idéia de um corretor bem sucedido de Wall Street do que de um oficial da polícia. (*)

(*) Soube mais tarde que o inspetor Moran fora presidente de um grande banco do Estado, falido durante o pânico de 1907; e que na administração Gaynor fora indicado para o posto de Comissário de Polícia.


— Confiei o caso ao sargento Heath, Sr. Markham, — explicou ele em uma voz melodiosa. — Parece que vai dar-nos muito que fazer. O próprio inspetor-chefe achou que devia animar as investigações iniciais, e veio trazer-nos o apoio moral da sua presença: está aqui desde às oito horas.

O inspetor O’Brien deixara-nos assim que entrou na sala, ·e do vão da janela da frente observava o trabalho com ar grave e impenetrável.

— Bem, — disse Moran, — vou-me embora. Tiraram-me da cama às sete e meia, e ainda não almocei. Agora que você está aqui, já não sou necessário... Até logo.

E tornou a apertar-nos as mãos.

Depois que ele saiu, Markham voltou-se para o seu ajudante:

— Dindwiddie, peço-lhe que se encarregue destes dois moços. São recrutas e querem acompanhar nosso trabalho. Explique-lhes as coisas enquanto falo com o sargento Heath.

Dindwiddie aceitou sem relutância a incumbência. Talvez ·porque lhe trazia o meio de dar vazão à sopitada excitação.

Voltamo-nos todos os três para o corpo do homem assassinado — o eixo trágico do drama, afinal — e ouvi Heath dizer, colérico:

— Suponho que veio para se encarregar do assunto, Sr. Markham?

Dindwiddie e Vance conversavam, e eu olhei para Markham com interesse, lembrando-me do que nos dissera sobre a rivalidade entre o Departamento de Polícia e a Promotoria. Ele sorriu amàvelmente e, com um movimento lento, apertou a mão de Heath.

— Não, sargento. Estou aqui para trabalhar com você, e quero que nossas relações sejam definidas desde já. De fato, não estaria aqui agora, se o major Benson não me tivesse telefonado, pedindo minha ajuda. Particularmente, desejo que meu nome não seja mencionado. Todos sabem — ou ficarão sabendo agora — que o major é um velho amigo meu; assim, será melhor, por todos os motivos, que minha intervenção no caso fique ignorada.

Heath murmurou alguma coisa que não pude apanhar, mas vi que serenara. Como todos os que tinham relações com Markham, sabia o que valia a sua palavra, e pessoalmente simpatizava com o Promotor.

— Se alguma honra advier deste caso, — continuou Markham, — será para o Departamento de Polícia; portanto, julgou que é melhor falar com os jornalistas... E, — acrescentou muito naturalmente, — se aparecer alguma censura, seus homens terão de arcar com ela também...

— É justo, — assentiu Heath.

— E agora, sargento, mãos à obra.


III

 

UMA BOLSA DE MULHER

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 9h30)

 


O Promotor e Heath aproximaram-se do cadáver, e contemplaram-no com atenção.

— Veja, — disse Heath, — atiraram de frente. Tiro certeiro, e forte também, pois a bala atravessou o crânio e foi bater ali no madeiramento da janela, — continuou, mostrando um ponto no painel, a curta distância do soalho, junto à cortina da janela mais próxima do vestíbulo. — Encontramos a lasca, e o capitão examina a bala.

E voltando-se para o perito:

— Então, capitão, há alguma coisa especial?

Hagedorn levantou vagarosamente a cabeça e encarou Heath com seu olhar de míope. Depois de alguns movimentos desajeitados, respondeu lentamente:

— Bala militar 45. Colt automático.

— Pode dizer de que distância foi disparado o tiro? — perguntou Markham.

— Sim, senhor, posso, —.replicou Hagedorn na sua monótona lentidão. — Entre cinco e seis pés, provavelmente.

— Provavelmente... — murmurou Heath com desdém. — Pode contar como certo, se o capitão o diz. Veja o senhor, nada menor do que uma bala 44 ou 45 pode matar um homem, e essas balas militares de aço atravessam um crânio como se fosse um queijo. Mas para ir incrustar-se no madeiramento, o tiro tinha de vir de muito perto; e, como não há sinal de pólvora no rosto, pode-se apostar em como a distância que o capitão deu é exata. Nesse instante ouvimos abrir e fechar a porta da frente e entraram o Dr. Doremus, chefe dos médicos legistas, e seu assistente. O médico apertou a mão de Markham e do inspetor O’Brien, e cumprimentou amàvelmente Heath.

— Sinto não ter podido vir mais cedo, — desculpou-se. Era um homem nervoso, com o rosto marcado de cicatrizes e as maneiras de um corretor de imóveis.

— Que aconteceu aqui? — perguntou logo, fazendo uma careta ao ver o corpo.

— É o senhor quem no-lo vai dizer, doutor, — retrucou Heath.

O dr. Doremus aproximou-se do assassinado com a indiferença do médico já endurecido por um longo tirocínio. Examinou atentamente o rosto — sem dúvida à procura de sinais de pólvora. Olhou para o orifício da testa, depois para a ferida irregular da nuca. Moveu os braços do morto, dobrou-lhe os dedos, inclinou-lhe um pouco a cabeça para o lado. Tendo assim verificado o estado de rigor mortis, voltou-se para Heath:

— Podemos estendê-lo naquele sofá? Heath indagou de Markham:

— Pode-se fazer isso?

Como Markham assentisse, acenou para os dois homens das grades e ordenou-lhes que deitassem o corpo no divã. A rigidez da morte conservava os membros encolhidos, e o doutor e seu assistente tiveram de estendê-los. Foi então despido o corpo, e o Dr. Doremus examinou-o cuidadosamente, à procura de outros ferimentos. Prestou particular atenção aos braços; abriu bem ambas as mãos e examinou-lhes as palmas. Afinal ergueu-se e enxugou as mãos em um grande lenço de seda de várias cores.

— A bala atravessou o frontal esquerdo, — anunciou ele. — Feriu um ângulo reto, atravessando completamente o crânio. O orifício de saída é na região occipital esquerda — base do crânio. Acharam a bala, não? Estava acordado quando o alvejaram, e a morte foi instantânea — provavelmente nem soube de que morria... Foi mais ou menos, segundo creio, há umas oito horas, talvez mais...

— Pelas doze e meia, para dar um tempo exato? — perguntou Heath.

O médico olhou para o relógio.

— É isso. Nada mais?

Ninguém respondeu, mas depois de breve pausa o inspetor-chefe disse:

— Desejávamos ter o seu laudo hoje, doutor.

— Perfeitamente — respondeu ele, fechando o estojo clínico e entregando-o ao assistente. — Mas levem o corpo ao Necrotério o mais cedo possível.

Depois de uma breve cerimônia de apertos de mão, ele saiu apressadamente.

Heath voltou-se para o investigador que estava parado ao pé da mesa quando ele entrou.

— Burke, telefone para a Chefatura, para que venham buscar o cadáver, e diga que o vistam. Depois volte para o escritório e espere-me.

Burke cumprimentou e desapareceu.

Heath dirigiu-se então a um dos homens que tinham estado inspecionando as grades das janelas da rua.

— Que achaste, Snitkin?

— Nada, sargento. Fortes como as de uma prisão. Ninguém poderia passar através destas janelas.

— Muito bem, — disse Heath. — Agora vocês dois vão com Burke.

Depois que eles saíram, ativo homem de terno de sarja azul e chapéu-de-côco, cuja esfera de atividade parecia concentrar-se na lareira, pôs na mesa duas pontas de cigarro.

— Encontrei isto no cano do gás, sargento, — explicou ele sem grande entusiasmo. — Não é muita coisa, mas nada mais achei.

— Está bem, Emery, — disse Heath, deitando um olhar descontente para o achado. — Você não precisa esperar. Ver-nos-emos depois no escritório.

Hagedorn avançou, com grande solenidade. — Creio que eu também posso ir. Levo esta bala; há nela alguns sinais especiais. Não precisa dela, sargento?

— Para quê? — perguntou ele, sorrindo. — Leve-a, mas não a perca.

— Não a perderei — assegurou Hagedorn em tom sério e aborrecido. E, sem dirigir sequer um olhar para o Promotor ou para o inspetor, saiu com um movimento levemente balanceado, que lembrava o de um grande anfíbio.

Vance, que estava a meu lado perto da porta, voltou-se e seguiu Hagedorn ao vestíbulo, onde conversaram em voz baixa por alguns minutos. Vance parecia fazer perguntas e, embora eu não estivesse bastante perto para ouvir tudo, apanhei algumas palavras: "trajetória", "velocidade inicial", "ângulo", "ímpeto", "impulso", "desvio", e outras que tais — e eu estava curioso sobre o que podia ter motivado o estranho interrogatório.

Quando Vance agradecia a Hagedorn suas informações, entrou no vestíbulo o inspetor O’Brien.

— Aprendendo rápido? — perguntou, sorrindo, a Vance, com ar protetor. E, sem esperar resposta, para o capitão: — Venha, eu o levarei à cidade.

Markham, que o ouvira, perguntou-lhe se teria lugar para Dindwiddie também.

— Certamente, Sr. Markham.

Saíram os três, e ficamos na sala com o Promotor e Heath. E, como se obedecêssemos a um impulso comum, sentamo-nos todos. Vance tomou uma cadeira junto da porta da sala de jantar, em frente àquela onde Benson tinha sido assassinado.

As maneiras e ações de Vance tinham chamado particularmente minha atenção, desde que chegáramos. Ao entrar na sala, ajustara cuidadosamente o monóculo. Esse gesto, apesar da aparente indiferença com que o executava, demonstrava nele interesse. Quando seu espírito era despertado por alguma impressão e desejava apanhar o assunto prontamente, punha logo o monóculo. Podia ver perfeitamente sem ele, e obedecia apenas a uma sugestão mental. Era como se o aumento de nitidez de visão influísse sutilmente na acuidade do seu espírito. (*)

(*) Os olhos de Vance eram levemente bifocais. O olho direito era astigmático, de 1/2, enquanto que o esquerdo era praticamente normal.


A princípio mirara o salão sem curiosidade, acompanhando com certo ar de apática fadiga o que ali se passara; mas, durante o breve interrogatório de Heath a seus subordinados, revelara-lhe o olhar satisfação irônica. Depois de algumas perguntas gerais feitas a Dindwiddie, passeara pela sala, aparentemente sem nenhum fim determinado, olhando para os vários objetos e móveis. Afinal, detivera-se a examinar o sinal da bala no painel; depois fora até à porta, esquadrinhando o vestíbulo com o olhar.

A única coisa, que parecera prender-lhe a atenção fora o cadáver. Parará diante dele por alguns minutos, estudando-lhe a posição, e chegou a inclinar-se sobre o braço espichado na mesa, como se quisesse ver exatamente como a mão do morto segurava o livro. A posição das pernas cruzadas, contudo, o interessara muito, e se demorara a estudá-las tempo considerável. Afinal, tornara a por o monóculo no bolso do colete, e viera juntar-se a mim e a Dindwiddie, perto da porta, onde se conservou de pé, olhando indiferentemente para Heath e os outros investigadores, até a partida do capitão Hagedorn.

Mal nos sentáramos, apareceu a ordenança à porta do vestíbulo.

— Está aí um homem do posto policial, que deseja falar com o oficial encarregado do caso. Mando-o entrar?

Heath assentiu, e um momento depois um grande irlandês vestido à paisana dava entrada na sala. Cumprimentou Heath, mas reconhecendo o Promotor, fez dele o alvo do seu relatório.

— Sou o agente McLaughlin, senhor, do posto da Rua 47, Oeste, — informou ele. — Estava de serviço nesta zona a noite passada. Mais ou menos à meia-noite, suponho eu, vi um grande Cadillac cinzento parado em frente desta casa. Chamou-me a atenção porque trazia atrás uma porção de utensílios de pesca e todos os faróis acesos. Quando ouvi hoje falar no crime, relatei isto ao sargento do posto, e ele ordenou-me que viesse aqui contar-lhe o fato.

— Perfeitamente, — comentou Markham e, com um gesto, entregou o assunto a Heath.

— Talvez isso signifique alguma coisa, — admitiu este, duvidoso. — Quanto tempo estaria parado aqui esse carro, agente?

— Uma boa meia hora, sem dúvida. Estava ali antes da meia-noite, e quando voltei, cerca de trinta minutos após, ainda aí se achava. Quando tornei a passar, porém, já se tinha retirado.

— Não viu mais nada? Ninguém no carro, ou ao pé dele, que pudesse ser o dono?

— Não, senhor. Nada vi.

Fizeram-lhe mais algumas perguntas semelhantes, mas nada mais se obteve, e despediram-no.

— Como quer que seja, — observou Heath, — a história do carro parado pode servir para entreter os jornalistas.

Vance estivera sentado durante o interrogatório de McLaughlin, quase cochilando — duvido até que tenha ouvido mais do que as primeiras palavras do agente — e depois, reprimindo um bocejo, levantou-se, foi até à mesa de centro e pegou numa das pontas de cigarro que tinham sido encontradas no combustor de gás da lareira. Rolou-a entre o polegar e o indicador, esquadrinhou-a, rasgou o papel com a unha e levou o fumo assim exposto ao nariz.

Heath, que estivera a observá-lo com raiva contida, inclinou-se para diante, perguntando-lhe em tom truculento:

— Que faz o senhor?

Vance ergueu os olhos, sinceramente espantado.

— Apenas cheirando o fumo. — respondeu com indiferença condescendente. — É fraco, mas uma mistura delicada.

Os músculos da face de Heath retesaram-se, enquanto ele replicava, irado:

— Pois faria melhor deixando-o onde estava, senhor. É perito em fumos? — continuou, depois de mirar Vance de alto a baixo.

— Oh! não, — respondeu suavemente Vance. — Minha especialidade são os cartuchos em forma de escaravelho, da dinastia dos Ptolomeus.

Markham interveio, diplomaticamente:

— Na verdade, Vance, você não devia tocar em coisa alguma aqui, estando as investigações no pé em que estão. Não sabe o que pode ter importância: aqueles cotos de cigarros podem vir a ser provas significativas.

— Provas? — repetiu Vance docemente. — Quem o diria! Engraçadíssimo...

Markham estava muito contrariado, e Heath, ainda que sentindo o sangue a ferver, não fez comentário algum; até forçou um sorriso desconsolado. Sem dúvida, achou que fora um pouco abrupto com o amigo do Promotor, embora isso ainda tornasse o amigo mais merecedor da reprimenda.

E não é que Heath fosse bajulador na presença dos superiores. Conhecia seu valor, e demonstrava-o, desempenhando as tarefas que lhe incumbiam com obstinada indiferença pelo seu próprio progresso político. Sua firmeza, e a solidez de caráter que decorria dela, granjearam-lhe o respeito e o apreço dos superiores.

Era grande, forte, elegante e ágil, como um boxeador bem treinado. Seus olhos azuis e duros eram singularmente brilhantes e penetrantes. Tinha nariz pequeno, o queixo oval e largo, a boca austera e direita, com os lábios sempre contraídos. Embora já bem perto, nenhum fio branco se percebia em sua cabeleira curta, cortada à Pompadour. A voz era áspera, mas ele raramente a erguia. Era, sob muitos aspectos, o tipo convencional do investigador. Mas havia nele também alguma coisa que lhe acentuava a personalidade, dir-se-ia uma força que lhe vinha do próprio mérito. E, naquela manhã, ao olhá-lo, senti que o admirava, a despeito de reconhecer nele certas limitações.

— Qual é a situação exata, sargento? — perguntou Markham. — Dindwiddie deu-me apenas informações gerais.

Heath pigarreou.

— Avisaram-nos pouco antes das sete. A governanta de Benson, uma Sra. Platz, telefonou para o posto dizendo que o encontrara morto, e pedia que mandassem alguém cá sem demora. A mensagem foi, sem dúvida, transmitida ao posto central da Polícia. Eu não estava lá no momento, mas Burke e Emery estavam de serviço, e, depois de avisarem o inspetor Moran, vieram para aqui. Já encontraram alguns agentes do posto local fazendo as diligências habituais. Chegando aqui, e inteirando-se da situação, o inspetor telefonou-me, pedindo-me que me apressasse. Quando cheguei, os agentes do posto local tinham saído, e tinham vindo outros três, do setor de homicídios. O inspetor telefonou também ao capitão Hagedorn — entendeu que o caso era bastante importante para chamá-lo imediatamente — e o capitão acabava de chegar quando o senhor entrou. O Sr. Dindwiddie veio logo depois do inspetor, e telefonou-lhe imediatamente. O inspetor-chefe O’Brien chegou pouco antes de mim. Interroguei a Sra. Platz e meus homens examinavam o local quando o senhor chegou.

— Onde está agora a Sra. Platz?

— Lá em cima, sob a guarda de um dos agentes do posto. Ela mora aqui mesmo.

— Por que fez menção da hora específica de doze e meia ao médico?

— A Sra. Platz disseme que ouviu uma detonação naquele momento, e supus que fosse o tiro. Suponho agora que foi o tiro

— isso concorda com outras coisas.

— Acho melhor conversarmos outra vez com a Sra. Platz,

— sugeriu Markham. — Mas primeiro diga-me: achou alguma coisa aqui na sala, alguma coisa que sirva?

Heath hesitou quase imperceptivelmente, depois tirou do bolso do casaco uma bolsa de senhora e um par de luvas compridas, de pelica branca, e colocou tudo em cima da mesa, em frente do Promotor.

— Apenas isto, que um dos homens do posto encontrou em cima da manta da lareira.

Depois de um exame distraído das luvas, Markham abriu a bolsa de mão e despejou o conteúdo sobre a mesa. Adiantei-me para olhar, mas Vance permaneceu sentado, fumando placidamente seu cigarro.

A bolsa era de fina malha de ouro, com um fecho de pequenas safiras. Menor do que as de uso comum, serviria para a noite somente. Os objetos que continha, e que Markham examinava, consistiam de uma cigarreira chata, de seda chamalotada, um frasquinho de Fleurs d'Amour, Roger et Gallet, uma caixinha de pó-de-arroz compacto, uma pequena e delicada piteira de âmbar marchetado, um batom em estojo de ouro, um lencinho bordado, de fino linho francês, com as iniciais "M. St. C." no canto, e uma chave Yale.

— Isto pode indicar-nos uma boa pista, — disse Markham, designando o lenço. — Suponho já examinou tudo cuidadosamente, sargento.

— Sim, e imagino que a bolsa pertence à mulher que estava em companhia de Benson ontem à noite. Disseme a criada que ele tinha um compromisso, e vestiu-se para jantar fora. Ela não o ouviu voltar; mas não será muito difícil descobrir essa M. St. C.

Markham tornou a pegar na cigarreira, e voltando-a de boca para baixo caiu sobre a mesa um pouco de pó de fumo. Heath ergueu-se imediatamente.

— Quem sabe se esses cigarros vinham desta cigarreira? — lembrou ele. Pegou na ponta que ficara intacta e examinou-a. — É cigarro de senhora, sem nenhuma dúvida, — continuou. — e parece ter sido fumado em piteira também.

— Peço perdão por dissentir do senhor, sargento, — disse Vance lentamente. — Estou certo de que me desculpará. Mas há um pouco de carmim no cigarro. Não se vê bem por causa da ponta dourada.

Heath lançou um olhar penetrante a Vance; estava muito admirado para se suscetibilizar. Examinou acuradamente o cigarro e voltou-se outra vez para Vance, perguntando-lhe com áspera ironia:

— Quem sabe se o senhor nos pode dizer também se os cigarros procedem deste estojo?

— A gente nunca sabe, não é? — respondeu Vance, erguendo-se indolentemente.

Pegou na cigarreira, abriu-a completamente, bateu-a contra a mesa. Examinou-lhe o interior minuciosamente, e um sorriso divertido contraiu-lhe os lábios. Metendo o indicador dentro da cigarreira, tirou um cigarrinho que fora evidentemente metido à força no fundo, e se achatara ali.

— Meus dons olfativos já não são necessários, — disse. — Mesmo à vista desarmada se conhece que os cigarros são, para falar franco, idênticos, não, sargento?

Heath sorria afàvelmente.

— Um ponto para o Sr. Markham, — disse, pondo cuidadosamente o cigarro e a ponta num envelope, que assinalou e meteu no bolso.

— Vê agora, Vance, — observou Markham, — a importância daquelas pontas de cigarro?

— Não posso dizer que sim, — respondeu o outro. — Que valor pode ter um toco de cigarro? Não se pode fumá-lo, creio eu...

— É uma prova, meu caro amigo, — explicou Markham pacientemente. — Sabe-se agora que a dona desta bolsa voltou para aqui com Benson ontem à noite, e ficou tempo bastante para fumar dois cigarros.

Vance arqueou as sobrancelhas, comicamente espantado.

— Sabe-se? Sabe-se, na verdade? Imagina-se isso, por enquanto...

— Só o que falta agora é encontrá-la, — replicou Heath.

— Se isso pode facilitar a pesquisa, — disse Vance lentamente, — digo-lhe que é bem moreninha; agora, não posso compreender por que vão incomodar essa senhora... Realmente, não posso, não posso saber.

— Por que diz que é uma moreninha? — perguntou Markham.

— E se o não for, — retrucou Vance afundando-se negligentemente na poltrona, — deverá consultar um especialista de beleza, para que lhe indique o cosmético que deve usar. Vejo que ela usa o pó de tonalidade raquel e o batom para morenas, de Guerlain, uma coisa que as louras não costumam fazer, meu caro.

— Cedo, naturalmente, à sua opinião de perito, — disse Markham, sorrindo. — Creio que teremos de procurar uma moreninha, sargento.

— É também a minha opinião, — disse este, rindo.

Era evidente que já perdoara inteiramente a Vance a destruição da ponta de cigarro.


IV

 

A VERSÃO DA GOVERNANTA

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 11 da manhã)

 


— E agora, — lembrou Markham, — podíamos percorrer a casa. Suponho que você já o fez, sargento, mas gostaria de ver a disposição das coisas. De toda maneira, não quero interrogar a governanta antes que removam o corpo.

Heath levantou-se.

— Muito bem, Sr. Markham. Eu mesmo gostaria de ver a casa outra vez.

Atravessamos o vestíbulo e seguimos pelo corredor que conduz à parte posterior da casa. No extremo, à esquerda, havia uma porta para o porão, mas estava trancada.

— O porão é utilizado agora apenas para depósito, — explicou Heath, — e a porta que dá para a rua está pregada. A Sra. Platz dorme em cima. Benson vivia aqui sozinho, e há muitos quartos desocupados. A cozinha é neste andar.

Abriu uma porta do lado oposto do corredor e entramos numa cozinha pequena, mas moderna. As duas altas janelas, que davam para o pátio ladrilhado atrás da casa, ficavam a uns dois metros e meio do chão, e eram guarnecidas por barras de ferro; tinham os postigos fechados e aferrolhados. Uma grande porta dava acesso à sala de jantar, situada atrás do salão. As duas janelas, que davam para um pequeno pátio ladrilhado, — um verdadeiro poço, entre a casa de Benson e a adjacente — estavam fechadas e eram também guarnecidas de barras de ferro.

Voltamos ao corredor e paramos um momento ao pé da escada que levava ao pavimento superior.

— É fácil de ver, — observou Heath, — que quem quer que tenha atirado em Benson entrou pela porta da frente. Não há mais nenhuma entrada. Como vivia só, parece que Benson temia um tanto os ladrões. A única janela que não tem barras de ferro é a que dá para os fundos da casa, e essa estava com os ferrolhos corridos; e apenas dá para o pátio interior. As janelas da frente, no salão, têm aquelas grades; logo, não podem ter sido utilizadas, nem para atirar dali, pois que Benson foi alvejado do lado oposto. É bem claro que o assassino entrou pela porta da frente.

— Parece que sim, — disse Markham.

— E perdoem-me por dizer isto. — observou Vance, — mas Benson o fez entrar...

— Sim? — retorquiu Heath indiferente. — Veremos tudo isso mais tarde, creio eu.

— Oh! Sem dúvida, — acrescentou Vance, secamente. Subimos e entramos' no quarto de dormir de Benson. Mobiliado com severo gosto, tudo nele estava em perfeita ordem: a cama feita mostrava que ninguém ali dormira naquela noite, e as cortinas estavam descidas. Nas costas de uma cadeira, a casaca e o colete de pique branco de Benson. Sobre a cama um colarinho postiço e uma gravata preta, atirados para ali, sem dúvida, quando Benson os retirara ao voltar. Um par de sapatos de entrada baixa ao pé da cama, ao lado de uma banqueta; em um copo dágua sobre a mesa de cabeceira, uma chapa de platina com quatro dentes. E sobre o toucador, uma peruca feita com admirável perfeição.

A peruca atraiu particularmente a atenção de Vance, que a examinou detidamente.

— Que coisa interessante! — comentou ele. — Parece que nosso defunto amigo usava cabelo postiço. Sabia disso, Markham?

— Sempre o suspeitei, — respondeu o Promotor, indiferentemente.

Heath, que ficara parado no limiar da porta, parecia um pouco impaciente.

— Neste andar há apenas mais um quarto, — disse, descendo para o vestíbulo. — É também um quarto de dormir, para hóspedes, segundo explicou a governanta.

Eu e Markham olhamos da porta, mas Vance permaneceu no topo da escada, absolutamente desinteressado pelos arranjos domésticos de Alvino Benson. Quando subimos ao terceiro andar, ele desceu para o vestíbulo; e, ao voltarmos da nossa visita de inspeção, encontramo-lo a olhar distraído para os títulos dos livros da estante.

Acabávamos de descer quando chegaram dois homens com uma maça. Era o rabecão que vinha buscar o corpo, para levá-lo para o Necrotério; e estremeci de horror ao ver a maneira brutal e indiferente como cobriram o corpo, puseram-no na maça, levaram-no da sala, e enfim o empurraram para dentro do carro. Contudo, Vance apenas dirigiu aos homens um ligeiro olhar, não lhes dando maior atenção. Encontrara um livro com uma linda encadernação de Humphrey-Milford, e estava absorvido nas ilustrações de Roger Payne.

— Parece-me que agora é ocasião de vermos a Sra. Platz, — disse Markham.

Heath foi à escada e deu uma ordem em alta voz. Sem demora entrou na sala uma mulher grisalha, acompanhada por um homem à paisana, que fumava um comprido cigarro. Era ela uma mulher simples, vestida à moda antiga, com um ar maternal, calmo e benevolente. Julguei-a logo muito inteligente e isenta de nervosismos, e sua atitude resignada veio confirmar minha primeira impressão. Sem embargo, parecia dotada daquela astúcia taciturna, tanta vez encontrada nos ignorantes.

— Sente-se, Sra. Platz, — disse Markham, cumprimentando afàvelmente. — Sou o Promotor Público, e desejo fazer-lhe algumas perguntas.

Ela sentou-se ao pé da porta e esperou, olhando ansiosa para nós. A voz delicada e persuasiva de Markham pareceu encorajá-la, porque suas respostas vieram cada vez mais fluentes. E o que resultou de um quarto de hora de interrogatório pode ser assim resumido:

A Sra. Platz era a única criada de Benson, e servia-o há quatro anos. Morava na casa, tendo seu quarto no terceiro andar, rios fundos.

Na véspera à tarde, Benson voltara do escritório mais cedo do que o costume — mais ou menos às quatro horas — e anunciara que não jantaria em casa. Ficara no salão, com a porta do vestíbulo fechada, e subira às seis e meia para vestir-se.

Saíra de casa mais ou menos às sete, mas não lhe dissera aonde ia. Apenas avisara que poderia voltar cedo, mas que não era preciso ficar à sua espera — conforme era costume quando trazia convidados. Fora a última vez que o vira vivo. Ela não o ouvira entrar quando voltou.

Às dez horas subira, e, como fazia calor, deixara a porta entreaberta. Despertara-a uma detonação, algum tempo depois. Assustada, acendera a luz da mesa de cabeceira, e vira então que já passara justamente meia hora da meia-noite, no pequeno despertador que tinha ali para a acordar de manhã. Como fosse tão cedo, tranqüilizara-se, porque Benson, fosse aonde fosse à noite, raramente voltava antes das duas; estes fato, mais o silêncio da casa lhe fizeram supor que o rumor que a acordara fora apenas a descarga de algum carro na Rua 49. Isso não lhe causara, pois, impressão alguma, e adormecera de novo.

Às sete da manhã descera, como costumava, para começar suas obrigações diárias, e, ao sair para ir buscar o leite e o creme, descobrira o corpo de Benson.

Todas as cortinas do salão estavam descidas e a princípio julgou que ele adormecera na cadeira, mas quando viu o sinal da bala e notou que a luz fora apagada, compreendera que estava morto. Fora imediatamente ao vestíbulo e telefonara para a Polícia, comunicando o crime. Lembrando-se depois do irmão de Benson, major Antônio Benson, telefonara-lhe também. Ele tinha vindo logo, chegando quase com os investigadores do posto da Rua 27, Leste. Fizera-lhe algumas perguntas, falara com os homens à paisana, e depois se retirara antes de chegarem os homens da Chefatura.

— E agora, Sra. Platz, — disse Markham, olhando para as notas que tomara, — uma ou duas perguntas ainda, e não a incomodaremos mais... Notou a senhora alguma coisa nos atos do Sr. Benson na noite passada, por onde possa supor que estivesse preocupado ou — como direi? — temesse algum acidente?

— Não, senhor, — respondeu prontamente a mulher. — Até parecia andar mais alegre nos últimos 'oito dias.

— Noto que a maior parte das janelas deste andar são gradeadas. Tinha ele medo particular de ladrões, ou temia que alguém invadisse a casa?

— Não... não era bem isso... — respondeu ela, hesitante. — É que ele costumava dizer que nesta cidade cada um tinha de se guardar a si próprio, porque — com o seu perdão, senhor —a polícia não era bem organizada; por isso se prevenia...

Markham voltou-se para Heath, sorrindo.

— Tome nota especial disso, sargento, para os seus arquivos. Sabe de alguém que tivesse ódio ao Sr. Benson, Sra. Platz?

— Nenhuma criatura, senhor, — respondeu a governanta com calor. — Era um homem esquisito a certos respeitos, mas todos pareciam gostar dele. Fazia ou recebia visitas constantemente. Não posso saber por que alguém o quisesse matar.

Markham tornou a olhar para as suas notas.

— Penso que por agora não há mais nada... E você, sargento, tem alguma coisa a perguntar?

Heath pensou um momento.

— Não, não me lembro de nada mais por enquanto... Mas a Sra. Platz, — acrescentou ele, dirigindo-lhe um olhar frio. — ficará aqui nesta casa, até que lhe seja permitido retirar-se. Queremos interrogá-la outra vez, mais tarde. Mas não poderá falar com pessoa alguma, compreende, Sra. Platz? Dois de meus homens ficarão aqui, de guarda.

Durante este interrogatório, Vance tomara apontamentos na folha de guarda de um caderninho de endereços; enquanto Heath falava, ele rasgou a folha e entregou-a a Markham, que, ao lê-la, franziu a testa e contraiu os lábios. Depois de uma ligeira hesitação, porém, dirigiu-se de novo à governanta.

— Disse há pouco, Sra. Platz, que todos gostavam do Sr. Benson. E a senhora mesma, gostava dele?

A mulher, desviando o olhar, replicou resolutamente:

— Oh! Eu, senhor, apenas trabalhava para ele, e não tenho queixa alguma do modo por que me tratava.

Contudo, e a despeito destas palavras, dava a impressão de "que, ou não gostava muito de Benson, ou desaprovava profundamente os seus atos. Markham, porém, não levou mais longe o assunto.

— Outra coisa, Sra. Platz, o Sr. Benson tinha em casa alguma arma de fogo? Sabia acaso se ele possuía um revólver?

Pela primeira vez, durante o interrogatório, a mulher pareceu agitada, assustada até.

— Sim... senhor... eu... penso que ele tinha um, — terminou ela, receosa.

— E onde o guardava?

Olhou ao redor, apreensiva, como se pesasse bem a conveniência de falar francamente. Depois respondeu em voz baixa:

— Naquela gaveta secreta da mesa de centro. O senhor... o senhor... aperte esse pequeno botão de cobre para abri-la.

Heath apressou-se a apertar o botão indicado. Surgiu uma gavetinha rasa, e dentro dela um revólver Smith and Wesson 38, com a coronha embutida de madrepérola. Pegou nele abriu-o e examinou o cilindro.

— Carregado, — disse, laconicamente.

Uma expressão de imenso alívio espraiou-se pelo semblante da mulher, que suspirou profundamente.

Markham se levantara e olhava para o revólver, por cima do ombro de Heath.

— É melhor que você se encarregue disso, sargento, ainda que não me pareça ter alguma relação com o caso.

Voltou para a sua cadeira e, examinando outra vez a nota que Vance lhe dera, dirigiu-se de novo à governanta:

— Mais uma pergunta, Sra. Platz. A senhora disse que o Sr. Benson veio mais cedo, tendo ficado nesta sala até à hora de jantar. Não recebeu nenhuma visita durante esse tempo?

Eu, que olhava atentamente para a mulher, julguei perceber que ela apertava com força os lábios. Seja como for, é certo que se endireitou na cadeira antes de responder.

— Não, senhor, que eu saiba.

— E na noite passada? A campainha tocou alguma vez depois que a senhora se recolheu?

— Não, senhor.

— Se tocassem teria ouvido, mesmo que estivesse dormindo?

— Sim, senhor. Há uma campainha justamente ao lado da minha porta, a mesma da cozinha. Toca em ambos os lugares ao mesmo tempo. Assim o quis o Sr. Benson.

Markham agradeceu-lhe e despediu-a. Depois que a mulher saiu, ele olhou interrogativamente para Vance.

— Que idéia foi a sua ao entregar-me aquelas perguntas? — Talvez eu me tenha enganado, — disse Vance, — mas, quando ela estava exaltando a popularidade do morto, pareceu-me que exagerava um pouco. Julguei descobrir uma antítese inconsciente no seu elogio, e isso me deu a idéia de que talvez ela mesma não estivesse tão encantada pelo patrão.

— E que foi que lhe deu a idéia da arma de fogo?

— Essa pergunta era um corolário das suas, Markham, a respeito das janelas gradeadas e do medo aos ladrões. Se Benson tinha medo de arrombadores ou de inimigos, trataria de ter armas à mão, não acha?

— Bem, — disse Heath. — Em todo caso, sua curiosidade desencavou um belo revólver, que provavelmente jamais servira.

— A propósito, sargento, — retrucou Vance, sem fazer caso do sarcasmo do outro, — que resultado pensa tirar desse lindo revolverzinho?

— Por agora. — replicou Heath com fingida gravidade, — deduzo que o Sr. Benson guardava um Smith and Wesson de cabo de madrepérola em uma gaveta secreta da sua mesa de centro.

— O senhor o diz, realmente! — atalhou Vance simulando admiração. — Oh! Que grande talento!...

Markham interrompeu as zombarias.

— Por que perguntou você se vieram visitas, Vance? É óbvio que ninguém mais esteve aqui...

— Oh! Outra fantasia minha. Senti um desejo ardente e impulsivo de ouvir o que diria a Sra. Platz.

Heath estudava Vance curiosamente. Dissipava-se-lhe a primeira impressão, e começava a suspeitar de que, sob o exterior distraído e amável do outro, se ocultava alguma coisa mais sólida do que a princípio julgara. Não o satisfizeram inteiramente as explicações que Vance dera a Markham, e parecia que desejava penetrar as razões verdadeiras das perguntas suplementares ao interrogatório a que o Promotor submetera a governanta. Era astuto, não lhe faltava habilidade de homem mundano, para compreender as intenções; mas Vance era diferente dos outros, daqueles com quem estava habituado a lidar, e era, para ele, um enigma.

Afinal, desistiu de decifrá-lo e aproximou a cadeira da mesa, dizendo com certa secura:

— Agora, Sr. Markham, vamos fixar nossas esferas de ação, para não duplicar o trabalho. Quanto mais cedo eu movimentar meus homens, melhor será.

Markham concordou prontamente.

— A investigação foi-lhe entregue completamente, sargento. Eu estou aqui para ajudá-lo em qualquer coisa de que necessite.

— É muita bondade sua, senhor, — replicou Heath. — Mas parece-me que haverá bastante trabalho para repartirmos... Creio que eu posso ver se encontro a dona da bolsa, e também destacar alguns homens para indagarem dos companheiros de vida noturna de Benson — a governanta poderá indicar-me alguns — que serão um ponto de partida. Procurarei também aquele Cadillac... Procuraremos depois as suas amizades femininas — que suponho eram em grande número.

— E eu poderei obter alguma coisa do major nesse sentido, — disse Markham. — Ele me dirá algo do que desejo saber. E por ele também saberei quem eram os seus associados nos negócios.

— Ia lembrar que o senhor poderia fazer isso melhor do que eu, — ajuntou Heath. — Precisamos de encontrar depressa alguma coisa que nos dê a pista para achar o resto. E creio que,, quando encontrarmos a senhora que jantou com ele a noite passada e voltou para aqui, saberemos muito mais do assunto.

— Ou muito menos, — murmurou Vance. Heath encarou-o e respondeu-lhe com petulância:

— Sr. Vance, já que deseja aprender alguma coisa destes negócios, deixe-me dizer-lhe que, quando alguma coisa sai de través neste mundo, é sinal certo de que se deve procurar uma mulher no caso.

— Ah! Sim, — disse Vance sorrindo. — Cherchez la femme... uma noção antiga. Até os romanos tiveram a mesma superstição — e exprimiram-na no seu — Dux Femina facti.

— Seja como for que a tivessem exprimido, tiveram a idéia acertada. E não admita que ninguém lhe diga o contrário.

Ainda uma vez Markham interveio, como diplomata:

— Espero que esse ponto seja resolvido depressa... E agora, sargento, se você não tem outra coisa a dizer, irei embora. Disse ao major Benson que o veria ao almoço, e talvez tenha alguma notícia para você logo à noite.

— Muito bem. Eu ficarei por aqui, a ver se há alguma coisa mais a observar. Mandarei guardar a casa e porei uma sentinela de vigia à Sra. Platz. Falarei com os jornalistas, informando-os do Cadillac desaparecido e do misterioso revólver na gaveta secreta. Acho que poderão entreter-se com isso... Se descobrir mais alguma coisa, telefonarei.

Depois de apertar as mãos do Promotor, voltou-se para Vance e, com grande surpresa minha e creio que também de Markham, disse-lhe amàvelmente:

— Passe bem, senhor. Espero que tenha aprendido alguma coisa esta manhã.

— O senhor ficaria positivamente confundido, sargento, se soubesse tudo o que aprendi, — respondeu negligentemente Vance.

Pela segunda vez notei no olhar de Heath aquela curiosidade maligna, mas foi só um segundo. E respondeu secamente:

— Pois estou contente com isso.

Saímos, e o guarda à paisana chamou um auto.

— Então é deste modo que nossa orgulhosa polícia chega aos misteriosos porquês dos assuntos criminais? Oh! — disse Vance, quando seguíamos para a cidade. — Markham, meu velho amigo, como podem aqueles rudes rapazes ser algumas vezes bem sucedidos quando procuram o criminoso?

— Você presenciou apenas os mais simples preliminares, — explicou Markham. — Há certas coisas em que devemos seguir a rotina — ex abundanti cautelae, como dizemos nós, os juristas.

— Mas, palavra! Que técnica! — suspirou Vance. Ah! quantum est in rebus inane! Como dizemos nós, os leigos...

— Você não dá muito pela capacidade de Heath, eu sei. — disse Markham com voz pacifica, — mas ele é muito hábil, e também é certo que é fácil desconhecer-lhe o mérito.

— Em todo caso, — murmurou Vance, — estou-lhe muito agradecido, e a todos, por me terem proporcionado ocasião de apreciar seu trabalho solene. Divertiu-me muito, para não dizer que me edificou. Chamou-me a atenção seu Esculápio oficial — pareceu-me um rapaz alegre, destituído de emoção, e incapaz de se impressionar com um cadáver. Na verdade, poderia ter tomado o crime como um sério meio de vida, em vez de ter estudado medicina.

Markham, que recaíra em inquieta meditação, conservou-se a olhar pela janela em sombrio silêncio, até chegarmos à casa de Vance.

— Não me agrada o curso que vão tomando as coisas, — disse por fim, ao dobrarmos a esquina. — Tenho um sentimento confuso a respeito deste caso.

Vance olhou-o com o rabo do olho, perguntando-lhe, em seguida, com insólita seriedade:

— Markham, você suspeita de alguém?

— Antes fosse assim... Os crimes premeditados não se descobrem facilmente, e este caso me parece particularmente complexo.

— Que idéia! — disse Vance, já quando o auto parava. — Pois eu o achei extraordinariamente simples.


V

 

COLIGINDO INFORMAÇÕES

 


(Sábado, 15 de junho — de manhã)

 


Certamente ainda não foi esquecida a sensação que despertou o assassinato de Alvino Benson. Foi um desses crimes que impressionam irresistivelmente a imaginação popular, cercado como foi de uma impenetrável aura de mistério — base de todo o romance. Muitos dias se passaram antes que viesse a luz definitiva esclarecer as circunstâncias do crime; e numerosos ignes fatui também apareceram, contribuindo para desorientar a opinião pública. E de todos os lados surgiam estranhas suposições.

Não era Alvino Benson uma figura romântica, sob nenhum aspecto, mas era muito conhecido, e sua personalidade estivera muito em evidência. Era membro da boêmia rica de Nova York — desportista apaixonado, jogador audacioso e folgazão profissional; e sua vida, lidando com o demi-monde, tivera seu esplendor. Suas façanhas nos cabarés e cafés noturnos foram por muito tempo o assunto predileto de histórias exageradas e comentários de vários jornais e revistas locais, que sustentam os exploradores de escândalos da Broadway.

Ao tempo de sua súbita morte, Alvino Benson mantinha com o seu irmão Antônio, uma agência de corretagem no número 21 de Wall Street, sob a firma Benson Benson. Os outros corretores da praça consideravam-nos como negociantes astutos, embora não muito escorreitos, no que respeita às leis e estatutos da Bolsa de Valores de Nova York. Extraordinariamente diferentes em gostos e temperamento, pouco se viam os dois irmãos fora do escritório. Alvino dedicava ao prazer todos os seus ócios, e era o freqüentador natural de todos os cafés mais importantes da cidade; quanto a Antônio, que era o mais velho, e servira como major na última guerra, levava uma vida tranqüila e simples, passando nos clubes a maior parte dos seus pacatos serões. Eram ambos, entretanto, populares nos seus respectivos meios, nos quais adquiriram muitos admiradores.

A paixão que o crime despertou no mundo comercial explica até certo ponto o interesse que lhe dedicaram os jornais. Além disso, a época era de calma no campo das notícias sensacionais, e daí o afã com que os jornais se apoderaram do assunto, dedicando-lhe páginas e páginas, mesmo as primeiras, com uma prodigalidade rara em tais casos. (*)

(*) Nem o célebre caso Elwell, que se deu alguns anos depois, e apresentava alguns pontos de semelhança com este, causou maior sensação, a despeito de ser Elwell mais vastamente conhecido do que Benson, e de estarem envolvidas nele pessoas de maior responsabilidade na sociedade. Em verdade, o caso Benson foi então lembrado várias vezes, e um jornal da oposição lamentou em editorial que John F. X. Markham já não fosse Promotor Público de Nova York.


Investigadores eminentes de todo o país tiveram de conceder entrevistas a jornalistas impacientes. Reviveu-se a história de muitos crimes célebres, que tinham ficado impunes. Jornais houve que contrataram videntes e astrólogos, para ver se esclareciam o mistério por diversos processos metafísicos. Esparramavam-se pelas páginas desses jornais fotografias e diagramas detalhados, que diariamente ilustravam as efusões jornalísticas.

Em todas as versões apareciam o Cadillac cinzento e o revólver Smith and Wesson, de cabo marchetado. Vieram à luz reproduções fotográficas de carros Cadillac "retocadas", e reconstruídas de acordo com a descrição do agente McLaughlin, algumas até ostentando os utensílios de pesca. Fora batida uma fotografia da mesa de centro de Benson, com a gaveta secreta ampliada, e reproduzida em medalhão. Uma revista dominical chegara até a pagar a um marceneiro uma dissertação sobre compartimentos secretos nos móveis.

Desde o início, a polícia julgara o caso Benson árduo e difícil. Uma hora depois que nós deixamos o teatro do crime, os agentes do Departamento de Homicídios, às ordens de Heath, começaram uma investigação sistemática. Devassaram toda a casa, leram toda a correspondência particular do morto, mas nada descobriram que pudesse trazer alguma luz sobre a tragédia. Nenhuma arma, além do revólver Smith and Wesson, fora encontrada; e uma segunda inspeção feita nas grades das janelas demonstrou que de fato estavam intactas. Isso indicava que, ou o assassino se servira de uma chave para entrar, ou o próprio Benson o introduzira em casa. Diga-se de passagem que a Heath repugnava ainda admitir esta última hipótese, apesar da afirmação positiva da Sra. Platz, de que nenhuma outra pessoa, a não ser ela e Benson, possuía a chave da porta.

À falta de um indício definitivo, além da bolsa e das luvas, o único meio era interrogar os amigos de Benson e seus sócios, na esperança de descobrir algum fato que fornecesse uma pista. Heath também confiava nesse processo para estabelecer a identidade da dona da bolsa.

Inútil foi o esforço feito para precisar onde Benson tinha passado o serão; muitos amigos seus foram interrogados, visitaram-se os restantes onde habitualmente jantava, mas ninguém pôde dizer que o vira naquela noite. Por outro lado, nenhuma informação geral de natureza útil apareceu, que pudesse guiar a polícia nas suas pesquisais. Aparentemente, Benson não tinha inimigos: não questionara seriamente com ninguém; e seus negócios marchavam na ordem habitual.

Era o major Benson, naturalmente, a pessoa indicada em primeiro lugar para dar informações, em vista do seu íntimo conhecimento dos negócios do irmão. E por isso mesmo o escritório da Promotoria pôs seu chefe em campo desde o primeiro momento. Markham almoçou com o major Benson no dia em que o crime foi descoberto e, a despeito do desejo que este mostraria de ajudar nas pesquisas — mesmo em detrimento do caráter do irmão —, sua contribuição foi de pouco valor. Explicou a Markham que, conhecendo embora a maior parte dos companheiros do irmão, não podia ainda assim designar nenhum que tivesse uma razão particular para cometer tal crime; nem sabia de ninguém que pudesse guiar a polícia na busca que esta fazia. Admitiu, contudo, que havia um aspecto da vida do irmão sobre o qual não estava muito bem informado, € lamentou não poder sugerir um meio de aclarar o mistério. Insinuou, porém, que o irmão tinha certas relações equívocas, aventurando a opinião de que talvez por esse lado se descobrisse um motivo para o crime.

Aproveitando as vagas e confusas sugestões do major Benson Markham pusera em campo imediatamente dois investigadores com instruções para fazer pesquisas apenas em torno das relações femininas de Benson, de modo que não surgisse a suspeita, por parte da Polícia Central, de uma usurpação de suas atribuições. E, tendo em conta o interesse que Vance demonstrara pelo interrogatório da criada, encarregara um homem de examinar e averiguar os seus antecedentes e parentescos.

Soubera assim que a Sra. Platz nascera em uma pequena cidade da Pennsylvania, de pais alemães, já falecidos, e que era viúva há dezesseis anos. Antes de vir para a casa de Benson, servira uma família durante doze anos, e deixara o lugar somente quando sua ama desfizera a casa, para ir morar em um hotel. Essa senhora, interrogada, dissera que a governanta tinha uma filha, mas nunca vira a criança, nem sabia nada dela. Nada havia nessas informações que se pudesse aproveitar, e o relatório foi ·escrito por mera formalidade.

Heath, embora não acreditasse na interferência do Cadillac cinzento no crime, determinara uma intensa busca em toda a cidade, e nisso os jornais prestaram considerável serviço — com a ampla publicidade sobre o carro procurado. Sucedeu, entretanto, um fato curioso, que deu à polícia a esperança de que esse carro trouxesse a desejada pista, esclarecendo o mistério. Um varredor de rua, tendo ouvido contar, ou lido, a história dos petrechos de pesca, narrou que achara duas canas de pesca, amarradas, num ·dos passeios do Central Park, perto do Columbus Circle. Restava saber se essas duas varas pertenciam ao equipamento do auto visto pelo agente McLaughlin. Podiam ter sido, sem dúvida, atiradas do carro em fuga; mas também podiam ter sido perdidas por qualquer outra pessoa que passasse pelo Parque. Nenhuma informação ulterior veio elucidar o assunto, e no dia seguinte à descoberta do crime, o caso não tinha adiantado um passo, no sentido de uma solução definitiva.

Nessa manhã Vance, mandara Currie comprar todos os jornais que tratavam do crime, e passara uma hora a ler as várias versões do assassinato. Não sendo seu costume olhar sequer para:um jornal, nem mesmo por acaso, não pude conter meu espanto ao ver seu repentino interesse por um assunto tão afastado dos seus hábitos regulares.

— Não, velho amigo Van, — explicou ele indolentemente, — não estou ficando sentimental, nem humano, segundo a palavra erroneamente usada hoje. Não posso dizer com Terencio "Homo sum, humani nihil a me alienum puto", porque a maior parte das coisas a que chamam humanas são-me completamente estranhas. Mas, veja você, esta agitaçãozinha provocada pelo crime parece-me interessante, ou, como dizem os cronistas, me intriga — estúpida palavra! — Van, você devia ler esta preciosa entrevista do sargento Heath. Ele gasta uma coluna inteira para dizer: "Nada sei!" Um rapaz de valor inestimável! Decididamente, começo a gostar dele!

— Pode ser — lembrei eu, — que Heath esteja ocultando dos jornais o que sabe, como tática diplomática...

— Não, —.retrucou Vance com um movimento melancólico de cabeça, — nenhum homem é tão isento de vaidade que se queira revelar ao mundo completamente desprovido dos poderes de raciocínio humano, como ele faz em todos esses jornais da manhã — pelo mero desejo de entregar um criminoso à justiça. Isso seria levar o sacrifício até à loucura.

— Markham pode saber ou suspeitar de alguma coisa que ainda não veio a lume, — disse eu.

Vance meditou um momento.

— Isso não é possível, — disse, por fim. — Ele conservou-se modestamente no segundo plano, em todo este palavrório jornalístico. Suponho que vamos examinar melhor o assunto, não?

Foi ao telefone, ligou para o escritório do Promotor, e ouviu-o convidar Markham para almoçar no Stuyvesant.

— E que resolveu sobre a estatueta de Nadelmann, no Stieglitz? — perguntei, lembrando-lhe a razão da minha presença na sua casa àquela hora.

— Não estou hoje disposto a contemplar a simplicidade grega, — respondeu, voltando aos seus jornais.

Dizer que sua atitude me surpreendia, é pouco. Em todo o tempo de nossa amizade, jamais o_ vira esquecer seu entusiasmo pela arte, preterindo-a por qualquer outra distração. E até hoje nenhum interesse mostrara pela lei ou pelos assuntos desta. Compreendi, entretanto, que alguma coisa fora do comum se elaborava no seu cérebro, e me abstive de comentários.

Markham chegou um pouco atrasado ao clube, e já estávamos aboletados à mesa, no nosso canto favorito, quando ele entrou.

— Oh! Meu Licurgo, pondo de parte as pistas novas e significativas que foram encontradas, e as importantes revelações que o público vai conhecer em um futuro muito próximo, e todas as outras tolices da mesma espécie — em que pé estão realmente as coisas?

Markham sorriu.

— Vejo que você leu os jornais. Que pensa das narrativas? — São típicas, não há dúvida. Têm o maior cuidado em não omitir coisa alguma, exceto o essencial.

— Sim? — indagou Markham jovialmente. — E posso saber o que considera você o essencial do caso?

— Não sei, mas como simples amador pareceu-me que a peruca do caro Alvino era uma coisa muito importante e essencial...

— Benson, sem dúvida, tinha a mesma opinião, não acha?

— E havia também o colarinho e a gravata...

— E, — acrescentou Markham, — não desdenhe a dentadura num copo.

— Positivamente, você é assombroso! Sim, é coisa essencial também. E aposto que o incomparável Heath nem sequer notou isso. Mas os outros Aristóteles presentes também fizeram observações incompletas.

— Confesse que as investigações de ontem não lhe causaram boa impressão.

— Ao contrário, causaram-me estupefação. Foi um conjunto de absurdos... Tudo o que podia ser um indício foi admiravelmente desprezado. E havia afinal uma dúzia de pontos de partida, todos eles se encaminhando na mesma direção, mas nenhum dos funcionários o notou, ao que parece. Estavam todos tão ocupados em esmiuçar futilidades, como examinar os tocos de cigarros, ou as grades das janelas — que são, de passagem, bem bonitas... estilo florentino.

Markham, meio divertido, meio vexado, interveio:

— Podemos ficar tranqüilos com a ação da polícia, Vance. Ela solucionará o mistério.

— O que me admira é a sua confiança, — murmurou Vance. Mas, confie em mim e diga-me: que sabe do assassinato de Benson?

Markham hesitava, mas afinal disse:

— Vou falar-lhe confidencialmente, já se vê. Esta manhã, depois que você me telefonou, um dos homens a quem incumbi de investigar a vida mundana de Benson disseme que encontrara a mulher que deixou a bolsa e as luvas em casa dele naquela noite seguindo a pista das iniciais. Soube a seu respeito fatos interessantes. Como eu suspeitava, foi quem o acompanhou ao jantar. É uma atriz, creio que de opereta, e chama-se Muriel St. Clair.

— Já é má sorte, — suspirou Vance. — Pois eu esperava que seus esbirros não encontrassem a dama... Não tenho o prazer de conhecê-la, senão mandaria um cartão de pêsames... Agora vai você, com toda a certeza, representar de juiz de instrução, e atormentá-la o mais que puder, não?

— Sim, certamente que hei de interrogá-la, creio que é o que você quer dizer!

Via-se que Markham estava preocupado, e pouco falou até ao fim do almoço.

Quando nos sentamos mais tarde, no salão de fumar do Clube, o major Benson, que estava a olhar melancòlicamente pela janela, avistou Markham, e veio para junto de nós. Era um homem de rosto cheio, fisionomia grave e bondosa, corpo vigoroso e desempenado, e aparentava cinqüenta anos. Cumprimentou-nos distraído, a mim e a Vance, e voltou-se todo para o Promotor.

— Markham, desde nosso almoço de ontem penso sem cessar no caso, e achei que devo dizer-lhe o que sei. Há um homem chamado Leandro Pfyfe, que foi muito amigo de Alvino, e que talvez lhe possa dar alguma informação útil. Não me lembrei dele ontem, porque não mora na cidade, mas em Long Island, quase sempre — creio que em Port Washington. É apenas uma idéia minha, pois não sei de nada que possa trazer luz neste horrível caso.

E respirou profundamente, como se quisesse abafar algum sinal de comoção. E era evidente que, apesar de sua habitual frieza, estava muito abalado.

— É uma boa lembrança, major, — disse Markham, tomando uma nota nas costas de uma carta. — Vou tratar disso imediatamente.

Vance, que durante este diálogo se distraíra a olhar pela janela, voltou-se para o major:

— Que sabe do coronel Ostrander? Eu o vi muitas vezes em companhia de seu irmão.

— Oh! — disse Benson, com um gesto de dúvida. — Era um simples conhecimento. De nada adiantaria interrogá-lo.

E, voltando-se para Markham, indagou:

— Certamente ainda não teve tempo de saber coisa alguma? Markham tirou o cigarro da boca, para volteá-lo entre os dedos, pensativo. Depois disse:

— Não digo isso. Consegui saber com quem seu irmão jantou na noite de terça-feira; e sei que essa pessoa voltou à casa com ele pouco depois da meia-noite.

Calou-se, pesando, quiçá, o que ia revelar, e continuou:

— O fato é que não me são precisas muitas provas para levar a acusação perante o tribunal.

A surpresa e o assombro se estamparam no rosto do major, que, pondo a mão no ombro do Promotor, disse-lhe, movendo vagarosamente a pesada mandíbula:

— Dou graças a Deus, Markham! Vá até ao fim, por mim, — pediu ele ainda. — E, se precisar de meu auxílio, estarei aqui no Clube até tarde.

Com estas palavras, saiu do salão.

— Parece-me falta de caridade importunar o major com perguntas logo depois da morte do irmão. — comentou Markham. — Mas, a vida tem que continuar...

— E para quê, meu Deus? — murmurou Vance, abafando um bocejo.


VI

 

VANCE DÁ SUA OPINIÃO

 


(Sábado, 15 de junho — 2 da tarde)

 


Continuamos a fumar em silêncio. Vance contemplava indolentemente Madison Square; Markham, carrancudo, olhava atentamente para um desbotado retrato a óleo do velho Peter Stuyvesant, que estava por cima da lareira.

De repente, Vance voltou-se com um sorriso sardônico para Markham, dizendo-lhe pachorrentamente:

— Espanta-me, Markham, ver com que facilidade se enganam os seus investigadores do crime, com isso a que chamam indícios. Uma pegada, um auto oculto, um lenço marcado, bastam para que se lancem a uma perseguição desenfreada, com o seu eterno Ecce signum! Palavra! Eu diria que seus rapazes estão sob a influência dos romances populares. Quando se convencerão vocês de que os crimes não podem ser descobertos por deduções baseadas apenas em indícios materiais e provas circunstanciais?

Esta crítica súbita surpreendeu-nos a ambos, ainda que conhecêssemos bastante o nosso amigo para perceber que seu tom plácido e loquaz mascarava um propósito deliberado.

— Estará você defendendo a tese de que se devem ignorar as provas tangíveis de um crime? — indagou Markham, com ar benevolente.

— Perfeitamente, — declarou Vance, com a maior calma. — Não são apenas inócuas, mas perigosas... O grande mal de seus homens, Markham, é que vocês se aproximam de um crime com a idéia preconcebida de que o criminoso é, ou meio louco, ou muito descuidado. Jamais se lembram, nem por acaso, de que, se um investigador pode ver um indício, também tê-lo-ia visto o criminoso, que, nesse caso, o teria ocultado, ou dissimulado, para que o não vissem. Nunca lhe ocorreu que, um sujeito bastante hábil para planejar e executar um crime com sucesso nos dias de hoje, é também, ipso facto, bastante astucioso para forjar quantos indícios possam ser úteis aos seus projetos? Seus investigadores não querem admitir que a aparência superficial de um crime possa enganar de propósito deliberado, ou que a pista que encontram tenha sido, muitas vezes, preparada para desorientá-los...

— Receio, — observou Markham, com indulgente ironia, — que apanharíamos muito poucos criminosos, se desprezássemos todos os indícios, circunstâncias e inferências... Em regra, os crimes não têm testemunhas presenciais.

— É esse o seu erro fundamental, — observou Vance, impassível. — Cada crime, como cada obra de arte, tem as suas testemunhas. O fato de não vermos o criminoso ou o artista em ação não tem importância. O moderno investigador criminal recusaria acreditar sem dúvida que Rubens pintou a Descida da Crus, da Catedral de Antuérpia, se tivesse provas suficientes de que o artista viajava, por exemplo, em serviço diplomático, quando o quadro foi pintado. E no entanto, meu caro amigo, tal conclusão seria absurda. Ainda que as deduções em contrário fossem tão concludentes que pudessem ser tomadas legalmente em consideração, o quadro por si só demonstraria irrefutavelmente que era de Rubens. Traz a marca indelével da sua personalidade e do seu gênio — que a ninguém mais pertence...

— Mas eu não sou esteta, — replicou Markham, agastado. — Sou apenas jurista. E, quando chega a hora de determinar o autor de um crime, prefiro provas tangíveis a hipóteses metafísicas.

— Preferências que o arrastarão inevitavelmente a erros lamentáveis, — retrucou Vance suavemente.

Acendeu lentamente outro cigarro e, lançando nuvens de fumo para o teto, continuou:

— Considere, por exemplo, as conclusões a que chegou neste crime. Você trabalha com a falsa — e grave! — idéia de que conhece a pessoa que matou o inefável Benson. Disse-o ao major, e disse mais que tinha provas quase suficientes para requerer uma prisão. Sem dúvida, você possui uma grande cópia do que os sábios Solons de hoje chamam indícios veementes. Mas a verdade é que você não deitou o olho sobre o verdadeiro culpado, de nenhum modo! Vai incomodar uma pobre moça, que entretanto nada tem a ver com o crime. Markham voltou-se.

— Você acha, então, que eu vou incomodar uma inocente, não é? Mas, como só eu e meus auxiliares conhecemos as provas que há contra ela, gostaria de que me dissesse por que misteriosos processos veio a saber que não é culpada...

— É muito simples, — replicou Vance, sorrindo zombeteiramente. — Você não vê o assassino, porque ele foi bastante astuto para não deixar qualquer prova que lhe desse a pista.

Falava com a tranqüila segurança de quem enuncia um fato evidente — fato que não admite argumento.

Markham ria desdenhosamente. E replicou como um oráculo:

— Nenhum malfeitor é tão astuto que possa prever todas as contingências. E o ato mais trivial tem íntimas relações, estreitos pontos de contacto com os que o precedem ou seguem. Aliás, é fato conhecido que todo criminoso, por mais cuidadoso que seja, deixa sempre algum fio, que o delata.

— Fato conhecido? — repetiu Vance. — Não, meu caro — apenas uma lenda, baseada na crença infantil de uma Nemesis implacável e vingadora. Compreendo que essa noção esotérica de justiça divina, inevitável, apele para a imaginação popular, como os ledores de buena-dicha, ou a mesa magnetizada; mas — palavra! — entristece-me pensar que você, amigo velho, possa dar crédito a essas místicas bagatelas...

— Não perca o seu tempo, — disse Markham com acrimônia.

— Passe em revista os crimes impunes que conhece, e os que foram descobertos, — continuou Vance, desdenhando a ironia do outro. — Crimes que desconcertaram totalmente os investigadores mais afamados. O fato é que só são descobertos, sempre, os planejados por imbecis. Aí está por que qualquer homem de moderada sagacidade, se premedita um crime, chega a efetuá-lo sem muita dificuldade, seguro de que não será desvendado.

— Quando um crime fica impune, — retrucou Markham, com riso escarninho, — é porque a polícia não teve sorte, não porque o criminoso possua uma inteligência superior.

— Pouca sorte, — repetiu Vance numa voz que chegava a ser suave — eis aí um eufemismo defensivo, que aparece para mascarar a incapacidade. A um homem engenhoso e inteligente, a má sorte não persegue... Não, velho amigo Markham, os crimes impunes são simplesmente crimes inabilmente planejados e executados. E acontece que o assassinato de Benson pertence a esta categoria. Entretanto, você afirma, após algumas horas de pesquisas, que está quase certo de conhecer o criminoso... e eu peço-lhe que me releve se discordo de sua opinião. Calou-se e ficou a fumar, pensativo.

— Os métodos dedutivos, artificiais e casuísticos de seus homens podem conduzir a qualquer parte, e a prova disso é essa infeliz moça, cuja liberdade você pretende arrebatar.

Markham, que até então procurara disfarçar seu ressentimento sob um sorriso desdenhoso, voltou-se muito excitado.

— Contudo, e falo ex cathedra, — proclamou como um desafio, — estou certo das provas que tenho contra a sua "infeliz moça".

Vance não se alterou, mas observou secamente:

— Ainda assim, eu sei que nenhuma mulher poderia ter cometido aquele crime.

Eu via que Markham estava furioso, e quando falou parecia que estourava.

— Nenhuma mulher poderia ter cometido o crime? Oh! E não se importa com as provas?

— Não, nem mesmo que ela o jurasse, e produzisse um tomo disso que vocês, vergônteas da lei, intitulam pomposamente provas irrefutáveis, — respondeu Vance plàcidamente.

— Ah! — retrucou Markham, sarcástico, — isso me faria supor que para você então nem a confissão tem valor?

— Sim, meu caro Justiniano, — respondeu o outro, com um ar de complacência. — Foi isso mesmo o que eu disse. Na verdade, as confissões são ainda piores do que isso — são francamente enganosas. Como a intuição das mulheres — tão encarecidas — elas podem ser alguma vez verdadeiras, mas isso só vem demonstrar que não merecem confiança alguma.

Markham rosnou desdenhoso:

— E por que iria alguém confessar, em seu detrimento, um crime, a menos que soubesse que a verdade fora descoberta ou viria provavelmente a sê-lo?

— Palavra, Markham, você me assombra! Permita que eu lhe murmure, privatissime et gratis, ao ouvido inocente, que há muitos motivos presumíveis para confissão. O medo, a tortura, a conveniência, o amor materno, o cavalheirismo podem levar à confissão. Também o que os psicanalistas chamam complexo de inferioridade ou desilusão, ou uma errada noção do dever, ou egoísmo pervertido, vaidade, enfim, cem causas diversas, podem levar alguém a fazer uma confissão — a mais enganosa e menos segura de todas as formas de prova. Até a própria lei, embora estúpida e pouco científica, a repudia, se não a confirmam outras provas.

— Você é eloqüente, e me aperta de todos os lados. Mas, se a lei repelisse todas as confissões, e desprezasse todos os indícios, como é seu desejo, a sociedade podia prescindir dos tribunais, e mandar fechar todas as cadeias.

— Um típico non sequitor de lógica jurista, — replicou Vance.

— Mas como reconheceria você o culpado?

— Há um método infalível para determinar a culpa e a responsabilidade humana, — explicou Vance. — Mas até agora a polícia se conservou na ignorância beatífica do seu poder e funcionamento. A verdade só pode ser descoberta por uma análise dos fatores psicológicos do crime, aplicados ao indivíduo. Os únicos indícios verdadeiros são os psicológicos — não os materiais. Um perito competente, por exemplo, não vai julgar e autentificar um quadro pelo exame da tela, nem por uma análise química dos pigmentos, mas pelo estudo da personalidade criadora revelada na concepção e execução da obra. Verifica se a obra encarna as qualidades de forma e de técnica, a expressão mental, que constituem o gênio — mais particularmente, a personalidade — de Rubens, de Miguel Ângelo, Veroneso, Ticiano, Tintoreto, ou do artista enfim, a quem se atribui o quadro.

— Creio que meu espírito é ainda muito primitivo, e só os fatos vulgares o impressionam, — confessou Markham. E no caso presente — lastimo-o, pela originalidade de sua analogia artística — possuo uma quantidade de fatos, que indicam todos que certa moça é... eu daria a criadora da obra criminosa intitulada O Assassinato de Alvino Benson.

Vance encolheu os ombros, quase imperceptivelmente.

— Quer você comunicar-me — confidencialmente, é claro — quais são esses fatos?

— Mas certamente, — acedeu Markham. "Imprimis": a moça estava na casa no momento em que o tiro foi disparado.

Vance fingiu dúvida:

— Oh! Palavra! Ela estava lá nesse momento? Que coisa extraordinária!

— É irrefutável a evidência de sua presença. Você sabe que foram encontrados na lareira da sala de Benson as luvas que ela usou no jantar, e a bolsa que levava consigo.

— Oh! — murmurou Vance, com um tom de leve súplica na voz. — Não era a moça, então, mas suas luvas e sua bolsa que estavam presentes — diferença diminuta e sem importância, sem dúvida, do ponto de vista judicial... Até deploro que meu espírito ignorante não possa aceitar as duas condições como idênticas. Por que minhas calças estão na tinturaria, concluirá você que eu lá estou também?

Markham voltou-se para ele vivamente.

— Também não significa nada, mesmo para seu espírito de leigo, em matéria de prova, que esses objetos necessários e tão íntimos, que a mulher usou durante o serão, fossem encontrados na manhã seguinte, na casa do homem que a acompanhara?

— Arrisco-me a ser tachado de bronco, mas digo que não.

— Mas, uma vez que a dama não teria usado esses objetos à tarde, e que não teria podido entrar naquela noite em casa de Benson na ausência dele sem que a governanta a visse, como então podiam esses objetos estar ali na manhã seguinte, se ela mesma não os tivesse deixado na véspera?

— Confesso que disso não tenho a menor idéia. Só a própria dama poderia satisfazer a sua curiosidade. Mas há várias explicações plausíveis. Nosso defunto Chesterfield poderia tê-los levado no bolso —' as mulheres estão sempre a sobrecarregar os homens com seus balangandãs e pacotes, arrulhando um pedido: "Podes levar isto no bolso?..." Também podia o verdadeiro assassino tê-los de algum modo apanhado e deixado na lareira de propósito para despistar a polícia. As mulheres, sabe?, nunca põem seus objetos em lugares tão afastados como lareiras e cabides. Deixam-nos, invariavelmente, sobre a poltrona preferida, ou na mesa de centro.

— E Benson também teria trazido no bolso os cotos de cigarro da dama?

— Coisas mais estranhas se têm visto, — retrucou Vance, imperturbável, — embora eu não lhe impute isso nesse caso... As pontas de cigarro, sabe?, podiam ser prova de uma palestra anterior.

— Mas é que seu desdenhado Heath teve a inteligência precisa para se informar da governanta e verificar que ela limpa a lareira todas as manhãs.

Vance teve um sorriso de admiração.

— Você é tão perfeito, não é? Mas... não pode ser essa,. decerto, a única prova que tem contra a dama.

— De modo algum, — assegurou Markham. — A despeito de sua desconfiança, a prova está confirmada.

— Não o duvido, vendo com que freqüência nossos tribunais condenam inocentes... Mas diga-me mais alguma coisa.

Markham prosseguiu com tranqüila segurança: — Meu agente, soube: primeiro, que Benson jantou só com essa mulher no Marseilles, um pequeno restaurante boêmio da Rua 40, Oeste; segundo, que discutiram; e terceiro, que saíram dali à meia-noite, entrando em um auto.

... Ora, o assassinato foi cometido meia hora depois da meia-noite; mas visto que a dama mora em Riverside Drive, número 80, Benson não podia acompanhá-la à casa — o que teria feito, naturalmente, se ela não o acompanhasse à sua — e estar de volta ao tempo em que o tiro foi disparado. E temos prova mais forte, de que ela esteve em casa de Benson. No apartamento da mulher, soube o agente que ela voltou à casa, realmente, perto de uma hora; estava sem luvas e não trazia bolsa, e foi preciso que lhe abrissem a porta com uma gazua, porque, conforme explicou,, perdera as chaves. Ora, você deve lembrar-se de que encontramos a chave na bolsa. E, para confirmar tudo isso, os cigarros apagados da lareira são iguais aos que você encontrou na cigarreira.. Parou para acender de novo o cigarro. Depois continuou: — Isso quanto a essa noite em particular. Logo que soube quem era, destaquei dois homens para investigarem sua vida privada. E justamente quando eu saía do meu gabinete eles me telefonaram. Descobriram que a mulher tem um noivo, um rapaz chamado Leacock, capitão do exército, e que poderia possuir uma arma como a que matou Benson. Para finalizar, este capitão Leacock almoçou com a moça no dia do crime, e esteve em casa dela na manhã seguinte.

Markham inclinou-se para a frente, e continuou, marcando a cadência das palavras com os dedos no braço da poltrona:

— Já vê você que temos o motivo, a ocasião, e o meio... E talvez ainda me diga que não tenho provas para acusar.

— Tudo o que você descobriu, meu amigo, poderia explicá-lo um menino inteligente. E — continuou, sacudindo tristemente a cabeça, — com tais provas, arrancam ao próximo vida e liberdade! Você me assusta! Tremo pela minha segurança pessoal...

Markham, irritado, retorquiu:

— Será você tão amável que me aponte, do vertiginoso pináculo de sua sabedoria, as falhas do meu raciocínio?

— Pelo que vejo, no que respeita à moça você não raciocinou: ligou apenas fatos sem relação entre si e daí saltou em uma conclusão falsa. E afirmo que é falsa, porque a contradizem todas as indicações psicológicas do crime — quero dizer, a única prova real, aponta, sem erro possível, para outra direção. E, — continuou, com um gesto largo e inusitada gravidade — se você prende essa mulher como assassina de Alvino Benson, acrescentará somente um crime — crime estúpido, deliberado e imperdoável — ao já cometido. Ora, entre matar um pilantra como Benson e comprometer a reputação de uma mulher inocente, parece-me que o primeiro caso é preferível.

Markham conteve um movimento de cólera, que lhe luziu nos olhos: eram amigos e, apesar de toda a divergência de caráter, compreendiam-se e respeitavam-se. Desse respeito mútuo procedia a franqueza rude e, às vezes, mordaz com que falavam.

Após um momento de silêncio, Markham sorriu, constrangido.

— Você me faz vacilar, — disse, gracejando. — Mas, de fato, ainda não resolvi a prisão da mulher.

Apesar do tom de motejo, percebi que falava meio a sério.

— Louvo-lhe a moderação: mas com certeza já se dispôs a atormentar a dama, e ver se a apanha em uma ou duas daquelas contradições tão apreciadas pelos magistrados — como se fosse possível a uma pessoa nervosa, ou inquieta, deixar de se contradizer quando o juiz a interroga sobre um crime que não praticou... Diria melhor — metê-la na grelha, reminiscência dos tempos em que se queimava gente na pira, não é?

— Com certeza que vou interrogá-la, — replicou Markham com firmeza, olhando para o relógio. — E, como um agente a levará ao meu gabinete daqui a meia hora, tenho de interromper esta deliciosa e edificante palestra.

— Espera realmente tirar dela alguma coisa que a inculpe, nesse interrogatório? Oh! Seria divertido testemunhar a sua humilhação... Mas presumo que a intimidação dos suspeitos faz parte dos arcanos judiciais.

Markham, que já se encaminhava para a porta, deteve-se a estas palavras, e refletiu um momento.

— Não vejo objeção particular para a sua presença, se deseja assistir.

Pareceu-me que esperava que o humilhado fosse Vance. E sem demora estávamos em um auto, a caminho da Corte Criminal.


VII

 

OS RELATÓRIOS — UMA ENTREVISTA

 


(Sábado, 15 de junho — 3 da tarde)

 


Foi pela porta da Rua Franklin que entramos no velho edifício de pilares de mármore desbotado e antiquadas volutas de ferro. Dirigimo-nos diretamente ao gabinete do Promotor no quarto andar. Ali, como em todo o edifício, tudo cheirava a antigüidade... Os altos tetos, os maciços madeiramentos de carvalho amarelo, os candelabros de bronze e porcelana, pendurados muito baixo, as paredes estucadas, cor de louro escuro, as quatro janelas, altas e estreitas, ao sul — tudo denunciava uma era morta da arquitetura e da decoração.

Cobria o soalho um grande tapete de veludo muito felpudo, da mesma cor parda das cortinas das janelas. Grandes e cômodas poltronas ao redor das paredes e, diante da mesa do Promotor — uma vasta mesa esculpida cujas gavetas chegavam até ao chão, posta debaixo das janelas, em frente à porta. À direita da cadeira giratória, de alto espaldar, outra mesa de carvalho esculpido. Muitas papeleiras, e um grande cofre de segurança. Ao centro da parede leste, uma porta toda decorada de grandes pregos de bronze, coberta por um reposteiro de couro, dava para uma sala estreita e comprida, comunicando o gabinete com a sala de espera; ali o secretário do Promotor e vários funcionários trabalhavam. Em frente a esta porta, outra conduzia ao santuário reservado do Promotor, e ainda outra, em frente às janelas, dava para o corredor.

Vance olhou distraidamente para os lados.

— Então isto aqui é a sede da justiça municipal!...

Foi até à janela e contemplou dali a Torre do Tombo, circular e cinzenta, situada em frente ao palácio.

— Ali estão as masmorras onde são encerradas as vítimas, com o fim de diminuir a competição da atividade criminal entre os cidadãos remanescentes. Que vista interessante, Markham!

O Promotor, sentado à sua mesa, examinava notas e mais notas na sua pasta de papéis.

— Dois de meus homens estão à espera para me falarem, — observou ele sem erguer a vista dos papéis. — Assim, se você quer ter a bondade de sentar-se, eu procurarei, com meus humildes esforços, solapar ainda mais a sociedade...

Apertou o botão oculto na mesa e apareceu à porta um rapaz ativo, de óculos de vidros grossos.

— Swacker, diga Phelps que venha cá, e diga também a Springer se já voltou do almoço, que venha daqui a cinco minutos.

O secretário desapareceu, e logo entrou um homem alto, feições de ave de rapina, ombros curvados, andar lento e desgracioso.

— Que há de novo? — indagou Markham.

— Encontrei alguma coisa, — respondeu o investigador em voz baixa e áspera, — que deve ser proveitosa para o senhor. Depois que lhe transmiti o relatório esta manhã, andei rondando a casa do capitão Leacock, a ver se obtinha alguma informação dos empregados; vi-o sair e segui-o por muito tempo: foi à casa da dama de Riverside Drive, e ali ficou cerca de uma hora. Voltou depois para casa, parecendo-me que estava desassossegado.

Markham refletiu.

— Talvez isso não tenha valor algum, mas em todo o caso estimo sabê-lo. Miss St. Clair estará aqui daqui a pouco, e saberei arrancar-lhe o que sabe. Nada mais por hoje... Diga a Swacker que mande Tracy aqui.

Tracy era a antítese de Phelps. Baixo, um nada robusto, porejava uma amabilidade estudada. O rosto gorducho e alegre, a roupa bem moderna e bem assentada. Usava pince-nez.

— Bom dia, Chefe, — cumprimentou em tom calmo e insinuante. — Soube que Miss St. Clair virá aqui hoje, e vim dizer-lhe o que soube, e que poderá servir no seu interrogatório.

Abriu um livrinho de notas e ajustou o pince-nez.

— Lembrei-me de indagar alguma coisa do professor de canto de Miss St. Clair, um italiano que trabalhou outrora no Metropolitan, mas que hoje dirige uma espécie de sociedade de canto coral, que fundou. Exercita aspirantes a prima donnas, e Miss St. Clair é uma de suas alunas prediletas. Falou-me simplesmente, sem se perturbar, e parece que conheceu muito Benson, que assistiu a alguns ensaios da moça, e que algumas vezes a convidou a acompanhá-lo de táxi. Reinaldo — é o nome do homem — julga que ele lhe pregou alguma peça. No inverno passado, quando ela cantou no Criterion, em uma pequena parte, Reinaldo servia de ponto, e Benson mandou à moça flores de estufa em tal quantidade, que dariam para encher o camarim da estrela, e ainda sobrariam algumas. Tentei saber dele se Benson estava fingindo de santo com ela, mas ele ou não sabia ou não quis dizer.

Tracy fechou o caderno e ergueu os olhos, perguntando:

— Isto serve de alguma coisa, Chefe?

— É ótimo. Continue trabalhando nesse plano, e torne a me falar na segunda-feira.

Tracy cumprimentou e saiu, e o secretário tornou a entrar.

— Springer está aqui. Pode entrar?

Springer era um tipo de investigador completamente diferente de Phelps e de Tracy. Era mais idoso, e tinha o ar sombrio e circunspecto de um dedicado guarda-livros de banco. Não se lhe atribuiria iniciativa, mas ao vê-lo compreendia-se que poderia desempenhar uma tarefa delicada com extrema perfeição.

Markham tirou do bolso o envelope em que anotara o nome dado pelo major Benson.

— Springer, há em Long Island um homem que desejo ver o mais depressa possível. Isso concerne ao caso Benson, e quero que você o descubra e o traga sem tardar muito. Se puder encontrar o nome na lista telefônica, não é necessário ir até lá. Chama-se Leandro Pfyfe. e creio que mora em Port Washington.

Escreveu o nome em um cartão e entregou-o ao investigador.

— Hoje é sábado. Se ele vier à cidade amanhã, que me procure no Stuyvesant. Estarei lá à tarde.

Quando Springer saiu, Markham tornou a tocar a campainha, e deu instruções ao secretário para fazer entrar Miss St. Clair assim que chegasse.

— Está aí o sargento Heath, — informou Swacker, — e deseja falar-lhe, se o senhor não está muito ocupado.

Markham olhou para o relógio que encimava a porta.

— Creio que tenho tempo. Mande-o entrar.

Heath, a princípio surpreso de nos encontrar no gabinete, cumprimentou Markham com o habitual aperto de mão, voltando-se depois para Vance com um amável sorriso.

— Adquirindo mais conhecimentos, Sr. Vance?

— Não posso dizer que sim, sargento, — retrucou Vance em tom brincalhão. — Mas venho aprendendo um grande número de erros, muito interessantes... Como vão as investigações?

O rosto de Heath ficou sério.

— É o que vim dizer ao Chefe. — E, dirigindo-se a Markham, continuou: — Este caso é um quebra-cabeça, senhor. Eu e meus homens ternos falado com uma dúzia de amigos de Benson, e não tiramos deles nem um simples fato de valor. Ou eles nada sabem, ou resolveram ser mudos como ostras. Todos se mostram muito perturbados — aterrados, confundidos — com a notícia do tiro. Mas ter uma idéia do modo por que isso se passou? Dirão a todos que não. O senhor já sabe o estribilho: "Quem quereria matar o bom do velho Al?" "Só um ladrão que não conhecesse o bom velho Al!" "Porque se conhecesse o bom velho Al, nem o próprio ladrão o teria feito..." Diabo! Deu-me vontade de matar alguns daqueles sujeitos, para que pudessem ir-se reunir ao seu bom velho Al.

— E nenhuma notícia do carro? — perguntou Markham. Heath gemeu o seu desgosto:

— Nenhuma palavra!... E isso é engraçado, com toda a publicidade a respeito. Aquelas varas de pescar foram tudo que conseguimos. Ah! O inspetor mandou-me hoje de manhã o laudo post-mortem; irias isso não nos traz nada de novo. Traduzido em linguagem humana, diz que Benson morreu de um tiro na cabeça, tendo todos os órgãos sãos. O que me admira é que não descobrissem que fora envenenado com uma fava do México, ou picado por alguma serpente africana, ou alguma outra coisa semelhante, para tornar o caso mais intrincado do que já é.

— Não desanime, sargento. Eu tive mais sorte: Tracy descobriu que a proprietária da bolsa jantou naquela noite com Benson. Ele e Phelps descobriram outros fatos suplementares, que também têm valor. E espero a dama dentro de um minuto, e descobrirei o que ela mesma sabe.

Por um momento, enquanto o Promotor falava, luziu nos olhos de Heath uma expressão de descontentamento, mas afastou-a logo. Indagou vários pormenores, e Markham deu-lhe todas as informações, inclusive a de Leandro Pfyfe.

— Assim que terminar a entrevista, eu lhe direi o que colhi,— concluiu ele.

Quando a porta se fechou depois de sair Heath, Vance olhou para Markham com um sorriso matreiro.

— Ele não é precisamente um dos super-homens, de Nietzche não? Receio que as sutilezas deste mundo complexo o fatiguem... E está tão desanimado... Eu senti na verdade satisfação, quando aquele rapaz tão ativo, de óculos espessos, anunciou a sua presença. Estou certo de que ele vinha dizer-lhe que prendera pelo menos seis assassinos de Benson...

— Sua imaginação voa muito alto, — comentou Markham.

— Mas é este o processo usual — se devo crer nas manchetes de nossos grandes jornais moralistas. Sempre julguei que, assim que se cometia um crime, a polícia desatava a prender a torto e a direito — para manter a excitação no público. Ora não vê você... Outra desilusão! Isto vai mal! Nunca perdoarei ao nosso Heath: ele traiu a confiança que eu tinha nele!

Entrou o secretário anunciando a chegada de Miss St. Clair.

Supus que íamos todos ter um pequeno desapontamento à vista dessa moça, quando ela entrou na sala, com passo firme e gracioso, a cabeça levemente inclinada para um lado, supercílios erguidos em atitude interrogativa. Era pequena e notavelmente bela, muito embora "bela" não seja a palavra própria para descrevê-la. Possuía aquela beleza quase exótica, que encontramos nos retratos de Carraci, e que adoçou a severidade de Leonardo, tornando-a ao mesmo tempo familiar e decadente. Eram os olhos escuros e muito espaçados; o nariz delicado e fino, a fronte espaçosa. Os lábios, muito suaves, eram quase esculturais na precisão das linhas. Descerrava-os um sorriso enigmático — ou antes a sombra de um sorriso. O queixo, redondo e firme, era talvez duro, examinado isoladamente, mas não em conjunto com os outros traços. Denotava-lhe o porte equilíbrio e certa força de caráter. E a serenidade exterior mal ocultava a sua poderosa emotividade. O trajo harmonizava com a personalidade: era convencional, é certo, mas um toque de cor e de originalidade aqui e ali, bastava para lhe dar um cunho de distinção pessoal e encantadora.

Markham ergueu-se cumprimentando-a com cerimoniosa cortesia, e ofereceu-lhe uma confortável poltrona estofada, fronteira a mesa. Inclinando imperceptivelmente a cabeça, relanceou os olhos para a cadeira, depois sentou-se em uma outra, pequena, próxima àquela.

— O senhor permite-me que escolha a cadeira para o interrogatório?

A voz era grave e sonora, — a voz de uma cantora muito treinada. Sorria ao falar, mas era um sorriso sem cordialidade: frio e distante, ainda que indicasse certa frivolidade.

— Miss St. Clair, — começou Markham, com uma severidade polida. — seu nome está intimamente ligado ao assassinato de Alvino Benson. Contudo, antes de dar qualquer passo definitivo, convidei-a a vir até aqui, para lhe fazer algumas perguntas. E aviso-a lealmente de que sua melhor defesa será a franqueza.

Calou-se, e ela, olhando-o irônica e interrogativamente:

— Agradeço-lhe o generoso conselho.

Markham olhou para uma nota escrita a máquina que tinha sobre a mesa, e a ruga da testa acentuou-se.

— A senhora deve saber que suas luvas e a sua bolsa foram encontradas em casa do Sr. Benson, no dia seguinte ao crime.

— Compreendo que reconhecessem a minha bolsa, mas como poderiam saber que as luvas também me pertenciam?

Lançou-lhe Markham um olhar percuciente. — Pretende dizer que não são suas?

— Oh! Não, — respondeu, com outro sorriso gelado. — Apenas admiro que o descobrissem, não conhecendo meus gostos, nem o número que calço.

— Pertencem-lhe, então, essas luvas?

— Se são Tréfousse, tamanho cinco e três quartos, de pelica branca e com altos canhões, certamente que são minhas. E desejaria que mas devolvessem, se fosse possível.

— Lamento-o, mas é preciso que fiquem aqui ainda por algum tempo.

Ela encolheu os ombros, com indiferença.

— Posso fumar?

Markham abriu imediatamente uma gaveta da mesa e tirou uma caixa de cigarros Benson Hedjes.

— Obrigada, tenho-os aqui. Mas estimaria muito se me desse minha piteira: tem-me feito muita falta.

Markham hesitava. Aquela atitude incomodava-o, positivamente.

— Empresto-lha com muito prazer, — disse, remexendo em outra gaveta. E apresentou-lhe a piteira. — E agora, Miss St. Clair, — continuou gravemente, — a senhora vai-me dizer como foram parar no salão de Benson aqueles objetos de seu uso.

— Não, senhor, eu não posso dizê-lo.

— Compreende a grave interpretação que sua recusa dará aos fatos?

— Não, realmente não pensei nisso, — respondeu, indiferente.

— Pois faria bem em pensar, — aconselhou Markham. — Sua situação não é para invejar; e a presença de objetos seus na sala de Benson não é a única coisa que a envolve diretamente no crime.

Interrogou-o com o olhar, e de novo o enigmático sorriso descerrou-lhe os lábios.

— Acaso tem provas suficientes para me acusar do crime?' Markham deixou a pergunta sem resposta.

— Conhecia muito Benson? Ela parou o golpe:

— O achado de minhas luvas e bolsa na sua casa bem pode atestá-lo, não é?

— É certo que se interessava muito pela senhora? — persistiu ele.

— Oh! sim! Demais, para a paz de meu espírito!... Mas trouxeram-me aqui para comentar as atenções que esse cavalheiro me dispensava?

Ainda desta vez Markham não deu ouvidos à pergunta.

— Onde esteve a senhora da meia-noite a uma hora, isto é, desde que saiu do "Marseilles", até chegar a casa?

— O senhor é admirável! — exclamou ela. — Parece que sabe tudo... Pois bem, só lhe posso dizer que durante esse tempo eu me dirigia para minha casa.

— A senhora gastou uma hora para ir da Rua 40 até à esquina da Rua 81 com a Riverside Drive?

— Precisamente, isto é, minutos mais, minutos menos, talvez.

— Alas como explica isso?

— Não o posso explicar... senão pelo fato da passagem do tempo. O tempo voa, não é verdade?

— Seu procedimento está-lhe causando dano. — preveniu Markham, já irritado. — Não vê que a sua situação é muito grave? Sabe-se que jantou com Benson, que saiu do restaurante à meia-noite, e que chegou a casa depois de passada uma hora. Meia hora depois da meia-noite o Sr. Benson foi assassinado; e na mesma sala em que ele apareceu morto apareceram também, na manhã seguinte, objetos de seu uso particular.

— Na verdade, tudo isso parece acusar-me, — concordou ela com estranha seriedade. — E digo-lhe isto, Sr. Markham: se meus pensamentos pudessem matar o Sr. Benson, ele estaria morto já há muito tempo. Sei que não se fala mal de um morto — há até um provérbio, começando assim "de mortuis", não é? — mas a verdade é que eu tinha razão para detestar intensamente o Sr. Benson.

— Como então foi jantar com ele?

— Já fiz essa pergunta a mim mesma uma dúzia de vezes, — confessou ela amargamente. — Nós, mulheres, somos tão impulsivas — fazemos sempre aquilo que não queríamos fazer... Mas sei como o senhor julga o caso: se eu tinha a intenção de matá-lo, o jantar seria o mais natural dos preliminares. Não é isto mesmo que pensa neste momento? Creio mesmo que todas as assassinas começam por jantar com as suas vítimas.

Todo o tempo em que falou esteve com o espelhinho na mão. Corrigiu a posição de negalhas da sua abundante cabeleira escura, imaginariamente desviadas, depois tocou de leve, com os dedos finos, as sobrancelhas arqueadas, como se retificasse algum traço de lápis mal dirigido. Inclinou a cabeça, examinou-se para ver se estava tudo em ordem, e só olhou outra vez para o Promotor quando acabou de falar. Dava a impressão nítida de que, no seu entender, sua aparência pessoal era muito mais importante do que o assunto da conversação. Palavra alguma lograria exprimir sua indiferença com tanta eloqüência como aquela pantomima.

Markham começava a exasperar-se. Outro que não ele teria sem dúvida empregado os meios que seu cargo lhe conferia para dominar-lhe a vontade. Mas Markham era diferente do tipo comum de Promotor: fugia instintivamente dos métodos terroristas, ameaçadores, especialmente no trato com senhoras. E, contudo, tomaria sem dúvida uma posição mais agressiva, se não lhe acudissem à memória as observações de Vance, no Club Stuyvesant. E devorava-o a incerteza, aumentada pela atitude evasiva da moça.

Por fim perguntou-lhe asperamente:

— A senhora não fez especulações consideráveis, por intermédio da casa Benson Benson?

Ela riu frouxamente, um riso musical e brando.

— Vejo que o major andou contando histórias... Sim, de fato, joguei sem tino. E não tinha necessidade disso. Creio que sou avarenta.

— Não perdeu muito dinheiro ali há pouco tempo? E o senhor Benson convidou-a a fazer um depósito adicional, e, finalmente, vendeu seus títulos, não é verdade?

— Antes não fosse, meu Deus! — lamentou ela, com um gesto trágico, receio, perfeitamente simulado. E agora, acusam-me de ter assassinado o Sr. Benson por uma vingança sórdida, ou um ato de justa desforra?

Sorria maliciosa, e ficou à espera da resposta, como se fosse aquilo um jogo de adivinhação.

Mas Markham continuou, dura e friamente:

— Não é verdade que o capitão Filipe Leacock possui uma pistola como a que serviu para matar o Sr. Benson — uma pistola Colt automática, tipo militar 45?

Ao ouvir o nome do noivo, ela estremeceu e faltou-lhe um momento a respiração. Abandonou o papel que estivera representando, e um fraco rubor espalhou-se-lhe nas faces, subindo até à fronte. Logo, porém, dominou-se, voltando à indiferença jovial que até então ostentara.

— Nunca indaguei do tipo nem do calibre das armas do capitão Leacock, — retrucou despreocupadamente.

— E não é verdade, — prosseguiu a voz imperturbável de Markham, — que o capitão Leacock lhe emprestou uma pistola, que levou à sua casa na manhã anterior ao dia do crime?

— Não é muito gentil da sua parte, Sr. Markham, — disse com ar constrangido, — imiscuir-se assim nas nossas relações — porque sou noiva do capitão Leacock, o que o senhor provavelmente já sabia.

Markham, que a custo se continha, levantou-se.

— Devo deduzir que a senhora se recusa a responder a todas as minhas perguntas, ou devo antes tentar tirá-la da perigosa posição em que se acha?

Ela pareceu refletir.

— Sim, — disse lentamente. — Não tenho coisa alguma para lhe dizer agora.

Markham inclinou-se e ficou com as mãos apoiadas na mesa.

— Compreende as conseqüências que naturalmente advirão dessa atitude? — inquiriu ameaçadoramente. — Os fatos que conheço, comprometendo-a no caso, unidos a essa recusa de dar qualquer esclarecimento, são motivos mais que suficientes para ordenar a sua detenção.

Eu olhava atentamente para ela, enquanto o Promotor falava' e pareceu-me ver que suas pálpebras tremeram levemente. Mas nenhum outro sinal deu de comoção. Encarou o Promotor com ar de desafio irônico.

Markham, de boca contraída, voltou-se à procura do botão da campainha da mesa; mas seu olhar caiu sobre Vance, e deteve-se indeciso. Correspondera ao seu um olhar severo, em que leu não somente o espanto, mas que lhe dizia também, e com mais eloqüência do que o diriam palavras, que estava a ponto de cometer uma tolice irreparável.

Por alguns momentos reinou na sala silêncio profundo. Então, Miss St. Clair, com a maior tranqüilidade, abriu o estojo e empoou o nariz. Quando acabou, olhou serenamente para o Promotor.

— Quer-me prender agora?

Markham refletia. Em vez de responder imediatamente, foi até à janela e ficou a olhar para a Ponte dos Suspiros, que liga a Corte Criminal à Torre do Tombo.

— Não, hoje não, — disse lentamente.

Deteve-se de novo em absorta contemplação; depois, como se sacudisse para longe a irresolução, voltou-se rapidamente e encarou-a de frente.

— Não vou prendê-la hoje, ainda, — reiterou com alguma aspereza. — Mas dou-lhe ordem de ficar em Nova York por agora. E, se a senhora tentar sair da cidade, então será presa. Creio que me entende.

Apertou um botão, e entrou o secretário.

— Swacker, faça o favor de acompanhar Miss St. Clair até lá embaixo e chamar um táxi para ela... E a senhora pode voltar para casa.

Ergueu-se a moça e cumprimentou-o levemente.

— Foi muito amável, senhor, emprestando-me minha piteira, — disse alegremente, depondo a boquilha na mesa.

E, sem mais palavra, saiu da sala.

Mal se fechara a porta, Markham tocou num botão. Logo se abriu a porta, que dava para o outro corredor, e entrou um homem de meia-idade, de cabeleira branca.

— Ben, — ordenou Markham rapidamente, — siga a mulher que Swacker vai conduzindo para a saída. Conserve-a debaixo de vigilância, e não a deixe escapar. Ela não pode sair da cidade, compreende? É Miss St. Clair, que Tracy desencavou.

Depois que o homem saiu, Markham voltou-se para Vance e encarou-o fixamente.

— Então! Que pensa você agora da sua inocente jovem? — perguntou com ar de triunfo marcial.

— É linda! — replicou Vance suavemente. — E que extraordinário domínio de si própria! E vai casar com um militar, não é? Ora! De gustibus... Houve um momento, Markham, em que temi que você pedisse as algemas ali mesmo. E, se o tivesse feito, velho amigo, havia de lamentá-lo toda a vida.

Markham olhou para o amigo por alguns segundos. Compreendia que a certeza de Vance se fundava em alguma coisa que um simples capricho, e foi isso que lhe deteve a mão, quando já ia prender a jovem. Contudo, observou:

— A atitude dela não levaria ninguém a acreditar na sua inocência; representou seu papel com diabólica habilidade, mas isso é o que faria qualquer mulher astuta, que se sentisse culpada.

— E você não notou que pouco se lhe dava que a julgasse culpada ou não? — Que ficou até um pouco desapontada quando viu que a deixava ir?

— Não vi nada disso, — retrucou o Promotor. Culpado ou não, Vance, ninguém quer ser preso...

— E, a propósito, — perguntou Vance, — onde estava o felizardo noivo, à hora em que Alvino morria?

— Pensa então que não examinamos esse ponto? — respondeu o outro desdenhosamente. — O capitão Leacock recolheu-se à casa, naquela noite, às oito horas.

— Sim? — retrucou Vance, indiferente. — Um rapaz modelo, esse camarada!

Markham tornou a encará-lo com olhar penetrante. Depois murmurou pensativo:

— Gostaria de saber que sábia teoria se agita hoje em seu cérebro. Agora, que deixei a moça em liberdade provisória — que é o que você queria — contra meu próprio julgamento, diga-me francamente: o que tem você aí escondido na manga?

— Escondido na manga? Eu?... Que metáfora desenxabida! Quem o ouvisse pensaria que sou algum prestidigitador!

Quando Vance desconversava assim, sabia-o Markham, era que não queria responder diretamente. Mudou, pois, de assunto.

— E você afinal não teve o prazer de presenciar minha humilhação, como profetizou.

Vance encarou-o com simulada surpresa.

— Não vi? Ora esta! Depois acrescentou, pesaroso:

— A vida é tão cheia de desapontamentos...


VIII

 

VANCE ACEITA UM REPTO

 


(Sábado, 15 de junho — 4 da tarde)

 


Depois que Markham telefonou a Heath, dando-lhe conta da entrevista, voltando ao Club Stuyvesant. Era costume do Promotor sair do gabinete aos sábados, à uma hora; mas ligara tal importância à visita de Miss St. Clair, que prolongara hoje o expediente. Mergulhado em profunda meditação, só falou quando nos sentamos no salão do Clube. Estava aborrecido.

— Puxa! Não devia tê-la deixado ir-se... Tenho a intuição de que é culpada.

— Oh! Realmente? Você é muito psicólogo! E tem-no sido a vida inteira, sem dúvida. Nunca notou que seus sonhos sempre se realizam? E não lhe tem acontecido também muitas vezes chamá-lo ao telefone justamente a pessoa em quem você estava pensando naquele momento? Um dom admirável! Lê também nas linhas da mão?... Por que não fez o horóscopo da dama?

— Até agora; — retorquiu Markham, — não tenho prova alguma de que a sua crença na inocência dela se baseia em coisa mais sólida do que as suas impressões.

— Ah! Mas, no entanto, eu sei que ela é inocente. E sei mais: nenhuma mulher poderia ter desfechado aquele tiro.

— Não alimente a idéia errônea de que uma mulher não pode manejar um Colt militar 45.

— Ora! — disse Vance, encolhendo os ombros à observação. — Os indícios materiais do crime não entram em meus cálculos — deixo-os a vocês, advogados, e aos que possuem deltóides salientes. Tenho outros, e mais seguros meios, para chegar às conclusões. Eis aí por que eu lhe disse que, se você prendesse qualquer mulher supondo-a a assassina de Benson, cometeria um erro vergonhoso.

Markham resmungou, indignado:

— Parece que você repeliu todos os processos de dedução, pelos quais se pode alcançar a verdade... Renunciaria, por acaso, inteiramente, a acreditar nas faculdades do espírito humano?

— Ah! Fala a voz do grande povo de Deus! — exclamou Vance. — Seu espírito é muito simbólico, Markham. Ele parte do princípio de que o que você ignora não é conhecimento, e que desde que você não compreende uma coisa, não há explicação para ela. Um ponto de vista muito cômodo... Liberta de toda a preocupação e incerteza. Não acha, Markham, que o mundo é um lugar agradável e cheio de maravilhas?

Markham resolveu aceitar tudo com paciência.

— Ao almoço falou você de um método infalível para descobrir os crimes. Quereria confiar esse profundo e inestimável segredo a um simples promotor?

Vance fez-lhe uma cortesia exagerada (*).

(*) A seguinte conversação, em que Vance explana seu método psicológico de análise criminal, é reproduzida, naturalmente, de memória. Contudo, foi-lhe remetido um exemplar dela, com o pedido de revisá-la e alterá-la no que fosse necessário: de modo que, tal como sai agora publicada, descreve a teoria de Vance, usando, praticamente, suas próprias palavras.


— Com muito prazer. — respondeu ele. — Referia-me ao conhecimento do caráter individual, à psicologia da natureza humana. Todos nós agimos de acordo com o nosso temperamento. Todo ato humano — importante ou trivial, pouco importa — é uma expressão direta da personalidade, e traz o cunho inevitável da sua natureza. Assim, um musicista, diante de uma página de música, pode dizer imediatamente se foi composta por exemplo por Beethoven, Schubert, Debussy ou Chopin. E um pintor, ao olhar para uma tela, conhece logo se é um Corot, um Harpignies, um Rembrandt, ou um Franz Hals. E assim como dois rostos não são exatamente iguais, duas naturezas também não podem ser; a combinação dos elementos que formam a nossa personalidade varia de indivíduo para indivíduo. E é por essa razão que, quando vinte artistas pintam o mesmo assunto, cada um o concebe e executa de maneira diferente. Cada quadro é uma expressão distinta, inconfundível, da personalidade do pintor... Não é tão simples?

— Sua teoria, — respondeu Markham com ironia indulgente, — seria compreensível, sem dúvida, para um artista. Mas confesso que meu vulgar espírito fica muito aquém do seu refinamento metafísico.

— É que o espírito que já se orientou no erro, despreza o caminho mais nobre, — murmurou Vance, suspirando.

— Há alguma diferença entre a arte e o crime...

— Não há nenhuma, psicologicamente, velho amigo. O crime assenta sobre os mesmos fatores de uma obra de arte — concepção, técnica, imaginação, iniciativa e organização. Além disso os crimes variam tanto em suas particularidades, aspectos e natureza, como as obras de arte. Na verdade, um crime planejado cuidadosamente denuncia, tanto como um quadro, a expressão individual do seu autor. E isso é que permite e facilita a pesquisa. Do mesmo modo que um perito de arte, analisando um quadro, pode dizer quem o pintou, ou chega a conhecer a personalidade e o temperamento do pintor, o perito psicólogo analisa um crime e sabe quem o cometeu, se o conhece, ou, no caso contrário, pode descrever com precisão quase matemática a natureza e o caráter do criminoso... E é este, meu caro Markham, o único meio seguro e inevitável de determinar a culpabilidade humana; todos os outros não passam de conjeturas que não se baseiam na ciência, e são incertos e perigosos.

Vance falara quase distraído; não obstante, a grande serenidade e segurança de sua atitude conferia às suas palavras um cunho de autoridade. Markham ouvira-o com interesse, apesar de não lhe levar a sério as teorias.

— Seu sistema, — objetou ele, — despreza de todo os motivos.

— Naturalmente, — replicou Vance, — porque esse fator não tem importância na maioria dos crimes. Cada um de né«. meu caro, tem uma porção de motivos para matar pelo menos alguns homens — os mesmos motivos que são invocados em noventa e nove por cento dos crimes cometidos. E, sempre que aparece um homem assassinado, ficam dúzias de pessoas inocentes, que, no entanto, tinham motivo igualmente poderoso para fazerem o que fez o assassino. Mas o que é certo é que o fato de ter um motivo para fazê-lo não prova, em hipótese alguma, que um homem é culpado — e tais motivos são tão universais como a rac,a humana. Suspeitar que um homem é assassino porque ele tinha um motivo para matar o outro, é o mesmo que suspeitar de que outro tenha fugido com a mulher do vizinho, porque ele tem pernas. A razão por que algumas pessoas matam e outras não, é assunto de temperamento — de psicologia individual. Tudo vem a dar no mesmo... E outra coisa: quando uma pessoa possui um motivo — um poderoso e tremendo motivo — ela pode conservá-lo oculto; pode até dissimulá-lo durante anos de preparação. E o motivo também pode surgir cinco minutos antes do crime, diante da descoberta inesperada de fatos passados há dez anos... Assim, vê você que a ausência de um motivo aparente em um crime, pode ser considerada mais comprometedora do que a presença dele.

— Vejo que vai ser difícil para você eliminar a idéia de cui bono na observação de um crime.

— Digo até que a idéia do cui bono é muito tola, para merecer discussão. Ainda assim, há mortes que aproveitariam a muita gente. Mate Sumner, e, com essa teoria, poderia prender todos os membros da Liga dos Autores.

— Em todo caso, a ocasião é um fator insuperável — e por ocasião entendo certas afinidades de circunstâncias e condições que tornam determinado crime, possível, plausível e útil para determinada pessoa.

— Outro fator sem importância, — asseverou Vance. — Pense nas ocasiões que temos diariamente para matar pessoas que detestamos! Ainda ontem, eu tive à minha mesa dez sujeitos aborrecidos — um dever social. Mal contive — à custa de grande esforço, confesso — o desejo de deitar arsênico no vinho. E isso porque pertenço a uma categoria psicológica diferente da dos Bórgias, só por isso. Ora, se eu estivesse resolvido a matá-los, teria procurado, como aqueles cinquecento patrícios, a oportunidade... E aí é que está a dificuldade — um indivíduo pode fazer a ocasião, ou dissimulá-la, se a tem, com falsos álibis e vários outros ardis. Lembre-se do caso do assassino que chamou a polícia, pedindo-lhe que entrasse em casa da vítima, antes que fosse cometido um crime ali, pois desconfiava disso, e depois entrou adiante e apunhalou o homem enquanto os guardas subiam a escada (*).

(*) Não sei a que caso se referia Vance, mas há muitos exemplos deste ardil no arquivo, e escritores de ficção policial têm aproveitado muitas vezes a idéia. O último exemplo encontra-se no livro Inocência do Tio Brown, de G. K. Chesterton, na história intitulada "O Falso Modelo".


— A presença ou proximidade — também não constitui prova o fato de a pessoa estar no teatro do crime no momento em que esse foi consumado?

— Ainda um erro. A presença de um inocente é muita vez aproveitada como um escudo pelo verdadeiro assassino, que se oculta. Um indivíduo ardiloso pode cometer um crime a distância, servindo-se da presença de um agente. Também pode obter um álibi, e depois ir ao teatro do crime, disfarçado e irreconhecível... Há muitos meios de estar presente, quando todos o supõem longe, e vice-versa... Mas o que não podemos jamais despir é a nossa própria personalidade e natureza. E é por isso que todo crime vai incidir inevitavelmente na psicologia humana — base fixa, indisfarçável, da dedução.

— O que me admira é que, em vista de suas teorias, não proponha você a demissão de nove décimos da força da polícia, e a instalação de uma ou duas daquelas grandes máquinas psicológicas de que os suplementos dominicais tanto gostam.

Vance fumava, pensativo.

— Já li alguma coisa a respeito. É um brinquedo interessante. Elas podem indicar, sem dúvida, certo aumento de força emocional, quando o paciente desvia a atenção das piedosas vulgaridades do Dr. Frank Craner para um problema de trigonometria esférica; mas se ligarem a um inocente os vários tubos galvanômetros, eletroímãs, placas de vidro e botões de cobre de um aparelho desses, e o interrogarem sobre algum crime recente, a agulha reveladora saltará como unia dançarina russa, impelida pelo terror nervoso do paciente.

Sorriu Markham com ar superior.

— Oh! Ao contrário, — respondeu Vance serenamente. — Ela girará do mesmo modo, mas não porque ele seja culpado. Se for um imbecil, a agulha saltará à direita e à esquerda, porque ao paciente repugna esse moderno instrumento de tortura. E, se for inteligente, girará ainda, excitada pelo cuidado dele em dissimular o divertimento que lhe causa a puerilidade de espírito da justiça, que confia em tais tolices.

— Você me comove profundamente. Sinto a cabeça andar à roda, como uma turbina... Mas há ainda muita gente que acredita que a criminalidade provém de um defeito do cérebro.

— É verdade, — acudiu prontamente Vance. — Mas é que infelizmente toda a raça humana possui esse defeito. Virtuoso é o que não tem, por assim dizer, a coragem de mostrar seus defeitos... Entretanto, se você quer falar do tipo do criminoso, então não nos podemos entender. Foi Lombroso, o predileto das revistas científicas de capa amarela, quem forjou a idéia do criminoso nato... Cientistas autênticos, como Du Bois, Karl Pearson e Goring, têm rebatido essas teorias idiotas e cheias de falhas (*).

(*) Pearson e Goring, há mais de vinte anos, fizeram uma investigação detalhada e catalogação dos criminosos profissionais da Inglaterra, e chegaram a demonstrar: 1) que a carreira criminosa começa as mais das vezes entre os 16 e os 21 anos; 2) que noventa por cento dos criminosos eram mentalmente normais; 3) que a maioria dos delinqüentes não são filhos, mas irmãos mais novos de criminosos.


— Sua erudição me derrota, — declarou Markham, chamando um garçom e pedindo outro charuto. — Consola-me, contudo, a certeza de que, por via de regra, o crime vem à tona.

Vance fumou ainda algum tempo em silêncio, contemplando pensativo, pela janela aberta, o nublado céu de junho. Depois explicou:

— É assombrosa, Markham, a quantidade de idéias absurdas que existem, acerca de criminosos. Não posso compreender como uma pessoa sensata pode acreditar na velha superstição de que "o crime vem à tona". Ele raramente "vem", meu caro; e, se tem de vir, para que um Departamento de Homicídios? Por que toda essa atividade vertiginosa da polícia, quando se descobre um cadáver?... Os poetas são responsáveis por essa mania. Foi Chaucer, provavelmente, quem a inaugurou, com o seu "O crime vem à tona", e Shakespeare a levou mais longe, atribuindo ao crime um órgão miraculoso, que fala como se fosse uma língua. E foi também algum poeta, sem dúvida, que concebeu a idéia de que o esqueleto sangra à vista do assassino... E você, como o Grande Protetor dos Crentes, ousaria dizer à polícia que espere tranqüila nos seus gabinetes, ou nos seus clubes, ou nos seus camarins favoritos — onde quer, enfim, que esteja de serviço, — até que o crime venha à tona? Pobre amigo! Se você fizesse isso, logo pediriam ao Governo a sua prisão como particeps criminis, ou requereriam que o internassem num hospício, como lunatico inquirendo (*).

(*) Muitos anos depois, Sir Basil Thompson, ex-Comissário Assistente da Polícia de Londres, escrevia no Saturday Evening Post: "Tome, por exemplo, o provérbio que "o crime vem à tona", que é empregado todas as vezes que um dos milhares de criminosos impunes é apanhado, por uma feliz coincidência, o que impressiona a imaginação popular. E é porque o crime não vem à tona, que todos se alegram quando isso acontece, e invocam um provérbio para patrocinar o fenômeno. O envenenador que cai nas mãos da justiça quase sempre já tinha cometido outros crimes sem despertar suspeitas, até que um dia se deixou apanhar, por algum descuido".


Markham resmungou apenas. Estava muito ocupado, cortando a ponta do charuto e acendendo-o.

— Creio que os homens da polícia têm outra superstição a respeito do crime, — continuou Vance. — e é que o criminoso volta ao lugar onde o cometeu. Esta noção é mesmo explicada por algum recôndito e místico fundo psicológico. Mas, eu posso afirmar-lhe que a psicologia não ensina esta absurda doutrina. Se alguma vez o assassino voltar a ver o corpo de sua vítima, por qualquer outro motivo que não seja retificar alguma falha que tenha deixado, então ele é digno de ser encerrado num manicômio... E quão fácil seria para a polícia apanhar os criminosos, se esta fosse a realidade! Bastava-lhe sentar-se comodamente ao pé do morto jogando para passar o tempo, até que o assassino voltasse, para escoltá-lo até à bastilha, não? O verdadeiro instinto psicológico de quem comete um crime leva-o, pelo contrário, a afastar-se até onde lhe seja possível, para fugir ao castigo (**).

(**) Sir Basil Thompson sustenta este ponto de vista em "Enganos populares sobre o crime" {Saturday Evening Post, 21 de abril de 1923).


— No caso presente, porém, — lembrou Markham, — não estamos esperando inativos que o crime "venha à tona", nem nos aboletamos na sala de Benson, à espera de que o criminoso volte ali.

— No entanto qualquer desses caminhos levá-los-ia ao mesmo insucesso que esse que escolheram.

— Como não sou dotado da sua singular introspecção, apenas posso seguir os ineficazes processos do raciocínio humano.

— Sem dúvida, — comentou Vance, condoído. — E os resultados que a sua atividade obteve até agora me forçam à conclusão de que um homem armado de um punhado de lógica jurídica pode resistir com sucesso aos mais obstinados e heróicos assaltos do senso comum.

Markham estava estimulado.

— Ainda a mesma cantiga da inocência de Miss St. Clair, não é? Contudo, em vista da ausência completa de provas tangíveis que apontem qualquer outro rumo, você deve reconhecer que não me fica caminho a escolher.

— Eu não reconheço nada disso, porque sei que há abundantes provas que apontam para outro rumo: o que acontece é que você não as vê.

— Acha? — retrucou Markham, já abalada a sua serenidade pela despreocupada segurança de Vance. — Pois, meu velho amigo, sinto profunda repulsa por todas as suas belas teorias; e desafio-o a que apresente uma simples peça dessa evidência que sabe existir.

Falara com aspereza, e acompanhara as últimas palavras com um gesto agressivo da mão estendida, que indicava julgar esgotado o assunto.

Pareceu-me que Vance também se tinha azedado um tanto.

— Markham, velho amigo, você bem sabe que eu não sou o vingador do sangue derramado, nem o defensor da honra da sociedade. É um papel fatigante.

Markham sorriu afàvelmente, mas não.replicou. Vance fumou em meditativo silêncio por algum tempo, depois, com grande surpresa para mim, voltou-se sereno para Markham, e disse-lhe tranqüilamente:

— Aceito seu repto. É uma coisa contrária a meus gostos; mas o problema me seduz: apresenta as mesmas dificuldades do caso do Concerto Campestre — uma questão de disputa de autoria (*).

(*) Durante alguns anos, o famoso Concerto Campestre do Louvre foi oficialmente atribuído a Ticiano. Vance, porém, tomou a peito convencer o diretor, Sr. Lepelletier, de que era um Giorgione; e o quadro foi reconhecido como deste artista.


Markham, que ia levar o charuto aos lábios, suspendeu o gesto bruscamente. Mal ouvira o repto, na sua expressão literal: Vance o pronunciara mais como um desafio verbal. E agora, na incerteza, perscrutava o rosto do amigo. Como pudera adivinhar que o seu repto inconsiderado, e lançado meio a sério, meio a gracejar, ia alterar por completo a história criminal de Nova York?

— E como pretende você proceder?

— Sou como Napoleão, — disse Vance com um gesto descuidado: Je m’engage, et puis je vois. Entretanto, quero que você me prometa todo o apoio de que carecer... e que refreará suas observações jurídicas.

Markham contraiu os lábios. Espantara-o a maneira inesperada por que Vance lhe aceitara o desafio; mas sorriu afavelmente, como se lhe parecesse, afinal, que não adviriam conseqüências muito sérias.

— Pois bem, — anuiu ele. — Dou-lhe a minha palavra... Vance, depois de acender outro cigarro, ergueu-se, preguiçosamente.

— Primeiro, vou determinar a estatura exata do criminoso. Isto constituirá uma prova indicatória demonstrativa, não é?

Markham encarou-o, incrédulo.

— Mas como o conseguirá?

— Valendo-me daqueles primitivos métodos dedutivos, que lhe merecem tão tocante confiança. Mas venha: voltemos ao teatro do crime.

Markham, irritado e perplexo, seguiu-o de má vontade, protestando:

— Mas você sabe que já retiraram o corpo; a esta hora tudo na casa deve ter sido posto em ordem.

— Melhor! — murmurou Vance. — Não sou particularmente afeiçoado à vista de cadáveres; e detesto a falta de ordem.

Quando entramos na Avenida Madison, ele chamou um táxi, e, sem uma palavra, nos fez subir.

— Isto é um disparate, — declarava Markham de mau humor, quando íamos a caminho. — Que espera você encontrar agora para guiá-lo? A esta hora tudo foi já obliterado.

— Ah! Meu caro Markham, — disse Vance, com fingida solicitude. — Que falta lhe faz a teoria filosófica! Se qualquer coisa, por mais pequenina que fosse, pudesse ser realmente obliterada, o universo deixaria de existir — estaria resolvido o problema cósmico e o Criador escreveria o C. Q. D. no firmamento vazio. A única probabilidade que temos de continuar nesta ilusão chamada Vida reside no fato de que o conhecimento é como uma decimal periódica. Nunca tentou, quando era criança, completar a decimal um terço, enchendo uma folha de papel inteira com o número três? Sempre lhe ficava a fração um terço. Se você pudesse eliminar o mais pequenino terço, depois de alinhar dez mil três, estaria resolvido o problema. Assim é a vida, meu caro. É unicamente porque nada podemos apagar, que continuamos vivendo.

Calou-se, fazendo um gesto com os dedos, como se fora uma espécie de ponto tangível em suas observações, e ficou a olhar sonhadoramente, pela janela aberta, para o céu azul.

Markham encolhera-se a um canto, mastigando morosamente o charuto. Percebia-se claramente que o dominava uma irritação importante, arrependido de ter lançado o desafio; mas era tarde para retroceder. Mais tarde confessou-me que nesse momento tinha a impressão de que fora arrancado a uma cômoda poltrona, para obedecer aos propósitos ridículos de um doido.


IX

 

A ESTATURA DO ASSASSINO

 


(Sábado, 15 de junho — 5 da tarde)

 


Quando chegamos à casa de Benson, um guarda sonolento, que se recostava na grade do pátio, veio ao nosso encontro. Olhou para mim e para Vance cheio de esperança, supondo-nos suspeitos, levados à casa do morto para um interrogatório. Recebeu-nos um investigador que já estivera ali na manhã do crime. Markham cumprimentou-o e indagou:

— Tudo vai bem?

— Sim, senhor, — replicou o homem amàvelmente. — A velha dama é dócil como um gatinho e uma soberba cozinheira.

— Deixe-nos a sós por agora, Sniffin, — disse Markham, ao entrar na sala.

— O nome do gastrônomo é Snitkin e não Sniffin, — corrigiu Vance depois que este saiu.

— Admirável memória! — murmurou Markham rudemente.

— Um defeito meu, — disse Vance. — Creio que você é uma dessas pessoas que nunca esquecem um rosto, mas não podem lembrar os nomes, não é?

Mas Markham não estava com disposição para gracejos.

— E agora, que me trouxe aqui, que pretende fazer? — perguntou, agitando a mão e sentando-se.

O salão estava como o víramos da primeira vez, mas tudo fora posto em ordem. As cortinas estavam erguidas e a luz da

tarde entrava em profusão, dando mais relevo aos ornatos do mobiliário.

Vance olhou ao redor e estremeceu.

— Estou meio inclinado a dar volta, — balbuciou. — Foi um caso claríssimo, de homicídio justificável, praticado por um decorador de interior indignado.

— Meu caro esteta, — declarou Markham, impaciente, — tenha a bondade de recalcar agora seus preconceitos artísticos, e tratar do problema... Mas se você receia o resultado, — acrescentou com um sorriso malicioso, — ainda é tempo de se retirar, salvando assim suas sedutoras teorias, ainda intactas.

— E permitindo que você mande uma moça inocente para a cadeira elétrica! — exclamou Vance, fingindo-se indignado. É só o cavalheirismo que me impede a retirada. Oxalá nunca tenha eu de lamentar, como o príncipe Henrique, uma negligência na galanteria!

Markham cerrou os dentes e lançou a Vance um olhar feroz.

— Começo a crer agora que há alguma coisa de verdade na sua teoria de que cada homem tem algum motivo para assassinar outro...

— Bem, — replicou Vance alegremente, — agora que começa a pensar como eu, permite que eu mande o Sr. Snitkin dar um recado?

Markham suspirou e encolheu os ombros.

— Fumarei durante a ópera bufa, se isso não prejudicar a representação...

Vance foi até à porta e chamou Snitkin.

— Faça-me o favor de pedir à Sra. Platz que me empreste uma fita métrica e um novelo de barbante; o Promotor precisa disso, — acrescentou, fazendo uma reverência para o lado de Markham.

— Não creio que você pretenda se enforcar, pois não? — perguntou este.

Vance olhou-o com ar de censura e depois disse suavemente: — Permita-me que lhe recomende o Otelo:


"Quão miseráveis são os que não têm paciência! "Que ferida jamais sarou, senão aos poucos?"

 

ou — descendo de um poeta para um espírito vulgar — deixe-me apresentar à sua consideração um pentâmetro de Longfellow: "Todas as coisas vêm às mãos do que sabe esperar". Falso, sem dúvida, mas consolador. Melhor o disse Milton no seu: "Também servem..." Mas Cervantes o exprimiu ainda melhor: "Paciência e baralha as cartas". Conselho sadio, Markham, e expresso livremente, como deve ser um bom conselho. Acredite, a paciência é uma espécie de último recurso — uma prática a adotar quando já nada há a fazer. Ainda assim, como virtude ela às vezes recompensa o que a pratica, embora eu admita que, ela seja por via de regra — outra vez como virtude — inútil. Quer dizer, é a sua própria recompensa. Entretanto, tem sido enfarpelada com vários trajos verbais: "escrava da tristeza" e "soberana sobre os maus regenerados"; "paixão dos grandes corações". Rousseau escreveu: A paciência é amarga, mas seu fruto é doce. Mas talvez seu espírito jurídico se incline para o latim: Superanda omnis fortuna ferendo est, segundo Virgílio. E Horácio também falou no tema: Durum! disse ele, sed levius fit patientia...”

— Por que não virá o diabo do Snitkin? — rosnou Markham.

Quase no mesmo instante abriu-se a porta e o investigador ·entregou a fita métrica e o barbante a Vance.

— E agora, Markham, a sua recompensa!

Inclinando-se sobre o tapete, arrastou a grande poltrona de vime para a posição exata em que estava quando Benson foi alvejado. Era fácil determiná-la, pelas impressões dos rodízios da cadeira sobre a felpa escura do tapete. Passou o barbante através do orifício que a bala deixara no espaldar, e pediu-me que segurasse a ponta, assentando-a no lugar onde a bala batera no madeiramento. Tomou então a fita métrica e, estendendo o barbante através do orifício, mediu a distância de cinco pés e seis polegadas de comprimento, fitando o ponto que correspondia ao lugar da cabeça de Benson, quando ele estava sentado na cadeira. Deu um nó no barbante, para indicar a medida, e esticou-o, estendendo-o numa linha reta desde a marca no painel, passando pelo orifício da cadeira, até ao ponto de cinco pés e seis polegadas em frente ao lugar onde repousara a cabeça de Benson.

— Este nó no cordão, — explicou ele, — representa o lugar exato do cano da arma que tirou a vida a Benson. Acompanha o raciocínio, não é? Tendo dois pontos da trajetória da bala — o furo na cadeira e o sinal no painel — e conhecendo também aproximadamente a vertical da detonação, que foi entre cinco e seis pés distante do crânio do homem bastava prolongar a reta da trajetória da bala até à vertical de detonação para determinar o ponto exato de onde fora disparado o tiro.

— Em teoria está muito bem, — comentou Markham; se bem que eu não veja vantagem de você se dar tanto trabalho para determinar um ponto no espaço... Isso carece de importância, porque você se esqueceu da possibilidade de um desvio da bala.

— Desculpe-me contradizê-lo, — disse Vance sorrindo. — mas ontem de manhã interroguei o capitão Hagedorn e soube que não houve nenhum desvio da bala... Hagedorn examinara a ferida antes de chegarmos, e estava bem certo do que afirmava. Em primeiro lugar, a bala bateu no frontal com um ângulo tal, que tornaria praticamente impossível qualquer desvio, mesmo que se tratasse de uma arma de menor calibre. Em segundo lugar, a pistola com que mataram Benson era de calibre tão grande — um 45 — e a velocidade inicial foi tanta, que a bala teria descrito uma reta, ainda que fosse disparada a maior distância do rosto do homem.

— Mas Hagedorn sabia qual a velocidade inicial? — perguntou ainda Markham.

— Perguntei-lhe e ele me explicou que o tamanho e a característica da bala e o cartucho expelido lhe revelaram tudo. Foi como ele soube que era uma Colt automática — creio que ele chamou-a "Colt oficial" e não uma Colt comum. O peso das balas dessas duas pistolas difere levemente: a da Colt comum pesa 200 gramas, enquanto que a da pistola militar pesa 250. Hagedorn, com um tato hipersensível, pôde, creio eu, perceber logo a diferença, muito embora eu não o acompanhe nos seus dons fisiológicos — minha natureza limitada, você sabe... Entretanto, ele pôde dizer que era uma bala de pistola Colt automática regulamentar, 45. Sabendo isso, sabia que a velocidade inicial era de 809 pés, e que a força do choque era de 329 pés — o que dá uma penetração de seis polegadas no pinho branco a uma distância de vinte e cinco jardas... Criatura admirável, este Hagedorn! Imagine você, ter a cabeça cheia desses extraordinários conhecimentos! Os velhos mistérios — por que um homem escolhe o violoncelo como meio de vida, ou aonde vão parar todos os alfinetes — são um brinquedo de criança, comparados a este — porque um ser humano devota anos de vida às idiossincrasias das balas.

— O assunto não é o que se pode chamar atraente, — disse Markham, aborrecido. — Assim, para argumentar, suponhamos que você achou o ponto preciso da detonação da arma. Aonde vamos chegar com isso?

— Enquanto eu seguro o cordão esticado, queira você medir a distância exata do nó ao soalho. Depois meu segredo será desvendado.

— Este jogo não me tenta, — protestou Markham. — Prefiro de muito a "locomotiva".

Contudo, tirou a medida.

— Quatro pés e oito polegadas e meia, — disse com indiferença.

Vance colocou um cigarro no tapete, no ponto que ficava diretamente debaixo do nó.

— Sabemos agora a altura exata em que a pistola estava erguida, ao deflagar... Você já apanhou o processo pelo qual cheguei a esta conclusão, não?

— Parece-me evidente.

Vance foi outra vez até à porta e tornou a chamar Snitkin.

— O Promotor deseja que lhe empreste sua arma por um momento. Quer fazer uma experiência.

Snitkin entregou a arma a Markham, não sem surpresa, dizendo-lhe:

— Está travado. Quer que destrave?

Markham ia recusar a pistola, quando Vance se interpôs:

— Está bem assim. O Sr. Markham não pretende atirar — espero-o...

Quando o homem saiu, Vance sentou-se na cadeira de vime, e pôs a cabeça bem em frente ao orifício da bala.

— Agora, Markham, queira ficar de pé no lugar onde o assassino parou, e erga a arma bem acima do cigarro que está no chão; depois mire deliberadamente minha têmpora esquerda... Tome cuidado, — continuou, com um sorriso encorajador, — não puxe o gatilho, senão jamais saberá quem matou Benson...

Markham executou tudo, ainda que contra a vontade. Quando estava apontando, Vance pediu-me que medisse a distância do cano da arma ao chão.

Era de quatro pés e nove polegadas.

— É exatamente isso, — disse Vance, erguendo-se. — Já vê, Markham, você tem cinco pés e onze polegadas; logo, a pessoa que matou Benson era mais ou menos da sua altura — com certeza não tinha menos de cinco pés e dez... Isso também é evidente, não?

A demonstração fora tão simples e clara, que Markham estava francamente impressionado; ficara sério, e olhou um momento para Vance, ainda carrancudo.

 

 

 

— Está bem; mas a pessoa que deu o tiro pode ter erguido a pistola mais alto do que eu.

— Não é possível, — retrucou Vance. — Fiz muito exercício de tiro para saber que quando um perito mira deliberadamente um alvo pequeno, mantém firme a arma e sobre uma reta entre seu olho e o objeto visado. A altura a que ergue a arma, em tais condições, determina acuradamente sua própria estatura.

— Esse argumento baseia-se na hipótese de que a pessoa que matou Benson era um perito e apontava deliberadamente um alvo pequeno.

— Não é uma hipótese, mas um fato, — declarou Vance. — Se a pessoa em questão não fosse um atirador exímio, não poderia — a uma distância de cinco ou seis pés ter escolhido a fronte, mas um alvo mais vasto — o peito, por exemplo. Escolhendo a fronte, é certo que visou deliberadamente, não? Além disso, se não fosse perito, e tivesse apontado para o peito, sem alvejar deliberadamente, teria disparado mais de um tiro, provavelmente.

Markham refletia.

— Concordo em que, em face disso, sua teoria parece plausível. O criminoso podia ter mais ou menos cinco pés e dez de altura; mas também podia abaixar-se e escolher depois o alvo.

— É verdade. Mas você esquece que a posição do assassino, neste caso, era perfeitamente natural? A não ser assim, teria atraído a atenção de Benson, que não seria apanhado desprevenido. E que foi apanhado desprevenido prova-o sua postura. Sem dúvida, o assassino podia ter parado um momento a poucos passos sem que Benson olhasse para cima... Deixe-me dizer-lhe, contudo, que a estatura do homem regula entre cinco pés e dez polegadas e seis pés e duas polegadas... Isso não lhe recorda nada?

Markham ficou calado.

— A deliciosa Miss St. Clair, — observou Vance com um sorriso escarninho, — não pode ter mais de cinco pés e cinco, ou quando muito seis pés.

Markham resmungou, mas continuou a fumar, abstrato.

— O capitão Leacock, aposto que tem mais de seis pés, não? Markham pestanejou.

— De onde lhe veio essa idéia?

— Você mesmo me disse. Não se lembra?

— Eu lhe disse?

— Não com as mesmas palavras, mas depois que eu mostrei a altura aproximada do assassino, e demonstrei que ela não correspondia de modo algum à da senhora que você suspeitava, vi que seu espírito ativo buscava outra orientação. E como o inamorato era a única orientação possível, concluí que você deixava que seus pensamentos vagassem ao redor dele. Se ele tivesse a estatura estipulada, você nada diria, mas quando argumentou que o assassino podia ter-se abaixado para atirar, lembrei-me de que o capitão era anormalmente alto... Assim, durante o seu fértil silêncio, meu amigo, seu espírito manteve-se em doce comunhão com o meu, e disseme que o cavalheiro não tinha menos de seis pés de altura.

— Vejo que também possui o dom de ler o pensamento... Agora fico à espera de vê-lo adivinhar o que escrevo.

Falava em tom irritado, mas era apenas porque lhe custava admitir a alteração de suas opiniões. Cedia aos poucos, ia-se submetendo ao domínio de Vance, mas ainda se apegava obstinadamente às primitivas convicções.

— Espero que você não refutará minha demonstração da estatura do assassino? — indagou Vance, com voz melíflua.

— De modo algum. Parece-me plausível... Mas o que me admira é que Hagedorn não tivesse descoberto uma coisa tão simples.

— Disse Anaxágoras que quem precisasse de uma lâmpada, devia enchê-la de azeite. Observação profunda, Markham, daquelas que parecem simples gracejo, e que no entanto contêm uma grande verdade. Uma lâmpada sem óleo é inútil... A polícia tem sempre grande quantidade de lâmpadas — todas as variedades, de fato — mas não tem azeite. Aí está por que não encontra nunca os culpados, a menos que não seja à luz do dia.

Já o espírito de Markham seguia outra direção; ele se ergueu e começou a passear pelo salão.

— Até agora não me passara, pela cabeça que o capitão Leacock pudesse ser o criminoso.

— Por que não lhe passara pela cabeça? Porque um de seus investigadores lhe disse que estava em casa, naquela noite, como um rapaz modelo?

— Creio que sim, — respondeu Markham, continuando a passear pensativamente. Depois, parando de repente, acrescentou:

— Não, não foi isso. Foi a quantidade de provas circunstanciais contra aquela Miss St. Clair... E note, Vance, a despeito da demonstração que acaba de fazer, você não destruiu nenhuma dessas provas. Onde estava ela entre meia-noite e uma hora? Por que foi jantar com Benson? Como vieram parar aqui suas luvas e sua bolsa? E como foram encontradas no fogão pontas de cigarro iguais aos seus? Elas formam o obstáculo, essas pontas de cigarro; e sua demonstração não me convence inteiramente — a despeito do fato de que ela é convincente.

— Com efeito! — disse Vance, suspirando. — Você é positivamente terrível. Não importa, pode ser que eu consiga lançar alguma luz sobre essas perturbadoras pontas de cigarro.

Chamou de novo Snitkin, entregando-lhe a pistola.

— O Promotor agradece-lhe. E faça o favor de trazer aqui a Sra. Platz. Desejamos conversar com ela.

Voltou, sorrindo amàvelmente para Markham.

— Desta vez, desejo conversar eu mesmo com a dama, se isso não o contraria. Ela possui elementos que você desdenhou completamente quando a interrogou.

Markham, apesar de cético, sentiu-se interessado.

— Cedo-lhe o terreno.


CONTINUA

PHILO VANCE EM CASA

(Sexta-feira, 14 de junho — 8h30)

Tomei café da manhã casualmente com Philo Vance naquele célebre 14 de junho, o mesmo em que aparecera assassinado Alvino Benson — crime cuja lembrança ainda perdura. Não é que fosse coisa rara para mim tomar parte em seus almoços ou jantares, mas tomar café da manhã com ele, sim, era coisa extraordinária: era seu costume levantar tarde e permanecer incomunicável até o meio-dia, hora do almoço.
Motivara este encontro matinal um caso de negócios, ou antes, de estética. Na véspera, Vance fora à Galeria Kessler ver a exposição de aquarelas de Cézanne, da coleção Vollard, e convidara-me para almoçar, com o fim de me dar instruções acerca da compra de alguns quadros, que lhe interessavam particularmente.
O fato de eu ser o narrador desta crônica, explicam-no as minhas relações com Vance. Era tradicional na minha família, e isto desde muito tempo, a carreira jurídica, e quando terminei meus estudos preparatórios fui enviado, naturalmente, a Harvard, para não desmentir essa tradição enraizada. Foi ali que conheci Vance, um estudante reservado, satírico, cáustico até, que era o flagelo dos professores e o terror dos colegas. Por que me escolhera ele a mim, entre todos os estudantes da Universidade, para seu companheiro inseparável, é coisa que nunca cheguei a compreender perfeitamente. Minha simpatia por ele era facilmente explicável: fascinou-me; era para mim uma diversão intelectual de nova espécie. Mas é que em mim não encontrava ele o mesmo motivo de atração. Eu era, como ainda hoje, um indivíduo de qualidades vulgares, de espírito conservador, senão convencional. De qualquer maneira, porém, não tenho o espírito pesado, nem rígido, e a gravidade das leis mal influiu nele, de sorte que não demonstrei muita propensão para a profissão hereditária — e é possível que, inconscientemente, Vance encontrasse certa afinidade nesses traços do meu feitio. Há outra hipótese, sem dúvida muito pouco lisonjeira, e é que Vance, sentindo instintivamente em mim qualidades opostas, se apoiasse em mim como num esteio, compreendendo que a minha natureza era a antítese complementar da sua. Seja qual for, porém, a explicação, o certo é que andávamos sempre juntos, e que com o correr dos anos nossas relações vieram a se estreitar, a ponto de nos tornarmos inseparáveis.


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Depois de formado, fui trabalhar na firma de meu pai — Van Dine Davis — e, após cinco anos de enfadonha aprendizagem, entrei como sócio mais moço. Sou hoje o segundo Van Dine da firma Van Dine, Davis Van Dine, com escritórios na Broadway, 120. Ao tempo em que meu nome começou a aparecer no papel timbrado da firma, Vance voltava da Europa, onde vivera durante meu noviciado nas leis, e, tendo-lhe morrido uma tia, que o instituiu herdeiro principal, chamou-me ele para habilitá-lo à posse dos bens herdados.

Foi o começo de uma renovação da antiga amizade, cujos laços eram muito fortes. Como Vance tinha aversão por tudo o que se referia a negócios, com o tempo vim a ser encarregado de todas as suas transações, seu procurador, enfim. Seus negócios eram bastante numerosos para me tomarem todo o tempo, e ele suficientemente abastado para se dar ao luxo de um factótum pessoal e jurista, de mais a mais; assim foi que deixei o escritório e devotei-me exclusivamente às suas necessidades e caprichos.

Se é certo que até ao dia em que Vance me chamou para discutir a compra dos Cézanne eu tinha abrigado no coração algum secreto remorso por ter privado a firma Van Dine, Davis Van Dine dos meus modestos conhecimentos jurídicos, não é menos certo que tal remorso se dissipou para sempre naquela memorável manhã; porque, a partir do caso Benson, e durante quatro anos, tive o privilégio de conhecer a mais assombrosa série de casos criminais que jamais desfilou perante os olhos de um novato. Sem dúvida, os horrendos dramas que presenciei durante aquele período constituem um dos mais espantosos documentos secretos na história da polícia deste país.

Foi Vance o principal personagem desses dramas. Empregando um método analítico e interpretativo que, ao que eu saiba, nunca tinha sido até então aplicado a investigações criminais, conseguiu achar a solução de muitos casos em que tanto a Polícia como o Promotor Público tinham fracassado. Minhas relações com ele permitiram-me não só tomar parte em todos os casos em que ele interveio, mas também assistir à maior parte das discussões que teve de sustentar com os magistrados; e, como sou naturalmente metódico, conservei um registro completo desses casos. Anotava, além disso, tão claramente como mo permitia a memória, os métodos psicológicos inéditos que usava para determinar a culpabilidade, conforme ele os expunha. E foi uma sorte que eu tivesse feito esse trabalho desinteressado de anotação e transcrição, pois hoje, que as circunstâncias me permitem, quando menos o esperava, publicar esses fatos, acho-me em condições de apresentá-los com uma multidão de minúcias, com todas as suas nuanças e complicado desenvolvimento — tarefa que não me seria permitido cumprir sem meus numerosos apontamentos e recortes.

Afortunadamente, também, o primeiro caso que chamou a atenção de Vance, enredando-o nas suas malhas, foi o assassínio de Alvino Benson. Não só porque foi uma das mais famosas causas de Nova York, mas porque lhe proporcionou uma excelente oportunidade para desenvolver seus raros talentos de raciocínio dedutivo; e, por sua natureza e magnitude, orientou-lhe o interesse para um ramo de atividades até então estranho às sugestões do seu temperamento e predileções habituais.

Se bem que o próprio Vance tivesse sido, por um pedido feito um mês antes ao Promotor Público, o agente involuntário da quebra da rotina normal de sua vida, o caso se lhe impôs, repentina e inesperadamente. Tudo, de fato, caiu sobre nós, antes que tivéssemos acabado nosso almoço naquela manhã de meados de junho, e veio suspender todas as negociações concernentes à compra dos quadros de Cézanne. Quando, nesse mesmo dia, visitei as Galerias Kessler, duas das aquarelas que Vance particularmente desejava tinham sido vendidas; e estou convencido de que, apesar do seu sucesso na elucidação do mistério do assassínio de Benson, e de ter poupado a vida ao menos de um inocente, jamais se julgou compensado da perda daqueles dois pequenos esboços, que tanto o cativaram.

Fui introduzido na sala por Currie, um velho e singular criado inglês, que exercia as funções de despenseiro, criado de quarto, mordomo, e em algumas ocasiões especiais, cozinheiro. Encontrei Vance sentado em uma vasta poltrona, metido em um chambre de surá e chinelos de camurça cinzenta, e com o Cézanne, de Vollard, aberto sobre os joelhos.

— Desculpe-me por não me levantar, Van, — disse ele, cumprimentando-me distraído. — Tenho todo o peso da moderna evolução da arte a descansar sobre as pernas. Além disso, você sabe que me fatigo muito sempre que me levanto cedo, como os plebeus.

Folheava as páginas do livro, detendo-se de vez em quando para examinar uma ilustração.

— Este Vollard, — observou afinal, — foi até liberal com o nosso país, que amedronta a arte. Mandou uma coleção muito boa dos seus Cézanne. Examinei-a ontem, com a devida reverência, e, devo confessar, com indiferença... porque Kessler me vigiava; escolhi os quadros que desejo que compres hoje, assim que a Galeria se abra.

Deu-me um pequeno catálogo, que lhe servira de marcador de página.

— Uma estúpida incumbência, bem sei, — acrescentou, com um sorriso indolente. — Essas delicadas manchas com todo o seu papel branco, provavelmente não terão significação alguma para o seu espírito de jurista. É que você não sabe que elas são tão diferentes como um arrazoado perfeitamente datilografado. E você decerto imagina que algumas Nfiguras estejam de pernas para o ar, em completa desordem — uma delas está, de fato, invertida, e contudo nem Kessler o percebe. Mas não se zangue, amigo velho. São ninharias inexpressivas, mas muito lindas e valiosas, quando a gente considera que estarão valendo muito mais daqui a alguns anos. É na verdade um excelente emprego de capital, para uma criatura amante do dinheiro, infinitamente melhor do que aquela companhia "Eqüidade dos Juristas", sobre a qual você falava tão eloqüentemente, ao tempo da morte de minha tia Agatha. (*)

(*) De fato, as mesmas aquarelas que Vance comprou por 250 e 300 dólares, quatro anos mais tarde tinham triplicado de valor.


Uma das paixões de Vance (se podemos chamar paixão a um entusiasmo puramente intelectual) era a arte — não a arte nó seu aspecto limitado, pessoal, mas na sua significação mais universal. E a arte não era apenas o seu interesse dominante, mas a sua principal distração. Era uma autoridade no conhecimento de gravuras japonesas e chinesas; e ouvi dele uma vez uma dissertação improvisada, diante de alguns convidados, sobre figurinhas de Tanagra que, se tivesse sido publicada, constituiria uma deliciosa e instrutiva monografia.

Tendo recursos que lhe permitiam satisfazer seu instinto de colecionador, possuía uma linda coleção de quadros e objetos de arte. Essa coleção era heterogênea somente nos caracteres superficiais: cada peça que obtinha apresentava algum elemento, de forma ou linha, que a aparentava com todas as outras. Um conhecedor encontraria a unidade e coerência de todas as peças de que se cercou, ainda que estivessem profundamente separadas no tempo, ou no destino, ou na aparência exterior. Descobri em Vance um dos raros seres humanos que colecionam com um ponto de vista filosófico definido.

Sua residência na Rua 38, Leste — os dois andares superiores de uma velha casa. lindamente remodelada e em parte reconstruída, com aposentos espaçosos e tetos altos — estava cheia, mas não atravancada de raros espécimes de arte oriental e ocidental, antiga e moderna. Seus quadros vinham desde os primitivos italianos até Cézanne e Matisse; e na sua coleção de desenhos originais figuravam trabalhos tão apartados como os de Miguel Ângelo e Picasso. Suas gravuras chinesas constituíam uma das mais belas coleções particulares do país, e havia entre elas muitos exemplares de Ririomin, Rianchu, Jinkomin, Kakei e Mokkei.

— Os chineses — disseme Vance uma vez — são na verdade os maiores artistas do Oriente. Foi o trabalho desses homens que exprimiu mais intensamente um largo espírito filosófico. Os japoneses, ao contrário, são superficiais: vai larga distância, na verdade, entre o souci pouco mais que decorativo de Hokusai e um Ririomin, que revela um pensamento profundo e senso artístico consciente. Até depois de degenerada, sob os manchais, a arte dos chineses mostra uma profunda qualidade filosófica — uma sensibilidade espiritual, por assim dizer. E nas modernas cópias de cópias, a que chamam estilo bunjinga, encontramos quadros de sentido profundo.

A universalidade do gosto de Vance em arte era notável. Sua coleção era tão variada como a de um museu. Compreendia uma ânfora negra, toda lavrada, de Amasis; um vaso pré-corintiano no estilo egeano; baixelas de Koubatcha e de Rhodes; cerâmica ateniense; uma pia italiana para água benta, de cristal de rocha, do século XVI; baixelas de estanho do período dos Tudors (muitas peças traziam a rosa dobrada de hall-mark) (*); uma placa de bronze de Vallfogona; alguns bronzes etruscos; um budista greco-indiano; uma estatueta da deusa Kuan Yin, da Dinastia Ming; lindíssimas gravuras de madeira do Renascimento; e alguns espécimes de marfim esculpido, bizantinos, carolíngios, e franceses primitivos.

(*) Marca do contraste, gravada pela Corporação dos Ourives de Londres, em objetos de ouro e prata, para garantir a sua autenticidade.

(Nota do Tradutor)


Seus tesouros egípcios compreendiam um jarro de ouro de Zakazik, uma estatueta de Lady Nai (tão bela como a do Louvre), duas lindas estrelas cinzeladas do Primeiro Período Tebano, várias pequenas esculturas, raras representações de Hapi e Amset, e diversas taças Arrentino, trazendo esculpidos dançarinos kalathiscos. Em cima de uma das suas estantes do tempo de James I, na biblioteca, onde se achava a maior parte das pinturas e esboços modernos, via-se um belo grupo de escultura africana — máscaras cerimoniais e estatuetas fetiches da Guiné Francesa, do Sudão, da Nigéria, da Costa do Marfim e do Congo.

Um desígnio determinado me levou a falar tão insistentemente do instinto artístico de Vance, porque para bem compreender as aventuras melodramáticas que começaram para ele naquela manhã de junho, é necessário ter uma idéia geral das tendências do homem e de suas secretas inclinações. Seu interesse pela arte foi fator importante — diria mesmo dominante — na sua personalidade. Nunca vi outro homem que se lhe assemelhasse tanto — um espírito tão diversificado na aparência e, ainda assim, tão fundamentalmente coerente. Era o que muitos chamariam de diletante, mas a designação seria descabida. De invulgar cultura, aristocrata de nascimento e instinto, conservava-se rigidamente afastado do mundo comum dos outros homens. Desprendia-se dele um indefinível desprezo por tudo o que fosse inferioridade. A grande maioria dos que com ele tinham contato consideravam-no esnobe; contudo, não havia traço algum de simulação no seu desdém e condescendência. Seu esnobismo tinha tanto de social como de intelectual. Detestava a estupidez mais ainda, creio-o, do que a vulgaridade ou o mau gosto. Mais de uma vez ouvi-lhe a citação da célebre sentença de Fouché: "Cest plus qu'un crime; c'est une faute." E pensava literalmente assim. Era francamente satírico, mas raras vezes mordaz; suas sátiras eram petulantes, juvenalianas. Talvez a melhor definição que lhe caiba seja: um espectador da vida, enfadado e desdenhoso, mas profundamente sagaz. Interessavam-no em alto grau todas as reações humanas, mas era o interesse do cientista, não do humanitário. Em todo caso, era homem de raro encanto pessoal. E até os que não podiam admirá-lo, sentiam igualmente que não podiam deixar de gostar dele. Seus modos um tanto quixotescos e um leve sotaque inglês — herança do tempo que passara em Oxford — podiam parecer afetação aos que não o conheciam bem. Mas nada, ou muito pouco, havia nele de poseur.

Era notavelmente belo, apesar da boca austera e cruel, como as bocas de alguns dos retratos dos Medici (*); além disso, mostrava certa ironia, no arrogante arquear das sobrancelhas. A despeito da aquilina severidade das linhas, o.rosto era muito expressivo. A testa, cheia e inclinada, era a fronte do artista antes que a do erudito. Os olhos, frios e cinzentos, muito separados. Nariz direito e delgado, queixo curto e proeminente, com uma fenda extraordinariamente profunda. Quando vi John Barrymore há pouco, no Hamlet, lembrei-me um pouco de Vance; e já anteriormente, numa cena de César e Cleópatra, representada por Forbes-Robertson, tivera uma impressão semelhante. (**)

(*) Particularmente os retratos de Bronzino, de Pietro de Medici e Cosimo de Medici, na Galeria Nacional, e o medalhão de Vasari, de Lorenzo de Medici, no Vecchio Palazzo, de Florença.

(**) Certa vez, por motivo de uma sinusite, Vance mandou tirar uma radiografia da cabeça, e na papeleta do diagnóstico foi ele descrito como "um acentuado dolicocéfalo" e um "nórdico desproporcionado". Vinham mais os dados: índice cefálico, 75; nariz leptorrino com índice 48; ângulo facial, 85; índice vertical, 72; índice súpero-facial, 54; distância interpupilar, 67; queixo masognata, com um índice de 103; sela túrcica, anormalmente grande.

 

Tinha cerca de 1,80 m de altura, era esbelto, dava uma impressão de força e resistência nervosa. Destro espadachim, fora o capitão do quadro de esgrima da Universidade. Mediocremente apaixonado pelos desportos exteriores, tinha como que um dom de fazer bem todas as coisas, sem nenhuma prática especial. No golfe, seu handicap era apenas três; e uma vez jogou no nosso time, no campeonato de pólo que disputamos com a Inglaterra. Detestava longas caminhadas, e não andaria cem metros a pé, se achasse meio de ir a cavalo. Sempre elegante no trajar — escrupulosamente correto nos menores detalhes — ainda que não exagerado. Passava um tempo considerável nos clubes; seu preferido era o Stuyvesant, porque, explicou-me, seus membros vinham na maior parte das fileiras da política e do comércio, e ele não seria ali jamais arrastado a discussões que requeressem algum esforço mental. Ouvia de vez em quando as óperas mais modernas, e era freqüentador assíduo dos concertos sinfônicos e recitais de música de câmara.

Cabe notar que era um dos mais destros jogadores de pôquer que tenho visto. E menciono este fato, não simplesmente por ser extraordinário e significativo que um homem do tipo de Vance preferisse esse jogo democrático ao bridge ou xadrez, por exemplo; mas porque grande parte do seu conhecimento da psicologia humana adquiriu-o jogando o pôquer.

Seu conhecimento da psicologia era realmente profundo. Dotado de uma faculdade de julgamento das pessoas instintiva e acurada, o estudo e a leitura tinham coordenado e racionalizado este dom em grau surpreendente. Conhecia bem os princípios acadêmicos da psicologia, e todos os estudos que fizera na Universidade ou se basearam nesse assunto, ou se subordinaram a ele. Enquanto eu me confinava num círculo estreito de prejuízos e contratos, direito privado e público, provas e autos, Vance fazia o reconhecimento de todo o campo da experiência cultural. Fizera o curso de história das religiões, dos clássicos gregos, de biologia, economia política e social, filosofia, antropologia, literatura, psicologia teórica e experimental, línguas antigas e modernas (*). Mas o que mais o interessava, creio eu, eram os cursos de Münsterberg e de William James.

(*) "A cultura, — disseme Vance, depois que nos tornamos a encontrar, — é poliglota; e o manejo de várias línguas é essencial ao conhecimento dos fatos intelectuais e estéticos do mundo. Os clássicos gregos e latinos são, de forma especial, corrompidos pelas traduções". Cito esta observação, porque suas onívoras leituras em outras línguas que não o inglês, além da prodigiosa retentiva de sua memória, transpareciam-lhe na conversação. E, embora possa parecer a muitas pessoas que ele fosse por vezes pedante ao falar, tenho procurado citá-lo literalmente na esperança de apresentar um retrato do homem, tal qual ele era.


Seu espírito era fundamentalmente filosófico — isto é, filosófico no sentido mais geral. Singularmente isento de sentimentalismos convencionais e de superstições vulgares, descobria facilmente, sob a superfície dos atos humanos, os impulsos e motivos que os determinaram. Era, além disso, resoluto tanto em evitar atitudes que cheirassem a credulidade, como no apego à fria e lógica exatidão nos processos mentais.

— Enquanto não abordamos todos os problemas humanos, — observou ele uma vez, — com a frieza e a indiferença de um médico examinando uma cobaia amarrada a uma tábua, temos muito pouca probabilidade de alcançar a verdade.

Levava Vence uma vida social ativa mas não animada — concessão que fazia a vários laços de família. Mas não era um animal social. Não me lembro de ter encontrado jamais outro homem com o espírito gregário tão pouco desenvolvido. E somente compelido é que participava de atividades sociais. De fato, um de seus negócios "obrigatórios" o retivera na noite anterior àquele memorável almoço de junho; não teríamos combinado antes a compra dos Cézanne. Vence falou largamente a respeito enquanto Currie nos servia morangos e ovos à Bénédictine. Mais tarde, dei profundas graças ao Deus da Coincidência pelo fato de as coisas se terem passado assim, porque se ele estivesse dormindo pacificamente às 9 horas, quando o Promotor chegou, eu teria perdido quatro dos mais interessantes anos de minha vida, e muitos dos mais perversos e atrevidos malfeitores de Nova York estariam até agora em liberdade.

Acabávamos de sentar para tomar a segunda xícara de café e fumar um cigarro, quando Currie, que atendera a um violento toque de campainha, introduziu o Promotor Público.

— Valha-nos Deus! — exclamou ele, erguendo as mãos em cômico espanto. — O maior flâneur e conhecedor de arte de Nova York já está de pé!

— E rubro de vergonha par isso, — replicou Vance.

Era evidente, contudo, que o Promotor não estava de ânimo alegre. Tornou-se repentinamente sério.

— Vance, trouxe-me aqui um caso grave. Tenho muita pressa, e venho apenas para cumprir minha promessa... Alvino Benson foi assassinado.

Vance ergueu as sobrancelhas lentamente.

— Realmente? — balbuciou ele. — Mas... bem que ele o merecia! E de modo algum vejo motivo para que você se amofine com isso. Sente-se e tome uma xícara deste café de Currie, que está incomparável.

E, sem esperar que o outro protestasse, ergueu-se e tocou a campainha.

Markham hesitou um ou dois segundos.

— Ora! Dois minutos mais não vão fazer diferença... Mas é só um gole.

E sentou-se defronte de nós.


II

 

NO TEATRO DO CRIME

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 9 da manhã)

 


John F. X. Markham, como já disse, fora eleito Promotor Público de Nova York, pela chapa Reforma Independente, durante uma das reações periódicas da cidade contra o Tammany Hall. Serviu os quatro anos, e teria provavelmente sido reeleito, se a chapa não tivesse sido dividida pelas trapaças políticas dos adversários. Era um trabalhador infatigável, e durante sua administração a repartição desempenhou papel saliente nas investigações civis e criminais. Incorruptível, granjeou não somente a admiração dos seus partidários, mas ainda a confiança dos que o haviam combatido.

Pouco depois de eleito, um jornal chamou-o de "Cão de Guarda", alcunha que se lhe apegou até ao fim do quadriênio. E, na verdade, foi tão escrupuloso e tão feliz nas suas investigações que ainda hoje seu nome é citado em discussões jurídicas e políticas.

Era Markham um homem alto e forte, já na casa dos quarenta; a aparência de juventude do rosto bem barbeado era logo desmentida pelos cabelos grisalhos. Não se podia dizer que fosse belo, segundo o padrão comum, mas tinha um ar de inconfundível distinção, e possuía uma soma de cultura social raramente encontrada em nossos modernos funcionários públicos. É certo que era de temperamento brusco e vingativo; mas essa rudeza esteava-se em sólida camada de boa educação, não se tratando — como é tão vulgar — de uma subestrutura! posseira mal revestida de uma crosta de delicadeza.

Quando não o atormentavam os cuidados e deveres do cargo, era o mais gentil dos homens. Mas bastas vezes o vi, em minhas relações contínuas com ele, mudar a atenção delicada em severa autoridade. Então dir-se-ia que uma nova personalidade — dura, indomável, símbolo da eterna justiça — despontara repentinamente no corpo de Markham; fui muitas vezes testemunha dessa transformação.

E naquela manhã, quando ele se sentou na minha frente, na sala de Vance, a dureza de expressão do rosto denunciava a profunda perturbação que lhe causara o assassínio de Alvino Benson.

Tomou rapidamente o café e, quando depunha a xícara na mesa, Vance, que o observava com ar divertido, perguntou-lhe:

— Mas por que está você assim preocupado com a morte de Benson? Não é possível que seja você o assassino, pois não?

Markham não deu ouvidos à caçoada.

— Vou à casa de Benson. Quer ir comigo? Você me pediu para tomar parte numa experiência e passei por aqui para cumprir a promessa que lhe fiz.

Lembrei-me então de que algumas semanas antes, quando se discutia, no Club Stuyvesant, o assunto dos crimes célebres de Nova York, Vance manifestara o desejo de acompanhar o Promotor em uma de suas investigações; e Markham prometera levá-lo consigo no primeiro caso importante que se apresentasse. O interesse de Vance pela psicologia das ações humanas sugerira o desejo, e a sua amizade com Markham, que datava de longos anos, tornara possível a realização.

— Você não esquece nada, não? — replicou Vance negligentemente. — É um dom admirável, ainda que nem sempre seja agradável.

Olhou para o relógio em cima da lareira: faltavam poucos minutos para as nove.

— Mas que hora inconveniente! Imagine se alguém me visse...

Markham moveu-se na cadeira, impaciente.

— Está bem, se você julga que a satisfação de sua curiosidade o compensa do vexame de ser visto em público às 9 horas da manhã, apresse-se. Claro que não vou levá-lo de roupão e chinelos. E como não posso esperar mais de cinco minutos que você se vista...

— E por que essa pressa, meu velho? — perguntou Vance, bocejando. — O sujeito morreu, sabe? Ele não pode escapar!

— Vamos, mexa-se. Este negócio não é um brinquedo. É muito sério, e pelo jeito vai causar um grande escândalo. Mas que faz você?

— Eu? Sigo humildemente o grande vingador do povo, — respondeu Vance, erguendo-se e fazendo uma reverência.

Tocou a campainha e ordenou a Currie que lhe trouxesse a roupa.

— Vou a uma recepção que o Sr. Markham convocou diante de um cadáver, e preciso de uma roupa elegante. Está bastante quente para vestir algo de seda?... E uma gravata cor de alfazema, pelo menos.

— Espero que não leve também seu cravo vermelho, — resmungou Markham.

— Ora, ora! — murmurou Vance. — Você, sem dúvida, esteve lendo Hichens. Tal heresia em um Promotor Público! Não, você bem sabe que nunca uso nada na lapela! Os enfeites caíram em descrédito. Os únicos remanescentes dessa prática são casquilhos e tocadores de saxofone... Mas diga-me alguma coisa acerca do falecido Benson.

Estava já vestido, com o auxílio de Currie, e gastara nisso 0 mínimo de tempo possível. Sob os motejos procurava ocultar a verdadeira avidez com que acolhia a nova experiência, que descortinava ao seu espírito vivo e observador dramáticas visões.

— Você conheceu um pouco Benson, creio-o, — disse o Promotor. — Pois bem, esta manhã, muito cedo, sua governanta telefonou para o posto policial comunicando que acabava de encontrá-lo sentado na sua cadeira preferida, na sala, completamente vestido, e com um tiro na cabeça. A notícia foi transmitida ao Quartel-General da Polícia, e meu assistente de serviço avisou-me imediatamente. Estava resolvido a deixar o caso seguir os trâmites normais da polícia, mas meia hora depois o major Benson, irmão de Alvino, telefonou-me, pedindo-me, como um favor especial, que me encarregasse dele. Conheço o major há vinte anos, e não me pude recusar. Assim, almocei às pressas e saí. A casa é na Rua 48, Leste. Quando passava na sua esquina, lembrei-me do seu pedido, e vim aqui para ver se você queria ir.

— Uma excelente idéia, — murmurou Vance, ajustando a gravata em frente de um espelhinho policromo ao lado da porta.

Depois, voltando-se para mim:

— Venha, Van. Contemplaremos o defunto Benson, e estou certo de que algum dos policiais de Markham descobrirá que eu detestava aquele atrevido e me acusará do crime; procurarei salvar-me, é claro, com o meu talento jurídico à mão... Nada de objeções — não é, Markham?

— Sem dúvida, — respondeu o outro prontamente, mas compreendi que preferia não me levar. Eu estava, porém, muito interessado no assunto para fazer uma objeção cerimoniosa, e acompanhei-os.

Quando seguíamos pela Avenida Madison, refletia eu, não sem estranheza, na singular amizade que ligava aqueles dois homens tão dessemelhantes, que seguiam a meu lado no auto. Markham — reto, formalista, um nadinha austero, e muito escrupuloso em todos os seus atos; Vance — distraído, ativo, afável e extravagantemente céptico em face das mais terríveis realidades. E no entanto essa diversidade de temperamentos parecia, de algum modo, a verdadeira pedra angular de sua amizade; era como se cada um visse no outro um inatingível campo de experiência e sensação, que ele próprio não possuía. Markham representava para Vance o sólido e imutável realismo da vida, enquanto que para aquele Vance simbolizava o espírito livre de cuidados, exótico, manhoso, de aventura intelectual. Sua intimidade, de fato, era maior do que parecia, e a despeito das exageradas lamentações de Markham sobre as atitudes e opiniões do outro, eu creio que ele respeitava a inteligência de Vance mais profundamente do que a de qualquer outro homem.

Parecia preocupado e carrancudo, rodando pelas ruas da cidade. Ninguém falara desde que saíramos de casa, mas, ao entrarmos na Rua 48, Vance perguntou:

— Qual é a etiqueta para estas cerimônias matinais, além de tirar o chapéu diante do corpo?

— Você conserva o chapéu na cabeça, — resmungou Markham.

— Ah! Como nas sinagogas, então? Que interessante! Por acaso a gente tira também os sapatos, para não confundir as pegadas?

— Não, — disse Markham. — Os estranhos conservam-se completamente vestidos — no que a função difere das reuniões vespertinas do seu meio elegante.

— Meu caro Markham! — respondeu Vance dando à voz entonação de tristeza, — lá aparece outra vez o terrível moralista que existe na sua natureza. Esta sua observação ficaria muito bem num membro da Liga Epworth.

Markham estava muito preocupado para acompanhar a tagarelice de Vance.

— Quero preveni-lo de uma ou duas coisas, — disse ele solenemente. — Segundo parece, o caso vai provocar grande ruído, e motivará ciúme e disputas, por causa da rivalidade com a polícia. Não me admirarei se for atacado e maltratado pela polícia por me ter metido neste assunto. Assim, convém que tome cautela e não os irrite. Meu ajudante, que já está lá, supõe que o Inspetor entregou o caso a Heath, um sargento do Departamento de Homicídios. Ora, este deve estar convencido, até agora, de que eu me encarreguei do assunto somente para ver meu nome nos jornais.

— Você não é seu superior hierárquico?

— Sim; e é isso mesmo o que torna a situação mais delicada... Oxalá o major não me tivesse falado!

— Oh! — disse Vance, suspirando. — O mundo está cheio de sujeitos como Heath. Que estupidez!

— Mas você está enganado, — apressou-se a dizer Markham. — Heath é um homem de bem; é na verdade uma criatura excelente. O fato mesmo de ter sido incumbido deste caso demonstra que interesse despertou ele na Chefatura. Ninguém ali me mostrará hostilidade por ter intervindo, mas eu é que desejo que a atmosfera seja tranqüila. Heath não vai gostar de me ver trazer dois desconhecidos; por isso. Vance, peço-lhe que imite a modesta violeta...

— E eu que prefiro a flamante rosa, se isso não o incomoda, — protestou Vance. — Não importa, daqui a pouco oferecerei ao suscetível Heath um de meus mais escolhidos cigarros Régie, de ponta cor-de-rosa.

— Se você fizer isso, — observou Markham sorrindo, — ele o prenderá como suspeito.

Paramos de repente em frente a uma velha residência de pedra escura, à direita da Rua 48, perto da 6.a Avenida. Era de muito boa aparência, construída em um terreno de vinte e cinco pés, numa época em que os arquitetos da cidade ainda davam atenção à estabilidade e à beleza. O desenho era vulgar, de acordo com as outras casas do grupo, mas esculturas de pedra na fachada e por cima das janelas davam-lhe um toque de luxo e certa personalidade.

Um patiozinho ladrilhado, mais baixo que a rua, separava-a do edifício, e uma alta grade vedava a frente. A única porta de entrada ficava no cimo de uma escada de dez largos degraus de pedra. À direita da entrada, duas grandes janelas protegidas por pesadas grades de ferro.

Considerável multidão de curiosos reunira-se em frente a casa; e nos degraus esperavam alguns jovens que, pela aparência de atividade, tomei por jornalistas. Um guarda abriu a porta do nosso táxi, e saudou Markham com um respeito exagerado, procurando depois, ostensivamente, abrir passagem para nós por entre a multidão embasbacada de ociosos. Outro guarda, parado no pequeno vestíbulo, reconhecendo Markham, manteve aberta a porta para nos dar passagem, e cumprimentou o Procurador com grande dignidade.

— "Ave, Caesar, te salutamus", — cochichou Vance, ironicamente.

— Sossegue, — murmurou Markham, — tenho amofinações que cheguem sem suas citações.

Quando atravessávamos a porta, de maciço carvalho esculpido, veio ao nosso encontro o ajudante Dindwiddie, um rapaz sério, trigueiro, rosto prematuramente enrugado, e que aparentava suportar sobre os ombros a maior parte das desgraças da humanidade.

— Bom dia, chefe, — disse, saudando Markham, como se se sentisse aliviado com a sua chegada. — Muito me alegro de vê-lo chegar. Este caso desvendará muitas coisas. É um assassinato premeditado.

Markham, concordando melancòlicamente, olhou para a sala e indagou:

— Quem está aí?

— Todos, a começar pelo inspetor-chefe, — respondeu Dindwiddie, encolhendo os ombros, desanimado, como se aquela presença fosse de mau agouro.

Nesse momento um homem de meia-idade, alto, volumoso, de pele rosada e bigode branco, aparado rente, apareceu à porta da sala. Ao ver Markham, veio direto a ele de mão estendida. Reconheci o inspetor-chefe O'Brien, do Departamento de Polícia. Depois dos cumprimentos de estilo, eu e Vance fomos apresentados. Saudou-nos a ambos, silencioso, e voltou à sala, com Markham e Dindwiddie, e eu e Vance os seguimos.

 

 

 

O salão, amplo, quase quadrado, e de teto alto, tinha acesso por uma larga porta dupla. Duas janelas davam para a rua, e na parede oposta, à direita, outra janela abria sobre um pátio ladrilhado. À esquerda desta janela, uma porta corrediça comunicava com a sala de jantar.

Era um tanto extravagante o luxo do salão. Quadros representando cenas hípicas, encimados por troféus de caça, ornavam as paredes. O soalho quase desaparecia, coberto por um tapete oriental, de cores vivas. Em frente à porta de entrada, a lareira com o manto de mármore cinzelado. Ã direita, colocado em diagonal ao canto, um piano de armário de nogueira com aplicações de cobre. Havia ainda uma estante envidraçada, de acaju, com cortinas floreadas, cheia de livros, um sofá, um tamborete veneziano, baixinho, incrustado de madrepérola, e, sobre uma mesinha de teca, um grande samovar de cobre. Uma mesa ao centro, de seis pés de comprimento, também marchetada de metal. Ao lado da mesa, perto do vestíbulo, com as costas para as janelas, estava uma espreguiçadeira de vime, com o espaldar alto, em forma de leque.

Nesta cadeira repousava o corpo de Alvino Benson.

Embora eu tivesse servido dois anos na frente, na Primeira Guerra Mundial, e tenha visto a morte sob aspectos terríveis, não pude reprimir um forte sentimento de desagrado à vista daquele homem assassinado. Na França, a morte parecia uma parte inevitável da rotina diária, mas aqui todo o ambiente era oposto à idéia de tal violência. O radiante sol de junho inundava o salão, e pelas janelas chegava até nós o contínuo rumor da cidade, que, apesar de suas cacofonias, dá uma impressão de paz e segurança, que acompanham o curso social da vida.

Tão natural era a postura do corpo, reclinado na cadeira, que se diria ia voltar-se e perguntar-nos por que lhe violávamos a intimidade. A cabeça repousava no alto espaldar. A perna direita descansava cruzada sobre a esquerda. O braço direito apoiava-se à mesa, e o outro no braço da poltrona. Mas o que dava à sua atitude maior impressão de naturalidade era um livro que conservava na mão, aberto, marcando ainda o polegar a página que sem dúvida lia, quando o mataram. (*)

(*) O livro era Só Negócios, de O. Henry, e, fato curioso, a página em que estava aberto era a da história intitulada "Um relatório municipal".


O tiro fora disparado de frente, e ferira-o na testa; o pequeno orifício circular da bala coberto agora de um coágulo de sangue, enegrecera. Uma grande mancha escura, no tapete, por detrás da cadeira, indicava a extensão da hemorragia causada pela passagem da bala através do crânio. Não fossem estes sinais, dir-se-ia que ele apenas interrompera a leitura para repousar um momento.

Vestia uma velha jaqueta e calçava chinelos de feltro vermelho, mas trazia ainda a calça e camisa de cerimônia, a que tirara o colarinho. Desabotoara a gola, sem dúvida para estar mais à vontade. Não era homem de físico atraente; quase calvo e mais gordo que delgado.

Era bochechudo, e a flacidez do pescoço, sem a sujeição do colarinho, avultava mais. Estremeci, diante dessa figura desagradável à vista, e voltei-me para os circunstantes.

Dois sujeitos agigantados, de pés e mãos enormes, chapéus de feltro puxados para a nuca, inspecionavam as grades das janelas. Ao que parecia, davam particular atenção aos pontos onde as barras pegavam na alvenaria; um deles até segurara uma das grades com ambas as mãos, e sacudia-a, como um macaco, para avaliar-lhe a resistência. Outro, de mediana estatura, e ar resoluto, com um bigodinho louro, inclinado sobre a chaminé, examinava com atenção o empoeirado cano de gás. Do outro lado da mesa um homem corpulento, num terno de sarja azul e chapéu-de-côco, examinava, com as mãos nos quadris, o mudo rosto reclinado na cadeira. O queixo quadrado, de prognata, era solidamente implantado. Os olhos, de um azul pálido, duros e apertados, fixavam intensamente o cadáver de Benson, como se pretendesse, tão-somente pelo poder de concentração, arrancar-lhe o segredo de sua morte.

Junto à janela do fundo, outro homem, de estranho semblante, examinava com uma lente um pequeno objeto. Reconheci, pelos retratos que já conhecia, o capitão Carlos Hagedorn, o mais célebre e afamado perito em armas de fogo de toda a América. Era um homem alto, largo de ombros, não muito simpático, de seus 50 anos; a roupa, preta e lustrosa, ficava-lhe muito folgada. O casaco, muito curto atrás, caía-lhe na frente até aos joelhos, e as calças ensacavam sobre os tornozelos, fazendo grotescas pregas. A cabeça, anormalmente desenvolvida, era redonda, e as orelhas pareciam enterradas no crânio. Um bigode áspero e grisalho ocultava-lhe completamente a boca, e formava uma espécie de lambrequim sobre os lábios. Há mais de trinta anos que o Departamento de Polícia de Nova York recorria a seus serviços, e ainda que lhe ridicularizassem, na Chefatura, as maneiras e o vestuário, era ali profundamente respeitado. Sua palavra era sempre acatada, tanto no que se referia a armas de fogo, como a ferimentos por elas feitos.

Ao fundo da sala, ao pé da porta da sala de jantar, ainda outros homens conversavam: o inspetor William M. Moran, comandante-chefe da Divisão de Investigadores, e o sargento Ernesto Heath, do Departamento de Homicídios, de quem já nos falara Markham.

Quando entramos na sala, acompanhando o inspetor-chefe O'Brien, todos interrogaram suas ocupações por um momento, e olharam para o Promotor Público com um ar desconfiado, mas respeitoso.

Apenas o capitão Hagedorn, depois de envesgar um rápido olhar para o lado de Markham, voltou à inspeção do delicado objeto que tinha na mão, com um ar abstrato e indiferente, que fez sorrir Vance.

Adiantaram-se o inspetor Moran e o sargento Heath, com grande dignidade; seguiu-se o inevitável aperto de mão — cerimônia que mais tarde observei ser uma espécie de rito entre a polícia e os membros da Promotoria do Distrito — e a nossa apresentação. Em poucas palavras, Markham explicou a nossa presença. O inspetor sacudiu amàvelmente a cabeça, mostrando que aceitava a intromissão, mas notei que Heath fazia que não ouvia a exposição de Markhan, e continuou a agir como se não existíssemos.

Em nada se assemelhava o inspetor Moran aos demais que ali se achavam. Regulava sessenta anos, tinha cabelos brancos e bigode escuro. Trajava irrepreensivelmente. Dava mais a idéia de um corretor bem sucedido de Wall Street do que de um oficial da polícia. (*)

(*) Soube mais tarde que o inspetor Moran fora presidente de um grande banco do Estado, falido durante o pânico de 1907; e que na administração Gaynor fora indicado para o posto de Comissário de Polícia.


— Confiei o caso ao sargento Heath, Sr. Markham, — explicou ele em uma voz melodiosa. — Parece que vai dar-nos muito que fazer. O próprio inspetor-chefe achou que devia animar as investigações iniciais, e veio trazer-nos o apoio moral da sua presença: está aqui desde às oito horas.

O inspetor O’Brien deixara-nos assim que entrou na sala, ·e do vão da janela da frente observava o trabalho com ar grave e impenetrável.

— Bem, — disse Moran, — vou-me embora. Tiraram-me da cama às sete e meia, e ainda não almocei. Agora que você está aqui, já não sou necessário... Até logo.

E tornou a apertar-nos as mãos.

Depois que ele saiu, Markham voltou-se para o seu ajudante:

— Dindwiddie, peço-lhe que se encarregue destes dois moços. São recrutas e querem acompanhar nosso trabalho. Explique-lhes as coisas enquanto falo com o sargento Heath.

Dindwiddie aceitou sem relutância a incumbência. Talvez ·porque lhe trazia o meio de dar vazão à sopitada excitação.

Voltamo-nos todos os três para o corpo do homem assassinado — o eixo trágico do drama, afinal — e ouvi Heath dizer, colérico:

— Suponho que veio para se encarregar do assunto, Sr. Markham?

Dindwiddie e Vance conversavam, e eu olhei para Markham com interesse, lembrando-me do que nos dissera sobre a rivalidade entre o Departamento de Polícia e a Promotoria. Ele sorriu amàvelmente e, com um movimento lento, apertou a mão de Heath.

— Não, sargento. Estou aqui para trabalhar com você, e quero que nossas relações sejam definidas desde já. De fato, não estaria aqui agora, se o major Benson não me tivesse telefonado, pedindo minha ajuda. Particularmente, desejo que meu nome não seja mencionado. Todos sabem — ou ficarão sabendo agora — que o major é um velho amigo meu; assim, será melhor, por todos os motivos, que minha intervenção no caso fique ignorada.

Heath murmurou alguma coisa que não pude apanhar, mas vi que serenara. Como todos os que tinham relações com Markham, sabia o que valia a sua palavra, e pessoalmente simpatizava com o Promotor.

— Se alguma honra advier deste caso, — continuou Markham, — será para o Departamento de Polícia; portanto, julgou que é melhor falar com os jornalistas... E, — acrescentou muito naturalmente, — se aparecer alguma censura, seus homens terão de arcar com ela também...

— É justo, — assentiu Heath.

— E agora, sargento, mãos à obra.


III

 

UMA BOLSA DE MULHER

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 9h30)

 


O Promotor e Heath aproximaram-se do cadáver, e contemplaram-no com atenção.

— Veja, — disse Heath, — atiraram de frente. Tiro certeiro, e forte também, pois a bala atravessou o crânio e foi bater ali no madeiramento da janela, — continuou, mostrando um ponto no painel, a curta distância do soalho, junto à cortina da janela mais próxima do vestíbulo. — Encontramos a lasca, e o capitão examina a bala.

E voltando-se para o perito:

— Então, capitão, há alguma coisa especial?

Hagedorn levantou vagarosamente a cabeça e encarou Heath com seu olhar de míope. Depois de alguns movimentos desajeitados, respondeu lentamente:

— Bala militar 45. Colt automático.

— Pode dizer de que distância foi disparado o tiro? — perguntou Markham.

— Sim, senhor, posso, —.replicou Hagedorn na sua monótona lentidão. — Entre cinco e seis pés, provavelmente.

— Provavelmente... — murmurou Heath com desdém. — Pode contar como certo, se o capitão o diz. Veja o senhor, nada menor do que uma bala 44 ou 45 pode matar um homem, e essas balas militares de aço atravessam um crânio como se fosse um queijo. Mas para ir incrustar-se no madeiramento, o tiro tinha de vir de muito perto; e, como não há sinal de pólvora no rosto, pode-se apostar em como a distância que o capitão deu é exata. Nesse instante ouvimos abrir e fechar a porta da frente e entraram o Dr. Doremus, chefe dos médicos legistas, e seu assistente. O médico apertou a mão de Markham e do inspetor O’Brien, e cumprimentou amàvelmente Heath.

— Sinto não ter podido vir mais cedo, — desculpou-se. Era um homem nervoso, com o rosto marcado de cicatrizes e as maneiras de um corretor de imóveis.

— Que aconteceu aqui? — perguntou logo, fazendo uma careta ao ver o corpo.

— É o senhor quem no-lo vai dizer, doutor, — retrucou Heath.

O dr. Doremus aproximou-se do assassinado com a indiferença do médico já endurecido por um longo tirocínio. Examinou atentamente o rosto — sem dúvida à procura de sinais de pólvora. Olhou para o orifício da testa, depois para a ferida irregular da nuca. Moveu os braços do morto, dobrou-lhe os dedos, inclinou-lhe um pouco a cabeça para o lado. Tendo assim verificado o estado de rigor mortis, voltou-se para Heath:

— Podemos estendê-lo naquele sofá? Heath indagou de Markham:

— Pode-se fazer isso?

Como Markham assentisse, acenou para os dois homens das grades e ordenou-lhes que deitassem o corpo no divã. A rigidez da morte conservava os membros encolhidos, e o doutor e seu assistente tiveram de estendê-los. Foi então despido o corpo, e o Dr. Doremus examinou-o cuidadosamente, à procura de outros ferimentos. Prestou particular atenção aos braços; abriu bem ambas as mãos e examinou-lhes as palmas. Afinal ergueu-se e enxugou as mãos em um grande lenço de seda de várias cores.

— A bala atravessou o frontal esquerdo, — anunciou ele. — Feriu um ângulo reto, atravessando completamente o crânio. O orifício de saída é na região occipital esquerda — base do crânio. Acharam a bala, não? Estava acordado quando o alvejaram, e a morte foi instantânea — provavelmente nem soube de que morria... Foi mais ou menos, segundo creio, há umas oito horas, talvez mais...

— Pelas doze e meia, para dar um tempo exato? — perguntou Heath.

O médico olhou para o relógio.

— É isso. Nada mais?

Ninguém respondeu, mas depois de breve pausa o inspetor-chefe disse:

— Desejávamos ter o seu laudo hoje, doutor.

— Perfeitamente — respondeu ele, fechando o estojo clínico e entregando-o ao assistente. — Mas levem o corpo ao Necrotério o mais cedo possível.

Depois de uma breve cerimônia de apertos de mão, ele saiu apressadamente.

Heath voltou-se para o investigador que estava parado ao pé da mesa quando ele entrou.

— Burke, telefone para a Chefatura, para que venham buscar o cadáver, e diga que o vistam. Depois volte para o escritório e espere-me.

Burke cumprimentou e desapareceu.

Heath dirigiu-se então a um dos homens que tinham estado inspecionando as grades das janelas da rua.

— Que achaste, Snitkin?

— Nada, sargento. Fortes como as de uma prisão. Ninguém poderia passar através destas janelas.

— Muito bem, — disse Heath. — Agora vocês dois vão com Burke.

Depois que eles saíram, ativo homem de terno de sarja azul e chapéu-de-côco, cuja esfera de atividade parecia concentrar-se na lareira, pôs na mesa duas pontas de cigarro.

— Encontrei isto no cano do gás, sargento, — explicou ele sem grande entusiasmo. — Não é muita coisa, mas nada mais achei.

— Está bem, Emery, — disse Heath, deitando um olhar descontente para o achado. — Você não precisa esperar. Ver-nos-emos depois no escritório.

Hagedorn avançou, com grande solenidade. — Creio que eu também posso ir. Levo esta bala; há nela alguns sinais especiais. Não precisa dela, sargento?

— Para quê? — perguntou ele, sorrindo. — Leve-a, mas não a perca.

— Não a perderei — assegurou Hagedorn em tom sério e aborrecido. E, sem dirigir sequer um olhar para o Promotor ou para o inspetor, saiu com um movimento levemente balanceado, que lembrava o de um grande anfíbio.

Vance, que estava a meu lado perto da porta, voltou-se e seguiu Hagedorn ao vestíbulo, onde conversaram em voz baixa por alguns minutos. Vance parecia fazer perguntas e, embora eu não estivesse bastante perto para ouvir tudo, apanhei algumas palavras: "trajetória", "velocidade inicial", "ângulo", "ímpeto", "impulso", "desvio", e outras que tais — e eu estava curioso sobre o que podia ter motivado o estranho interrogatório.

Quando Vance agradecia a Hagedorn suas informações, entrou no vestíbulo o inspetor O’Brien.

— Aprendendo rápido? — perguntou, sorrindo, a Vance, com ar protetor. E, sem esperar resposta, para o capitão: — Venha, eu o levarei à cidade.

Markham, que o ouvira, perguntou-lhe se teria lugar para Dindwiddie também.

— Certamente, Sr. Markham.

Saíram os três, e ficamos na sala com o Promotor e Heath. E, como se obedecêssemos a um impulso comum, sentamo-nos todos. Vance tomou uma cadeira junto da porta da sala de jantar, em frente àquela onde Benson tinha sido assassinado.

As maneiras e ações de Vance tinham chamado particularmente minha atenção, desde que chegáramos. Ao entrar na sala, ajustara cuidadosamente o monóculo. Esse gesto, apesar da aparente indiferença com que o executava, demonstrava nele interesse. Quando seu espírito era despertado por alguma impressão e desejava apanhar o assunto prontamente, punha logo o monóculo. Podia ver perfeitamente sem ele, e obedecia apenas a uma sugestão mental. Era como se o aumento de nitidez de visão influísse sutilmente na acuidade do seu espírito. (*)

(*) Os olhos de Vance eram levemente bifocais. O olho direito era astigmático, de 1/2, enquanto que o esquerdo era praticamente normal.


A princípio mirara o salão sem curiosidade, acompanhando com certo ar de apática fadiga o que ali se passara; mas, durante o breve interrogatório de Heath a seus subordinados, revelara-lhe o olhar satisfação irônica. Depois de algumas perguntas gerais feitas a Dindwiddie, passeara pela sala, aparentemente sem nenhum fim determinado, olhando para os vários objetos e móveis. Afinal, detivera-se a examinar o sinal da bala no painel; depois fora até à porta, esquadrinhando o vestíbulo com o olhar.

A única coisa, que parecera prender-lhe a atenção fora o cadáver. Parará diante dele por alguns minutos, estudando-lhe a posição, e chegou a inclinar-se sobre o braço espichado na mesa, como se quisesse ver exatamente como a mão do morto segurava o livro. A posição das pernas cruzadas, contudo, o interessara muito, e se demorara a estudá-las tempo considerável. Afinal, tornara a por o monóculo no bolso do colete, e viera juntar-se a mim e a Dindwiddie, perto da porta, onde se conservou de pé, olhando indiferentemente para Heath e os outros investigadores, até a partida do capitão Hagedorn.

Mal nos sentáramos, apareceu a ordenança à porta do vestíbulo.

— Está aí um homem do posto policial, que deseja falar com o oficial encarregado do caso. Mando-o entrar?

Heath assentiu, e um momento depois um grande irlandês vestido à paisana dava entrada na sala. Cumprimentou Heath, mas reconhecendo o Promotor, fez dele o alvo do seu relatório.

— Sou o agente McLaughlin, senhor, do posto da Rua 47, Oeste, — informou ele. — Estava de serviço nesta zona a noite passada. Mais ou menos à meia-noite, suponho eu, vi um grande Cadillac cinzento parado em frente desta casa. Chamou-me a atenção porque trazia atrás uma porção de utensílios de pesca e todos os faróis acesos. Quando ouvi hoje falar no crime, relatei isto ao sargento do posto, e ele ordenou-me que viesse aqui contar-lhe o fato.

— Perfeitamente, — comentou Markham e, com um gesto, entregou o assunto a Heath.

— Talvez isso signifique alguma coisa, — admitiu este, duvidoso. — Quanto tempo estaria parado aqui esse carro, agente?

— Uma boa meia hora, sem dúvida. Estava ali antes da meia-noite, e quando voltei, cerca de trinta minutos após, ainda aí se achava. Quando tornei a passar, porém, já se tinha retirado.

— Não viu mais nada? Ninguém no carro, ou ao pé dele, que pudesse ser o dono?

— Não, senhor. Nada vi.

Fizeram-lhe mais algumas perguntas semelhantes, mas nada mais se obteve, e despediram-no.

— Como quer que seja, — observou Heath, — a história do carro parado pode servir para entreter os jornalistas.

Vance estivera sentado durante o interrogatório de McLaughlin, quase cochilando — duvido até que tenha ouvido mais do que as primeiras palavras do agente — e depois, reprimindo um bocejo, levantou-se, foi até à mesa de centro e pegou numa das pontas de cigarro que tinham sido encontradas no combustor de gás da lareira. Rolou-a entre o polegar e o indicador, esquadrinhou-a, rasgou o papel com a unha e levou o fumo assim exposto ao nariz.

Heath, que estivera a observá-lo com raiva contida, inclinou-se para diante, perguntando-lhe em tom truculento:

— Que faz o senhor?

Vance ergueu os olhos, sinceramente espantado.

— Apenas cheirando o fumo. — respondeu com indiferença condescendente. — É fraco, mas uma mistura delicada.

Os músculos da face de Heath retesaram-se, enquanto ele replicava, irado:

— Pois faria melhor deixando-o onde estava, senhor. É perito em fumos? — continuou, depois de mirar Vance de alto a baixo.

— Oh! não, — respondeu suavemente Vance. — Minha especialidade são os cartuchos em forma de escaravelho, da dinastia dos Ptolomeus.

Markham interveio, diplomaticamente:

— Na verdade, Vance, você não devia tocar em coisa alguma aqui, estando as investigações no pé em que estão. Não sabe o que pode ter importância: aqueles cotos de cigarros podem vir a ser provas significativas.

— Provas? — repetiu Vance docemente. — Quem o diria! Engraçadíssimo...

Markham estava muito contrariado, e Heath, ainda que sentindo o sangue a ferver, não fez comentário algum; até forçou um sorriso desconsolado. Sem dúvida, achou que fora um pouco abrupto com o amigo do Promotor, embora isso ainda tornasse o amigo mais merecedor da reprimenda.

E não é que Heath fosse bajulador na presença dos superiores. Conhecia seu valor, e demonstrava-o, desempenhando as tarefas que lhe incumbiam com obstinada indiferença pelo seu próprio progresso político. Sua firmeza, e a solidez de caráter que decorria dela, granjearam-lhe o respeito e o apreço dos superiores.

Era grande, forte, elegante e ágil, como um boxeador bem treinado. Seus olhos azuis e duros eram singularmente brilhantes e penetrantes. Tinha nariz pequeno, o queixo oval e largo, a boca austera e direita, com os lábios sempre contraídos. Embora já bem perto, nenhum fio branco se percebia em sua cabeleira curta, cortada à Pompadour. A voz era áspera, mas ele raramente a erguia. Era, sob muitos aspectos, o tipo convencional do investigador. Mas havia nele também alguma coisa que lhe acentuava a personalidade, dir-se-ia uma força que lhe vinha do próprio mérito. E, naquela manhã, ao olhá-lo, senti que o admirava, a despeito de reconhecer nele certas limitações.

— Qual é a situação exata, sargento? — perguntou Markham. — Dindwiddie deu-me apenas informações gerais.

Heath pigarreou.

— Avisaram-nos pouco antes das sete. A governanta de Benson, uma Sra. Platz, telefonou para o posto dizendo que o encontrara morto, e pedia que mandassem alguém cá sem demora. A mensagem foi, sem dúvida, transmitida ao posto central da Polícia. Eu não estava lá no momento, mas Burke e Emery estavam de serviço, e, depois de avisarem o inspetor Moran, vieram para aqui. Já encontraram alguns agentes do posto local fazendo as diligências habituais. Chegando aqui, e inteirando-se da situação, o inspetor telefonou-me, pedindo-me que me apressasse. Quando cheguei, os agentes do posto local tinham saído, e tinham vindo outros três, do setor de homicídios. O inspetor telefonou também ao capitão Hagedorn — entendeu que o caso era bastante importante para chamá-lo imediatamente — e o capitão acabava de chegar quando o senhor entrou. O Sr. Dindwiddie veio logo depois do inspetor, e telefonou-lhe imediatamente. O inspetor-chefe O’Brien chegou pouco antes de mim. Interroguei a Sra. Platz e meus homens examinavam o local quando o senhor chegou.

— Onde está agora a Sra. Platz?

— Lá em cima, sob a guarda de um dos agentes do posto. Ela mora aqui mesmo.

— Por que fez menção da hora específica de doze e meia ao médico?

— A Sra. Platz disseme que ouviu uma detonação naquele momento, e supus que fosse o tiro. Suponho agora que foi o tiro

— isso concorda com outras coisas.

— Acho melhor conversarmos outra vez com a Sra. Platz,

— sugeriu Markham. — Mas primeiro diga-me: achou alguma coisa aqui na sala, alguma coisa que sirva?

Heath hesitou quase imperceptivelmente, depois tirou do bolso do casaco uma bolsa de senhora e um par de luvas compridas, de pelica branca, e colocou tudo em cima da mesa, em frente do Promotor.

— Apenas isto, que um dos homens do posto encontrou em cima da manta da lareira.

Depois de um exame distraído das luvas, Markham abriu a bolsa de mão e despejou o conteúdo sobre a mesa. Adiantei-me para olhar, mas Vance permaneceu sentado, fumando placidamente seu cigarro.

A bolsa era de fina malha de ouro, com um fecho de pequenas safiras. Menor do que as de uso comum, serviria para a noite somente. Os objetos que continha, e que Markham examinava, consistiam de uma cigarreira chata, de seda chamalotada, um frasquinho de Fleurs d'Amour, Roger et Gallet, uma caixinha de pó-de-arroz compacto, uma pequena e delicada piteira de âmbar marchetado, um batom em estojo de ouro, um lencinho bordado, de fino linho francês, com as iniciais "M. St. C." no canto, e uma chave Yale.

— Isto pode indicar-nos uma boa pista, — disse Markham, designando o lenço. — Suponho já examinou tudo cuidadosamente, sargento.

— Sim, e imagino que a bolsa pertence à mulher que estava em companhia de Benson ontem à noite. Disseme a criada que ele tinha um compromisso, e vestiu-se para jantar fora. Ela não o ouviu voltar; mas não será muito difícil descobrir essa M. St. C.

Markham tornou a pegar na cigarreira, e voltando-a de boca para baixo caiu sobre a mesa um pouco de pó de fumo. Heath ergueu-se imediatamente.

— Quem sabe se esses cigarros vinham desta cigarreira? — lembrou ele. Pegou na ponta que ficara intacta e examinou-a. — É cigarro de senhora, sem nenhuma dúvida, — continuou. — e parece ter sido fumado em piteira também.

— Peço perdão por dissentir do senhor, sargento, — disse Vance lentamente. — Estou certo de que me desculpará. Mas há um pouco de carmim no cigarro. Não se vê bem por causa da ponta dourada.

Heath lançou um olhar penetrante a Vance; estava muito admirado para se suscetibilizar. Examinou acuradamente o cigarro e voltou-se outra vez para Vance, perguntando-lhe com áspera ironia:

— Quem sabe se o senhor nos pode dizer também se os cigarros procedem deste estojo?

— A gente nunca sabe, não é? — respondeu Vance, erguendo-se indolentemente.

Pegou na cigarreira, abriu-a completamente, bateu-a contra a mesa. Examinou-lhe o interior minuciosamente, e um sorriso divertido contraiu-lhe os lábios. Metendo o indicador dentro da cigarreira, tirou um cigarrinho que fora evidentemente metido à força no fundo, e se achatara ali.

— Meus dons olfativos já não são necessários, — disse. — Mesmo à vista desarmada se conhece que os cigarros são, para falar franco, idênticos, não, sargento?

Heath sorria afàvelmente.

— Um ponto para o Sr. Markham, — disse, pondo cuidadosamente o cigarro e a ponta num envelope, que assinalou e meteu no bolso.

— Vê agora, Vance, — observou Markham, — a importância daquelas pontas de cigarro?

— Não posso dizer que sim, — respondeu o outro. — Que valor pode ter um toco de cigarro? Não se pode fumá-lo, creio eu...

— É uma prova, meu caro amigo, — explicou Markham pacientemente. — Sabe-se agora que a dona desta bolsa voltou para aqui com Benson ontem à noite, e ficou tempo bastante para fumar dois cigarros.

Vance arqueou as sobrancelhas, comicamente espantado.

— Sabe-se? Sabe-se, na verdade? Imagina-se isso, por enquanto...

— Só o que falta agora é encontrá-la, — replicou Heath.

— Se isso pode facilitar a pesquisa, — disse Vance lentamente, — digo-lhe que é bem moreninha; agora, não posso compreender por que vão incomodar essa senhora... Realmente, não posso, não posso saber.

— Por que diz que é uma moreninha? — perguntou Markham.

— E se o não for, — retrucou Vance afundando-se negligentemente na poltrona, — deverá consultar um especialista de beleza, para que lhe indique o cosmético que deve usar. Vejo que ela usa o pó de tonalidade raquel e o batom para morenas, de Guerlain, uma coisa que as louras não costumam fazer, meu caro.

— Cedo, naturalmente, à sua opinião de perito, — disse Markham, sorrindo. — Creio que teremos de procurar uma moreninha, sargento.

— É também a minha opinião, — disse este, rindo.

Era evidente que já perdoara inteiramente a Vance a destruição da ponta de cigarro.


IV

 

A VERSÃO DA GOVERNANTA

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 11 da manhã)

 


— E agora, — lembrou Markham, — podíamos percorrer a casa. Suponho que você já o fez, sargento, mas gostaria de ver a disposição das coisas. De toda maneira, não quero interrogar a governanta antes que removam o corpo.

Heath levantou-se.

— Muito bem, Sr. Markham. Eu mesmo gostaria de ver a casa outra vez.

Atravessamos o vestíbulo e seguimos pelo corredor que conduz à parte posterior da casa. No extremo, à esquerda, havia uma porta para o porão, mas estava trancada.

— O porão é utilizado agora apenas para depósito, — explicou Heath, — e a porta que dá para a rua está pregada. A Sra. Platz dorme em cima. Benson vivia aqui sozinho, e há muitos quartos desocupados. A cozinha é neste andar.

Abriu uma porta do lado oposto do corredor e entramos numa cozinha pequena, mas moderna. As duas altas janelas, que davam para o pátio ladrilhado atrás da casa, ficavam a uns dois metros e meio do chão, e eram guarnecidas por barras de ferro; tinham os postigos fechados e aferrolhados. Uma grande porta dava acesso à sala de jantar, situada atrás do salão. As duas janelas, que davam para um pequeno pátio ladrilhado, — um verdadeiro poço, entre a casa de Benson e a adjacente — estavam fechadas e eram também guarnecidas de barras de ferro.

Voltamos ao corredor e paramos um momento ao pé da escada que levava ao pavimento superior.

— É fácil de ver, — observou Heath, — que quem quer que tenha atirado em Benson entrou pela porta da frente. Não há mais nenhuma entrada. Como vivia só, parece que Benson temia um tanto os ladrões. A única janela que não tem barras de ferro é a que dá para os fundos da casa, e essa estava com os ferrolhos corridos; e apenas dá para o pátio interior. As janelas da frente, no salão, têm aquelas grades; logo, não podem ter sido utilizadas, nem para atirar dali, pois que Benson foi alvejado do lado oposto. É bem claro que o assassino entrou pela porta da frente.

— Parece que sim, — disse Markham.

— E perdoem-me por dizer isto. — observou Vance, — mas Benson o fez entrar...

— Sim? — retorquiu Heath indiferente. — Veremos tudo isso mais tarde, creio eu.

— Oh! Sem dúvida, — acrescentou Vance, secamente. Subimos e entramos' no quarto de dormir de Benson. Mobiliado com severo gosto, tudo nele estava em perfeita ordem: a cama feita mostrava que ninguém ali dormira naquela noite, e as cortinas estavam descidas. Nas costas de uma cadeira, a casaca e o colete de pique branco de Benson. Sobre a cama um colarinho postiço e uma gravata preta, atirados para ali, sem dúvida, quando Benson os retirara ao voltar. Um par de sapatos de entrada baixa ao pé da cama, ao lado de uma banqueta; em um copo dágua sobre a mesa de cabeceira, uma chapa de platina com quatro dentes. E sobre o toucador, uma peruca feita com admirável perfeição.

A peruca atraiu particularmente a atenção de Vance, que a examinou detidamente.

— Que coisa interessante! — comentou ele. — Parece que nosso defunto amigo usava cabelo postiço. Sabia disso, Markham?

— Sempre o suspeitei, — respondeu o Promotor, indiferentemente.

Heath, que ficara parado no limiar da porta, parecia um pouco impaciente.

— Neste andar há apenas mais um quarto, — disse, descendo para o vestíbulo. — É também um quarto de dormir, para hóspedes, segundo explicou a governanta.

Eu e Markham olhamos da porta, mas Vance permaneceu no topo da escada, absolutamente desinteressado pelos arranjos domésticos de Alvino Benson. Quando subimos ao terceiro andar, ele desceu para o vestíbulo; e, ao voltarmos da nossa visita de inspeção, encontramo-lo a olhar distraído para os títulos dos livros da estante.

Acabávamos de descer quando chegaram dois homens com uma maça. Era o rabecão que vinha buscar o corpo, para levá-lo para o Necrotério; e estremeci de horror ao ver a maneira brutal e indiferente como cobriram o corpo, puseram-no na maça, levaram-no da sala, e enfim o empurraram para dentro do carro. Contudo, Vance apenas dirigiu aos homens um ligeiro olhar, não lhes dando maior atenção. Encontrara um livro com uma linda encadernação de Humphrey-Milford, e estava absorvido nas ilustrações de Roger Payne.

— Parece-me que agora é ocasião de vermos a Sra. Platz, — disse Markham.

Heath foi à escada e deu uma ordem em alta voz. Sem demora entrou na sala uma mulher grisalha, acompanhada por um homem à paisana, que fumava um comprido cigarro. Era ela uma mulher simples, vestida à moda antiga, com um ar maternal, calmo e benevolente. Julguei-a logo muito inteligente e isenta de nervosismos, e sua atitude resignada veio confirmar minha primeira impressão. Sem embargo, parecia dotada daquela astúcia taciturna, tanta vez encontrada nos ignorantes.

— Sente-se, Sra. Platz, — disse Markham, cumprimentando afàvelmente. — Sou o Promotor Público, e desejo fazer-lhe algumas perguntas.

Ela sentou-se ao pé da porta e esperou, olhando ansiosa para nós. A voz delicada e persuasiva de Markham pareceu encorajá-la, porque suas respostas vieram cada vez mais fluentes. E o que resultou de um quarto de hora de interrogatório pode ser assim resumido:

A Sra. Platz era a única criada de Benson, e servia-o há quatro anos. Morava na casa, tendo seu quarto no terceiro andar, rios fundos.

Na véspera à tarde, Benson voltara do escritório mais cedo do que o costume — mais ou menos às quatro horas — e anunciara que não jantaria em casa. Ficara no salão, com a porta do vestíbulo fechada, e subira às seis e meia para vestir-se.

Saíra de casa mais ou menos às sete, mas não lhe dissera aonde ia. Apenas avisara que poderia voltar cedo, mas que não era preciso ficar à sua espera — conforme era costume quando trazia convidados. Fora a última vez que o vira vivo. Ela não o ouvira entrar quando voltou.

Às dez horas subira, e, como fazia calor, deixara a porta entreaberta. Despertara-a uma detonação, algum tempo depois. Assustada, acendera a luz da mesa de cabeceira, e vira então que já passara justamente meia hora da meia-noite, no pequeno despertador que tinha ali para a acordar de manhã. Como fosse tão cedo, tranqüilizara-se, porque Benson, fosse aonde fosse à noite, raramente voltava antes das duas; estes fato, mais o silêncio da casa lhe fizeram supor que o rumor que a acordara fora apenas a descarga de algum carro na Rua 49. Isso não lhe causara, pois, impressão alguma, e adormecera de novo.

Às sete da manhã descera, como costumava, para começar suas obrigações diárias, e, ao sair para ir buscar o leite e o creme, descobrira o corpo de Benson.

Todas as cortinas do salão estavam descidas e a princípio julgou que ele adormecera na cadeira, mas quando viu o sinal da bala e notou que a luz fora apagada, compreendera que estava morto. Fora imediatamente ao vestíbulo e telefonara para a Polícia, comunicando o crime. Lembrando-se depois do irmão de Benson, major Antônio Benson, telefonara-lhe também. Ele tinha vindo logo, chegando quase com os investigadores do posto da Rua 27, Leste. Fizera-lhe algumas perguntas, falara com os homens à paisana, e depois se retirara antes de chegarem os homens da Chefatura.

— E agora, Sra. Platz, — disse Markham, olhando para as notas que tomara, — uma ou duas perguntas ainda, e não a incomodaremos mais... Notou a senhora alguma coisa nos atos do Sr. Benson na noite passada, por onde possa supor que estivesse preocupado ou — como direi? — temesse algum acidente?

— Não, senhor, — respondeu prontamente a mulher. — Até parecia andar mais alegre nos últimos 'oito dias.

— Noto que a maior parte das janelas deste andar são gradeadas. Tinha ele medo particular de ladrões, ou temia que alguém invadisse a casa?

— Não... não era bem isso... — respondeu ela, hesitante. — É que ele costumava dizer que nesta cidade cada um tinha de se guardar a si próprio, porque — com o seu perdão, senhor —a polícia não era bem organizada; por isso se prevenia...

Markham voltou-se para Heath, sorrindo.

— Tome nota especial disso, sargento, para os seus arquivos. Sabe de alguém que tivesse ódio ao Sr. Benson, Sra. Platz?

— Nenhuma criatura, senhor, — respondeu a governanta com calor. — Era um homem esquisito a certos respeitos, mas todos pareciam gostar dele. Fazia ou recebia visitas constantemente. Não posso saber por que alguém o quisesse matar.

Markham tornou a olhar para as suas notas.

— Penso que por agora não há mais nada... E você, sargento, tem alguma coisa a perguntar?

Heath pensou um momento.

— Não, não me lembro de nada mais por enquanto... Mas a Sra. Platz, — acrescentou ele, dirigindo-lhe um olhar frio. — ficará aqui nesta casa, até que lhe seja permitido retirar-se. Queremos interrogá-la outra vez, mais tarde. Mas não poderá falar com pessoa alguma, compreende, Sra. Platz? Dois de meus homens ficarão aqui, de guarda.

Durante este interrogatório, Vance tomara apontamentos na folha de guarda de um caderninho de endereços; enquanto Heath falava, ele rasgou a folha e entregou-a a Markham, que, ao lê-la, franziu a testa e contraiu os lábios. Depois de uma ligeira hesitação, porém, dirigiu-se de novo à governanta.

— Disse há pouco, Sra. Platz, que todos gostavam do Sr. Benson. E a senhora mesma, gostava dele?

A mulher, desviando o olhar, replicou resolutamente:

— Oh! Eu, senhor, apenas trabalhava para ele, e não tenho queixa alguma do modo por que me tratava.

Contudo, e a despeito destas palavras, dava a impressão de "que, ou não gostava muito de Benson, ou desaprovava profundamente os seus atos. Markham, porém, não levou mais longe o assunto.

— Outra coisa, Sra. Platz, o Sr. Benson tinha em casa alguma arma de fogo? Sabia acaso se ele possuía um revólver?

Pela primeira vez, durante o interrogatório, a mulher pareceu agitada, assustada até.

— Sim... senhor... eu... penso que ele tinha um, — terminou ela, receosa.

— E onde o guardava?

Olhou ao redor, apreensiva, como se pesasse bem a conveniência de falar francamente. Depois respondeu em voz baixa:

— Naquela gaveta secreta da mesa de centro. O senhor... o senhor... aperte esse pequeno botão de cobre para abri-la.

Heath apressou-se a apertar o botão indicado. Surgiu uma gavetinha rasa, e dentro dela um revólver Smith and Wesson 38, com a coronha embutida de madrepérola. Pegou nele abriu-o e examinou o cilindro.

— Carregado, — disse, laconicamente.

Uma expressão de imenso alívio espraiou-se pelo semblante da mulher, que suspirou profundamente.

Markham se levantara e olhava para o revólver, por cima do ombro de Heath.

— É melhor que você se encarregue disso, sargento, ainda que não me pareça ter alguma relação com o caso.

Voltou para a sua cadeira e, examinando outra vez a nota que Vance lhe dera, dirigiu-se de novo à governanta:

— Mais uma pergunta, Sra. Platz. A senhora disse que o Sr. Benson veio mais cedo, tendo ficado nesta sala até à hora de jantar. Não recebeu nenhuma visita durante esse tempo?

Eu, que olhava atentamente para a mulher, julguei perceber que ela apertava com força os lábios. Seja como for, é certo que se endireitou na cadeira antes de responder.

— Não, senhor, que eu saiba.

— E na noite passada? A campainha tocou alguma vez depois que a senhora se recolheu?

— Não, senhor.

— Se tocassem teria ouvido, mesmo que estivesse dormindo?

— Sim, senhor. Há uma campainha justamente ao lado da minha porta, a mesma da cozinha. Toca em ambos os lugares ao mesmo tempo. Assim o quis o Sr. Benson.

Markham agradeceu-lhe e despediu-a. Depois que a mulher saiu, ele olhou interrogativamente para Vance.

— Que idéia foi a sua ao entregar-me aquelas perguntas? — Talvez eu me tenha enganado, — disse Vance, — mas, quando ela estava exaltando a popularidade do morto, pareceu-me que exagerava um pouco. Julguei descobrir uma antítese inconsciente no seu elogio, e isso me deu a idéia de que talvez ela mesma não estivesse tão encantada pelo patrão.

— E que foi que lhe deu a idéia da arma de fogo?

— Essa pergunta era um corolário das suas, Markham, a respeito das janelas gradeadas e do medo aos ladrões. Se Benson tinha medo de arrombadores ou de inimigos, trataria de ter armas à mão, não acha?

— Bem, — disse Heath. — Em todo caso, sua curiosidade desencavou um belo revólver, que provavelmente jamais servira.

— A propósito, sargento, — retrucou Vance, sem fazer caso do sarcasmo do outro, — que resultado pensa tirar desse lindo revolverzinho?

— Por agora. — replicou Heath com fingida gravidade, — deduzo que o Sr. Benson guardava um Smith and Wesson de cabo de madrepérola em uma gaveta secreta da sua mesa de centro.

— O senhor o diz, realmente! — atalhou Vance simulando admiração. — Oh! Que grande talento!...

Markham interrompeu as zombarias.

— Por que perguntou você se vieram visitas, Vance? É óbvio que ninguém mais esteve aqui...

— Oh! Outra fantasia minha. Senti um desejo ardente e impulsivo de ouvir o que diria a Sra. Platz.

Heath estudava Vance curiosamente. Dissipava-se-lhe a primeira impressão, e começava a suspeitar de que, sob o exterior distraído e amável do outro, se ocultava alguma coisa mais sólida do que a princípio julgara. Não o satisfizeram inteiramente as explicações que Vance dera a Markham, e parecia que desejava penetrar as razões verdadeiras das perguntas suplementares ao interrogatório a que o Promotor submetera a governanta. Era astuto, não lhe faltava habilidade de homem mundano, para compreender as intenções; mas Vance era diferente dos outros, daqueles com quem estava habituado a lidar, e era, para ele, um enigma.

Afinal, desistiu de decifrá-lo e aproximou a cadeira da mesa, dizendo com certa secura:

— Agora, Sr. Markham, vamos fixar nossas esferas de ação, para não duplicar o trabalho. Quanto mais cedo eu movimentar meus homens, melhor será.

Markham concordou prontamente.

— A investigação foi-lhe entregue completamente, sargento. Eu estou aqui para ajudá-lo em qualquer coisa de que necessite.

— É muita bondade sua, senhor, — replicou Heath. — Mas parece-me que haverá bastante trabalho para repartirmos... Creio que eu posso ver se encontro a dona da bolsa, e também destacar alguns homens para indagarem dos companheiros de vida noturna de Benson — a governanta poderá indicar-me alguns — que serão um ponto de partida. Procurarei também aquele Cadillac... Procuraremos depois as suas amizades femininas — que suponho eram em grande número.

— E eu poderei obter alguma coisa do major nesse sentido, — disse Markham. — Ele me dirá algo do que desejo saber. E por ele também saberei quem eram os seus associados nos negócios.

— Ia lembrar que o senhor poderia fazer isso melhor do que eu, — ajuntou Heath. — Precisamos de encontrar depressa alguma coisa que nos dê a pista para achar o resto. E creio que,, quando encontrarmos a senhora que jantou com ele a noite passada e voltou para aqui, saberemos muito mais do assunto.

— Ou muito menos, — murmurou Vance. Heath encarou-o e respondeu-lhe com petulância:

— Sr. Vance, já que deseja aprender alguma coisa destes negócios, deixe-me dizer-lhe que, quando alguma coisa sai de través neste mundo, é sinal certo de que se deve procurar uma mulher no caso.

— Ah! Sim, — disse Vance sorrindo. — Cherchez la femme... uma noção antiga. Até os romanos tiveram a mesma superstição — e exprimiram-na no seu — Dux Femina facti.

— Seja como for que a tivessem exprimido, tiveram a idéia acertada. E não admita que ninguém lhe diga o contrário.

Ainda uma vez Markham interveio, como diplomata:

— Espero que esse ponto seja resolvido depressa... E agora, sargento, se você não tem outra coisa a dizer, irei embora. Disse ao major Benson que o veria ao almoço, e talvez tenha alguma notícia para você logo à noite.

— Muito bem. Eu ficarei por aqui, a ver se há alguma coisa mais a observar. Mandarei guardar a casa e porei uma sentinela de vigia à Sra. Platz. Falarei com os jornalistas, informando-os do Cadillac desaparecido e do misterioso revólver na gaveta secreta. Acho que poderão entreter-se com isso... Se descobrir mais alguma coisa, telefonarei.

Depois de apertar as mãos do Promotor, voltou-se para Vance e, com grande surpresa minha e creio que também de Markham, disse-lhe amàvelmente:

— Passe bem, senhor. Espero que tenha aprendido alguma coisa esta manhã.

— O senhor ficaria positivamente confundido, sargento, se soubesse tudo o que aprendi, — respondeu negligentemente Vance.

Pela segunda vez notei no olhar de Heath aquela curiosidade maligna, mas foi só um segundo. E respondeu secamente:

— Pois estou contente com isso.

Saímos, e o guarda à paisana chamou um auto.

— Então é deste modo que nossa orgulhosa polícia chega aos misteriosos porquês dos assuntos criminais? Oh! — disse Vance, quando seguíamos para a cidade. — Markham, meu velho amigo, como podem aqueles rudes rapazes ser algumas vezes bem sucedidos quando procuram o criminoso?

— Você presenciou apenas os mais simples preliminares, — explicou Markham. — Há certas coisas em que devemos seguir a rotina — ex abundanti cautelae, como dizemos nós, os juristas.

— Mas, palavra! Que técnica! — suspirou Vance. Ah! quantum est in rebus inane! Como dizemos nós, os leigos...

— Você não dá muito pela capacidade de Heath, eu sei. — disse Markham com voz pacifica, — mas ele é muito hábil, e também é certo que é fácil desconhecer-lhe o mérito.

— Em todo caso, — murmurou Vance, — estou-lhe muito agradecido, e a todos, por me terem proporcionado ocasião de apreciar seu trabalho solene. Divertiu-me muito, para não dizer que me edificou. Chamou-me a atenção seu Esculápio oficial — pareceu-me um rapaz alegre, destituído de emoção, e incapaz de se impressionar com um cadáver. Na verdade, poderia ter tomado o crime como um sério meio de vida, em vez de ter estudado medicina.

Markham, que recaíra em inquieta meditação, conservou-se a olhar pela janela em sombrio silêncio, até chegarmos à casa de Vance.

— Não me agrada o curso que vão tomando as coisas, — disse por fim, ao dobrarmos a esquina. — Tenho um sentimento confuso a respeito deste caso.

Vance olhou-o com o rabo do olho, perguntando-lhe, em seguida, com insólita seriedade:

— Markham, você suspeita de alguém?

— Antes fosse assim... Os crimes premeditados não se descobrem facilmente, e este caso me parece particularmente complexo.

— Que idéia! — disse Vance, já quando o auto parava. — Pois eu o achei extraordinariamente simples.


V

 

COLIGINDO INFORMAÇÕES

 


(Sábado, 15 de junho — de manhã)

 


Certamente ainda não foi esquecida a sensação que despertou o assassinato de Alvino Benson. Foi um desses crimes que impressionam irresistivelmente a imaginação popular, cercado como foi de uma impenetrável aura de mistério — base de todo o romance. Muitos dias se passaram antes que viesse a luz definitiva esclarecer as circunstâncias do crime; e numerosos ignes fatui também apareceram, contribuindo para desorientar a opinião pública. E de todos os lados surgiam estranhas suposições.

Não era Alvino Benson uma figura romântica, sob nenhum aspecto, mas era muito conhecido, e sua personalidade estivera muito em evidência. Era membro da boêmia rica de Nova York — desportista apaixonado, jogador audacioso e folgazão profissional; e sua vida, lidando com o demi-monde, tivera seu esplendor. Suas façanhas nos cabarés e cafés noturnos foram por muito tempo o assunto predileto de histórias exageradas e comentários de vários jornais e revistas locais, que sustentam os exploradores de escândalos da Broadway.

Ao tempo de sua súbita morte, Alvino Benson mantinha com o seu irmão Antônio, uma agência de corretagem no número 21 de Wall Street, sob a firma Benson Benson. Os outros corretores da praça consideravam-nos como negociantes astutos, embora não muito escorreitos, no que respeita às leis e estatutos da Bolsa de Valores de Nova York. Extraordinariamente diferentes em gostos e temperamento, pouco se viam os dois irmãos fora do escritório. Alvino dedicava ao prazer todos os seus ócios, e era o freqüentador natural de todos os cafés mais importantes da cidade; quanto a Antônio, que era o mais velho, e servira como major na última guerra, levava uma vida tranqüila e simples, passando nos clubes a maior parte dos seus pacatos serões. Eram ambos, entretanto, populares nos seus respectivos meios, nos quais adquiriram muitos admiradores.

A paixão que o crime despertou no mundo comercial explica até certo ponto o interesse que lhe dedicaram os jornais. Além disso, a época era de calma no campo das notícias sensacionais, e daí o afã com que os jornais se apoderaram do assunto, dedicando-lhe páginas e páginas, mesmo as primeiras, com uma prodigalidade rara em tais casos. (*)

(*) Nem o célebre caso Elwell, que se deu alguns anos depois, e apresentava alguns pontos de semelhança com este, causou maior sensação, a despeito de ser Elwell mais vastamente conhecido do que Benson, e de estarem envolvidas nele pessoas de maior responsabilidade na sociedade. Em verdade, o caso Benson foi então lembrado várias vezes, e um jornal da oposição lamentou em editorial que John F. X. Markham já não fosse Promotor Público de Nova York.


Investigadores eminentes de todo o país tiveram de conceder entrevistas a jornalistas impacientes. Reviveu-se a história de muitos crimes célebres, que tinham ficado impunes. Jornais houve que contrataram videntes e astrólogos, para ver se esclareciam o mistério por diversos processos metafísicos. Esparramavam-se pelas páginas desses jornais fotografias e diagramas detalhados, que diariamente ilustravam as efusões jornalísticas.

Em todas as versões apareciam o Cadillac cinzento e o revólver Smith and Wesson, de cabo marchetado. Vieram à luz reproduções fotográficas de carros Cadillac "retocadas", e reconstruídas de acordo com a descrição do agente McLaughlin, algumas até ostentando os utensílios de pesca. Fora batida uma fotografia da mesa de centro de Benson, com a gaveta secreta ampliada, e reproduzida em medalhão. Uma revista dominical chegara até a pagar a um marceneiro uma dissertação sobre compartimentos secretos nos móveis.

Desde o início, a polícia julgara o caso Benson árduo e difícil. Uma hora depois que nós deixamos o teatro do crime, os agentes do Departamento de Homicídios, às ordens de Heath, começaram uma investigação sistemática. Devassaram toda a casa, leram toda a correspondência particular do morto, mas nada descobriram que pudesse trazer alguma luz sobre a tragédia. Nenhuma arma, além do revólver Smith and Wesson, fora encontrada; e uma segunda inspeção feita nas grades das janelas demonstrou que de fato estavam intactas. Isso indicava que, ou o assassino se servira de uma chave para entrar, ou o próprio Benson o introduzira em casa. Diga-se de passagem que a Heath repugnava ainda admitir esta última hipótese, apesar da afirmação positiva da Sra. Platz, de que nenhuma outra pessoa, a não ser ela e Benson, possuía a chave da porta.

À falta de um indício definitivo, além da bolsa e das luvas, o único meio era interrogar os amigos de Benson e seus sócios, na esperança de descobrir algum fato que fornecesse uma pista. Heath também confiava nesse processo para estabelecer a identidade da dona da bolsa.

Inútil foi o esforço feito para precisar onde Benson tinha passado o serão; muitos amigos seus foram interrogados, visitaram-se os restantes onde habitualmente jantava, mas ninguém pôde dizer que o vira naquela noite. Por outro lado, nenhuma informação geral de natureza útil apareceu, que pudesse guiar a polícia nas suas pesquisais. Aparentemente, Benson não tinha inimigos: não questionara seriamente com ninguém; e seus negócios marchavam na ordem habitual.

Era o major Benson, naturalmente, a pessoa indicada em primeiro lugar para dar informações, em vista do seu íntimo conhecimento dos negócios do irmão. E por isso mesmo o escritório da Promotoria pôs seu chefe em campo desde o primeiro momento. Markham almoçou com o major Benson no dia em que o crime foi descoberto e, a despeito do desejo que este mostraria de ajudar nas pesquisas — mesmo em detrimento do caráter do irmão —, sua contribuição foi de pouco valor. Explicou a Markham que, conhecendo embora a maior parte dos companheiros do irmão, não podia ainda assim designar nenhum que tivesse uma razão particular para cometer tal crime; nem sabia de ninguém que pudesse guiar a polícia na busca que esta fazia. Admitiu, contudo, que havia um aspecto da vida do irmão sobre o qual não estava muito bem informado, € lamentou não poder sugerir um meio de aclarar o mistério. Insinuou, porém, que o irmão tinha certas relações equívocas, aventurando a opinião de que talvez por esse lado se descobrisse um motivo para o crime.

Aproveitando as vagas e confusas sugestões do major Benson Markham pusera em campo imediatamente dois investigadores com instruções para fazer pesquisas apenas em torno das relações femininas de Benson, de modo que não surgisse a suspeita, por parte da Polícia Central, de uma usurpação de suas atribuições. E, tendo em conta o interesse que Vance demonstrara pelo interrogatório da criada, encarregara um homem de examinar e averiguar os seus antecedentes e parentescos.

Soubera assim que a Sra. Platz nascera em uma pequena cidade da Pennsylvania, de pais alemães, já falecidos, e que era viúva há dezesseis anos. Antes de vir para a casa de Benson, servira uma família durante doze anos, e deixara o lugar somente quando sua ama desfizera a casa, para ir morar em um hotel. Essa senhora, interrogada, dissera que a governanta tinha uma filha, mas nunca vira a criança, nem sabia nada dela. Nada havia nessas informações que se pudesse aproveitar, e o relatório foi ·escrito por mera formalidade.

Heath, embora não acreditasse na interferência do Cadillac cinzento no crime, determinara uma intensa busca em toda a cidade, e nisso os jornais prestaram considerável serviço — com a ampla publicidade sobre o carro procurado. Sucedeu, entretanto, um fato curioso, que deu à polícia a esperança de que esse carro trouxesse a desejada pista, esclarecendo o mistério. Um varredor de rua, tendo ouvido contar, ou lido, a história dos petrechos de pesca, narrou que achara duas canas de pesca, amarradas, num ·dos passeios do Central Park, perto do Columbus Circle. Restava saber se essas duas varas pertenciam ao equipamento do auto visto pelo agente McLaughlin. Podiam ter sido, sem dúvida, atiradas do carro em fuga; mas também podiam ter sido perdidas por qualquer outra pessoa que passasse pelo Parque. Nenhuma informação ulterior veio elucidar o assunto, e no dia seguinte à descoberta do crime, o caso não tinha adiantado um passo, no sentido de uma solução definitiva.

Nessa manhã Vance, mandara Currie comprar todos os jornais que tratavam do crime, e passara uma hora a ler as várias versões do assassinato. Não sendo seu costume olhar sequer para:um jornal, nem mesmo por acaso, não pude conter meu espanto ao ver seu repentino interesse por um assunto tão afastado dos seus hábitos regulares.

— Não, velho amigo Van, — explicou ele indolentemente, — não estou ficando sentimental, nem humano, segundo a palavra erroneamente usada hoje. Não posso dizer com Terencio "Homo sum, humani nihil a me alienum puto", porque a maior parte das coisas a que chamam humanas são-me completamente estranhas. Mas, veja você, esta agitaçãozinha provocada pelo crime parece-me interessante, ou, como dizem os cronistas, me intriga — estúpida palavra! — Van, você devia ler esta preciosa entrevista do sargento Heath. Ele gasta uma coluna inteira para dizer: "Nada sei!" Um rapaz de valor inestimável! Decididamente, começo a gostar dele!

— Pode ser — lembrei eu, — que Heath esteja ocultando dos jornais o que sabe, como tática diplomática...

— Não, —.retrucou Vance com um movimento melancólico de cabeça, — nenhum homem é tão isento de vaidade que se queira revelar ao mundo completamente desprovido dos poderes de raciocínio humano, como ele faz em todos esses jornais da manhã — pelo mero desejo de entregar um criminoso à justiça. Isso seria levar o sacrifício até à loucura.

— Markham pode saber ou suspeitar de alguma coisa que ainda não veio a lume, — disse eu.

Vance meditou um momento.

— Isso não é possível, — disse, por fim. — Ele conservou-se modestamente no segundo plano, em todo este palavrório jornalístico. Suponho que vamos examinar melhor o assunto, não?

Foi ao telefone, ligou para o escritório do Promotor, e ouviu-o convidar Markham para almoçar no Stuyvesant.

— E que resolveu sobre a estatueta de Nadelmann, no Stieglitz? — perguntei, lembrando-lhe a razão da minha presença na sua casa àquela hora.

— Não estou hoje disposto a contemplar a simplicidade grega, — respondeu, voltando aos seus jornais.

Dizer que sua atitude me surpreendia, é pouco. Em todo o tempo de nossa amizade, jamais o_ vira esquecer seu entusiasmo pela arte, preterindo-a por qualquer outra distração. E até hoje nenhum interesse mostrara pela lei ou pelos assuntos desta. Compreendi, entretanto, que alguma coisa fora do comum se elaborava no seu cérebro, e me abstive de comentários.

Markham chegou um pouco atrasado ao clube, e já estávamos aboletados à mesa, no nosso canto favorito, quando ele entrou.

— Oh! Meu Licurgo, pondo de parte as pistas novas e significativas que foram encontradas, e as importantes revelações que o público vai conhecer em um futuro muito próximo, e todas as outras tolices da mesma espécie — em que pé estão realmente as coisas?

Markham sorriu.

— Vejo que você leu os jornais. Que pensa das narrativas? — São típicas, não há dúvida. Têm o maior cuidado em não omitir coisa alguma, exceto o essencial.

— Sim? — indagou Markham jovialmente. — E posso saber o que considera você o essencial do caso?

— Não sei, mas como simples amador pareceu-me que a peruca do caro Alvino era uma coisa muito importante e essencial...

— Benson, sem dúvida, tinha a mesma opinião, não acha?

— E havia também o colarinho e a gravata...

— E, — acrescentou Markham, — não desdenhe a dentadura num copo.

— Positivamente, você é assombroso! Sim, é coisa essencial também. E aposto que o incomparável Heath nem sequer notou isso. Mas os outros Aristóteles presentes também fizeram observações incompletas.

— Confesse que as investigações de ontem não lhe causaram boa impressão.

— Ao contrário, causaram-me estupefação. Foi um conjunto de absurdos... Tudo o que podia ser um indício foi admiravelmente desprezado. E havia afinal uma dúzia de pontos de partida, todos eles se encaminhando na mesma direção, mas nenhum dos funcionários o notou, ao que parece. Estavam todos tão ocupados em esmiuçar futilidades, como examinar os tocos de cigarros, ou as grades das janelas — que são, de passagem, bem bonitas... estilo florentino.

Markham, meio divertido, meio vexado, interveio:

— Podemos ficar tranqüilos com a ação da polícia, Vance. Ela solucionará o mistério.

— O que me admira é a sua confiança, — murmurou Vance. Mas, confie em mim e diga-me: que sabe do assassinato de Benson?

Markham hesitava, mas afinal disse:

— Vou falar-lhe confidencialmente, já se vê. Esta manhã, depois que você me telefonou, um dos homens a quem incumbi de investigar a vida mundana de Benson disseme que encontrara a mulher que deixou a bolsa e as luvas em casa dele naquela noite seguindo a pista das iniciais. Soube a seu respeito fatos interessantes. Como eu suspeitava, foi quem o acompanhou ao jantar. É uma atriz, creio que de opereta, e chama-se Muriel St. Clair.

— Já é má sorte, — suspirou Vance. — Pois eu esperava que seus esbirros não encontrassem a dama... Não tenho o prazer de conhecê-la, senão mandaria um cartão de pêsames... Agora vai você, com toda a certeza, representar de juiz de instrução, e atormentá-la o mais que puder, não?

— Sim, certamente que hei de interrogá-la, creio que é o que você quer dizer!

Via-se que Markham estava preocupado, e pouco falou até ao fim do almoço.

Quando nos sentamos mais tarde, no salão de fumar do Clube, o major Benson, que estava a olhar melancòlicamente pela janela, avistou Markham, e veio para junto de nós. Era um homem de rosto cheio, fisionomia grave e bondosa, corpo vigoroso e desempenado, e aparentava cinqüenta anos. Cumprimentou-nos distraído, a mim e a Vance, e voltou-se todo para o Promotor.

— Markham, desde nosso almoço de ontem penso sem cessar no caso, e achei que devo dizer-lhe o que sei. Há um homem chamado Leandro Pfyfe, que foi muito amigo de Alvino, e que talvez lhe possa dar alguma informação útil. Não me lembrei dele ontem, porque não mora na cidade, mas em Long Island, quase sempre — creio que em Port Washington. É apenas uma idéia minha, pois não sei de nada que possa trazer luz neste horrível caso.

E respirou profundamente, como se quisesse abafar algum sinal de comoção. E era evidente que, apesar de sua habitual frieza, estava muito abalado.

— É uma boa lembrança, major, — disse Markham, tomando uma nota nas costas de uma carta. — Vou tratar disso imediatamente.

Vance, que durante este diálogo se distraíra a olhar pela janela, voltou-se para o major:

— Que sabe do coronel Ostrander? Eu o vi muitas vezes em companhia de seu irmão.

— Oh! — disse Benson, com um gesto de dúvida. — Era um simples conhecimento. De nada adiantaria interrogá-lo.

E, voltando-se para Markham, indagou:

— Certamente ainda não teve tempo de saber coisa alguma? Markham tirou o cigarro da boca, para volteá-lo entre os dedos, pensativo. Depois disse:

— Não digo isso. Consegui saber com quem seu irmão jantou na noite de terça-feira; e sei que essa pessoa voltou à casa com ele pouco depois da meia-noite.

Calou-se, pesando, quiçá, o que ia revelar, e continuou:

— O fato é que não me são precisas muitas provas para levar a acusação perante o tribunal.

A surpresa e o assombro se estamparam no rosto do major, que, pondo a mão no ombro do Promotor, disse-lhe, movendo vagarosamente a pesada mandíbula:

— Dou graças a Deus, Markham! Vá até ao fim, por mim, — pediu ele ainda. — E, se precisar de meu auxílio, estarei aqui no Clube até tarde.

Com estas palavras, saiu do salão.

— Parece-me falta de caridade importunar o major com perguntas logo depois da morte do irmão. — comentou Markham. — Mas, a vida tem que continuar...

— E para quê, meu Deus? — murmurou Vance, abafando um bocejo.


VI

 

VANCE DÁ SUA OPINIÃO

 


(Sábado, 15 de junho — 2 da tarde)

 


Continuamos a fumar em silêncio. Vance contemplava indolentemente Madison Square; Markham, carrancudo, olhava atentamente para um desbotado retrato a óleo do velho Peter Stuyvesant, que estava por cima da lareira.

De repente, Vance voltou-se com um sorriso sardônico para Markham, dizendo-lhe pachorrentamente:

— Espanta-me, Markham, ver com que facilidade se enganam os seus investigadores do crime, com isso a que chamam indícios. Uma pegada, um auto oculto, um lenço marcado, bastam para que se lancem a uma perseguição desenfreada, com o seu eterno Ecce signum! Palavra! Eu diria que seus rapazes estão sob a influência dos romances populares. Quando se convencerão vocês de que os crimes não podem ser descobertos por deduções baseadas apenas em indícios materiais e provas circunstanciais?

Esta crítica súbita surpreendeu-nos a ambos, ainda que conhecêssemos bastante o nosso amigo para perceber que seu tom plácido e loquaz mascarava um propósito deliberado.

— Estará você defendendo a tese de que se devem ignorar as provas tangíveis de um crime? — indagou Markham, com ar benevolente.

— Perfeitamente, — declarou Vance, com a maior calma. — Não são apenas inócuas, mas perigosas... O grande mal de seus homens, Markham, é que vocês se aproximam de um crime com a idéia preconcebida de que o criminoso é, ou meio louco, ou muito descuidado. Jamais se lembram, nem por acaso, de que, se um investigador pode ver um indício, também tê-lo-ia visto o criminoso, que, nesse caso, o teria ocultado, ou dissimulado, para que o não vissem. Nunca lhe ocorreu que, um sujeito bastante hábil para planejar e executar um crime com sucesso nos dias de hoje, é também, ipso facto, bastante astucioso para forjar quantos indícios possam ser úteis aos seus projetos? Seus investigadores não querem admitir que a aparência superficial de um crime possa enganar de propósito deliberado, ou que a pista que encontram tenha sido, muitas vezes, preparada para desorientá-los...

— Receio, — observou Markham, com indulgente ironia, — que apanharíamos muito poucos criminosos, se desprezássemos todos os indícios, circunstâncias e inferências... Em regra, os crimes não têm testemunhas presenciais.

— É esse o seu erro fundamental, — observou Vance, impassível. — Cada crime, como cada obra de arte, tem as suas testemunhas. O fato de não vermos o criminoso ou o artista em ação não tem importância. O moderno investigador criminal recusaria acreditar sem dúvida que Rubens pintou a Descida da Crus, da Catedral de Antuérpia, se tivesse provas suficientes de que o artista viajava, por exemplo, em serviço diplomático, quando o quadro foi pintado. E no entanto, meu caro amigo, tal conclusão seria absurda. Ainda que as deduções em contrário fossem tão concludentes que pudessem ser tomadas legalmente em consideração, o quadro por si só demonstraria irrefutavelmente que era de Rubens. Traz a marca indelével da sua personalidade e do seu gênio — que a ninguém mais pertence...

— Mas eu não sou esteta, — replicou Markham, agastado. — Sou apenas jurista. E, quando chega a hora de determinar o autor de um crime, prefiro provas tangíveis a hipóteses metafísicas.

— Preferências que o arrastarão inevitavelmente a erros lamentáveis, — retrucou Vance suavemente.

Acendeu lentamente outro cigarro e, lançando nuvens de fumo para o teto, continuou:

— Considere, por exemplo, as conclusões a que chegou neste crime. Você trabalha com a falsa — e grave! — idéia de que conhece a pessoa que matou o inefável Benson. Disse-o ao major, e disse mais que tinha provas quase suficientes para requerer uma prisão. Sem dúvida, você possui uma grande cópia do que os sábios Solons de hoje chamam indícios veementes. Mas a verdade é que você não deitou o olho sobre o verdadeiro culpado, de nenhum modo! Vai incomodar uma pobre moça, que entretanto nada tem a ver com o crime. Markham voltou-se.

— Você acha, então, que eu vou incomodar uma inocente, não é? Mas, como só eu e meus auxiliares conhecemos as provas que há contra ela, gostaria de que me dissesse por que misteriosos processos veio a saber que não é culpada...

— É muito simples, — replicou Vance, sorrindo zombeteiramente. — Você não vê o assassino, porque ele foi bastante astuto para não deixar qualquer prova que lhe desse a pista.

Falava com a tranqüila segurança de quem enuncia um fato evidente — fato que não admite argumento.

Markham ria desdenhosamente. E replicou como um oráculo:

— Nenhum malfeitor é tão astuto que possa prever todas as contingências. E o ato mais trivial tem íntimas relações, estreitos pontos de contacto com os que o precedem ou seguem. Aliás, é fato conhecido que todo criminoso, por mais cuidadoso que seja, deixa sempre algum fio, que o delata.

— Fato conhecido? — repetiu Vance. — Não, meu caro — apenas uma lenda, baseada na crença infantil de uma Nemesis implacável e vingadora. Compreendo que essa noção esotérica de justiça divina, inevitável, apele para a imaginação popular, como os ledores de buena-dicha, ou a mesa magnetizada; mas — palavra! — entristece-me pensar que você, amigo velho, possa dar crédito a essas místicas bagatelas...

— Não perca o seu tempo, — disse Markham com acrimônia.

— Passe em revista os crimes impunes que conhece, e os que foram descobertos, — continuou Vance, desdenhando a ironia do outro. — Crimes que desconcertaram totalmente os investigadores mais afamados. O fato é que só são descobertos, sempre, os planejados por imbecis. Aí está por que qualquer homem de moderada sagacidade, se premedita um crime, chega a efetuá-lo sem muita dificuldade, seguro de que não será desvendado.

— Quando um crime fica impune, — retrucou Markham, com riso escarninho, — é porque a polícia não teve sorte, não porque o criminoso possua uma inteligência superior.

— Pouca sorte, — repetiu Vance numa voz que chegava a ser suave — eis aí um eufemismo defensivo, que aparece para mascarar a incapacidade. A um homem engenhoso e inteligente, a má sorte não persegue... Não, velho amigo Markham, os crimes impunes são simplesmente crimes inabilmente planejados e executados. E acontece que o assassinato de Benson pertence a esta categoria. Entretanto, você afirma, após algumas horas de pesquisas, que está quase certo de conhecer o criminoso... e eu peço-lhe que me releve se discordo de sua opinião. Calou-se e ficou a fumar, pensativo.

— Os métodos dedutivos, artificiais e casuísticos de seus homens podem conduzir a qualquer parte, e a prova disso é essa infeliz moça, cuja liberdade você pretende arrebatar.

Markham, que até então procurara disfarçar seu ressentimento sob um sorriso desdenhoso, voltou-se muito excitado.

— Contudo, e falo ex cathedra, — proclamou como um desafio, — estou certo das provas que tenho contra a sua "infeliz moça".

Vance não se alterou, mas observou secamente:

— Ainda assim, eu sei que nenhuma mulher poderia ter cometido aquele crime.

Eu via que Markham estava furioso, e quando falou parecia que estourava.

— Nenhuma mulher poderia ter cometido o crime? Oh! E não se importa com as provas?

— Não, nem mesmo que ela o jurasse, e produzisse um tomo disso que vocês, vergônteas da lei, intitulam pomposamente provas irrefutáveis, — respondeu Vance plàcidamente.

— Ah! — retrucou Markham, sarcástico, — isso me faria supor que para você então nem a confissão tem valor?

— Sim, meu caro Justiniano, — respondeu o outro, com um ar de complacência. — Foi isso mesmo o que eu disse. Na verdade, as confissões são ainda piores do que isso — são francamente enganosas. Como a intuição das mulheres — tão encarecidas — elas podem ser alguma vez verdadeiras, mas isso só vem demonstrar que não merecem confiança alguma.

Markham rosnou desdenhoso:

— E por que iria alguém confessar, em seu detrimento, um crime, a menos que soubesse que a verdade fora descoberta ou viria provavelmente a sê-lo?

— Palavra, Markham, você me assombra! Permita que eu lhe murmure, privatissime et gratis, ao ouvido inocente, que há muitos motivos presumíveis para confissão. O medo, a tortura, a conveniência, o amor materno, o cavalheirismo podem levar à confissão. Também o que os psicanalistas chamam complexo de inferioridade ou desilusão, ou uma errada noção do dever, ou egoísmo pervertido, vaidade, enfim, cem causas diversas, podem levar alguém a fazer uma confissão — a mais enganosa e menos segura de todas as formas de prova. Até a própria lei, embora estúpida e pouco científica, a repudia, se não a confirmam outras provas.

— Você é eloqüente, e me aperta de todos os lados. Mas, se a lei repelisse todas as confissões, e desprezasse todos os indícios, como é seu desejo, a sociedade podia prescindir dos tribunais, e mandar fechar todas as cadeias.

— Um típico non sequitor de lógica jurista, — replicou Vance.

— Mas como reconheceria você o culpado?

— Há um método infalível para determinar a culpa e a responsabilidade humana, — explicou Vance. — Mas até agora a polícia se conservou na ignorância beatífica do seu poder e funcionamento. A verdade só pode ser descoberta por uma análise dos fatores psicológicos do crime, aplicados ao indivíduo. Os únicos indícios verdadeiros são os psicológicos — não os materiais. Um perito competente, por exemplo, não vai julgar e autentificar um quadro pelo exame da tela, nem por uma análise química dos pigmentos, mas pelo estudo da personalidade criadora revelada na concepção e execução da obra. Verifica se a obra encarna as qualidades de forma e de técnica, a expressão mental, que constituem o gênio — mais particularmente, a personalidade — de Rubens, de Miguel Ângelo, Veroneso, Ticiano, Tintoreto, ou do artista enfim, a quem se atribui o quadro.

— Creio que meu espírito é ainda muito primitivo, e só os fatos vulgares o impressionam, — confessou Markham. E no caso presente — lastimo-o, pela originalidade de sua analogia artística — possuo uma quantidade de fatos, que indicam todos que certa moça é... eu daria a criadora da obra criminosa intitulada O Assassinato de Alvino Benson.

Vance encolheu os ombros, quase imperceptivelmente.

— Quer você comunicar-me — confidencialmente, é claro — quais são esses fatos?

— Mas certamente, — acedeu Markham. "Imprimis": a moça estava na casa no momento em que o tiro foi disparado.

Vance fingiu dúvida:

— Oh! Palavra! Ela estava lá nesse momento? Que coisa extraordinária!

— É irrefutável a evidência de sua presença. Você sabe que foram encontrados na lareira da sala de Benson as luvas que ela usou no jantar, e a bolsa que levava consigo.

— Oh! — murmurou Vance, com um tom de leve súplica na voz. — Não era a moça, então, mas suas luvas e sua bolsa que estavam presentes — diferença diminuta e sem importância, sem dúvida, do ponto de vista judicial... Até deploro que meu espírito ignorante não possa aceitar as duas condições como idênticas. Por que minhas calças estão na tinturaria, concluirá você que eu lá estou também?

Markham voltou-se para ele vivamente.

— Também não significa nada, mesmo para seu espírito de leigo, em matéria de prova, que esses objetos necessários e tão íntimos, que a mulher usou durante o serão, fossem encontrados na manhã seguinte, na casa do homem que a acompanhara?

— Arrisco-me a ser tachado de bronco, mas digo que não.

— Mas, uma vez que a dama não teria usado esses objetos à tarde, e que não teria podido entrar naquela noite em casa de Benson na ausência dele sem que a governanta a visse, como então podiam esses objetos estar ali na manhã seguinte, se ela mesma não os tivesse deixado na véspera?

— Confesso que disso não tenho a menor idéia. Só a própria dama poderia satisfazer a sua curiosidade. Mas há várias explicações plausíveis. Nosso defunto Chesterfield poderia tê-los levado no bolso —' as mulheres estão sempre a sobrecarregar os homens com seus balangandãs e pacotes, arrulhando um pedido: "Podes levar isto no bolso?..." Também podia o verdadeiro assassino tê-los de algum modo apanhado e deixado na lareira de propósito para despistar a polícia. As mulheres, sabe?, nunca põem seus objetos em lugares tão afastados como lareiras e cabides. Deixam-nos, invariavelmente, sobre a poltrona preferida, ou na mesa de centro.

— E Benson também teria trazido no bolso os cotos de cigarro da dama?

— Coisas mais estranhas se têm visto, — retrucou Vance, imperturbável, — embora eu não lhe impute isso nesse caso... As pontas de cigarro, sabe?, podiam ser prova de uma palestra anterior.

— Mas é que seu desdenhado Heath teve a inteligência precisa para se informar da governanta e verificar que ela limpa a lareira todas as manhãs.

Vance teve um sorriso de admiração.

— Você é tão perfeito, não é? Mas... não pode ser essa,. decerto, a única prova que tem contra a dama.

— De modo algum, — assegurou Markham. — A despeito de sua desconfiança, a prova está confirmada.

— Não o duvido, vendo com que freqüência nossos tribunais condenam inocentes... Mas diga-me mais alguma coisa.

Markham prosseguiu com tranqüila segurança: — Meu agente, soube: primeiro, que Benson jantou só com essa mulher no Marseilles, um pequeno restaurante boêmio da Rua 40, Oeste; segundo, que discutiram; e terceiro, que saíram dali à meia-noite, entrando em um auto.

... Ora, o assassinato foi cometido meia hora depois da meia-noite; mas visto que a dama mora em Riverside Drive, número 80, Benson não podia acompanhá-la à casa — o que teria feito, naturalmente, se ela não o acompanhasse à sua — e estar de volta ao tempo em que o tiro foi disparado. E temos prova mais forte, de que ela esteve em casa de Benson. No apartamento da mulher, soube o agente que ela voltou à casa, realmente, perto de uma hora; estava sem luvas e não trazia bolsa, e foi preciso que lhe abrissem a porta com uma gazua, porque, conforme explicou,, perdera as chaves. Ora, você deve lembrar-se de que encontramos a chave na bolsa. E, para confirmar tudo isso, os cigarros apagados da lareira são iguais aos que você encontrou na cigarreira.. Parou para acender de novo o cigarro. Depois continuou: — Isso quanto a essa noite em particular. Logo que soube quem era, destaquei dois homens para investigarem sua vida privada. E justamente quando eu saía do meu gabinete eles me telefonaram. Descobriram que a mulher tem um noivo, um rapaz chamado Leacock, capitão do exército, e que poderia possuir uma arma como a que matou Benson. Para finalizar, este capitão Leacock almoçou com a moça no dia do crime, e esteve em casa dela na manhã seguinte.

Markham inclinou-se para a frente, e continuou, marcando a cadência das palavras com os dedos no braço da poltrona:

— Já vê você que temos o motivo, a ocasião, e o meio... E talvez ainda me diga que não tenho provas para acusar.

— Tudo o que você descobriu, meu amigo, poderia explicá-lo um menino inteligente. E — continuou, sacudindo tristemente a cabeça, — com tais provas, arrancam ao próximo vida e liberdade! Você me assusta! Tremo pela minha segurança pessoal...

Markham, irritado, retorquiu:

— Será você tão amável que me aponte, do vertiginoso pináculo de sua sabedoria, as falhas do meu raciocínio?

— Pelo que vejo, no que respeita à moça você não raciocinou: ligou apenas fatos sem relação entre si e daí saltou em uma conclusão falsa. E afirmo que é falsa, porque a contradizem todas as indicações psicológicas do crime — quero dizer, a única prova real, aponta, sem erro possível, para outra direção. E, — continuou, com um gesto largo e inusitada gravidade — se você prende essa mulher como assassina de Alvino Benson, acrescentará somente um crime — crime estúpido, deliberado e imperdoável — ao já cometido. Ora, entre matar um pilantra como Benson e comprometer a reputação de uma mulher inocente, parece-me que o primeiro caso é preferível.

Markham conteve um movimento de cólera, que lhe luziu nos olhos: eram amigos e, apesar de toda a divergência de caráter, compreendiam-se e respeitavam-se. Desse respeito mútuo procedia a franqueza rude e, às vezes, mordaz com que falavam.

Após um momento de silêncio, Markham sorriu, constrangido.

— Você me faz vacilar, — disse, gracejando. — Mas, de fato, ainda não resolvi a prisão da mulher.

Apesar do tom de motejo, percebi que falava meio a sério.

— Louvo-lhe a moderação: mas com certeza já se dispôs a atormentar a dama, e ver se a apanha em uma ou duas daquelas contradições tão apreciadas pelos magistrados — como se fosse possível a uma pessoa nervosa, ou inquieta, deixar de se contradizer quando o juiz a interroga sobre um crime que não praticou... Diria melhor — metê-la na grelha, reminiscência dos tempos em que se queimava gente na pira, não é?

— Com certeza que vou interrogá-la, — replicou Markham com firmeza, olhando para o relógio. — E, como um agente a levará ao meu gabinete daqui a meia hora, tenho de interromper esta deliciosa e edificante palestra.

— Espera realmente tirar dela alguma coisa que a inculpe, nesse interrogatório? Oh! Seria divertido testemunhar a sua humilhação... Mas presumo que a intimidação dos suspeitos faz parte dos arcanos judiciais.

Markham, que já se encaminhava para a porta, deteve-se a estas palavras, e refletiu um momento.

— Não vejo objeção particular para a sua presença, se deseja assistir.

Pareceu-me que esperava que o humilhado fosse Vance. E sem demora estávamos em um auto, a caminho da Corte Criminal.


VII

 

OS RELATÓRIOS — UMA ENTREVISTA

 


(Sábado, 15 de junho — 3 da tarde)

 


Foi pela porta da Rua Franklin que entramos no velho edifício de pilares de mármore desbotado e antiquadas volutas de ferro. Dirigimo-nos diretamente ao gabinete do Promotor no quarto andar. Ali, como em todo o edifício, tudo cheirava a antigüidade... Os altos tetos, os maciços madeiramentos de carvalho amarelo, os candelabros de bronze e porcelana, pendurados muito baixo, as paredes estucadas, cor de louro escuro, as quatro janelas, altas e estreitas, ao sul — tudo denunciava uma era morta da arquitetura e da decoração.

Cobria o soalho um grande tapete de veludo muito felpudo, da mesma cor parda das cortinas das janelas. Grandes e cômodas poltronas ao redor das paredes e, diante da mesa do Promotor — uma vasta mesa esculpida cujas gavetas chegavam até ao chão, posta debaixo das janelas, em frente à porta. À direita da cadeira giratória, de alto espaldar, outra mesa de carvalho esculpido. Muitas papeleiras, e um grande cofre de segurança. Ao centro da parede leste, uma porta toda decorada de grandes pregos de bronze, coberta por um reposteiro de couro, dava para uma sala estreita e comprida, comunicando o gabinete com a sala de espera; ali o secretário do Promotor e vários funcionários trabalhavam. Em frente a esta porta, outra conduzia ao santuário reservado do Promotor, e ainda outra, em frente às janelas, dava para o corredor.

Vance olhou distraidamente para os lados.

— Então isto aqui é a sede da justiça municipal!...

Foi até à janela e contemplou dali a Torre do Tombo, circular e cinzenta, situada em frente ao palácio.

— Ali estão as masmorras onde são encerradas as vítimas, com o fim de diminuir a competição da atividade criminal entre os cidadãos remanescentes. Que vista interessante, Markham!

O Promotor, sentado à sua mesa, examinava notas e mais notas na sua pasta de papéis.

— Dois de meus homens estão à espera para me falarem, — observou ele sem erguer a vista dos papéis. — Assim, se você quer ter a bondade de sentar-se, eu procurarei, com meus humildes esforços, solapar ainda mais a sociedade...

Apertou o botão oculto na mesa e apareceu à porta um rapaz ativo, de óculos de vidros grossos.

— Swacker, diga Phelps que venha cá, e diga também a Springer se já voltou do almoço, que venha daqui a cinco minutos.

O secretário desapareceu, e logo entrou um homem alto, feições de ave de rapina, ombros curvados, andar lento e desgracioso.

— Que há de novo? — indagou Markham.

— Encontrei alguma coisa, — respondeu o investigador em voz baixa e áspera, — que deve ser proveitosa para o senhor. Depois que lhe transmiti o relatório esta manhã, andei rondando a casa do capitão Leacock, a ver se obtinha alguma informação dos empregados; vi-o sair e segui-o por muito tempo: foi à casa da dama de Riverside Drive, e ali ficou cerca de uma hora. Voltou depois para casa, parecendo-me que estava desassossegado.

Markham refletiu.

— Talvez isso não tenha valor algum, mas em todo o caso estimo sabê-lo. Miss St. Clair estará aqui daqui a pouco, e saberei arrancar-lhe o que sabe. Nada mais por hoje... Diga a Swacker que mande Tracy aqui.

Tracy era a antítese de Phelps. Baixo, um nada robusto, porejava uma amabilidade estudada. O rosto gorducho e alegre, a roupa bem moderna e bem assentada. Usava pince-nez.

— Bom dia, Chefe, — cumprimentou em tom calmo e insinuante. — Soube que Miss St. Clair virá aqui hoje, e vim dizer-lhe o que soube, e que poderá servir no seu interrogatório.

Abriu um livrinho de notas e ajustou o pince-nez.

— Lembrei-me de indagar alguma coisa do professor de canto de Miss St. Clair, um italiano que trabalhou outrora no Metropolitan, mas que hoje dirige uma espécie de sociedade de canto coral, que fundou. Exercita aspirantes a prima donnas, e Miss St. Clair é uma de suas alunas prediletas. Falou-me simplesmente, sem se perturbar, e parece que conheceu muito Benson, que assistiu a alguns ensaios da moça, e que algumas vezes a convidou a acompanhá-lo de táxi. Reinaldo — é o nome do homem — julga que ele lhe pregou alguma peça. No inverno passado, quando ela cantou no Criterion, em uma pequena parte, Reinaldo servia de ponto, e Benson mandou à moça flores de estufa em tal quantidade, que dariam para encher o camarim da estrela, e ainda sobrariam algumas. Tentei saber dele se Benson estava fingindo de santo com ela, mas ele ou não sabia ou não quis dizer.

Tracy fechou o caderno e ergueu os olhos, perguntando:

— Isto serve de alguma coisa, Chefe?

— É ótimo. Continue trabalhando nesse plano, e torne a me falar na segunda-feira.

Tracy cumprimentou e saiu, e o secretário tornou a entrar.

— Springer está aqui. Pode entrar?

Springer era um tipo de investigador completamente diferente de Phelps e de Tracy. Era mais idoso, e tinha o ar sombrio e circunspecto de um dedicado guarda-livros de banco. Não se lhe atribuiria iniciativa, mas ao vê-lo compreendia-se que poderia desempenhar uma tarefa delicada com extrema perfeição.

Markham tirou do bolso o envelope em que anotara o nome dado pelo major Benson.

— Springer, há em Long Island um homem que desejo ver o mais depressa possível. Isso concerne ao caso Benson, e quero que você o descubra e o traga sem tardar muito. Se puder encontrar o nome na lista telefônica, não é necessário ir até lá. Chama-se Leandro Pfyfe. e creio que mora em Port Washington.

Escreveu o nome em um cartão e entregou-o ao investigador.

— Hoje é sábado. Se ele vier à cidade amanhã, que me procure no Stuyvesant. Estarei lá à tarde.

Quando Springer saiu, Markham tornou a tocar a campainha, e deu instruções ao secretário para fazer entrar Miss St. Clair assim que chegasse.

— Está aí o sargento Heath, — informou Swacker, — e deseja falar-lhe, se o senhor não está muito ocupado.

Markham olhou para o relógio que encimava a porta.

— Creio que tenho tempo. Mande-o entrar.

Heath, a princípio surpreso de nos encontrar no gabinete, cumprimentou Markham com o habitual aperto de mão, voltando-se depois para Vance com um amável sorriso.

— Adquirindo mais conhecimentos, Sr. Vance?

— Não posso dizer que sim, sargento, — retrucou Vance em tom brincalhão. — Mas venho aprendendo um grande número de erros, muito interessantes... Como vão as investigações?

O rosto de Heath ficou sério.

— É o que vim dizer ao Chefe. — E, dirigindo-se a Markham, continuou: — Este caso é um quebra-cabeça, senhor. Eu e meus homens ternos falado com uma dúzia de amigos de Benson, e não tiramos deles nem um simples fato de valor. Ou eles nada sabem, ou resolveram ser mudos como ostras. Todos se mostram muito perturbados — aterrados, confundidos — com a notícia do tiro. Mas ter uma idéia do modo por que isso se passou? Dirão a todos que não. O senhor já sabe o estribilho: "Quem quereria matar o bom do velho Al?" "Só um ladrão que não conhecesse o bom velho Al!" "Porque se conhecesse o bom velho Al, nem o próprio ladrão o teria feito..." Diabo! Deu-me vontade de matar alguns daqueles sujeitos, para que pudessem ir-se reunir ao seu bom velho Al.

— E nenhuma notícia do carro? — perguntou Markham. Heath gemeu o seu desgosto:

— Nenhuma palavra!... E isso é engraçado, com toda a publicidade a respeito. Aquelas varas de pescar foram tudo que conseguimos. Ah! O inspetor mandou-me hoje de manhã o laudo post-mortem; irias isso não nos traz nada de novo. Traduzido em linguagem humana, diz que Benson morreu de um tiro na cabeça, tendo todos os órgãos sãos. O que me admira é que não descobrissem que fora envenenado com uma fava do México, ou picado por alguma serpente africana, ou alguma outra coisa semelhante, para tornar o caso mais intrincado do que já é.

— Não desanime, sargento. Eu tive mais sorte: Tracy descobriu que a proprietária da bolsa jantou naquela noite com Benson. Ele e Phelps descobriram outros fatos suplementares, que também têm valor. E espero a dama dentro de um minuto, e descobrirei o que ela mesma sabe.

Por um momento, enquanto o Promotor falava, luziu nos olhos de Heath uma expressão de descontentamento, mas afastou-a logo. Indagou vários pormenores, e Markham deu-lhe todas as informações, inclusive a de Leandro Pfyfe.

— Assim que terminar a entrevista, eu lhe direi o que colhi,— concluiu ele.

Quando a porta se fechou depois de sair Heath, Vance olhou para Markham com um sorriso matreiro.

— Ele não é precisamente um dos super-homens, de Nietzche não? Receio que as sutilezas deste mundo complexo o fatiguem... E está tão desanimado... Eu senti na verdade satisfação, quando aquele rapaz tão ativo, de óculos espessos, anunciou a sua presença. Estou certo de que ele vinha dizer-lhe que prendera pelo menos seis assassinos de Benson...

— Sua imaginação voa muito alto, — comentou Markham.

— Mas é este o processo usual — se devo crer nas manchetes de nossos grandes jornais moralistas. Sempre julguei que, assim que se cometia um crime, a polícia desatava a prender a torto e a direito — para manter a excitação no público. Ora não vê você... Outra desilusão! Isto vai mal! Nunca perdoarei ao nosso Heath: ele traiu a confiança que eu tinha nele!

Entrou o secretário anunciando a chegada de Miss St. Clair.

Supus que íamos todos ter um pequeno desapontamento à vista dessa moça, quando ela entrou na sala, com passo firme e gracioso, a cabeça levemente inclinada para um lado, supercílios erguidos em atitude interrogativa. Era pequena e notavelmente bela, muito embora "bela" não seja a palavra própria para descrevê-la. Possuía aquela beleza quase exótica, que encontramos nos retratos de Carraci, e que adoçou a severidade de Leonardo, tornando-a ao mesmo tempo familiar e decadente. Eram os olhos escuros e muito espaçados; o nariz delicado e fino, a fronte espaçosa. Os lábios, muito suaves, eram quase esculturais na precisão das linhas. Descerrava-os um sorriso enigmático — ou antes a sombra de um sorriso. O queixo, redondo e firme, era talvez duro, examinado isoladamente, mas não em conjunto com os outros traços. Denotava-lhe o porte equilíbrio e certa força de caráter. E a serenidade exterior mal ocultava a sua poderosa emotividade. O trajo harmonizava com a personalidade: era convencional, é certo, mas um toque de cor e de originalidade aqui e ali, bastava para lhe dar um cunho de distinção pessoal e encantadora.

Markham ergueu-se cumprimentando-a com cerimoniosa cortesia, e ofereceu-lhe uma confortável poltrona estofada, fronteira a mesa. Inclinando imperceptivelmente a cabeça, relanceou os olhos para a cadeira, depois sentou-se em uma outra, pequena, próxima àquela.

— O senhor permite-me que escolha a cadeira para o interrogatório?

A voz era grave e sonora, — a voz de uma cantora muito treinada. Sorria ao falar, mas era um sorriso sem cordialidade: frio e distante, ainda que indicasse certa frivolidade.

— Miss St. Clair, — começou Markham, com uma severidade polida. — seu nome está intimamente ligado ao assassinato de Alvino Benson. Contudo, antes de dar qualquer passo definitivo, convidei-a a vir até aqui, para lhe fazer algumas perguntas. E aviso-a lealmente de que sua melhor defesa será a franqueza.

Calou-se, e ela, olhando-o irônica e interrogativamente:

— Agradeço-lhe o generoso conselho.

Markham olhou para uma nota escrita a máquina que tinha sobre a mesa, e a ruga da testa acentuou-se.

— A senhora deve saber que suas luvas e a sua bolsa foram encontradas em casa do Sr. Benson, no dia seguinte ao crime.

— Compreendo que reconhecessem a minha bolsa, mas como poderiam saber que as luvas também me pertenciam?

Lançou-lhe Markham um olhar percuciente. — Pretende dizer que não são suas?

— Oh! Não, — respondeu, com outro sorriso gelado. — Apenas admiro que o descobrissem, não conhecendo meus gostos, nem o número que calço.

— Pertencem-lhe, então, essas luvas?

— Se são Tréfousse, tamanho cinco e três quartos, de pelica branca e com altos canhões, certamente que são minhas. E desejaria que mas devolvessem, se fosse possível.

— Lamento-o, mas é preciso que fiquem aqui ainda por algum tempo.

Ela encolheu os ombros, com indiferença.

— Posso fumar?

Markham abriu imediatamente uma gaveta da mesa e tirou uma caixa de cigarros Benson Hedjes.

— Obrigada, tenho-os aqui. Mas estimaria muito se me desse minha piteira: tem-me feito muita falta.

Markham hesitava. Aquela atitude incomodava-o, positivamente.

— Empresto-lha com muito prazer, — disse, remexendo em outra gaveta. E apresentou-lhe a piteira. — E agora, Miss St. Clair, — continuou gravemente, — a senhora vai-me dizer como foram parar no salão de Benson aqueles objetos de seu uso.

— Não, senhor, eu não posso dizê-lo.

— Compreende a grave interpretação que sua recusa dará aos fatos?

— Não, realmente não pensei nisso, — respondeu, indiferente.

— Pois faria bem em pensar, — aconselhou Markham. — Sua situação não é para invejar; e a presença de objetos seus na sala de Benson não é a única coisa que a envolve diretamente no crime.

Interrogou-o com o olhar, e de novo o enigmático sorriso descerrou-lhe os lábios.

— Acaso tem provas suficientes para me acusar do crime?' Markham deixou a pergunta sem resposta.

— Conhecia muito Benson? Ela parou o golpe:

— O achado de minhas luvas e bolsa na sua casa bem pode atestá-lo, não é?

— É certo que se interessava muito pela senhora? — persistiu ele.

— Oh! sim! Demais, para a paz de meu espírito!... Mas trouxeram-me aqui para comentar as atenções que esse cavalheiro me dispensava?

Ainda desta vez Markham não deu ouvidos à pergunta.

— Onde esteve a senhora da meia-noite a uma hora, isto é, desde que saiu do "Marseilles", até chegar a casa?

— O senhor é admirável! — exclamou ela. — Parece que sabe tudo... Pois bem, só lhe posso dizer que durante esse tempo eu me dirigia para minha casa.

— A senhora gastou uma hora para ir da Rua 40 até à esquina da Rua 81 com a Riverside Drive?

— Precisamente, isto é, minutos mais, minutos menos, talvez.

— Alas como explica isso?

— Não o posso explicar... senão pelo fato da passagem do tempo. O tempo voa, não é verdade?

— Seu procedimento está-lhe causando dano. — preveniu Markham, já irritado. — Não vê que a sua situação é muito grave? Sabe-se que jantou com Benson, que saiu do restaurante à meia-noite, e que chegou a casa depois de passada uma hora. Meia hora depois da meia-noite o Sr. Benson foi assassinado; e na mesma sala em que ele apareceu morto apareceram também, na manhã seguinte, objetos de seu uso particular.

— Na verdade, tudo isso parece acusar-me, — concordou ela com estranha seriedade. — E digo-lhe isto, Sr. Markham: se meus pensamentos pudessem matar o Sr. Benson, ele estaria morto já há muito tempo. Sei que não se fala mal de um morto — há até um provérbio, começando assim "de mortuis", não é? — mas a verdade é que eu tinha razão para detestar intensamente o Sr. Benson.

— Como então foi jantar com ele?

— Já fiz essa pergunta a mim mesma uma dúzia de vezes, — confessou ela amargamente. — Nós, mulheres, somos tão impulsivas — fazemos sempre aquilo que não queríamos fazer... Mas sei como o senhor julga o caso: se eu tinha a intenção de matá-lo, o jantar seria o mais natural dos preliminares. Não é isto mesmo que pensa neste momento? Creio mesmo que todas as assassinas começam por jantar com as suas vítimas.

Todo o tempo em que falou esteve com o espelhinho na mão. Corrigiu a posição de negalhas da sua abundante cabeleira escura, imaginariamente desviadas, depois tocou de leve, com os dedos finos, as sobrancelhas arqueadas, como se retificasse algum traço de lápis mal dirigido. Inclinou a cabeça, examinou-se para ver se estava tudo em ordem, e só olhou outra vez para o Promotor quando acabou de falar. Dava a impressão nítida de que, no seu entender, sua aparência pessoal era muito mais importante do que o assunto da conversação. Palavra alguma lograria exprimir sua indiferença com tanta eloqüência como aquela pantomima.

Markham começava a exasperar-se. Outro que não ele teria sem dúvida empregado os meios que seu cargo lhe conferia para dominar-lhe a vontade. Mas Markham era diferente do tipo comum de Promotor: fugia instintivamente dos métodos terroristas, ameaçadores, especialmente no trato com senhoras. E, contudo, tomaria sem dúvida uma posição mais agressiva, se não lhe acudissem à memória as observações de Vance, no Club Stuyvesant. E devorava-o a incerteza, aumentada pela atitude evasiva da moça.

Por fim perguntou-lhe asperamente:

— A senhora não fez especulações consideráveis, por intermédio da casa Benson Benson?

Ela riu frouxamente, um riso musical e brando.

— Vejo que o major andou contando histórias... Sim, de fato, joguei sem tino. E não tinha necessidade disso. Creio que sou avarenta.

— Não perdeu muito dinheiro ali há pouco tempo? E o senhor Benson convidou-a a fazer um depósito adicional, e, finalmente, vendeu seus títulos, não é verdade?

— Antes não fosse, meu Deus! — lamentou ela, com um gesto trágico, receio, perfeitamente simulado. E agora, acusam-me de ter assassinado o Sr. Benson por uma vingança sórdida, ou um ato de justa desforra?

Sorria maliciosa, e ficou à espera da resposta, como se fosse aquilo um jogo de adivinhação.

Mas Markham continuou, dura e friamente:

— Não é verdade que o capitão Filipe Leacock possui uma pistola como a que serviu para matar o Sr. Benson — uma pistola Colt automática, tipo militar 45?

Ao ouvir o nome do noivo, ela estremeceu e faltou-lhe um momento a respiração. Abandonou o papel que estivera representando, e um fraco rubor espalhou-se-lhe nas faces, subindo até à fronte. Logo, porém, dominou-se, voltando à indiferença jovial que até então ostentara.

— Nunca indaguei do tipo nem do calibre das armas do capitão Leacock, — retrucou despreocupadamente.

— E não é verdade, — prosseguiu a voz imperturbável de Markham, — que o capitão Leacock lhe emprestou uma pistola, que levou à sua casa na manhã anterior ao dia do crime?

— Não é muito gentil da sua parte, Sr. Markham, — disse com ar constrangido, — imiscuir-se assim nas nossas relações — porque sou noiva do capitão Leacock, o que o senhor provavelmente já sabia.

Markham, que a custo se continha, levantou-se.

— Devo deduzir que a senhora se recusa a responder a todas as minhas perguntas, ou devo antes tentar tirá-la da perigosa posição em que se acha?

Ela pareceu refletir.

— Sim, — disse lentamente. — Não tenho coisa alguma para lhe dizer agora.

Markham inclinou-se e ficou com as mãos apoiadas na mesa.

— Compreende as conseqüências que naturalmente advirão dessa atitude? — inquiriu ameaçadoramente. — Os fatos que conheço, comprometendo-a no caso, unidos a essa recusa de dar qualquer esclarecimento, são motivos mais que suficientes para ordenar a sua detenção.

Eu olhava atentamente para ela, enquanto o Promotor falava' e pareceu-me ver que suas pálpebras tremeram levemente. Mas nenhum outro sinal deu de comoção. Encarou o Promotor com ar de desafio irônico.

Markham, de boca contraída, voltou-se à procura do botão da campainha da mesa; mas seu olhar caiu sobre Vance, e deteve-se indeciso. Correspondera ao seu um olhar severo, em que leu não somente o espanto, mas que lhe dizia também, e com mais eloqüência do que o diriam palavras, que estava a ponto de cometer uma tolice irreparável.

Por alguns momentos reinou na sala silêncio profundo. Então, Miss St. Clair, com a maior tranqüilidade, abriu o estojo e empoou o nariz. Quando acabou, olhou serenamente para o Promotor.

— Quer-me prender agora?

Markham refletia. Em vez de responder imediatamente, foi até à janela e ficou a olhar para a Ponte dos Suspiros, que liga a Corte Criminal à Torre do Tombo.

— Não, hoje não, — disse lentamente.

Deteve-se de novo em absorta contemplação; depois, como se sacudisse para longe a irresolução, voltou-se rapidamente e encarou-a de frente.

— Não vou prendê-la hoje, ainda, — reiterou com alguma aspereza. — Mas dou-lhe ordem de ficar em Nova York por agora. E, se a senhora tentar sair da cidade, então será presa. Creio que me entende.

Apertou um botão, e entrou o secretário.

— Swacker, faça o favor de acompanhar Miss St. Clair até lá embaixo e chamar um táxi para ela... E a senhora pode voltar para casa.

Ergueu-se a moça e cumprimentou-o levemente.

— Foi muito amável, senhor, emprestando-me minha piteira, — disse alegremente, depondo a boquilha na mesa.

E, sem mais palavra, saiu da sala.

Mal se fechara a porta, Markham tocou num botão. Logo se abriu a porta, que dava para o outro corredor, e entrou um homem de meia-idade, de cabeleira branca.

— Ben, — ordenou Markham rapidamente, — siga a mulher que Swacker vai conduzindo para a saída. Conserve-a debaixo de vigilância, e não a deixe escapar. Ela não pode sair da cidade, compreende? É Miss St. Clair, que Tracy desencavou.

Depois que o homem saiu, Markham voltou-se para Vance e encarou-o fixamente.

— Então! Que pensa você agora da sua inocente jovem? — perguntou com ar de triunfo marcial.

— É linda! — replicou Vance suavemente. — E que extraordinário domínio de si própria! E vai casar com um militar, não é? Ora! De gustibus... Houve um momento, Markham, em que temi que você pedisse as algemas ali mesmo. E, se o tivesse feito, velho amigo, havia de lamentá-lo toda a vida.

Markham olhou para o amigo por alguns segundos. Compreendia que a certeza de Vance se fundava em alguma coisa que um simples capricho, e foi isso que lhe deteve a mão, quando já ia prender a jovem. Contudo, observou:

— A atitude dela não levaria ninguém a acreditar na sua inocência; representou seu papel com diabólica habilidade, mas isso é o que faria qualquer mulher astuta, que se sentisse culpada.

— E você não notou que pouco se lhe dava que a julgasse culpada ou não? — Que ficou até um pouco desapontada quando viu que a deixava ir?

— Não vi nada disso, — retrucou o Promotor. Culpado ou não, Vance, ninguém quer ser preso...

— E, a propósito, — perguntou Vance, — onde estava o felizardo noivo, à hora em que Alvino morria?

— Pensa então que não examinamos esse ponto? — respondeu o outro desdenhosamente. — O capitão Leacock recolheu-se à casa, naquela noite, às oito horas.

— Sim? — retrucou Vance, indiferente. — Um rapaz modelo, esse camarada!

Markham tornou a encará-lo com olhar penetrante. Depois murmurou pensativo:

— Gostaria de saber que sábia teoria se agita hoje em seu cérebro. Agora, que deixei a moça em liberdade provisória — que é o que você queria — contra meu próprio julgamento, diga-me francamente: o que tem você aí escondido na manga?

— Escondido na manga? Eu?... Que metáfora desenxabida! Quem o ouvisse pensaria que sou algum prestidigitador!

Quando Vance desconversava assim, sabia-o Markham, era que não queria responder diretamente. Mudou, pois, de assunto.

— E você afinal não teve o prazer de presenciar minha humilhação, como profetizou.

Vance encarou-o com simulada surpresa.

— Não vi? Ora esta! Depois acrescentou, pesaroso:

— A vida é tão cheia de desapontamentos...


VIII

 

VANCE ACEITA UM REPTO

 


(Sábado, 15 de junho — 4 da tarde)

 


Depois que Markham telefonou a Heath, dando-lhe conta da entrevista, voltando ao Club Stuyvesant. Era costume do Promotor sair do gabinete aos sábados, à uma hora; mas ligara tal importância à visita de Miss St. Clair, que prolongara hoje o expediente. Mergulhado em profunda meditação, só falou quando nos sentamos no salão do Clube. Estava aborrecido.

— Puxa! Não devia tê-la deixado ir-se... Tenho a intuição de que é culpada.

— Oh! Realmente? Você é muito psicólogo! E tem-no sido a vida inteira, sem dúvida. Nunca notou que seus sonhos sempre se realizam? E não lhe tem acontecido também muitas vezes chamá-lo ao telefone justamente a pessoa em quem você estava pensando naquele momento? Um dom admirável! Lê também nas linhas da mão?... Por que não fez o horóscopo da dama?

— Até agora; — retorquiu Markham, — não tenho prova alguma de que a sua crença na inocência dela se baseia em coisa mais sólida do que as suas impressões.

— Ah! Mas, no entanto, eu sei que ela é inocente. E sei mais: nenhuma mulher poderia ter desfechado aquele tiro.

— Não alimente a idéia errônea de que uma mulher não pode manejar um Colt militar 45.

— Ora! — disse Vance, encolhendo os ombros à observação. — Os indícios materiais do crime não entram em meus cálculos — deixo-os a vocês, advogados, e aos que possuem deltóides salientes. Tenho outros, e mais seguros meios, para chegar às conclusões. Eis aí por que eu lhe disse que, se você prendesse qualquer mulher supondo-a a assassina de Benson, cometeria um erro vergonhoso.

Markham resmungou, indignado:

— Parece que você repeliu todos os processos de dedução, pelos quais se pode alcançar a verdade... Renunciaria, por acaso, inteiramente, a acreditar nas faculdades do espírito humano?

— Ah! Fala a voz do grande povo de Deus! — exclamou Vance. — Seu espírito é muito simbólico, Markham. Ele parte do princípio de que o que você ignora não é conhecimento, e que desde que você não compreende uma coisa, não há explicação para ela. Um ponto de vista muito cômodo... Liberta de toda a preocupação e incerteza. Não acha, Markham, que o mundo é um lugar agradável e cheio de maravilhas?

Markham resolveu aceitar tudo com paciência.

— Ao almoço falou você de um método infalível para descobrir os crimes. Quereria confiar esse profundo e inestimável segredo a um simples promotor?

Vance fez-lhe uma cortesia exagerada (*).

(*) A seguinte conversação, em que Vance explana seu método psicológico de análise criminal, é reproduzida, naturalmente, de memória. Contudo, foi-lhe remetido um exemplar dela, com o pedido de revisá-la e alterá-la no que fosse necessário: de modo que, tal como sai agora publicada, descreve a teoria de Vance, usando, praticamente, suas próprias palavras.


— Com muito prazer. — respondeu ele. — Referia-me ao conhecimento do caráter individual, à psicologia da natureza humana. Todos nós agimos de acordo com o nosso temperamento. Todo ato humano — importante ou trivial, pouco importa — é uma expressão direta da personalidade, e traz o cunho inevitável da sua natureza. Assim, um musicista, diante de uma página de música, pode dizer imediatamente se foi composta por exemplo por Beethoven, Schubert, Debussy ou Chopin. E um pintor, ao olhar para uma tela, conhece logo se é um Corot, um Harpignies, um Rembrandt, ou um Franz Hals. E assim como dois rostos não são exatamente iguais, duas naturezas também não podem ser; a combinação dos elementos que formam a nossa personalidade varia de indivíduo para indivíduo. E é por essa razão que, quando vinte artistas pintam o mesmo assunto, cada um o concebe e executa de maneira diferente. Cada quadro é uma expressão distinta, inconfundível, da personalidade do pintor... Não é tão simples?

— Sua teoria, — respondeu Markham com ironia indulgente, — seria compreensível, sem dúvida, para um artista. Mas confesso que meu vulgar espírito fica muito aquém do seu refinamento metafísico.

— É que o espírito que já se orientou no erro, despreza o caminho mais nobre, — murmurou Vance, suspirando.

— Há alguma diferença entre a arte e o crime...

— Não há nenhuma, psicologicamente, velho amigo. O crime assenta sobre os mesmos fatores de uma obra de arte — concepção, técnica, imaginação, iniciativa e organização. Além disso os crimes variam tanto em suas particularidades, aspectos e natureza, como as obras de arte. Na verdade, um crime planejado cuidadosamente denuncia, tanto como um quadro, a expressão individual do seu autor. E isso é que permite e facilita a pesquisa. Do mesmo modo que um perito de arte, analisando um quadro, pode dizer quem o pintou, ou chega a conhecer a personalidade e o temperamento do pintor, o perito psicólogo analisa um crime e sabe quem o cometeu, se o conhece, ou, no caso contrário, pode descrever com precisão quase matemática a natureza e o caráter do criminoso... E é este, meu caro Markham, o único meio seguro e inevitável de determinar a culpabilidade humana; todos os outros não passam de conjeturas que não se baseiam na ciência, e são incertos e perigosos.

Vance falara quase distraído; não obstante, a grande serenidade e segurança de sua atitude conferia às suas palavras um cunho de autoridade. Markham ouvira-o com interesse, apesar de não lhe levar a sério as teorias.

— Seu sistema, — objetou ele, — despreza de todo os motivos.

— Naturalmente, — replicou Vance, — porque esse fator não tem importância na maioria dos crimes. Cada um de né«. meu caro, tem uma porção de motivos para matar pelo menos alguns homens — os mesmos motivos que são invocados em noventa e nove por cento dos crimes cometidos. E, sempre que aparece um homem assassinado, ficam dúzias de pessoas inocentes, que, no entanto, tinham motivo igualmente poderoso para fazerem o que fez o assassino. Mas o que é certo é que o fato de ter um motivo para fazê-lo não prova, em hipótese alguma, que um homem é culpado — e tais motivos são tão universais como a rac,a humana. Suspeitar que um homem é assassino porque ele tinha um motivo para matar o outro, é o mesmo que suspeitar de que outro tenha fugido com a mulher do vizinho, porque ele tem pernas. A razão por que algumas pessoas matam e outras não, é assunto de temperamento — de psicologia individual. Tudo vem a dar no mesmo... E outra coisa: quando uma pessoa possui um motivo — um poderoso e tremendo motivo — ela pode conservá-lo oculto; pode até dissimulá-lo durante anos de preparação. E o motivo também pode surgir cinco minutos antes do crime, diante da descoberta inesperada de fatos passados há dez anos... Assim, vê você que a ausência de um motivo aparente em um crime, pode ser considerada mais comprometedora do que a presença dele.

— Vejo que vai ser difícil para você eliminar a idéia de cui bono na observação de um crime.

— Digo até que a idéia do cui bono é muito tola, para merecer discussão. Ainda assim, há mortes que aproveitariam a muita gente. Mate Sumner, e, com essa teoria, poderia prender todos os membros da Liga dos Autores.

— Em todo caso, a ocasião é um fator insuperável — e por ocasião entendo certas afinidades de circunstâncias e condições que tornam determinado crime, possível, plausível e útil para determinada pessoa.

— Outro fator sem importância, — asseverou Vance. — Pense nas ocasiões que temos diariamente para matar pessoas que detestamos! Ainda ontem, eu tive à minha mesa dez sujeitos aborrecidos — um dever social. Mal contive — à custa de grande esforço, confesso — o desejo de deitar arsênico no vinho. E isso porque pertenço a uma categoria psicológica diferente da dos Bórgias, só por isso. Ora, se eu estivesse resolvido a matá-los, teria procurado, como aqueles cinquecento patrícios, a oportunidade... E aí é que está a dificuldade — um indivíduo pode fazer a ocasião, ou dissimulá-la, se a tem, com falsos álibis e vários outros ardis. Lembre-se do caso do assassino que chamou a polícia, pedindo-lhe que entrasse em casa da vítima, antes que fosse cometido um crime ali, pois desconfiava disso, e depois entrou adiante e apunhalou o homem enquanto os guardas subiam a escada (*).

(*) Não sei a que caso se referia Vance, mas há muitos exemplos deste ardil no arquivo, e escritores de ficção policial têm aproveitado muitas vezes a idéia. O último exemplo encontra-se no livro Inocência do Tio Brown, de G. K. Chesterton, na história intitulada "O Falso Modelo".


— A presença ou proximidade — também não constitui prova o fato de a pessoa estar no teatro do crime no momento em que esse foi consumado?

— Ainda um erro. A presença de um inocente é muita vez aproveitada como um escudo pelo verdadeiro assassino, que se oculta. Um indivíduo ardiloso pode cometer um crime a distância, servindo-se da presença de um agente. Também pode obter um álibi, e depois ir ao teatro do crime, disfarçado e irreconhecível... Há muitos meios de estar presente, quando todos o supõem longe, e vice-versa... Mas o que não podemos jamais despir é a nossa própria personalidade e natureza. E é por isso que todo crime vai incidir inevitavelmente na psicologia humana — base fixa, indisfarçável, da dedução.

— O que me admira é que, em vista de suas teorias, não proponha você a demissão de nove décimos da força da polícia, e a instalação de uma ou duas daquelas grandes máquinas psicológicas de que os suplementos dominicais tanto gostam.

Vance fumava, pensativo.

— Já li alguma coisa a respeito. É um brinquedo interessante. Elas podem indicar, sem dúvida, certo aumento de força emocional, quando o paciente desvia a atenção das piedosas vulgaridades do Dr. Frank Craner para um problema de trigonometria esférica; mas se ligarem a um inocente os vários tubos galvanômetros, eletroímãs, placas de vidro e botões de cobre de um aparelho desses, e o interrogarem sobre algum crime recente, a agulha reveladora saltará como unia dançarina russa, impelida pelo terror nervoso do paciente.

Sorriu Markham com ar superior.

— Oh! Ao contrário, — respondeu Vance serenamente. — Ela girará do mesmo modo, mas não porque ele seja culpado. Se for um imbecil, a agulha saltará à direita e à esquerda, porque ao paciente repugna esse moderno instrumento de tortura. E, se for inteligente, girará ainda, excitada pelo cuidado dele em dissimular o divertimento que lhe causa a puerilidade de espírito da justiça, que confia em tais tolices.

— Você me comove profundamente. Sinto a cabeça andar à roda, como uma turbina... Mas há ainda muita gente que acredita que a criminalidade provém de um defeito do cérebro.

— É verdade, — acudiu prontamente Vance. — Mas é que infelizmente toda a raça humana possui esse defeito. Virtuoso é o que não tem, por assim dizer, a coragem de mostrar seus defeitos... Entretanto, se você quer falar do tipo do criminoso, então não nos podemos entender. Foi Lombroso, o predileto das revistas científicas de capa amarela, quem forjou a idéia do criminoso nato... Cientistas autênticos, como Du Bois, Karl Pearson e Goring, têm rebatido essas teorias idiotas e cheias de falhas (*).

(*) Pearson e Goring, há mais de vinte anos, fizeram uma investigação detalhada e catalogação dos criminosos profissionais da Inglaterra, e chegaram a demonstrar: 1) que a carreira criminosa começa as mais das vezes entre os 16 e os 21 anos; 2) que noventa por cento dos criminosos eram mentalmente normais; 3) que a maioria dos delinqüentes não são filhos, mas irmãos mais novos de criminosos.


— Sua erudição me derrota, — declarou Markham, chamando um garçom e pedindo outro charuto. — Consola-me, contudo, a certeza de que, por via de regra, o crime vem à tona.

Vance fumou ainda algum tempo em silêncio, contemplando pensativo, pela janela aberta, o nublado céu de junho. Depois explicou:

— É assombrosa, Markham, a quantidade de idéias absurdas que existem, acerca de criminosos. Não posso compreender como uma pessoa sensata pode acreditar na velha superstição de que "o crime vem à tona". Ele raramente "vem", meu caro; e, se tem de vir, para que um Departamento de Homicídios? Por que toda essa atividade vertiginosa da polícia, quando se descobre um cadáver?... Os poetas são responsáveis por essa mania. Foi Chaucer, provavelmente, quem a inaugurou, com o seu "O crime vem à tona", e Shakespeare a levou mais longe, atribuindo ao crime um órgão miraculoso, que fala como se fosse uma língua. E foi também algum poeta, sem dúvida, que concebeu a idéia de que o esqueleto sangra à vista do assassino... E você, como o Grande Protetor dos Crentes, ousaria dizer à polícia que espere tranqüila nos seus gabinetes, ou nos seus clubes, ou nos seus camarins favoritos — onde quer, enfim, que esteja de serviço, — até que o crime venha à tona? Pobre amigo! Se você fizesse isso, logo pediriam ao Governo a sua prisão como particeps criminis, ou requereriam que o internassem num hospício, como lunatico inquirendo (*).

(*) Muitos anos depois, Sir Basil Thompson, ex-Comissário Assistente da Polícia de Londres, escrevia no Saturday Evening Post: "Tome, por exemplo, o provérbio que "o crime vem à tona", que é empregado todas as vezes que um dos milhares de criminosos impunes é apanhado, por uma feliz coincidência, o que impressiona a imaginação popular. E é porque o crime não vem à tona, que todos se alegram quando isso acontece, e invocam um provérbio para patrocinar o fenômeno. O envenenador que cai nas mãos da justiça quase sempre já tinha cometido outros crimes sem despertar suspeitas, até que um dia se deixou apanhar, por algum descuido".


Markham resmungou apenas. Estava muito ocupado, cortando a ponta do charuto e acendendo-o.

— Creio que os homens da polícia têm outra superstição a respeito do crime, — continuou Vance. — e é que o criminoso volta ao lugar onde o cometeu. Esta noção é mesmo explicada por algum recôndito e místico fundo psicológico. Mas, eu posso afirmar-lhe que a psicologia não ensina esta absurda doutrina. Se alguma vez o assassino voltar a ver o corpo de sua vítima, por qualquer outro motivo que não seja retificar alguma falha que tenha deixado, então ele é digno de ser encerrado num manicômio... E quão fácil seria para a polícia apanhar os criminosos, se esta fosse a realidade! Bastava-lhe sentar-se comodamente ao pé do morto jogando para passar o tempo, até que o assassino voltasse, para escoltá-lo até à bastilha, não? O verdadeiro instinto psicológico de quem comete um crime leva-o, pelo contrário, a afastar-se até onde lhe seja possível, para fugir ao castigo (**).

(**) Sir Basil Thompson sustenta este ponto de vista em "Enganos populares sobre o crime" {Saturday Evening Post, 21 de abril de 1923).


— No caso presente, porém, — lembrou Markham, — não estamos esperando inativos que o crime "venha à tona", nem nos aboletamos na sala de Benson, à espera de que o criminoso volte ali.

— No entanto qualquer desses caminhos levá-los-ia ao mesmo insucesso que esse que escolheram.

— Como não sou dotado da sua singular introspecção, apenas posso seguir os ineficazes processos do raciocínio humano.

— Sem dúvida, — comentou Vance, condoído. — E os resultados que a sua atividade obteve até agora me forçam à conclusão de que um homem armado de um punhado de lógica jurídica pode resistir com sucesso aos mais obstinados e heróicos assaltos do senso comum.

Markham estava estimulado.

— Ainda a mesma cantiga da inocência de Miss St. Clair, não é? Contudo, em vista da ausência completa de provas tangíveis que apontem qualquer outro rumo, você deve reconhecer que não me fica caminho a escolher.

— Eu não reconheço nada disso, porque sei que há abundantes provas que apontam para outro rumo: o que acontece é que você não as vê.

— Acha? — retrucou Markham, já abalada a sua serenidade pela despreocupada segurança de Vance. — Pois, meu velho amigo, sinto profunda repulsa por todas as suas belas teorias; e desafio-o a que apresente uma simples peça dessa evidência que sabe existir.

Falara com aspereza, e acompanhara as últimas palavras com um gesto agressivo da mão estendida, que indicava julgar esgotado o assunto.

Pareceu-me que Vance também se tinha azedado um tanto.

— Markham, velho amigo, você bem sabe que eu não sou o vingador do sangue derramado, nem o defensor da honra da sociedade. É um papel fatigante.

Markham sorriu afàvelmente, mas não.replicou. Vance fumou em meditativo silêncio por algum tempo, depois, com grande surpresa para mim, voltou-se sereno para Markham, e disse-lhe tranqüilamente:

— Aceito seu repto. É uma coisa contrária a meus gostos; mas o problema me seduz: apresenta as mesmas dificuldades do caso do Concerto Campestre — uma questão de disputa de autoria (*).

(*) Durante alguns anos, o famoso Concerto Campestre do Louvre foi oficialmente atribuído a Ticiano. Vance, porém, tomou a peito convencer o diretor, Sr. Lepelletier, de que era um Giorgione; e o quadro foi reconhecido como deste artista.


Markham, que ia levar o charuto aos lábios, suspendeu o gesto bruscamente. Mal ouvira o repto, na sua expressão literal: Vance o pronunciara mais como um desafio verbal. E agora, na incerteza, perscrutava o rosto do amigo. Como pudera adivinhar que o seu repto inconsiderado, e lançado meio a sério, meio a gracejar, ia alterar por completo a história criminal de Nova York?

— E como pretende você proceder?

— Sou como Napoleão, — disse Vance com um gesto descuidado: Je m’engage, et puis je vois. Entretanto, quero que você me prometa todo o apoio de que carecer... e que refreará suas observações jurídicas.

Markham contraiu os lábios. Espantara-o a maneira inesperada por que Vance lhe aceitara o desafio; mas sorriu afavelmente, como se lhe parecesse, afinal, que não adviriam conseqüências muito sérias.

— Pois bem, — anuiu ele. — Dou-lhe a minha palavra... Vance, depois de acender outro cigarro, ergueu-se, preguiçosamente.

— Primeiro, vou determinar a estatura exata do criminoso. Isto constituirá uma prova indicatória demonstrativa, não é?

Markham encarou-o, incrédulo.

— Mas como o conseguirá?

— Valendo-me daqueles primitivos métodos dedutivos, que lhe merecem tão tocante confiança. Mas venha: voltemos ao teatro do crime.

Markham, irritado e perplexo, seguiu-o de má vontade, protestando:

— Mas você sabe que já retiraram o corpo; a esta hora tudo na casa deve ter sido posto em ordem.

— Melhor! — murmurou Vance. — Não sou particularmente afeiçoado à vista de cadáveres; e detesto a falta de ordem.

Quando entramos na Avenida Madison, ele chamou um táxi, e, sem uma palavra, nos fez subir.

— Isto é um disparate, — declarava Markham de mau humor, quando íamos a caminho. — Que espera você encontrar agora para guiá-lo? A esta hora tudo foi já obliterado.

— Ah! Meu caro Markham, — disse Vance, com fingida solicitude. — Que falta lhe faz a teoria filosófica! Se qualquer coisa, por mais pequenina que fosse, pudesse ser realmente obliterada, o universo deixaria de existir — estaria resolvido o problema cósmico e o Criador escreveria o C. Q. D. no firmamento vazio. A única probabilidade que temos de continuar nesta ilusão chamada Vida reside no fato de que o conhecimento é como uma decimal periódica. Nunca tentou, quando era criança, completar a decimal um terço, enchendo uma folha de papel inteira com o número três? Sempre lhe ficava a fração um terço. Se você pudesse eliminar o mais pequenino terço, depois de alinhar dez mil três, estaria resolvido o problema. Assim é a vida, meu caro. É unicamente porque nada podemos apagar, que continuamos vivendo.

Calou-se, fazendo um gesto com os dedos, como se fora uma espécie de ponto tangível em suas observações, e ficou a olhar sonhadoramente, pela janela aberta, para o céu azul.

Markham encolhera-se a um canto, mastigando morosamente o charuto. Percebia-se claramente que o dominava uma irritação importante, arrependido de ter lançado o desafio; mas era tarde para retroceder. Mais tarde confessou-me que nesse momento tinha a impressão de que fora arrancado a uma cômoda poltrona, para obedecer aos propósitos ridículos de um doido.


IX

 

A ESTATURA DO ASSASSINO

 


(Sábado, 15 de junho — 5 da tarde)

 


Quando chegamos à casa de Benson, um guarda sonolento, que se recostava na grade do pátio, veio ao nosso encontro. Olhou para mim e para Vance cheio de esperança, supondo-nos suspeitos, levados à casa do morto para um interrogatório. Recebeu-nos um investigador que já estivera ali na manhã do crime. Markham cumprimentou-o e indagou:

— Tudo vai bem?

— Sim, senhor, — replicou o homem amàvelmente. — A velha dama é dócil como um gatinho e uma soberba cozinheira.

— Deixe-nos a sós por agora, Sniffin, — disse Markham, ao entrar na sala.

— O nome do gastrônomo é Snitkin e não Sniffin, — corrigiu Vance depois que este saiu.

— Admirável memória! — murmurou Markham rudemente.

— Um defeito meu, — disse Vance. — Creio que você é uma dessas pessoas que nunca esquecem um rosto, mas não podem lembrar os nomes, não é?

Mas Markham não estava com disposição para gracejos.

— E agora, que me trouxe aqui, que pretende fazer? — perguntou, agitando a mão e sentando-se.

O salão estava como o víramos da primeira vez, mas tudo fora posto em ordem. As cortinas estavam erguidas e a luz da

tarde entrava em profusão, dando mais relevo aos ornatos do mobiliário.

Vance olhou ao redor e estremeceu.

— Estou meio inclinado a dar volta, — balbuciou. — Foi um caso claríssimo, de homicídio justificável, praticado por um decorador de interior indignado.

— Meu caro esteta, — declarou Markham, impaciente, — tenha a bondade de recalcar agora seus preconceitos artísticos, e tratar do problema... Mas se você receia o resultado, — acrescentou com um sorriso malicioso, — ainda é tempo de se retirar, salvando assim suas sedutoras teorias, ainda intactas.

— E permitindo que você mande uma moça inocente para a cadeira elétrica! — exclamou Vance, fingindo-se indignado. É só o cavalheirismo que me impede a retirada. Oxalá nunca tenha eu de lamentar, como o príncipe Henrique, uma negligência na galanteria!

Markham cerrou os dentes e lançou a Vance um olhar feroz.

— Começo a crer agora que há alguma coisa de verdade na sua teoria de que cada homem tem algum motivo para assassinar outro...

— Bem, — replicou Vance alegremente, — agora que começa a pensar como eu, permite que eu mande o Sr. Snitkin dar um recado?

Markham suspirou e encolheu os ombros.

— Fumarei durante a ópera bufa, se isso não prejudicar a representação...

Vance foi até à porta e chamou Snitkin.

— Faça-me o favor de pedir à Sra. Platz que me empreste uma fita métrica e um novelo de barbante; o Promotor precisa disso, — acrescentou, fazendo uma reverência para o lado de Markham.

— Não creio que você pretenda se enforcar, pois não? — perguntou este.

Vance olhou-o com ar de censura e depois disse suavemente: — Permita-me que lhe recomende o Otelo:


"Quão miseráveis são os que não têm paciência! "Que ferida jamais sarou, senão aos poucos?"

 

ou — descendo de um poeta para um espírito vulgar — deixe-me apresentar à sua consideração um pentâmetro de Longfellow: "Todas as coisas vêm às mãos do que sabe esperar". Falso, sem dúvida, mas consolador. Melhor o disse Milton no seu: "Também servem..." Mas Cervantes o exprimiu ainda melhor: "Paciência e baralha as cartas". Conselho sadio, Markham, e expresso livremente, como deve ser um bom conselho. Acredite, a paciência é uma espécie de último recurso — uma prática a adotar quando já nada há a fazer. Ainda assim, como virtude ela às vezes recompensa o que a pratica, embora eu admita que, ela seja por via de regra — outra vez como virtude — inútil. Quer dizer, é a sua própria recompensa. Entretanto, tem sido enfarpelada com vários trajos verbais: "escrava da tristeza" e "soberana sobre os maus regenerados"; "paixão dos grandes corações". Rousseau escreveu: A paciência é amarga, mas seu fruto é doce. Mas talvez seu espírito jurídico se incline para o latim: Superanda omnis fortuna ferendo est, segundo Virgílio. E Horácio também falou no tema: Durum! disse ele, sed levius fit patientia...”

— Por que não virá o diabo do Snitkin? — rosnou Markham.

Quase no mesmo instante abriu-se a porta e o investigador ·entregou a fita métrica e o barbante a Vance.

— E agora, Markham, a sua recompensa!

Inclinando-se sobre o tapete, arrastou a grande poltrona de vime para a posição exata em que estava quando Benson foi alvejado. Era fácil determiná-la, pelas impressões dos rodízios da cadeira sobre a felpa escura do tapete. Passou o barbante através do orifício que a bala deixara no espaldar, e pediu-me que segurasse a ponta, assentando-a no lugar onde a bala batera no madeiramento. Tomou então a fita métrica e, estendendo o barbante através do orifício, mediu a distância de cinco pés e seis polegadas de comprimento, fitando o ponto que correspondia ao lugar da cabeça de Benson, quando ele estava sentado na cadeira. Deu um nó no barbante, para indicar a medida, e esticou-o, estendendo-o numa linha reta desde a marca no painel, passando pelo orifício da cadeira, até ao ponto de cinco pés e seis polegadas em frente ao lugar onde repousara a cabeça de Benson.

— Este nó no cordão, — explicou ele, — representa o lugar exato do cano da arma que tirou a vida a Benson. Acompanha o raciocínio, não é? Tendo dois pontos da trajetória da bala — o furo na cadeira e o sinal no painel — e conhecendo também aproximadamente a vertical da detonação, que foi entre cinco e seis pés distante do crânio do homem bastava prolongar a reta da trajetória da bala até à vertical de detonação para determinar o ponto exato de onde fora disparado o tiro.

— Em teoria está muito bem, — comentou Markham; se bem que eu não veja vantagem de você se dar tanto trabalho para determinar um ponto no espaço... Isso carece de importância, porque você se esqueceu da possibilidade de um desvio da bala.

— Desculpe-me contradizê-lo, — disse Vance sorrindo. — mas ontem de manhã interroguei o capitão Hagedorn e soube que não houve nenhum desvio da bala... Hagedorn examinara a ferida antes de chegarmos, e estava bem certo do que afirmava. Em primeiro lugar, a bala bateu no frontal com um ângulo tal, que tornaria praticamente impossível qualquer desvio, mesmo que se tratasse de uma arma de menor calibre. Em segundo lugar, a pistola com que mataram Benson era de calibre tão grande — um 45 — e a velocidade inicial foi tanta, que a bala teria descrito uma reta, ainda que fosse disparada a maior distância do rosto do homem.

— Mas Hagedorn sabia qual a velocidade inicial? — perguntou ainda Markham.

— Perguntei-lhe e ele me explicou que o tamanho e a característica da bala e o cartucho expelido lhe revelaram tudo. Foi como ele soube que era uma Colt automática — creio que ele chamou-a "Colt oficial" e não uma Colt comum. O peso das balas dessas duas pistolas difere levemente: a da Colt comum pesa 200 gramas, enquanto que a da pistola militar pesa 250. Hagedorn, com um tato hipersensível, pôde, creio eu, perceber logo a diferença, muito embora eu não o acompanhe nos seus dons fisiológicos — minha natureza limitada, você sabe... Entretanto, ele pôde dizer que era uma bala de pistola Colt automática regulamentar, 45. Sabendo isso, sabia que a velocidade inicial era de 809 pés, e que a força do choque era de 329 pés — o que dá uma penetração de seis polegadas no pinho branco a uma distância de vinte e cinco jardas... Criatura admirável, este Hagedorn! Imagine você, ter a cabeça cheia desses extraordinários conhecimentos! Os velhos mistérios — por que um homem escolhe o violoncelo como meio de vida, ou aonde vão parar todos os alfinetes — são um brinquedo de criança, comparados a este — porque um ser humano devota anos de vida às idiossincrasias das balas.

— O assunto não é o que se pode chamar atraente, — disse Markham, aborrecido. — Assim, para argumentar, suponhamos que você achou o ponto preciso da detonação da arma. Aonde vamos chegar com isso?

— Enquanto eu seguro o cordão esticado, queira você medir a distância exata do nó ao soalho. Depois meu segredo será desvendado.

— Este jogo não me tenta, — protestou Markham. — Prefiro de muito a "locomotiva".

Contudo, tirou a medida.

— Quatro pés e oito polegadas e meia, — disse com indiferença.

Vance colocou um cigarro no tapete, no ponto que ficava diretamente debaixo do nó.

— Sabemos agora a altura exata em que a pistola estava erguida, ao deflagar... Você já apanhou o processo pelo qual cheguei a esta conclusão, não?

— Parece-me evidente.

Vance foi outra vez até à porta e tornou a chamar Snitkin.

— O Promotor deseja que lhe empreste sua arma por um momento. Quer fazer uma experiência.

Snitkin entregou a arma a Markham, não sem surpresa, dizendo-lhe:

— Está travado. Quer que destrave?

Markham ia recusar a pistola, quando Vance se interpôs:

— Está bem assim. O Sr. Markham não pretende atirar — espero-o...

Quando o homem saiu, Vance sentou-se na cadeira de vime, e pôs a cabeça bem em frente ao orifício da bala.

— Agora, Markham, queira ficar de pé no lugar onde o assassino parou, e erga a arma bem acima do cigarro que está no chão; depois mire deliberadamente minha têmpora esquerda... Tome cuidado, — continuou, com um sorriso encorajador, — não puxe o gatilho, senão jamais saberá quem matou Benson...

Markham executou tudo, ainda que contra a vontade. Quando estava apontando, Vance pediu-me que medisse a distância do cano da arma ao chão.

Era de quatro pés e nove polegadas.

— É exatamente isso, — disse Vance, erguendo-se. — Já vê, Markham, você tem cinco pés e onze polegadas; logo, a pessoa que matou Benson era mais ou menos da sua altura — com certeza não tinha menos de cinco pés e dez... Isso também é evidente, não?

A demonstração fora tão simples e clara, que Markham estava francamente impressionado; ficara sério, e olhou um momento para Vance, ainda carrancudo.

 

 

 

— Está bem; mas a pessoa que deu o tiro pode ter erguido a pistola mais alto do que eu.

— Não é possível, — retrucou Vance. — Fiz muito exercício de tiro para saber que quando um perito mira deliberadamente um alvo pequeno, mantém firme a arma e sobre uma reta entre seu olho e o objeto visado. A altura a que ergue a arma, em tais condições, determina acuradamente sua própria estatura.

— Esse argumento baseia-se na hipótese de que a pessoa que matou Benson era um perito e apontava deliberadamente um alvo pequeno.

— Não é uma hipótese, mas um fato, — declarou Vance. — Se a pessoa em questão não fosse um atirador exímio, não poderia — a uma distância de cinco ou seis pés ter escolhido a fronte, mas um alvo mais vasto — o peito, por exemplo. Escolhendo a fronte, é certo que visou deliberadamente, não? Além disso, se não fosse perito, e tivesse apontado para o peito, sem alvejar deliberadamente, teria disparado mais de um tiro, provavelmente.

Markham refletia.

— Concordo em que, em face disso, sua teoria parece plausível. O criminoso podia ter mais ou menos cinco pés e dez de altura; mas também podia abaixar-se e escolher depois o alvo.

— É verdade. Mas você esquece que a posição do assassino, neste caso, era perfeitamente natural? A não ser assim, teria atraído a atenção de Benson, que não seria apanhado desprevenido. E que foi apanhado desprevenido prova-o sua postura. Sem dúvida, o assassino podia ter parado um momento a poucos passos sem que Benson olhasse para cima... Deixe-me dizer-lhe, contudo, que a estatura do homem regula entre cinco pés e dez polegadas e seis pés e duas polegadas... Isso não lhe recorda nada?

Markham ficou calado.

— A deliciosa Miss St. Clair, — observou Vance com um sorriso escarninho, — não pode ter mais de cinco pés e cinco, ou quando muito seis pés.

Markham resmungou, mas continuou a fumar, abstrato.

— O capitão Leacock, aposto que tem mais de seis pés, não? Markham pestanejou.

— De onde lhe veio essa idéia?

— Você mesmo me disse. Não se lembra?

— Eu lhe disse?

— Não com as mesmas palavras, mas depois que eu mostrei a altura aproximada do assassino, e demonstrei que ela não correspondia de modo algum à da senhora que você suspeitava, vi que seu espírito ativo buscava outra orientação. E como o inamorato era a única orientação possível, concluí que você deixava que seus pensamentos vagassem ao redor dele. Se ele tivesse a estatura estipulada, você nada diria, mas quando argumentou que o assassino podia ter-se abaixado para atirar, lembrei-me de que o capitão era anormalmente alto... Assim, durante o seu fértil silêncio, meu amigo, seu espírito manteve-se em doce comunhão com o meu, e disseme que o cavalheiro não tinha menos de seis pés de altura.

— Vejo que também possui o dom de ler o pensamento... Agora fico à espera de vê-lo adivinhar o que escrevo.

Falava em tom irritado, mas era apenas porque lhe custava admitir a alteração de suas opiniões. Cedia aos poucos, ia-se submetendo ao domínio de Vance, mas ainda se apegava obstinadamente às primitivas convicções.

— Espero que você não refutará minha demonstração da estatura do assassino? — indagou Vance, com voz melíflua.

— De modo algum. Parece-me plausível... Mas o que me admira é que Hagedorn não tivesse descoberto uma coisa tão simples.

— Disse Anaxágoras que quem precisasse de uma lâmpada, devia enchê-la de azeite. Observação profunda, Markham, daquelas que parecem simples gracejo, e que no entanto contêm uma grande verdade. Uma lâmpada sem óleo é inútil... A polícia tem sempre grande quantidade de lâmpadas — todas as variedades, de fato — mas não tem azeite. Aí está por que não encontra nunca os culpados, a menos que não seja à luz do dia.

Já o espírito de Markham seguia outra direção; ele se ergueu e começou a passear pelo salão.

— Até agora não me passara, pela cabeça que o capitão Leacock pudesse ser o criminoso.

— Por que não lhe passara pela cabeça? Porque um de seus investigadores lhe disse que estava em casa, naquela noite, como um rapaz modelo?

— Creio que sim, — respondeu Markham, continuando a passear pensativamente. Depois, parando de repente, acrescentou:

— Não, não foi isso. Foi a quantidade de provas circunstanciais contra aquela Miss St. Clair... E note, Vance, a despeito da demonstração que acaba de fazer, você não destruiu nenhuma dessas provas. Onde estava ela entre meia-noite e uma hora? Por que foi jantar com Benson? Como vieram parar aqui suas luvas e sua bolsa? E como foram encontradas no fogão pontas de cigarro iguais aos seus? Elas formam o obstáculo, essas pontas de cigarro; e sua demonstração não me convence inteiramente — a despeito do fato de que ela é convincente.

— Com efeito! — disse Vance, suspirando. — Você é positivamente terrível. Não importa, pode ser que eu consiga lançar alguma luz sobre essas perturbadoras pontas de cigarro.

Chamou de novo Snitkin, entregando-lhe a pistola.

— O Promotor agradece-lhe. E faça o favor de trazer aqui a Sra. Platz. Desejamos conversar com ela.

Voltou, sorrindo amàvelmente para Markham.

— Desta vez, desejo conversar eu mesmo com a dama, se isso não o contraria. Ela possui elementos que você desdenhou completamente quando a interrogou.

Markham, apesar de cético, sentiu-se interessado.

— Cedo-lhe o terreno.


CONTINUA

PHILO VANCE EM CASA

(Sexta-feira, 14 de junho — 8h30)

Tomei café da manhã casualmente com Philo Vance naquele célebre 14 de junho, o mesmo em que aparecera assassinado Alvino Benson — crime cuja lembrança ainda perdura. Não é que fosse coisa rara para mim tomar parte em seus almoços ou jantares, mas tomar café da manhã com ele, sim, era coisa extraordinária: era seu costume levantar tarde e permanecer incomunicável até o meio-dia, hora do almoço.
Motivara este encontro matinal um caso de negócios, ou antes, de estética. Na véspera, Vance fora à Galeria Kessler ver a exposição de aquarelas de Cézanne, da coleção Vollard, e convidara-me para almoçar, com o fim de me dar instruções acerca da compra de alguns quadros, que lhe interessavam particularmente.
O fato de eu ser o narrador desta crônica, explicam-no as minhas relações com Vance. Era tradicional na minha família, e isto desde muito tempo, a carreira jurídica, e quando terminei meus estudos preparatórios fui enviado, naturalmente, a Harvard, para não desmentir essa tradição enraizada. Foi ali que conheci Vance, um estudante reservado, satírico, cáustico até, que era o flagelo dos professores e o terror dos colegas. Por que me escolhera ele a mim, entre todos os estudantes da Universidade, para seu companheiro inseparável, é coisa que nunca cheguei a compreender perfeitamente. Minha simpatia por ele era facilmente explicável: fascinou-me; era para mim uma diversão intelectual de nova espécie. Mas é que em mim não encontrava ele o mesmo motivo de atração. Eu era, como ainda hoje, um indivíduo de qualidades vulgares, de espírito conservador, senão convencional. De qualquer maneira, porém, não tenho o espírito pesado, nem rígido, e a gravidade das leis mal influiu nele, de sorte que não demonstrei muita propensão para a profissão hereditária — e é possível que, inconscientemente, Vance encontrasse certa afinidade nesses traços do meu feitio. Há outra hipótese, sem dúvida muito pouco lisonjeira, e é que Vance, sentindo instintivamente em mim qualidades opostas, se apoiasse em mim como num esteio, compreendendo que a minha natureza era a antítese complementar da sua. Seja qual for, porém, a explicação, o certo é que andávamos sempre juntos, e que com o correr dos anos nossas relações vieram a se estreitar, a ponto de nos tornarmos inseparáveis.


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Depois de formado, fui trabalhar na firma de meu pai — Van Dine Davis — e, após cinco anos de enfadonha aprendizagem, entrei como sócio mais moço. Sou hoje o segundo Van Dine da firma Van Dine, Davis Van Dine, com escritórios na Broadway, 120. Ao tempo em que meu nome começou a aparecer no papel timbrado da firma, Vance voltava da Europa, onde vivera durante meu noviciado nas leis, e, tendo-lhe morrido uma tia, que o instituiu herdeiro principal, chamou-me ele para habilitá-lo à posse dos bens herdados.

Foi o começo de uma renovação da antiga amizade, cujos laços eram muito fortes. Como Vance tinha aversão por tudo o que se referia a negócios, com o tempo vim a ser encarregado de todas as suas transações, seu procurador, enfim. Seus negócios eram bastante numerosos para me tomarem todo o tempo, e ele suficientemente abastado para se dar ao luxo de um factótum pessoal e jurista, de mais a mais; assim foi que deixei o escritório e devotei-me exclusivamente às suas necessidades e caprichos.

Se é certo que até ao dia em que Vance me chamou para discutir a compra dos Cézanne eu tinha abrigado no coração algum secreto remorso por ter privado a firma Van Dine, Davis Van Dine dos meus modestos conhecimentos jurídicos, não é menos certo que tal remorso se dissipou para sempre naquela memorável manhã; porque, a partir do caso Benson, e durante quatro anos, tive o privilégio de conhecer a mais assombrosa série de casos criminais que jamais desfilou perante os olhos de um novato. Sem dúvida, os horrendos dramas que presenciei durante aquele período constituem um dos mais espantosos documentos secretos na história da polícia deste país.

Foi Vance o principal personagem desses dramas. Empregando um método analítico e interpretativo que, ao que eu saiba, nunca tinha sido até então aplicado a investigações criminais, conseguiu achar a solução de muitos casos em que tanto a Polícia como o Promotor Público tinham fracassado. Minhas relações com ele permitiram-me não só tomar parte em todos os casos em que ele interveio, mas também assistir à maior parte das discussões que teve de sustentar com os magistrados; e, como sou naturalmente metódico, conservei um registro completo desses casos. Anotava, além disso, tão claramente como mo permitia a memória, os métodos psicológicos inéditos que usava para determinar a culpabilidade, conforme ele os expunha. E foi uma sorte que eu tivesse feito esse trabalho desinteressado de anotação e transcrição, pois hoje, que as circunstâncias me permitem, quando menos o esperava, publicar esses fatos, acho-me em condições de apresentá-los com uma multidão de minúcias, com todas as suas nuanças e complicado desenvolvimento — tarefa que não me seria permitido cumprir sem meus numerosos apontamentos e recortes.

Afortunadamente, também, o primeiro caso que chamou a atenção de Vance, enredando-o nas suas malhas, foi o assassínio de Alvino Benson. Não só porque foi uma das mais famosas causas de Nova York, mas porque lhe proporcionou uma excelente oportunidade para desenvolver seus raros talentos de raciocínio dedutivo; e, por sua natureza e magnitude, orientou-lhe o interesse para um ramo de atividades até então estranho às sugestões do seu temperamento e predileções habituais.

Se bem que o próprio Vance tivesse sido, por um pedido feito um mês antes ao Promotor Público, o agente involuntário da quebra da rotina normal de sua vida, o caso se lhe impôs, repentina e inesperadamente. Tudo, de fato, caiu sobre nós, antes que tivéssemos acabado nosso almoço naquela manhã de meados de junho, e veio suspender todas as negociações concernentes à compra dos quadros de Cézanne. Quando, nesse mesmo dia, visitei as Galerias Kessler, duas das aquarelas que Vance particularmente desejava tinham sido vendidas; e estou convencido de que, apesar do seu sucesso na elucidação do mistério do assassínio de Benson, e de ter poupado a vida ao menos de um inocente, jamais se julgou compensado da perda daqueles dois pequenos esboços, que tanto o cativaram.

Fui introduzido na sala por Currie, um velho e singular criado inglês, que exercia as funções de despenseiro, criado de quarto, mordomo, e em algumas ocasiões especiais, cozinheiro. Encontrei Vance sentado em uma vasta poltrona, metido em um chambre de surá e chinelos de camurça cinzenta, e com o Cézanne, de Vollard, aberto sobre os joelhos.

— Desculpe-me por não me levantar, Van, — disse ele, cumprimentando-me distraído. — Tenho todo o peso da moderna evolução da arte a descansar sobre as pernas. Além disso, você sabe que me fatigo muito sempre que me levanto cedo, como os plebeus.

Folheava as páginas do livro, detendo-se de vez em quando para examinar uma ilustração.

— Este Vollard, — observou afinal, — foi até liberal com o nosso país, que amedronta a arte. Mandou uma coleção muito boa dos seus Cézanne. Examinei-a ontem, com a devida reverência, e, devo confessar, com indiferença... porque Kessler me vigiava; escolhi os quadros que desejo que compres hoje, assim que a Galeria se abra.

Deu-me um pequeno catálogo, que lhe servira de marcador de página.

— Uma estúpida incumbência, bem sei, — acrescentou, com um sorriso indolente. — Essas delicadas manchas com todo o seu papel branco, provavelmente não terão significação alguma para o seu espírito de jurista. É que você não sabe que elas são tão diferentes como um arrazoado perfeitamente datilografado. E você decerto imagina que algumas Nfiguras estejam de pernas para o ar, em completa desordem — uma delas está, de fato, invertida, e contudo nem Kessler o percebe. Mas não se zangue, amigo velho. São ninharias inexpressivas, mas muito lindas e valiosas, quando a gente considera que estarão valendo muito mais daqui a alguns anos. É na verdade um excelente emprego de capital, para uma criatura amante do dinheiro, infinitamente melhor do que aquela companhia "Eqüidade dos Juristas", sobre a qual você falava tão eloqüentemente, ao tempo da morte de minha tia Agatha. (*)

(*) De fato, as mesmas aquarelas que Vance comprou por 250 e 300 dólares, quatro anos mais tarde tinham triplicado de valor.


Uma das paixões de Vance (se podemos chamar paixão a um entusiasmo puramente intelectual) era a arte — não a arte nó seu aspecto limitado, pessoal, mas na sua significação mais universal. E a arte não era apenas o seu interesse dominante, mas a sua principal distração. Era uma autoridade no conhecimento de gravuras japonesas e chinesas; e ouvi dele uma vez uma dissertação improvisada, diante de alguns convidados, sobre figurinhas de Tanagra que, se tivesse sido publicada, constituiria uma deliciosa e instrutiva monografia.

Tendo recursos que lhe permitiam satisfazer seu instinto de colecionador, possuía uma linda coleção de quadros e objetos de arte. Essa coleção era heterogênea somente nos caracteres superficiais: cada peça que obtinha apresentava algum elemento, de forma ou linha, que a aparentava com todas as outras. Um conhecedor encontraria a unidade e coerência de todas as peças de que se cercou, ainda que estivessem profundamente separadas no tempo, ou no destino, ou na aparência exterior. Descobri em Vance um dos raros seres humanos que colecionam com um ponto de vista filosófico definido.

Sua residência na Rua 38, Leste — os dois andares superiores de uma velha casa. lindamente remodelada e em parte reconstruída, com aposentos espaçosos e tetos altos — estava cheia, mas não atravancada de raros espécimes de arte oriental e ocidental, antiga e moderna. Seus quadros vinham desde os primitivos italianos até Cézanne e Matisse; e na sua coleção de desenhos originais figuravam trabalhos tão apartados como os de Miguel Ângelo e Picasso. Suas gravuras chinesas constituíam uma das mais belas coleções particulares do país, e havia entre elas muitos exemplares de Ririomin, Rianchu, Jinkomin, Kakei e Mokkei.

— Os chineses — disseme Vance uma vez — são na verdade os maiores artistas do Oriente. Foi o trabalho desses homens que exprimiu mais intensamente um largo espírito filosófico. Os japoneses, ao contrário, são superficiais: vai larga distância, na verdade, entre o souci pouco mais que decorativo de Hokusai e um Ririomin, que revela um pensamento profundo e senso artístico consciente. Até depois de degenerada, sob os manchais, a arte dos chineses mostra uma profunda qualidade filosófica — uma sensibilidade espiritual, por assim dizer. E nas modernas cópias de cópias, a que chamam estilo bunjinga, encontramos quadros de sentido profundo.

A universalidade do gosto de Vance em arte era notável. Sua coleção era tão variada como a de um museu. Compreendia uma ânfora negra, toda lavrada, de Amasis; um vaso pré-corintiano no estilo egeano; baixelas de Koubatcha e de Rhodes; cerâmica ateniense; uma pia italiana para água benta, de cristal de rocha, do século XVI; baixelas de estanho do período dos Tudors (muitas peças traziam a rosa dobrada de hall-mark) (*); uma placa de bronze de Vallfogona; alguns bronzes etruscos; um budista greco-indiano; uma estatueta da deusa Kuan Yin, da Dinastia Ming; lindíssimas gravuras de madeira do Renascimento; e alguns espécimes de marfim esculpido, bizantinos, carolíngios, e franceses primitivos.

(*) Marca do contraste, gravada pela Corporação dos Ourives de Londres, em objetos de ouro e prata, para garantir a sua autenticidade.

(Nota do Tradutor)


Seus tesouros egípcios compreendiam um jarro de ouro de Zakazik, uma estatueta de Lady Nai (tão bela como a do Louvre), duas lindas estrelas cinzeladas do Primeiro Período Tebano, várias pequenas esculturas, raras representações de Hapi e Amset, e diversas taças Arrentino, trazendo esculpidos dançarinos kalathiscos. Em cima de uma das suas estantes do tempo de James I, na biblioteca, onde se achava a maior parte das pinturas e esboços modernos, via-se um belo grupo de escultura africana — máscaras cerimoniais e estatuetas fetiches da Guiné Francesa, do Sudão, da Nigéria, da Costa do Marfim e do Congo.

Um desígnio determinado me levou a falar tão insistentemente do instinto artístico de Vance, porque para bem compreender as aventuras melodramáticas que começaram para ele naquela manhã de junho, é necessário ter uma idéia geral das tendências do homem e de suas secretas inclinações. Seu interesse pela arte foi fator importante — diria mesmo dominante — na sua personalidade. Nunca vi outro homem que se lhe assemelhasse tanto — um espírito tão diversificado na aparência e, ainda assim, tão fundamentalmente coerente. Era o que muitos chamariam de diletante, mas a designação seria descabida. De invulgar cultura, aristocrata de nascimento e instinto, conservava-se rigidamente afastado do mundo comum dos outros homens. Desprendia-se dele um indefinível desprezo por tudo o que fosse inferioridade. A grande maioria dos que com ele tinham contato consideravam-no esnobe; contudo, não havia traço algum de simulação no seu desdém e condescendência. Seu esnobismo tinha tanto de social como de intelectual. Detestava a estupidez mais ainda, creio-o, do que a vulgaridade ou o mau gosto. Mais de uma vez ouvi-lhe a citação da célebre sentença de Fouché: "Cest plus qu'un crime; c'est une faute." E pensava literalmente assim. Era francamente satírico, mas raras vezes mordaz; suas sátiras eram petulantes, juvenalianas. Talvez a melhor definição que lhe caiba seja: um espectador da vida, enfadado e desdenhoso, mas profundamente sagaz. Interessavam-no em alto grau todas as reações humanas, mas era o interesse do cientista, não do humanitário. Em todo caso, era homem de raro encanto pessoal. E até os que não podiam admirá-lo, sentiam igualmente que não podiam deixar de gostar dele. Seus modos um tanto quixotescos e um leve sotaque inglês — herança do tempo que passara em Oxford — podiam parecer afetação aos que não o conheciam bem. Mas nada, ou muito pouco, havia nele de poseur.

Era notavelmente belo, apesar da boca austera e cruel, como as bocas de alguns dos retratos dos Medici (*); além disso, mostrava certa ironia, no arrogante arquear das sobrancelhas. A despeito da aquilina severidade das linhas, o.rosto era muito expressivo. A testa, cheia e inclinada, era a fronte do artista antes que a do erudito. Os olhos, frios e cinzentos, muito separados. Nariz direito e delgado, queixo curto e proeminente, com uma fenda extraordinariamente profunda. Quando vi John Barrymore há pouco, no Hamlet, lembrei-me um pouco de Vance; e já anteriormente, numa cena de César e Cleópatra, representada por Forbes-Robertson, tivera uma impressão semelhante. (**)

(*) Particularmente os retratos de Bronzino, de Pietro de Medici e Cosimo de Medici, na Galeria Nacional, e o medalhão de Vasari, de Lorenzo de Medici, no Vecchio Palazzo, de Florença.

(**) Certa vez, por motivo de uma sinusite, Vance mandou tirar uma radiografia da cabeça, e na papeleta do diagnóstico foi ele descrito como "um acentuado dolicocéfalo" e um "nórdico desproporcionado". Vinham mais os dados: índice cefálico, 75; nariz leptorrino com índice 48; ângulo facial, 85; índice vertical, 72; índice súpero-facial, 54; distância interpupilar, 67; queixo masognata, com um índice de 103; sela túrcica, anormalmente grande.

 

Tinha cerca de 1,80 m de altura, era esbelto, dava uma impressão de força e resistência nervosa. Destro espadachim, fora o capitão do quadro de esgrima da Universidade. Mediocremente apaixonado pelos desportos exteriores, tinha como que um dom de fazer bem todas as coisas, sem nenhuma prática especial. No golfe, seu handicap era apenas três; e uma vez jogou no nosso time, no campeonato de pólo que disputamos com a Inglaterra. Detestava longas caminhadas, e não andaria cem metros a pé, se achasse meio de ir a cavalo. Sempre elegante no trajar — escrupulosamente correto nos menores detalhes — ainda que não exagerado. Passava um tempo considerável nos clubes; seu preferido era o Stuyvesant, porque, explicou-me, seus membros vinham na maior parte das fileiras da política e do comércio, e ele não seria ali jamais arrastado a discussões que requeressem algum esforço mental. Ouvia de vez em quando as óperas mais modernas, e era freqüentador assíduo dos concertos sinfônicos e recitais de música de câmara.

Cabe notar que era um dos mais destros jogadores de pôquer que tenho visto. E menciono este fato, não simplesmente por ser extraordinário e significativo que um homem do tipo de Vance preferisse esse jogo democrático ao bridge ou xadrez, por exemplo; mas porque grande parte do seu conhecimento da psicologia humana adquiriu-o jogando o pôquer.

Seu conhecimento da psicologia era realmente profundo. Dotado de uma faculdade de julgamento das pessoas instintiva e acurada, o estudo e a leitura tinham coordenado e racionalizado este dom em grau surpreendente. Conhecia bem os princípios acadêmicos da psicologia, e todos os estudos que fizera na Universidade ou se basearam nesse assunto, ou se subordinaram a ele. Enquanto eu me confinava num círculo estreito de prejuízos e contratos, direito privado e público, provas e autos, Vance fazia o reconhecimento de todo o campo da experiência cultural. Fizera o curso de história das religiões, dos clássicos gregos, de biologia, economia política e social, filosofia, antropologia, literatura, psicologia teórica e experimental, línguas antigas e modernas (*). Mas o que mais o interessava, creio eu, eram os cursos de Münsterberg e de William James.

(*) "A cultura, — disseme Vance, depois que nos tornamos a encontrar, — é poliglota; e o manejo de várias línguas é essencial ao conhecimento dos fatos intelectuais e estéticos do mundo. Os clássicos gregos e latinos são, de forma especial, corrompidos pelas traduções". Cito esta observação, porque suas onívoras leituras em outras línguas que não o inglês, além da prodigiosa retentiva de sua memória, transpareciam-lhe na conversação. E, embora possa parecer a muitas pessoas que ele fosse por vezes pedante ao falar, tenho procurado citá-lo literalmente na esperança de apresentar um retrato do homem, tal qual ele era.


Seu espírito era fundamentalmente filosófico — isto é, filosófico no sentido mais geral. Singularmente isento de sentimentalismos convencionais e de superstições vulgares, descobria facilmente, sob a superfície dos atos humanos, os impulsos e motivos que os determinaram. Era, além disso, resoluto tanto em evitar atitudes que cheirassem a credulidade, como no apego à fria e lógica exatidão nos processos mentais.

— Enquanto não abordamos todos os problemas humanos, — observou ele uma vez, — com a frieza e a indiferença de um médico examinando uma cobaia amarrada a uma tábua, temos muito pouca probabilidade de alcançar a verdade.

Levava Vence uma vida social ativa mas não animada — concessão que fazia a vários laços de família. Mas não era um animal social. Não me lembro de ter encontrado jamais outro homem com o espírito gregário tão pouco desenvolvido. E somente compelido é que participava de atividades sociais. De fato, um de seus negócios "obrigatórios" o retivera na noite anterior àquele memorável almoço de junho; não teríamos combinado antes a compra dos Cézanne. Vence falou largamente a respeito enquanto Currie nos servia morangos e ovos à Bénédictine. Mais tarde, dei profundas graças ao Deus da Coincidência pelo fato de as coisas se terem passado assim, porque se ele estivesse dormindo pacificamente às 9 horas, quando o Promotor chegou, eu teria perdido quatro dos mais interessantes anos de minha vida, e muitos dos mais perversos e atrevidos malfeitores de Nova York estariam até agora em liberdade.

Acabávamos de sentar para tomar a segunda xícara de café e fumar um cigarro, quando Currie, que atendera a um violento toque de campainha, introduziu o Promotor Público.

— Valha-nos Deus! — exclamou ele, erguendo as mãos em cômico espanto. — O maior flâneur e conhecedor de arte de Nova York já está de pé!

— E rubro de vergonha par isso, — replicou Vance.

Era evidente, contudo, que o Promotor não estava de ânimo alegre. Tornou-se repentinamente sério.

— Vance, trouxe-me aqui um caso grave. Tenho muita pressa, e venho apenas para cumprir minha promessa... Alvino Benson foi assassinado.

Vance ergueu as sobrancelhas lentamente.

— Realmente? — balbuciou ele. — Mas... bem que ele o merecia! E de modo algum vejo motivo para que você se amofine com isso. Sente-se e tome uma xícara deste café de Currie, que está incomparável.

E, sem esperar que o outro protestasse, ergueu-se e tocou a campainha.

Markham hesitou um ou dois segundos.

— Ora! Dois minutos mais não vão fazer diferença... Mas é só um gole.

E sentou-se defronte de nós.


II

 

NO TEATRO DO CRIME

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 9 da manhã)

 


John F. X. Markham, como já disse, fora eleito Promotor Público de Nova York, pela chapa Reforma Independente, durante uma das reações periódicas da cidade contra o Tammany Hall. Serviu os quatro anos, e teria provavelmente sido reeleito, se a chapa não tivesse sido dividida pelas trapaças políticas dos adversários. Era um trabalhador infatigável, e durante sua administração a repartição desempenhou papel saliente nas investigações civis e criminais. Incorruptível, granjeou não somente a admiração dos seus partidários, mas ainda a confiança dos que o haviam combatido.

Pouco depois de eleito, um jornal chamou-o de "Cão de Guarda", alcunha que se lhe apegou até ao fim do quadriênio. E, na verdade, foi tão escrupuloso e tão feliz nas suas investigações que ainda hoje seu nome é citado em discussões jurídicas e políticas.

Era Markham um homem alto e forte, já na casa dos quarenta; a aparência de juventude do rosto bem barbeado era logo desmentida pelos cabelos grisalhos. Não se podia dizer que fosse belo, segundo o padrão comum, mas tinha um ar de inconfundível distinção, e possuía uma soma de cultura social raramente encontrada em nossos modernos funcionários públicos. É certo que era de temperamento brusco e vingativo; mas essa rudeza esteava-se em sólida camada de boa educação, não se tratando — como é tão vulgar — de uma subestrutura! posseira mal revestida de uma crosta de delicadeza.

Quando não o atormentavam os cuidados e deveres do cargo, era o mais gentil dos homens. Mas bastas vezes o vi, em minhas relações contínuas com ele, mudar a atenção delicada em severa autoridade. Então dir-se-ia que uma nova personalidade — dura, indomável, símbolo da eterna justiça — despontara repentinamente no corpo de Markham; fui muitas vezes testemunha dessa transformação.

E naquela manhã, quando ele se sentou na minha frente, na sala de Vance, a dureza de expressão do rosto denunciava a profunda perturbação que lhe causara o assassínio de Alvino Benson.

Tomou rapidamente o café e, quando depunha a xícara na mesa, Vance, que o observava com ar divertido, perguntou-lhe:

— Mas por que está você assim preocupado com a morte de Benson? Não é possível que seja você o assassino, pois não?

Markham não deu ouvidos à caçoada.

— Vou à casa de Benson. Quer ir comigo? Você me pediu para tomar parte numa experiência e passei por aqui para cumprir a promessa que lhe fiz.

Lembrei-me então de que algumas semanas antes, quando se discutia, no Club Stuyvesant, o assunto dos crimes célebres de Nova York, Vance manifestara o desejo de acompanhar o Promotor em uma de suas investigações; e Markham prometera levá-lo consigo no primeiro caso importante que se apresentasse. O interesse de Vance pela psicologia das ações humanas sugerira o desejo, e a sua amizade com Markham, que datava de longos anos, tornara possível a realização.

— Você não esquece nada, não? — replicou Vance negligentemente. — É um dom admirável, ainda que nem sempre seja agradável.

Olhou para o relógio em cima da lareira: faltavam poucos minutos para as nove.

— Mas que hora inconveniente! Imagine se alguém me visse...

Markham moveu-se na cadeira, impaciente.

— Está bem, se você julga que a satisfação de sua curiosidade o compensa do vexame de ser visto em público às 9 horas da manhã, apresse-se. Claro que não vou levá-lo de roupão e chinelos. E como não posso esperar mais de cinco minutos que você se vista...

— E por que essa pressa, meu velho? — perguntou Vance, bocejando. — O sujeito morreu, sabe? Ele não pode escapar!

— Vamos, mexa-se. Este negócio não é um brinquedo. É muito sério, e pelo jeito vai causar um grande escândalo. Mas que faz você?

— Eu? Sigo humildemente o grande vingador do povo, — respondeu Vance, erguendo-se e fazendo uma reverência.

Tocou a campainha e ordenou a Currie que lhe trouxesse a roupa.

— Vou a uma recepção que o Sr. Markham convocou diante de um cadáver, e preciso de uma roupa elegante. Está bastante quente para vestir algo de seda?... E uma gravata cor de alfazema, pelo menos.

— Espero que não leve também seu cravo vermelho, — resmungou Markham.

— Ora, ora! — murmurou Vance. — Você, sem dúvida, esteve lendo Hichens. Tal heresia em um Promotor Público! Não, você bem sabe que nunca uso nada na lapela! Os enfeites caíram em descrédito. Os únicos remanescentes dessa prática são casquilhos e tocadores de saxofone... Mas diga-me alguma coisa acerca do falecido Benson.

Estava já vestido, com o auxílio de Currie, e gastara nisso 0 mínimo de tempo possível. Sob os motejos procurava ocultar a verdadeira avidez com que acolhia a nova experiência, que descortinava ao seu espírito vivo e observador dramáticas visões.

— Você conheceu um pouco Benson, creio-o, — disse o Promotor. — Pois bem, esta manhã, muito cedo, sua governanta telefonou para o posto policial comunicando que acabava de encontrá-lo sentado na sua cadeira preferida, na sala, completamente vestido, e com um tiro na cabeça. A notícia foi transmitida ao Quartel-General da Polícia, e meu assistente de serviço avisou-me imediatamente. Estava resolvido a deixar o caso seguir os trâmites normais da polícia, mas meia hora depois o major Benson, irmão de Alvino, telefonou-me, pedindo-me, como um favor especial, que me encarregasse dele. Conheço o major há vinte anos, e não me pude recusar. Assim, almocei às pressas e saí. A casa é na Rua 48, Leste. Quando passava na sua esquina, lembrei-me do seu pedido, e vim aqui para ver se você queria ir.

— Uma excelente idéia, — murmurou Vance, ajustando a gravata em frente de um espelhinho policromo ao lado da porta.

Depois, voltando-se para mim:

— Venha, Van. Contemplaremos o defunto Benson, e estou certo de que algum dos policiais de Markham descobrirá que eu detestava aquele atrevido e me acusará do crime; procurarei salvar-me, é claro, com o meu talento jurídico à mão... Nada de objeções — não é, Markham?

— Sem dúvida, — respondeu o outro prontamente, mas compreendi que preferia não me levar. Eu estava, porém, muito interessado no assunto para fazer uma objeção cerimoniosa, e acompanhei-os.

Quando seguíamos pela Avenida Madison, refletia eu, não sem estranheza, na singular amizade que ligava aqueles dois homens tão dessemelhantes, que seguiam a meu lado no auto. Markham — reto, formalista, um nadinha austero, e muito escrupuloso em todos os seus atos; Vance — distraído, ativo, afável e extravagantemente céptico em face das mais terríveis realidades. E no entanto essa diversidade de temperamentos parecia, de algum modo, a verdadeira pedra angular de sua amizade; era como se cada um visse no outro um inatingível campo de experiência e sensação, que ele próprio não possuía. Markham representava para Vance o sólido e imutável realismo da vida, enquanto que para aquele Vance simbolizava o espírito livre de cuidados, exótico, manhoso, de aventura intelectual. Sua intimidade, de fato, era maior do que parecia, e a despeito das exageradas lamentações de Markham sobre as atitudes e opiniões do outro, eu creio que ele respeitava a inteligência de Vance mais profundamente do que a de qualquer outro homem.

Parecia preocupado e carrancudo, rodando pelas ruas da cidade. Ninguém falara desde que saíramos de casa, mas, ao entrarmos na Rua 48, Vance perguntou:

— Qual é a etiqueta para estas cerimônias matinais, além de tirar o chapéu diante do corpo?

— Você conserva o chapéu na cabeça, — resmungou Markham.

— Ah! Como nas sinagogas, então? Que interessante! Por acaso a gente tira também os sapatos, para não confundir as pegadas?

— Não, — disse Markham. — Os estranhos conservam-se completamente vestidos — no que a função difere das reuniões vespertinas do seu meio elegante.

— Meu caro Markham! — respondeu Vance dando à voz entonação de tristeza, — lá aparece outra vez o terrível moralista que existe na sua natureza. Esta sua observação ficaria muito bem num membro da Liga Epworth.

Markham estava muito preocupado para acompanhar a tagarelice de Vance.

— Quero preveni-lo de uma ou duas coisas, — disse ele solenemente. — Segundo parece, o caso vai provocar grande ruído, e motivará ciúme e disputas, por causa da rivalidade com a polícia. Não me admirarei se for atacado e maltratado pela polícia por me ter metido neste assunto. Assim, convém que tome cautela e não os irrite. Meu ajudante, que já está lá, supõe que o Inspetor entregou o caso a Heath, um sargento do Departamento de Homicídios. Ora, este deve estar convencido, até agora, de que eu me encarreguei do assunto somente para ver meu nome nos jornais.

— Você não é seu superior hierárquico?

— Sim; e é isso mesmo o que torna a situação mais delicada... Oxalá o major não me tivesse falado!

— Oh! — disse Vance, suspirando. — O mundo está cheio de sujeitos como Heath. Que estupidez!

— Mas você está enganado, — apressou-se a dizer Markham. — Heath é um homem de bem; é na verdade uma criatura excelente. O fato mesmo de ter sido incumbido deste caso demonstra que interesse despertou ele na Chefatura. Ninguém ali me mostrará hostilidade por ter intervindo, mas eu é que desejo que a atmosfera seja tranqüila. Heath não vai gostar de me ver trazer dois desconhecidos; por isso. Vance, peço-lhe que imite a modesta violeta...

— E eu que prefiro a flamante rosa, se isso não o incomoda, — protestou Vance. — Não importa, daqui a pouco oferecerei ao suscetível Heath um de meus mais escolhidos cigarros Régie, de ponta cor-de-rosa.

— Se você fizer isso, — observou Markham sorrindo, — ele o prenderá como suspeito.

Paramos de repente em frente a uma velha residência de pedra escura, à direita da Rua 48, perto da 6.a Avenida. Era de muito boa aparência, construída em um terreno de vinte e cinco pés, numa época em que os arquitetos da cidade ainda davam atenção à estabilidade e à beleza. O desenho era vulgar, de acordo com as outras casas do grupo, mas esculturas de pedra na fachada e por cima das janelas davam-lhe um toque de luxo e certa personalidade.

Um patiozinho ladrilhado, mais baixo que a rua, separava-a do edifício, e uma alta grade vedava a frente. A única porta de entrada ficava no cimo de uma escada de dez largos degraus de pedra. À direita da entrada, duas grandes janelas protegidas por pesadas grades de ferro.

Considerável multidão de curiosos reunira-se em frente a casa; e nos degraus esperavam alguns jovens que, pela aparência de atividade, tomei por jornalistas. Um guarda abriu a porta do nosso táxi, e saudou Markham com um respeito exagerado, procurando depois, ostensivamente, abrir passagem para nós por entre a multidão embasbacada de ociosos. Outro guarda, parado no pequeno vestíbulo, reconhecendo Markham, manteve aberta a porta para nos dar passagem, e cumprimentou o Procurador com grande dignidade.

— "Ave, Caesar, te salutamus", — cochichou Vance, ironicamente.

— Sossegue, — murmurou Markham, — tenho amofinações que cheguem sem suas citações.

Quando atravessávamos a porta, de maciço carvalho esculpido, veio ao nosso encontro o ajudante Dindwiddie, um rapaz sério, trigueiro, rosto prematuramente enrugado, e que aparentava suportar sobre os ombros a maior parte das desgraças da humanidade.

— Bom dia, chefe, — disse, saudando Markham, como se se sentisse aliviado com a sua chegada. — Muito me alegro de vê-lo chegar. Este caso desvendará muitas coisas. É um assassinato premeditado.

Markham, concordando melancòlicamente, olhou para a sala e indagou:

— Quem está aí?

— Todos, a começar pelo inspetor-chefe, — respondeu Dindwiddie, encolhendo os ombros, desanimado, como se aquela presença fosse de mau agouro.

Nesse momento um homem de meia-idade, alto, volumoso, de pele rosada e bigode branco, aparado rente, apareceu à porta da sala. Ao ver Markham, veio direto a ele de mão estendida. Reconheci o inspetor-chefe O'Brien, do Departamento de Polícia. Depois dos cumprimentos de estilo, eu e Vance fomos apresentados. Saudou-nos a ambos, silencioso, e voltou à sala, com Markham e Dindwiddie, e eu e Vance os seguimos.

 

 

 

O salão, amplo, quase quadrado, e de teto alto, tinha acesso por uma larga porta dupla. Duas janelas davam para a rua, e na parede oposta, à direita, outra janela abria sobre um pátio ladrilhado. À esquerda desta janela, uma porta corrediça comunicava com a sala de jantar.

Era um tanto extravagante o luxo do salão. Quadros representando cenas hípicas, encimados por troféus de caça, ornavam as paredes. O soalho quase desaparecia, coberto por um tapete oriental, de cores vivas. Em frente à porta de entrada, a lareira com o manto de mármore cinzelado. Ã direita, colocado em diagonal ao canto, um piano de armário de nogueira com aplicações de cobre. Havia ainda uma estante envidraçada, de acaju, com cortinas floreadas, cheia de livros, um sofá, um tamborete veneziano, baixinho, incrustado de madrepérola, e, sobre uma mesinha de teca, um grande samovar de cobre. Uma mesa ao centro, de seis pés de comprimento, também marchetada de metal. Ao lado da mesa, perto do vestíbulo, com as costas para as janelas, estava uma espreguiçadeira de vime, com o espaldar alto, em forma de leque.

Nesta cadeira repousava o corpo de Alvino Benson.

Embora eu tivesse servido dois anos na frente, na Primeira Guerra Mundial, e tenha visto a morte sob aspectos terríveis, não pude reprimir um forte sentimento de desagrado à vista daquele homem assassinado. Na França, a morte parecia uma parte inevitável da rotina diária, mas aqui todo o ambiente era oposto à idéia de tal violência. O radiante sol de junho inundava o salão, e pelas janelas chegava até nós o contínuo rumor da cidade, que, apesar de suas cacofonias, dá uma impressão de paz e segurança, que acompanham o curso social da vida.

Tão natural era a postura do corpo, reclinado na cadeira, que se diria ia voltar-se e perguntar-nos por que lhe violávamos a intimidade. A cabeça repousava no alto espaldar. A perna direita descansava cruzada sobre a esquerda. O braço direito apoiava-se à mesa, e o outro no braço da poltrona. Mas o que dava à sua atitude maior impressão de naturalidade era um livro que conservava na mão, aberto, marcando ainda o polegar a página que sem dúvida lia, quando o mataram. (*)

(*) O livro era Só Negócios, de O. Henry, e, fato curioso, a página em que estava aberto era a da história intitulada "Um relatório municipal".


O tiro fora disparado de frente, e ferira-o na testa; o pequeno orifício circular da bala coberto agora de um coágulo de sangue, enegrecera. Uma grande mancha escura, no tapete, por detrás da cadeira, indicava a extensão da hemorragia causada pela passagem da bala através do crânio. Não fossem estes sinais, dir-se-ia que ele apenas interrompera a leitura para repousar um momento.

Vestia uma velha jaqueta e calçava chinelos de feltro vermelho, mas trazia ainda a calça e camisa de cerimônia, a que tirara o colarinho. Desabotoara a gola, sem dúvida para estar mais à vontade. Não era homem de físico atraente; quase calvo e mais gordo que delgado.

Era bochechudo, e a flacidez do pescoço, sem a sujeição do colarinho, avultava mais. Estremeci, diante dessa figura desagradável à vista, e voltei-me para os circunstantes.

Dois sujeitos agigantados, de pés e mãos enormes, chapéus de feltro puxados para a nuca, inspecionavam as grades das janelas. Ao que parecia, davam particular atenção aos pontos onde as barras pegavam na alvenaria; um deles até segurara uma das grades com ambas as mãos, e sacudia-a, como um macaco, para avaliar-lhe a resistência. Outro, de mediana estatura, e ar resoluto, com um bigodinho louro, inclinado sobre a chaminé, examinava com atenção o empoeirado cano de gás. Do outro lado da mesa um homem corpulento, num terno de sarja azul e chapéu-de-côco, examinava, com as mãos nos quadris, o mudo rosto reclinado na cadeira. O queixo quadrado, de prognata, era solidamente implantado. Os olhos, de um azul pálido, duros e apertados, fixavam intensamente o cadáver de Benson, como se pretendesse, tão-somente pelo poder de concentração, arrancar-lhe o segredo de sua morte.

Junto à janela do fundo, outro homem, de estranho semblante, examinava com uma lente um pequeno objeto. Reconheci, pelos retratos que já conhecia, o capitão Carlos Hagedorn, o mais célebre e afamado perito em armas de fogo de toda a América. Era um homem alto, largo de ombros, não muito simpático, de seus 50 anos; a roupa, preta e lustrosa, ficava-lhe muito folgada. O casaco, muito curto atrás, caía-lhe na frente até aos joelhos, e as calças ensacavam sobre os tornozelos, fazendo grotescas pregas. A cabeça, anormalmente desenvolvida, era redonda, e as orelhas pareciam enterradas no crânio. Um bigode áspero e grisalho ocultava-lhe completamente a boca, e formava uma espécie de lambrequim sobre os lábios. Há mais de trinta anos que o Departamento de Polícia de Nova York recorria a seus serviços, e ainda que lhe ridicularizassem, na Chefatura, as maneiras e o vestuário, era ali profundamente respeitado. Sua palavra era sempre acatada, tanto no que se referia a armas de fogo, como a ferimentos por elas feitos.

Ao fundo da sala, ao pé da porta da sala de jantar, ainda outros homens conversavam: o inspetor William M. Moran, comandante-chefe da Divisão de Investigadores, e o sargento Ernesto Heath, do Departamento de Homicídios, de quem já nos falara Markham.

Quando entramos na sala, acompanhando o inspetor-chefe O'Brien, todos interrogaram suas ocupações por um momento, e olharam para o Promotor Público com um ar desconfiado, mas respeitoso.

Apenas o capitão Hagedorn, depois de envesgar um rápido olhar para o lado de Markham, voltou à inspeção do delicado objeto que tinha na mão, com um ar abstrato e indiferente, que fez sorrir Vance.

Adiantaram-se o inspetor Moran e o sargento Heath, com grande dignidade; seguiu-se o inevitável aperto de mão — cerimônia que mais tarde observei ser uma espécie de rito entre a polícia e os membros da Promotoria do Distrito — e a nossa apresentação. Em poucas palavras, Markham explicou a nossa presença. O inspetor sacudiu amàvelmente a cabeça, mostrando que aceitava a intromissão, mas notei que Heath fazia que não ouvia a exposição de Markhan, e continuou a agir como se não existíssemos.

Em nada se assemelhava o inspetor Moran aos demais que ali se achavam. Regulava sessenta anos, tinha cabelos brancos e bigode escuro. Trajava irrepreensivelmente. Dava mais a idéia de um corretor bem sucedido de Wall Street do que de um oficial da polícia. (*)

(*) Soube mais tarde que o inspetor Moran fora presidente de um grande banco do Estado, falido durante o pânico de 1907; e que na administração Gaynor fora indicado para o posto de Comissário de Polícia.


— Confiei o caso ao sargento Heath, Sr. Markham, — explicou ele em uma voz melodiosa. — Parece que vai dar-nos muito que fazer. O próprio inspetor-chefe achou que devia animar as investigações iniciais, e veio trazer-nos o apoio moral da sua presença: está aqui desde às oito horas.

O inspetor O’Brien deixara-nos assim que entrou na sala, ·e do vão da janela da frente observava o trabalho com ar grave e impenetrável.

— Bem, — disse Moran, — vou-me embora. Tiraram-me da cama às sete e meia, e ainda não almocei. Agora que você está aqui, já não sou necessário... Até logo.

E tornou a apertar-nos as mãos.

Depois que ele saiu, Markham voltou-se para o seu ajudante:

— Dindwiddie, peço-lhe que se encarregue destes dois moços. São recrutas e querem acompanhar nosso trabalho. Explique-lhes as coisas enquanto falo com o sargento Heath.

Dindwiddie aceitou sem relutância a incumbência. Talvez ·porque lhe trazia o meio de dar vazão à sopitada excitação.

Voltamo-nos todos os três para o corpo do homem assassinado — o eixo trágico do drama, afinal — e ouvi Heath dizer, colérico:

— Suponho que veio para se encarregar do assunto, Sr. Markham?

Dindwiddie e Vance conversavam, e eu olhei para Markham com interesse, lembrando-me do que nos dissera sobre a rivalidade entre o Departamento de Polícia e a Promotoria. Ele sorriu amàvelmente e, com um movimento lento, apertou a mão de Heath.

— Não, sargento. Estou aqui para trabalhar com você, e quero que nossas relações sejam definidas desde já. De fato, não estaria aqui agora, se o major Benson não me tivesse telefonado, pedindo minha ajuda. Particularmente, desejo que meu nome não seja mencionado. Todos sabem — ou ficarão sabendo agora — que o major é um velho amigo meu; assim, será melhor, por todos os motivos, que minha intervenção no caso fique ignorada.

Heath murmurou alguma coisa que não pude apanhar, mas vi que serenara. Como todos os que tinham relações com Markham, sabia o que valia a sua palavra, e pessoalmente simpatizava com o Promotor.

— Se alguma honra advier deste caso, — continuou Markham, — será para o Departamento de Polícia; portanto, julgou que é melhor falar com os jornalistas... E, — acrescentou muito naturalmente, — se aparecer alguma censura, seus homens terão de arcar com ela também...

— É justo, — assentiu Heath.

— E agora, sargento, mãos à obra.


III

 

UMA BOLSA DE MULHER

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 9h30)

 


O Promotor e Heath aproximaram-se do cadáver, e contemplaram-no com atenção.

— Veja, — disse Heath, — atiraram de frente. Tiro certeiro, e forte também, pois a bala atravessou o crânio e foi bater ali no madeiramento da janela, — continuou, mostrando um ponto no painel, a curta distância do soalho, junto à cortina da janela mais próxima do vestíbulo. — Encontramos a lasca, e o capitão examina a bala.

E voltando-se para o perito:

— Então, capitão, há alguma coisa especial?

Hagedorn levantou vagarosamente a cabeça e encarou Heath com seu olhar de míope. Depois de alguns movimentos desajeitados, respondeu lentamente:

— Bala militar 45. Colt automático.

— Pode dizer de que distância foi disparado o tiro? — perguntou Markham.

— Sim, senhor, posso, —.replicou Hagedorn na sua monótona lentidão. — Entre cinco e seis pés, provavelmente.

— Provavelmente... — murmurou Heath com desdém. — Pode contar como certo, se o capitão o diz. Veja o senhor, nada menor do que uma bala 44 ou 45 pode matar um homem, e essas balas militares de aço atravessam um crânio como se fosse um queijo. Mas para ir incrustar-se no madeiramento, o tiro tinha de vir de muito perto; e, como não há sinal de pólvora no rosto, pode-se apostar em como a distância que o capitão deu é exata. Nesse instante ouvimos abrir e fechar a porta da frente e entraram o Dr. Doremus, chefe dos médicos legistas, e seu assistente. O médico apertou a mão de Markham e do inspetor O’Brien, e cumprimentou amàvelmente Heath.

— Sinto não ter podido vir mais cedo, — desculpou-se. Era um homem nervoso, com o rosto marcado de cicatrizes e as maneiras de um corretor de imóveis.

— Que aconteceu aqui? — perguntou logo, fazendo uma careta ao ver o corpo.

— É o senhor quem no-lo vai dizer, doutor, — retrucou Heath.

O dr. Doremus aproximou-se do assassinado com a indiferença do médico já endurecido por um longo tirocínio. Examinou atentamente o rosto — sem dúvida à procura de sinais de pólvora. Olhou para o orifício da testa, depois para a ferida irregular da nuca. Moveu os braços do morto, dobrou-lhe os dedos, inclinou-lhe um pouco a cabeça para o lado. Tendo assim verificado o estado de rigor mortis, voltou-se para Heath:

— Podemos estendê-lo naquele sofá? Heath indagou de Markham:

— Pode-se fazer isso?

Como Markham assentisse, acenou para os dois homens das grades e ordenou-lhes que deitassem o corpo no divã. A rigidez da morte conservava os membros encolhidos, e o doutor e seu assistente tiveram de estendê-los. Foi então despido o corpo, e o Dr. Doremus examinou-o cuidadosamente, à procura de outros ferimentos. Prestou particular atenção aos braços; abriu bem ambas as mãos e examinou-lhes as palmas. Afinal ergueu-se e enxugou as mãos em um grande lenço de seda de várias cores.

— A bala atravessou o frontal esquerdo, — anunciou ele. — Feriu um ângulo reto, atravessando completamente o crânio. O orifício de saída é na região occipital esquerda — base do crânio. Acharam a bala, não? Estava acordado quando o alvejaram, e a morte foi instantânea — provavelmente nem soube de que morria... Foi mais ou menos, segundo creio, há umas oito horas, talvez mais...

— Pelas doze e meia, para dar um tempo exato? — perguntou Heath.

O médico olhou para o relógio.

— É isso. Nada mais?

Ninguém respondeu, mas depois de breve pausa o inspetor-chefe disse:

— Desejávamos ter o seu laudo hoje, doutor.

— Perfeitamente — respondeu ele, fechando o estojo clínico e entregando-o ao assistente. — Mas levem o corpo ao Necrotério o mais cedo possível.

Depois de uma breve cerimônia de apertos de mão, ele saiu apressadamente.

Heath voltou-se para o investigador que estava parado ao pé da mesa quando ele entrou.

— Burke, telefone para a Chefatura, para que venham buscar o cadáver, e diga que o vistam. Depois volte para o escritório e espere-me.

Burke cumprimentou e desapareceu.

Heath dirigiu-se então a um dos homens que tinham estado inspecionando as grades das janelas da rua.

— Que achaste, Snitkin?

— Nada, sargento. Fortes como as de uma prisão. Ninguém poderia passar através destas janelas.

— Muito bem, — disse Heath. — Agora vocês dois vão com Burke.

Depois que eles saíram, ativo homem de terno de sarja azul e chapéu-de-côco, cuja esfera de atividade parecia concentrar-se na lareira, pôs na mesa duas pontas de cigarro.

— Encontrei isto no cano do gás, sargento, — explicou ele sem grande entusiasmo. — Não é muita coisa, mas nada mais achei.

— Está bem, Emery, — disse Heath, deitando um olhar descontente para o achado. — Você não precisa esperar. Ver-nos-emos depois no escritório.

Hagedorn avançou, com grande solenidade. — Creio que eu também posso ir. Levo esta bala; há nela alguns sinais especiais. Não precisa dela, sargento?

— Para quê? — perguntou ele, sorrindo. — Leve-a, mas não a perca.

— Não a perderei — assegurou Hagedorn em tom sério e aborrecido. E, sem dirigir sequer um olhar para o Promotor ou para o inspetor, saiu com um movimento levemente balanceado, que lembrava o de um grande anfíbio.

Vance, que estava a meu lado perto da porta, voltou-se e seguiu Hagedorn ao vestíbulo, onde conversaram em voz baixa por alguns minutos. Vance parecia fazer perguntas e, embora eu não estivesse bastante perto para ouvir tudo, apanhei algumas palavras: "trajetória", "velocidade inicial", "ângulo", "ímpeto", "impulso", "desvio", e outras que tais — e eu estava curioso sobre o que podia ter motivado o estranho interrogatório.

Quando Vance agradecia a Hagedorn suas informações, entrou no vestíbulo o inspetor O’Brien.

— Aprendendo rápido? — perguntou, sorrindo, a Vance, com ar protetor. E, sem esperar resposta, para o capitão: — Venha, eu o levarei à cidade.

Markham, que o ouvira, perguntou-lhe se teria lugar para Dindwiddie também.

— Certamente, Sr. Markham.

Saíram os três, e ficamos na sala com o Promotor e Heath. E, como se obedecêssemos a um impulso comum, sentamo-nos todos. Vance tomou uma cadeira junto da porta da sala de jantar, em frente àquela onde Benson tinha sido assassinado.

As maneiras e ações de Vance tinham chamado particularmente minha atenção, desde que chegáramos. Ao entrar na sala, ajustara cuidadosamente o monóculo. Esse gesto, apesar da aparente indiferença com que o executava, demonstrava nele interesse. Quando seu espírito era despertado por alguma impressão e desejava apanhar o assunto prontamente, punha logo o monóculo. Podia ver perfeitamente sem ele, e obedecia apenas a uma sugestão mental. Era como se o aumento de nitidez de visão influísse sutilmente na acuidade do seu espírito. (*)

(*) Os olhos de Vance eram levemente bifocais. O olho direito era astigmático, de 1/2, enquanto que o esquerdo era praticamente normal.


A princípio mirara o salão sem curiosidade, acompanhando com certo ar de apática fadiga o que ali se passara; mas, durante o breve interrogatório de Heath a seus subordinados, revelara-lhe o olhar satisfação irônica. Depois de algumas perguntas gerais feitas a Dindwiddie, passeara pela sala, aparentemente sem nenhum fim determinado, olhando para os vários objetos e móveis. Afinal, detivera-se a examinar o sinal da bala no painel; depois fora até à porta, esquadrinhando o vestíbulo com o olhar.

A única coisa, que parecera prender-lhe a atenção fora o cadáver. Parará diante dele por alguns minutos, estudando-lhe a posição, e chegou a inclinar-se sobre o braço espichado na mesa, como se quisesse ver exatamente como a mão do morto segurava o livro. A posição das pernas cruzadas, contudo, o interessara muito, e se demorara a estudá-las tempo considerável. Afinal, tornara a por o monóculo no bolso do colete, e viera juntar-se a mim e a Dindwiddie, perto da porta, onde se conservou de pé, olhando indiferentemente para Heath e os outros investigadores, até a partida do capitão Hagedorn.

Mal nos sentáramos, apareceu a ordenança à porta do vestíbulo.

— Está aí um homem do posto policial, que deseja falar com o oficial encarregado do caso. Mando-o entrar?

Heath assentiu, e um momento depois um grande irlandês vestido à paisana dava entrada na sala. Cumprimentou Heath, mas reconhecendo o Promotor, fez dele o alvo do seu relatório.

— Sou o agente McLaughlin, senhor, do posto da Rua 47, Oeste, — informou ele. — Estava de serviço nesta zona a noite passada. Mais ou menos à meia-noite, suponho eu, vi um grande Cadillac cinzento parado em frente desta casa. Chamou-me a atenção porque trazia atrás uma porção de utensílios de pesca e todos os faróis acesos. Quando ouvi hoje falar no crime, relatei isto ao sargento do posto, e ele ordenou-me que viesse aqui contar-lhe o fato.

— Perfeitamente, — comentou Markham e, com um gesto, entregou o assunto a Heath.

— Talvez isso signifique alguma coisa, — admitiu este, duvidoso. — Quanto tempo estaria parado aqui esse carro, agente?

— Uma boa meia hora, sem dúvida. Estava ali antes da meia-noite, e quando voltei, cerca de trinta minutos após, ainda aí se achava. Quando tornei a passar, porém, já se tinha retirado.

— Não viu mais nada? Ninguém no carro, ou ao pé dele, que pudesse ser o dono?

— Não, senhor. Nada vi.

Fizeram-lhe mais algumas perguntas semelhantes, mas nada mais se obteve, e despediram-no.

— Como quer que seja, — observou Heath, — a história do carro parado pode servir para entreter os jornalistas.

Vance estivera sentado durante o interrogatório de McLaughlin, quase cochilando — duvido até que tenha ouvido mais do que as primeiras palavras do agente — e depois, reprimindo um bocejo, levantou-se, foi até à mesa de centro e pegou numa das pontas de cigarro que tinham sido encontradas no combustor de gás da lareira. Rolou-a entre o polegar e o indicador, esquadrinhou-a, rasgou o papel com a unha e levou o fumo assim exposto ao nariz.

Heath, que estivera a observá-lo com raiva contida, inclinou-se para diante, perguntando-lhe em tom truculento:

— Que faz o senhor?

Vance ergueu os olhos, sinceramente espantado.

— Apenas cheirando o fumo. — respondeu com indiferença condescendente. — É fraco, mas uma mistura delicada.

Os músculos da face de Heath retesaram-se, enquanto ele replicava, irado:

— Pois faria melhor deixando-o onde estava, senhor. É perito em fumos? — continuou, depois de mirar Vance de alto a baixo.

— Oh! não, — respondeu suavemente Vance. — Minha especialidade são os cartuchos em forma de escaravelho, da dinastia dos Ptolomeus.

Markham interveio, diplomaticamente:

— Na verdade, Vance, você não devia tocar em coisa alguma aqui, estando as investigações no pé em que estão. Não sabe o que pode ter importância: aqueles cotos de cigarros podem vir a ser provas significativas.

— Provas? — repetiu Vance docemente. — Quem o diria! Engraçadíssimo...

Markham estava muito contrariado, e Heath, ainda que sentindo o sangue a ferver, não fez comentário algum; até forçou um sorriso desconsolado. Sem dúvida, achou que fora um pouco abrupto com o amigo do Promotor, embora isso ainda tornasse o amigo mais merecedor da reprimenda.

E não é que Heath fosse bajulador na presença dos superiores. Conhecia seu valor, e demonstrava-o, desempenhando as tarefas que lhe incumbiam com obstinada indiferença pelo seu próprio progresso político. Sua firmeza, e a solidez de caráter que decorria dela, granjearam-lhe o respeito e o apreço dos superiores.

Era grande, forte, elegante e ágil, como um boxeador bem treinado. Seus olhos azuis e duros eram singularmente brilhantes e penetrantes. Tinha nariz pequeno, o queixo oval e largo, a boca austera e direita, com os lábios sempre contraídos. Embora já bem perto, nenhum fio branco se percebia em sua cabeleira curta, cortada à Pompadour. A voz era áspera, mas ele raramente a erguia. Era, sob muitos aspectos, o tipo convencional do investigador. Mas havia nele também alguma coisa que lhe acentuava a personalidade, dir-se-ia uma força que lhe vinha do próprio mérito. E, naquela manhã, ao olhá-lo, senti que o admirava, a despeito de reconhecer nele certas limitações.

— Qual é a situação exata, sargento? — perguntou Markham. — Dindwiddie deu-me apenas informações gerais.

Heath pigarreou.

— Avisaram-nos pouco antes das sete. A governanta de Benson, uma Sra. Platz, telefonou para o posto dizendo que o encontrara morto, e pedia que mandassem alguém cá sem demora. A mensagem foi, sem dúvida, transmitida ao posto central da Polícia. Eu não estava lá no momento, mas Burke e Emery estavam de serviço, e, depois de avisarem o inspetor Moran, vieram para aqui. Já encontraram alguns agentes do posto local fazendo as diligências habituais. Chegando aqui, e inteirando-se da situação, o inspetor telefonou-me, pedindo-me que me apressasse. Quando cheguei, os agentes do posto local tinham saído, e tinham vindo outros três, do setor de homicídios. O inspetor telefonou também ao capitão Hagedorn — entendeu que o caso era bastante importante para chamá-lo imediatamente — e o capitão acabava de chegar quando o senhor entrou. O Sr. Dindwiddie veio logo depois do inspetor, e telefonou-lhe imediatamente. O inspetor-chefe O’Brien chegou pouco antes de mim. Interroguei a Sra. Platz e meus homens examinavam o local quando o senhor chegou.

— Onde está agora a Sra. Platz?

— Lá em cima, sob a guarda de um dos agentes do posto. Ela mora aqui mesmo.

— Por que fez menção da hora específica de doze e meia ao médico?

— A Sra. Platz disseme que ouviu uma detonação naquele momento, e supus que fosse o tiro. Suponho agora que foi o tiro

— isso concorda com outras coisas.

— Acho melhor conversarmos outra vez com a Sra. Platz,

— sugeriu Markham. — Mas primeiro diga-me: achou alguma coisa aqui na sala, alguma coisa que sirva?

Heath hesitou quase imperceptivelmente, depois tirou do bolso do casaco uma bolsa de senhora e um par de luvas compridas, de pelica branca, e colocou tudo em cima da mesa, em frente do Promotor.

— Apenas isto, que um dos homens do posto encontrou em cima da manta da lareira.

Depois de um exame distraído das luvas, Markham abriu a bolsa de mão e despejou o conteúdo sobre a mesa. Adiantei-me para olhar, mas Vance permaneceu sentado, fumando placidamente seu cigarro.

A bolsa era de fina malha de ouro, com um fecho de pequenas safiras. Menor do que as de uso comum, serviria para a noite somente. Os objetos que continha, e que Markham examinava, consistiam de uma cigarreira chata, de seda chamalotada, um frasquinho de Fleurs d'Amour, Roger et Gallet, uma caixinha de pó-de-arroz compacto, uma pequena e delicada piteira de âmbar marchetado, um batom em estojo de ouro, um lencinho bordado, de fino linho francês, com as iniciais "M. St. C." no canto, e uma chave Yale.

— Isto pode indicar-nos uma boa pista, — disse Markham, designando o lenço. — Suponho já examinou tudo cuidadosamente, sargento.

— Sim, e imagino que a bolsa pertence à mulher que estava em companhia de Benson ontem à noite. Disseme a criada que ele tinha um compromisso, e vestiu-se para jantar fora. Ela não o ouviu voltar; mas não será muito difícil descobrir essa M. St. C.

Markham tornou a pegar na cigarreira, e voltando-a de boca para baixo caiu sobre a mesa um pouco de pó de fumo. Heath ergueu-se imediatamente.

— Quem sabe se esses cigarros vinham desta cigarreira? — lembrou ele. Pegou na ponta que ficara intacta e examinou-a. — É cigarro de senhora, sem nenhuma dúvida, — continuou. — e parece ter sido fumado em piteira também.

— Peço perdão por dissentir do senhor, sargento, — disse Vance lentamente. — Estou certo de que me desculpará. Mas há um pouco de carmim no cigarro. Não se vê bem por causa da ponta dourada.

Heath lançou um olhar penetrante a Vance; estava muito admirado para se suscetibilizar. Examinou acuradamente o cigarro e voltou-se outra vez para Vance, perguntando-lhe com áspera ironia:

— Quem sabe se o senhor nos pode dizer também se os cigarros procedem deste estojo?

— A gente nunca sabe, não é? — respondeu Vance, erguendo-se indolentemente.

Pegou na cigarreira, abriu-a completamente, bateu-a contra a mesa. Examinou-lhe o interior minuciosamente, e um sorriso divertido contraiu-lhe os lábios. Metendo o indicador dentro da cigarreira, tirou um cigarrinho que fora evidentemente metido à força no fundo, e se achatara ali.

— Meus dons olfativos já não são necessários, — disse. — Mesmo à vista desarmada se conhece que os cigarros são, para falar franco, idênticos, não, sargento?

Heath sorria afàvelmente.

— Um ponto para o Sr. Markham, — disse, pondo cuidadosamente o cigarro e a ponta num envelope, que assinalou e meteu no bolso.

— Vê agora, Vance, — observou Markham, — a importância daquelas pontas de cigarro?

— Não posso dizer que sim, — respondeu o outro. — Que valor pode ter um toco de cigarro? Não se pode fumá-lo, creio eu...

— É uma prova, meu caro amigo, — explicou Markham pacientemente. — Sabe-se agora que a dona desta bolsa voltou para aqui com Benson ontem à noite, e ficou tempo bastante para fumar dois cigarros.

Vance arqueou as sobrancelhas, comicamente espantado.

— Sabe-se? Sabe-se, na verdade? Imagina-se isso, por enquanto...

— Só o que falta agora é encontrá-la, — replicou Heath.

— Se isso pode facilitar a pesquisa, — disse Vance lentamente, — digo-lhe que é bem moreninha; agora, não posso compreender por que vão incomodar essa senhora... Realmente, não posso, não posso saber.

— Por que diz que é uma moreninha? — perguntou Markham.

— E se o não for, — retrucou Vance afundando-se negligentemente na poltrona, — deverá consultar um especialista de beleza, para que lhe indique o cosmético que deve usar. Vejo que ela usa o pó de tonalidade raquel e o batom para morenas, de Guerlain, uma coisa que as louras não costumam fazer, meu caro.

— Cedo, naturalmente, à sua opinião de perito, — disse Markham, sorrindo. — Creio que teremos de procurar uma moreninha, sargento.

— É também a minha opinião, — disse este, rindo.

Era evidente que já perdoara inteiramente a Vance a destruição da ponta de cigarro.


IV

 

A VERSÃO DA GOVERNANTA

 


(Sexta-feira, 14 de junho — 11 da manhã)

 


— E agora, — lembrou Markham, — podíamos percorrer a casa. Suponho que você já o fez, sargento, mas gostaria de ver a disposição das coisas. De toda maneira, não quero interrogar a governanta antes que removam o corpo.

Heath levantou-se.

— Muito bem, Sr. Markham. Eu mesmo gostaria de ver a casa outra vez.

Atravessamos o vestíbulo e seguimos pelo corredor que conduz à parte posterior da casa. No extremo, à esquerda, havia uma porta para o porão, mas estava trancada.

— O porão é utilizado agora apenas para depósito, — explicou Heath, — e a porta que dá para a rua está pregada. A Sra. Platz dorme em cima. Benson vivia aqui sozinho, e há muitos quartos desocupados. A cozinha é neste andar.

Abriu uma porta do lado oposto do corredor e entramos numa cozinha pequena, mas moderna. As duas altas janelas, que davam para o pátio ladrilhado atrás da casa, ficavam a uns dois metros e meio do chão, e eram guarnecidas por barras de ferro; tinham os postigos fechados e aferrolhados. Uma grande porta dava acesso à sala de jantar, situada atrás do salão. As duas janelas, que davam para um pequeno pátio ladrilhado, — um verdadeiro poço, entre a casa de Benson e a adjacente — estavam fechadas e eram também guarnecidas de barras de ferro.

Voltamos ao corredor e paramos um momento ao pé da escada que levava ao pavimento superior.

— É fácil de ver, — observou Heath, — que quem quer que tenha atirado em Benson entrou pela porta da frente. Não há mais nenhuma entrada. Como vivia só, parece que Benson temia um tanto os ladrões. A única janela que não tem barras de ferro é a que dá para os fundos da casa, e essa estava com os ferrolhos corridos; e apenas dá para o pátio interior. As janelas da frente, no salão, têm aquelas grades; logo, não podem ter sido utilizadas, nem para atirar dali, pois que Benson foi alvejado do lado oposto. É bem claro que o assassino entrou pela porta da frente.

— Parece que sim, — disse Markham.

— E perdoem-me por dizer isto. — observou Vance, — mas Benson o fez entrar...

— Sim? — retorquiu Heath indiferente. — Veremos tudo isso mais tarde, creio eu.

— Oh! Sem dúvida, — acrescentou Vance, secamente. Subimos e entramos' no quarto de dormir de Benson. Mobiliado com severo gosto, tudo nele estava em perfeita ordem: a cama feita mostrava que ninguém ali dormira naquela noite, e as cortinas estavam descidas. Nas costas de uma cadeira, a casaca e o colete de pique branco de Benson. Sobre a cama um colarinho postiço e uma gravata preta, atirados para ali, sem dúvida, quando Benson os retirara ao voltar. Um par de sapatos de entrada baixa ao pé da cama, ao lado de uma banqueta; em um copo dágua sobre a mesa de cabeceira, uma chapa de platina com quatro dentes. E sobre o toucador, uma peruca feita com admirável perfeição.

A peruca atraiu particularmente a atenção de Vance, que a examinou detidamente.

— Que coisa interessante! — comentou ele. — Parece que nosso defunto amigo usava cabelo postiço. Sabia disso, Markham?

— Sempre o suspeitei, — respondeu o Promotor, indiferentemente.

Heath, que ficara parado no limiar da porta, parecia um pouco impaciente.

— Neste andar há apenas mais um quarto, — disse, descendo para o vestíbulo. — É também um quarto de dormir, para hóspedes, segundo explicou a governanta.

Eu e Markham olhamos da porta, mas Vance permaneceu no topo da escada, absolutamente desinteressado pelos arranjos domésticos de Alvino Benson. Quando subimos ao terceiro andar, ele desceu para o vestíbulo; e, ao voltarmos da nossa visita de inspeção, encontramo-lo a olhar distraído para os títulos dos livros da estante.

Acabávamos de descer quando chegaram dois homens com uma maça. Era o rabecão que vinha buscar o corpo, para levá-lo para o Necrotério; e estremeci de horror ao ver a maneira brutal e indiferente como cobriram o corpo, puseram-no na maça, levaram-no da sala, e enfim o empurraram para dentro do carro. Contudo, Vance apenas dirigiu aos homens um ligeiro olhar, não lhes dando maior atenção. Encontrara um livro com uma linda encadernação de Humphrey-Milford, e estava absorvido nas ilustrações de Roger Payne.

— Parece-me que agora é ocasião de vermos a Sra. Platz, — disse Markham.

Heath foi à escada e deu uma ordem em alta voz. Sem demora entrou na sala uma mulher grisalha, acompanhada por um homem à paisana, que fumava um comprido cigarro. Era ela uma mulher simples, vestida à moda antiga, com um ar maternal, calmo e benevolente. Julguei-a logo muito inteligente e isenta de nervosismos, e sua atitude resignada veio confirmar minha primeira impressão. Sem embargo, parecia dotada daquela astúcia taciturna, tanta vez encontrada nos ignorantes.

— Sente-se, Sra. Platz, — disse Markham, cumprimentando afàvelmente. — Sou o Promotor Público, e desejo fazer-lhe algumas perguntas.

Ela sentou-se ao pé da porta e esperou, olhando ansiosa para nós. A voz delicada e persuasiva de Markham pareceu encorajá-la, porque suas respostas vieram cada vez mais fluentes. E o que resultou de um quarto de hora de interrogatório pode ser assim resumido:

A Sra. Platz era a única criada de Benson, e servia-o há quatro anos. Morava na casa, tendo seu quarto no terceiro andar, rios fundos.

Na véspera à tarde, Benson voltara do escritório mais cedo do que o costume — mais ou menos às quatro horas — e anunciara que não jantaria em casa. Ficara no salão, com a porta do vestíbulo fechada, e subira às seis e meia para vestir-se.

Saíra de casa mais ou menos às sete, mas não lhe dissera aonde ia. Apenas avisara que poderia voltar cedo, mas que não era preciso ficar à sua espera — conforme era costume quando trazia convidados. Fora a última vez que o vira vivo. Ela não o ouvira entrar quando voltou.

Às dez horas subira, e, como fazia calor, deixara a porta entreaberta. Despertara-a uma detonação, algum tempo depois. Assustada, acendera a luz da mesa de cabeceira, e vira então que já passara justamente meia hora da meia-noite, no pequeno despertador que tinha ali para a acordar de manhã. Como fosse tão cedo, tranqüilizara-se, porque Benson, fosse aonde fosse à noite, raramente voltava antes das duas; estes fato, mais o silêncio da casa lhe fizeram supor que o rumor que a acordara fora apenas a descarga de algum carro na Rua 49. Isso não lhe causara, pois, impressão alguma, e adormecera de novo.

Às sete da manhã descera, como costumava, para começar suas obrigações diárias, e, ao sair para ir buscar o leite e o creme, descobrira o corpo de Benson.

Todas as cortinas do salão estavam descidas e a princípio julgou que ele adormecera na cadeira, mas quando viu o sinal da bala e notou que a luz fora apagada, compreendera que estava morto. Fora imediatamente ao vestíbulo e telefonara para a Polícia, comunicando o crime. Lembrando-se depois do irmão de Benson, major Antônio Benson, telefonara-lhe também. Ele tinha vindo logo, chegando quase com os investigadores do posto da Rua 27, Leste. Fizera-lhe algumas perguntas, falara com os homens à paisana, e depois se retirara antes de chegarem os homens da Chefatura.

— E agora, Sra. Platz, — disse Markham, olhando para as notas que tomara, — uma ou duas perguntas ainda, e não a incomodaremos mais... Notou a senhora alguma coisa nos atos do Sr. Benson na noite passada, por onde possa supor que estivesse preocupado ou — como direi? — temesse algum acidente?

— Não, senhor, — respondeu prontamente a mulher. — Até parecia andar mais alegre nos últimos 'oito dias.

— Noto que a maior parte das janelas deste andar são gradeadas. Tinha ele medo particular de ladrões, ou temia que alguém invadisse a casa?

— Não... não era bem isso... — respondeu ela, hesitante. — É que ele costumava dizer que nesta cidade cada um tinha de se guardar a si próprio, porque — com o seu perdão, senhor —a polícia não era bem organizada; por isso se prevenia...

Markham voltou-se para Heath, sorrindo.

— Tome nota especial disso, sargento, para os seus arquivos. Sabe de alguém que tivesse ódio ao Sr. Benson, Sra. Platz?

— Nenhuma criatura, senhor, — respondeu a governanta com calor. — Era um homem esquisito a certos respeitos, mas todos pareciam gostar dele. Fazia ou recebia visitas constantemente. Não posso saber por que alguém o quisesse matar.

Markham tornou a olhar para as suas notas.

— Penso que por agora não há mais nada... E você, sargento, tem alguma coisa a perguntar?

Heath pensou um momento.

— Não, não me lembro de nada mais por enquanto... Mas a Sra. Platz, — acrescentou ele, dirigindo-lhe um olhar frio. — ficará aqui nesta casa, até que lhe seja permitido retirar-se. Queremos interrogá-la outra vez, mais tarde. Mas não poderá falar com pessoa alguma, compreende, Sra. Platz? Dois de meus homens ficarão aqui, de guarda.

Durante este interrogatório, Vance tomara apontamentos na folha de guarda de um caderninho de endereços; enquanto Heath falava, ele rasgou a folha e entregou-a a Markham, que, ao lê-la, franziu a testa e contraiu os lábios. Depois de uma ligeira hesitação, porém, dirigiu-se de novo à governanta.

— Disse há pouco, Sra. Platz, que todos gostavam do Sr. Benson. E a senhora mesma, gostava dele?

A mulher, desviando o olhar, replicou resolutamente:

— Oh! Eu, senhor, apenas trabalhava para ele, e não tenho queixa alguma do modo por que me tratava.

Contudo, e a despeito destas palavras, dava a impressão de "que, ou não gostava muito de Benson, ou desaprovava profundamente os seus atos. Markham, porém, não levou mais longe o assunto.

— Outra coisa, Sra. Platz, o Sr. Benson tinha em casa alguma arma de fogo? Sabia acaso se ele possuía um revólver?

Pela primeira vez, durante o interrogatório, a mulher pareceu agitada, assustada até.

— Sim... senhor... eu... penso que ele tinha um, — terminou ela, receosa.

— E onde o guardava?

Olhou ao redor, apreensiva, como se pesasse bem a conveniência de falar francamente. Depois respondeu em voz baixa:

— Naquela gaveta secreta da mesa de centro. O senhor... o senhor... aperte esse pequeno botão de cobre para abri-la.

Heath apressou-se a apertar o botão indicado. Surgiu uma gavetinha rasa, e dentro dela um revólver Smith and Wesson 38, com a coronha embutida de madrepérola. Pegou nele abriu-o e examinou o cilindro.

— Carregado, — disse, laconicamente.

Uma expressão de imenso alívio espraiou-se pelo semblante da mulher, que suspirou profundamente.

Markham se levantara e olhava para o revólver, por cima do ombro de Heath.

— É melhor que você se encarregue disso, sargento, ainda que não me pareça ter alguma relação com o caso.

Voltou para a sua cadeira e, examinando outra vez a nota que Vance lhe dera, dirigiu-se de novo à governanta:

— Mais uma pergunta, Sra. Platz. A senhora disse que o Sr. Benson veio mais cedo, tendo ficado nesta sala até à hora de jantar. Não recebeu nenhuma visita durante esse tempo?

Eu, que olhava atentamente para a mulher, julguei perceber que ela apertava com força os lábios. Seja como for, é certo que se endireitou na cadeira antes de responder.

— Não, senhor, que eu saiba.

— E na noite passada? A campainha tocou alguma vez depois que a senhora se recolheu?

— Não, senhor.

— Se tocassem teria ouvido, mesmo que estivesse dormindo?

— Sim, senhor. Há uma campainha justamente ao lado da minha porta, a mesma da cozinha. Toca em ambos os lugares ao mesmo tempo. Assim o quis o Sr. Benson.

Markham agradeceu-lhe e despediu-a. Depois que a mulher saiu, ele olhou interrogativamente para Vance.

— Que idéia foi a sua ao entregar-me aquelas perguntas? — Talvez eu me tenha enganado, — disse Vance, — mas, quando ela estava exaltando a popularidade do morto, pareceu-me que exagerava um pouco. Julguei descobrir uma antítese inconsciente no seu elogio, e isso me deu a idéia de que talvez ela mesma não estivesse tão encantada pelo patrão.

— E que foi que lhe deu a idéia da arma de fogo?

— Essa pergunta era um corolário das suas, Markham, a respeito das janelas gradeadas e do medo aos ladrões. Se Benson tinha medo de arrombadores ou de inimigos, trataria de ter armas à mão, não acha?

— Bem, — disse Heath. — Em todo caso, sua curiosidade desencavou um belo revólver, que provavelmente jamais servira.

— A propósito, sargento, — retrucou Vance, sem fazer caso do sarcasmo do outro, — que resultado pensa tirar desse lindo revolverzinho?

— Por agora. — replicou Heath com fingida gravidade, — deduzo que o Sr. Benson guardava um Smith and Wesson de cabo de madrepérola em uma gaveta secreta da sua mesa de centro.

— O senhor o diz, realmente! — atalhou Vance simulando admiração. — Oh! Que grande talento!...

Markham interrompeu as zombarias.

— Por que perguntou você se vieram visitas, Vance? É óbvio que ninguém mais esteve aqui...

— Oh! Outra fantasia minha. Senti um desejo ardente e impulsivo de ouvir o que diria a Sra. Platz.

Heath estudava Vance curiosamente. Dissipava-se-lhe a primeira impressão, e começava a suspeitar de que, sob o exterior distraído e amável do outro, se ocultava alguma coisa mais sólida do que a princípio julgara. Não o satisfizeram inteiramente as explicações que Vance dera a Markham, e parecia que desejava penetrar as razões verdadeiras das perguntas suplementares ao interrogatório a que o Promotor submetera a governanta. Era astuto, não lhe faltava habilidade de homem mundano, para compreender as intenções; mas Vance era diferente dos outros, daqueles com quem estava habituado a lidar, e era, para ele, um enigma.

Afinal, desistiu de decifrá-lo e aproximou a cadeira da mesa, dizendo com certa secura:

— Agora, Sr. Markham, vamos fixar nossas esferas de ação, para não duplicar o trabalho. Quanto mais cedo eu movimentar meus homens, melhor será.

Markham concordou prontamente.

— A investigação foi-lhe entregue completamente, sargento. Eu estou aqui para ajudá-lo em qualquer coisa de que necessite.

— É muita bondade sua, senhor, — replicou Heath. — Mas parece-me que haverá bastante trabalho para repartirmos... Creio que eu posso ver se encontro a dona da bolsa, e também destacar alguns homens para indagarem dos companheiros de vida noturna de Benson — a governanta poderá indicar-me alguns — que serão um ponto de partida. Procurarei também aquele Cadillac... Procuraremos depois as suas amizades femininas — que suponho eram em grande número.

— E eu poderei obter alguma coisa do major nesse sentido, — disse Markham. — Ele me dirá algo do que desejo saber. E por ele também saberei quem eram os seus associados nos negócios.

— Ia lembrar que o senhor poderia fazer isso melhor do que eu, — ajuntou Heath. — Precisamos de encontrar depressa alguma coisa que nos dê a pista para achar o resto. E creio que,, quando encontrarmos a senhora que jantou com ele a noite passada e voltou para aqui, saberemos muito mais do assunto.

— Ou muito menos, — murmurou Vance. Heath encarou-o e respondeu-lhe com petulância:

— Sr. Vance, já que deseja aprender alguma coisa destes negócios, deixe-me dizer-lhe que, quando alguma coisa sai de través neste mundo, é sinal certo de que se deve procurar uma mulher no caso.

— Ah! Sim, — disse Vance sorrindo. — Cherchez la femme... uma noção antiga. Até os romanos tiveram a mesma superstição — e exprimiram-na no seu — Dux Femina facti.

— Seja como for que a tivessem exprimido, tiveram a idéia acertada. E não admita que ninguém lhe diga o contrário.

Ainda uma vez Markham interveio, como diplomata:

— Espero que esse ponto seja resolvido depressa... E agora, sargento, se você não tem outra coisa a dizer, irei embora. Disse ao major Benson que o veria ao almoço, e talvez tenha alguma notícia para você logo à noite.

— Muito bem. Eu ficarei por aqui, a ver se há alguma coisa mais a observar. Mandarei guardar a casa e porei uma sentinela de vigia à Sra. Platz. Falarei com os jornalistas, informando-os do Cadillac desaparecido e do misterioso revólver na gaveta secreta. Acho que poderão entreter-se com isso... Se descobrir mais alguma coisa, telefonarei.

Depois de apertar as mãos do Promotor, voltou-se para Vance e, com grande surpresa minha e creio que também de Markham, disse-lhe amàvelmente:

— Passe bem, senhor. Espero que tenha aprendido alguma coisa esta manhã.

— O senhor ficaria positivamente confundido, sargento, se soubesse tudo o que aprendi, — respondeu negligentemente Vance.

Pela segunda vez notei no olhar de Heath aquela curiosidade maligna, mas foi só um segundo. E respondeu secamente:

— Pois estou contente com isso.

Saímos, e o guarda à paisana chamou um auto.

— Então é deste modo que nossa orgulhosa polícia chega aos misteriosos porquês dos assuntos criminais? Oh! — disse Vance, quando seguíamos para a cidade. — Markham, meu velho amigo, como podem aqueles rudes rapazes ser algumas vezes bem sucedidos quando procuram o criminoso?

— Você presenciou apenas os mais simples preliminares, — explicou Markham. — Há certas coisas em que devemos seguir a rotina — ex abundanti cautelae, como dizemos nós, os juristas.

— Mas, palavra! Que técnica! — suspirou Vance. Ah! quantum est in rebus inane! Como dizemos nós, os leigos...

— Você não dá muito pela capacidade de Heath, eu sei. — disse Markham com voz pacifica, — mas ele é muito hábil, e também é certo que é fácil desconhecer-lhe o mérito.

— Em todo caso, — murmurou Vance, — estou-lhe muito agradecido, e a todos, por me terem proporcionado ocasião de apreciar seu trabalho solene. Divertiu-me muito, para não dizer que me edificou. Chamou-me a atenção seu Esculápio oficial — pareceu-me um rapaz alegre, destituído de emoção, e incapaz de se impressionar com um cadáver. Na verdade, poderia ter tomado o crime como um sério meio de vida, em vez de ter estudado medicina.

Markham, que recaíra em inquieta meditação, conservou-se a olhar pela janela em sombrio silêncio, até chegarmos à casa de Vance.

— Não me agrada o curso que vão tomando as coisas, — disse por fim, ao dobrarmos a esquina. — Tenho um sentimento confuso a respeito deste caso.

Vance olhou-o com o rabo do olho, perguntando-lhe, em seguida, com insólita seriedade:

— Markham, você suspeita de alguém?

— Antes fosse assim... Os crimes premeditados não se descobrem facilmente, e este caso me parece particularmente complexo.

— Que idéia! — disse Vance, já quando o auto parava. — Pois eu o achei extraordinariamente simples.


V

 

COLIGINDO INFORMAÇÕES

 


(Sábado, 15 de junho — de manhã)

 


Certamente ainda não foi esquecida a sensação que despertou o assassinato de Alvino Benson. Foi um desses crimes que impressionam irresistivelmente a imaginação popular, cercado como foi de uma impenetrável aura de mistério — base de todo o romance. Muitos dias se passaram antes que viesse a luz definitiva esclarecer as circunstâncias do crime; e numerosos ignes fatui também apareceram, contribuindo para desorientar a opinião pública. E de todos os lados surgiam estranhas suposições.

Não era Alvino Benson uma figura romântica, sob nenhum aspecto, mas era muito conhecido, e sua personalidade estivera muito em evidência. Era membro da boêmia rica de Nova York — desportista apaixonado, jogador audacioso e folgazão profissional; e sua vida, lidando com o demi-monde, tivera seu esplendor. Suas façanhas nos cabarés e cafés noturnos foram por muito tempo o assunto predileto de histórias exageradas e comentários de vários jornais e revistas locais, que sustentam os exploradores de escândalos da Broadway.

Ao tempo de sua súbita morte, Alvino Benson mantinha com o seu irmão Antônio, uma agência de corretagem no número 21 de Wall Street, sob a firma Benson Benson. Os outros corretores da praça consideravam-nos como negociantes astutos, embora não muito escorreitos, no que respeita às leis e estatutos da Bolsa de Valores de Nova York. Extraordinariamente diferentes em gostos e temperamento, pouco se viam os dois irmãos fora do escritório. Alvino dedicava ao prazer todos os seus ócios, e era o freqüentador natural de todos os cafés mais importantes da cidade; quanto a Antônio, que era o mais velho, e servira como major na última guerra, levava uma vida tranqüila e simples, passando nos clubes a maior parte dos seus pacatos serões. Eram ambos, entretanto, populares nos seus respectivos meios, nos quais adquiriram muitos admiradores.

A paixão que o crime despertou no mundo comercial explica até certo ponto o interesse que lhe dedicaram os jornais. Além disso, a época era de calma no campo das notícias sensacionais, e daí o afã com que os jornais se apoderaram do assunto, dedicando-lhe páginas e páginas, mesmo as primeiras, com uma prodigalidade rara em tais casos. (*)

(*) Nem o célebre caso Elwell, que se deu alguns anos depois, e apresentava alguns pontos de semelhança com este, causou maior sensação, a despeito de ser Elwell mais vastamente conhecido do que Benson, e de estarem envolvidas nele pessoas de maior responsabilidade na sociedade. Em verdade, o caso Benson foi então lembrado várias vezes, e um jornal da oposição lamentou em editorial que John F. X. Markham já não fosse Promotor Público de Nova York.


Investigadores eminentes de todo o país tiveram de conceder entrevistas a jornalistas impacientes. Reviveu-se a história de muitos crimes célebres, que tinham ficado impunes. Jornais houve que contrataram videntes e astrólogos, para ver se esclareciam o mistério por diversos processos metafísicos. Esparramavam-se pelas páginas desses jornais fotografias e diagramas detalhados, que diariamente ilustravam as efusões jornalísticas.

Em todas as versões apareciam o Cadillac cinzento e o revólver Smith and Wesson, de cabo marchetado. Vieram à luz reproduções fotográficas de carros Cadillac "retocadas", e reconstruídas de acordo com a descrição do agente McLaughlin, algumas até ostentando os utensílios de pesca. Fora batida uma fotografia da mesa de centro de Benson, com a gaveta secreta ampliada, e reproduzida em medalhão. Uma revista dominical chegara até a pagar a um marceneiro uma dissertação sobre compartimentos secretos nos móveis.

Desde o início, a polícia julgara o caso Benson árduo e difícil. Uma hora depois que nós deixamos o teatro do crime, os agentes do Departamento de Homicídios, às ordens de Heath, começaram uma investigação sistemática. Devassaram toda a casa, leram toda a correspondência particular do morto, mas nada descobriram que pudesse trazer alguma luz sobre a tragédia. Nenhuma arma, além do revólver Smith and Wesson, fora encontrada; e uma segunda inspeção feita nas grades das janelas demonstrou que de fato estavam intactas. Isso indicava que, ou o assassino se servira de uma chave para entrar, ou o próprio Benson o introduzira em casa. Diga-se de passagem que a Heath repugnava ainda admitir esta última hipótese, apesar da afirmação positiva da Sra. Platz, de que nenhuma outra pessoa, a não ser ela e Benson, possuía a chave da porta.

À falta de um indício definitivo, além da bolsa e das luvas, o único meio era interrogar os amigos de Benson e seus sócios, na esperança de descobrir algum fato que fornecesse uma pista. Heath também confiava nesse processo para estabelecer a identidade da dona da bolsa.

Inútil foi o esforço feito para precisar onde Benson tinha passado o serão; muitos amigos seus foram interrogados, visitaram-se os restantes onde habitualmente jantava, mas ninguém pôde dizer que o vira naquela noite. Por outro lado, nenhuma informação geral de natureza útil apareceu, que pudesse guiar a polícia nas suas pesquisais. Aparentemente, Benson não tinha inimigos: não questionara seriamente com ninguém; e seus negócios marchavam na ordem habitual.

Era o major Benson, naturalmente, a pessoa indicada em primeiro lugar para dar informações, em vista do seu íntimo conhecimento dos negócios do irmão. E por isso mesmo o escritório da Promotoria pôs seu chefe em campo desde o primeiro momento. Markham almoçou com o major Benson no dia em que o crime foi descoberto e, a despeito do desejo que este mostraria de ajudar nas pesquisas — mesmo em detrimento do caráter do irmão —, sua contribuição foi de pouco valor. Explicou a Markham que, conhecendo embora a maior parte dos companheiros do irmão, não podia ainda assim designar nenhum que tivesse uma razão particular para cometer tal crime; nem sabia de ninguém que pudesse guiar a polícia na busca que esta fazia. Admitiu, contudo, que havia um aspecto da vida do irmão sobre o qual não estava muito bem informado, € lamentou não poder sugerir um meio de aclarar o mistério. Insinuou, porém, que o irmão tinha certas relações equívocas, aventurando a opinião de que talvez por esse lado se descobrisse um motivo para o crime.

Aproveitando as vagas e confusas sugestões do major Benson Markham pusera em campo imediatamente dois investigadores com instruções para fazer pesquisas apenas em torno das relações femininas de Benson, de modo que não surgisse a suspeita, por parte da Polícia Central, de uma usurpação de suas atribuições. E, tendo em conta o interesse que Vance demonstrara pelo interrogatório da criada, encarregara um homem de examinar e averiguar os seus antecedentes e parentescos.

Soubera assim que a Sra. Platz nascera em uma pequena cidade da Pennsylvania, de pais alemães, já falecidos, e que era viúva há dezesseis anos. Antes de vir para a casa de Benson, servira uma família durante doze anos, e deixara o lugar somente quando sua ama desfizera a casa, para ir morar em um hotel. Essa senhora, interrogada, dissera que a governanta tinha uma filha, mas nunca vira a criança, nem sabia nada dela. Nada havia nessas informações que se pudesse aproveitar, e o relatório foi ·escrito por mera formalidade.

Heath, embora não acreditasse na interferência do Cadillac cinzento no crime, determinara uma intensa busca em toda a cidade, e nisso os jornais prestaram considerável serviço — com a ampla publicidade sobre o carro procurado. Sucedeu, entretanto, um fato curioso, que deu à polícia a esperança de que esse carro trouxesse a desejada pista, esclarecendo o mistério. Um varredor de rua, tendo ouvido contar, ou lido, a história dos petrechos de pesca, narrou que achara duas canas de pesca, amarradas, num ·dos passeios do Central Park, perto do Columbus Circle. Restava saber se essas duas varas pertenciam ao equipamento do auto visto pelo agente McLaughlin. Podiam ter sido, sem dúvida, atiradas do carro em fuga; mas também podiam ter sido perdidas por qualquer outra pessoa que passasse pelo Parque. Nenhuma informação ulterior veio elucidar o assunto, e no dia seguinte à descoberta do crime, o caso não tinha adiantado um passo, no sentido de uma solução definitiva.

Nessa manhã Vance, mandara Currie comprar todos os jornais que tratavam do crime, e passara uma hora a ler as várias versões do assassinato. Não sendo seu costume olhar sequer para:um jornal, nem mesmo por acaso, não pude conter meu espanto ao ver seu repentino interesse por um assunto tão afastado dos seus hábitos regulares.

— Não, velho amigo Van, — explicou ele indolentemente, — não estou ficando sentimental, nem humano, segundo a palavra erroneamente usada hoje. Não posso dizer com Terencio "Homo sum, humani nihil a me alienum puto", porque a maior parte das coisas a que chamam humanas são-me completamente estranhas. Mas, veja você, esta agitaçãozinha provocada pelo crime parece-me interessante, ou, como dizem os cronistas, me intriga — estúpida palavra! — Van, você devia ler esta preciosa entrevista do sargento Heath. Ele gasta uma coluna inteira para dizer: "Nada sei!" Um rapaz de valor inestimável! Decididamente, começo a gostar dele!

— Pode ser — lembrei eu, — que Heath esteja ocultando dos jornais o que sabe, como tática diplomática...

— Não, —.retrucou Vance com um movimento melancólico de cabeça, — nenhum homem é tão isento de vaidade que se queira revelar ao mundo completamente desprovido dos poderes de raciocínio humano, como ele faz em todos esses jornais da manhã — pelo mero desejo de entregar um criminoso à justiça. Isso seria levar o sacrifício até à loucura.

— Markham pode saber ou suspeitar de alguma coisa que ainda não veio a lume, — disse eu.

Vance meditou um momento.

— Isso não é possível, — disse, por fim. — Ele conservou-se modestamente no segundo plano, em todo este palavrório jornalístico. Suponho que vamos examinar melhor o assunto, não?

Foi ao telefone, ligou para o escritório do Promotor, e ouviu-o convidar Markham para almoçar no Stuyvesant.

— E que resolveu sobre a estatueta de Nadelmann, no Stieglitz? — perguntei, lembrando-lhe a razão da minha presença na sua casa àquela hora.

— Não estou hoje disposto a contemplar a simplicidade grega, — respondeu, voltando aos seus jornais.

Dizer que sua atitude me surpreendia, é pouco. Em todo o tempo de nossa amizade, jamais o_ vira esquecer seu entusiasmo pela arte, preterindo-a por qualquer outra distração. E até hoje nenhum interesse mostrara pela lei ou pelos assuntos desta. Compreendi, entretanto, que alguma coisa fora do comum se elaborava no seu cérebro, e me abstive de comentários.

Markham chegou um pouco atrasado ao clube, e já estávamos aboletados à mesa, no nosso canto favorito, quando ele entrou.

— Oh! Meu Licurgo, pondo de parte as pistas novas e significativas que foram encontradas, e as importantes revelações que o público vai conhecer em um futuro muito próximo, e todas as outras tolices da mesma espécie — em que pé estão realmente as coisas?

Markham sorriu.

— Vejo que você leu os jornais. Que pensa das narrativas? — São típicas, não há dúvida. Têm o maior cuidado em não omitir coisa alguma, exceto o essencial.

— Sim? — indagou Markham jovialmente. — E posso saber o que considera você o essencial do caso?

— Não sei, mas como simples amador pareceu-me que a peruca do caro Alvino era uma coisa muito importante e essencial...

— Benson, sem dúvida, tinha a mesma opinião, não acha?

— E havia também o colarinho e a gravata...

— E, — acrescentou Markham, — não desdenhe a dentadura num copo.

— Positivamente, você é assombroso! Sim, é coisa essencial também. E aposto que o incomparável Heath nem sequer notou isso. Mas os outros Aristóteles presentes também fizeram observações incompletas.

— Confesse que as investigações de ontem não lhe causaram boa impressão.

— Ao contrário, causaram-me estupefação. Foi um conjunto de absurdos... Tudo o que podia ser um indício foi admiravelmente desprezado. E havia afinal uma dúzia de pontos de partida, todos eles se encaminhando na mesma direção, mas nenhum dos funcionários o notou, ao que parece. Estavam todos tão ocupados em esmiuçar futilidades, como examinar os tocos de cigarros, ou as grades das janelas — que são, de passagem, bem bonitas... estilo florentino.

Markham, meio divertido, meio vexado, interveio:

— Podemos ficar tranqüilos com a ação da polícia, Vance. Ela solucionará o mistério.

— O que me admira é a sua confiança, — murmurou Vance. Mas, confie em mim e diga-me: que sabe do assassinato de Benson?

Markham hesitava, mas afinal disse:

— Vou falar-lhe confidencialmente, já se vê. Esta manhã, depois que você me telefonou, um dos homens a quem incumbi de investigar a vida mundana de Benson disseme que encontrara a mulher que deixou a bolsa e as luvas em casa dele naquela noite seguindo a pista das iniciais. Soube a seu respeito fatos interessantes. Como eu suspeitava, foi quem o acompanhou ao jantar. É uma atriz, creio que de opereta, e chama-se Muriel St. Clair.

— Já é má sorte, — suspirou Vance. — Pois eu esperava que seus esbirros não encontrassem a dama... Não tenho o prazer de conhecê-la, senão mandaria um cartão de pêsames... Agora vai você, com toda a certeza, representar de juiz de instrução, e atormentá-la o mais que puder, não?

— Sim, certamente que hei de interrogá-la, creio que é o que você quer dizer!

Via-se que Markham estava preocupado, e pouco falou até ao fim do almoço.

Quando nos sentamos mais tarde, no salão de fumar do Clube, o major Benson, que estava a olhar melancòlicamente pela janela, avistou Markham, e veio para junto de nós. Era um homem de rosto cheio, fisionomia grave e bondosa, corpo vigoroso e desempenado, e aparentava cinqüenta anos. Cumprimentou-nos distraído, a mim e a Vance, e voltou-se todo para o Promotor.

— Markham, desde nosso almoço de ontem penso sem cessar no caso, e achei que devo dizer-lhe o que sei. Há um homem chamado Leandro Pfyfe, que foi muito amigo de Alvino, e que talvez lhe possa dar alguma informação útil. Não me lembrei dele ontem, porque não mora na cidade, mas em Long Island, quase sempre — creio que em Port Washington. É apenas uma idéia minha, pois não sei de nada que possa trazer luz neste horrível caso.

E respirou profundamente, como se quisesse abafar algum sinal de comoção. E era evidente que, apesar de sua habitual frieza, estava muito abalado.

— É uma boa lembrança, major, — disse Markham, tomando uma nota nas costas de uma carta. — Vou tratar disso imediatamente.

Vance, que durante este diálogo se distraíra a olhar pela janela, voltou-se para o major:

— Que sabe do coronel Ostrander? Eu o vi muitas vezes em companhia de seu irmão.

— Oh! — disse Benson, com um gesto de dúvida. — Era um simples conhecimento. De nada adiantaria interrogá-lo.

E, voltando-se para Markham, indagou:

— Certamente ainda não teve tempo de saber coisa alguma? Markham tirou o cigarro da boca, para volteá-lo entre os dedos, pensativo. Depois disse:

— Não digo isso. Consegui saber com quem seu irmão jantou na noite de terça-feira; e sei que essa pessoa voltou à casa com ele pouco depois da meia-noite.

Calou-se, pesando, quiçá, o que ia revelar, e continuou:

— O fato é que não me são precisas muitas provas para levar a acusação perante o tribunal.

A surpresa e o assombro se estamparam no rosto do major, que, pondo a mão no ombro do Promotor, disse-lhe, movendo vagarosamente a pesada mandíbula:

— Dou graças a Deus, Markham! Vá até ao fim, por mim, — pediu ele ainda. — E, se precisar de meu auxílio, estarei aqui no Clube até tarde.

Com estas palavras, saiu do salão.

— Parece-me falta de caridade importunar o major com perguntas logo depois da morte do irmão. — comentou Markham. — Mas, a vida tem que continuar...

— E para quê, meu Deus? — murmurou Vance, abafando um bocejo.


VI

 

VANCE DÁ SUA OPINIÃO

 


(Sábado, 15 de junho — 2 da tarde)

 


Continuamos a fumar em silêncio. Vance contemplava indolentemente Madison Square; Markham, carrancudo, olhava atentamente para um desbotado retrato a óleo do velho Peter Stuyvesant, que estava por cima da lareira.

De repente, Vance voltou-se com um sorriso sardônico para Markham, dizendo-lhe pachorrentamente:

— Espanta-me, Markham, ver com que facilidade se enganam os seus investigadores do crime, com isso a que chamam indícios. Uma pegada, um auto oculto, um lenço marcado, bastam para que se lancem a uma perseguição desenfreada, com o seu eterno Ecce signum! Palavra! Eu diria que seus rapazes estão sob a influência dos romances populares. Quando se convencerão vocês de que os crimes não podem ser descobertos por deduções baseadas apenas em indícios materiais e provas circunstanciais?

Esta crítica súbita surpreendeu-nos a ambos, ainda que conhecêssemos bastante o nosso amigo para perceber que seu tom plácido e loquaz mascarava um propósito deliberado.

— Estará você defendendo a tese de que se devem ignorar as provas tangíveis de um crime? — indagou Markham, com ar benevolente.

— Perfeitamente, — declarou Vance, com a maior calma. — Não são apenas inócuas, mas perigosas... O grande mal de seus homens, Markham, é que vocês se aproximam de um crime com a idéia preconcebida de que o criminoso é, ou meio louco, ou muito descuidado. Jamais se lembram, nem por acaso, de que, se um investigador pode ver um indício, também tê-lo-ia visto o criminoso, que, nesse caso, o teria ocultado, ou dissimulado, para que o não vissem. Nunca lhe ocorreu que, um sujeito bastante hábil para planejar e executar um crime com sucesso nos dias de hoje, é também, ipso facto, bastante astucioso para forjar quantos indícios possam ser úteis aos seus projetos? Seus investigadores não querem admitir que a aparência superficial de um crime possa enganar de propósito deliberado, ou que a pista que encontram tenha sido, muitas vezes, preparada para desorientá-los...

— Receio, — observou Markham, com indulgente ironia, — que apanharíamos muito poucos criminosos, se desprezássemos todos os indícios, circunstâncias e inferências... Em regra, os crimes não têm testemunhas presenciais.

— É esse o seu erro fundamental, — observou Vance, impassível. — Cada crime, como cada obra de arte, tem as suas testemunhas. O fato de não vermos o criminoso ou o artista em ação não tem importância. O moderno investigador criminal recusaria acreditar sem dúvida que Rubens pintou a Descida da Crus, da Catedral de Antuérpia, se tivesse provas suficientes de que o artista viajava, por exemplo, em serviço diplomático, quando o quadro foi pintado. E no entanto, meu caro amigo, tal conclusão seria absurda. Ainda que as deduções em contrário fossem tão concludentes que pudessem ser tomadas legalmente em consideração, o quadro por si só demonstraria irrefutavelmente que era de Rubens. Traz a marca indelével da sua personalidade e do seu gênio — que a ninguém mais pertence...

— Mas eu não sou esteta, — replicou Markham, agastado. — Sou apenas jurista. E, quando chega a hora de determinar o autor de um crime, prefiro provas tangíveis a hipóteses metafísicas.

— Preferências que o arrastarão inevitavelmente a erros lamentáveis, — retrucou Vance suavemente.

Acendeu lentamente outro cigarro e, lançando nuvens de fumo para o teto, continuou:

— Considere, por exemplo, as conclusões a que chegou neste crime. Você trabalha com a falsa — e grave! — idéia de que conhece a pessoa que matou o inefável Benson. Disse-o ao major, e disse mais que tinha provas quase suficientes para requerer uma prisão. Sem dúvida, você possui uma grande cópia do que os sábios Solons de hoje chamam indícios veementes. Mas a verdade é que você não deitou o olho sobre o verdadeiro culpado, de nenhum modo! Vai incomodar uma pobre moça, que entretanto nada tem a ver com o crime. Markham voltou-se.

— Você acha, então, que eu vou incomodar uma inocente, não é? Mas, como só eu e meus auxiliares conhecemos as provas que há contra ela, gostaria de que me dissesse por que misteriosos processos veio a saber que não é culpada...

— É muito simples, — replicou Vance, sorrindo zombeteiramente. — Você não vê o assassino, porque ele foi bastante astuto para não deixar qualquer prova que lhe desse a pista.

Falava com a tranqüila segurança de quem enuncia um fato evidente — fato que não admite argumento.

Markham ria desdenhosamente. E replicou como um oráculo:

— Nenhum malfeitor é tão astuto que possa prever todas as contingências. E o ato mais trivial tem íntimas relações, estreitos pontos de contacto com os que o precedem ou seguem. Aliás, é fato conhecido que todo criminoso, por mais cuidadoso que seja, deixa sempre algum fio, que o delata.

— Fato conhecido? — repetiu Vance. — Não, meu caro — apenas uma lenda, baseada na crença infantil de uma Nemesis implacável e vingadora. Compreendo que essa noção esotérica de justiça divina, inevitável, apele para a imaginação popular, como os ledores de buena-dicha, ou a mesa magnetizada; mas — palavra! — entristece-me pensar que você, amigo velho, possa dar crédito a essas místicas bagatelas...

— Não perca o seu tempo, — disse Markham com acrimônia.

— Passe em revista os crimes impunes que conhece, e os que foram descobertos, — continuou Vance, desdenhando a ironia do outro. — Crimes que desconcertaram totalmente os investigadores mais afamados. O fato é que só são descobertos, sempre, os planejados por imbecis. Aí está por que qualquer homem de moderada sagacidade, se premedita um crime, chega a efetuá-lo sem muita dificuldade, seguro de que não será desvendado.

— Quando um crime fica impune, — retrucou Markham, com riso escarninho, — é porque a polícia não teve sorte, não porque o criminoso possua uma inteligência superior.

— Pouca sorte, — repetiu Vance numa voz que chegava a ser suave — eis aí um eufemismo defensivo, que aparece para mascarar a incapacidade. A um homem engenhoso e inteligente, a má sorte não persegue... Não, velho amigo Markham, os crimes impunes são simplesmente crimes inabilmente planejados e executados. E acontece que o assassinato de Benson pertence a esta categoria. Entretanto, você afirma, após algumas horas de pesquisas, que está quase certo de conhecer o criminoso... e eu peço-lhe que me releve se discordo de sua opinião. Calou-se e ficou a fumar, pensativo.

— Os métodos dedutivos, artificiais e casuísticos de seus homens podem conduzir a qualquer parte, e a prova disso é essa infeliz moça, cuja liberdade você pretende arrebatar.

Markham, que até então procurara disfarçar seu ressentimento sob um sorriso desdenhoso, voltou-se muito excitado.

— Contudo, e falo ex cathedra, — proclamou como um desafio, — estou certo das provas que tenho contra a sua "infeliz moça".

Vance não se alterou, mas observou secamente:

— Ainda assim, eu sei que nenhuma mulher poderia ter cometido aquele crime.

Eu via que Markham estava furioso, e quando falou parecia que estourava.

— Nenhuma mulher poderia ter cometido o crime? Oh! E não se importa com as provas?

— Não, nem mesmo que ela o jurasse, e produzisse um tomo disso que vocês, vergônteas da lei, intitulam pomposamente provas irrefutáveis, — respondeu Vance plàcidamente.

— Ah! — retrucou Markham, sarcástico, — isso me faria supor que para você então nem a confissão tem valor?

— Sim, meu caro Justiniano, — respondeu o outro, com um ar de complacência. — Foi isso mesmo o que eu disse. Na verdade, as confissões são ainda piores do que isso — são francamente enganosas. Como a intuição das mulheres — tão encarecidas — elas podem ser alguma vez verdadeiras, mas isso só vem demonstrar que não merecem confiança alguma.

Markham rosnou desdenhoso:

— E por que iria alguém confessar, em seu detrimento, um crime, a menos que soubesse que a verdade fora descoberta ou viria provavelmente a sê-lo?

— Palavra, Markham, você me assombra! Permita que eu lhe murmure, privatissime et gratis, ao ouvido inocente, que há muitos motivos presumíveis para confissão. O medo, a tortura, a conveniência, o amor materno, o cavalheirismo podem levar à confissão. Também o que os psicanalistas chamam complexo de inferioridade ou desilusão, ou uma errada noção do dever, ou egoísmo pervertido, vaidade, enfim, cem causas diversas, podem levar alguém a fazer uma confissão — a mais enganosa e menos segura de todas as formas de prova. Até a própria lei, embora estúpida e pouco científica, a repudia, se não a confirmam outras provas.

— Você é eloqüente, e me aperta de todos os lados. Mas, se a lei repelisse todas as confissões, e desprezasse todos os indícios, como é seu desejo, a sociedade podia prescindir dos tribunais, e mandar fechar todas as cadeias.

— Um típico non sequitor de lógica jurista, — replicou Vance.

— Mas como reconheceria você o culpado?

— Há um método infalível para determinar a culpa e a responsabilidade humana, — explicou Vance. — Mas até agora a polícia se conservou na ignorância beatífica do seu poder e funcionamento. A verdade só pode ser descoberta por uma análise dos fatores psicológicos do crime, aplicados ao indivíduo. Os únicos indícios verdadeiros são os psicológicos — não os materiais. Um perito competente, por exemplo, não vai julgar e autentificar um quadro pelo exame da tela, nem por uma análise química dos pigmentos, mas pelo estudo da personalidade criadora revelada na concepção e execução da obra. Verifica se a obra encarna as qualidades de forma e de técnica, a expressão mental, que constituem o gênio — mais particularmente, a personalidade — de Rubens, de Miguel Ângelo, Veroneso, Ticiano, Tintoreto, ou do artista enfim, a quem se atribui o quadro.

— Creio que meu espírito é ainda muito primitivo, e só os fatos vulgares o impressionam, — confessou Markham. E no caso presente — lastimo-o, pela originalidade de sua analogia artística — possuo uma quantidade de fatos, que indicam todos que certa moça é... eu daria a criadora da obra criminosa intitulada O Assassinato de Alvino Benson.

Vance encolheu os ombros, quase imperceptivelmente.

— Quer você comunicar-me — confidencialmente, é claro — quais são esses fatos?

— Mas certamente, — acedeu Markham. "Imprimis": a moça estava na casa no momento em que o tiro foi disparado.

Vance fingiu dúvida:

— Oh! Palavra! Ela estava lá nesse momento? Que coisa extraordinária!

— É irrefutável a evidência de sua presença. Você sabe que foram encontrados na lareira da sala de Benson as luvas que ela usou no jantar, e a bolsa que levava consigo.

— Oh! — murmurou Vance, com um tom de leve súplica na voz. — Não era a moça, então, mas suas luvas e sua bolsa que estavam presentes — diferença diminuta e sem importância, sem dúvida, do ponto de vista judicial... Até deploro que meu espírito ignorante não possa aceitar as duas condições como idênticas. Por que minhas calças estão na tinturaria, concluirá você que eu lá estou também?

Markham voltou-se para ele vivamente.

— Também não significa nada, mesmo para seu espírito de leigo, em matéria de prova, que esses objetos necessários e tão íntimos, que a mulher usou durante o serão, fossem encontrados na manhã seguinte, na casa do homem que a acompanhara?

— Arrisco-me a ser tachado de bronco, mas digo que não.

— Mas, uma vez que a dama não teria usado esses objetos à tarde, e que não teria podido entrar naquela noite em casa de Benson na ausência dele sem que a governanta a visse, como então podiam esses objetos estar ali na manhã seguinte, se ela mesma não os tivesse deixado na véspera?

— Confesso que disso não tenho a menor idéia. Só a própria dama poderia satisfazer a sua curiosidade. Mas há várias explicações plausíveis. Nosso defunto Chesterfield poderia tê-los levado no bolso —' as mulheres estão sempre a sobrecarregar os homens com seus balangandãs e pacotes, arrulhando um pedido: "Podes levar isto no bolso?..." Também podia o verdadeiro assassino tê-los de algum modo apanhado e deixado na lareira de propósito para despistar a polícia. As mulheres, sabe?, nunca põem seus objetos em lugares tão afastados como lareiras e cabides. Deixam-nos, invariavelmente, sobre a poltrona preferida, ou na mesa de centro.

— E Benson também teria trazido no bolso os cotos de cigarro da dama?

— Coisas mais estranhas se têm visto, — retrucou Vance, imperturbável, — embora eu não lhe impute isso nesse caso... As pontas de cigarro, sabe?, podiam ser prova de uma palestra anterior.

— Mas é que seu desdenhado Heath teve a inteligência precisa para se informar da governanta e verificar que ela limpa a lareira todas as manhãs.

Vance teve um sorriso de admiração.

— Você é tão perfeito, não é? Mas... não pode ser essa,. decerto, a única prova que tem contra a dama.

— De modo algum, — assegurou Markham. — A despeito de sua desconfiança, a prova está confirmada.

— Não o duvido, vendo com que freqüência nossos tribunais condenam inocentes... Mas diga-me mais alguma coisa.

Markham prosseguiu com tranqüila segurança: — Meu agente, soube: primeiro, que Benson jantou só com essa mulher no Marseilles, um pequeno restaurante boêmio da Rua 40, Oeste; segundo, que discutiram; e terceiro, que saíram dali à meia-noite, entrando em um auto.

... Ora, o assassinato foi cometido meia hora depois da meia-noite; mas visto que a dama mora em Riverside Drive, número 80, Benson não podia acompanhá-la à casa — o que teria feito, naturalmente, se ela não o acompanhasse à sua — e estar de volta ao tempo em que o tiro foi disparado. E temos prova mais forte, de que ela esteve em casa de Benson. No apartamento da mulher, soube o agente que ela voltou à casa, realmente, perto de uma hora; estava sem luvas e não trazia bolsa, e foi preciso que lhe abrissem a porta com uma gazua, porque, conforme explicou,, perdera as chaves. Ora, você deve lembrar-se de que encontramos a chave na bolsa. E, para confirmar tudo isso, os cigarros apagados da lareira são iguais aos que você encontrou na cigarreira.. Parou para acender de novo o cigarro. Depois continuou: — Isso quanto a essa noite em particular. Logo que soube quem era, destaquei dois homens para investigarem sua vida privada. E justamente quando eu saía do meu gabinete eles me telefonaram. Descobriram que a mulher tem um noivo, um rapaz chamado Leacock, capitão do exército, e que poderia possuir uma arma como a que matou Benson. Para finalizar, este capitão Leacock almoçou com a moça no dia do crime, e esteve em casa dela na manhã seguinte.

Markham inclinou-se para a frente, e continuou, marcando a cadência das palavras com os dedos no braço da poltrona:

— Já vê você que temos o motivo, a ocasião, e o meio... E talvez ainda me diga que não tenho provas para acusar.

— Tudo o que você descobriu, meu amigo, poderia explicá-lo um menino inteligente. E — continuou, sacudindo tristemente a cabeça, — com tais provas, arrancam ao próximo vida e liberdade! Você me assusta! Tremo pela minha segurança pessoal...

Markham, irritado, retorquiu:

— Será você tão amável que me aponte, do vertiginoso pináculo de sua sabedoria, as falhas do meu raciocínio?

— Pelo que vejo, no que respeita à moça você não raciocinou: ligou apenas fatos sem relação entre si e daí saltou em uma conclusão falsa. E afirmo que é falsa, porque a contradizem todas as indicações psicológicas do crime — quero dizer, a única prova real, aponta, sem erro possível, para outra direção. E, — continuou, com um gesto largo e inusitada gravidade — se você prende essa mulher como assassina de Alvino Benson, acrescentará somente um crime — crime estúpido, deliberado e imperdoável — ao já cometido. Ora, entre matar um pilantra como Benson e comprometer a reputação de uma mulher inocente, parece-me que o primeiro caso é preferível.

Markham conteve um movimento de cólera, que lhe luziu nos olhos: eram amigos e, apesar de toda a divergência de caráter, compreendiam-se e respeitavam-se. Desse respeito mútuo procedia a franqueza rude e, às vezes, mordaz com que falavam.

Após um momento de silêncio, Markham sorriu, constrangido.

— Você me faz vacilar, — disse, gracejando. — Mas, de fato, ainda não resolvi a prisão da mulher.

Apesar do tom de motejo, percebi que falava meio a sério.

— Louvo-lhe a moderação: mas com certeza já se dispôs a atormentar a dama, e ver se a apanha em uma ou duas daquelas contradições tão apreciadas pelos magistrados — como se fosse possível a uma pessoa nervosa, ou inquieta, deixar de se contradizer quando o juiz a interroga sobre um crime que não praticou... Diria melhor — metê-la na grelha, reminiscência dos tempos em que se queimava gente na pira, não é?

— Com certeza que vou interrogá-la, — replicou Markham com firmeza, olhando para o relógio. — E, como um agente a levará ao meu gabinete daqui a meia hora, tenho de interromper esta deliciosa e edificante palestra.

— Espera realmente tirar dela alguma coisa que a inculpe, nesse interrogatório? Oh! Seria divertido testemunhar a sua humilhação... Mas presumo que a intimidação dos suspeitos faz parte dos arcanos judiciais.

Markham, que já se encaminhava para a porta, deteve-se a estas palavras, e refletiu um momento.

— Não vejo objeção particular para a sua presença, se deseja assistir.

Pareceu-me que esperava que o humilhado fosse Vance. E sem demora estávamos em um auto, a caminho da Corte Criminal.


VII

 

OS RELATÓRIOS — UMA ENTREVISTA

 


(Sábado, 15 de junho — 3 da tarde)

 


Foi pela porta da Rua Franklin que entramos no velho edifício de pilares de mármore desbotado e antiquadas volutas de ferro. Dirigimo-nos diretamente ao gabinete do Promotor no quarto andar. Ali, como em todo o edifício, tudo cheirava a antigüidade... Os altos tetos, os maciços madeiramentos de carvalho amarelo, os candelabros de bronze e porcelana, pendurados muito baixo, as paredes estucadas, cor de louro escuro, as quatro janelas, altas e estreitas, ao sul — tudo denunciava uma era morta da arquitetura e da decoração.

Cobria o soalho um grande tapete de veludo muito felpudo, da mesma cor parda das cortinas das janelas. Grandes e cômodas poltronas ao redor das paredes e, diante da mesa do Promotor — uma vasta mesa esculpida cujas gavetas chegavam até ao chão, posta debaixo das janelas, em frente à porta. À direita da cadeira giratória, de alto espaldar, outra mesa de carvalho esculpido. Muitas papeleiras, e um grande cofre de segurança. Ao centro da parede leste, uma porta toda decorada de grandes pregos de bronze, coberta por um reposteiro de couro, dava para uma sala estreita e comprida, comunicando o gabinete com a sala de espera; ali o secretário do Promotor e vários funcionários trabalhavam. Em frente a esta porta, outra conduzia ao santuário reservado do Promotor, e ainda outra, em frente às janelas, dava para o corredor.

Vance olhou distraidamente para os lados.

— Então isto aqui é a sede da justiça municipal!...

Foi até à janela e contemplou dali a Torre do Tombo, circular e cinzenta, situada em frente ao palácio.

— Ali estão as masmorras onde são encerradas as vítimas, com o fim de diminuir a competição da atividade criminal entre os cidadãos remanescentes. Que vista interessante, Markham!

O Promotor, sentado à sua mesa, examinava notas e mais notas na sua pasta de papéis.

— Dois de meus homens estão à espera para me falarem, — observou ele sem erguer a vista dos papéis. — Assim, se você quer ter a bondade de sentar-se, eu procurarei, com meus humildes esforços, solapar ainda mais a sociedade...

Apertou o botão oculto na mesa e apareceu à porta um rapaz ativo, de óculos de vidros grossos.

— Swacker, diga Phelps que venha cá, e diga também a Springer se já voltou do almoço, que venha daqui a cinco minutos.

O secretário desapareceu, e logo entrou um homem alto, feições de ave de rapina, ombros curvados, andar lento e desgracioso.

— Que há de novo? — indagou Markham.

— Encontrei alguma coisa, — respondeu o investigador em voz baixa e áspera, — que deve ser proveitosa para o senhor. Depois que lhe transmiti o relatório esta manhã, andei rondando a casa do capitão Leacock, a ver se obtinha alguma informação dos empregados; vi-o sair e segui-o por muito tempo: foi à casa da dama de Riverside Drive, e ali ficou cerca de uma hora. Voltou depois para casa, parecendo-me que estava desassossegado.

Markham refletiu.

— Talvez isso não tenha valor algum, mas em todo o caso estimo sabê-lo. Miss St. Clair estará aqui daqui a pouco, e saberei arrancar-lhe o que sabe. Nada mais por hoje... Diga a Swacker que mande Tracy aqui.

Tracy era a antítese de Phelps. Baixo, um nada robusto, porejava uma amabilidade estudada. O rosto gorducho e alegre, a roupa bem moderna e bem assentada. Usava pince-nez.

— Bom dia, Chefe, — cumprimentou em tom calmo e insinuante. — Soube que Miss St. Clair virá aqui hoje, e vim dizer-lhe o que soube, e que poderá servir no seu interrogatório.

Abriu um livrinho de notas e ajustou o pince-nez.

— Lembrei-me de indagar alguma coisa do professor de canto de Miss St. Clair, um italiano que trabalhou outrora no Metropolitan, mas que hoje dirige uma espécie de sociedade de canto coral, que fundou. Exercita aspirantes a prima donnas, e Miss St. Clair é uma de suas alunas prediletas. Falou-me simplesmente, sem se perturbar, e parece que conheceu muito Benson, que assistiu a alguns ensaios da moça, e que algumas vezes a convidou a acompanhá-lo de táxi. Reinaldo — é o nome do homem — julga que ele lhe pregou alguma peça. No inverno passado, quando ela cantou no Criterion, em uma pequena parte, Reinaldo servia de ponto, e Benson mandou à moça flores de estufa em tal quantidade, que dariam para encher o camarim da estrela, e ainda sobrariam algumas. Tentei saber dele se Benson estava fingindo de santo com ela, mas ele ou não sabia ou não quis dizer.

Tracy fechou o caderno e ergueu os olhos, perguntando:

— Isto serve de alguma coisa, Chefe?

— É ótimo. Continue trabalhando nesse plano, e torne a me falar na segunda-feira.

Tracy cumprimentou e saiu, e o secretário tornou a entrar.

— Springer está aqui. Pode entrar?

Springer era um tipo de investigador completamente diferente de Phelps e de Tracy. Era mais idoso, e tinha o ar sombrio e circunspecto de um dedicado guarda-livros de banco. Não se lhe atribuiria iniciativa, mas ao vê-lo compreendia-se que poderia desempenhar uma tarefa delicada com extrema perfeição.

Markham tirou do bolso o envelope em que anotara o nome dado pelo major Benson.

— Springer, há em Long Island um homem que desejo ver o mais depressa possível. Isso concerne ao caso Benson, e quero que você o descubra e o traga sem tardar muito. Se puder encontrar o nome na lista telefônica, não é necessário ir até lá. Chama-se Leandro Pfyfe. e creio que mora em Port Washington.

Escreveu o nome em um cartão e entregou-o ao investigador.

— Hoje é sábado. Se ele vier à cidade amanhã, que me procure no Stuyvesant. Estarei lá à tarde.

Quando Springer saiu, Markham tornou a tocar a campainha, e deu instruções ao secretário para fazer entrar Miss St. Clair assim que chegasse.

— Está aí o sargento Heath, — informou Swacker, — e deseja falar-lhe, se o senhor não está muito ocupado.

Markham olhou para o relógio que encimava a porta.

— Creio que tenho tempo. Mande-o entrar.

Heath, a princípio surpreso de nos encontrar no gabinete, cumprimentou Markham com o habitual aperto de mão, voltando-se depois para Vance com um amável sorriso.

— Adquirindo mais conhecimentos, Sr. Vance?

— Não posso dizer que sim, sargento, — retrucou Vance em tom brincalhão. — Mas venho aprendendo um grande número de erros, muito interessantes... Como vão as investigações?

O rosto de Heath ficou sério.

— É o que vim dizer ao Chefe. — E, dirigindo-se a Markham, continuou: — Este caso é um quebra-cabeça, senhor. Eu e meus homens ternos falado com uma dúzia de amigos de Benson, e não tiramos deles nem um simples fato de valor. Ou eles nada sabem, ou resolveram ser mudos como ostras. Todos se mostram muito perturbados — aterrados, confundidos — com a notícia do tiro. Mas ter uma idéia do modo por que isso se passou? Dirão a todos que não. O senhor já sabe o estribilho: "Quem quereria matar o bom do velho Al?" "Só um ladrão que não conhecesse o bom velho Al!" "Porque se conhecesse o bom velho Al, nem o próprio ladrão o teria feito..." Diabo! Deu-me vontade de matar alguns daqueles sujeitos, para que pudessem ir-se reunir ao seu bom velho Al.

— E nenhuma notícia do carro? — perguntou Markham. Heath gemeu o seu desgosto:

— Nenhuma palavra!... E isso é engraçado, com toda a publicidade a respeito. Aquelas varas de pescar foram tudo que conseguimos. Ah! O inspetor mandou-me hoje de manhã o laudo post-mortem; irias isso não nos traz nada de novo. Traduzido em linguagem humana, diz que Benson morreu de um tiro na cabeça, tendo todos os órgãos sãos. O que me admira é que não descobrissem que fora envenenado com uma fava do México, ou picado por alguma serpente africana, ou alguma outra coisa semelhante, para tornar o caso mais intrincado do que já é.

— Não desanime, sargento. Eu tive mais sorte: Tracy descobriu que a proprietária da bolsa jantou naquela noite com Benson. Ele e Phelps descobriram outros fatos suplementares, que também têm valor. E espero a dama dentro de um minuto, e descobrirei o que ela mesma sabe.

Por um momento, enquanto o Promotor falava, luziu nos olhos de Heath uma expressão de descontentamento, mas afastou-a logo. Indagou vários pormenores, e Markham deu-lhe todas as informações, inclusive a de Leandro Pfyfe.

— Assim que terminar a entrevista, eu lhe direi o que colhi,— concluiu ele.

Quando a porta se fechou depois de sair Heath, Vance olhou para Markham com um sorriso matreiro.

— Ele não é precisamente um dos super-homens, de Nietzche não? Receio que as sutilezas deste mundo complexo o fatiguem... E está tão desanimado... Eu senti na verdade satisfação, quando aquele rapaz tão ativo, de óculos espessos, anunciou a sua presença. Estou certo de que ele vinha dizer-lhe que prendera pelo menos seis assassinos de Benson...

— Sua imaginação voa muito alto, — comentou Markham.

— Mas é este o processo usual — se devo crer nas manchetes de nossos grandes jornais moralistas. Sempre julguei que, assim que se cometia um crime, a polícia desatava a prender a torto e a direito — para manter a excitação no público. Ora não vê você... Outra desilusão! Isto vai mal! Nunca perdoarei ao nosso Heath: ele traiu a confiança que eu tinha nele!

Entrou o secretário anunciando a chegada de Miss St. Clair.

Supus que íamos todos ter um pequeno desapontamento à vista dessa moça, quando ela entrou na sala, com passo firme e gracioso, a cabeça levemente inclinada para um lado, supercílios erguidos em atitude interrogativa. Era pequena e notavelmente bela, muito embora "bela" não seja a palavra própria para descrevê-la. Possuía aquela beleza quase exótica, que encontramos nos retratos de Carraci, e que adoçou a severidade de Leonardo, tornando-a ao mesmo tempo familiar e decadente. Eram os olhos escuros e muito espaçados; o nariz delicado e fino, a fronte espaçosa. Os lábios, muito suaves, eram quase esculturais na precisão das linhas. Descerrava-os um sorriso enigmático — ou antes a sombra de um sorriso. O queixo, redondo e firme, era talvez duro, examinado isoladamente, mas não em conjunto com os outros traços. Denotava-lhe o porte equilíbrio e certa força de caráter. E a serenidade exterior mal ocultava a sua poderosa emotividade. O trajo harmonizava com a personalidade: era convencional, é certo, mas um toque de cor e de originalidade aqui e ali, bastava para lhe dar um cunho de distinção pessoal e encantadora.

Markham ergueu-se cumprimentando-a com cerimoniosa cortesia, e ofereceu-lhe uma confortável poltrona estofada, fronteira a mesa. Inclinando imperceptivelmente a cabeça, relanceou os olhos para a cadeira, depois sentou-se em uma outra, pequena, próxima àquela.

— O senhor permite-me que escolha a cadeira para o interrogatório?

A voz era grave e sonora, — a voz de uma cantora muito treinada. Sorria ao falar, mas era um sorriso sem cordialidade: frio e distante, ainda que indicasse certa frivolidade.

— Miss St. Clair, — começou Markham, com uma severidade polida. — seu nome está intimamente ligado ao assassinato de Alvino Benson. Contudo, antes de dar qualquer passo definitivo, convidei-a a vir até aqui, para lhe fazer algumas perguntas. E aviso-a lealmente de que sua melhor defesa será a franqueza.

Calou-se, e ela, olhando-o irônica e interrogativamente:

— Agradeço-lhe o generoso conselho.

Markham olhou para uma nota escrita a máquina que tinha sobre a mesa, e a ruga da testa acentuou-se.

— A senhora deve saber que suas luvas e a sua bolsa foram encontradas em casa do Sr. Benson, no dia seguinte ao crime.

— Compreendo que reconhecessem a minha bolsa, mas como poderiam saber que as luvas também me pertenciam?

Lançou-lhe Markham um olhar percuciente. — Pretende dizer que não são suas?

— Oh! Não, — respondeu, com outro sorriso gelado. — Apenas admiro que o descobrissem, não conhecendo meus gostos, nem o número que calço.

— Pertencem-lhe, então, essas luvas?

— Se são Tréfousse, tamanho cinco e três quartos, de pelica branca e com altos canhões, certamente que são minhas. E desejaria que mas devolvessem, se fosse possível.

— Lamento-o, mas é preciso que fiquem aqui ainda por algum tempo.

Ela encolheu os ombros, com indiferença.

— Posso fumar?

Markham abriu imediatamente uma gaveta da mesa e tirou uma caixa de cigarros Benson Hedjes.

— Obrigada, tenho-os aqui. Mas estimaria muito se me desse minha piteira: tem-me feito muita falta.

Markham hesitava. Aquela atitude incomodava-o, positivamente.

— Empresto-lha com muito prazer, — disse, remexendo em outra gaveta. E apresentou-lhe a piteira. — E agora, Miss St. Clair, — continuou gravemente, — a senhora vai-me dizer como foram parar no salão de Benson aqueles objetos de seu uso.

— Não, senhor, eu não posso dizê-lo.

— Compreende a grave interpretação que sua recusa dará aos fatos?

— Não, realmente não pensei nisso, — respondeu, indiferente.

— Pois faria bem em pensar, — aconselhou Markham. — Sua situação não é para invejar; e a presença de objetos seus na sala de Benson não é a única coisa que a envolve diretamente no crime.

Interrogou-o com o olhar, e de novo o enigmático sorriso descerrou-lhe os lábios.

— Acaso tem provas suficientes para me acusar do crime?' Markham deixou a pergunta sem resposta.

— Conhecia muito Benson? Ela parou o golpe:

— O achado de minhas luvas e bolsa na sua casa bem pode atestá-lo, não é?

— É certo que se interessava muito pela senhora? — persistiu ele.

— Oh! sim! Demais, para a paz de meu espírito!... Mas trouxeram-me aqui para comentar as atenções que esse cavalheiro me dispensava?

Ainda desta vez Markham não deu ouvidos à pergunta.

— Onde esteve a senhora da meia-noite a uma hora, isto é, desde que saiu do "Marseilles", até chegar a casa?

— O senhor é admirável! — exclamou ela. — Parece que sabe tudo... Pois bem, só lhe posso dizer que durante esse tempo eu me dirigia para minha casa.

— A senhora gastou uma hora para ir da Rua 40 até à esquina da Rua 81 com a Riverside Drive?

— Precisamente, isto é, minutos mais, minutos menos, talvez.

— Alas como explica isso?

— Não o posso explicar... senão pelo fato da passagem do tempo. O tempo voa, não é verdade?

— Seu procedimento está-lhe causando dano. — preveniu Markham, já irritado. — Não vê que a sua situação é muito grave? Sabe-se que jantou com Benson, que saiu do restaurante à meia-noite, e que chegou a casa depois de passada uma hora. Meia hora depois da meia-noite o Sr. Benson foi assassinado; e na mesma sala em que ele apareceu morto apareceram também, na manhã seguinte, objetos de seu uso particular.

— Na verdade, tudo isso parece acusar-me, — concordou ela com estranha seriedade. — E digo-lhe isto, Sr. Markham: se meus pensamentos pudessem matar o Sr. Benson, ele estaria morto já há muito tempo. Sei que não se fala mal de um morto — há até um provérbio, começando assim "de mortuis", não é? — mas a verdade é que eu tinha razão para detestar intensamente o Sr. Benson.

— Como então foi jantar com ele?

— Já fiz essa pergunta a mim mesma uma dúzia de vezes, — confessou ela amargamente. — Nós, mulheres, somos tão impulsivas — fazemos sempre aquilo que não queríamos fazer... Mas sei como o senhor julga o caso: se eu tinha a intenção de matá-lo, o jantar seria o mais natural dos preliminares. Não é isto mesmo que pensa neste momento? Creio mesmo que todas as assassinas começam por jantar com as suas vítimas.

Todo o tempo em que falou esteve com o espelhinho na mão. Corrigiu a posição de negalhas da sua abundante cabeleira escura, imaginariamente desviadas, depois tocou de leve, com os dedos finos, as sobrancelhas arqueadas, como se retificasse algum traço de lápis mal dirigido. Inclinou a cabeça, examinou-se para ver se estava tudo em ordem, e só olhou outra vez para o Promotor quando acabou de falar. Dava a impressão nítida de que, no seu entender, sua aparência pessoal era muito mais importante do que o assunto da conversação. Palavra alguma lograria exprimir sua indiferença com tanta eloqüência como aquela pantomima.

Markham começava a exasperar-se. Outro que não ele teria sem dúvida empregado os meios que seu cargo lhe conferia para dominar-lhe a vontade. Mas Markham era diferente do tipo comum de Promotor: fugia instintivamente dos métodos terroristas, ameaçadores, especialmente no trato com senhoras. E, contudo, tomaria sem dúvida uma posição mais agressiva, se não lhe acudissem à memória as observações de Vance, no Club Stuyvesant. E devorava-o a incerteza, aumentada pela atitude evasiva da moça.

Por fim perguntou-lhe asperamente:

— A senhora não fez especulações consideráveis, por intermédio da casa Benson Benson?

Ela riu frouxamente, um riso musical e brando.

— Vejo que o major andou contando histórias... Sim, de fato, joguei sem tino. E não tinha necessidade disso. Creio que sou avarenta.

— Não perdeu muito dinheiro ali há pouco tempo? E o senhor Benson convidou-a a fazer um depósito adicional, e, finalmente, vendeu seus títulos, não é verdade?

— Antes não fosse, meu Deus! — lamentou ela, com um gesto trágico, receio, perfeitamente simulado. E agora, acusam-me de ter assassinado o Sr. Benson por uma vingança sórdida, ou um ato de justa desforra?

Sorria maliciosa, e ficou à espera da resposta, como se fosse aquilo um jogo de adivinhação.

Mas Markham continuou, dura e friamente:

— Não é verdade que o capitão Filipe Leacock possui uma pistola como a que serviu para matar o Sr. Benson — uma pistola Colt automática, tipo militar 45?

Ao ouvir o nome do noivo, ela estremeceu e faltou-lhe um momento a respiração. Abandonou o papel que estivera representando, e um fraco rubor espalhou-se-lhe nas faces, subindo até à fronte. Logo, porém, dominou-se, voltando à indiferença jovial que até então ostentara.

— Nunca indaguei do tipo nem do calibre das armas do capitão Leacock, — retrucou despreocupadamente.

— E não é verdade, — prosseguiu a voz imperturbável de Markham, — que o capitão Leacock lhe emprestou uma pistola, que levou à sua casa na manhã anterior ao dia do crime?

— Não é muito gentil da sua parte, Sr. Markham, — disse com ar constrangido, — imiscuir-se assim nas nossas relações — porque sou noiva do capitão Leacock, o que o senhor provavelmente já sabia.

Markham, que a custo se continha, levantou-se.

— Devo deduzir que a senhora se recusa a responder a todas as minhas perguntas, ou devo antes tentar tirá-la da perigosa posição em que se acha?

Ela pareceu refletir.

— Sim, — disse lentamente. — Não tenho coisa alguma para lhe dizer agora.

Markham inclinou-se e ficou com as mãos apoiadas na mesa.

— Compreende as conseqüências que naturalmente advirão dessa atitude? — inquiriu ameaçadoramente. — Os fatos que conheço, comprometendo-a no caso, unidos a essa recusa de dar qualquer esclarecimento, são motivos mais que suficientes para ordenar a sua detenção.

Eu olhava atentamente para ela, enquanto o Promotor falava' e pareceu-me ver que suas pálpebras tremeram levemente. Mas nenhum outro sinal deu de comoção. Encarou o Promotor com ar de desafio irônico.

Markham, de boca contraída, voltou-se à procura do botão da campainha da mesa; mas seu olhar caiu sobre Vance, e deteve-se indeciso. Correspondera ao seu um olhar severo, em que leu não somente o espanto, mas que lhe dizia também, e com mais eloqüência do que o diriam palavras, que estava a ponto de cometer uma tolice irreparável.

Por alguns momentos reinou na sala silêncio profundo. Então, Miss St. Clair, com a maior tranqüilidade, abriu o estojo e empoou o nariz. Quando acabou, olhou serenamente para o Promotor.

— Quer-me prender agora?

Markham refletia. Em vez de responder imediatamente, foi até à janela e ficou a olhar para a Ponte dos Suspiros, que liga a Corte Criminal à Torre do Tombo.

— Não, hoje não, — disse lentamente.

Deteve-se de novo em absorta contemplação; depois, como se sacudisse para longe a irresolução, voltou-se rapidamente e encarou-a de frente.

— Não vou prendê-la hoje, ainda, — reiterou com alguma aspereza. — Mas dou-lhe ordem de ficar em Nova York por agora. E, se a senhora tentar sair da cidade, então será presa. Creio que me entende.

Apertou um botão, e entrou o secretário.

— Swacker, faça o favor de acompanhar Miss St. Clair até lá embaixo e chamar um táxi para ela... E a senhora pode voltar para casa.

Ergueu-se a moça e cumprimentou-o levemente.

— Foi muito amável, senhor, emprestando-me minha piteira, — disse alegremente, depondo a boquilha na mesa.

E, sem mais palavra, saiu da sala.

Mal se fechara a porta, Markham tocou num botão. Logo se abriu a porta, que dava para o outro corredor, e entrou um homem de meia-idade, de cabeleira branca.

— Ben, — ordenou Markham rapidamente, — siga a mulher que Swacker vai conduzindo para a saída. Conserve-a debaixo de vigilância, e não a deixe escapar. Ela não pode sair da cidade, compreende? É Miss St. Clair, que Tracy desencavou.

Depois que o homem saiu, Markham voltou-se para Vance e encarou-o fixamente.

— Então! Que pensa você agora da sua inocente jovem? — perguntou com ar de triunfo marcial.

— É linda! — replicou Vance suavemente. — E que extraordinário domínio de si própria! E vai casar com um militar, não é? Ora! De gustibus... Houve um momento, Markham, em que temi que você pedisse as algemas ali mesmo. E, se o tivesse feito, velho amigo, havia de lamentá-lo toda a vida.

Markham olhou para o amigo por alguns segundos. Compreendia que a certeza de Vance se fundava em alguma coisa que um simples capricho, e foi isso que lhe deteve a mão, quando já ia prender a jovem. Contudo, observou:

— A atitude dela não levaria ninguém a acreditar na sua inocência; representou seu papel com diabólica habilidade, mas isso é o que faria qualquer mulher astuta, que se sentisse culpada.

— E você não notou que pouco se lhe dava que a julgasse culpada ou não? — Que ficou até um pouco desapontada quando viu que a deixava ir?

— Não vi nada disso, — retrucou o Promotor. Culpado ou não, Vance, ninguém quer ser preso...

— E, a propósito, — perguntou Vance, — onde estava o felizardo noivo, à hora em que Alvino morria?

— Pensa então que não examinamos esse ponto? — respondeu o outro desdenhosamente. — O capitão Leacock recolheu-se à casa, naquela noite, às oito horas.

— Sim? — retrucou Vance, indiferente. — Um rapaz modelo, esse camarada!

Markham tornou a encará-lo com olhar penetrante. Depois murmurou pensativo:

— Gostaria de saber que sábia teoria se agita hoje em seu cérebro. Agora, que deixei a moça em liberdade provisória — que é o que você queria — contra meu próprio julgamento, diga-me francamente: o que tem você aí escondido na manga?

— Escondido na manga? Eu?... Que metáfora desenxabida! Quem o ouvisse pensaria que sou algum prestidigitador!

Quando Vance desconversava assim, sabia-o Markham, era que não queria responder diretamente. Mudou, pois, de assunto.

— E você afinal não teve o prazer de presenciar minha humilhação, como profetizou.

Vance encarou-o com simulada surpresa.

— Não vi? Ora esta! Depois acrescentou, pesaroso:

— A vida é tão cheia de desapontamentos...


VIII

 

VANCE ACEITA UM REPTO

 


(Sábado, 15 de junho — 4 da tarde)

 


Depois que Markham telefonou a Heath, dando-lhe conta da entrevista, voltando ao Club Stuyvesant. Era costume do Promotor sair do gabinete aos sábados, à uma hora; mas ligara tal importância à visita de Miss St. Clair, que prolongara hoje o expediente. Mergulhado em profunda meditação, só falou quando nos sentamos no salão do Clube. Estava aborrecido.

— Puxa! Não devia tê-la deixado ir-se... Tenho a intuição de que é culpada.

— Oh! Realmente? Você é muito psicólogo! E tem-no sido a vida inteira, sem dúvida. Nunca notou que seus sonhos sempre se realizam? E não lhe tem acontecido também muitas vezes chamá-lo ao telefone justamente a pessoa em quem você estava pensando naquele momento? Um dom admirável! Lê também nas linhas da mão?... Por que não fez o horóscopo da dama?

— Até agora; — retorquiu Markham, — não tenho prova alguma de que a sua crença na inocência dela se baseia em coisa mais sólida do que as suas impressões.

— Ah! Mas, no entanto, eu sei que ela é inocente. E sei mais: nenhuma mulher poderia ter desfechado aquele tiro.

— Não alimente a idéia errônea de que uma mulher não pode manejar um Colt militar 45.

— Ora! — disse Vance, encolhendo os ombros à observação. — Os indícios materiais do crime não entram em meus cálculos — deixo-os a vocês, advogados, e aos que possuem deltóides salientes. Tenho outros, e mais seguros meios, para chegar às conclusões. Eis aí por que eu lhe disse que, se você prendesse qualquer mulher supondo-a a assassina de Benson, cometeria um erro vergonhoso.

Markham resmungou, indignado:

— Parece que você repeliu todos os processos de dedução, pelos quais se pode alcançar a verdade... Renunciaria, por acaso, inteiramente, a acreditar nas faculdades do espírito humano?

— Ah! Fala a voz do grande povo de Deus! — exclamou Vance. — Seu espírito é muito simbólico, Markham. Ele parte do princípio de que o que você ignora não é conhecimento, e que desde que você não compreende uma coisa, não há explicação para ela. Um ponto de vista muito cômodo... Liberta de toda a preocupação e incerteza. Não acha, Markham, que o mundo é um lugar agradável e cheio de maravilhas?

Markham resolveu aceitar tudo com paciência.

— Ao almoço falou você de um método infalível para descobrir os crimes. Quereria confiar esse profundo e inestimável segredo a um simples promotor?

Vance fez-lhe uma cortesia exagerada (*).

(*) A seguinte conversação, em que Vance explana seu método psicológico de análise criminal, é reproduzida, naturalmente, de memória. Contudo, foi-lhe remetido um exemplar dela, com o pedido de revisá-la e alterá-la no que fosse necessário: de modo que, tal como sai agora publicada, descreve a teoria de Vance, usando, praticamente, suas próprias palavras.


— Com muito prazer. — respondeu ele. — Referia-me ao conhecimento do caráter individual, à psicologia da natureza humana. Todos nós agimos de acordo com o nosso temperamento. Todo ato humano — importante ou trivial, pouco importa — é uma expressão direta da personalidade, e traz o cunho inevitável da sua natureza. Assim, um musicista, diante de uma página de música, pode dizer imediatamente se foi composta por exemplo por Beethoven, Schubert, Debussy ou Chopin. E um pintor, ao olhar para uma tela, conhece logo se é um Corot, um Harpignies, um Rembrandt, ou um Franz Hals. E assim como dois rostos não são exatamente iguais, duas naturezas também não podem ser; a combinação dos elementos que formam a nossa personalidade varia de indivíduo para indivíduo. E é por essa razão que, quando vinte artistas pintam o mesmo assunto, cada um o concebe e executa de maneira diferente. Cada quadro é uma expressão distinta, inconfundível, da personalidade do pintor... Não é tão simples?

— Sua teoria, — respondeu Markham com ironia indulgente, — seria compreensível, sem dúvida, para um artista. Mas confesso que meu vulgar espírito fica muito aquém do seu refinamento metafísico.

— É que o espírito que já se orientou no erro, despreza o caminho mais nobre, — murmurou Vance, suspirando.

— Há alguma diferença entre a arte e o crime...

— Não há nenhuma, psicologicamente, velho amigo. O crime assenta sobre os mesmos fatores de uma obra de arte — concepção, técnica, imaginação, iniciativa e organização. Além disso os crimes variam tanto em suas particularidades, aspectos e natureza, como as obras de arte. Na verdade, um crime planejado cuidadosamente denuncia, tanto como um quadro, a expressão individual do seu autor. E isso é que permite e facilita a pesquisa. Do mesmo modo que um perito de arte, analisando um quadro, pode dizer quem o pintou, ou chega a conhecer a personalidade e o temperamento do pintor, o perito psicólogo analisa um crime e sabe quem o cometeu, se o conhece, ou, no caso contrário, pode descrever com precisão quase matemática a natureza e o caráter do criminoso... E é este, meu caro Markham, o único meio seguro e inevitável de determinar a culpabilidade humana; todos os outros não passam de conjeturas que não se baseiam na ciência, e são incertos e perigosos.

Vance falara quase distraído; não obstante, a grande serenidade e segurança de sua atitude conferia às suas palavras um cunho de autoridade. Markham ouvira-o com interesse, apesar de não lhe levar a sério as teorias.

— Seu sistema, — objetou ele, — despreza de todo os motivos.

— Naturalmente, — replicou Vance, — porque esse fator não tem importância na maioria dos crimes. Cada um de né«. meu caro, tem uma porção de motivos para matar pelo menos alguns homens — os mesmos motivos que são invocados em noventa e nove por cento dos crimes cometidos. E, sempre que aparece um homem assassinado, ficam dúzias de pessoas inocentes, que, no entanto, tinham motivo igualmente poderoso para fazerem o que fez o assassino. Mas o que é certo é que o fato de ter um motivo para fazê-lo não prova, em hipótese alguma, que um homem é culpado — e tais motivos são tão universais como a rac,a humana. Suspeitar que um homem é assassino porque ele tinha um motivo para matar o outro, é o mesmo que suspeitar de que outro tenha fugido com a mulher do vizinho, porque ele tem pernas. A razão por que algumas pessoas matam e outras não, é assunto de temperamento — de psicologia individual. Tudo vem a dar no mesmo... E outra coisa: quando uma pessoa possui um motivo — um poderoso e tremendo motivo — ela pode conservá-lo oculto; pode até dissimulá-lo durante anos de preparação. E o motivo também pode surgir cinco minutos antes do crime, diante da descoberta inesperada de fatos passados há dez anos... Assim, vê você que a ausência de um motivo aparente em um crime, pode ser considerada mais comprometedora do que a presença dele.

— Vejo que vai ser difícil para você eliminar a idéia de cui bono na observação de um crime.

— Digo até que a idéia do cui bono é muito tola, para merecer discussão. Ainda assim, há mortes que aproveitariam a muita gente. Mate Sumner, e, com essa teoria, poderia prender todos os membros da Liga dos Autores.

— Em todo caso, a ocasião é um fator insuperável — e por ocasião entendo certas afinidades de circunstâncias e condições que tornam determinado crime, possível, plausível e útil para determinada pessoa.

— Outro fator sem importância, — asseverou Vance. — Pense nas ocasiões que temos diariamente para matar pessoas que detestamos! Ainda ontem, eu tive à minha mesa dez sujeitos aborrecidos — um dever social. Mal contive — à custa de grande esforço, confesso — o desejo de deitar arsênico no vinho. E isso porque pertenço a uma categoria psicológica diferente da dos Bórgias, só por isso. Ora, se eu estivesse resolvido a matá-los, teria procurado, como aqueles cinquecento patrícios, a oportunidade... E aí é que está a dificuldade — um indivíduo pode fazer a ocasião, ou dissimulá-la, se a tem, com falsos álibis e vários outros ardis. Lembre-se do caso do assassino que chamou a polícia, pedindo-lhe que entrasse em casa da vítima, antes que fosse cometido um crime ali, pois desconfiava disso, e depois entrou adiante e apunhalou o homem enquanto os guardas subiam a escada (*).

(*) Não sei a que caso se referia Vance, mas há muitos exemplos deste ardil no arquivo, e escritores de ficção policial têm aproveitado muitas vezes a idéia. O último exemplo encontra-se no livro Inocência do Tio Brown, de G. K. Chesterton, na história intitulada "O Falso Modelo".


— A presença ou proximidade — também não constitui prova o fato de a pessoa estar no teatro do crime no momento em que esse foi consumado?

— Ainda um erro. A presença de um inocente é muita vez aproveitada como um escudo pelo verdadeiro assassino, que se oculta. Um indivíduo ardiloso pode cometer um crime a distância, servindo-se da presença de um agente. Também pode obter um álibi, e depois ir ao teatro do crime, disfarçado e irreconhecível... Há muitos meios de estar presente, quando todos o supõem longe, e vice-versa... Mas o que não podemos jamais despir é a nossa própria personalidade e natureza. E é por isso que todo crime vai incidir inevitavelmente na psicologia humana — base fixa, indisfarçável, da dedução.

— O que me admira é que, em vista de suas teorias, não proponha você a demissão de nove décimos da força da polícia, e a instalação de uma ou duas daquelas grandes máquinas psicológicas de que os suplementos dominicais tanto gostam.

Vance fumava, pensativo.

— Já li alguma coisa a respeito. É um brinquedo interessante. Elas podem indicar, sem dúvida, certo aumento de força emocional, quando o paciente desvia a atenção das piedosas vulgaridades do Dr. Frank Craner para um problema de trigonometria esférica; mas se ligarem a um inocente os vários tubos galvanômetros, eletroímãs, placas de vidro e botões de cobre de um aparelho desses, e o interrogarem sobre algum crime recente, a agulha reveladora saltará como unia dançarina russa, impelida pelo terror nervoso do paciente.

Sorriu Markham com ar superior.

— Oh! Ao contrário, — respondeu Vance serenamente. — Ela girará do mesmo modo, mas não porque ele seja culpado. Se for um imbecil, a agulha saltará à direita e à esquerda, porque ao paciente repugna esse moderno instrumento de tortura. E, se for inteligente, girará ainda, excitada pelo cuidado dele em dissimular o divertimento que lhe causa a puerilidade de espírito da justiça, que confia em tais tolices.

— Você me comove profundamente. Sinto a cabeça andar à roda, como uma turbina... Mas há ainda muita gente que acredita que a criminalidade provém de um defeito do cérebro.

— É verdade, — acudiu prontamente Vance. — Mas é que infelizmente toda a raça humana possui esse defeito. Virtuoso é o que não tem, por assim dizer, a coragem de mostrar seus defeitos... Entretanto, se você quer falar do tipo do criminoso, então não nos podemos entender. Foi Lombroso, o predileto das revistas científicas de capa amarela, quem forjou a idéia do criminoso nato... Cientistas autênticos, como Du Bois, Karl Pearson e Goring, têm rebatido essas teorias idiotas e cheias de falhas (*).

(*) Pearson e Goring, há mais de vinte anos, fizeram uma investigação detalhada e catalogação dos criminosos profissionais da Inglaterra, e chegaram a demonstrar: 1) que a carreira criminosa começa as mais das vezes entre os 16 e os 21 anos; 2) que noventa por cento dos criminosos eram mentalmente normais; 3) que a maioria dos delinqüentes não são filhos, mas irmãos mais novos de criminosos.


— Sua erudição me derrota, — declarou Markham, chamando um garçom e pedindo outro charuto. — Consola-me, contudo, a certeza de que, por via de regra, o crime vem à tona.

Vance fumou ainda algum tempo em silêncio, contemplando pensativo, pela janela aberta, o nublado céu de junho. Depois explicou:

— É assombrosa, Markham, a quantidade de idéias absurdas que existem, acerca de criminosos. Não posso compreender como uma pessoa sensata pode acreditar na velha superstição de que "o crime vem à tona". Ele raramente "vem", meu caro; e, se tem de vir, para que um Departamento de Homicídios? Por que toda essa atividade vertiginosa da polícia, quando se descobre um cadáver?... Os poetas são responsáveis por essa mania. Foi Chaucer, provavelmente, quem a inaugurou, com o seu "O crime vem à tona", e Shakespeare a levou mais longe, atribuindo ao crime um órgão miraculoso, que fala como se fosse uma língua. E foi também algum poeta, sem dúvida, que concebeu a idéia de que o esqueleto sangra à vista do assassino... E você, como o Grande Protetor dos Crentes, ousaria dizer à polícia que espere tranqüila nos seus gabinetes, ou nos seus clubes, ou nos seus camarins favoritos — onde quer, enfim, que esteja de serviço, — até que o crime venha à tona? Pobre amigo! Se você fizesse isso, logo pediriam ao Governo a sua prisão como particeps criminis, ou requereriam que o internassem num hospício, como lunatico inquirendo (*).

(*) Muitos anos depois, Sir Basil Thompson, ex-Comissário Assistente da Polícia de Londres, escrevia no Saturday Evening Post: "Tome, por exemplo, o provérbio que "o crime vem à tona", que é empregado todas as vezes que um dos milhares de criminosos impunes é apanhado, por uma feliz coincidência, o que impressiona a imaginação popular. E é porque o crime não vem à tona, que todos se alegram quando isso acontece, e invocam um provérbio para patrocinar o fenômeno. O envenenador que cai nas mãos da justiça quase sempre já tinha cometido outros crimes sem despertar suspeitas, até que um dia se deixou apanhar, por algum descuido".


Markham resmungou apenas. Estava muito ocupado, cortando a ponta do charuto e acendendo-o.

— Creio que os homens da polícia têm outra superstição a respeito do crime, — continuou Vance. — e é que o criminoso volta ao lugar onde o cometeu. Esta noção é mesmo explicada por algum recôndito e místico fundo psicológico. Mas, eu posso afirmar-lhe que a psicologia não ensina esta absurda doutrina. Se alguma vez o assassino voltar a ver o corpo de sua vítima, por qualquer outro motivo que não seja retificar alguma falha que tenha deixado, então ele é digno de ser encerrado num manicômio... E quão fácil seria para a polícia apanhar os criminosos, se esta fosse a realidade! Bastava-lhe sentar-se comodamente ao pé do morto jogando para passar o tempo, até que o assassino voltasse, para escoltá-lo até à bastilha, não? O verdadeiro instinto psicológico de quem comete um crime leva-o, pelo contrário, a afastar-se até onde lhe seja possível, para fugir ao castigo (**).

(**) Sir Basil Thompson sustenta este ponto de vista em "Enganos populares sobre o crime" {Saturday Evening Post, 21 de abril de 1923).


— No caso presente, porém, — lembrou Markham, — não estamos esperando inativos que o crime "venha à tona", nem nos aboletamos na sala de Benson, à espera de que o criminoso volte ali.

— No entanto qualquer desses caminhos levá-los-ia ao mesmo insucesso que esse que escolheram.

— Como não sou dotado da sua singular introspecção, apenas posso seguir os ineficazes processos do raciocínio humano.

— Sem dúvida, — comentou Vance, condoído. — E os resultados que a sua atividade obteve até agora me forçam à conclusão de que um homem armado de um punhado de lógica jurídica pode resistir com sucesso aos mais obstinados e heróicos assaltos do senso comum.

Markham estava estimulado.

— Ainda a mesma cantiga da inocência de Miss St. Clair, não é? Contudo, em vista da ausência completa de provas tangíveis que apontem qualquer outro rumo, você deve reconhecer que não me fica caminho a escolher.

— Eu não reconheço nada disso, porque sei que há abundantes provas que apontam para outro rumo: o que acontece é que você não as vê.

— Acha? — retrucou Markham, já abalada a sua serenidade pela despreocupada segurança de Vance. — Pois, meu velho amigo, sinto profunda repulsa por todas as suas belas teorias; e desafio-o a que apresente uma simples peça dessa evidência que sabe existir.

Falara com aspereza, e acompanhara as últimas palavras com um gesto agressivo da mão estendida, que indicava julgar esgotado o assunto.

Pareceu-me que Vance também se tinha azedado um tanto.

— Markham, velho amigo, você bem sabe que eu não sou o vingador do sangue derramado, nem o defensor da honra da sociedade. É um papel fatigante.

Markham sorriu afàvelmente, mas não.replicou. Vance fumou em meditativo silêncio por algum tempo, depois, com grande surpresa para mim, voltou-se sereno para Markham, e disse-lhe tranqüilamente:

— Aceito seu repto. É uma coisa contrária a meus gostos; mas o problema me seduz: apresenta as mesmas dificuldades do caso do Concerto Campestre — uma questão de disputa de autoria (*).

(*) Durante alguns anos, o famoso Concerto Campestre do Louvre foi oficialmente atribuído a Ticiano. Vance, porém, tomou a peito convencer o diretor, Sr. Lepelletier, de que era um Giorgione; e o quadro foi reconhecido como deste artista.


Markham, que ia levar o charuto aos lábios, suspendeu o gesto bruscamente. Mal ouvira o repto, na sua expressão literal: Vance o pronunciara mais como um desafio verbal. E agora, na incerteza, perscrutava o rosto do amigo. Como pudera adivinhar que o seu repto inconsiderado, e lançado meio a sério, meio a gracejar, ia alterar por completo a história criminal de Nova York?

— E como pretende você proceder?

— Sou como Napoleão, — disse Vance com um gesto descuidado: Je m’engage, et puis je vois. Entretanto, quero que você me prometa todo o apoio de que carecer... e que refreará suas observações jurídicas.

Markham contraiu os lábios. Espantara-o a maneira inesperada por que Vance lhe aceitara o desafio; mas sorriu afavelmente, como se lhe parecesse, afinal, que não adviriam conseqüências muito sérias.

— Pois bem, — anuiu ele. — Dou-lhe a minha palavra... Vance, depois de acender outro cigarro, ergueu-se, preguiçosamente.

— Primeiro, vou determinar a estatura exata do criminoso. Isto constituirá uma prova indicatória demonstrativa, não é?

Markham encarou-o, incrédulo.

— Mas como o conseguirá?

— Valendo-me daqueles primitivos métodos dedutivos, que lhe merecem tão tocante confiança. Mas venha: voltemos ao teatro do crime.

Markham, irritado e perplexo, seguiu-o de má vontade, protestando:

— Mas você sabe que já retiraram o corpo; a esta hora tudo na casa deve ter sido posto em ordem.

— Melhor! — murmurou Vance. — Não sou particularmente afeiçoado à vista de cadáveres; e detesto a falta de ordem.

Quando entramos na Avenida Madison, ele chamou um táxi, e, sem uma palavra, nos fez subir.

— Isto é um disparate, — declarava Markham de mau humor, quando íamos a caminho. — Que espera você encontrar agora para guiá-lo? A esta hora tudo foi já obliterado.

— Ah! Meu caro Markham, — disse Vance, com fingida solicitude. — Que falta lhe faz a teoria filosófica! Se qualquer coisa, por mais pequenina que fosse, pudesse ser realmente obliterada, o universo deixaria de existir — estaria resolvido o problema cósmico e o Criador escreveria o C. Q. D. no firmamento vazio. A única probabilidade que temos de continuar nesta ilusão chamada Vida reside no fato de que o conhecimento é como uma decimal periódica. Nunca tentou, quando era criança, completar a decimal um terço, enchendo uma folha de papel inteira com o número três? Sempre lhe ficava a fração um terço. Se você pudesse eliminar o mais pequenino terço, depois de alinhar dez mil três, estaria resolvido o problema. Assim é a vida, meu caro. É unicamente porque nada podemos apagar, que continuamos vivendo.

Calou-se, fazendo um gesto com os dedos, como se fora uma espécie de ponto tangível em suas observações, e ficou a olhar sonhadoramente, pela janela aberta, para o céu azul.

Markham encolhera-se a um canto, mastigando morosamente o charuto. Percebia-se claramente que o dominava uma irritação importante, arrependido de ter lançado o desafio; mas era tarde para retroceder. Mais tarde confessou-me que nesse momento tinha a impressão de que fora arrancado a uma cômoda poltrona, para obedecer aos propósitos ridículos de um doido.


IX

 

A ESTATURA DO ASSASSINO

 


(Sábado, 15 de junho — 5 da tarde)

 


Quando chegamos à casa de Benson, um guarda sonolento, que se recostava na grade do pátio, veio ao nosso encontro. Olhou para mim e para Vance cheio de esperança, supondo-nos suspeitos, levados à casa do morto para um interrogatório. Recebeu-nos um investigador que já estivera ali na manhã do crime. Markham cumprimentou-o e indagou:

— Tudo vai bem?

— Sim, senhor, — replicou o homem amàvelmente. — A velha dama é dócil como um gatinho e uma soberba cozinheira.

— Deixe-nos a sós por agora, Sniffin, — disse Markham, ao entrar na sala.

— O nome do gastrônomo é Snitkin e não Sniffin, — corrigiu Vance depois que este saiu.

— Admirável memória! — murmurou Markham rudemente.

— Um defeito meu, — disse Vance. — Creio que você é uma dessas pessoas que nunca esquecem um rosto, mas não podem lembrar os nomes, não é?

Mas Markham não estava com disposição para gracejos.

— E agora, que me trouxe aqui, que pretende fazer? — perguntou, agitando a mão e sentando-se.

O salão estava como o víramos da primeira vez, mas tudo fora posto em ordem. As cortinas estavam erguidas e a luz da

tarde entrava em profusão, dando mais relevo aos ornatos do mobiliário.

Vance olhou ao redor e estremeceu.

— Estou meio inclinado a dar volta, — balbuciou. — Foi um caso claríssimo, de homicídio justificável, praticado por um decorador de interior indignado.

— Meu caro esteta, — declarou Markham, impaciente, — tenha a bondade de recalcar agora seus preconceitos artísticos, e tratar do problema... Mas se você receia o resultado, — acrescentou com um sorriso malicioso, — ainda é tempo de se retirar, salvando assim suas sedutoras teorias, ainda intactas.

— E permitindo que você mande uma moça inocente para a cadeira elétrica! — exclamou Vance, fingindo-se indignado. É só o cavalheirismo que me impede a retirada. Oxalá nunca tenha eu de lamentar, como o príncipe Henrique, uma negligência na galanteria!

Markham cerrou os dentes e lançou a Vance um olhar feroz.

— Começo a crer agora que há alguma coisa de verdade na sua teoria de que cada homem tem algum motivo para assassinar outro...

— Bem, — replicou Vance alegremente, — agora que começa a pensar como eu, permite que eu mande o Sr. Snitkin dar um recado?

Markham suspirou e encolheu os ombros.

— Fumarei durante a ópera bufa, se isso não prejudicar a representação...

Vance foi até à porta e chamou Snitkin.

— Faça-me o favor de pedir à Sra. Platz que me empreste uma fita métrica e um novelo de barbante; o Promotor precisa disso, — acrescentou, fazendo uma reverência para o lado de Markham.

— Não creio que você pretenda se enforcar, pois não? — perguntou este.

Vance olhou-o com ar de censura e depois disse suavemente: — Permita-me que lhe recomende o Otelo:


"Quão miseráveis são os que não têm paciência! "Que ferida jamais sarou, senão aos poucos?"

 

ou — descendo de um poeta para um espírito vulgar — deixe-me apresentar à sua consideração um pentâmetro de Longfellow: "Todas as coisas vêm às mãos do que sabe esperar". Falso, sem dúvida, mas consolador. Melhor o disse Milton no seu: "Também servem..." Mas Cervantes o exprimiu ainda melhor: "Paciência e baralha as cartas". Conselho sadio, Markham, e expresso livremente, como deve ser um bom conselho. Acredite, a paciência é uma espécie de último recurso — uma prática a adotar quando já nada há a fazer. Ainda assim, como virtude ela às vezes recompensa o que a pratica, embora eu admita que, ela seja por via de regra — outra vez como virtude — inútil. Quer dizer, é a sua própria recompensa. Entretanto, tem sido enfarpelada com vários trajos verbais: "escrava da tristeza" e "soberana sobre os maus regenerados"; "paixão dos grandes corações". Rousseau escreveu: A paciência é amarga, mas seu fruto é doce. Mas talvez seu espírito jurídico se incline para o latim: Superanda omnis fortuna ferendo est, segundo Virgílio. E Horácio também falou no tema: Durum! disse ele, sed levius fit patientia...”

— Por que não virá o diabo do Snitkin? — rosnou Markham.

Quase no mesmo instante abriu-se a porta e o investigador ·entregou a fita métrica e o barbante a Vance.

— E agora, Markham, a sua recompensa!

Inclinando-se sobre o tapete, arrastou a grande poltrona de vime para a posição exata em que estava quando Benson foi alvejado. Era fácil determiná-la, pelas impressões dos rodízios da cadeira sobre a felpa escura do tapete. Passou o barbante através do orifício que a bala deixara no espaldar, e pediu-me que segurasse a ponta, assentando-a no lugar onde a bala batera no madeiramento. Tomou então a fita métrica e, estendendo o barbante através do orifício, mediu a distância de cinco pés e seis polegadas de comprimento, fitando o ponto que correspondia ao lugar da cabeça de Benson, quando ele estava sentado na cadeira. Deu um nó no barbante, para indicar a medida, e esticou-o, estendendo-o numa linha reta desde a marca no painel, passando pelo orifício da cadeira, até ao ponto de cinco pés e seis polegadas em frente ao lugar onde repousara a cabeça de Benson.

— Este nó no cordão, — explicou ele, — representa o lugar exato do cano da arma que tirou a vida a Benson. Acompanha o raciocínio, não é? Tendo dois pontos da trajetória da bala — o furo na cadeira e o sinal no painel — e conhecendo também aproximadamente a vertical da detonação, que foi entre cinco e seis pés distante do crânio do homem bastava prolongar a reta da trajetória da bala até à vertical de detonação para determinar o ponto exato de onde fora disparado o tiro.

— Em teoria está muito bem, — comentou Markham; se bem que eu não veja vantagem de você se dar tanto trabalho para determinar um ponto no espaço... Isso carece de importância, porque você se esqueceu da possibilidade de um desvio da bala.

— Desculpe-me contradizê-lo, — disse Vance sorrindo. — mas ontem de manhã interroguei o capitão Hagedorn e soube que não houve nenhum desvio da bala... Hagedorn examinara a ferida antes de chegarmos, e estava bem certo do que afirmava. Em primeiro lugar, a bala bateu no frontal com um ângulo tal, que tornaria praticamente impossível qualquer desvio, mesmo que se tratasse de uma arma de menor calibre. Em segundo lugar, a pistola com que mataram Benson era de calibre tão grande — um 45 — e a velocidade inicial foi tanta, que a bala teria descrito uma reta, ainda que fosse disparada a maior distância do rosto do homem.

— Mas Hagedorn sabia qual a velocidade inicial? — perguntou ainda Markham.

— Perguntei-lhe e ele me explicou que o tamanho e a característica da bala e o cartucho expelido lhe revelaram tudo. Foi como ele soube que era uma Colt automática — creio que ele chamou-a "Colt oficial" e não uma Colt comum. O peso das balas dessas duas pistolas difere levemente: a da Colt comum pesa 200 gramas, enquanto que a da pistola militar pesa 250. Hagedorn, com um tato hipersensível, pôde, creio eu, perceber logo a diferença, muito embora eu não o acompanhe nos seus dons fisiológicos — minha natureza limitada, você sabe... Entretanto, ele pôde dizer que era uma bala de pistola Colt automática regulamentar, 45. Sabendo isso, sabia que a velocidade inicial era de 809 pés, e que a força do choque era de 329 pés — o que dá uma penetração de seis polegadas no pinho branco a uma distância de vinte e cinco jardas... Criatura admirável, este Hagedorn! Imagine você, ter a cabeça cheia desses extraordinários conhecimentos! Os velhos mistérios — por que um homem escolhe o violoncelo como meio de vida, ou aonde vão parar todos os alfinetes — são um brinquedo de criança, comparados a este — porque um ser humano devota anos de vida às idiossincrasias das balas.

— O assunto não é o que se pode chamar atraente, — disse Markham, aborrecido. — Assim, para argumentar, suponhamos que você achou o ponto preciso da detonação da arma. Aonde vamos chegar com isso?

— Enquanto eu seguro o cordão esticado, queira você medir a distância exata do nó ao soalho. Depois meu segredo será desvendado.

— Este jogo não me tenta, — protestou Markham. — Prefiro de muito a "locomotiva".

Contudo, tirou a medida.

— Quatro pés e oito polegadas e meia, — disse com indiferença.

Vance colocou um cigarro no tapete, no ponto que ficava diretamente debaixo do nó.

— Sabemos agora a altura exata em que a pistola estava erguida, ao deflagar... Você já apanhou o processo pelo qual cheguei a esta conclusão, não?

— Parece-me evidente.

Vance foi outra vez até à porta e tornou a chamar Snitkin.

— O Promotor deseja que lhe empreste sua arma por um momento. Quer fazer uma experiência.

Snitkin entregou a arma a Markham, não sem surpresa, dizendo-lhe:

— Está travado. Quer que destrave?

Markham ia recusar a pistola, quando Vance se interpôs:

— Está bem assim. O Sr. Markham não pretende atirar — espero-o...

Quando o homem saiu, Vance sentou-se na cadeira de vime, e pôs a cabeça bem em frente ao orifício da bala.

— Agora, Markham, queira ficar de pé no lugar onde o assassino parou, e erga a arma bem acima do cigarro que está no chão; depois mire deliberadamente minha têmpora esquerda... Tome cuidado, — continuou, com um sorriso encorajador, — não puxe o gatilho, senão jamais saberá quem matou Benson...

Markham executou tudo, ainda que contra a vontade. Quando estava apontando, Vance pediu-me que medisse a distância do cano da arma ao chão.

Era de quatro pés e nove polegadas.

— É exatamente isso, — disse Vance, erguendo-se. — Já vê, Markham, você tem cinco pés e onze polegadas; logo, a pessoa que matou Benson era mais ou menos da sua altura — com certeza não tinha menos de cinco pés e dez... Isso também é evidente, não?

A demonstração fora tão simples e clara, que Markham estava francamente impressionado; ficara sério, e olhou um momento para Vance, ainda carrancudo.

 

 

 

— Está bem; mas a pessoa que deu o tiro pode ter erguido a pistola mais alto do que eu.

— Não é possível, — retrucou Vance. — Fiz muito exercício de tiro para saber que quando um perito mira deliberadamente um alvo pequeno, mantém firme a arma e sobre uma reta entre seu olho e o objeto visado. A altura a que ergue a arma, em tais condições, determina acuradamente sua própria estatura.

— Esse argumento baseia-se na hipótese de que a pessoa que matou Benson era um perito e apontava deliberadamente um alvo pequeno.

— Não é uma hipótese, mas um fato, — declarou Vance. — Se a pessoa em questão não fosse um atirador exímio, não poderia — a uma distância de cinco ou seis pés ter escolhido a fronte, mas um alvo mais vasto — o peito, por exemplo. Escolhendo a fronte, é certo que visou deliberadamente, não? Além disso, se não fosse perito, e tivesse apontado para o peito, sem alvejar deliberadamente, teria disparado mais de um tiro, provavelmente.

Markham refletia.

— Concordo em que, em face disso, sua teoria parece plausível. O criminoso podia ter mais ou menos cinco pés e dez de altura; mas também podia abaixar-se e escolher depois o alvo.

— É verdade. Mas você esquece que a posição do assassino, neste caso, era perfeitamente natural? A não ser assim, teria atraído a atenção de Benson, que não seria apanhado desprevenido. E que foi apanhado desprevenido prova-o sua postura. Sem dúvida, o assassino podia ter parado um momento a poucos passos sem que Benson olhasse para cima... Deixe-me dizer-lhe, contudo, que a estatura do homem regula entre cinco pés e dez polegadas e seis pés e duas polegadas... Isso não lhe recorda nada?

Markham ficou calado.

— A deliciosa Miss St. Clair, — observou Vance com um sorriso escarninho, — não pode ter mais de cinco pés e cinco, ou quando muito seis pés.

Markham resmungou, mas continuou a fumar, abstrato.

— O capitão Leacock, aposto que tem mais de seis pés, não? Markham pestanejou.

— De onde lhe veio essa idéia?

— Você mesmo me disse. Não se lembra?

— Eu lhe disse?

— Não com as mesmas palavras, mas depois que eu mostrei a altura aproximada do assassino, e demonstrei que ela não correspondia de modo algum à da senhora que você suspeitava, vi que seu espírito ativo buscava outra orientação. E como o inamorato era a única orientação possível, concluí que você deixava que seus pensamentos vagassem ao redor dele. Se ele tivesse a estatura estipulada, você nada diria, mas quando argumentou que o assassino podia ter-se abaixado para atirar, lembrei-me de que o capitão era anormalmente alto... Assim, durante o seu fértil silêncio, meu amigo, seu espírito manteve-se em doce comunhão com o meu, e disseme que o cavalheiro não tinha menos de seis pés de altura.

— Vejo que também possui o dom de ler o pensamento... Agora fico à espera de vê-lo adivinhar o que escrevo.

Falava em tom irritado, mas era apenas porque lhe custava admitir a alteração de suas opiniões. Cedia aos poucos, ia-se submetendo ao domínio de Vance, mas ainda se apegava obstinadamente às primitivas convicções.

— Espero que você não refutará minha demonstração da estatura do assassino? — indagou Vance, com voz melíflua.

— De modo algum. Parece-me plausível... Mas o que me admira é que Hagedorn não tivesse descoberto uma coisa tão simples.

— Disse Anaxágoras que quem precisasse de uma lâmpada, devia enchê-la de azeite. Observação profunda, Markham, daquelas que parecem simples gracejo, e que no entanto contêm uma grande verdade. Uma lâmpada sem óleo é inútil... A polícia tem sempre grande quantidade de lâmpadas — todas as variedades, de fato — mas não tem azeite. Aí está por que não encontra nunca os culpados, a menos que não seja à luz do dia.

Já o espírito de Markham seguia outra direção; ele se ergueu e começou a passear pelo salão.

— Até agora não me passara, pela cabeça que o capitão Leacock pudesse ser o criminoso.

— Por que não lhe passara pela cabeça? Porque um de seus investigadores lhe disse que estava em casa, naquela noite, como um rapaz modelo?

— Creio que sim, — respondeu Markham, continuando a passear pensativamente. Depois, parando de repente, acrescentou:

— Não, não foi isso. Foi a quantidade de provas circunstanciais contra aquela Miss St. Clair... E note, Vance, a despeito da demonstração que acaba de fazer, você não destruiu nenhuma dessas provas. Onde estava ela entre meia-noite e uma hora? Por que foi jantar com Benson? Como vieram parar aqui suas luvas e sua bolsa? E como foram encontradas no fogão pontas de cigarro iguais aos seus? Elas formam o obstáculo, essas pontas de cigarro; e sua demonstração não me convence inteiramente — a despeito do fato de que ela é convincente.

— Com efeito! — disse Vance, suspirando. — Você é positivamente terrível. Não importa, pode ser que eu consiga lançar alguma luz sobre essas perturbadoras pontas de cigarro.

Chamou de novo Snitkin, entregando-lhe a pistola.

— O Promotor agradece-lhe. E faça o favor de trazer aqui a Sra. Platz. Desejamos conversar com ela.

Voltou, sorrindo amàvelmente para Markham.

— Desta vez, desejo conversar eu mesmo com a dama, se isso não o contraria. Ela possui elementos que você desdenhou completamente quando a interrogou.

Markham, apesar de cético, sentiu-se interessado.

— Cedo-lhe o terreno.

 

 

 


CONTINUA