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O CASO BENSON
O CASO BENSON

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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X

 

ELIMINAÇÃO DE UM ACUSADO

 


(Sábado, 15 de junho — 5h30 da tarde)

 


Entrou a Sra. Platz, com aparência mais serena do que na véspera. Havia nas suas maneiras qualquer coisa que a fazia parecer malévola e indomável. Olhou-me com leve expressão de ·desafio. Markham saudou-a apenas, mas Vance levantou-se e indicou-lhe uma cadeira Morris, baixa e acolchoada, perto da lareira, em frente das janelas. Ela sentou-se na beira da cadeira, apoiando os cotovelos nos braços.

— Desejo fazer-lhe algumas perguntas, S.ra. Platz, — começou Vance, fitando-a com olhar aguçado. — E será mais conveniente para todos nós que a senhora diga a verdade. Compreende-me?

Desaparecera aquele modo tranqüilo, meio fantasista, que usava, falando com Markham. Parado em frente da mulher, mostrava-se austero e implacável.

Ela ergueu a cabeça ao ouvir estas palavras. O rosto estava pálido, mas a boca obstinadamente fechada e o fulgor dissimulado do olhar denunciavam-lhe a ansiedade abafada.

Vance esperou um momento, depois prosseguiu, enunciando distintamente as palavras.

— A que horas veio aqui a moça, no dia da morte do Sr. Benson?

Não se notou qualquer sinal no olhar da mulher, salvo uma certa dilatação das pupilas.

— Aqui não veio ninguém.

— Oh! Sim, veio, Sra. Platz, — retrucou Vance com firmeza. — A que horas veio ela?

— Digo-lhe que ninguém esteve aqui, — persistiu ela.

Vance acendeu um cigarro, no que levou longo tempo, sempre de olhar fito nela. Fumou plàcidamente até que a mulher baixou o olhar. Chegou-se então mais para perto e disse-lhe firmemente:

— Se disser a verdade, nenhum mal lhe acontecerá. Mas, se recusar informar-nos, sofrerá as conseqüências. Negar uma prova é um crime, e a lei não terá consideração alguma.

Fez um sinal dissimulado a Markham, que acompanhava o seu trabalho com interesse. Começava ela a mostrar-se agitada. Apoiou-se nos cotovelos, respirando com força.

— Em nome de Deus! Juro-o... Não veio ninguém. Mas a emoção embargara-lhe um pouco a voz.

— Deixe em paz as divindades, — disse Vance negligentemente. — A que horas veio a dama?

Ela apertou obstinadamente os lábios, e durante um minuto houve silêncio absoluto na sala. Vance fumava tranqüilamente, mas Markham, imóvel, em atitude de expectativa, conservava o cigarro seguro nos dedos.

E a voz impassível de Vance repetiu a pergunta:

— A que horas veio ela?

A mulher cerrou as mãos num gesto espasmódico, e inclinou a cabeça para a frente.

— Eu já lhe disse... eu juro...

Vance fez um movimento de impaciência com a mão, e sorriu friamente.

— Assim não pode continuar. A senhora está procedendo ineptamente. Viemos aqui para saber a verdade — e a senhora vai-nos dizer...

— Eu disse a verdade.

— Será preciso que o Promotor mande prendê-la?

— Eu disse a verdade, — repetiu ela.

Vance atirou o cigarro bruscamente para o cinzeiro que estava sobre a mesa.

— Está bem, Sra. Platz. Uma vez que a senhora se recusa a falar a respeito da moça que esteve aqui, naquela tarde, eu vou dizer-lhe alguma coisa a respeito dela.

Falava com desembaraço e segurança, e a mulher olhou para ele, suspeitosa.

— No dia do crime, ao escurecer, tocaram a campainha.. Talvez o Sr. Benson a tivesse avisado de que esperava uma visita, não? Seja como for, a senhora atendeu e fez entrar uma encantadora moça aqui nesta sala... E veja a senhora! Ela sentou-se nessa mesma cadeira que a senhora tão pouco aproveita neste momento.

E sorria um sorriso terrível.

— Depois, a senhora serviu chá à jovem e ao Sr. Benson. Mais tarde, ela partiu, e ele subiu para vestir-se para o jantar... Bem vê, Sra. Platz, que eu sei tudo.

E acendeu novo cigarro.

— Notou alguma particularidade na jovem? Se não notou,, vou descrever-lha: Era baixa — pequena, é o termo. Tinha cabelos e olhos escuros, e trajava simplesmente.

Operara-se uma transformação na mulher. Tinha agora os olhos fixos, as faces lívidas, e respirava ruidosamente.

— Que tem a dizer agora, Sra. Platz? — perguntou Vance asperamente.

Ela respirou profundamente, depois disse com desabrimento:

— Não veio ninguém aqui!

Havia, por certo, alguma coisa admirável naquela obstinação. Vance refletiu um momento. Markham ia falar, mas reconsiderou e tornou a sentar-se, observando atentamente a mulher.

— Seu procedimento é compreensível, — disse Vance. — A moça, sem dúvida, era bem sua conhecida, e a senhora tem uma razão pessoal para querer ocultar a sua vinda aqui.

A estas palavras ela endireitou-se na cadeira, enquanto o terror se lhe estampava no rosto.

— Eu nunca a tinha visto! — gritou. Depois interrompeu-me bruscamente.

— Ah! — respondeu Vance, olhando-a ironicamente. — Nunca a vira... É possível. Mas isso não tem importância. É. uma rapariga séria, aposto — apesar de ter tomado chá sozinha com o Sr. Benson, em casa dele.

— Foi ela quem lhe disse que esteve aqui?

Falava agora sem energia, porque a teimosia anterior a deixara abatida.

— Precisamente, não. Mas nem era necessário: eu sabia sem que ela mo dissesse... A que hora exata veio?

Renunciando, afinal, a todas as mentiras e escapatórias, a governanta respondeu:

— Cerca de meia hora depois de o Sr. Benson chegar do escritório. Mas ele não a esperava — isto é, nada me dissera acerca da sua visita, e só pediu o chá depois que ela chegou.

Neste ponto Markham intrometeu-se:

— Por que não me disse isso quando a interroguei ontem de manhã?

A mulher relanceou pelo salão um olhar inquieto.

— Eu imagino, — interveio Vance alegremente, — que a Sra. Platz receou que o Promotor suspeitasse injustamente da moça.

Ela agarrou-se avidamente a esta desculpa.

— Sim, senhor, foi isso. Eu tive medo de que o senhor pensasse que ela... tinha feito aquilo... E ela era tão calma, tão simpática... Foi essa a única razão, senhor.

— Muito bem, — acrescentou Vance, para animá-la. — Mas diga-me: não ficou desagradavelmente surpreendida ao ver uma moça tão calma, tão simpática, fumando cigarro?

— Mas... sim, senhor. Fiquei, — respondeu ela, admirada. — Mas... não era uma pequena ordinária, posso afirmar-lhe. E a maior parte das moças fumam hoje em dia. Elas não pensam como dantes...

— A senhora tem toda a razão, — assegurou-lhe Vance. — Todavia, as moças atirariam os cigarros para a lareira?

A mulher olhou-o desconfiada, suspeitando que quisesse caçoar com ela.

— Ela fez isso? — perguntou, curvando-se para a lareira e examinando-a. Não vi cigarros aqui hoje de manhã...

— Não podia ver, porque um dos agentes do Promotor fez a limpeza ontem em seu lugar...

A mulher lançou um olhar interrogativo para Markham, indecisa sobre a seriedade da informação, mas a despreocupação e a voz alegre de Vance a sossegaram.

— Agora, que nos entendemos, — disse ele, — notou alguma outra coisa quando a moça esteve aqui? Dizendo-nos isso, presta-lhe um bom serviço, porque tanto eu como o Promotor sabemos que ela é inocente.

Antes de responder, perscrutou o rosto de Vance, um longo e astuto olhar, como se quisesse verificar sua sinceridade; e o resultado deve ter sido favorável, porque respondeu com inequívoca franqueza:

— Não sei se isto poderá elucidar alguma coisa, mas, quando trouxe as torradas, pareceu-me que o Sr. Benson discutia com a moça. Ela parecia aborrecida com alguma coisa que ia acontecer, e pediu-lhe que não lhe exigisse o cumprimento de uma promessa que ela fizera. Eu estive apenas um momento na sala, e não ouvi muitas palavras, mas. exatamente quando saía, ouvi-o rir e dizer que era uma brincadeira, e que nada aconteceria.

Calou-se. esperando ansiosa. Parecia recear que a revelação pudesse antes prejudicar do que favorecer a moça.

— Foi só? — perguntou Vance num tom despreocupado, como se aquilo não tivesse importância.

A mulher demorou a responder.

— Foi tudo o que ouvi. mas... sobre a mesa havia uma caixinha azul, de jóias.

— Oh! Uma caixa de jóias! E a senhora sabe de quem era?

— Não, senhor, não sei. Ela não a trouxera, e eu não a tinha visto nunca em casa.

— Como sabe que continha jóias?

— Quando o Sr. Benson subiu para se vestir, vim retirar a bandeja, e vi que o cofrezinho ainda estava em cima da mesa.

— E a senhora, — disse Vance, sorrindo, — fez de Pandora e espreitou — muito natural, isso, e eu teria feito o mesmo.

Depois cumprimentou-a polidamente:

— É só, Sra. Platz... E não se preocupe por causa da moça. Nada lhe acontecerá.

Depois que ela saiu, Markham, inclinando-se para diante e, tocando em Vance com o charuto, perguntou-lhe:

— Por que não me disse que tinha informações que eu não conhecia?

— Oh! Meu amigo, — disse Vance, franzindo a testa, em sinal de protesto. — A que informações se refere você?

— Como soube que essa Miss St. Clair tinha estado aqui à tarde?

— Eu não sabia, mas suspeitava. Havia pontas de cigarro dela no fogão, e, como ela não tinha vindo cá na noite do crime, deduzi que provavelmente viera mais cedo ainda de dia. E, como Benson só voltou do escritório pelas quatro horas, supus que ela viera ai entre as quatro e a hora da partida para o jantar... Um elementar silogismo, não é verdade?

— E como soube que ela não viera cá à noite?

— Os aspectos psicológicos do crime não me deixaram nenhuma dúvida. Como já lhe disse, ele não foi cometido por uma mulher — aí vêm outra vez minhas hipóteses metafísicas, mas não faça caso... Ontem pela manhã estive parado no lugar que o assassino ocupou, e segui a trajetória da bala, tomando a cabeça de Benson e o sinal no painel como pontos de coincidência. E vi, sem medida alguma, que o criminoso era alto.

— Muito bem. Mas, como descobriu que ela saiu antes de Benson?

— Como teria mudado de roupa, a não ser assim? As mulheres, você sabe, não saem à tarde decotadas,

— Então pensa que foi o próprio Benson quem trouxe a bolsa e as luvas naquela noite?

— Alguém o fez — e não foi Miss St. Clair, com toda a certeza.

— Perfeitamente, — concordou Markham. — E agora, como sabe que ela sentou nesta mesma cadeira?

— De onde podia ela ter atirado os cigarros na lareira? As mulheres não têm boa pontaria, mesmo quando dão para atirar os cigarros através da sala.

— A dedução é simples. E agora espero que me diga como soube que ela tomou chá aqui — a não ser por algum sinal encontrado?

— Agora digo-lhe que me vexa ter de confessar a humilhante verdade... Mas deduzi o fato do samovar, que fora usado e não lavado...

Markham sacudiu a cabeça com desdenhoso orgulho.

— Parece que você também desceu ao nível dos juristas que se socorrem das provas materiais...

— Coro


de vergonha por isso... Contudo, as deduções psicológicas por si sós não determinam fatos in esse, mas in posse, unicamente. Há outras condições, certamente, a serem consideradas. Neste caso, as indicações do samovar serviram apenas de base para uma suposição, ou descoberta, que aproveitei para fazer a governanta falar.

— Não posso negar que obteve bom resultado. Mas gostaria de saber, ainda assim, em que pensava quando acusou a mulher de se interessar pessoalmente pela moça. Essa observação indica que conhecia a situação.

— Markham, — disse Vance com calor, — dou-lhe a minha palavra de que em nada pensava. Fiz a acusação, sem base alguma, apenas para apanhar a mulher em uma denegação. E ela caiu no laço. Mas — que diabo! — parece que acertei, não? Não posso atinar por que motivo ela estava tão assustada... Mas isso não tem importância.

— Talvez não, — disse Markham, meio duvidoso. — E que pensa você do cofre de jóias e da discussão entre Benson e a moça?

— Nada, por ora. São coisas que não se explicam.

Calou-se por algum tempo. Depois disse, com desusada seriedade:

— Markham, tome o meu conselho e não se preocupe com questões secundárias. Digo-lhe que a moça não tomou parte no crime. Deixe-a em paz. Você terá uma velhice feliz, se me ouvir.

Markham, o olhar vago, o semblante carregado, observou:

— Estou convencido de que você pensa que sabe alguma coisa a respeito.

— Cogito, ergo sum, — murmurou Vance. — Você sabe que a filosofia naturalista de Descartes sempre me atraiu. Era a partida da dúvida universal, para a pesquisa do conhecimento de si próprio. Spinoza, no seu panteísmo, e Berkeley, no seu idealismo, interpretaram muito mal o entimema favorito de seu precursor. Em Descartes, até os erros foram brilhantes. Seu método de raciocínio, apesar de todas as suas falhas científicas, deu uma nova significação aos símbolos do analista. O espírito, afinal, pode combinar a precisão matemática de uma ciência natural com as puras abstrações como a astronomia, por exemplo. Para prova, a doutrina dos Vórtices, de Descartes...

— Oh! descanse, — resmungou Markham, — não insisto para que revele sua preciosa informação. Por que, então, me acachapar com uma dissertação sobre a filosofia do século XVII?

— Como quer que seja, você concordará em que, eliminando aqueles perturbadores tocos de cigarro, eliminei também Miss St. Clair como suspeita, não?

Markham não respondeu logo. Não havia dúvida de que as demonstrações daquela hora tinham feito nele uma impressão decisiva. Sua estima por Vance não diminuirá, a despeito de seu constante antagonismo; e sabia que, sob a aparente petulância, escondia ele uma seriedade indiscutível. Além disso, o senso da justiça era muito desenvolvido em Markham: ainda que algumas vezes obstinado, não tinha estreiteza de visão, e jamais o vi recusar-se a aceitar a verdade, mesmo que fosse contrária ao seu interesse. E foi por todas essas razões que não me surpreendeu, de modo nenhum, vê-lo afinal olhar para o amigo com o seu gracioso sorriso de vencido e dizer-lhe:

— Vance, você ganhou a partida. Confesso-o humildemente, e estou-lhe muito agradecido.

Vance, indiferente, foi até à janela.

— Alegro-me de saber que você é capaz de aceitar uma prova que o espírito humano não pode de modo algum negar.

Sempre notei, nas relações daqueles dois homens, que, toda vez que um deles fazia uma observação que lhe tocasse a generosidade, o outro respondia de maneira que punha termo a qualquer demonstração de sentimentalismo. Era como se desejassem conservar ocultas do mundo as faces mais íntimas de sua mútua estima.

Por isso, Markham não deu mostras de ouvir o bote do outro.

— Terá você, por acaso, alguma sugestão ilustrativa, além das negativas, sobre o assassino de Benson? — perguntou ele.

— Sem dúvida! São inúmeras.

— Pode-me apresentar uma aproveitável? — perguntou ainda, imitando o tom chocarreiro de Vance.

Este refletiu por alguns momentos.

— Posso dizer-lhe desde já que deve procurar um homem alto, prudente, familiarizado com armas de fogo, bom atirador, e muito conhecido do morto — um homem que sabia que Benson ia jantar,com Miss St. Clair, ou, se não o sabia, tinha razões para suspeitá-lo.

Markham encarou-o atentamente.

— Compreendo... Não é má idéia, não. E vou dizer imediatamente a Heath que faça investigações para averiguar o que fazia o capitão Leacock na noite do crime.

— Oh! Sem dúvida, — disse Vance distraído, dirigindo-se para o piano.

Markham olhou-o assombrado, e ia falar, quando Vance começou a tocar uma saltitante cançoneta francesa que começa assim:

"Os pardais estão nas vinhas."


XI

 

UM MOTIVO E UMA AMEAÇA

 


(Domingo, 16 de junho — à tarde)

 


No dia seguinte, que era um domingo, almoçamos com Markham no Club Stuyvesant. A idéia desse encontro partira de Vance. Desejava, disseme, estar presente, no caso de Leandro Pfyfe se apresentar.

— Diverte-me imensamente ver como as criaturas humanas se empenham deliberadamente em complicar as coisas mais simples. Têm horror a tudo o que é simples e reto. Todo o moderno sistema comercial nada mais é do que um colossal mecanismo para fazer as coisas do modo mais complicado e demorado. Se alguém faz uma compra no valor de alguns tostões, em qualquer loja de departamentos, a história completa da transação é escrita em triplicata, examinada por uma dúzia de funcionários, assinada e contra-assinada, inscrita em inumeráveis livros, com tinta de várias cores, e depois cuidadosamente segregada em papeleiras de aço. E, não contentes com todas essas supérfluas chinesices, nossos homens de negócios criaram um grande e dispendioso exército de peritos ativos, cujo único mister é complicar e envenenar ainda mais o sistema... E acontece o mesmo, em todas as outras coisas, na vida moderna. Veja essa mania invencível a que chamam golfe. Consiste em fazer entrar uma bola em um buraco, por meio de um bastão. Mas os devotos desse passatempo apresentaram um uniforme característico para jogar. Levam vinte anos a aprender a maneira correta de colocar os pés e o método próprio de enlaçar os dedos ao redor do báculo. E não é só isso, para discutir as pseudodificuldades desse desporto idiota, inventaram um vocabulário peregrino, ininteligível, até para um erudito inglês.

Apontou, desgostoso, para uma pilha de jornais de domingo.

— O assassinato de Benson é um caso simples e que carece de importância. Pois toda a maquinaria judicial vai em alta pressão, e inunda de jatos de vapor toda a comunidade — quando podia ser resolvido em cinco minutos, com um pouco de reflexão inteligente.

Durante o almoço não se falou no crime; como se houvera acordo tácito, o assunto foi evitado. Apenas Markham comunicou-nos, distraidamente, que esperava Heath mais tarde.

Encontramos o sargento à espera no salão de fumar. Ele não parecia contente com o caminho que as coisas tomavam.

— Eu tinha-lhe dito, Sr. Markham, que este caso ia ser difícil... Soube alguma coisa a respeito de Miss St. Clair?

Markham sacudiu a cabeça.

— Ela não está implicada, — respondeu ele, contando-lhe ligeiramente o que se passara na casa de Benson na véspera.

— Bem, se o senhor acha que isso basta, melhor para mim, — comentou ele, um tanto duvidoso. — Mas... e o capitão Leacock?

— É dele que lhe quero falar. Não há prova alguma contra ele, mas muitas circunstâncias suspeitas o comprometem. Parece que a estatura corresponde à do assassino; e não devemos esquecer que ele deve possuir uma arma como a que matou Benson. Era noivo da moça, e as atenções que Benson dispensava a ela podem bem ter sido um motivo.

— E mais, que depois da grande guerra, — acrescentou Heath, — esses rapazes do exército não pensam em mais nada senão em matar gente. Aprenderam a gostar de sangue, lá do outro lado do mar.

— A única dificuldade, — continuou Markham, — é que Phelps apurou, ao investigar sobre o capitão, que este ficara em casa na noite do crime. É verdade que aí pode ter havido uma escapada, e você deve destacar um de seus homens para averiguar bem qual é a situação. Phelps obteve informações de um dos porteiros; talvez fosse útil procurá-lo outra vez e fazer alguma pressão sobre ele... Se chegássemos a descobrir que Leacock não estava em casa naquela noite e àquela hora, talvez obtivéssemos o fio que você procura.

— Tratarei disso. Irei rondar esta noite por lá, e se o rapaz sabe alguma coisa, a despejará antes que eu empregue os meios.

Ainda conversamos mais alguns minutos. Depois, um funcionário uniformizado cumprimentou diferentemente o Promotor, anunciando que chegara o Sr. Pfyfe.

Markham mandou que o fizesse entrar, acrescentando para Heath:

— Você deve ficar para ouvir o que ele vai dizer. Leandro Pfyfe, trajando impecàvelmente, aproximou-se de nós num andar afetado e fátuo. Era uma personagem esquisita. As pernas, muito compridas e finas, de joelhos metidos para dentro, suportavam um tronco bojudo e atarracado; o peito era estufado como o de um pombo de pernas arrufadas; o rosto era redondo, e as bochechas, com duas covinhas, caíam-lhe sobre um colarinho duro e incômodo. O cabelo, esparso e louro, bem liso, trazia-o escovado para trás; e as guias do bigode fino e sedoso, erguiam-se bem enceradas, como pontas de agulhas. Vestia um terno leve de flanela cinzenta, camisa de seda verde-turquesa pálido, gravata de seda pintalgada, e luvas de suedine. Do lencinho cuidadosamente arranjado no bolso do peito evolava-se forte perfume oriental.

Cumprimentou Markham com uma urbanidade viscosa, acolhendo nossa apresentação com uma saudação protetora. Depois, instalando-se na cadeira que o criado trouxera, começou a limpar a luneta de aros de ouro, que usava em uma fita, fitando Markham com olhar melancólico.

— Um caso muito triste, — suspirou ele.

— Sabendo da amizade que o ligava ao Sr. Benson, — disse Markham, — sinto muito ter de apelar para o senhor neste momento. Foi muita bondade sua, na verdade, vir hoje à cidade.

Pfyfe fez um gesto suave com os dedos cuidadosamente tratados. Era, explicou, com inefável fatuidade, para ele, motivo de alegria dar-se um incômodo para auxiliar os servidores do povo. Uma triste necessidade, sem dúvida, mas percebia-se claramente que reconhecia as responsabilidades inerentes ao dito noblesse oblige; e via-se que estava disposto a enfrentá-las.

Deitou a Markham um olhar em que parecia congratular-se consigo próprio, e seus supercílios, substituindo os lábios mudos, pareciam indagar: "Em que lhe posso ser útil?"

— Soube pelo major Antônio Benson — disse Markham, que o senhor era muito amigo do irmão dele, de modo que talvez pudesse dizer-nos alguma coisa sobre seus negócios pessoais, ou relações mundanas; isso talvez nos servisse para apanhar um fio condutor nas investigações.

Pfyfe olhou tristemente para o chão.

— Ah, sim! Éramos muito unidos, na verdade, eu e Alvino — éramos, na verdade, amigos íntimos. O senhor não pode imaginar como fiquei abalado quando soube do fim trágico do meu querido amigo.

Dir-se-ia que eram uma nova edição de Enéias e Achates.

— Lamentei profundamente, — continuou ele, — não poder vir imediatamente a Nova York, para me por ao serviço dos que precisassem de mim.

— Seria certamente um consolo para os outros seus amigos. — observou Vance com fria polidez. — Mas, atendendo às circunstâncias, perdoar-lhe-ão...

Pfyfe, cujas pálpebras bateram rapidamente, como se aquela interrupção o tivesse contrariado, respondeu:

— Não mo perdoarei eu nunca a mim mesmo, embora eu não possa chamar a mim toda a culpa. Na véspera da tragédia, eu resolvera um passeio a Catskills; convidei Alvino a ir comigo, pedi-lhe até, mas ele estava muito ocupado, — continuou, sacudindo a cabeça, como a lamentar a incompreensível ironia da sorte. — Teria sido melhor — oh! quão infinitamente melhor — se ele...

— Demorou-se muito pouco, não foi? — disse logo Markham, interrompendo a provável homilia contra a perversa providência.

— Sim, — concordou Pfyfe, — mas sofri um acidente... Calou-se, esfregando o monóculo, e continuou:

— Meu carro enguiçou, e tive de voltar.

— Que estrada seguiu o senhor? — perguntou Heath.

Pfyfe ajustou delicadamente o monóculo e olhou para o sargento com ar aborrecido.

— Aconselho-o, senhor... Sneed...

— Heath, — emendou o outro asperamente.

— Ah! sim... Heath... Meu conselho, Sr. Heath, é que, se está projetando algum passeio a Catskills, peça ao Automóvel Clube um roteiro das estradas. Meu itinerário talvez não lhe conviesse.

E voltou-se para o Promotor, com um gesto que indicava claramente que preferia falar com um igual.

— Diga-me, Sr. Pfyfe, — perguntou Markham, — o Sr. Benson tinha algum inimigo?

O outro pareceu refletir.

— N-ã-o... nenhum, que eu saiba, e que pudesse levar a malquerença, até ao assassinato.

— Isso quer dizer, no entanto, que tinha inimigos. Poderia dizer mais alguma coisa a respeito?

Pfyfe passou a mão sobre as pontas do dourado bigode, com gesto gracioso, depois pousou o queixo na mão, em postura meditativa.

— Seu pedido, Sr. Markham, traz à baila um assunto que eu hesito em discutir, mas talvez seja melhor que eu confie no senhor... entre cavalheiros, sem dúvida — Alvino, como muitos outros homens, tinha — como direi? — uma (meda pelo belo sexo...

Olhou para Markham, esperando um louvor ao seu extremo tato na exposição de tão delicada verdade.

— O senhor compreende, — continuou, em resposta ao amável assentimento do Promotor, — Alvino não possuía as características especiais que encantam as mulheres (a mim, não sei por que, pareceu-me que Pfyfe se considerava o oposto de Benson neste particular). Alvino conhecia sua inferioridade, e daí vinha que — espero, senhor que compreenda minha hesitação ao mencionar este fato tão desagradável, — mas daí vinha que Alvino lançava mão de certos métodos em seu trato com as mulheres, que nenhum de nós empregaria, na verdade. Embora me penalize dizê-lo — muitas vezes usou de má fé. Métodos desleais, é o que é.

Calou-se, dir-se-ia que escandalizado pela odiosa indelicadeza do amigo, ou pela necessidade em que se achava de fazer aquela revelação.

— Pensava numa dessas mulheres a quem Benson desconsiderou?

— Não, nela não, — replicou Pfyfe, — mas num homem que por ela se interessava. Esse homem ameaçou a vida de Alvino. Sem dúvida, compreenderá minha relutância em dizer-lhe isto, mas serve-me de desculpa o fato de ter a ameaça sido feita abertamente, em público. Muitas pessoas a ouviram.

— Isso, sem dúvida, o isenta da culpa de violação de confidencia, — observou Markham.

Pfyfe agradeceu a harmonia de vistas do outro com leve inclinação de cabeça.

— O fato deu-se em uma pequena reunião em que fui o infortunado anfitrião, — confessou ele modestamente.

— Quem era o homem? — perguntou Markham, em tom polido, mas firme.

— O senhor deve compreender minha resistência... — começou Pfyfe. — Poderia redundar em injustiça para com Alvino,

— continuou depois com ar de franqueza, — esconder o nome do homem... Era o capitão Filipe Leacock.

Neste ponto, aliviou o coração com um suspiro.

— Espero que não exija também o nome da dama...

— Não é necessário, mas gostaria de que narrasse mais alguma coisa desse episódio.

Pfyfe revestiu-se de paciência e resignação.

— Alvino estava muito apaixonado por essa moça, e, devo reconhecer, foi importuno nas suas demonstrações. Ao capitão Leacock não agradaram essas atenções, e na pequena reunião, para a qual eu o convidara, assim como a Alvino, trocaram palavras desagradáveis e, forçoso é confessá-lo, indelicadas. Parece que havia corrido vinho demais, pois Alvino era um homem muito pundonoroso, e versado nas sutilezas do trato social — e o capitão' em uma explosão de ira, disse-lhe que, se não deixasse a dama em absoluta paz para o futuro, pagaria seu atrevimento com a vida. E chegou ao ponto de puxar um revólver do bolso.

— Um revólver, ou uma pistola automática? — perguntou Heath.

Pfyfe sorriu aborrecido, e sem sequer dignar-se dar atenção ao sargento, disse ao Promotor:

— Enganei-me, perdoe-me. Não era um revólver, mas uma pistola de guerra, automática, pareceu-me, mas não a vi muito bem...

— E disse que outros presenciaram a altercação?

— Muitos de meus convidados estavam por ali; mas, palavra, não me é possível nomeá-los. Liguei pouca importância à ameaça — para dizer verdade, esquecera-a completamente, e só ao ler a notícia da morte do pobre Alvino me lembrei do incidente, e disse então comigo: "Talvez deva dizê-lo ao Promotor".

— "Pensamentos que respiram e palavras que queimam", — murmurou Vance, que, durante toda a palestra, se mantivera sentado, visivelmente inquieto.

Pfyfe ajustou mais uma vez o monóculo, e fulminou Vance com o olhar.

— Perdão, senhor...

— Foi apenas uma citação de Gray, — respondeu Vance, com um sorriso. — A poesia me atrai... Conhece, por acaso, o coronel Ostrander?

Pfyfe olhou friamente para ele, mas não lhe viu mais que um rosto inexpressivo.

— Dou-me com esse cavalheiro, — respondeu então, altaneiro.

— Estava ele presente a essa pequena e agradável reunião? — indagou Vance com ar inocente.

— Agora, ao ouvi-lo falar nele, parece-me recordar que estava, — respondeu Pfyfe, erguendo as sobrancelhas interrogativamente.

Mas já Vance contemplava de novo a paisagem.

Markham, aborrecido com a interrupção, esforçou-se para reatar a conversa em tom mais amigável e prático, mas Pfyfe, embora habitualmente loquaz, pouco mais adiantou. Insistia sempre em levar a conversa para o lado de Leacock e, a despeito de seus eloqüentes protestos, via-se que ligava à ameaça mais importância do que dizia. Markham interrogou-o durante uma hora inteira, sem nada obter que valesse a pena.

Quando Pfyfe se levantou para sair, Vance arrancou-se à sua contemplação do mundo exterior, e, cumprimentando-o afavelmente, mirou-o com bonomia.

— Agora, que está em Nova York, Sr. Pfyfe, e que lamentou tanto não ter podido vir mais cedo, espero que fique até ao fim da investigação.

A estudada e habitual serenidade de Pfyfe, eclipsou-se por um momento. Encarou surpreso, mas untuoso, o interlocutor.

— Não contava ficar...

— Pois seria conveniente fazê-lo, se lhe for possível — reforçou Markham, a quem não ocorrera semelhante idéia antes de Vance a emitir.

Pfyfe hesitou, depois fez um gesto elegante, de resignação.

— Pois bem, ficarei. Quando precisar de mim, encontrar-me-á no Ansonia.

E era como se concedesse um favor, por magnânima condescendência. Sorriu ao despedir-se de Markham, mas um sorriso que não vinha do íntimo: parecia ajustado ao seu rosto pela mão invisível de um escultor — apenas moveu os músculos que cercam a boca.

Depois que saiu, Vance olhou para Markham, alegre e surpreso.

— Elegância, facilidade, e dicção excelente... Não confie, porém, na poesia, velho camarada. Nosso amigo ciceroniano é um cruel fabricante de imposturas.

— Se o senhor pretende dizer que ele é mentiroso, — observou Heath, — discordo. Acho que a história da ameaça do capitão é exata.

— Oh! Sem dúvida, é verdadeira... E sabe. Markham, o generoso Sr. Pfyfe ficou muito desapontado ao ver que você não insistia para que revelasse o nome de Miss St. Clair. Este Leandro jamais teria atravessado o Helesponto a nado por causa de uma dama...

— Seja ele ou não nadador, — atalhou o impaciente Heath, — o certo é que nos trouxe um fio condutor.

Markham concordou em que a narração de Pfyfe aumentara a provisão de materiais contra Leacock.

— Estou pensando em chamar o capitão ao meu gabinete amanhã, para interrogá-lo.

Pouco depois entrava no salão o major Benson, e Markham chamou-o para o nosso grupo.

— Vi agora Pfyfe tomar um táxi — disse ele ao sentar-se. — Suponho que esteve aqui e que o senhor o interrogou acerca dos negócios de Alvino... Trouxe-lhe alguma luz?

— Espero que sim, em todos os sentidos, — respondeu Markham, amàvelmente. — A propósito, major, que nos diz do capitão Leacock?

O major ergueu os olhos para Markham, admirado.

— O senhor não sabe que foi um dos capitães do meu regimento? Um homem de grande valor. Conhecia muito Alvino, ao que parece, mas creio que não eram muito ligados... Mas decerto o senhor, não o supõe implicado no caso?...

Markham fez que não ouviu, deixando a pergunta sem resposta.

— Por acaso assistiu o senhor a uma festa que Pfyfe deu, e onde o capitão ameaçou seu irmão?

— Sim, eu lembro-me de ter assistido a uma ou duas reuniões de Pfyfe... Não aprecio, por via de regra, tais festas, mas Alvino convenceu-me de que era de conveniência política.

Levantou a cabeça com o semblante cerrado, e fixou o olhar no espaço, como se procurasse uma lembrança fugitiva.

— Contudo, não me posso lembrar... Por S. Jorge! Creio que posso... Mas se a sua idéia é também a que me ocorreu, pode deixá-la de lado: naquela noite estávamos todos meio embriagados.

— O capitão Leacock puxou uma arma? — perguntou Heath.

O major cerrou os lábios. Depois disse:

— Ouvindo-lhe a pergunta, parece-me lembrar que de fato ele teve esse gesto.

— Viu a arma? — perguntou o sargento.

— Não, não posso dizer que a vi. Markham apressou-se a perguntar:

— E acha você que o capitão Leacock seria capaz de praticar um assassinato?

— Dificilmente. — retrucou o major, vivamente. — Leacock é pacífico. A mulher que deu causa à desavença é mais capaz de praticar tal ato do que ele.

Seguiu-se curto silêncio, que Vance quebrou:

— Que sabe o senhor, major, sobre aquela vitrina de modas · modelo de elegância a quem chamam Pfyfe? Parece uma ave rara... Tem ele uma história, ou sua presença é o único documento que lhe atesta a existência?

— Leandro Pfyfe, — disse o major, — é o espécime típico do moderno.rapaz desocupado. Digo rapaz, embora ele ande já pelos quarenta. Foi bem tratado em menino, creio — davam-lhe tudo o que desejava; mas tornou-se impaciente, e mais tarde seguiu diversas manias, até se saciar delas. Esteve dois anos no Sul da África, matando caça grossa, e creio que escreveu um livro narrando suas aventuras. Daí para cá nada faz, que eu saiba. Casou com uma víbora muito rica — por causa do dinheiro dela, sem dúvida. Mas o sogro fiscaliza os cordões da bolsa, e mantém-no sob rígido regime de ração... Pfyfe é pródigo e preguiçoso, mas parece que Alvino achou nesse homem alguma coisa que o atraiu.

Falava com ar despreocupado e tranqüilo como quem discute um assunto sem importância. Contudo, todos nós tivemos a impressão de que tinha grande aversão pessoal por Pfyfe.

— Não é uma criatura simpática, pois não? — observou Vance. — E abusa do Jicky.

— Seja como for, — disse Heath, cuja testa enrugada denunciava inquietação, — para matar caça grossa, é preciso que o sujeito seja audacioso... E, por falar em audácia, major, o tipo que matou seu irmão era um valente! Atirou de frente, estando o homem acordado, e sabendo que a governanta estava lá em cima. Isso requer nervo!

— Sargento, como você é admirável! — exclamou Vance.


XII

 

O DONO DE UM COLT 45

 


(Segunda-feira, 17 de junho — de manhã)

 


No dia seguinte, eu e Vance chegamos ao gabinete do Promotor pouco depois das nove, e já encontramos o capitão, que esperava ali há vinte minutos. Markham deu ordem a Swacker que o introduzisse logo.

O capitão Filipe Leacock era tipo do oficial do exército — muito alto, 1,85 m, bem barbeado, aprumado e esbelto. O rosto era grave e imóvel. Parou diante do Promotor ereto e sério, na atitude de um soldado que espera ordens do superior.

— Sente-se, capitão, — disse Markham, saudando-o cortesmente. — Pedi-lhe que viesse até cá, como o senhor sem dúvida já o imaginou, para lhe fazer algumas perguntas sobre o Sr. Alvino Benson. Há certos pontos que dizem respeito às suas.relações com ele, e que desejo que me esclareça.

— Sou suspeito de cumplicidade no crime? — perguntou, com leve acento meridional.

— Isso é o que veremos depois, — disse Markham, friamente. — É para esclarecer esse ponto que quero interrogá-lo.

O outro sentou-se, rígido, e esperou. Markham encarou-o de frente.

— O senhor fez há pouco tempo uma ameaça à vida do Sr. Alvino Benson, não foi?

Leacock estremeceu, e seus dedos se crisparam sobre os joelhos. Mas, antes que pudesse responder, Markham continuou:

— Posso dizer-lhe quando foi feita a ameaça: em uma festa dada pelo Sr. Leandro Pfyfe.

Leacock hesitou. Depois adiantou a cabeça.

— Muito bem, senhor, eu admito que fiz a ameaça. Benson era um mau sujeito — ele merecia um tiro... Naquela noite, tornara-se mais incômodo que de costume. Bebera muito — e eu fizera o mesmo, reconheço-o.

Sorriu contrafeito olhando nervosamente pela janela que ficava atrás do Promotor; depois continuou:

— Mas não o matei. Nem soube sequer de sua morte, senão no dia seguinte, pelos jornais.

— Mataram-no com uma Colt do exército, a arma que seus companheiros usaram na guerra, — disse Markham, com os olhos fitos no homem.

— Sei — replicou Leacock. — Os jornais o disseram.

— O senhor tem uma arma dessas, não é, capitão? Nova hesitação de Leacock.

— Não, senhor, — respondeu ele. tão baixo que mal se ouvia.

— Que fez da sua?

O homem olhou para Markham, mas desviou os olhos.

— Eu... perdi-a... na França. Markham sorriu sem vontade.

— Como explica então o fato de o Sr. Pfyfe ter visto a arma na noite em que-o senhor fez a ameaça?

— Viu a arma? — perguntou, olhando embaraçado, para o Promotor.

— Sim, viu-a, e reconheceu-a como uma arma do exército, — insistiu Markham, a voz sem timbre. — Também o major Benson viu-o fazer o movimento de puxar a pistola.

Leacock respirou profundamente, e contraiu com força os lábios.

— Digo-lhe, senhor, que não tenho a arma... Perdi-a na França.

— Talvez não a tivesse perdido, capitão. Quem sabe se a emprestou a alguém?

— Não, senhor! — exclamou, numa explosão mal contida.

— Pense um minuto, capitão... Não a emprestou a alguém?

— Não, não a emprestei!

— Ontem o senhor fez uma visita — em Riverside Drive... Talvez tenha levado a arma.

Vance escutava atentamente.

— Oh, que espertalhão! — murmurou ele ao meu ouvido. O capitão Leacock moveu-se em sua cadeira, inquieto. O rosto, apesar da pele muito queimada, pareceu empalidecer. Procurou escapar ao implacável olhar do seu inquisidor, concentrando a atenção em algum dos objetos que estavam sobre a mesa. Quando voltou a falar, a voz, até então firme, estava alterada pela ansiedade.

— Não, não a levei comigo... Não a emprestei a ninguém.

Markham, inclinando-se sobre a mesa, mão no queixo, como uma ameaçadora imagem esculpida, insistiu:

— Podia tê-la emprestado antes daquela manhã...

— Antes da...?

Leacock levantou a cabeça lentamente, como se quisesse analisar o reparo do outro. Markham aproveitou-se da sua perplexidade.

— Emprestou sua arma a alguém depois que voltou da França?

— Não, nunca a emprestei... — começou ele, mas de repente vacilou e corou. Depois acrescentou apressadamente:

— Como poderia emprestá-la? Já lhe disse, senhor...

— Isso não tem importância, — atalhou Markham. — Então o senhor tinha uma arma, não, capitão?... E desembaraçou-se dela?

Leacock abriu os lábios, mas tornou a fechá-los sem dizer palavra.

Markham abandonou o assunto e recostou-se na cadeira.

— O senhor sabia que o Sr. Benson aborrecia Miss St. Clair com suas cortesias?

Ao ouvir o nome da moça, o capitão empertigou-se; o rosto tingiu-se-lhe de intenso rubor, e ele olhou ameaçadoramente para o Promotor. Depois de respirar lenta e profundamente, saiu-lhe a voz por entre os dentes cerrados:

— Deixemos Miss St. Clair fora disto! — exclamou, parecendo querer saltar sobre Markham.

— Infelizmente não posso fazê-lo, — disse Markham, em tom benevolente, mas firme. — Muitos fatos a ligam ao crime. Sua bolsa, por exemplo, foi encontrada na sala de Benson na manhã seguinte ao assassinato.

— Isso é mentira, senhor!

Markham fez que não ouviu o insulto.

— A própria Miss St. Clair reconhece essa circunstância. Não, — continuou, erguendo a mão ao ver que o outro ia responder. — Não interprete mal a exposição do fato. Não acuso Miss St. Clair de ter tomado parte nisto. Empenho-me apenas por encontrar alguma luz na própria relação que o senhor tem com o fato.

O olhar do capitão indicava claramente que não acreditava naquelas palavras. Depois afirmou peremptoriamente:

— Nada mais tenho a dizer sobre o assunto, senhor.

— O senhor já sabia — não? — que Miss St. Clair jantou com Benson no Marseilles, na noite em que ele foi morto?

— Que importância tem isso? — retorquiu Leacock asperamente.

— E sabia, não é?, que saíram do restaurante à meia-noite, não tendo Miss St. Clair voltado a casa senão depois da uma hora?

Estranho fulgor surgiu nos olhos do homem. Esticaram-se-lhe as veias do pescoço, e ele respirou profundamente. Mas olhou para Markham, sem nada dizer.

— O senhor sabia, sem dúvida, — prosseguiu a voz monótona, — que Benson foi assassinado meia hora depois da meia-noite?

Markham esperou, mas durante um minuto houve na sala completo silêncio.

— Não tem mais nada a dizer, capitão? — perguntou afinal. — Nenhuma explicação mais a dar-me?

Leacock não respondeu. Continuava a olhar para a frente, imperturbável; era evidente que tinha selado os lábios, por ora, ao menos.

— Nesse caso, — disse Markham erguendo-se. — vamos dar por terminada a entrevista.

Assim que o capitão Leacock saiu, tocou a campainha, chamando um escrevente.

— Diga a Ben que siga esse homem, que descubra aonde vai e o que faz. Quero um relatório no Club Stuyvesant logo à noite.

Quando ficamos a sós, Vance olhou para Markham, meio surpreso, meio zombeteiro.

— Engenhoso, — para não dizer artístico... Mas, sabe? Suas perguntas a respeito da dama foram muito indiscretas.

— Não duvido, mas parece que agora estamos na pista certa. Leacock não me deu a impressão da inocência inatacável.

— Sim? E quais eram os sinais de culpa... atacável?

— Não viu como ele ficou lívido quando o interroguei acerca da arma? Tinha os nervos irritados — estava verdadeiramente assustado.

Vance concordou.

— Que grande sortimento de idéias preconcebidas você armazenou, Markham! Não sabe então que um inocente, quando se sente suspeitado, fica mais nervoso do que um criminoso, que, em primeiro lugar, teve nervo bastante para matar, e, depois, compreender que se mostrar nervosismo será logo reconhecido culpado pelos seus auxiliares juristas? Aquilo de "minha firmeza é uma firmeza de dez, porque meu coração é puro", é mera brincadeira de escola dominical. Ponha a mão no ombro de um inocente, e diga-lhe: "Está preso", e verá suas pupilas se dilatarem, seu corpo abater-se em suores frios, o sangue fugir-lhe das faces; terá tremores e dispnéia. Se for cardíaco, terá sem dúvida um colapso. Mas o criminoso, assim atacado, arqueia as sobrancelhas, surpreendido e incomodado, e por fim retruca: "Oh! O senhor não está falando sério... Aceita um charuto?"

— Poderá agir assim o criminoso empedernido, mas um homem honesto, se é inocente, não se irrita quando o acusam.

Vance sacudiu a cabeça, desesperançado.

— Meu caro amigo, Crile e Voronoff viveriam em vão, se todos pensassem como você. As manifestações de medo provêm de secreções glandulares — nada mais. Provam apenas, no indivíduo medroso, pouco desenvolvimento da tireóide, ou anormalidade da supra-renal. Um homem acusado de um crime mostra a arma ensangüentada com que o cometeu, ou sorri serenamente, ou solta gritos agudos, ou tem ataques de nervos, ou desmaia, ou aparenta indiferença — conforme as funções de suas glândulas, e sem que tudo isso tenha relação alguma com a sua maior ou menor culpa no caso. Sua teoria seria exata, se em todos os indivíduos a quantidade das várias secreções internas fosse a mesma. Mas isso não se dá... E, na verdade, você não pode mandar um homem para a cadeira elétrica, simplesmente porque ele tem insuficiências glandulares. Isso não é brinquedo...

Antes que Markham respondesse, Swacker entrou, anunciando que Heath chegara.

O sargento, impando de satisfação, entrou radiante sala adentro. Dessa vez, esqueceu-se de apertar as mãos dos presentes.

— Enfim! Parece que apanhamos alguma coisa aproveitável. Fui ao apartamento do capitão Leacock ontem à noite, e descobri que ele, na noite de 13, ficou em casa, realmente, mas até à meia-noite. Logo depois saiu, dirigindo-se para oeste — tome nota disso! E não voltou senão depois de uma e um quarto!

— Que queria dizer então a primeira versão do porteiro do hotel?

— É a melhor parte da história. Leacock subornou o rapaz. Deu-lhe dinheiro para ele jurar que não o vira sair naquela noite. Que pensa de tudo isto, Sr. Markham? Um tanto duro de roer, não?... O.rapaz desatou a língua, quando eu lhe dei a entender que ia prendê-lo por me parecer que era ele mesmo o assassino. E — continuou, com um sorriso desagradável, — não dirá nada a Leacock.

Markham aprovou, movendo lentamente a cabeça.

— Isso justifica certas conclusões a que cheguei ao falar com o capitão hoje de manhã, sargento. Ben mandou segui-lo, ao sair daqui, e saberei o.resultado logo à noite. Amanhã estará tudo decidido. Falar-lhe-ei de manhã, e se aparecer alguma novidade, já sabe, será obra sua.

Quando Heath saiu, Markham cruzou as mãos sobre a nuca, recostando-se alegremente na cadeira.

— Creio que alcançamos a solução. A moça jantou com Benson, depois voltou à casa dele. O capitão, desconfiando do fato, saiu, encontrou-a ali, e matou Benson. Isso explica não somente o encontro de sua bolsa ali, mas o tempo que levou para ir do Marseilles à casa. Justifica também a atitude dela aqui no sábado; e a mentira do capitão a respeito da pistola... Aqui, parece-me, tenho o caso todo desvendado. A destruição do álibi do capitão confirma-o.

— Oh! Perfeitamente! — disse Vance, distraído. — A esperança, triunfante, alça o vôo...

Markham olhou-o por um instante e disse:

— Será possível, Vance, que você tenha renunciado inteiramente aos meios que nos dá a razão humana para chegar à solução das coisas? Pois temos uma ameaça, um motivo, a hora, o lugar, a ocasião, a ação, e o culpado...

— Essas palavras são-me estranhamente familiares, — disse Vance, sorrindo. — Não aplicou você já a maior parte delas àquela moça?... E, além disso, você ainda não apanhou o criminoso. Sem dúvida, ele anda por aí, em qualquer parte... Mas isso, já se vê, é apenas um pormenor...

— Não o tenho na mão, — contestou logo Markham, — mas com um bom agente a vigiá-lo constantemente, Leacock não se poderá desfazer facilmente da arma.

Vance encolheu os ombros, indiferente.

— De qualquer modo, você apenas descobriu uma conspiração.

— Conspiração? Que diz você?

— Uma conspiração de circunstâncias, sabe?

— Enfim, alegro-me de que não seja com a política internacional, — retrucou Markham, risonho.

Olhou para o relógio, dizendo:

— Você não se incomodará se eu começar a trabalhar, Vance? Tenho várias coisas a atender, e os comissários esperam-me. — Por que não atravessa o corredor e vai falar com Ben Hanlon? Poderá voltar às onze e meia, e almoçaremos no Clube dos Banqueiros. Ben é o nosso maior especialista em extradições e passou a maior parte da vida correndo o mundo, à caça de evadidos da justiça. Ele lhe contará casos interessantes.

— Mas que coisa tentadora! — exclamou Vance, bocejando. Mas, em vez de aproveitar o conselho, foi até à janela e acendeu um cigarro. Levou mais tempo do que o usual para soprá-lo, rolá-lo entre os dedos, e examiná-lo com grande interesse.

— Veja, Markham, tudo hoje em dia vai decaindo. É esta estúpida democracia. Até a nobreza está degenerando. Estes cigarros Regie, por exemplo: estão cada vez piores. Houve tempo em que nenhum potentado que se respeitasse fumava coisa assim inferior.

Markham sorriu antes de perguntar:

— Qual é o favor que você quer de mim?

— Favor? Que tem isso que ver com a queda da aristocracia européia?

— Já notei que, quando você quer pedir um obséquio que lhe parece discutível, começa sempre com uma confissão de realismo...

— Que camarada observador!... — comentou Vance, secamente. — Mas, — continuou, já agora sorrindo, — não se incomoda se eu convidar o coronel Ostrander para almoçar também?

Markham lançou-me um olhar suspicaz.

— Bigsby Ostrander, diz você?... É o misterioso coronel por quem você pergunta há dois dias a todo o mundo?

— Ele mesmo. Um asno magnífico, e tudo o mais. Pode, contudo, vir a ser de grande utilidade. É o papa do grupo de Benson, por assim dizer: conhece todo mundo. Um tipo comum de indivíduo difamador.

— Faça tudo para que ele vá, — disse Markham e, pegando no fone, acrescentou: — Agora vou dizer a Ben que você volta daqui a uma hora.


XIII

 

O CADILAC CINZENTO

 


(Segunda-feira, 17 de junho — 12h30)

 


Quando entramos no restaurante do Clube dos Banqueiros, às doze e meia, já o coronel Ostrander ali estava às voltas com um cocktail mais parecido com um molho pegajoso, por causa da lei seca. Vance telefonaralhe imediatamente depois que saímos do gabinete do Promotor, pedindo-lhe para ir ao Clube; e pareceu-me que o coronel estava ansioso por atender.

— Eis aqui o homem mais divertido de Nova York, — disse Vance, apresentando-o a Markham (eu já o conhecia) — Um sibarita e epicurista. Dorme até ao meio-dia, e não toma compromisso para antes da hora do chá. Encontrei-o e tive de ameaçá-lo com a sua ira oficial para conseguir apanhá-lo aqui a esta hora matinal.

— Apenas muito satisfeito, de poder prestar algum serviço, — afirmou o coronel, grandiloqüentemente. — Que coisa triste, meu Deus! Eu não podia acreditar, quando li nos jornais. E, não me importa de dizê-lo, eu tinha alguma idéia sobre esse caso — e até pensei em falar com o senhor a respeito disso.

Assim que nos sentamos à mesa, Markham começou a interrogá-lo sem mais preâmbulos.

— O senhor conhece todos os membros do grupo de Benson, coronel. Diga-nos alguma coisa acerca do capitão Leacock. Que espécie de sujeito é ele?

— Ah! O senhor lembrou-se do nosso elegante capitão? E o coronel puxou com ar importante o grande bigode branco. Era um homem de faces vermelhas e volumosas, de espessas sobrancelhas e olhos azuis. Suas maneiras e seu porte davam-lhe o ar de um pomposo general de opereta.

— Não é má a idéia. Podia bem ter feito isso. Sujeito esquentado. Está estupidamente apaixonado por uma Miss St. Clair — uma linda pequena. E Benson também estava apaixonado. Eu mesmo, se tivesse vinte anos menos...

— O senhor é também muito encantador, coronel, — interrompeu Vance. — Mas diga-nos alguma coisa sobre o capitão.

— Ah! sim... o capitão. É originário da Geórgia. Serviu na guerra — uma espécie de condecoração. Não gostava de Benson — detestava-o, na verdade. Temperamento ardente, dessa espécie de pessoas sinceras e altivas; ciumento, de mais a mais. O senhor conhece o tipo: um produto daquela etiqueta tribal, abaixo da linha Mason e Dixon. Coloca as mulheres sobre um pedestal — não que elas não mereçam ser postas lá, Deus as abençoe! Mas é que ele iria para a cadeia pela honra de uma dama. Um paladino do sexo feminino. Sujeito sentimental, cavalheiresco; o tipo exato capaz de fazer saltar os miolos do rival — nada de perguntas — pum! — e está pronto. Camarada perigoso para brincadeiras. Benson foi um idiota indo incomodar a moça que ele sabia ser noiva de Leacock. Brincar com fogo. Confesso que estive tentado a avisá-lo; mas isso não era da minha conta... Não me intrometi no assunto. Mau gosto!

— Em que pé iam as relações do capitão com Benson? — perguntou Vance. — Quero dizer: eram íntimos?

— Absolutamente, — replicou o coronel com um gesto firme de negativa. Não, não eram. Relações cerimoniosas, apenas. Encontravam-se aqui e ali, e eu mesmo, que os conhecia a ambos muito bem, convidei-os várias vezes para pequenas reuniões.

— Sabe se o capitão Leacock é um bom jogador — bem equilibrado, etc.?

— Jogador?. Hum... — respondeu o coronel com ar de profundo desprezo. O mais miserável que já vi na minha vida. Jogava pôquer pior que uma mulher. Muito excitável — -' não podia conservar o domínio de si mesmo. Muito arrebatado.

Depois de uma pausa, continuou:

— Por Deus! Vejo aonde querem chegar... E têm razão. Esses jovens presumidos e arrebatados como ele vão até ao ponto de matar as pessoas de quem não gostam.

— O capitão, nesse ponto, — observou Vance, — é completamente diferente do seu amigo, coronel, o Sr. Leandro Pfyfe.

O coronel pareceu refletir.

— Sim e não, — disse por fim. — Pfyfe é jogador frio, posso afirmá-lo. Fundou há algum tempo uma casa de jogo particular em Long Island, por sua conta — roleta, monte, bacará, toda a espécie de jogos. — E também caçou tigres e javalis na África por algum tempo. Mas Pfyfe se deixa levar pelo seu lado sentimental, e lança um par de dados com todas as probabilidades da aposta contra si. Não é um bom jogador, um jogador científico. Rápido nos impulsos, compreende? Não me admiraria, por exemplo, que ele matasse um homem e esquecesse tudo daí a cinco minutos. Mas seria preciso uma grande provocação... Ele pode ter feito isso — ninguém pode dizer que não.

— Pfyfe e Benson eram íntimos, não eram?

— Muito, muito. Sempre andavam juntos, quando Pfyfe estava em Nova York. Conheciam-se há muitos anos. Companheiros da alegria, como se dizia antigamente. Moraram juntos, antes do casamento de Pfyfe. Uma mulher exigente, a esposa de Pfyfe; leva-o a reboque. Mas tem montes de dinheiro...

— E por falar em senhoras, — disse Vance — qual era a situação entre Benson e Miss St. Clair?

— Quem pode dizê-lo? — perguntou o coronel, sentenciosamente. — Muriel não gostava de Benson, isso é certo. E ainda assim... as mulheres são criaturas tão estranhas...

— Oh! Inutilmente estranhas! — disse Vance, levemente enfadado. — Mas na verdade, eu não me referia às relações pessoais com Benson. Julguei que o senhor pudesse saber que idéia ela tinha a respeito dele.

— Ah! Compreendo. Se ela, em último caso, se teria visto obrigada a tomar alguma medida desesperada contra ele?... Por Deus! É uma idéia!

E o coronel começou a refletir sobre o assunto.

— Muriel, na verdade, é uma moça de caráter estranho. Trabalha arduamente na sua arte. Ela é cantora, e — não é demais dizê-lo — verdadeiramente primorosa cantora. Ela é sagaz, também — diabòlicamente sagaz. E competente. Não recearia aproveitar-se de uma oportunidade, e é, além disso, independente. Eu mesmo não gostaria de me encontrar no seu caminho, se ela tivesse algum motivo de queixa de mim... Não se detém diante de nada.

E, sacudindo a cabeça com ar entendido, continuou:

— As mulheres, neste ponto, são muito estranhas: sempre nos causam surpresas. Não têm nenhum senso dos valores: a mais pacífica mataria um homem, sem mais nem menos.

Interrompeu-se de novo. De repente, seus olhinhos azuis brilharam como porcelana, e ele exclamou:

— Oh! Muriel jantou sozinha com Benson na noite em que ele foi morto — na mesma noite! Eu próprio os vi juntos, no "Marseilles".

— Não diga!? — exclamou Vance, sem muito interesse. — Mas parece-me que todos nós precisamos de comer... A propósito: conhecia muito Benson?

O coronel olhou-o espantado, mas a expressão inócua de Vance pareceu tranqüilizá-lo.

— Se o conhecia? O querido camarada! Conhecia Alvino Benson há quinze anos. No mínimo quinze — talvez mais. Eu lhe mostrei toda a nossa velha cidade, antes que ela fosse o que é hoje — adormecida. Era então uma alegre cidade, tudo às escancaras, a gente tinha tudo o que queria. Que tempos! Eram os do velho Haymarket: ninguém pensava em voltar para casa senão depois do café de manhã...

Vance tornou a interromper-lhe as palavras inoportunas:

— Era então muito íntimo do major Benson?

— Do major?... Isso é outra coisa. Eu e ele pertencemos a escolas diferentes. Gostos dessemelhantes, talvez... Nunca averiguamos isso: víamo-nos raramente.

Julgou talvez necessária alguma explicação, porque antes que Vance falasse acrescentou:

— O major, sabe?, nunca foi um dos nossos rapazes, como nós dizemos. Não aprovava a nossa alegria, não se unia ao nosso pequeno grupo; considerava-nos, a mim e a Alvino, muito frívolos. Um espírito sério...

Vance continuou a jantar em silêncio por alguns momentos, e depois perguntou de improviso:

— Fez muitas transações por intermédio da firma Benson Benson?

Pela primeira vez o coronel pareceu hesitar na resposta. Enxugou ostentosamente a boca antes de responder, em tom despreocupado:

— Oh! Meti-me um pouco nos negócios, mas não fui muito feliz... Todos nós, então como agora, namorávamos a deusa da Sorte no escritório da casa Benson.

Durante todo o almoço, Vance dirigiu-lhe perguntas nesse tom; mas ao fim de uma hora, parecia tão longe de uma conclusão como a princípio. O coronel Ostrander era loquaz, mas de uma volubilidade vaga e desorganizada. Falava com muitos parênteses; insistia em respostas trabalhadas, tinha opiniões incoerentes, de modo que era quase impossível extrair uma informação certa de suas palavras.

Vance, contudo, não se mostrou desanimado. Falou insistentemente no caráter do capitão Leacock, e pareceu particularmente interessado nas suas relações pessoais com Benson. Também lhe ocuparam a atenção as propensões de Pfyfe para o jogo, e deixou que o coronel divagasse sobre a casa de jogo do homem em Long Island, e escutou suas enfadonhas narrativas das caçadas de Pfyfe na África. Fez diversas perguntas acerca de outros amigos de Benson, sem dar, aliás, muita atenção às respostas.

Toda a palestra me pareceu sem um objetivo, e não pude deixar de ficar curioso sobre o que esperaria Vance tirar dela. Markham também estava surpreendido, mas aparentava interesse, polidamente; sacudia a cabeça, mostrava apreço pelos períodos incrivelmente dilatados do coronel; contudo, vi-lhe os olhos vagos mais de uma vez e em certas ocasiões vi-o dirigir a Vance um olhar de censura. O que é certo, porém, é que o coronel Ostrander conhecia aquela gente toda.

Quando voltamos ao gabinete do Promotor, depois de deixar nosso gárrulo comensal na entrada do metrô, Vance atirou-se, com visível satisfação, numa poltrona.

— Que divertido! É excelente para eliminar indiciados, o coronel!

— Eliminar! — retorquiu Markham. — Eu acho muito bom que ele não pertença à polícia, porque teria prendido metade da população, por causa da morte de Benson!

— Ele é um tanto sanguinário, — concordou Vance. — E está resolvido a prender alguém por este crime.

— Segundo este velho guerreiro, o grupo de Benson era uma camorra de atiradores — sem esquecer as mulheres. Enquanto ele falava, tive sempre a impressão de que foi por milagre que Benson não fora há mais tempo crivado de balas.

— É claro que você passou por alto o fulgor dos raios na trovoada do coronel...

— Houve algum? Seja como for, não posso dizer que me tivessem cegado.

— Também não recebeu alguma consolação das suas palavras?

— Apenas uma: a que me deixou o seu extravagante adeus. A separação não me despedaçou o coração... O que o velho disse a respeito de Leacock, contudo, pode ser considerado como uma opinião confirmatória... Viria justificar — se fosse necessário — a acusação contra o capitão.

Vance sorriu cèticamente.

— Oh! Seguramente! E o que ele disse sobre Miss St. Clair confirmaria a acusação contra ela também, sábado passado. E o que ele disse a respeito de Pfyfe teria justificado a acusação contra este Beau Sabreun, se você tivesse suspeitado dele, não é?

Mal acabara Vance de falar, veio Swacker dizer que Emery, do Departamento Criminal, enviado por Heath, desejava falar com o Promotor.

Quando ele entrou, reconheci logo o investigador que tinha encontrado as pontas de cigarro na estufa de Benson.

Mal olhou para nós, dirigindo-se a Markham.

— Encontramos o Cadillac cinzento, Sr. Markham. E o sargento Heath achou que o senhor devia ser avisado disso sem tardança. Está há três dias em uma pequena garagem, na Rua 74, perto da Avenida Amsterdã; um dos homens do posto da Rua 68 achou-o e telefonou para a Chefatura e eu corri lá imediatamente. É o carro — aparelho de pesca e tudo, exceto os dois caniços, donde concluí que caíram dele, perdidos certamente, os que foram achados no Parque Central... Parece que um sujeito levou o auto à garagem mais ou menos ao meio-dia, na sexta-feira, e deu ao homem vinte dólares para guardar segredo. Esse homem é um estrangeiro e disse que não lê jornais. De qualquer modo ele achou-me decidido, quando apertei com ele, e tomei nota do número do auto... Pertence, continuou ele, mostrando um caderninho, a um Sr. Leandro Pfyfe, Boulevard Elm 24, Port Washington, Long Island.

Esta última parte da notícia assombrou Markham, que despediu Emery secamente, e ficou a bater com os dedos sobre a mesa, pensativo.

Vance contemplava-o com um sorriso divertido.

— Não é na verdade uma casa de orates, — observou ele, consolando o outro. — As palavras do coronel não lhe trazem nenhuma alegria, agora que sabe que Pfyfe andava rondando pela vizinhança no momento em que Benson era trasladado para o Além?

— Diabo leve o seu velho coronel! — bradou Markham. — O que me interessa agora é examinar a relação deste novo incidente com a situação.

— Pois ele se acomoda aí admiràvelmente. Vem dar relevo ao mosaico, por assim dizer... Está você todo desconcertado por saber que era Leandro o dono do misterioso carro?

— Não possuo a sua clarividência, é certo, e por isso estou na verdade perturbado com o fato, — retrucou Markham, acendendo um cigarro, o que nele era sinal certo de aborrecimento.

— Você, sem dúvida, — acrescentou, sarcástico, — sabia antes de Emery vir aqui de quem era o auto...

— Não, não sabia, — corrigiu Vance. Mas suspeitava-o. Pfyfe exagerou seu desgosto quando falou da avaria sofrida em Catskills; e aborreceu-se extraordinariamente porque Heath indagou do seu itinerário. E ostentava uma altivez melodramática.

— Grande proveito, na verdade, esse conhecimento tardio do fato!

Continuou fumando em silêncio, e após uma pausa acrescentou:

— Hei de achar a solução.

Tocou a campainha, e disse a Swacker, muito irritado:

— Telefone para o Ansonia, e peça para falar com Leandro Pfyfe. Diga-lhe que quero vê-lo no Club Stuyvesant às seis horas. Que vá até lá.

— Este episódio do carro, — disse ele depois que Swacker saiu, — pode ser-nos útil, afinal. É evidente que Pfyfe estava em Nova York naquela noite; e por que razão não quis que eu o soubesse? Procurou embair-nos contando a história da ameaça do capitão Leacock, e insistiu para que fôssemos no encalço dele. Sem dúvida, está incomodado com o capitão, por ter ele arrebatado Miss St. Clair ao seu amigo, e quis tomar uma desforra. Por outro lado, se esteve em casa de Benson na noite do crime, pode-nos fornecer alguma informação exata. Agora, que lhe descobrimos o carro, creio que dirá o que sabe.

— Ele dirá qualquer coisa, de qualquer modo, — disse Vance. — É o tipo do mentiroso congênito, que dirá seja o que for a quem quer que seja, contanto que não se comprometa.

— Você e a Sibila de Cumes poderiam de antemão informar-me sobre o que ele vai dizer...

— Não posso saber tanto como a Sibila de Cumes, — retrucou Vance prontamente, — mas de mim mesmo sei que vai-lhe dizer haver visto o impetuoso capitão em casa de Benson naquela noite.

— Espero-o, também, — disse Markham, rindo. — E você gostaria de estar à mão para ouvi-lo, não é?

— Teria um grande desgosto, se fosse privado disso, — respondeu Vance, já da porta, pronto para sair, mas ainda disse a Markham:

— Tenho outro pequeno favor a pedir-lhe. Mande investigar a vida de Pfyfe — um bom camarada. Mande um de seus inumeráveis esbirros a Port Washington indagar do comportamento do homem. Diga-lhe que concentre suas pesquisas ao redor do assunto "saias"... Prometo-lhe que não se arrependerá.

Markham, percebi, não gostou nada do pedido, e ia recusá-lo. Refletiu, porém, um momento e, sorrindo, apertou o botão da campainha.

— Visto que isso lhe dá prazer, mandarei já um homem.


XIV

 

OS ELOS DA CADEIA

 


(Segunda-feira, 17 de junho — 6 da tarde)

 


Eu e Vance passamos mais de uma hora, naquela tarde, na Galeria Anderson, examinando alguns tapetes que iam ser vendidos em leilão no dia seguinte, e depois fomos tomar chá no Sherry. Antes das seis estávamos no Clube. Poucos minutos depois chegavam Markham e Pfyfe, e fomos para um salão.

Pfyfe, tão elegante e soberbo como na primeira entrevista, trazia um terno esporte, polainas de linho cru, e estava impregnado de perfume.

— Que prazer inesperado, tornar a vê-los! — disse, cumprimentando-nos, como se nos lançasse a bênção.

Markham, que estava longe de ser amável, cumprimentou-o quase rudemente. Vence apenas moveu a cabeça e sentou-se olhando tristemente para Pfyfe, como se procurasse achar alguma escusa para aquela existência, mas sentindo-se impotente para descobri-la.

Markham foi direito ao fim:

— Descobri — Sr. Pfyfe — que o senhor deixou seu auto, ao meio-dia de sexta-feira, em uma garagem, dando vinte dólares ao guarda, para que nada dissesse.

Pfyfe levantou a cabeça, magoado, e queixou-se: — Fui profundamente prejudicado: dei ao homem cinqüenta dólares.

— Estimo ver que o senhor reconhece o fato tão prontamente. Sabe, pelos jornais, sem dúvida, que seu auto foi visto perto da casa de Benson na noite em que ele foi assassinado, não?

— A não ser assim, por que teria eu pago tão liberalmente ao guarda? Foi somente para ver se ocultava a presença do auto na cidade, que o fiz, — respondeu Leandro, no tom de quem lamentava a falta de perspicácia do outro.

— Então, por que ficou com ele na cidade, afinal? Poderia tê-lo levado de volta a Long Island.

Pfyfe sacudiu a cabeça, pesaroso, denunciando-lhe o olhar profunda comiseração. Depois inclinou-se para diante com ar de paciência benevolente: seria gentil com aquele magistrado simplório, como um professor indulgente com uma criança estúpida; e se esforçaria por tirá-lo do emaranhado de suas incertezas.

— Sr. Markham, sou casado, — começou ele, como se esse fato divulgasse alguma virtude especial. — Comecei minha viagem para Catskills na quinta-feira, depois de jantar; pretendia passar um dia em Nova York, para me despedir de alguém que reside aqui. Cheguei muito tarde — depois da meia-noite — e resolvi ir à casa de Alvino, mas quando lá cheguei, vi tudo às escuras. Assim, sem ter sequer batido, dirigi-me ao Pietro, na Rua 43, para beber alguma coisa — eu conservo ali alguns dos meus frascos de bolso Haig Haig — mas o restaurante estava fechado, e voltei para o meu carro... E pensar que, enquanto eu estive fora, o pobre Alvino era assassinado!

Parou e limpou o monóculo.

— Que ironia!... Sem adivinhar que alguma coisa acontecera ao meu amigo querido — e como o adivinharia? — dirigi-me aos banhos turcos, e passei ali a noite. Na manhã seguinte, li a notícia do crime, e nas edições da noite vi que se falava no meu carro. Fiquei então — direi eu — aflito? Não. “Aflito” não é a palavra adequada. Devo dizer antes que me acautelei da falsa posição em que me encontraria, se descobrissem que o carro era meu. Por isso levei-o à garagem, pagando ao guarda para nada dizer, porque a sua descoberta poderia trazer mais confusão ao caso da morte de Alvino.

Era para se acreditar, vendo a maneira cheia de retidão com que encarava Markham, e ouvindo o tom em que se explicava, que dera uma gorjeta ao guarda da garagem, somente em consideração ao Promotor e à Polícia.

— Por que não continuou a viagem? — perguntou Markham. — Isso tornaria a descoberta do carro menos provável.

E foi com um ar de surpresa compassiva que Pfyfe respondeu:

— Com o meu mais querido amigo indignamente assassinado? Como podia eu ter coração para procurar diversões naquele momento?... Voltei a casa, e disse a minha mulher que o carro sofrerá um acidente.

— Mas parece-me que o senhor podia ter voltado a casa no seu carro, — observou Markham.

O olhar de Pfyfe exprimiu paciência infinita; suspirou profundamente, e parecia querer demonstrar seu desapontamento, por não lhe ser possível aguçar a perspicácia do outro: podia, contudo, lamentar sua deplorável estupidez...

— Se eu tivesse ido a Catskills, onde nenhuma informação me teria chegado, e onde minha esposa supunha que eu estava, como teria sabido da morte de Alvino, senão dias depois? Infelizmente, eu não dissera que ficaria em Nova York... A verdade é, Sr. Markham, que eu tinha razões para não querer que minha mulher soubesse da minha permanência aqui. Em conseqüência, voltando logo, ela suspeitaria que eu interrompera a viagem; fiz, pois, o que me pareceu mais simples.

Markham, a quem a loquacidade e hipocrisia do homem não agradavam, perguntou-lhe abruptamente:

— Foi com o fim de comprometer o capitão Leacock que parou o seu carro em frente à casa de Benson naquela noite?

Pfyfe ergueu um rosto triste, franzindo as sobrancelhas, como se lhe causasse pena a injusta imputação. Com um gesto de delicado protesto, respondeu:

— Oh, senhor! Se percebeu nas minhas palavras de ontem uma suspeita velada contra o capitão Leacock, foi porque vi na verdade o capitão defronte da casa de Alvino, quando fui lá nessa noite.

Olhou Markham, curiosamente, para Vance, antes de retrucar:

— O senhor está certo de que viu Leacock?

— Vi-o, sim, muito distintamente. Teria mencionado esse fato ontem, se isso não fosse a confissão tácita da minha presença também ali...

— Que tinha isso? Era uma informação de grande interesse, e eu a teria aproveitado hoje. Mas o senhor antepôs a sua tranqüilidade ao alto interesse da justiça. Bem vê que essa atitude torna suspeita sua conduta naquela noite.

— O senhor é muito severo, Sr. Markham, — respondeu Pfyfe, com ar de quem se compadece de si próprio. — Mas como eu mesmo me coloquei numa posição falsa, tenho de me conformar com a sua censura.

— O senhor não compreende que muitos procuradores, sabendo o que eu sei agora acerca de seus passos, o teriam prendido dando-o por suspeito?

— Nesse caso, senhor, só o que me cumpre responder é que tive muita sorte em tê-lo como juiz.

— Por hoje basta, Sr. Pfyfe, — disse Markham, levantando-se. — Mas o senhor vai ficar em Nova York até que eu lhe permita voltar à sua casa. Se não se conformar com a intimação, mandarei prendê-lo como testemunha importante.

Pfyfe, fazendo um gesto de espanto ante tanto rigor, despediu-se cerimoniosamente.

Ao ficarmos sós, Markham olhou seriamente para Vance, dizendo-lhe:

— Cumpriu-se sua profecia, se bem que eu não o esperasse. O depoimento de Pfyfe é o último elo da cadeia que prende o capitão.

Vance sorriu negligentemente.

— Reconheço que sua teoria do crime é muito aceitável, mas as objeções psicológicas permanecem de pé; todas as coisas se ajustam bem ao caso... menos o capitão: ele não se adapta ao quadro de maneira nenhuma... é uma idéia tola, bem sei, mas o fato é que ele é tanto o assassino, como a volumosa Tetrazzini era a tísica Mimi (*).

(*) Referência evidente ao trabalho da Tetrazzini na Bohème, no teatro Manhattan, em 1908.


— Em qualquer outra circunstância, — respondeu-lhe Markham, — eu cederia reverente a suas sedutoras teorias. Mas todas as provas que tenho contra Leacock o inocentam tanto, como se eu dissesse: "Ele não pode ser o culpado, porque tem o cabelo repartido ao meio" ou "porque dobra as pontas do guardanapo sobre o colarinho"... A lógica seria a mesma.

— Concordo com você em que sua lógica é irrefutável — como toda a lógica o é, sem dúvida. Você deve ter convencido muitas pessoas inocentes de que eram culpadas, somente pelo raciocínio, — disse Vance, espreguiçando-se com ar cansado. — Que diz você de um lanche no terraço? O inefável Pfyfe fatigou-me...

No salão de jantar de verão encontramos o major Benson sozinho, e Markham convidou-o.

— Tenho boas notícias a dar-lhe, major, — disse ele, depois que demos nossas ordens. — Creio que tenho agora o meu homem seguro: tudo o aponta como o criminoso. Espero que amanhã esteja tudo acabado.

O major olhou-o interrogativamente.

— Não compreendo bem... Do que me disse outro dia depreendi que havia uma mulher envolvida...

Markham sorriu indeciso, consultando Vance com o olhar.

— Muita água correu debaixo da ponte depois disso: a mulher que eu tinha como suspeita então era inocente, e vimo-lo logo ao examinar o assunto. Mas eu me inclinava para um homem, e há pouca dúvida sobre a sua culpa no caso. Certifiquei-me disso esta manhã, e agora mesmo acabo de saber que uma testemunha digna de fé o viu em frente à casa de seu irmão poucos minutos depois do tiro.

— Tem alguma dúvida em me dizer o seu nome? — perguntou o major, carrancudo.

— Nenhuma. Amanhã, provavelmente, toda a cidade o saberá... Era o capitão Leacock.

Encarou-o o major, com ar de incredulidade.

— Impossível! Não posso acreditar. Esse moço esteve comigo três anos na Europa, e conheço-o bem. Não posso deixar de dizer que deve haver aí um engano qualquer... A polícia, — acrescentou vivamente, — está seguindo uma pista errada.

— Não é a polícia, — informou Markham. — Foram minhas pesquisas que o descobriram.

O major não respondeu, mas via-se bem que ainda duvidava.

— Sabe, major, — interveio Vance, — eu penso como o senhor a respeito do capitão; é agradável para mim, ver minhas impressões confirmadas por quem o conhece há tanto tempo...

— Que fazia, então, o capitão em frente da casa naquela noite? — insistiu Markham, acremente.

— Ora — sugeriu Vance, — podia estar cantando debaixo das janelas de Alvino.

Markham não chegou a.replicar, porque entrou o maitre, trazendo-lhe um cartão. Leu-o, em voz baixa, alegremente, e ordenou que mandasse entrar imediatamente a pessoa que esperava. Depois, voltando-se para nós, explicou:

— Saberemos mais alguma coisa agora. É Higginbotham, o investigador que seguiu Leacock desde que saiu do meu gabinete hoje de manhã.

Higginbotham era um rapaz fino como um arame, pálido, olhos de peixe morto e ar astuto. Olhou acanhado para a mesa e parou, hesitante, diante do Promotor.

— Sente-se e fale, Higginbotham, — ordenou Markham. — Estes senhores trabalham comigo no caso Benson.

— Alcancei o pássaro quando ele esperava o elevador, — começou o homem, dirigindo a Markham um olhar manhoso. Ele tomou o metrô e andou até à esquina da Rua 79 com a Broadway. Atravessou a Rua 80, foi até Riverside Drive, entrou no edifício de, apartamentos número 94. Não deu o nome ao porteiro — foi direto ao elevador. Esteve lá em cima duas horas, desceu à uma e vinte e chamou um táxi. Tomei outro e segui-o. Desceu para a Rua 72, atravessou o Parque Central, seguiu a leste até a 59. Tomou pela Avenida A, andou para o lado da Ponte Queensborough. A meio caminho da ilha de Blackwell, parou, e esteve inclinado sobre o parapeito uns cinco ou seis minutos. Depois tirou do bolso um pacote e atirou-o ao rio.

— De que tamanho era o pacote? — perguntou Markham. com ânsia contida.

Higginbotham indicou o tamanho com as mãos.

— De que grossura?

— Uma polegada, ou mais, talvez.

— Poderia ser uma pistola — uma Colt automática?

— Claro que sim. Era mais ou menos o tamanho. E pesado,

também, pelo modo como ele o segurava, e como bateu na água.

— Muito bem, — disse Markham, satisfeito. — Que mais?

— Nada mais, senhor. Depois que jogou a arma ao rio voltou para casa e lá ficou.

Depois que o investigador saiu, Markham voltou-se para Vance, com orgulho não isento de tristeza:

— Aí está o instrumento do crime... Que mais pode você exigir?

— Muita coisa, — respondeu ele. no seu falar arrastado. O major Benson, perplexo, encarou-o:

— Não entendi muito bem. Por que foi Leacock a Riverside em busca da arma?

— Tenho razões para supor, — disse Markham, que ele a entregara a Miss St. Clair no dia seguinte ao crime — para se proteger, provavelmente. Não queria que a encontrassem em sua casa.

— E não poderia ele ter levado a arma para lá, antes do crime?

— Sei no que pensa, — disse Markham (e eu também me lembrei então do que dissera o major na véspera — que Miss St. Clair era mais capaz de matar seu irmão do que o capitão). Tive a mesma idéia, mas provas evidentes a eximiram de suspeita.

— Naturalmente o senhor contentou-se com isso, — retrucou o major, em tom de dúvida. — No entanto, não posso ver em Leacock o assassino de Alvino.

Calou-se e pousou a mão no braço do Promotor.

— Não quero parecer presunçoso, nem desconheço o que o senhor tem feito; mas peço-lhe que espere um bocado antes de prender aquele rapaz. Por mais cuidadoso e consciencioso que o senhor seja, está sujeito a errar: e não posso deixar de crer que, neste caso, os fatos o têm iludido.

Markham comoveu-se visivelmente com este pedido do seu velho amigo; mas a fidelidade instintiva que o ligava ao dever levou-o a resistir ao apelo.

— Devo agir de acordo com minhas convicções, major, — disse com voz firme, mas em tom bondoso.


XV

 

"PFYFE — PARTICULAR"

 


(Terça-feira, 18 de junho — 9 da manhã)

 


O dia seguinte — o quarto das investigações — foi muito importante, e, a certos respeitos, decisivo para a solução do problema no caso Benson. Não que viesse à luz alguma coisa de definido, mas é que um novo elemento foi introduzido casualmente, e foi esse elemento novo que nos guiou para encontrar o culpado.

Antes de nos separarmos de Markham após o jantar com o major Benson, Vance pedira-lhe permissão para ir ao gabinete dele na manhã seguinte. Markham, desconcertado e impressionado pelo insólito ardor que o amigo mostrava, cedera; todavia, penso que preferia tratar da prisão de Leacock, sem a influência perturbadora do outro. Era evidente que, depois do relato de Higginbotham, Markham resolvera prender o capitão e preparar seu processo para o Grande Júri.

Chegamos às 9 horas, mas já lá encontramos Markham. Assim que entramos, ele tomou o fone e pediu ligação com Heath.

Nesse momento Vance fez uma coisa engraçada. Foi devagarinho até à mesa do Promotor, e, arrebatando o fone da mão deste, pendurou-o no gancho. Depois empurrou o aparelho para um lado e pôs ambas as mãos nos ombros do outro. Markham ficou tão assombrado que protestou; e, antes que ele se recobrasse do espanto, Vance disse-lhe com voz grave e firme, mas suave.

— Eu não vou deixar que você prenda Leacock — e por isso é que vim aqui. Você não vai dar ordens para essa prisão, enquanto eu estiver neste gabinete e puder impedi-lo de qualquer modo. O único meio de você executar esse ato de rematada loucura é chamar seus esbirros e expulsar-me daqui à força. E aconselho-o a chamar uma porção deles, porque vou fazer com que tenham a maior luta de suas vidas.

A parte mais estranha desta ameaça é que Vance falava seriamente. E Markham bem o conheceu.

— Se você chamar seus capangas, — continuou Vance, — será o alvo da chacota da cidade dentro de uma semana, quando então todos saberão quem matou Benson. E eu serei um herói popular, um mártir — Deus me perdoe! — por ter desafiado o Promotor imolando minha doce liberdade no altar da verdade e da justiça etc...

O telefone chamou, Vance atendeu-o:

— Já não é preciso, — disse ele, desligando imediatamente. Retrocedeu alguns passos e cruzou os braços. Foi só então que Markham falou, e a voz lhe tremia de furor.

— Vance, se você não sai imediatamente daqui, entregando-me o domínio deste gabinete, eu não poderei escolher: chamarei esses policiais.

Vance sorriu: sabia que Markham não tomaria essas medidas extremas. Acima de tudo, a luta entre aqueles dois amigos era intelectual, e embora o gesto de Vance o tivesse colocado momentaneamente no terreno físico, não havia perigo de que se mantivesse aí.

A cólera que luzia nos olhos de Markham cedeu pouco a pouco lugar a uma expressão de assombro.

— Por que está você tão diabòlicamente interessado por Leacock? — perguntou ele, asperamente. — Por que essa insistência irracional em conservá-lo em liberdade?

— Você é um asno de primeira! — disse Vance, esforçando-se por falar sem nenhuma afetação. — Pensa então que eu me importo com o que possa acontecer a um sulista capitão do exercito? Há no mundo centenas de Leacocks, todos semelhantes — com os ombros quadrados, queixos quadrados, roupas cheias de protuberâncias, com seus códigos idolatras de bárbara cavalaria. Somente uma mãe pode diferenciá-los... Eu me interesso e por você, meu velho amigo. E não quero vê-lo cometer um erro que o prejudicaria mais do que ao capitão.

Desapareceu a dureza dos olhos de Markham: compreendera o motivo do amigo e perdoou-lhe. Contudo, permanecia firme na crença de que o capitão era o assassino. Ficou pensativo por algum tempo; depois, como se tivesse tomado uma decisão, chamou Swacker e disse-lhe que mandasse Phelps ao gabinete.

— Tenho um plano que poderá deslindar esse assunto. Será tão claro que nem mesmo você, Vance, poderá contradizê-lo.

Veio Phelps e Markham deu-lhe instruções.

— Vá procurar Miss St. Clair imediatamente. Obtenha uma entrevista de algum modo, e pergunte-lhe o que havia no pacote que o capitão levou ontem de sua casa e atirou ao rio.

Resumiu o relato de Higginbotham e continuou:

— Peço-lhe que diga, e insista em dizer que você sabe que era a arma com que mataram Benson. Provavelmente ela se recusará a responder, e vai mandá-lo embora. Desça então e espere os acontecimentos. Se ela telefonar, escute na mesa telefônica. Se mandar um bilhete a alguém, intercepte-o. E se sair — o que não creio — siga-a e saiba o mais que puder. Dê-me o resultado assim que souber alguma coisa.

— Entendido, Chefe.

Phelps pareceu satisfeito com a incumbência, e partiu alegre.

— E estes métodos de ladrões noturnos e de espiões são considerados retos na sua douta profissão? — perguntou Vance.

— Não posso harmonizar este seu modo de proceder com suas qualidades de caráter, sabe?

Markham recostou-se e fitou o lustre do teto.

— A ética pessoal não intervém nisso: ou, se intervém, é suplantada por considerações maiores e mais graves — por mais altas exigências da justiça. A sociedade deve ser protegida, e os cidadãos deste condado contam comigo para a sua segurança contra as invasões de criminosos e malfeitores. Algumas vezes, no cumprimento do dever, tenho de adotar regras de conduta que entram em conflito com meus sentimentos pessoais. Mas não tenho o direito de por em risco toda a sociedade por causa de um compromisso ético, assumido para com um indivíduo... Você compreende certamente, que eu não me utilizaria de uma informação obtida por esses métodos contrários à ética, senão no caso em que ela desse vantagem ao criminoso sobre aquele indivíduo... E, nesse caso, eu tinha todo o direito de usá-la para o bem da comunidade.

— Não nego a sua.razão, — disse Vance, bocejando. — Mas a sociedade não me interessa particularmente. E prefiro de muito a urbanidade à retidão.

Quando ele acabava de falar, entrou Swacker anunciando o major Benson, que desejava ver Markham imediatamente.

Vinha acompanhado de uma linda jovem, de cerca de vinte e dois anos, de cabeleira loura e curta, e trajando com simplicidade e elegância, um vestido de crepe da China, azul. Não obstante a sua mocidade, e a aparência algo frívola, apresentou-se com uma reserva tal, que imediatamente conquistou a confiança de todos nós.

O major Benson apresentou-a como sua secretária; Markham ofereceu-lhe uma cadeira, em frente da sua mesa.

— Miss Hoffman acaba de me dizer alguma coisa que me pareceu importante, por isso trouxe-a aqui.

Parecia mais sério que de costume, e seu olhar vacilava entre a dúvida e a esperança.

— Diga ao Sr. Markham tudo o que me contou, Miss Hoffman.

A moça ergueu graciosamente a cabeça e contou sua história com uma voz agradável.

— Faz mais ou menos uma semana — creio que foi quarta-feira, o Sr. Pfyfe foi procurar o Sr. Benson no seu gabinete particular. Eu estava na sala próxima, onde está minha máquina de escrever. Há apenas um vidro separando as duas salas, e quando alguém fala alto do gabinete ouve-se da minha sala. Dentro de poucos minutos, o Sr. Pfyfe e o Sr. Benson começaram a altercar. Achei engraçado, porque eram amigos; mas não dei muita atenção, e continuei a escrever. Como, porém, as vozes se elevaram muito, apanhei algumas palavras. O major Benson perguntou-me hoje de manhã que palavras eram essas, e suponho que o senhor também deseje conhecê-las: referiam-se a uma promissória, e uma ou duas vezes falaram em cheque. Ouvi muitas vezes a palavra "sogro", e uma vez o Sr. Benson disse "nada a fazer"... Depois o Sr. Benson chamou-me e disseme que lhe trouxesse um envelope com a marca "Pfyfe — Particular", da gaveta secreta de seu cofre. Levei-lhe, mas logo depois o guarda-livros precisou de mim para um trabalho, e nada mais ouvi. Quinze minutos depois, talvez, quando o Sr. Pfyfe se retirou, o Sr. Benson me chamou para devolver-me o envelope, e disseme que, se aquele senhor voltasse em qualquer ocasião, eu não lhe permitisse, sob nenhum pretexto, entrar no gabinete particular se ele não estivesse ali. E que não entregasse o envelope a ninguém — nem mesmo diante de uma ordem escrita... É tudo quanto sei, Sr. Markham.

Durante essa narrativa, os atos de Vance me interessaram tanto quanto o que a moça dizia. Logo que ela entrou, vi que o olhar do meu amigo passara de distraído a atento. Quando Markham pôs a cadeira em frente para que ela se sentasse, Vance levantou-se e foi buscar um livro que estava sobre a mesa, perto dela; e vi que se curvara muito, sem necessidade, com o fim — ao menos assim me pareceu — de lhe examinar a cabeça. Enquanto ela falava, ele continuava a observá-la, inclinando-se ora à direita, ora à esquerda, para vê-la melhor. Como isso era estranho a seus hábitos, compreendi que alguma séria consideração o levara a esse exame.

Quando a jovem acabou de falar, o major mexeu no bolso e pôs em cima da mesa um envelope de papel manilha, dizendo:

— Aqui está. Pedi isso a Miss Hoffman, depois que ela me narrou sua história.

Markham pegou no envelope, hesitante, como se duvidasse do direito que lhe assistia de examinar o conteúdo.

— Deve revistá-lo, — aconselhou o major. — Esse envelope talvez tenha um papel importante no caso.

Markham tirou a tira de elástico e espalhou o conteúdo em cima da mesa. Continha o envelope três documentos: um cheque cancelado de 10.000 dólares, em favor de Leandro Pfyfe, assinado por Benson; uma nota promissória de 10.000 dólares em favor de Alvino Benson, assinada por Pfyfe, e uma declaração em poucas palavras, também assinada por Pfyfe. reconhecendo que o cheque era falsificado. O cheque era datado de 20 de março último. A declaração e a nota tinham sido escritas dois dias depois. A nota — que era a noventa dias — vencia-se na sexta-feira, 21 de junho, isto é, dali a três dias.

Cinco minutos contados levou Markham a examinar em silêncio aqueles documentos. A inesperada aparição daqueles papéis perturbava-o, e não lhe voltara ainda a serenidade quando os colocou no invólucro.

Interrogou minuciosamente a moça, fazendo-a repetir certas particularidades. Mas nada mais pôde apurar e finalmente voltou-se para o major Benson:

— Se me permite, fico com este envelope por algum tempo. Não compreendo por enquanto a importância que possa ter, mas gostaria de refletir um pouco.

Depois que saíram o major e sua secretária, Vance levantou-se e distendeu as pernas.

— Afinal! — murmurou. — Todas as coisas se movem: o sol e a lua, a manhã, o meio-dia, a tarde, a noite e todas as suas estrelas. Em outras palavras: começamos a progredir...

— Que diabo está você aí ruminando? — perguntou Markham, a quem a nova complicação dos pecadilhos de Pfyfe deixara irritadiço.

— Que moça interessante, essa Miss Hoffman, não? — perguntou Vance, que aparentava uma alegria fora de propósito. Não mostra grande simpatia pelo falecido Benson, e detesta claramente o aromático Leandro; provavelmente este já lhe disse que se desaviera com a esposa e a convidou para jantar.

— Sim, ela é bem bonita, — comentou Markham, indiferente. — Talvez Benson lhe tenha dito — e por isso ela não gostava dele...

— Oh! Sem dúvida, — murmurou Vance daí a um momento. — Linda, sim, mas desconcertante. É uma pequena ambiciosa, e destra também — vai direto ao fim. Não é uma doidivanas, não. Tem uma sólida base de honestidade — talvez um pouco do sangue germânico. Veja você, Markham, — continuou depois de uma pausa, — eu tenho um pressentimento de que você ainda tornará a ouvir falar desta pequena Miss Katinka.

— Viu isso na bola de cristal?

— Oh, não, meu caro! — disse Vance, olhando preguiçosamente para a janela. — Mas penetrei o silêncio, por assim dizer, e dediquei-me um pouco ao estudo da frenologia.

— Bem me pareceu que você estava examinando a moça. Mas ela usa a cabeleira redonda, e estava de chapéu: como podia você examinar as bossas? — creio que é esse o termo dos frenologistas...

— Não esqueça o pregador de Goldsmith, — advertiu Vance. — A verdade de seus lábios prevalecia, e aqueles que vinham para escarnecer ficavam et cetera... Para começar, eu não sou frenologista, mas creio na variedade de crânios conforme a época, a raça e a hereditariedade. Neste ponto sou apenas um antiquado darwiniano. Qualquer criança sabe que o crânio fóssil de Piltdown difere do de Cromagnard; e até um leigo pode diferençar a cabeça de um ariano da de um malaio ou de um negro. E quem é versado na teoria mendeliana pode tirar partido disso para conhecer as semelhanças cranianas hereditárias... Mas toda esta erudição lhe escapa, não? Em resumo, apesar do chapéu, observei o contorno da cabeça da moça, e a estrutura dos ossos da face, e cheguei a vislumbrar até a orelha...

— E de tudo isso deduziu você que ainda tornaremos a ouvir falar nela, — perguntou Markham, desdenhosamente.

— Indiretamente — sim. E... em vista da revelação de Miss Hoffman, os comentários que ontem fez o coronel Ostrander não começam a tomar um aspecto mais brilhante?

— Olhe, Vance, acabe com os circunlóquios, e vamos ao ponto.

Vance voltou-se vagarosamente e encarou-o, pensativo.

— Markham, vou apresentar a pergunta academicamente — o cheque falsificado de Pfyfe, com seu acompanhamento de confissão e nota promissória, não constituem um motivo poderoso para acabar com a vida de Benson?

Markham ergueu-se de repente.

— Você suspeita de Pfyfe? É isso...

— Oh! Esta é a tocante situação: Pfyfe, é claro, falsificou a assinatura de Benson em um cheque e foi dizer-lhe, e ficou muito surpreendido quando o velho amigo e companheiro lhe exigiu uma promissória a 90 dias de prazo para garantir a dívida, e também uma confissão escrita — para garantia do pagamento... Veja agora os fatos subseqüentes: Primeiro — Pfyfe foi à casa de Benson, na semana passada, e teve com ele uma querela em que se falou no cheque: Damon pleiteava, provavelmente, junto a Pítias que lhe restituísse a nota, e ouviu a grosseira informação de que "nada havia a fazer". Segundo: Benson aparece assassinado dois dias depois, menos de uma semana antes do vencimento. Terceiro: Pfyfe estava em casa de Benson na hora do crime, e não só mentiu nesse ponto, mas ainda pagou ao proprietário; da garagem para guardar segredo acerca do carro. Quarto: Sua explicação, quando se viu descoberto, da desinteressada busca de bebidas foi, para bem dizer, estúpida. E não esqueça que a primitiva história de um passeio solitário em busca das solidões da natureza em Catskills — com uma misteriosa parada em Nova York, para os adeuses a uma pessoa anônima — essa história, digo, deixava muito a desejar em matéria de coerência. Quinto: É um jogador impulsivo, dado a desforras; e teve na África do Sul várias aventuras, que devem tê-lo familiarizado com as armas de fogo. Sexto: Mostrou-se solícito em envolver Leacock, tendo feito uma acusação desleal, dizendo-lhe que o vira naquele lugar, no momento do crime. Sétimo:...Mas para que mais? Não lhe forneci já todos os elementos que você tem em tanto apreço: motivo, hora, ocasião, lugar, conduta? Falta apenas o agente do crime. Mas a arma do capitão jaz no fundo do rio... Assim, você não está mais adiantado desse lado, não?

Markham, que ouvira atentamente o resumo de Vance, refletia em silêncio; Vance perguntou:

— Que diria de uma palestra com Pfyfe antes de tomar qualquer resolução sobre o capitão?

— Sim... Vou seguir seu conselho. Vou indagar, — continuou, pegando no fone, — se ele está no hotel.

— Oh! Está, sim, — disse Vance. — Espera vigilante etc. Pfyfe estava no hotel, e Markham pediu-lhe que fosse ao gabinete.

— Ainda lhe quero pedir outra coisa — disse Vance, quando o Promotor acabou de telefonar. — Desejo muito saber o que fazia cada um dos personagens envolvidos neste caso, no momento da morte de Benson — isto é, entre meia-noite e uma da madrugada, na noite de treze, ou, se quer mais modernamente, na manhã de 14.

Markham olhou para ele, admirado.

— Parece-lhe uma tolice, não? — continuou Vance, alegremente. — Mas você tem tanta fé em álibis — embora eles às vezes desapontem, não? Aí está Leacock, por exemplo. Se aquele criado do apartamento tivesse mandado Heath passear, quando lhe foi pedir informações, você não pensaria mal algum do capitão, o que demonstra que você é muito confiante... Por que não há de indagar onde estava cada um deles? Pfyfe e o capitão estavam em casa de Benson; e são esses dois os únicos cujos passos você seguiu. Pode ser que houvesse outros rondando por ali naquela noite. Pode ter havido um encontro de amigos e conhecidos — uma verdadeira soirée, sabe?... Então, examinando tudo isso, proporcionaremos ao sargento, agora tão triste, um meio de alegrar o espírito.

Markham compreendeu, tão bem como eu, que Vance não faria tal pedido senão por um motivo imperioso; perscrutou por alguns momentos o rosto do outro com curiosidade, como se quisesse arrancar dele a razão por que exigia essa inesperada pesquisa.

— E quem especificamente, inclui você no seu "cada um"? — perguntou ele, tomando um lápis e uma folha de papel.

— Não devemos esquecer ninguém. Ponha aí Miss St. Clair — o capitão Leacock — o major Pfyfe — Miss Hoffman...

— Miss Hoffman!

— Todos!... Já escreveu Miss Hoffman? Agora o coronel Ostrander...

— Também!? — atalhou Markham.

—...e poderei dar-lhe mais um ou dois nomes depois. Mas, para começar, já chega,

Markham ia protestar, mas entrou Swacker a dizer que Heath esperava para lhe falar.

— Que me diz do nosso amigo Leacock? — indagou o sargento, de entrada.

— Esperarei um ou dois dias. Quero falar com Pfyfe antes de tomar uma resolução definitiva.

E contou-lhe a visita do major e de Miss Hoffman. Heath examinou o envelope e seu conteúdo, dizendo ao devolvê-lo ao Promotor:

— Não vejo aqui nada de suspeito. Parece-me um negócio particular entre Benson e seu amigo Pfyfe. Leacock é o nosso homem, e quanto mais cedo for preso, melhor.

— Talvez seja para amanhã, — disse Markham para animá-lo. — Não fique abatido por este pequeno adiamento... Continua a vigiar o capitão, não?

— Sim, — respondeu Heath, arreganhando os dentes. Nisto Vance perguntou a Markham, com um ar ingênuo:

— Que resolveu sobre aquela lista de nomes que organizou para o sargento? Pareceu-me ouvir-lhe falar em álibis...

Markham hesitava, carrancudo; por fim estendeu o papel com os nomes que Vance lhe ditara.

— Como medida de precaução, sargento, — disse com todo o vagar, — desejo que você averigúe em que ocupavam o tempo todas essas pessoas na noite do crime. Talvez nos seja útil. Torne a verificar os que já conhece, como Pfyfe, e traga-me um relatório o mais breve possível.

Quando Heath saiu, Markham dirigiu a Vance um olhar cheio de fel.

— Maldito inventor de complicações... — começou ele.

Mas Vance interrompeu-o suavemente.

— Ingrato! Se soubesse, Markham... eu sou o seu gênio tutelar, seu deus ex-maquina, sua fada madrinha...


XVI

 

ADMISSÕES E SUPRESSÕES

 


(Terça-feira, 18 de junho — à tarde)

 


Daí a uma hora entrava Phelps, que Markham encarregara de ir ao n° 94 de Riverside Drive, radiante de satisfação.

— Creio que dei com o que o senhor queria, Chefe. — disse ele com voz rouca, que denunciava um sentimento de triunfo secreto. — Fui ao apartamento da St. Clair e toquei a campainha. Veio ela em pessoa abrir; entrei e fiz-lhe minhas perguntas. Claro está que se recusou a responder. Quando eu lhe disse que sabia que aquele pacote continha a arma com que fora morto Benson, ela riu e sacudiu violentamente a porta, dizendo-me: "Saia daqui, vil criatura!" Apressei-me a descer, continuou ele, e assim que cheguei à mesa telefônica acendeu o sinal do quarto dela. Deixei que o rapaz desse o número pedido e depois fiquei ao lado e escutei... Ela falava com o capitão, e suas primeiras palavras foram: "Eles sabem que levaste a pistola e atiraste ao rio". Ele deve ter ficado fora de si, porque nada disse por muito tempo. Depois respondeu, já perfeitamente sereno. "Não te inquietes, Muriel: e não digas uma palavra a ninguém mais o resto do dia. Amanhã estará tudo arranjado". Conseguiu que prometesse ficar tranqüila até hoje de manhã, e despediu-se.

Markham sentou-se e pôs-se a digerir a história.

— Que impressão teve da conversação? — perguntou depois.

— Se quer saber a minha opinião, Chefe, eu apostaria em que a culpa é de Leacock, e que a moça sabe disso.

Markham agradeceu e despediu-o.

— Este cavalheirismo do baixo Potomac, — comentou Vance, — é muito aborrecido... Mas não íamos ter uma polida conversa com o gentil Leandro?

Entrou este quase imediatamente. A urbanidade de maneiras era a mesma de sempre, mas não lhe disfarçava por completo a inquietação do espírito.

— Sente-se, Sr. Pfyfe, — ordenou Markham bruscamente. — Parece que o senhor tem mais alguma explicação a dar-me.

Pegou no invólucro e espalhou o conteúdo deste na mesa, onde o outro o visse.

— Quer ter a bondade de me dizer alguma coisa a.respeito disto?

— Com o maior prazer, — respondeu Pfyfe, com voz já agora insegura.

Perdera também o aprumo, e, querendo acender um cigarro, percebi que lhe tremiam os dedos que seguravam a caixa de fósforos.

— Na verdade, eu devia ter falado nisso antes, — confessou ele, indicando os papéis com gesto delicado e indiferente.

Inclinou-se para a frente, apoiando-se sobre um cotovelo, em postura confidencial; enquanto falava, dançava-lhe o cigarro para cima e para baixo entre os lábios.

— Penaliza-me profundamente entrar neste assunto, — começou ele. — Mas, desde que é no interesse da verdade, não o lamento... Meus... assuntos domésticos não correm tão bem como seria para desejar... O pai de minha mulher, sem nenhum motivo, tomou-se de antipatia por mim, e tem prazer em me privar absolutamente de qualquer auxílio financeiro, embora seja o dinheiro de minha mulher que ele me nega. Há poucos meses utilizei-me de certos fundos — dez ou doze mil dólares — que soube depois não me eram destinados. Quando meu sogro descobriu meu engano, obrigou-me a repor a soma, o que fiz para evitar desavença com minha esposa — pois sei que lhe causaria um grande desgosto. Lamento ter de dizer que usei o nome de Alvino em um cheque. Mas expliquei-o imediatamente, o senhor compreende, oferecendo-lhe logo a nota promissória e a pequena declaração que aqui estão, como atestado de minha boa fé... E aí está tudo, Sr. Markham.

— Era isso o que o senhor discutia com ele na semana passada?

Pfyfe olhou-o surpreso e ressentido.

— Ah! Falaram-lhe nesse pequeno contratempo? Sim... Discutimos um momento, sobre... os termos da transação.

— Benson exigia que a nota fosse paga no vencimento?

— Não, não era isso... exatamente, — respondeu Pfyfe, cujas maneiras se tornavam untuosas. — Peço-lhe, senhor, que não insista sobre a pequena discussão que tive com Alvino. Isso não teve nenhuma importância, nem influi no caso atual. Foi de natureza mais pessoal, — acrescentou, sorrindo confiantemente. — Confesso, entretanto, que fui à casa de Alvino na noite em que ele foi morto, com a intenção de lhe falar acerca do cheque; mas, como o senhor sabe, encontrei a casa fechada e passei a noite nos banhos turcos.

— Perdoe-me, Sr. Pfyfe. — disse Vance, — mas o Sr. Benson aceitou a promissória sem garantia?

— Sem dúvida! — respondeu Pfyfe em tom de censura. — Eu e Alvino, como já expliquei, éramos amigos muito íntimos.

— Mas é que mesmo um amigo, sabe o senhor, pode pedir garantia para tal soma. E como sabia Benson que o senhor estava em condições de pagar-lhe?

— Só o que posso dizer é que ele o sabia, — respondeu o outro com um ar de paciente deliberação.

Vance continuava a duvidar.

— Seria talvez por causa da confissão que o senhor lhe entregou...

Pfyfe recompensou-lhe a idéia com um olhar de radiante aprovação, dizendo:

— O senhor compreende perfeitamente a situação.

Vance desinteressou-se da conversa, e por mais que Markham se esforçasse, durante meia hora, nada mais conseguiu tirar de Pfyfe; aferrado às minudências da sua primitiva narração, recusou-se delicadamente a falar da sua querela com Benson, insistindo sempre em que ela em nada interessava. Afinal permitiram-lhe que se retirasse.

— Não adiantamos grande coisa, — disse Markham. — Começo a dar razão a Heath: não conseguimos nada investigando as loucas operações financeiras de Pfyfe.

— Você, — disse Vance, melancòlicamente, — jamais abandonará essa doce confiança em si próprio! Pois Pfyfe acaba de lhe dar a primeira indicação útil para uma investigação inteligente, e você diz que ele não serve para nada!... Escute-me e tome nota: A história dos dez mil dólares é indubitavelmente verdadeira; ele apropriou-se do dinheiro e depois falsificou a assinatura de Benson em um cheque, para substituí-lo. Mas não creio nem por um segundo não houvesse uma garantia além da declaração. Não era Benson homem que — fosse ou não amigo — entregasse essa soma sem garantia. O que ele queria era o seu dinheiro e não um homem na cadeia. Eis aí por que eu me meti e perguntei pela garantia. Ele negou, é claro; mas, apertado para dizer como sabia Benson que ele pagaria a promissória, foi às nuvens. Sugeri-lhe a declaração como uma explicação, o que mostrou que ele tinha alguma outra coisa no pensamento — alguma coisa a que não queria aludir; e a maneira por que se agarrou à minha suposição justifica minha teoria.

— Pois bem, que importa isso? — retrucou Markham, impaciente.

— Oh! Se pudesse chorar!... — lamentou Vance. — Você não vê que há alguém por detrás — alguém que está de qualquer modo em relação com essa garantia? Tem de ser assim: senão, é claro que Pfyfe teria contado toda a história da contenda, quando mais não fosse, para se livrar de suspeitas. E no entanto, sabendo embora que sua posição é desairosa, nega-se a divulgar o que se passou entre ele e Benson naquele dia... Pfyfe protege alguém — e ele não tem alma de cavalheiro, você bem o sabe. Portanto, pergunto: por que está ele protegendo alguém?

Reclinou-se para trás e olhou para o teto.

— Tenho uma idéia, que vale por um ciclone cerebral, — acrescentou ele, — e é que quando encontrarmos essa garantia, poremos a mão no assassino.

O telefone tocou e Markham atendeu. Ao ouvir o que lhe diziam, seu olhar revelou assombro primeiro, depois alegria. Combinou um encontro com a pessoa que falava para as cinco e meia. Depois, colocando o fone no gancho, riu gostosamente, dizendo a Vance:

— Suas pesquisas auriculares foram confirmadas: Miss Hoffman acaba de me falar confidencialmente, de um telefone da rua, para me dizer que tem algo a acrescentar à sua narrativa. Virá aqui às cinco e meia.

A Vance a notícia não causou abalo.

— Supus que ela falasse à hora do lanche. Markham lançou-lhe outra vez um olhar escrutinador. — Passa-se aqui alguma coisa estranha...

— Oh! — replicou Vance, indiferente, — mais estranha do que você imagina...

Markham esforçou-se durante vinte ou trinta minutos por fazê-lo falar. Mas Vance nada disse que valesse a pena: mostrou apenas uma habilidade singular em dizer somente tolices. Até que Markham, afinal, se exasperou.

— Chego à conclusão de que você ou tomou parte do assassinato de Benson, ou é um grande adivinho.

— É uma alternativa. Pode ser que minhas hipóteses estéticas e deduções metafísicas — como as chama você — estejam funcionando, não?

Pouco antes que fôssemos almoçar, entrou Swacker para dizer que Tracy acabava de voltar da Long Island com seu relatório.

— É o rapaz que você destacou para sondar os negócios sentimentais de Pfyfe? — perguntou Vance. — Se é, já estou ansioso para ouvi-lo.

— É ele. Mande entrar, Swacker.

Entrou Tracy, sorrindo levemente, um caderno preto numa mão, o pince-nez na outra.

— Não me custou saber o que o senhor queria acerca de Pfyfe, que é bem conhecido em Port Washington — uma pessoa importante, na verdade — todos tagarelavam a seu respeito.

Ajustou o pince-nez com muito cuidado e começou a ler suas notas.

— Casou-se em 1910 com Miss Hawthorn, que é rica, mas a ele pouco lhe aproveita isso, porque o sogro segura os cordões da bolsa...

— Sr. Tracy, — interrompeu Vance, — não nos interessa nem Miss Hawthorn, nem o tonto do seu pai. O próprio Pfyfe nos informou acerca desse triste casamento. Queremos que nos diga o que soube a respeito das aventuras extraconjugais do marido. Há outras damas no caso?

Tracy olhou interrogativamente para o Promotor: não conhecia muito bem a posição de Vance. A um sinal afirmativo de Markham, voltou a página e prosseguiu:

— Sim, encontrei outra mulher, que mora na cidade e telefona muitas vezes para uma drogaria próxima à casa de Pfyfe, para mandar recados. Como ele se serve do mesmo telefone para falar com ela — sem dúvida mediante algum acordo com o proprietário — pude obter o número da dama. Voltando à cidade, pedi à seção de Informações o nome e endereço dela, e soube alguma coisa... É a Sra. Paula Banning, uma viúva um tanto leviana, que reside num apartamento da casa n? 268 da Rua 75, Oeste.

Era tudo o que sabia Tracy. Ao afastar-se o investigador, Markham sorriu alegremente, dizendo a Vance:

— Este não lhe forneceu muito combustível, não?

— Acha? Pois eu penso que ele trabalhou muito bem: desencavou a informação de que nós precisávamos.

— Nós precisávamos? — repetiu Markham como um eco. — Eu... eu tenho coisas mais importantes em que pensar do que os amores de Pfyfe.

— E, no entanto, saiba que este amor secreto de Pfyfe vai resolver o problema do assassinato de Benson, — retrucou Vance, que se calou logo sem querer adiantar mais nada.

Markham, que tinha muito trabalho acumulado e várias entrevistas marcadas para aquela tarde, resolveu almoçar no gabinete, e nós saímos.

Almoçamos no Eliseu, e dali fomos à Galeria Knoedler, para ver uma exposição francesa; depois fomos ao AEolian Hall, onde um afinado quarteto vindo de São Francisco executava um programa de Mozart. E um pouco antes das cinco e meia voltávamos ao gabinete de Markham, a quem encontramos sozinho.

Não tardou a chegar Miss Hoffman, que foi logo contando o resto da história, sem preâmbulos, diretamente, como se fosse um negócio.

— Não lhe disse tudo hoje de manhã; nem lhe direi senão em caráter confidencial o mais que sei, porque, falando, arrisco meu emprego.

— Prometo-lhe, — disse Markham, — que corresponderei à sua confiança.

Após ligeira hesitação, ela começou:

— Hoje de' manhã, quando eu contei ao major Benson o que sabia acerca do Sr. Pfyfe e de seu irmão, ele imediatamente me disse que eu viesse aqui com ele para inteirá-lo do ocorrido, Sr. Markham. No caminho, porém, lembrou-se de que talvez fosse melhor omitir uma parte da história. Não disse exatamente que não a mencionasse, mas explicou-me que isso nada tinha que ver com o caso, e que só serviria para lhe trazer confusão ao espírito. Segui esse conselho, mas depois que voltei ao escritório, pensando em tudo isso, vi que era muito sério o caso da morte do Sr. Benson, e resolvi dizer-lhe tudo. No caso em que isso tenha qualquer importância, não me quero arrepender de lhe haver ocultado nada.

Ela falava como se não tivesse muita certeza de que procedia bem, mas continuou:

— Não quero ser indiscreta, mas havia mais alguma coisa no cofre, além do envelope que o Sr. Benson me pediu para levar-lhe ao gabinete, no dia em que discutiu com o Sr. Pfyfe. Era um pacote quadrado, pesado; e, como o envelope, trazia os dizeres "Pfyfe — Particular". E era sobre esse pacote que eles pareciam discutir.

— Esse pacote estava no cofre hoje de manhã, quando a senhora foi buscar o envelope para dá-lo ao major? — perguntou Vance.

— Oh, não! Depois que o Sr. Pfyfe saiu, na semana passada, tornei a por o pacote no cofre, assim como o envelope. Mas o Sr. Benson levou-o para sua casa na quinta-feira, o dia em que foi assassinado.

Markham, pouco interessado na narrativa, ia interrompê-la, quando Vance continuou:

— Foi muita bondade sua, Miss Hoffman, vir aqui contar-nos o que sabe acerca desse pacote; e agora, desejo fazer-lhe algumas perguntas... Que sabe das relações do Sr. Alvino Benson com o major?

Ela olhou curiosamente para Vance, sorrindo.

— Não se davam lá muito bem; eram tão diferentes... O Sr. Alvino Benson não era muito simpático, e creio que nem muito honesto, também. Ninguém julgaria que fossem irmãos. Discutiam constantemente por causa dos negócios, e desconfiavam um do outro.

— Isso não é de estranhar, visto que tinham temperamentos incompatíveis... E a propósito de que maneira demonstravam eles essa desconfiança?

— Para falar verdade, espiavam-se mutuamente. Os seus gabinetes eram contíguos, e ambos escutavam por trás das partas. Como eu fazia o trabalho de secretária de ambos, muitas vezes os apanhei a escutar assim. E tentavam descobrir coisas interrogando-me.

Vance sorriu a esta apreciação.

— Não era muito agradável a sua posição...

— Ora! Que me importava isso, — disse, sorrindo. — Era divertido...

— Quando encontrou pela última vez um deles a escutar à porta do outro?

Ela ficou séria imediatamente.

— No último dia de vida do Sr. Alvino, vi o major parado à porta. O Sr. Alvino tinha uma visita — uma senhora — e o major parecia muito interessado. Era à tarde; o Sr. Benson voltou para casa mais cedo, meia hora depois de ter saído a dama. Ela voltou ao escritório mais tarde, mas já não o encontrou, e eu disse-lhe que já se retirara.

— Sabe quem era a dama?

— Não, não sei. Não deu o nome.

Vance fez mais algumas perguntas; depois seguimos para a cidade no metrô, acompanhando Miss Hoffman, que ficou na Rua 23.

Markham, preocupado, não falou durante a viagem. Vance também não fez comentário algum, até que nos instalamos comodamente nas poltronas do Club Stuyvesant. Então, acendendo vagarosamente um cigarro, disse:

— Você acompanha, Markham, o sutil processo mental que me levou à profecia da segunda vinda de Miss Hoffman? Veja: eu sabia que Alvino não tinha pago aquele cheque falso sem garantia, e sabia também que a desavença tinha de provir dessa garantia, porque Pfyfe não quereria ser engaiolado por seu alter ego. Até desconfiei que ele tentara obter a devolução daquele penhor antes mesmo de pagar a promissória, ouvindo então que "nada há a fazer..." Além disso, a pequena Cabelos de Ouro pode ser uma linda moça, mas não está no temperamento feminino perceber, no compartimento vizinho, uma discussão entre dois biltres daqueles e não escutar atentamente. Eu não queria decifrar a escrita que ela diz ter feito durante o episódio. Estava certo de que ela tinha ouvido mais do que disse, e perguntava comigo: Por que este corte? e a única resposta lógica era: "Porque o major lhe sugeriu". Ora, a dama era uma reta alma germânica, com uma base inata de honestidade cauta e egoísta, e daí o aventurar eu o prognóstico de que, assim que se visse livre da benevolente tutela do major, viria dizer o resto, a fim de salvar a própria pele, se o caso viesse à tona mais tarde... Depois de explicado, vê que era simples, não é?

— Muito bem, mas aonde nos leva isso tudo? — perguntou Markham com certa petulância.

— Não posso dizer que o último movimento fosse inteiramente imperceptível, — respondeu Vance, continuando a fumar, impassível.

— Você compreende, eu creio, que o misterioso pacote continha o penhor.

— Sim, pode-se tirar essa conclusão. Mas o fato não me confunde — se é que você esperava por isso.

— E, sem dúvida, — prosseguiu Vance, tranqüilamente, — seu espírito jurídico, treinado na técnica do raciocínio, já viu que era a caixa de jóias que a Sra. Platz bisbilhotou sobre a mesa de Benson, na noite fatal.

Markham levantou-se de repente. Em seguida, tornou a sentar-se, encolhendo os ombros.

— Ainda que assim fosse, não vejo em que isso nos adiantaria... Claro que, se o major soubesse que esse pacote tinha alguma relação com o crime, não diria à secretária que omitisse essa informação.

— Ah! Mas, se o major soubesse que o pacote não tinha relação com o crime, é que então também sabia alguma coisa a respeito do crime, não? Além disso, ele não podia determinar o que tinha, e o que não tinha importância... Deduzia de tudo isso que ele sabia mais do que contou. Não esqueça, Markham, que ele nos indicou a pista de Pfyfe, e que tinha quase certeza da inocência de Leacock.

Markham refletiu por algum tempo.

— Começo a ver aonde você quer chegar. Aquelas jóias, afinal, podem ter representado um papel importante... Falarei com o major a respeito.

Depois do jantar, no Clube, o major entrou no salão onde fumávamos, e Markham acercou-se dele sem mais delongas.

— Major, o senhor não nos quer ajudar a descobrir a verdade acerca da morte de seu irmão?

O outro esquadrinhou-lhe o rosto: a inflexão da voz desmentia a aparente indiferença da pergunta.

— Deus sabe que não é meu desejo opor-lhe obstáculos, — disse ele, pesando cuidadosamente cada palavra. — Prestei-lhe de boa vontade o auxílio que pude. Mas há certas coisas que não posso dizer agora... Se se tratasse unicamente de mim, seria diferente...

— Mas suspeita de alguém? — perguntou Vance.

— Até certo ponto sim. Ouvi um dia no gabinete de Alvino uma conversa que adquiriu grande significação depois de sua morte.

— Não se deve deter diante de escrúpulos generosos, — insistiu Markham. — Se suas suspeitas são infundadas, a verdade afinal aparecerá.

— Mas, quando eu não sei, não posso aventurar uma conjectura, — afirmou o major. — Acho melhor o senhor resolver este problema por si próprio.

Foi improfícua a insistência de Markham, e pouco depois retirava-se o major, sem ter adiantado uma só palavra.

Markham, muito contrariado, tamborilava com os dedos no braço da poltrona.

— Então, velho camarada, — indagou Vance, — ficou um pouco perturbado, não?

— Mas não é engraçado isso? — resmungou Markham. — Todo o mundo parece saber mais do assunto do que a polícia e o Promotor.

— Isso ainda não seria tão aborrecido, se todos eles não fossem tão discretos, — acrescentou Vance, rindo. — A parte mais sensível do caso é que todos eles guardam silêncio, com o fim de proteger a outrem... A começar pela Sra. Platz: mente, dizendo que ninguém bateu à porta de Benson naquela tarde, para não envolver a moça que tomou chá com ele. Miss St. Clair se recusa terminantemente a dizer coisa alguma, porque não deseja lançar suspeitas sobre outrem. O capitão perde a voz, quando você lhe diz que a noiva estava implicada. Até o próprio Leandro hesita em se libertar de uma situação melindrosa, para não comprometer outra pessoa. E agora o major!... Muito aborrecido, isso tudo. Por outro lado, é consolador — para não dizer dignificante — tratar exclusivamente com almas tão nobres, cheias de tanto espírito de sacrifício!

— Que inferno! — exclamou Markham, levantando-se e lançando fora o cigarro. — Este negócio já me está perturbando os nervos. Vou consultar o travesseiro, e amanhã tratarei do caso.

— Essa antiga idéia de dormir sobre um problema é uma ilusão, — sentenciou Vance, quando seguíamos pela Avenida Madison. — É uma desculpa para quem não é capaz de pensar claramente. Idéia poética, afinal. Todos os poetas acreditam nela — o sono é a doce ama da natureza, o bálsamo de desgraça, o feitiço da infância, o suave restaurador da natureza cansada, e tudo o mais. Noção errada... Quando o cérebro está alerta, trabalha mais e melhor do que abatido pelo torpor do sono. O sono é calmante, não estimulante.

— Então fique de pé e pense, — aconselhou Markham, com ar impertinente.

— É o que vou fazer, — retrucou Vance, alegremente. — Mas não a respeito do caso Benson. Já há quatro dias assentei tudo o que pretendo fazer.


XVII

 

O CHEQUE FALSO

 


(Quarta-feira, 19 de junho — de manhã)

 


Quando chegamos ao gabinete de Markham, em sua companhia, na manhã seguinte, antes das nove, já ali encontramos Heath à espera. Parecia aborrecido, e traía-lhe a voz mal disfarçada censura ao Promotor.

— Que me diz de Leacock, Sr. Markham? — perguntou logo. — Parece-me melhor prendê-lo logo. Já demoramos muito... Ontem ocorreram coisas estranhas: ele foi ao Banco e ficou meia hora no gabinete do caixa. Depois foi ter com o advogado, demorando com ele mais de uma hora. Voltou ao banco, por mais meia hora. Foi dali ao restaurante do Astor, mas não jantou — sentou-se à mesa, pensativo, e nada comeu. Depois das duas horas foi à agência de imóveis que aluga o edifício onde mora; quando saiu, fui indagar, e soube que declarou poderem subalugar seu apartamento, a contar de amanhã. Visitou ainda seis amigos, depois voltou a casa. Após o jantar, um de meus homens bateu a sua porta, perguntando pelo Sr. Hoozitz. Leacock estava arrumando a bagagem! Parece-me que premedita uma fuga.

Markham franziu a testa. Via-se que este relato o perturbara. Vance adiantou-se a falar:

— Então, sargento, por que se inquieta tanto? Você vigia o capitão, logo, é claro que ele não poderá escapar às suas garras atentas...

Markham olhou para Vance, e disse a Heath:

— É isso, sargento, se o capitão tentar fugir, prenda-o. Saiu Heath, de mau humor.

— A propósito, Markham, — disse Vance. — Não tome nenhum compromisso para as doze e meia, pois já tem um, sem o saber... e com uma senhora.

Markham largou a pena, e encarou-o.

— Que nova brincadeira é essa?

— É que tomei um compromisso em seu nome. Chamei a senhora ao telefone hoje de manhã, e estou certo até de ter acordado a coitada!

Markham resmungou, tentando formular um protesto enérgico, mas Vance atalhou-o com o gesto suave da mão.

— Você vai honrar o compromisso, Markham. Eu disse ·que era você quem falava, seria pois indelicadeza não ir vê-la... E prometo-lhe que não se arrependerá. Ontem à noite parecia tudo tão embrulhado — eu não posso vê-lo assim aborrecido, por isso tratei de arranjar as coisas para que você fale com a Sra. Paula Banning — a Heloísa de Pfyfe. Estou convencido de que ela vai dissipar essa tristeza que o envolve...

— Mas olhe, Vance, quem manda aqui sou eu...

Mas deteve-se bruscamente, compreendendo que era loucura pretender vencer a brandura do outro. Além disso, pareceu-me que a perspectiva de uma entrevista com a Sra. Banning não era de todo alheia aos seus desejos; de modo que abrandou um.pouco o ressentimento, e quando tornou a falar já a voz tinha o tom natural:

— Uma vez que você prometeu, lá irei... Mas prefiro «ntão que Pfyfe não se ponha em comunicação com ela sem nós sabermos, porque é muito capaz de se intrometer, fingindo um encontro casual.

— O engraçado é que também pensei nisso... e telefonei-lhe ontem à noite, dizendo-lhe que podia voltar a Long Island.

— Telefonou-lhe!?

— Lamento profundamente isso, e tudo o mais, — disse Vance, com voz lamentosa. — Mas... você já estava deitado. Já o sono lhe desfazia a complicada teia dos cuidados, e não quis perturbá-lo... Além disso, Pfyfe ficou tão agradecido... E foi muito tocante, porque me declarou que a mulher também ficaria grata por isso. Era comovente ver o cuidado que tinha por ela. Mas creio que precisará de utilizar todos os seus recursos forenses para justificar a ausência.

— E em que outras empresas me envolveu você durante minha ausência? — perguntou Markham, acrimoniosamente.

— Foi só, — replicou Vance, indo até à janela.

Ali se deixou ficar, olhando para a rua, fumando, pensativo. Desaparecera-lhe o ar zombeteiro; voltou a sentar-se defronte de Markham.

— O major a bem dizer confessou-nos que sabia mais do que disse. Mas, em vista da atitude digna em que ele se colocou, você não pode apertá-lo. Contudo, o que mais deseja neste momento, é que você descubra o que ele sabe, desde que não seja por seu intermédio — e isso é o que ele claramente mostrou ontem à noite. Creio que há um meio de você descobrir sem ir de encontro aos seus princípios... Lembre-se do que Miss Hoffman contou da espionagem dos dais irmãos; e lembre-se também de que o major ouviu uma conversa, que, na noite do assassinato, lhe pareceu significativa. É muito provável, portanto, que isso que ele ouviu tenha ligação com os negócios da firma, ou, no mínimo, com um dos clientes dela. Minha idéia, — continuou Vance, acendendo vagarosamente o cigarro, — é esta: mande chamar o major e peça-lhe permissão para mandar um homem passar uma vista de olhos nos livros da firma, para examinar a escrita. Diga-lhe que deseja saber alguma coisa acerca das transações de um cliente. Dê-lhe a entender que se trata de Miss St. Clair, ou de Pfyfe, se achar conveniente. Tenho a intuição de que assim você chegará a uma pista sobre a pessoa a quem ele protege. Creio também que ele acolherá com alegria o seu interesse pela escrituração da casa.

O plano não agradou a Markham, que não lhe viu utilidade nem viabilidade; era também evidente que lhe repugnava fazer tal pedido ao major, mas Vance estava resolvido a consegui-lo, e pleiteou com tanto ardor, que o Promotor aquiesceu afinal.

— Era isso mesmo o que ele desejava, — exclamou Markham, pendurando o fone. — Mostrou-se satisfeito de me prestar esse auxílio.

— Eu o sabia... Se você chega a descobrir por si mesmo a pessoa de quem ele suspeita, isso o isenta da acusação de denunciá-la.

Markham chamou Swacker.

— Diga a Stitt que desejo falar-lhe aqui, antes do meio-dia — tenho um serviço urgente para ele. Stitt, — explicou, voltando-se para Vance, — é o chefe dos contadores de uma firma de Nova York. Tenho recorrido a ele muitas vezes em casos semelhantes.

Pouco antes do meio-dia chegava Stitt. Era um moço envelhecido antes do tempo, fisionomia astuta e maliciosa, sempre de testa franzida. Agradou-lhe a perspectiva de trabalhar para o Promotor.

Em poucas palavras, explicou-lhe Markham o que desejava, revelando-lhe o suficiente para guiá-lo na tarefa. Ele compreendeu a situação imediatamente, tomando uma ou duas notas nas costas de um envelope usado.

Vance, durante as instruções, também rabiscou algumas notas.

Markham ergueu-se e apanhou o chapéu, dizendo a Vance:

— Agora tenho de atender ao compromisso que você tomou em meu nome... Venha, Stitt, nós o levaremos no elevador particular dos magistrados.

— Se você o permite, — atalhou Vance, — eu e o Sr. Stitt renunciamos à honra, misturando-nos com a plebe no elevador comum. Ver-nos-emos lá embaixo.

Segurando o contador pelo braço, levou-o, e só passados dez minutos é que nos encontramos de novo.

Tomando o metrô, seguimos até à Rua 72, e dali caminhamos pela Avenida Oeste até ao endereço da S.ra. Paula Banning. Ela morava em uma pequena casa de cômodos, perto da esquina da Rua 75; tocamos a campainha, e enquanto esperávamos, chegou até nós um forte cheiro de incenso chinês.

— Oh! Isto facilita o negócio, — disse Vance, aspirando-o. — As mulheres que queimam incenso são sempre sentimentais.

Era a Sra. Banning uma mulher alta, um pouco gorda, de idade indeterminada; os cabelos eram cor de palha, as faces róseas e brancas. Quando em repouso, o.rosto tinha uma expressão de inocência juvenil e vazia, mas essa expressão era apenas superficial. Os olhos, muito azuis, eram duros; e uma leve intumescência das faces e abaixo do queixo, atestava anos de vida ociosa e indulgente. Não era, entretanto, falta de atrativos, e foi com maneiras afáveis que nos convidou a entrar em uma sala supermobiliada, em estilo rococó.

Uma vez sentados, Markham pediu desculpas de nossa intromissão, e Vance assumiu logo o papel de interrogador. Durante suas explicações preliminares, observava cuidadosamente a mulher, como se quisesse descobrir o meio mais fácil de obter dela a informação que desejava.

Depois de alguns minutos da palestra, pediu-lhe permissão para fumar, e ofereceu um dos seus cigarros à Sra. Banning, que o aceitou. Sorriu-lhe ele então, e acomodou-se na poltrona; parecia plenamente preparado para ouvir com simpatia tudo o que ela tinha a dizer.

— O Sr. Pfyfe, — começou Vance, — fez tudo o que podia para conservá-la afastada deste assunto, e nós apreciamos na devida conta esta delicadeza de proceder. Mas certas circunstâncias atinentes à morte do Sr. Benson indiretamente a envolvem no caso; e a senhora nos prestará grande auxílio, e a si própria — e mais particularmente ao Sr. Pfyfe — dizendo-nos o que precisamos de saber, e confiando em nossa discrição e inteligência.

Citando o nome de Pfyfe, acentuara-o, dando-lhe entonação significativa, e a mulher baixara os olhos, constrangida. Era evidente que estava apreensiva, e seus olhos pareciam perguntar: "Como pôde ele saber?" tão claramente como se fossem os lábios que falassem.

— Não posso imaginar o que é que o senhor deseja que eu diga, — disse por fim com esforço e surpresa. — O senhor sabe que Andy não estava em Nova York naquela noite: só chegou à cidade às nove horas da manhã seguinte.

"Andy", para designar o elegante e superior Pfyfe, soava quase como um crime de lesa-majestade...

— Mas a senhora não leu nos jornais a notícia de um Cadillac cinzento que esteve parado em frente à casa de Benson? — perguntou Vance, imitando a surpresa dela.

A dama sorriu, confiante.

— Aquele não era o carro de Andy. Ele tomou o trem para Nova York às 8 horas na manhã seguinte. E disseme que, ao saber que um carro igual ao seu estivera em casa de Benson, vira que fora sorte sua não ter estado aqui, na noite do crime.

Falava com a sinceridade de quem tem certeza completa. Era evidente que Pfyfe lhe mentira nesse ponto.

Vance não a desenganou; deu-lhe antes a entender que aceitava a explicação, abandonando a idéia da presença de Pfyfe em Nova York naquela noite.

— Referia-me a outra coisa, quando falei em possível ligação do seu nome e do de Pfyfe ao caso: pensava nas relações pessoais entre a senhora e Benson.

Ela sorriu com indiferença.

— Creio que ainda nisto o senhor se enganou, — disse em tom despreocupado. — Não tínhamos, sequer, relações. Na verdade, vi-o muito poucas vezes.

Falava com veemente ardor, mostrando ânsia em_ ser acreditada na sua negativa, em desmentido à indiferença que a princípio queria mostrar.

— Mesmo as relações de negócios podem ter o seu lado particular, — replicou Vance, — especialmente quando o intermediário é um amigo íntimo de ambas as partes contratantes.

Ela encarou-o precipitadamente, depois desviou os olhos.

— Não compreendo o que o senhor diz. De certo não pensa que eu tinha negócios com o Sr. Benson? — indagou ela, já sem aquele ar de inocência no rosto, que se mostrava agora interessado.

— Diretamente, não. Mas o Sr. Pfyfe tinha negócios com ele, e um desses negócios envolveu-a consideravelmente.

— A mim? — perguntou ela, num riso desdenhoso, mas estranho.

— Foi uma transação desastrosa, parece-me, — continuou Vance, — porque o Sr. Pfyfe teve de recorrer a Benson; e duplamente infeliz, porque teve de arrastá-la.

Suas maneiras eram serenas e firmes, e a mulher compreendeu que nem desprezo ou desdém fariam impressão nele. Ainda assim, adotou uma atitude de tolerante incredulidade.

— E onde soube o senhor tudo isso?

— Ah! infelizmente não o soube em parte alguma, — respondeu Vance, acompanhando-lhe as maneiras. — E por isso tive de vir fazer-lhe esta encantadora visita. Fui crédulo bastante, para esperar que ai senhora teria piedade de minha ignorância, e me contaria o que houve.

— Mas eu nunca faria tal coisa; mesmo que essa misteriosa transação tivesse existido, eu não lhe falaria dela.

— Palavra! — disse Vance suspirando. — Isto é desanimador... Vejo então que tenho de lhe contar o pouco que sei a respeito, e confiar na sua boa vontade para me esclarecer mais um pouco.

A despeito do mau presságio das palavras, o tom ameno agiu como um sedativo sobre a ansiedade da dama.

Compreendeu que ele simpatizava com a sua situação, apesar do que acaso pudesse saber a seu respeito.

— Trago-lhe uma novidade, dizendo-lhe que o Sr. Pfyfe falsificou a assinatura do Sr. Benson num cheque de dez mil dólares?

Ela hesitou, pesando as possíveis conseqüências de suas palavras.

— Não. Não é novidade... Andy conta-me tudo.

— E sabe também a senhora que o Sr. Benson, informado disso, ficou muito incomodado? Que exigiu uma nota promissória e uma declaração assinada antes de pegar o cheque?

Luziu uma chama de ódio nos olhos da mulher.

— Sim, eu também sabia disso. E depois de tudo quanto Andy fez por ele! Se jamais um homem mereceu um tiro, foi Alvino Benson! Era um cão... E pretendia passar pelo melhor amigo de Andy! Recusou-se a emprestar o dinheiro a Andy sem uma declaração... Mal se pode chamar a isso uma transação, não é? Eu... eu chamo-lhe vil, desprezível, miserável trapaça!

Estava furiosa; caíra-lhe a máscara de boa educação e delicadeza: vomitava injúrias sobre Benson, sem escolher as palavras, despida de toda a reserva habitual entre estranhos.

Vance, durante toda a tirada, sacudia a cabeça para consolá-la; por fim disse, num tom de quem deseja uma aproximação:

— Lamento-a bastante, senhora — e sorriu-lhe amavelmente. — Mas, no fim de contas, a gente poderia perdoar a Benson a exigência da declaração, se ele não tivesse também exigido um penhor.

— Que penhor?

Estava Vance muito atento e sentiu logo a mudança da voz dela. Aproveitando a explosão do seu ódio, mencionara o penhor enquanto ela estava assim indignada, esquecida das conveniências a guardar. A pergunta assustada, quase involuntária, mostrou-lhe que era o momento propício: antes que ela se pudesse dominar, e se dissipasse o receio momentâneo que a assaltara, disse com branda firmeza:

— No dia em que o Sr. Benson foi morto, levara do escritório para casa um cofrezinho azul com jóias.

Ela parou de respirar um momento, mas não deu nenhum outro sinal de emoção.

— Pensa o senhor que ele as roubara?

No mesmo instante em que formulara a pergunta, compreendeu que cometera um erro de técnica. Um homem vulgar poderia ter-se desviado da verdade, mas pelo sorriso de Vance ela percebeu que ele aceitara isso como uma confissão.

— Foi um belo gesto o seu, emprestar as suas jóias ao Sr. Pfyfe para que ele garantisse a promissória.

A essas palavras ela levantou a cabeça; fugira-lhe o sangue do rosto, e o carmim das faces tomara um matiz duvidoso, fora do natural.

— Oh! O senhor pensa que emprestei minhas jóias a Andy! Juro... que...

Interrompeu-lhe Vance a negativa com o gesto e o olhar. Ela viu que sua intenção era libertá-la da humilhação que sentiria depois de ter feito aquela solene e sincera narração. A generosidade da ação, embora de um antagonista, gerou nela a confiança no critério dele.

Afundou-se na cadeira, as mãos cairam-lhe.

— Por que pensa que emprestei minhas jóias a Andy? — perguntou com voz apagada.

Vance compreendeu a pergunta: era o fim dos subterfúgios. O silêncio que se seguiu foi a anistia — ambos assim o interpretaram. As palavras que viessem agora seriam a verdade.

— Andy precisava delas, senão Benson mandaria prendê-lo, — disse ela depois, e suas palavras revelavam uma estranha, abnegada afeição cheia de sacrifício pelo indigno Pfyfe. — Se Benson não o fizesse, e se contestasse com a impugnação do cheque, o sogro dele o faria... Andy é tão descuidado, tão negligente... Faz as coisas sem pesar as conseqüências: estou sempre a contê-lo. Mas isso agora serviu-lhe de lição, tenho a certeza disso.

A mim me pareceu que, se havia no mundo alguma coisa que pudesse servir de lição a Pfyfe, era a cega confiança daquela mulher.

— Sabe a senhora que ele questionou com Benson no gabinete deste, na quarta-feira passada, por causa disso?

— Tudo por culpa minha. — explicou ela, suspirando. — Aproximava-se o tempo do vencimento da promissória, e eu sabia que Andy não tinha todo o dinheiro... Pedi-lhe que fosse ter com Benson e lhe oferecesse o que podia dar, e visse se devolvia as minhas jóias... Mas, como eu temia, foi repelido.

Vance encarou-a com piedade.

— Não desejo afligi-la, visto que não posso ajudá-la. Mas quereria dizer-me a causa do ódio que a senhora manifestou há pouco contra Benson?

— O senhor tem razão, eu tinha um motivo poderoso para odiá-lo, — disse ela, com um olhar de enfado. — No dia seguinte àquele em que recusou entregar as jóias a Andy, chamou-me Benson ao telefone — era à tarde — e convidou-me para almoçar com ele no dia seguinte. Disseme que estava em casa e tinha as jóias consigo; e disse também — indiretamente, o senhor compreende — que talvez — talvez eu pudesse reavê-las. Aí está a espécie de animal que ele era!... Telefonei para Port Washington, falei nisso a Andy, que me disse viria à cidade na manhã seguinte. Chegou cerca de nove horas, e lemos nos jornais que ele fora assassinado naquela noite.

Vance ficou calado por muito tempo. Depois levantou-se e agradeceu-lhe.

— A senhora prestou-nos um auxílio valioso. O Sr. Markham é amigo do major Benson, e, visto que temos o cheque e a declaração em nosso poder, eu lhe pedirei que consiga do major a permissão de destruí-los o mais depressa possível.

 

 

 


CONTINUA