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Series & Trilogias Literarias
EM 18 DE OUTUBRO de 1969, Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio, desapareceu do Oratorio di San Lorenzo em Palermo, Sicília. Natividade, como é conhecida, é uma das últimas grandes obras de Caravaggio, pintada em 1609 enquanto ele era fugitivo da justiça, procurado pelas autoridades papais em Roma por matar um homem durante um duelo de espadas. Durante mais de quatro décadas, o retábulo foi a obra roubada mais procurada do mundo, e mesmo assim, sua localização exata, inclusive seu destino, permaneceu um mistério. Até agora...
PARTE UM
CHIAROSCURO
1
ST. JAMES’S, LONDRES
TUDO COMEÇOU COM UM ACIDENTE, como sempre acontecia com Julian Isherwood. Na verdade, sua reputação de imprudente e azarado era tão bem estabelecida que, caso o
mundo da arte de Londres tivesse ficado sabendo, o que não aconteceu, não teria se surpreendido. Isherwood, declarado um dos maiores especialistas do departamento
de Velhos Mestres da Sotheby’s, era o santo patrono das causas perdidas, um equilibrista atraído por esquemas cuidadosamente planejados que terminavam em desastre,
geralmente não por culpa dele. Em consequência, tanto o admiravam quanto sentiam pena dele, algo incomum para um homem de sua posição. Julian Isherwood fazia com
que a vida fosse um pouco menos chata. E, por isso, o grupo da moda de Londres o adorava.
Sua galeria ficava numa das esquinas do quarteirão conhecido como Mason’s Yard, ocupando três andares de um decadente galpão vitoriano que já tinha sido propriedade
da loja de luxo Fortnum & Mason. De um lado estavam os escritórios da filial londrina de uma pequena empresa de transporte grega; do outro havia um pub frequentado
por garotas bonitas que trabalhavam na região e andavam de scooter. Há muito anos, antes das sucessivas ondas de dinheiro árabe e russo que afogaram o mercado imobiliário
de Londres, a galeria estava na estilosa New Bond Street, ou New Bondstrasse, como era conhecida no meio. Depois vieram as lojas estilo Hermès, Burberry, Chanel
e Cartier, deixando Isherwood e outros como ele — galeristas independentes especializados em quadros de Velhos Mestres que poderiam estar em museus — sem escolha
a não ser procurar um santuário em St. James’s.
Não era a primeira vez que Isherwood tinha sido forçado a se exilar. Nascido em Paris às vésperas da Segunda Guerra Mundial, filho único do renomado negociante de
arte Samuel Isakowitz, ele tinha sido transportado pelos Pireneus depois da invasão alemã e levado escondido para a Grã-Bretanha. Sua infância parisiense e linhagem
judia eram apenas duas partes do confuso passado que Isherwood mantinha escondido do resto do mundo da arte de Londres, famoso por ser fofoqueiro. Para todo efeito,
ele era um verdadeiro inglês — tão inglês quanto o chá da tarde e os dentes ruins, como adorava falar. Era o incomparável Julian Isherwood, Julie para os amigos,
Juicy Julian para seus companheiros de bebedeira ocasional, e Sua Santidade para os historiadores de arte e curadores que frequentemente contavam com seu olho infalível.
Era leal como o dia era longo, confiável ao máximo, impecavelmente educado, e não tinha inimigos verdadeiros, uma conquista singular já que tinha passado toda sua
vida navegando pelas traiçoeiras águas do mundo da arte. Mais do que tudo, Isherwood era decente — algo em falta hoje em dia, em Londres ou em qualquer outro lugar.
A Isherwood Fine Arts era um negócio vertical: salas de depósito lotadas no térreo, escritórios no primeiro andar e uma sala de exposições formal no segundo. A sala
de exposições, considerada por muitos como a mais gloriosa em toda a cidade de Londres, era uma réplica exata da famosa galeria de Paul Rosenberg em Paris, onde
Isherwood tinha passado muitas horas felizes quando criança, geralmente na companhia do próprio Picasso. O escritório era uma toca dickensiana com altas pilhas de
catálogos e monografias amareladas. Para entrar, os visitantes tinham de passar por duas portas de vidro de segurança, a primeira na entrada de Mason’s Yard, a segunda
no alto de uma escadaria estreita coberta por um carpete marrom manchado. Ali encontrariam Maggie, uma loira com cara de sono que não conseguiria diferenciar um
Ticiano de um papel higiênico. Isherwood já tinha passado vergonha ao tentar seduzi-la e, sem outro recurso, decidiu contratá-la como recepcionista. No momento,
ela estava soprando as unhas enquanto o telefone em sua mesa gritava sem resposta.
— Pode atender, Mags? — pediu Isherwood com delicadeza.
— Por quê? — perguntou ela sem um traço de ironia em sua voz.
— Pode ser importante.
Ela revirou os olhos antes de levantar o aparelho, ressentida, e o colocar na orelha, falando: “Isherwood Fine Arts”. Alguns segundos depois, ela desligou sem outra
palavra e voltou a trabalhar em suas unhas.
— E então? — perguntou Isherwood.
— Não tinha ninguém na linha.
— Seja boazinha e veja o número de quem ligou.
— Ele vai ligar de novo.
Isherwood, franzindo o cenho, voltou à silenciosa avaliação da pintura apoiada sobre o cavalete coberto com um grosso tecido no centro da sala — uma representação
de Cristo aparecendo para Maria Madalena, provavelmente por um seguidor de Francesco Albani, que Isherwood tinha conseguido por uma ninharia de uma mansão em Berkshire.
O quadro, como o próprio Isherwood, precisava muito de uma restauração. Ele tinha chegado à idade que os planejadores imobiliários chamavam de “o outono de seus
anos”. Não era um outono dourado, pensou triste. Era o final do outono, com um vento cortante e as luzes de Natal já se acendendo na rua Oxford. Mesmo assim, com
seu terno Savile Row feito sob medida e volumosos cachos grisalhos, ele tinha uma figura elegante, apesar de precária, um visual que descrevia como degradação digna.
Nesse ponto de sua vida, ele não esperava por nada mais.
— Achei que algum russo horrível viria às quatro para olhar um quadro — falou Isherwood de repente, o olhar ainda sobre o cavalete velho.
— O russo horrível cancelou.
— Quando?
— Essa manhã.
— Por quê?
— Não falou.
— Por que não me avisou?
— Eu avisei.
— Besteira.
— Você deve ter se esquecido, Julian. Isso tem acontecido muito ultimamente.
Isherwood se virou com olhos fulminantes para Maggie, de repente pensando como ele poderia ter ficado atraído por uma criatura tão repulsiva. Depois, sem nenhum
outro compromisso na agenda, e sem absolutamente nada melhor para fazer, vestiu seu casaco e foi caminhando até o Green’s Restaurant and Oyster Bar, iniciando assim
a cadeia de eventos que o levaria a outra calamidade que não foi criada por ele. Haviam passado vinte minutos depois das quatro. Era um pouco cedo para os frequentadores
de sempre e o bar estava vazio, exceto por Simon Mendenhall, o sempre bronzeado chefe de leilões da Christie’s. Mendenhall já havia participado involuntariamente
de uma operação de inteligência conjunta israelense-americana para penetrar em uma rede de terror jihadista que estava bombardeando a Europa Ocidental à luz do dia.
Isherwood sabia disso porque havia tido uma pequena participação na operação. Ele não era um espião. Ajudava espiões, um em especial.
— Julie! — chamou Mendenhall. Então, com a voz de alcova que reservava para arrematadores relutantes, acrescentou: — Você parece estar muito bem. Perdeu peso? Foi
a um desses spas caros? Garota nova? Qual é o seu segredo?
— Sancerre — respondeu Isherwood antes de se sentar à mesa de sempre, perto da janela com vista para a rua Duke. Ali pediu uma garrafa da bebida, absurdamente gelada,
porque um copo não seria suficiente. Mendenhall logo foi embora com seu floreio habitual e Isherwood ficou sozinho com seus pensamentos e sua bebida, uma combinação
perigosa para um homem de idade avançada e uma carreira em pleno retrocesso.
Então a porta se abriu e da rua escura e molhada entraram dois curadores da Galeria Nacional. Alguém importante da Tate apareceu logo depois, seguido por uma delegação
do Bonhams liderada por Jeremy Crabbe, o acadêmico diretor do departamento de quadros de Velhos Mestres da casa de leilão. Logo atrás deles entrou Roddy Hutchinson,
amplamente considerado como o negociante mais inescrupuloso de toda Londres. Sua chegada era um mau presságio, pois onde quer que Roddy fosse, o gorducho Oliver
Dimbleby sempre o seguia. Como era de se esperar, este entrou no bar alguns minutos depois com a discrição de um trem apitando à meia-noite. Isherwood pegou seu
celular e fingiu uma conversa urgente, mas Oliver não acreditou. Foi direto para a mesa — como um cão encurralando uma raposa, Isherwood lembraria mais tarde — e
instalou seu amplo traseiro em uma cadeira vazia.
— Domaine Daniel Chotard — falou com aprovação, erguendo a garrafa de vinho do balde de gelo. — Não se importa, não é?
Estava usando um terno azul chamativo que se ajustava a sua figura corpulenta como um pacote de salsichas e grandes abotoaduras douradas do tamanho de uma moeda.
Suas bochechas eram redondas e rosadas; os olhos azul-claros tinham um brilho que sugeria que havia dormido bem à noite. Oliver Dimbleby era um pecador da mais alta
ordem, mas sua consciência não o incomodava.
— Não me entenda mal, Julie — falou ele enquanto se servia de uma taça generosa do vinho de Isherwood —, mas você parece uma pilha de roupa suja.
— Não foi o que Simon Mendenhall me disse.
— Simon ganha a vida convencendo as pessoas a gastar dinheiro. Eu, no entanto, sou uma fonte de sinceridade direta, mesmo quando machuca. — Dimbledy olhou para Isherwood
com preocupação genuína.
— Ah, não me olhe assim, Oliver.
— Assim como?
— Como se estivesse tentando pensar em algo gentil para dizer antes que o médico desligue os aparelhos.
— Já deu uma olhada no espelho ultimamente?
— Tento evitar os espelhos hoje em dia.
— Dá para ver o motivo. — Dimbleby serviu mais um dedo de vinho em sua taça.
— Posso pedir algo mais para você, Oliver? Um pouco de caviar?
— Eu sempre retribuo, não?
— Não, Oliver, não retribui. Na verdade, se eu estivesse contando, algo que não faço, você me deveria alguns milhares de libras.
Dimbleby ignorou o comentário.
— O que foi, Julian? O que o preocupa dessa vez?
— No momento, Oliver, é você.
— É aquela garota, não é, Julie? É isso que a deixa mal. Qual é o nome dela mesmo?
— Cassandra — respondeu Isherwood olhando para a janela.
— Partiu seu coração, não foi?
— Elas sempre fazem isso.
Dimbledy sorriu.
— Sua capacidade de amar me impressiona. O que eu não daria para me apaixonar pelo menos uma vez.
— Você é o maior mulherengo que conheço, Oliver.
— Ser mulherengo tem pouquíssimo a ver com se apaixonar. Amo as mulheres, todas as mulheres. E é aí que está o problema.
Isherwood olhou para a rua. Estava começando a chover de novo, bem na hora do rush.
— Vendeu alguns quadros ultimamente? — perguntou Dimbleby.
— Vários, na verdade.
— Nenhum que eu tenha ouvido falar.
— É porque as vendas foram privadas.
— Besteira — respondeu Oliver com uma risada. — Você não vende nada há meses. Mas isso não o impediu de adquirir quadros novos, não foi? Quantos quadros você tem
armazenados naquele seu galpão? O suficiente para encher um museu, com alguns milhares de quadros de reserva. E estão todos queimados, mais mortos do que a proverbial
tranca na porta.
Isherwood não respondeu, apenas passou a mão pelas costas. A dor nas costas tinha substituído a tosse forte como seu problema físico mais persistente. Pensou que
era uma melhoria. Dor nas costas não perturbava os vizinhos.
— Minha oferta ainda está de pé. — Dimbleby começou a falar.
— Que oferta?
— Vamos, Julie. Não me obrigue a repetir.
Isherwood girou o rosto alguns graus e olhou direto para o rosto rechonchudo e meio infantil de Dimbleby.
— Não está falando em comprar minha galeria de novo, está?
— Estou preparado para ser mais do que generoso. Vou oferecer um preço justo pela pequena porção da sua coleção que pode ser vendida e usar o resto para aquecer
o prédio.
— É muito caridoso da sua parte — respondeu Isherwood com sarcasmo —, mas tenho outros planos para a galeria.
— Realistas?
Isherwood ficou em silêncio.
— Muito bem — falou Dimbleby. — Se não quer que eu tome posse daquele desastre que você chama de galeria, pelo menos deixe que eu faça outra coisa para ajudar a
tirá-lo do seu atual Período Azul.
— Não quero uma de suas garotas, Oliver.
— Não estou falando de garotas. Estou falando de uma boa viagem para ajudá-lo a se esquecer de seus problemas.
— Para onde?
— Lago Como. Tudo pago. Passagem de primeira classe. Duas noites em uma suíte de luxo na Villa d’Este.
— E o que preciso fazer?
— Um pequeno favor.
— Pequeno de verdade?
Dimbleby se serviu de um pouco mais de vinho e contou a Isherwood toda a história.
Parece que Oliver Dimbleby recentemente tinha conhecido um expatriado inglês que era um colecionador voraz, mas que não tinha um conselheiro de arte com conhecimento
para guiá-lo. Além do mais, parecia que as finanças do inglês estavam em decadência, por isso precisava de uma rápida venda de parte de suas posses. Dimbleby tinha
concordado em dar uma olhada com calma na coleção, mas agora que era hora de viajar, ele não conseguia enfrentar a perspectiva de tomar outro avião. Ou era o que
afirmava. Isherwood suspeitava que os verdadeiros motivos de Dimbleby para não querer viajar eram outros, pois Oliver Dimbleby era feito de carne, osso e motivos
escusos.
Mesmo assim, havia algo na ideia de uma viagem inesperada que agradava à Isherwood, e contra todo bom senso, ele aceitou a oferta na hora. Naquela noite fez uma
mala pequena e às nove da manhã seguinte estava entrando na primeira classe do voo 576 da British Airways sem escalas para o aeroporto de Malpensa, em Milão. Bebeu
uma única taça de vinho durante o voo — para o bem do seu coração, falou para si mesmo — e ao meio-dia e meia, quando entrou em uma Mercedes alugada, estava com
o controle completo de suas faculdades. Fez a viagem para o norte até o lago Como sem a ajuda de mapas ou GPS. Um respeitado historiador de arte especializado nos
pintores de Veneza, Isherwood tinha feito incontáveis viagens à Itália para rondar por suas igrejas e museus. Mesmo assim, sempre aproveitava a chance de voltar,
especialmente quando outra pessoa estava pagando a conta. Julian Isherwood era francês de nascimento e inglês de criação, mas dentro de seu peito afundado batia
o coração romântico e indisciplinado de um italiano.
O inglês expatriado com cada vez menos recursos estava esperando Isherwood às duas. Vivia grandiosamente, de acordo com o e-mail escrito às pressas por Dimbleby,
na ponta sudoeste do lago, perto da cidade de Laglio. Isherwood chegou alguns minutos antes e encontrou aberto o imponente portão para recebê-lo. Além do portão
se estendia um caminho recém-pavimentado, que o levava graciosamente até um pátio de cascalho. Estacionou perto do cais privado da villa e caminhou passando por
uma coleção de estátuas até a porta da frente. Ninguém atendeu a campainha. Isherwood olhou seu relógio e depois tocou a campainha pela segunda vez. O resultado
foi igual.
Neste ponto, Isherwood deveria ter sido esperto, voltado ao carro alugado e ido embora de Como o mais rápido possível. Em vez disso, mexeu no trinco e, infelizmente,
descobriu que não estava trancado. Abriu a porta alguns centímetros, berrou um cumprimento para o interior escuro e deu uns passos inseguros no grande hall de entrada.
No mesmo instante, viu a poça de sangue no chão de mármore, os dois pés descalços suspensos no espaço e o rosto azul-escuro e inchado olhando para ele de cima. Isherwood
sentiu os joelhos tremerem e viu o chão vindo em sua direção. Ficou um tempo ali ajoelhado até passar a onda de enjoo. Então se levantou instável e, com a mão sobre
a boca, saiu correndo da casa em direção ao carro. E apesar de não ter percebido na hora, estava xingando o gorducho Oliver Dimbleby a cada passo.
2
VENEZA
NO COMEÇO DA MANHÃ SEGUINTE, VENEZA perdeu outra batalha em sua antiga guerra contra o mar. As marés carregaram criaturas marinhas de todos os tipos para dentro
do lobby do Hotel Cipriani e inundaram o Harry’s Bar. Turistas dinamarqueses nadavam na Piazza San Marco; mesas e cadeiras do Caffè Florian batiam contra os degraus
da basílica como escombros de um transatlântico de luxo afundado. Pela primeira vez, não se via nenhuma pomba. As mais espertas fugiram da cidade submersa em busca
de terra seca.
Havia porções de Veneza, no entanto, onde a acqua alta era mais uma chateação do que uma calamidade. Na verdade, o restaurador encontrou um arquipélago de terra
razoavelmente seca que ia da porta de seu apartamento no sestiere de Cannaregio a Dorsoduro, na parte sul da cidade. O restaurador não tinha nascido em Veneza, mas
conhecia suas passagens e praças melhor do que a maioria dos nativos. Tinha estudado seu ofício em Veneza, amado e sofrido em Veneza, e uma vez, quando era conhecido
por um nome que não era o próprio, tinha sido perseguido e expulso de Veneza por seus inimigos. Agora, depois de uma longa ausência, tinha voltado a sua adorada
cidade de água e pinturas, a única cidade onde já tinha experimentado algo parecido com felicidade. Não paz, no entanto; para o restaurador, paz era somente o período
entre uma guerra e outra. Era algo fugaz, uma falsidade. Poetas e viúvas sonhavam com isso, mas homens como o restaurador nunca se permitiam ser seduzidos pela noção
de que a paz poderia realmente ser possível.
Ele parou em um quiosque para ver se estava sendo seguido e depois continuou na mesma direção. Era um pouco mais baixo que a média — 1,72 m talvez, não mais que
isso — e tinha o físico magro de um ciclista. O rosto era comprido e estreito no queixo, com maçãs do rosto proeminentes e um nariz delgado que parecia ter sido
entalhado na madeira. Os olhos que acompanhavam tudo por baixo da aba de seu chapéu eram estranhamente verdes; os cabelos nas têmporas eram da cor das cinzas. Usava
um casaco impermeável e botas Wellington, mas não carregava nenhum guarda-chuva apesar da garoa constante. Por hábito, ele nunca aparecia em público com nenhum objeto
que pudesse impedir os movimentos rápidos de suas mãos.
Cruzou para Dorsoduro, o ponto mais alto da cidade, e abriu caminho até a Igreja de San Sebastiano. A porta da frente estava bem trancada, e havia um aviso aparentemente
oficial explicando que o prédio estaria fechado ao público até o próximo outono. O restaurador se aproximou de uma pequena porta do lado direito da igreja e a abriu
com uma pesada chave mestra. Uma brisa de ar frio vinda de dentro acariciou seu rosto. Fumaça de vela, incenso, mofo antigo: algo nesse cheiro o lembrava da morte.
Ele trancou a porta atrás de si, desviou de uma fonte cheia de água benta e entrou.
A nave estava escura e sem os bancos. O restaurador andou silenciosamente sobre as pedras desgastadas e cruzou o portão aberto do trilho do altar. A mesa eucarística
ornamentada tinha sido removida para limpeza; em seu lugar havia um andaime de alumínio com nove metros de altura. O restaurador escalou com a agilidade de um gato
doméstico e cruzou uma mortalha de lona até sua plataforma de trabalho. Suas coisas estavam exatamente como ele tinha deixado na noite anterior: frascos de produtos
químicos, uma bola de algodão, um pacote de cavilhas de madeira, uma lente de aumento, duas fortes lâmpadas halógenas, um aparelho de som portátil manchado de tinta.
O retábulo — Virgem e o Menino em Glória com Santos, de Paolo Veronese — estava como ele havia deixado, também. Era outro dos muitos quadros incríveis que Veronese
tinha produzido para a igreja entre 1556 e 1565. Sua tumba, com o ameaçador busto de mármore, estava à esquerda do presbitério. Em momentos como esse, quando a igreja
estava vazia e escura, o restaurador quase podia sentir o fantasma de Veronese observando-o trabalhar.
Ele acendeu as lâmpadas e ficou imóvel por um bom tempo na frente do retábulo. No topo estavam Maria e o Menino Jesus, sentados em cima de nuvens de glória e cercados
por anjos musicistas. Embaixo deles, olhando para cima em arrebatamento, havia um grupo de santos, incluindo o santo patrono daquela igreja, Sebastião, que Veronese
representou em martírio. Nas últimas três semanas, o restaurador tinha removido, delicadamente, o verniz rachado e amarelado com uma mistura cuidadosamente calibrada
de acetona, metil proxitol e destilados minerais. Como ele gostava de explicar, remover o verniz de um quadro barroco não era como espanar um móvel; era mais parecido
com esfregar o chão de um porta-aviões com uma escova de dente. Ele tinha primeiro que esfregar com um pedaço de algodão e uma cavilha de madeira. Depois de umedecer
o algodão com solvente, ele o aplicava na superfície da tela e girava delicadamente para não lascar a tinta ainda mais. Com cada algodão dava para limpar alguns
centímetros quadrados do quadro antes de ficar muito sujo para usar. À noite, quando não estava sonhando com sangue e fogo, ele estava removendo o verniz amarelado
de uma tela do tamanho da Piazza San Marco.
Mais uma semana, pensou, e estaria pronto para passar à segunda fase da restauração, retocar essas porções da tela onde a tinta original de Veronese estava lascada.
As figuras de Maria e do Menino Jesus estavam bem conservadas, mas o restaurador tinha descoberto várias partes prejudicadas no topo e na base da tela. Se tudo corresse
de acordo com o plano, ele terminaria a restauração quando sua esposa estivesse entrando nas semanas finais da gravidez. Se tudo corresse de acordo com o plano,
pensou de novo.
Enfiou um CD de La Bohème no aparelho de som, e um momento depois o santuário foi tomado pelas notas de abertura de “Non sono in vena”. Enquanto Rodolfo e Mimi estavam
se apaixonando em um pequeno estúdio em Paris, o restaurador estava parado sozinho em frente a um Veronese, removendo meticulosamente a sujeira da superfície e o
verniz amarelado. Ele ia trabalhando aos poucos e com um ritmo tranquilo — molhar, girar, descartar... molhar, girar, descartar... — até a plataforma ficar cheia
de bolas de algodão sujas. Veronese tinha aperfeiçoado a fórmula para pinturas que não desapareciam com o tempo; e com o restaurador removendo cada pequeno pedaço
de verniz marrom-tabaco, as cores por baixo brilhavam intensamente. Era quase como se o mestre tivesse aplicado a pintura na tela ontem em vez de quatro séculos
e meio atrás.
O restaurador tinha a igreja para si por mais duas horas. Às dez, ouviu o barulho de botas sobre o chão de pedra da nave. As botas pertenciam a Adrianna Zinetti,
limpadora de altares, sedutora de homens. Depois foi a vez de Lorenzo Vasari, um talentoso restaurador de afrescos que tinha ressuscitado quase sozinho a Última
Ceia, de Leonardo. Depois, o arrastar conspiratório de Antonio Politi, que, para sua contrariedade, era responsável pelos painéis do teto em vez do retábulo principal.
Como resultado, passava os dias deitado de costas como um Michelangelo moderno, olhando ressentido para a plataforma protegida do restaurador, no presbitério.
Não era a primeira vez que o restaurador e os outros membros da equipe trabalhavam juntos. Vários anos antes, tinham feito grandes restaurações na Igreja de San
Giovanni Crisostomo, em Cannaregio, e antes disso, na Igreja de San Zaccaria, em Castello. Na época, eles conheciam o restaurador como o brilhante, mas totalmente
reservado, Mario Delvecchio. Mais tarde, descobririam, junto com o resto do mundo, que ele era um lendário agente da inteligência israelense e assassino chamado
Gabriel Allon. Adrianna Zinetti e Lorenzo Vasari tinham conseguido perdoar a mentira de Gabriel, mas não Antonio Politi. Em sua juventude, ele já tinha acusado Mario
Delvecchio de ser um terrorista, e via Gabriel Allon da mesma maneira. Secretamente, suspeitava que fosse por causa de Gabriel que ele passava seus dias na parte
alta da nave, deitado e contorcido, isolado do contato humano, com solvente e tinta pingando em seu rosto. Os painéis mostravam a história da rainha Esther. Claro,
Politi contava a todos que quisessem ouvir, não era coincidência.
Na verdade, Gabriel não teve nada a ver com a decisão; tinha sido tomada por Francesco Tiepolo, dono da mais importante empresa de restauração no Vêneto e diretor
do projeto San Sebastiano. Uma figura que lembrava um urso com uma barba grisalha, Tiepolo era um homem de enorme apetite e paixões, capaz de grande raiva e amor
ainda maior. Quando chegou ao centro da nave, estava vestido, como de costume, com uma camisa larga estilo túnica e um lenço de seda amarrado no pescoço. A roupa
fazia com que parecesse estar supervisionando a construção da igreja em vez de sua restauração.
Tiepolo parou brevemente para dar um olhar admirado para Adrianna Zinetti, com quem já tinha tido um caso que estava entre os segredos mais mal guardados de Veneza.
Então subiu ao andaime de Gabriel e enfiou a cabeça no buraco da lona. A plataforma de madeira parecia arquear com seu grande peso.
— Cuidado, Francesco — falou Gabriel, franzindo a testa. — O chão do altar é feito de mármore e está a uma boa distância.
— Do que está falando?
— Estou falando que seria melhor se você perdesse uns quilos. Está começando a desenvolver sua própria força gravitacional.
— Para que eu perderia peso? Eu poderia perder vinte quilos e ainda seria gordo. — O italiano deu um passo adiante e examinou o altar sobre o ombro de Gabriel. —
Muito bom — falou com admiração fingida. — Se continuar nesse ritmo, terá terminado a tempo para o primeiro aniversário do seu filho.
— Posso fazer mais rápido — respondeu Gabriel — ou posso fazer direito.
— Não são coisas mutuamente exclusivas, sabe. Aqui na Itália, nossos restauradores trabalham rápido. Mas não você — acrescentou Tiepolo. — Mesmo quando estava fingindo
ser um de nós, sempre foi muito lento.
Gabriel montou uma vareta nova, molhou com solvente e girou sobre o torso de Sebastião ferido com uma flecha. Tiepolo ficou olhando intensamente por um momento;
então montou uma vareta e passou sobre o ombro do santo. O verniz amarelado dissolveu instantaneamente, expondo a pintura limpa de Veronese.
— Sua mistura de solvente é perfeita — falou Tiepolo.
— Sempre é — respondeu Gabriel.
— Qual é a solução?
— É segredo.
— Tudo precisa ser segredo com você?
Ao ver que Gabriel não responderia, Tiepolo olhou para os frascos de produtos químicos.
— Quanto de acetato metílico você usou?
— A medida exata.
Tiepolo fez uma careta.
— Não fui eu quem conseguiu trabalho para você quando sua esposa decidiu que queria passar a gravidez em Veneza?
— Sim, Francesco.
— E não paguei bem mais do que pago aos outros — sussurrou ele —, apesar de você sempre me deixar na mão quando seus mestres exigem seus serviços?
— Você sempre foi muito generoso.
— Então por que não me conta a fórmula do seu solvente?
— Porque Veronese tinha sua fórmula secreta e eu tenho a minha.
Tiepolo fez um gesto de desprezo com a mão enorme. Então jogou fora seu algodão sujo e preparou um novo.
— Recebi uma ligação da chefe de redação do New York Times de Roma ontem à noite — falou, como quem não quer nada. — Ela está interessada em fazer uma matéria sobre
a restauração na seção de artes de domingo. Quer vir aqui na sexta-feira e dar uma olhada.
— Se não se importa, Francesco, acho que vou tirar folga na sexta.
— Achei que ia falar isso. — Tiepolo olhou bem para Gabriel. — Não fica nem tentado?
— A quê?
— A mostrar ao mundo o verdadeiro Gabriel Allon. O Gabriel Allon que se importa com os trabalhos dos grandes mestres. O Gabriel Allon que pinta como um anjo.
— Só falo com jornalistas como último recurso. E nunca sonharia em conversar sobre mim.
— Você teve uma vida interessante.
— Para não dizer o pior.
— Talvez seja hora de sair de trás das sombras.
— E depois?
— Poderia passar o resto dos seus dias aqui em Veneza com a gente. Sempre foi um veneziano de coração, Gabriel.
— É tentador.
— Mas?
Com sua expressão, Gabriel deixou claro que não queria mais discutir o assunto. Então, virando-se para a tela, perguntou:
— Você recebeu alguma outra ligação que eu deveria saber?
— Só uma — respondeu Tiepolo. — O general Ferrari dos Carabinieri está vindo para a cidade esta manhã. Gostaria de conversar com você em particular.
Gabriel se virou e olhou para Tiepolo.
— Sobre o quê?
— Ele não disse. O general é muito melhor fazendo perguntas do que respondendo. — Tiepolo estudou Gabriel por um momento. — Nunca soube que você e o general eram
amigos.
— Não somos.
— Como você o conhece?
— Uma vez ele me pediu um favor e não tive escolha a não ser aceitar.
Tiepolo ficou pensativo.
— Deve ter sido aquele negócio no Vaticano há alguns anos, aquela garota que caiu da cúpula da Basílica. Se bem me lembro, você estava restaurando o Caravaggio deles
na época em que aquilo aconteceu.
— Estava?
— Esse era o boato.
— Não devia prestar atenção em boatos, Francesco. Quase sempre estão errados.
— Menos quando envolvem você. — Tiepolo respondeu com um sorriso.
Gabriel permitiu que o comentário ecoasse sem resposta nas alturas da capela. Então retomou seu trabalho. Um momento antes estava usando sua mão direita. Agora estava
usando a esquerda, com igual destreza.
— Você é como Ticiano — falou Tiepolo, observando. — Um sol entre pequenas estrelas.
— Se não me deixar em paz, o sol nunca vai terminar esse quadro.
Tiepolo não se moveu.
— Tem certeza de que você não é ele? — perguntou depois de um momento.
— Quem?
— Mario Delvecchio.
— Mario está morto, Francesco. Mario nunca existiu.
3
VENEZA
O QUARTEL REGIONAL DOS Carabinieri, a polícia militar da Itália, estava localizado no sestiere de Castello, perto do Campo San Zaccaria. O general Cesare Ferrari
saiu do prédio exatamente à uma da tarde. Ele tinha abandonado o uniforme azul com suas várias medalhas e insígnia, e estava usando um terno de executivo. Uma mão
segurava firme uma mala de aço inoxidável; a outra, a que não tinha dois dedos, estava enfiada no bolso de um sobretudo de corte impecável. Tirou a mão o suficiente
para apertar a de Gabriel. Seu sorriso foi breve e formal. Como sempre, o sorriso não teve influência sobre seu falso olho direito. Mesmo Gabriel achava difícil
aguentar aquele olhar sem vida e inflexível. Era como ser observado pelo olho que tudo vê de um deus impiedoso.
— Você está muito bem — falou o general Ferrari. — Estar de volta a Veneza obviamente lhe faz bem.
— Como soube que eu estava aqui?
O segundo sorriso do general durou um pouco mais do que o primeiro.
— Não há muitas coisas que acontecem na Itália que eu não saiba, especialmente quando dizem respeito a você.
— Como você soube? — Gabriel perguntou de novo.
— Quando você pediu permissão de nossos serviços de inteligência para voltar a Veneza, eles enviaram essa informação para todos os ministérios e divisões relevantes
das forças públicas. Um desses lugares era o palazzo.
O palazzo ao qual se referia o general estava na Piazza di Sant’Ignazio, no centro antigo de Roma. Abrigava a Divisão para a Defesa do Patrimônio Cultural, que era
mais conhecida como Esquadrão de Arte. O general Ferrari era o comandante. E estava certo sobre uma coisa, pensou Gabriel. Não havia muitas coisas acontecendo na
Itália que o general não soubesse.
Filho de professores da empobrecida região da Campânia, Ferrari há muito era visto como um dos oficiais mais competentes e bem-sucedidos da Itália. Durante a década
de 1970, uma época de atentados terroristas no país, ele ajudou a neutralizar as Brigadas Vermelhas Comunistas. Depois, durante as guerras da Máfia nos anos 1980,
serviu como comandante na divisão de Nápoles, infestada pela Camorra. A indicação era tão perigosa que a esposa e as três filhas de Ferrari foram forçadas a viver
24 horas sob proteção. O próprio Ferrari foi alvo de várias tentativas de assassinato, incluindo o ataque com uma carta bomba que lhe custou o olho e dois dedos.
O posto no Esquadrão de Arte deveria ser uma recompensa por uma carreira longa e destacada. Achavam que Ferrari ia simplesmente seguir os passos de seu apagado antecessor,
que iria mexer em uns papéis, fazer longos almoços romanos e, de vez em quando, encontrar um ou dois quadros valiosos que eram roubados todo ano dos museus italianos.
Em vez disso, ele imediatamente começou a modernizar uma unidade que já tinha sido muito eficiente, mas que tinham permitido que se atrofiasse por idade e negligência.
Poucos dias depois de sua chegada, ele demitiu metade do pessoal e logo reabasteceu os postos com jovens oficiais agressivos que conheciam um pouco de arte. Deu
uma ordem simples. Não estava muito interessado nas gangues de rua que realizavam os roubos; ele queria os peixes grandes, os chefes que traziam os bens roubados
para o mercado. Não demorou muito para que a nova abordagem de Ferrari começasse a dar frutos. Mais de uma dúzia de ladrões importantes agora estavam presos, e as
estatísticas sobre roubo de arte, apesar de ainda serem muito altas, estavam começando a melhorar.
— Então, o que o traz a Veneza? — Gabriel perguntou enquanto caminhava com o general entre os lagos temporários no Campo San Zaccaria.
— Tinha negócios no norte — lago Como, mais especificamente.
— Algo foi roubado?
— Não — respondeu o general. — Alguém foi assassinado.
— Desde quando assassinatos são da alçada do Esquadrão de Arte?
— Quando o morto tem uma conexão com o mundo da arte.
Gabriel parou de caminhar e se virou para encarar o general.
— Você ainda não respondeu minha pergunta — falou ele. — Por que está em Veneza?
— Por sua causa, é claro.
— O que um assassinato em Como tem a ver comigo?
— A pessoa que encontrou o corpo.
O general sorriu de novo, mas o olho falso estava olhando inexpressivamente para lugar nenhum. Era o olho de um homem que sabia tudo, pensou Gabriel. Um homem que
não aceitaria um não como resposta.
Entraram na igreja pela entrada principal do campo e foram até o famoso retábulo de San Zaccaria feito por Bellini. Um grupo de turistas estava parado na frente
dele enquanto um guia dava uma explicação sobre a recente restauração da pintura, sem saber que o homem que tinha feito aquilo estava entre a plateia. Até o general
Ferrari parecia interessado, apesar de que depois de um momento, seu olhar de um olho só começou a vagar. O Bellini era a obra mais importante de San Zaccaria, mas
a igreja continha vários outros quadros notáveis também, incluindo trabalhos de Tintoretto, Palma o Velho e Van Dyke. Era só um exemplo de por que os Carabinieri
mantinham uma unidade dedicada de detetives de arte. A Itália tinha sido abençoada com duas coisas em abundância: arte e criminosos profissionais. Boa parte da arte,
como a que estava naquela igreja, era mal protegida. E muitos dos criminosos estavam dispostos a roubar tudo que pudessem.
No lado oposto da nave havia uma pequena capela onde ficava a cripta de seu patrono e uma tela de um pintor veneziano de pouca expressão que ninguém tinha se importado
em limpar em mais de um século. O general Ferrari se sentou em um dos bancos, abriu sua maleta de metal e tirou uma pasta. Depois, da pasta, tirou uma foto 8x10,
que entregou a Gabriel. Mostrava um homem de meia idade pendurado pelos pulsos em um candelabro. A causa da morte não estava clara pela imagem, apesar de ser óbvio
que o homem tinha sido selvagemente torturado. O rosto era uma bagunça ensanguentada e inchada e vários pedaços de pele e carne tinham sido dilacerados do peito.
— Quem era ele? — perguntou Gabriel.
— Seu nome era James Bradshaw, mais conhecido como Jack. Era cidadão britânico, mas passava a maior parte do tempo em Como, junto com vários milhares de seus compatriotas.
— O general fez uma pausa. — Os britânicos não parecem gostar muito de viver em seu próprio país hoje em dia, não é?
— Parece que não.
— Por que será?
— Precisa perguntar a eles. — Gabriel olhou para a fotografia e piscou. — Ele era casado?
— Não.
— Divorciado?
— Não.
— Algum relacionamento?
— Parece que não.
Gabriel devolveu a fotografia ao general e perguntou o que Jack Bradshaw fazia para viver.
— Ele se descrevia como consultor.
— De que tipo?
— Trabalhou no Oriente Médio durante vários anos como diplomata. Depois se aposentou cedo e começou a trabalhar por conta própria. Aparentemente, dava consultoria
a empresas britânicas que queriam fazer negócio no mundo árabe. Devia ser bom no que fazia — acrescentou o general —, porque sua villa estava entre uma das mais
caras dessa região do lago. Também tinha uma impressionante coleção de arte e antiguidades italianas.
— O que explica o interesse do Esquadrão de Arte em sua morte.
— Parcialmente — falou o general. — Afinal, ter uma boa coleção não é crime.
— A menos que a coleção tenha sido comprada de uma forma que infrinja a lei italiana.
— Você sempre está um passo à frente de todo mundo, não é, Allon? — O general olhou para o quadro escuro pendurado na parede da capela. — Por que esse não foi limpo
na última restauração?
— Não tinham dinheiro suficiente.
— O verniz está quase totalmente opaco. — O general parou, depois acrescentou: — Exatamente como Jack Bradshaw.
— Que descanse em paz.
— Isso não é muito provável, não depois de uma morte como essa. — Ferrari olhou para Gabriel e perguntou: — Já teve a oportunidade de contemplar sua própria morte?
— Infelizmente, várias vezes. Mas se não se importa, preferia conversar sobre os hábitos de colecionador de Jack Bradshaw.
— O falecido sr. Bradshaw tinha a reputação de comprar quadros que não estavam realmente à venda.
— Quadros roubados?
— São suas palavras, meu amigo. Não minhas.
— Você o estava seguindo?
— Digamos que o Esquadrão de Arte monitorava suas atividades o melhor que podíamos.
— Como?
— Das formas de sempre — respondeu o general, de forma evasiva.
— Suponho que seus homens estejam fazendo um inventário completo da coleção dele.
— Nesse exato momento.
— E?
— Até agora não encontraram nada de nosso banco de dados de obras perdidas ou roubadas.
— Então acho que você terá de retirar todas as coisas horríveis que disse sobre Jack Bradshaw.
— Só porque não há provas, não quer dizer que não seja verdade.
— Fala como um verdadeiro policial italiano.
Ficou claro pela expressão do general Ferrari que ele interpretou o comentário de Gabriel como um elogio. Depois de um momento, falou:
— Ouvimos outras coisas sobre o falecido Jack Bradshaw.
— Que tipo de coisas?
— Que ele não era apenas um colecionador privado, que estava envolvido na exportação ilegal de quadros e outras obras de arte de solo italiano. — O general baixou
a voz e acrescentou: — O que explica por que seu amigo Julian Isherwood está metido em grandes problemas.
— Julian Isherwood não trabalha com arte roubada.
O general nem se preocupou em responder. Para ele, todos os negociantes de arte eram culpados de algo.
— Onde ele está? — perguntou Gabriel.
— Sob minha custódia.
— Ele foi acusado de algo?
— Ainda não.
— De acordo com a lei italiana, não podem detê-lo por mais de 48 horas sem apresentá-lo a um juiz.
— Ele foi encontrado com um cadáver. Vou pensar em algo.
— Você sabe que Julian não teve nada a ver com o assassinato de Bradshaw.
— Não se preocupe — respondeu o general. — Não tenho intenção de apresentar nenhuma acusação nesse momento. Mas se viesse a público que seu amigo ia se encontrar
com um conhecido contrabandista, sua carreira estaria terminada. Veja, Allon, no mundo da arte, percepção é realidade.
— O que tenho de fazer para manter o nome de Julian fora dos jornais?
O general não respondeu imediatamente; estava esquadrinhando a fotografia do corpo de Jack Bradshaw.
— Por que você acha que ele foi torturado antes de morrer? — perguntou finalmente.
— Talvez porque devesse dinheiro.
— Talvez — concordou o general. — Ou talvez ele tivesse algo que os assassinos queriam, algo mais valioso.
— Você ia me falar o que tenho que fazer para salvar meu amigo.
— Descubra quem matou Jack Bradshaw. E o que estavam procurando.
— E se me recusar?
— O mundo da arte de Londres vai ser tomado por terríveis boatos.
— Você é um chantagista barato, general Ferrari.
— Chantagem é uma palavra feia.
— É — falou Gabriel. — Mas no mundo da arte, percepção é realidade.
4
VENEZA
GABRIEL CONHECIA UM BOM RESTAURANTE perto da igreja, em uma esquina tranquila de Castello onde os turistas raramente se aventuravam. O general Ferrari pediu muita
comida; Gabriel ficou mexendo em seu prato e tomou um pouco de água mineral com limão.
— Não está com fome? — perguntou o general.
— Estava esperando passar mais umas horas com meu Veronese essa tarde.
— Então deveria comer algo. Vai precisar de energia.
— Não funciona assim.
— Não come quando está restaurando?
— Café e um pouco de pão.
— Que tipo de dieta é essa?
— O tipo que permite me concentrar.
— Não me espanta que esteja tão magro.
O general Ferrari foi até a bandeja de antepastos e encheu seu prato pela segunda vez. Não havia mais ninguém no restaurante, a não ser o dono e sua filha, uma garota
bonita de cabelo escuro com 12 ou 13 anos. A criança tinha uma semelhança incrível com a filha de Abu Jihad, o segundo em comando da OLP, que Gabriel, em uma noite
quente de primavera em 1988, tinha assassinado em sua casa em Túnis. O assassinato tinha sido realizado no escritório de Abu Jihad no segundo andar, onde ele estava
assistindo a vídeos da intifada palestina. A garota tinha assistido a tudo: dois tiros imobilizadores no peito, dois tiros fatais na cabeça, tudo sob a música da
rebelião árabe. Gabriel não conseguia mais se lembrar do rosto de Abu Jihad, mas o retrato da jovem garota, serena, mas fervendo de raiva, ficou pendurado com destaque
na sala de exposição de sua memória. Quando o general voltou a sua cadeira, Gabriel apagou o rosto dela com uma camada de tinta. Então se inclinou para frente sobre
a mesa e perguntou:
— Por que eu?
— Por que não você?
— Devo começar com os motivos óbvios?
— Se achar melhor.
— Não sou um policial italiano. Na verdade, sou exatamente o contrário.
— Tem um longo histórico aqui na Itália.
— Nem sempre agradável.
— Verdade — concordou o general. — Mas pelo caminho, fez contatos importantes. Você tem amigos em lugares de prestígio como o Vaticano. E, talvez mais crucial, tem
amigos em lugares ruins, também. Conhece o país de uma ponta a outra, fala nossa língua como um nativo e está casado com uma italiana. Praticamente é um dos nossos.
— Minha esposa não é mais italiana.
— Que língua falam em casa?
— Italiano — admitiu Gabriel.
— Mesmo quando estão em Israel?
Gabriel assentiu.
— Caso encerrado. — O general ficou em silêncio, pensativo. — Isso pode surpreendê-lo — falou, finalmente —, mas quando um quadro some, ou alguém se machuca, eu
normalmente tenho uma boa ideia de quem está por trás. Temos mais de cem informantes em nossa folha de pagamentos e grampeamos mais telefones e contas de e-mail
que a NSA. Quando algo acontece no lado criminoso do mundo da arte, sempre há rumores. Como vocês dizem no negócio do contraterrorismo, as luzes se acendem.
— E agora?
— O silêncio está ensurdecedor.
— O que você acha que isso quer dizer?
— Quer dizer que, mais provavelmente, os homens que mataram Jack Bradshaw não são da Itália.
— Algum palpite de onde são?
— Não — falou o general, balançando a cabeça devagar —, mas o nível de violência me preocupa. Já vi muitos corpos durante minha carreira, mas esse foi diferente.
As coisas que fizeram com Jack Bradshaw foram... — Sua voz falhou um pouco, até sair: — Medievais.
— E agora você quer que eu lide com essa gente.
— Até onde sei você é um homem que sabe como se cuidar.
Gabriel ignorou o comentário.
— Minha esposa está grávida. Não posso deixá-la sozinha.
— Vamos ficar de olho nela. — O general baixou a voz e acrescentou: — Já estamos.
— É bom saber que o governo italiano está nos espionando.
— Não esperava outra coisa, não é?
— Claro que não.
— Foi o que pensei. Além disso, Allon, é para seu próprio bem. Você tem muitos inimigos.
— E agora quer que eu faça mais um.
O general soltou o garfo e olhou contemplativo pela janela da mesma forma que Doge Leonardo Loredan, de Bellini.
— É meio irônico — falou depois de um momento.
— O que é irônico?
— Que um homem como você escolhesse morar em um gueto.
— Na verdade, eu não moro no gueto.
— Bastante perto — falou o general.
— É um bom bairro, o melhor de Veneza, se quiser minha opinião.
— Está cheio de fantasmas.
Gabriel olhou de relance para a garotinha.
— Não acredito em fantasmas.
O general limpou, cético, o canto da boca.
— Como funcionaria? — perguntou Gabriel.
— Considere-se um dos meus informantes.
— E o que isso quer dizer?
— Aprofunde-se no submundo da arte e descubra quem matou Jack Bradshaw. Eu cuido do resto.
— E se eu não encontrar nada?
— Tenho certeza de que vai encontrar.
— Isso parece uma ameaça.
— Parece?
O general não falou mais nada. Gabriel suspirou profundamente.
— Vou precisar de algumas coisas.
— Tipo quais?
— O de sempre — respondeu Gabriel. — Registros de telefone, cartões de crédito, e-mails, históricos de navegação na internet e uma cópia do HD de seu computador.
O general apontou para sua maleta.
— Está tudo aí — falou —, junto com todos os piores rumores que já ouvimos sobre ele.
— Também vou precisar dar uma olhada em sua villa e coleção.
— Darei uma cópia do inventário quando estiver completo.
— Não quero um inventário. Quero ver os quadros.
— Certo — falou o general. — Algo mais?
— Suponho que alguém deveria falar a Francesco Tiepolo que vou sair de Veneza por alguns dias.
— E à sua esposa, também.
— É — falou Gabriel, distante.
— Talvez fosse melhor dividir o trabalho. Eu falo com Francesco, você fala com sua esposa.
— Alguma chance de trocarmos?
— Infelizmente, não. — O general levantou sua mão direita, a que não tinha dois dedos. — Já sofri o suficiente.
Só faltava resolver a situação de Julian Isherwood. Como tinham dito, ele estava no quartel regional dos Carabinieri, em uma sala sem janelas que não era exatamente
uma cela, mas tampouco uma sala de espera. A entrega aconteceu na Ponte della Paglia, sob a vista da ponte dos Suspiros. O general não parecia irritado por se livrar
do prisioneiro. Ele ficou na ponte, com sua mão defeituosa enfiada no bolso do casaco e o olho falso sem piscar, enquanto Gabriel e Isherwood caminharam por Molo
San Marco até o Harry’s Bar. Isherwood bebeu dois Bellinis muito rápido enquanto Gabriel tratava em silêncio dos preparativos para a viagem. Havia um voo da British
Airways saindo de Veneza às seis daquela tarde, chegando em Heathrow alguns minutos depois das sete.
— Isso me deixa com tempo suficiente — falou Isherwood de modo sombrio — para matar Oliver Dimbleby e chegar em casa para assistir ao News at Ten.
— Como seu representante informal nesse assunto — falou Gabriel —, eu o aconselho a não fazer isso.
— Acha que eu deveria esperar até de manhã antes de matar o Oliver?
Gabriel sorriu contra a própria vontade.
— O general foi generoso ao concordar em manter seu nome fora disso — falou ele. — Se eu fosse você, não diria nada em Londres sobre seu breve encontro com a polícia
italiana.
— Não foi tão breve assim — falou Isherwood. — Não sou como você, meu querido. Não estou acostumado a passar noites na cadeia. E claro que não estou acostumado a
encontrar gente morta. Meu Deus, você deveria ter visto o cara. Estava cortado como um filé.
— Mais um motivo para não contar nada quando chegar em casa — disse Gabriel. — A última coisa que você vai querer é que os assassinos de Jack Bradshaw vejam seu
nome nos jornais.
Isherwood mordeu o lábio e assentiu lentamente, concordando.
— O general parece pensar que Bradshaw estava contrabandeando quadros roubados — falou depois de algum tempo. — Também parece achar que eu estava fazendo negócios
com ele. Ele me assustou muito.
— E você estava, Julian?
— Fazendo negócios com Jack Bradshaw?
Gabriel assentiu.
— Não vou nem responder isso.
— Eu tinha que perguntar.
— Fiz muitas coisas feias durante minha carreira, normalmente por ordem sua. Mas eu nunca, e enfatizo nunca, vendi um quadro que soubesse que tinha sido roubado.
— E um quadro contrabandeado?
— Defina contrabandeado — falou Isherwood com um sorriso travesso.
— E o Oliver?
— Está me perguntando se Oliver Dimbleby está vendendo quadros roubados?
— Acho que sim.
Isherwood teve que pensar por um momento antes de responder.
— Eu não duvidaria muito do que Oliver Dimbleby é capaz de fazer — falou finalmente. — Mas não, não acredito que esteja negociando quadros roubados. Foi tudo um
caso de azar e momento errado.
Isherwood chamou o garçom e pediu outro Bellini. Estava finalmente começando a relaxar.
— Tenho de admitir — falou ele —, você era a última pessoa do mundo que esperava ver hoje.
— O sentimento é mútuo, Julian.
— Imagino que você e o general sejam amigos.
— Trocamos nossos cartões de visita.
— Ele é uma das criaturas mais desagradáveis que já conheci.
— Ele não é tão ruim depois de o conhecer melhor.
— Quanto ele sabe sobre o nosso relacionamento?
— Ele sabe que somos amigos e que limpei alguns quadros para você. E se fosse adivinhar — acrescentou Gabriel —, ele provavelmente sabe sobre suas conexões com o
Boulevard Rei Saul.
O Boulevard Rei Saul era o endereço do serviço de inteligência estrangeira de Israel. Um nome comprido e enganador que tinha muito pouco a ver com a verdadeira natureza
de seu trabalho. Quem trabalhava lá chamava de Escritório e nada mais. Era assim que Julian Isherwood o chamava. Ele não era um empregado direto do Escritório; era
membro do sayanim, uma rede global de ajudantes voluntários. Eram banqueiros que forneciam dinheiro aos agentes do Escritório em emergências; médicos que faziam
tratamento em segredo quando se feriam; donos de hotéis que forneciam quartos sob nomes falsos e empresas de aluguel de carros que forneciam veículos que não deixavam
traços. Isherwood tinha sido recrutado na metade dos anos 1970, durante uma onda de ataques terroristas palestinos contra alvos israelenses na Europa. Ele só tinha
uma missão — ajudar na construção e manutenção da operação secreta de um jovem restaurador de arte e assassino chamado Gabriel Allon.
— Acho que minha liberação não foi gratuita — disse Isherwood.
— Não — respondeu Gabriel. — Na verdade, foi bem cara.
— Quanto?
Gabriel contou.
— Ruim para seu período sabático em Veneza — disse Isherwood. — Parece que arruinei tudo.
— É o mínimo que posso fazer, Julian. Tenho uma grande dívida com você.
Isherwood sorriu melancólico.
— Quanto tempo faz? — perguntou.
— Cem anos.
— E agora você vai ser pai de novo, e de gêmeos. Nunca achei que viveria para ver esse dia.
— Nem eu.
Isherwood olhou para Gabriel.
— Você não parece muito animado com a perspectiva de ter filhos.
— Não seja ridículo.
— Mas?
— Estou velho, Julian. — Gabriel parou, depois acrescentou: — Talvez velho demais para começar outra família.
— A vida lhe deu péssimas cartas, meu rapaz. Você tem direito a um pouco de felicidade na velhice. Devo admitir que sinto um pouco de inveja. Está casado com uma
jovem bonita que vai lhe dar duas lindas crianças. Gostaria de estar no seu lugar.
— Cuidado com o que deseja.
Isherwood bebeu devagar seu Bellini, mas não disse nada.
— Não é tarde demais, você sabe.
— Para ter filhos? — perguntou ele incrédulo.
— Para encontrar alguém para passar o resto da sua vida.
— Infelizmente, já passei da data de validade — respondeu Isherwood. — Nesse momento, estou casado com minha galeria.
— Venda a galeria — falou Gabriel. — Aposente-se numa villa no sul da França.
— Ficaria louco em uma semana.
Eles saíram do bar e caminharam um pouco até o Grand Canal. Um largo barco táxi de madeira brilhou na ponta do cais lotado. Isherwood pareceu relutar na hora de
entrar.
— Se eu fosse você — falou Gabriel —, sairia da cidade antes que o general mude de ideia.
— Bom conselho — respondeu Isherwood. — Posso lhe dar um também?
Gabriel ficou em silêncio.
— Diga ao general para encontrar outra pessoa.
— Infelizmente, é muito tarde para isso.
— Então, tome muito cuidado. E não banque o herói de novo. Você tem coisas mais importantes na sua vida.
— Vai perder seu avião, Julian.
Isherwood entrou cambaleante no barco táxi. Enquanto se afastava do cais, virou-se para Gabriel e gritou:
— O que digo para o Oliver?
— Vai pensar em algo.
— É — falou Isherwood. — Eu sempre penso.
Entrou na cabine e desapareceu.
5
VENEZA
GABRIEL TRABALHOU NO Veronese até as janelas da nave escurecerem com o entardecer. Então ligou para Francesco Tiepolo em seu telefonino e deu a notícia de que tinha
que resolver um assunto particular para o general Cesare Ferrari dos Carabinieri. Não entrou em detalhes.
— Quanto tempo você vai precisar? — perguntou Tiepolo.
— Um ou dois dias — respondeu Gabriel. — Talvez um mês.
— O que digo para os outros?
— Diga que morri. Vai deixar o Antonio alegre.
Gabriel arrumou sua plataforma de trabalho com mais cuidado do que o normal e saiu na noite fria. Seguiu sua rota para o norte, como sempre, cruzando San Polo e
Cannaregio, até chegar a uma ponte de ferro, a única ponte de ferro em toda Veneza. Na Idade Média, havia um portão no centro da ponte, e à noite um vigia cristão
ficava de guarda para evitar que quem estivesse preso do outro lado não pudesse escapar. Agora a ponte estava vazia exceto por uma gaivota que olhava de forma maligna
para Gabriel enquanto ele passava.
Entrou em um sottoportego escuro. No final da passagem, abria-se uma ampla praça à sua frente, o Campo di Ghetto Nuovo, o coração do antigo gueto de Veneza. Ele
cruzou a praça e parou na porta do número 2899. Uma pequena placa de latão dizia COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Ele tocou a campainha
e, então, instintivamente, afastou o rosto da câmera de segurança.
— Posso ajudar? — perguntou uma familiar voz feminina em italiano.
— Sou eu.
— Eu, quem?
— Abra a porta, Chiara.
Ouviu um zumbido e a se fechadura abrindo. Gabriel entrou por uma passagem apertada e seguiu até outra porta, que abriu automaticamente quando ele se aproximou.
Dava para uma pequena sala, onde Chiara estava sentada empertigada atrás de uma mesa arrumada. Estava usando um suéter branco de inverno, leggings coloridas e um
par de botas de couro. Seu cabelo ruivo despenteado caía sobre os ombros e o cachecol de seda que Gabriel tinha comprado na ilha de Córsega. Resistiu ao impulso
de beijar sua boca ampla. Não achou apropriado expressar afeto físico na presença da recepcionista do rabino chefe de Veneza, mesmo porque a recepcionista também
era a filha devota do rabino.
Chiara estava prestes a falar algo, mas foi interrompida pelo toque do telefone. Gabriel se sentou na ponta de sua mesa e ouviu como ela resolvia uma pequena crise
afligindo uma comunidade cada vez menor de crentes. Ela se parecia muito com a linda jovem que ele tinha conhecido, dez anos antes, quando tinha ligado para o rabino
Jacob Zolli pedindo informações sobre o destino dos judeus italianos durante a Segunda Guerra Mundial. Gabriel não sabia no momento que Chiara era uma agente da
inteligência israelense ou que tinha sido enviada pelo Boulevard Rei Saul para espioná-lo durante a restauração do retábulo de San Zaccaria. Ela contou tudo pouco
tempo depois em Roma, após um incidente envolvendo um tiroteio e a polícia italiana. Escondido com Chiara em um apartamento seguro, Gabriel quis desesperadamente
tocá-la. Esperou até o caso estar resolvido e voltarem a Veneza. Ali, numa casa no canal de Cannaregio, tinham feito amor pela primeira vez, em uma cama com lençóis
limpos. Foi como fazer amor com uma figura pintada pela mão de Veronese.
No dia do primeiro encontro deles, Chiara tinha oferecido café. Ela não bebia mais café, só água e suco de fruta, bebericando diretamente de uma garrafa plástica
que sempre carregava consigo. Era o único sinal externo de que, depois de uma longa batalha contra a infertilidade, ela estava finalmente grávida de gêmeos. Tinha
jurado não resistir ao inevitável aumento de peso com dietas ou exercícios, que via como outra obsessão imposta sobre o mundo pelos norte-americanos. Chiara era
veneziana de coração e os venezianos não usavam aparelhos cardiovasculares ou levantamento de peso para aumentar seus músculos. Eles comiam e bebiam bem, faziam
amor e quando precisavam de um pouco de exercício, passeavam pelas areias do Lido ou caminhavam até Zattere para tomar um sorvete.
Ela desligou o telefone e olhou para ele. Seus olhos eram da cor de caramelo com manchas douradas, uma combinação que Gabriel nunca tinha sido capaz de reproduzir
perfeitamente na tela. No momento, estavam muito brilhantes. Estava feliz, ele pensou, mais feliz do que ele já tinha visto antes. De repente, ele não teve coragem
de contar que o general Ferrari tinha aparecido como uma enchente para estragar tudo.
— Como está se sentindo? — perguntou ele.
Ela girou os olhos e tomou um gole de sua garrafa de água plástica.
— Falei algo errado?
— Você não precisa me perguntar como estou me sentindo o tempo todo.
— Quero que saiba que estou preocupado com você.
— Sei que está preocupado, querido. Mas não estou com uma doença terminal, estou apenas grávida.
— O que deveria perguntar?
— Deveria me perguntar o que quero jantar.
— Estou faminto — falou ele.
— Estou sempre faminta.
— Vamos comer fora?
— Na verdade, estou com vontade de cozinhar.
— Você pode fazer isso?
— Gabriel!
Ela começou a arrumar os papéis em sua mesa. Não era um bom sinal. Chiara sempre arrumava as coisas quando estava brava.
— Como foi no trabalho? — perguntou ela.
— Cheio de animação.
— Não me diga que está entediado com o Veronese.
— Remover verniz sujo não é a parte mais recompensadora de uma restauração.
— Sem surpresas?
— Com o quadro?
— Em geral — perguntou ela.
Era uma pergunta estranha.
— Adrianna Zinetti veio trabalhar vestida como Groucho Marx — respondeu Gabriel —, mas tirando isso foi um dia normal na Igreja de San Sebastiano.
Chiara franziu a testa. Em seguida, abriu uma gaveta com a ponta de sua bota e sem pensar enfiou uns papéis em uma pasta. Gabriel não ficaria surpreso se os papéis
não tivessem nenhuma relação com os outros que já estavam arquivados.
— Tem algo a incomodando? — perguntou ele.
— Você não vai me perguntar como estou me sentindo de novo, vai?
— Nem sonharia em fazer isso.
Ela fechou a gaveta com mais força do que o necessário.
— Fui até a igreja na hora do almoço para fazer uma surpresa — disse ela depois de um momento —, mas você não estava. Francesco disse que recebeu um visitante. Afirmou
não saber quem era.
— E você sabia que Francesco estava mentindo, claro.
— Não precisa ser uma agente da inteligência treinada para ver isso.
— Continue — falou Gabriel.
— Liguei para a Mesa de Operações para ver se alguém do Boulevard Rei Saul estava na cidade, mas a Mesa de Operações me disse que ninguém estava procurando por você.
— Que novidade.
— Quem veio vê-lo hoje, Gabriel?
— Isso está começando a parecer um interrogatório.
— Quem era? — perguntou ela de novo.
Gabriel levantou a mão direita e depois abaixou dois dedos.
— O general Ferrari?
Gabriel assentiu. Chiara olhou para a mesa como se estivesse procurando algo fora do lugar.
— Como está se sentindo? — perguntou Gabriel, com a voz baixa.
— Estou bem — respondeu ela sem olhar para ele. — Mas se você fizer essa pergunta mais uma vez...
Era verdade que Gabriel e Chiara não viviam realmente no antigo gueto de Veneza. O apartamento alugado deles estava no segundo andar de um antigo palazzo, em um
quarteirão silencioso de Cannaregio onde os judeus nunca tinham sido proibidos de entrar. De um lado havia uma praça silenciosa; do outro estava um canal onde o
Boulevard Rei Saul mantinha um barco pequeno e rápido, caso Gabriel precisasse fugir de Veneza pela segunda vez em sua carreira. Tel Aviv tinha bons motivos para
temer por sua segurança; depois de muitos anos de resistência, ele tinha concordado em se tornar o próximo chefe do Escritório. Faltava um ano para começar seu período.
Depois disso, cada momento acordado seria devotado a proteger o Estado de Israel daqueles que queriam destruí-lo. Não haveria mais restaurações ou longas estadias
em Veneza com sua linda e jovem esposa — pelo menos, não sem um exército de guarda-costas cuidando deles.
O apartamento possuía um sofisticado sistema de segurança, que fazia um barulho acolhedor quando Gabriel abria a porta. Ao entrar, ele tirou a rolha de uma garrafa
de Bardolino e se sentou ao balcão da cozinha, ouvindo as notícias da BBC, enquanto Chiara preparava um prato de bruschetta. Um painel da ONU tinha previsto um aquecimento
apocalíptico do clima global, um carro-bomba tinha matado quarenta pessoas em um bairro xiita de Bagdá e o presidente sírio, o carniceiro de Damasco, tinha usado
mais uma vez armas químicas contra seu próprio povo. Chiara franziu a testa e desligou o rádio. Então olhou com vontade para a garrafa de vinho aberta. Gabriel sentiu
pena dela. Chiara sempre adorava beber um Bardolino na primavera.
— Não vai fazer mal a eles se der apenas um gole — falou ele.
— Minha mãe nunca tocou em vinho quando estava grávida de mim.
— E olha como você saiu.
— Perfeita em todos os sentidos.
Ela sorriu e colocou a bruschetta na frente de Gabriel. Ele pegou duas fatias — uma com azeitonas cortadas, a outra com feijão branco e alecrim — e jogou um pouco
de Bardolino por cima. Chiara tirou a casca de uma cebola e com rápidos movimentos da faca a transformou em uma pilha de perfeitos cubinhos brancos.
— É melhor tomar cuidado — falou Gabriel, olhando para ela — ou vai terminar como o general.
— Não me dê ideias.
— O que eu deveria falar para ele, Chiara?
— Poderia ter falado a verdade.
— Qual versão da verdade?
— Você tem um ano até fazer seu juramento, querido. Depois disso, estará às ordens do primeiro-ministro, e a segurança do Estado será sua responsabilidade. Sua vida
será uma longa reunião intercalada por uma crise ocasional.
— E foi por isso que eu recusei o cargo várias vezes antes de finalmente aceitar.
— Mas agora é seu. E esta é sua última chance de tirar algum tempo, merecido, de férias antes de voltar a Israel.
— Tentei explicar isso ao general sem entrar em todos os detalhes sórdidos. Foi quando ele ameaçou deixar Julian apodrecendo numa cela de prisão italiana.
— Ele não tinha nada contra Julian. Estava blefando.
— Pode ser verdade — concordou Gabriel. — Mas e se algum repórter britânico decidisse fazer alguma pesquisa sobre o passado de Julian? E se o mesmo repórter descobrisse,
de alguma forma, que ele estava ligado ao Escritório? Eu nunca me perdoaria se ele fosse arrastado para a lama. Sempre me ajudou quando precisei.
— Lembra-se de quando você pediu para ele cuidar do gato daquele desertor russo?
— Como poderia esquecer? Nunca imaginei que Julian fosse alérgico a gatos. Ele ficou se coçando por um mês.
Chiara sorriu. Ela colocou a cebola em uma frigideira pesada com azeite de oliva e manteiga, cortou rapidamente uma cenoura e colocou tudo no fogo.
— O que está fazendo?
— É um prato local de carne chamado calandraca.
— Onde você aprendeu a fazer?
Chiara olhou para o teto, como se dissesse que o conhecimento estava no ar e na água da Itália. Não estava longe da verdade.
— Como posso ajudar? — perguntou Gabriel.
— Pode parar de ficar me espiando.
Gabriel levou o prato de bruschetta e o vinho para a pequena sala de estar. Antes de se sentar no sofá, tirou a arma das costas e a colocou com cuidado na mesinha
de café, em cima de uma pilha de revistas coloridas que tratavam de gravidez e parto. A arma era uma Beretta 9 mm, e seu cabo de nogueira estava manchado de tinta:
uma pincelada de Ticiano, um pouco de Bellini, uma gota de Rafael e Tintoretto. Logo ele não carregaria mais uma arma; outros iriam carregar armas por ele. Imaginou
como seria andar pelo mundo desarmado. Seria o mesmo, pensou, que sair de casa sem colocar as calças antes. Alguns homens usavam gravata quando iam ao escritório.
Gabriel Allon carregava uma arma.
— Ainda não entendo por que o general precisa de você para encontrar quem matou Jack Bradshaw — gritou Chiara da cozinha.
— Parece que ele pensa que estavam procurando algo — respondeu Gabriel, folheando uma das revistas. — Ele gostaria que eu encontrasse antes que eles.
— Procurando o quê?
— Ele não foi específico, mas suspeito que sabe mais do que está dizendo.
— Normalmente é assim.
Chiara colocou cubos de carne de vitela levemente passados na farinha dentro da frigideira e logo o apartamento estava tomado pelo cheiro da carne tostando. Em seguida,
acrescentou um pouco de molho de tomate, vinho branco e ervas que ela media na palma da mão. Gabriel viu as luzes de um barco passando lentamente pelas águas escuras
do canal. Então, cuidadoso, contou a Chiara que planejava ir ao lago Como logo pela manhã.
— Quando vai voltar? — perguntou ela.
— Isso depende.
— Do quê?
— Do que encontrar dentro da villa de Jack Bradshaw.
Chiara estava cortando batatas sobre uma tábua. Por causa do barulho da faca, quase não deu para ouvir sua declaração de que tinha a intenção de acompanhá-lo. Gabriel
se afastou da janela e olhou bravo para ela.
— O que foi? — perguntou ela depois de um momento.
— Você não vai a lugar nenhum — respondeu ele afinal.
— É o lago Como. O que poderia acontecer?
— Posso dar alguns exemplos?
Chiara ficou em silêncio. Gabriel se virou para olhar de novo o barco subindo o canal, mas em seus pensamentos estavam as imagens de uma longa e turbulenta carreira.
Era uma carreira, estranhamente, que o tinha levado a alguns dos cenários mais glamorosos da Europa. Ele tinha assassinado pessoas em Cannes e Saint-Tropez e lutado
por sua vida nas ruas de Roma e nas montanhas da Suíça. E certa vez, muitos anos antes, tinha perdido a esposa e um filho em um atentado de carro-bomba em uma rua
pitoresca do Primeiro Distrito de Viena. Não, pensou agora, Chiara não iria acompanhá-lo ao lago Como. Ele a deixaria em Veneza, sob os cuidados de sua família e
sob a proteção da polícia italiana. E que Deus ajude o general se ele permitir que algo aconteça com ela.
Chiara cantava baixinho, umas daquelas bobas canções pop italianas que ela adorava tanto. Acrescentou as batatas cortadas à panela, abaixou o fogo e foi para a sala
de estar com Gabriel. O arquivo do general Ferrari sobre Jack Bradshaw estava na mesa de café, próximo à Beretta. Ela o pegou, mas Gabriel a impediu; não queria
que visse o desastre que os assassinos de Jack Bradshaw tinham feito no seu corpo. Ela encostou a cabeça no ombro dele. Seu cabelo tinha cheiro de baunilha.
— Quanto tempo demora para a calandraca ficar pronta? — perguntou Gabriel.
— Mais ou menos uma hora.
— Não consigo esperar tanto.
— Coma outra bruschetta.
Ele comeu. Chiara também. Então, ela levou a taça de Bardolino até o nariz, mas não bebeu.
— Não vai fazer mal a eles se tomar apenas um gole.
Ela devolveu a taça para a mesa e colocou a mão sobre a barriga. Gabriel colocou a mão perto da dela, e por um instante achou que tinha detectado a leve palpitação
de dois coraçõezinhos. São meus, pensou, segurando-os bem apertados. E que Deus ajude o homem que tentar fazer algum mal a eles.
6
LAGO COMO, ITÁLIA
NA MANHÃ SEGUINTE, OS MORADORES DO Reino Unido acordaram com a notícia de que um de seus compatriotas, o empresário expatriado James “Jack” Bradshaw, tinha sido
brutalmente assassinado em sua villa às margens do lago Como. As autoridades italianas citaram latrocínio como um motivo possível, apesar de não terem provas de
que algo havia sido roubado. O nome do general Ferrari não apareceu na cobertura; nem havia nenhuma menção de que Julian Isherwood, o conhecido comerciante de arte
de Londres, tinha descoberto o corpo. Todos os jornais esforçaram-se ao máximo para encontrar alguém que tivesse uma palavra gentil para falar sobre Bradshaw. O
The Times conseguiu desenterrar um velho colega do Ministério de Relações Exteriores que o descreveu como “um bom funcionário”, mas fora isso parecia que a vida
de Bradshaw não merecia homenagens. A fotografia que apareceu na BBC parecia ter pelo menos vinte anos. Mostrava um homem que não gostava de aparecer em fotos.
Havia outro fato importante que não apareceu na cobertura do assassinato de Jack Bradshaw: Gabriel Allon, o lendário, apesar de caprichoso, filho da inteligência
israelense, tinha sido silenciosamente cooptado pelo Esquadrão de Arte para investigar o caso. Sua investigação começou às sete e meia quando inseriu um pendrive
de alta capacidade em seu notebook. Entregue pelo general Ferrari, o pendrive continha todo o conteúdo do computador pessoal de Jack Bradshaw. A maioria dos documentos
era relacionada à sua empresa, a Meridian Global Consulting Group — um nome curioso, pensou Gabriel, pois a empresa parecia não ter outros empregados. O flash drive
continha mais de vinte mil documentos. Além disso, havia milhares de números de telefones e endereços de e-mail que tinham de ser verificados e cruzados. Era muito
material para Gabriel examinar sozinho. Ele precisava de um assistente, um pesquisador experiente que sabia algo de questões criminais e, preferencialmente, de arte
italiana.
— Eu? — perguntou Chiara incrédula.
— Tem alguma ideia melhor?
— Tem certeza de que quer que eu responda?
Gabriel não falou nada. Dava para ver que algo nessa ideia interessou Chiara. Ela adorava resolver quebra-cabeças e problemas.
— Seria mais fácil se eu pudesse cruzar os números de telefone e endereços de e-mail com os computadores do Boulevard Rei Saul — falou ela, depois de pensar um momento.
— Claro que sim — respondeu Gabriel. — Mas a última coisa que quero fazer é contar ao Escritório que estou investigando um caso para os italianos.
— Eles vão acabar descobrindo. Sempre descobrem.
Gabriel copiou os arquivos de Bradshaw para o HD do notebook e ficou com o pendrive. Depois, fez uma pequena mala com duas mudas de roupa e dois kits de identidade
enquanto Chiara tomava banho e se vestia para trabalhar. Ele a acompanhou até o gueto, e nos degraus do centro comunitário colocou sua mão na barriga dela uma última
vez. Ao sair, não deixou de notar o jovem italiano de boa aparência tomando café no bar kosher. Ligou para o general Ferrari no palazzo em Roma. O general confirmou
que o jovem italiano era um oficial dos Carabinieri especializado em proteção pessoal.
— Não dava para ter colocado alguém para vigiar minha esposa que não parecesse uma estrela de cinema?
— Não me diga que o grande Gabriel Allon está com ciúmes.
— Só quero que garanta que nada vai acontecer com ela. Está me ouvindo?
— Só tenho um olho — respondeu o general —, mas ainda tenho os dois ouvidos, e eles funcionam muito bem.
Como muitos venezianos, temporários ou não, Gabriel mantinha um carro, um sedã Volkswagen, em uma garagem perto da Piazzale Roma. Ele cruzou a ponte até o continente
e depois pegou a autostrada. Quando o trânsito diminuiu, apertou o acelerador e viu o ponteiro do velocímetro subir até cem. Durante semanas ele tinha se arrastado
pela vida de um lado para o outro. Agora, o ruído de um motor de combustão interna dava, de repente, um enorme prazer cheio de culpa. Ele levou o carro até o limite
e viu com satisfação os campos do pântano do Veneto passarem por sua janela em um borrão verde e castanho.
Acelerou para o oeste, passando por Pádua, Verona e Bérgamo, e chegou perto de Milão trinta minutos mais cedo do que tinha imaginado. Dali, dirigiu-se ao norte para
Como; e então seguiu a borda sinuosa do lago até chegar ao portão da villa de Jack Bradshaw. Através das barras dava para ver um carro sem identificação dos Carabinieri
estacionado no pátio. Ligou para o general em Roma, contou onde estava e rapidamente desligou. Trinta segundos depois, o portão se abriu.
Gabriel entrou devagar pelo caminho, em direção à casa de um homem cuja vida tinha sido resumida em uma única linha vazia. “Um bom funcionário...” Ele tinha certeza
apenas de uma coisa, que Jack Bradshaw, diplomata aposentado, consultor de empresas em atividade no Oriente Médio e colecionador de arte italiana, tinha sido um
mentiroso profissional. Sabia disso porque também era um mentiroso. Portanto, quando saiu de seu carro, sentiu certa proximidade com o homem cuja vida estava a ponto
de revirar. Não vinha como inimigo, mas como amigo, a ferramenta perfeita para um trabalho desagradável. Na morte, não há segredos, pensou enquanto cruzava o pátio.
E se houvesse algum segredo escondido na linda villa perto do lago, ele iria encontrar.
Um carabinieri com roupas civis esperava na entrada. Ele se apresentou como Lucca — sem sobrenomes ou posto, somente Lucca — e ofereceu a Gabriel nada mais que um
par de luvas de borracha e cobertura de plástico para os sapatos. Gabriel ficou feliz ao colocá-las. A última coisa que precisava nesse ponto de sua vida era deixar
seu DNA em outra cena de crime italiana.
— Você tem uma hora — falou o carabinieri. — E vou acompanhá-lo.
— Vou demorar o quanto precisar — respondeu Gabriel. — E você vai ficar bem aqui.
Quando o oficial não falou nada, Gabriel vestiu as luvas e as coberturas para os sapatos e entrou na villa. A primeira coisa que notou foi o sangue. Era difícil
não notar; todo o chão de pedra do hall de entrada estava escuro. Ficou pensando por que o assassinato tinha acontecido aqui e não em uma parte mais isolada da casa.
Era possível que Bradshaw tivesse enfrentado seus assassinos logo depois de terem entrado na residência, mas não havia evidências de uma entrada forçada na porta
nem no portão. A explicação mais lógica era que Bradshaw tivesse deixado seus agressores entrarem. Ele os conhecia, pensou Gabriel. E, ingenuamente, tinha confiado
o suficiente neles para deixar que entrassem em sua casa.
Do hall de entrada, Gabriel passou para a sala principal. Tinha elegantes sofás e cadeiras cobertos de seda, e era adornada com mesas caras, lâmpadas e enfeites
de todos os tipos. Uma parede era feita toda de grandes janelas que davam para o lago; nas outras estavam pendurados quadros de Velhos Mestres italianos. A maioria
eram peças devocionais ou retratos produzidos por viajantes ou seguidores de conhecidos pintores de Veneza e Florença. Um, no entanto, era um capriccio arquitetônico
romano que era claramente obra de Giovanni Paolo Panini. Gabriel lambeu a ponta de sua luva e passou pela superfície. O Panini, como os outros quadros na sala, estava
precisando muito de uma boa limpeza.
Gabriel limpou a sujeira em sua calça jeans e caminhou até uma antiga escrivaninha. Nela, havia duas fotografias emolduradas de Jack Bradshaw em épocas mais felizes.
Na primeira ele posava em frente à Grande Pirâmide de Gizé, um topete juvenil sobre um rosto que estava cheio de esperança e promessa. Na segunda foto, a paisagem
era a antiga cidade de Petra, na Jordânia. Tinha sido tirada, supôs Gabriel, quando Bradshaw estava servindo na embaixada britânica em Amã. Ele parecia mais velho,
mais duro, talvez mais sábio. O Oriente Médio era assim. Transformava esperança em desespero, idealistas em maquiavélicos.
Gabriel abriu a gaveta da escrivaninha, não encontrou nada interessante, depois repassou o registro de ligações perdidas no telefone. Um número, 621-5845, aparecia
sete vezes — cinco vezes antes da morte de Bradshaw e duas depois. Gabriel levantou o fone, apertou o botão de discar o último número chamado e, após uns segundos,
ouviu o tom distante de um telefone. Depois de vários toques ouviu uma série de cliques e sons indicando que a pessoa do outro lado da linha tinha atendido a ligação
e rapidamente desligado. Gabriel ligou de novo com o mesmo resultado. Mas quando tentou o número pela terceira vez, uma voz masculina atendeu e falou em italiano:
— É o padre Marco. Como posso ajudá-lo?
Gabriel pousou o fone de volta delicadamente sem falar nada. Próximo ao telefone havia um bloco de anotações. Arrancou a primeira página, anotou o número do telefone
na folha seguinte e enfiou as duas no bolso. Aí decidiu subir.
Havia quadros no amplo corredor central e cobrindo as paredes de dois quartos vazios. Bradshaw tinha usado um terceiro dormitório como depósito. Várias dezenas de
quadros, alguns em molduras, outros em tensores, estavam encostados nas paredes como cadeiras dobráveis depois que a festa acabou. A maioria dos quadros eram italianos,
mas havia vários trabalhos de artistas alemães, flamencos e holandeses também. Um deles, um quadro de lavadeiras holandesas trabalhando em um jardim, provavelmente
pintado por um imitador de Willem Kalf, parecia ter sido restaurado recentemente. Gabriel ficou pensando por que Bradshaw tinha decidido limpar aquele quadro enquanto
os outros em sua coleção, alguns mais valiosos, mofavam debaixo de camadas de verniz amarelado — e por que, tendo feito isso, ele o havia deixado encostado na parede
de um depósito.
Do lado oposto do corredor central estava o quarto e o escritório de Bradshaw. Gabriel rapidamente deu uma olhada neles com a meticulosidade de um homem que sabia
como esconder as coisas. No quarto, escondido debaixo de uma pilha de camisas coloridas dignas de Gatsby, encontrou um envelope de papel pardo amassado cheio de
milhares de euros que tinham, de alguma forma, escapado da atenção dos homens do general Ferrari. No escritório, encontrou pastas de arquivos cheias de papéis, junto
com uma impressionante coleção de monografias e catálogos. Também descobriu uma documentação sugerindo que a Meridian Global Consulting tinha alugado um cofre no
Freeport de Genebra. Ficou pensando se aqueles documentos também tinham escapado da atenção dos homens do general.
Gabriel colocou a documentação do Freeport no bolso de seu casaco e cruzou o corredor até o quarto que Bradshaw tinha usado como depósito. As três lavadeiras ainda
estavam trabalhando em seu jardim de pedra, sem se importar com a presença dele. Gabriel se agachou na frente do quadro e examinou cuidadosamente a pintura. Era
bastante óbvio que era obra de um imitador, pois faltava qualquer traço de confiança ou espontaneidade. Na verdade, na opinião de especialista de Gabriel, tinha
uma qualidade de cópia bem feita, como se o artista estivesse olhando para o original enquanto trabalhava. Talvez estivesse.
Gabriel desceu e, sob o olhar cuidadoso do carabinieri, retirou uma lanterna ultravioleta de sua maleta. Quando lançada sobre a tela de um Velho Mestre em um quarto
escuro, a lâmpada revelaria a extensão da última restauração ao fazer com que os retoques aparecessem como manchas pretas. Em geral, o quadro de um Velho Mestre
holandês daquele período teria sofrido perdas de pequenas a moderadas, o que significava que os retoques — ou restaurações, como eram conhecidas no mercado — apareceriam
como pontos pretos.
Gabriel voltou ao quarto no primeiro andar da villa, fechou a porta e as janelas. Então acendeu a lâmpada ultravioleta e apontou para o quadro. As três lavadeiras
holandesas não estavam mais visíveis. Todo o quadro estava preto como carvão.
7
LAGO COMO, ITÁLIA
EM UMA EMPRESA DE PRODUTOS QUÍMICOS no bairro industrial de Como, Gabriel comprou acetona, álcool, água destilada, um béquer de vidro, além de óculos e máscara protetora.
Em seguida, parou em uma loja de artesanato no centro da cidade onde comprou cavilhas de madeira e um pacote de algodão hidrófilo. Ao voltar à villa perto do lago,
encontrou o carabinieri esperando na entrada com novas luvas e protetores para os sapatos. Dessa vez, o italiano não falou nada sobre limite de hora. Percebeu que
Gabriel ia demorar um bom tempo.
— Você não vai contaminar nada, vai?
— Só meus pulmões — respondeu Gabriel.
No andar de cima, ele tirou a tela da moldura, colocou sobre uma cadeira sem braços e iluminou sua superfície com o máximo de luz que conseguiu. Então misturou quantidades
iguais de acetona, álcool e água destilada no béquer e improvisou um cotonete usando as cavilhas e o algodão. Trabalhando rapidamente, ele tirou o verniz fresco
e a restauração de um pequeno retângulo — cerca de dois por um centímetro — no canto esquerdo inferior da tela. Restauradores chamavam essa técnica de “abrir uma
janela”. Normalmente, era feita para testar a força e a eficácia de uma solução solvente. Nesse caso, no entanto, Gabriel estava abrindo uma janela para tirar as
camadas de superfície do quadro para ver o que havia por baixo. O que ele descobriu foram dobras exuberantes de uma roupa carmim. Claramente, havia uma pintura intacta
por baixo das três lavadeiras holandesas trabalhando em um jardim — um quadro que, na opinião de Gabriel, tinha sido produzido por um verdadeiro Velho Mestre de
considerável talento.
Ele rapidamente abriu mais três janelas, uma na parte inferior direita da tela e duas mais no alto. Na inferior direita, encontrou mais tecido, mais escuro e menos
nítido; mas no alto à direita, a tela estava quase preta. No alto à esquerda, ele encontrou um arco romano marrom-amarelado que parecia ser parte de um fundo arquitetônico.
As quatro janelas abertas davam uma visão superficial de como as figuras estavam ordenadas na tela. Mais importante ainda, diziam que, muito provavelmente, o quadro
era o trabalho de um italiano e não de um artista das escolas holandesa ou flamenca.
Gabriel abriu uma quinta janela alguns centímetros abaixo do arco romano e descobriu uma cabeça masculina careca. Ao expandir, encontrou a base de um nariz e um
olho que estava voltado direto para o espectador. Em seguida, abriu a janela alguns centímetros para a direita e encontrou a testa pálida e luminosa de uma jovem.
Ele expandiu essa janela, também, e encontrou um par de olhos castos. Um nariz comprido surgiu logo após, acompanhado por um par de pequenos lábios vermelhos e um
queixo delicado. Então, depois de outro minuto de trabalho, Gabriel viu a mão esticada de uma criança. Um homem, uma mulher, uma criança... Gabriel estudou a mão
da criança — especificamente, a forma como o dedão e o indicador estavam tocando o queixo da mulher. A pose era familiar. Assim como a técnica das pinceladas.
Cruzou o corredor até o escritório de Jack Bradshaw, ligou o computador e foi até o site do Registro de Arte Perdida, o maior banco de dados do mundo sobre obras
de arte roubadas, perdidas e saqueadas. Depois de alguns cliques, a fotografia de um quadro apareceu na tela — o mesmo quadro que agora estava encostado em uma cadeira
no quarto em frente. Debaixo da foto havia uma breve descrição:
A Sagrada Família, óleo sobre tela, Parmigianino (1503–1540), roubado de um laboratório de restauração no histórico hospital Santo Spirito, em Roma, 31 de julho
de 2004.
O Esquadrão de Arte estava procurando o quadro desaparecido por mais de uma década. E agora Gabriel o havia encontrado, na villa de um inglês assassinado, escondido
sob uma cópia de um quadro holandês de Willem Kalf. Ele começou a ligar para o número do general Ferrari, mas parou. Onde havia um, pensou, certamente haveria outros.
Levantou da mesa do morto e começou a procurar.
Gabriel descobriu dois outros quadros no depósito que, quando submetidos à luz ultravioleta, ficaram totalmente pretos. Um era uma cena costeira da Escola Holandesa
reminiscente do trabalho de Simon de Vlieger; o outro era um vaso de flores que parecia ser uma cópia de um quadro do artista vienense Johann Baptist Drechsler.
Gabriel começou a abrir janelas.
Molhar, girar, descartar...
Uma árvore volumosa contra um céu cheio de nuvens, as pregas de uma saia espalhada em um prado, o flanco nu de uma mulher corpulenta...
Molhar, girar, descartar...
Um pedaço de fundo azul-esverdeado, uma blusa florida, um olho grande e sonolento sobre uma bochecha rosada...
Gabriel reconheceu os dois quadros. Sentou-se no computador e voltou ao site do Registro de Arte Perdida. Depois de uns cliques, a fotografia de um quadro apareceu
na tela:
Jovens Mulheres no Campo, óleo sobre tela, Pierre-Auguste Renoir (1841–1919), 41,6x50,8 cm, desaparecido desde 13 de março de 1981, do Musée de Bagnols-sur-Cèze,
Gard, França. Valor atual estimado: desconhecido.
Mais algumas teclas apertadas, outro quadro, outra história de desaparecimento:
Retrato de uma Mulher, óleo sobre tela, Gustav Klimt (1862–1918), 82,8x54,8 cm, desaparecido desde 18 de fevereiro de 1997, da Galleria Ricci Oddi, Piacenza, Itália.
Valor atual estimado: quatro milhões de dólares.
Gabriel colocou o Renoir e o Klimt perto do Parmigianino, tirou uma foto com seu celular e rapidamente enviou ao palazzo. O general Ferrari ligou trinta segundos
depois. A ajuda estava a caminho.
Gabriel carregou os três quadros para o andar de baixo e colocou-os sobre os sofás da sala principal. Parmigianino, Renoir, Klimt... Três quadros desaparecidos de
três artistas famosos, todos escondidos debaixo de peças de menor valor. Mesmo assim, as cópias eram de ótima qualidade. Era o trabalho de um mestre falsificador,
pensou Gabriel. Talvez até um restaurador. Mas por que todo o trabalho de pedir uma cópia para esconder uma obra roubada? Claramente, Jack Bradshaw estava conectado
a uma sofisticada rede que trabalhava com arte roubada e contrabandeada. Onde havia três, pensou Gabriel, olhando para os quadros, poderia haver mais. Muito mais.
Pegou uma das fotos do jovem Jack Bradshaw. Seu currículo parecia algo de uma era perdida. Educado em Eton e Oxford, fluente em árabe e persa, tinha sido enviado
ao mundo para trabalhar para um império outrora poderoso que havia caído em um declínio terminal. Talvez tivesse sido um diplomata comum, distribuidor de vistos,
carimbador de passaportes, escritor de telegramas espirituosos que ninguém dava a mínima. Ou talvez tivesse sido algo totalmente diferente. Gabriel conhecia um homem
em Londres que poderia colocar um pouco de carne nos ossos do currículo estranhamente magro de Jack Bradshaw. A verdade teria um preço. Nos negócios da espionagem,
a verdade sempre tem.
Gabriel largou a foto e usou seu celular para reservar uma passagem para o voo do dia seguinte para Heathrow. Pegou o pedaço de papel no qual tinha escrito o número
que estava na agenda do telefone de Bradshaw.
621-5845
“É o padre Marco. Como posso ajudá-lo?”
Discou o número de novo, mas dessa vez ninguém atendeu. Então, um pouco relutante, enviou o número à Central de Operações no Boulevard Rei Saul e pediu uma verificação
de rotina. Dez minutos depois veio a resposta: 621-5845 era um número privado localizado na residência da Igreja de San Giovanni Evangelista, em Brienno, que estava
localizada a poucos quilômetros do lago.
Gabriel pegou o pedaço de papel que estava no alto do bloco de anotações ao lado do telefone de Jack Bradshaw na noite de seu assassinato. Aproximando-o do abajur,
estudou as marcas deixadas pela caneta-tinteiro de Bradshaw. Tirou um lápis da primeira gaveta da mesa e raspou a ponta gentilmente pela superfície até aparecer
um padrão de linhas. A maior parte era uma bagunça impenetrável: o número quatro, o número oito, as letras C, V e O. No fim da página, no entanto, uma única palavra
estava bem visível.
Samir...
8
STOCKWELL, LONDRES
A ESTRADA SE CHAMAVA Paradise, mas era um paraíso perdido: blocos mal conservados de prédios de tijolos vermelhos, um pequeno jardim de grama pisada, um playground
vazio no qual um carrossel girava devagar ao sabor do vento. Gabriel ficou parado ali tempo suficiente para ter certeza de que não estava sendo seguido. Levantou
a aba de seu casaco até a orelha e tremeu. A primavera ainda não tinha chegado a Londres.
Além do playground havia um caminho sujo que levava a Clapham Road. Gabriel virou para a esquerda e caminhou em meio à luz do trânsito até a estação de metrô de
Stockwell. Outra curva o levou a uma silenciosa rua com casas escuras do pós-guerra. O número oito tinha uma cerca de ferro escura e torta e um pequeno jardim de
cimento sem nenhuma decoração, a não ser uma lata de lixo azul. Gabriel levantou a tampa, viu que a lata estava vazia e subiu os três degraus até a porta da frente.
Havia um aviso dizendo que pedintes de qualquer tipo não eram bem-vindos. Ignorando-o, apertou a campainha — dois toques curtos, um terceiro mais longo, como tinham
falado.
— Sr. Baker — falou o homem que apareceu na porta. — Que bom que veio. Sou o Davies. Estou aqui para cuidar do senhor.
Gabriel entrou na casa e esperou até a porta fechar antes de se virar de frente para o homem que tinha aberto a porta. Tinha o cabelo claro e o rosto inocente de
um padre do interior. Seu nome não era Davies. Era Nigel Whitcombe.
— Por que toda essa coisa secreta? — perguntou Gabriel. — Não estou desertando. Só preciso falar com o chefe.
— O Serviço de Inteligência não gosta do uso de nomes verdadeiros em casas seguras. Davies é meu nome de trabalho.
— Gostei — falou Gabriel.
— Eu mesmo escolhi. Sempre gostei dos Kinks.
— Quem é Baker?
— Você é o Baker — respondeu Whitcombe sem um traço de ironia na voz.
Gabriel entrou na pequena sala de estar. Estava mobiliada com todo o charme de uma sala de embarque de aeroporto.
— Não dava para encontrar uma casa segura em Mayfair ou Chelsea?
— Todas as propriedades de West End estão ocupadas. Além disso, esta é mais perto de Vauxhall Cross.
Vauxhall Cross era o quartel-general do Serviço de Inteligência Secreto da Grã-Bretanha, também conhecido como MI6. Houve um tempo em que o serviço operava de um
prédio sombrio na Broadway e seu diretor-geral era conhecido apenas como “C”. Agora os espiões trabalhavam em um dos lugares mais bonitos de Londres e o nome de
seus chefe aparecia sempre nos jornais. Gabriel gostava mais dos velhos tempos. Em questões de inteligência, assim como de arte, ele era um tradicionalista por natureza.
— O Serviço de Inteligência permite café em casas seguras hoje em dia? — perguntou ele.
— Não de verdade — respondeu Whitcombe, sorrindo. — Mas pode ter uma jarra de café solúvel na despensa.
Gabriel deu de ombros, como se dissesse que poderia ter coisas piores que café solúvel, e seguiu Whitcombe até a cozinha. Parecia pertencer a um homem que tinha
se separado recentemente e esperava uma rápida reconciliação. Havia realmente um recipiente de café, junto com uma caixa de chá que parecia estar ali desde que Edward
Heath tinha sido primeiro-ministro. Whitcombe encheu a chaleira elétrica com água enquanto Gabriel procurava uma caneca nos armários. Havia duas, uma com o logo
dos Jogos Olímpicos de Londres, a outra com o rosto da rainha. Quando Gabriel escolheu a caneca com a rainha, Whitcombe sorriu.
— Nunca soube que você era admirador de Sua Majestade.
— Ela tem bom gosto em arte.
— Ela tem dinheiro para isso.
Whitcombe fez esse comentário não como crítica, mas somente como uma observação. Ele era assim: cuidadoso, astuto, opaco como uma parede de concreto. Tinha começado
a carreira no MI5, onde havia ganhado experiência operacional trabalhando com Gabriel contra um oligarca russo e traficante de armas chamado Ivan Kharkov. Logo depois,
ele se tornou o principal assistente e garoto de recados informal de Graham Seymour, vice-diretor do MI5. Seymour tinha recentemente sido nomeado novo chefe do MI6,
uma mudança que surpreendeu todo mundo no ramo da inteligência, exceto Gabriel. Whitcombe continuava trabalhando para seu chefe, o que explicava sua presença na
casa segura de Stockwell. Ele colocou uma colher de café na caneca e viu o vapor subindo do bico da chaleira.
— Como está a vida no Seis? — perguntou Gabriel.
— Assim que chegamos, havia muita suspeita entre as tropas. Acho que tinham o direito de ficarem preocupados. Afinal, estávamos cruzando o rio vindo de um serviço
rival.
— Não é como se Graham fosse um total estranho. Seu pai era uma lenda no MI6. Ele foi praticamente criado dentro do serviço.
— Motivo pelo qual as preocupações duraram pouco tempo. — Whitcombe tirou um celular do bolso no peito de seu terno e olhou a tela. — Ele está chegando agora. Você
consegue servir seu café sozinho?
— Jogar a água, depois mexer, certo?
Whitcombe saiu. Gabriel preparou o café e foi até a sala de estar. Ao entrar, viu um homem alto usando um terno cinza-escuro com corte perfeito e gravata de listras
azuis. Seu rosto era forte e bem proporcionado; o cabelo tinha um tom prateado que fazia com que parecesse um modelo que podia ser visto em anúncios de coisas caras
e desnecessárias. Estava falando ao celular, que segurava com a mão esquerda. Esticou a direita distraidamente para Gabriel. Seu aperto era firme, confiante e com
duração apropriada. Era uma arma injusta a ser usada contra oponentes inferiores. Mostrava que ele tinha frequentado as melhores escolas, pertencido aos melhores
clubes e era bom em jogos de cavalheiros, como tênis e golfe, e acontece que tudo isso era verdade. Graham Seymour era uma relíquia do glorioso passado britânico,
filho das classes executivas criadas, educadas e programadas para liderar. Alguns meses antes, cansado depois de anos tentando proteger o território britânico das
forças do extremismo islâmico, ele tinha confidenciado a Gabriel seus planos de deixar a inteligência e se aposentar em sua villa em Portugal. Agora, inesperadamente,
ele tinha recebido as chaves da velha organização de seu pai. Gabriel de repente se sentiu culpado por ter vindo a Londres. Estava a ponto de entregar a Seymour
sua primeira crise em potencial no MI6.
Seymour murmurou algumas palavras ao celular, cortou a comunicação e entregou o aparelho para Nigel Whitcombe. Então se virou para Gabriel e o olhou com curiosidade
por um momento.
— Pelo nosso longo histórico juntos — falou Seymour, finalmente —, estou um pouco relutante de perguntar o que o traz à cidade. Mas acho que não tenho escolha.
Gabriel respondeu contando a Seymour uma pequena parte da verdade — que ele tinha ido a Londres porque estava investigando o assassinato de um inglês expatriado
que vivia na Itália.
— O expatriado inglês tinha nome? — perguntou Seymour.
— James Bradshaw — respondeu Gabriel. Ele parou, depois acrescentou: — Mas seus amigos o chamavam de Jack.
O rosto de Seymour continuou sem reação.
— Acho que li algo sobre isso nos jornais — falou. — Trabalhava no Ministério de Relações Exteriores, não era? Fazia consultoria no Oriente Médio. Foi assassinado
em sua villa em Como. Ao que parece, foi um caos.
— Bastante — concordou Gabriel.
— O que isso tem a ver comigo?
— Jack Bradshaw não era diplomata, não é mesmo, Graham? Ele era do MI6. Um espião.
Seymour conseguiu manter sua compostura por mais algum tempo. Depois apertou os olhos e perguntou:
— O que mais você tem?
— Três quadros roubados, um cofre no Freeport de Genebra e alguém chamado Samir.
— Isso é tudo? — Seymour balançou a cabeça lentamente e se virou para Whitcombe. — Cancele meus compromissos para o resto da tarde, Nigel. E consiga algo para beber.
Isso vai demorar um tempo.
9
STOCKWELL, LONDRES
WHITCOMBE SAIU PARA COMPRAR os ingredientes para um gim e tônica enquanto Gabriel e Graham Seymour se instalaram na sala de estar pequena e sem charme. Gabriel ficou
pensando em que tipos de reuniões de inteligência tinham acontecido nesse lugar antes dele. Um desertor da KGB querendo vender sua alma por trinta moedas de prata
ocidental? Um cientista nuclear iraquiano com uma pasta cheia de mentiras? Um agente duplo jihadista afirmando saber a hora e o lugar do próximo ataque espetacular
da Al-Qaeda? Ele olhou para a parede em cima da lareira elétrica e viu dois cavaleiros com jaquetas vermelhas conduzindo seus cavalos por um prado verde inglês.
Então olhou pela janela e viu um querubim corpulento sobre a grama vigiando solitário o jardim escuro. Graham Seymour parecia ignorar totalmente o que havia ao redor.
Estava olhando para as mãos, como se tentasse decidir por onde começar sua história. Não se importava em delinear as regras, porque isso era desnecessário. Gabriel
e Seymour eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que desconfiavam só um pouco um do outro.
— Os italianos sabem que você está aqui? — perguntou Seymour finalmente.
Gabriel negou.
— E o Escritório?
— Não falei que estava vindo, mas isso não significa que não estejam observando todos meus movimentos.
— Aprecio sua honestidade.
— Sempre sou honesto com você, Graham.
— Pelo menos quando lhe interessa.
Gabriel não se deu ao trabalho de responder. Em vez disso, ouviu atentamente enquanto Seymour, com a voz incomodada de alguém que preferia discutir outras questões,
contava a breve vida e a carreira de James “Jack” Bradshaw. Era um território familiar para um homem como Seymour, porque ele tinha vivido uma versão da vida de
Bradshaw. Os dois eram produtos de lares de classe média razoavelmente felizes, os dois tinham sido enviados para caras, mas frias escolas particulares, e os dois
tinham sido admitidos em universidades de elite, embora Seymour tenha estudado em Cambridge e Bradshaw em Oxford. Ali, enquanto ainda estava na graduação, chamou
a atenção de um professor da faculdade de Estudos Orientais. O professor era na verdade um olheiro do MI6. Graham Seymour também o conhecia.
— O olheiro era seu pai? — perguntou Gabriel.
Seymour assentiu.
— Ele estava no fim de sua carreira. Já estava cansado de tanto estar em campo, e não queria nem saber de um trabalho administrativo. Então foi mandado para Oxford
e lhe disseram para ficar de olho em potenciais recrutas. Um dos primeiros estudantes que notou foi Jack Bradshaw. Era difícil não notar o Jack — acrescentou Seymour.
— Ele era um meteoro. E o mais importante, ele era sedutor, naturalmente enganador e sem escrúpulos ou moral.
— Em outras palavras, tinha tudo para ser um perfeito espião.
— Na melhor tradição inglesa — acrescentou Seymour com um sorriso irônico.
E assim foi, ele continuou, que Jack Bradshaw entrou pelo mesmo caminho que tantos outros tinham seguido antes dele — o que levava das quadras tranquilas de Cambridge
e Oxford à entrada criptografada do Serviço Secreto de Inteligência. Era 1985 quando ele chegou. A Guerra Fria estava perto do fim, e o MI6 ainda estava procurando
uma razão para justificar sua existência depois de ser destruída internamente por Kim Philby e os outros membros do círculo de espiões de Cambridge. Bradshaw passou
dois anos no programa de treinamento do MI6 e depois foi mandado ao Cairo para seu estágio. Tornou-se especialista em extremismo islâmico e previu com precisão o
surgimento de uma rede internacional de terror jihadista liderada por veteranos da guerra do Afeganistão. Em seguida foi a Amã, onde estabeleceu boas conexões com
o chefe da GID, o poderoso serviço de inteligência e segurança da Jordânia. Em pouco tempo, Jack Bradshaw era considerado o principal oficial de campo do MI6 no
Oriente Médio. Pressupôs que seria o próximo chefe da divisão, mas o cargo acabou sendo atribuído a um rival que imediatamente mandou Bradshaw para Beirute, um dos
postos mais perigosos e ingratos da região.
— E aí — falou Seymour —, foi quando começaram os problemas.
— Que tipo de problemas?
— Os de sempre — respondeu Seymour. — Começou a beber muito e trabalhar pouco. Também desenvolveu um complexo de superioridade. Chegou a acreditar que era o cara
mais inteligente em qualquer lugar que estivesse e que seus superiores em Londres eram muito incompetentes. Qual outra explicação para o fato de não ter recebido
a promoção quando era, claramente, o candidato mais qualificado para o cargo? Então conheceu uma mulher chamada Nicole Devereaux, e a situação foi de mal a pior.
— Quem era ela?
— Fotógrafa funcionária da AFP, a agência de notícias francesa. Ela conhecia Beirute melhor do que a maioria de seus concorrentes porque era casada com um empresário
libanês chamado Ai Rashid.
— Como Bradshaw a conheceu? — perguntou Gabriel.
— Uma festa numa sexta-feira à noite na embaixada britânica: jornalistas, diplomatas e espiões trocando fofocas e histórias de horror em Beirute com cerveja quente
e salgadinhos velhos.
— E começaram a ter um caso?
— Bastante tórrido, na verdade. Até onde sei, Bradshaw estava apaixonado por ela. Os rumores começaram a se espalhar, claro, e em pouco tempo chegaram aos ouvidos
do rezident da KGB na embaixada soviética. Ele conseguiu algumas fotos de Nicole no quarto de Bradshaw. E aí atacou.
— Um recrutamento?
— É uma forma de dizer — afirmou Seymour. — Na verdade, foi a velha e boa chantagem.
— A especialidade da KGB.
— A sua, também.
Gabriel ignorou o comentário e perguntou sobre a natureza da chantagem.
— O rezident deu a Bradshaw uma escolha simples — respondeu Seymour. — Ele podia trabalhar como agente pago da KGB ou os russos iriam entregar as fotos de Nicole
Devereaux em flagrante delito para o marido dela.
— Aposto que Ali Rashid não teria reagido tranquilamente à notícia de que sua esposa estava tendo um caso com um espião britânico.
— Rashid era um homem perigoso. — Seymour fez uma pausa, depois acrescentou: — E com uma boa rede de conexões, também.
— Que tipo de conexões?
— Inteligência síria.
— Então Bradshaw tinha medo de que Rashid a matasse?
— Com bons motivos. Não é preciso dizer que ele concordou em cooperar.
— O que entregou a eles?
— Nomes de agentes do MI6, operações em curso, noções sobre a política britânica na região. Resumindo, toda nossa agenda no Oriente Médio.
— Como vocês descobriram isso?
— Nós não descobrimos — falou Seymour. — Os norte-americanos descobriram que Bradshaw tinha uma conta bancária na Suíça com meio milhão de dólares. Revelaram a informação
com grande fanfarra durante uma reunião terrível em Langley.
— Por que Bradshaw não foi preso?
— Você é um homem experiente — falou Seymour. — Diga você.
— Porque levaria a um escândalo que o MI6 não poderia aguentar na época.
Seymour tocou seu nariz.
— Eles até deixaram o dinheiro na conta bancária suíça porque não encontraram uma forma de retê-lo sem levantar uma bandeira vermelha. Possivelmente foi a rede de
segurança mais lucrativa na história do MI6. — Seymour balançou a cabeça lentamente. — Não exatamente o nosso melhor momento.
— O que aconteceu com Bradshaw depois que saiu do MI6?
— Ficou em Beirute por alguns meses lambendo as próprias feridas antes de voltar para a Europa e abrir sua própria empresa de consultoria. Para que fique registrado
— acrescentou Seymour —, a inteligência britânica nunca acreditou na Meridian Global Consulting Group.
— Sabiam que Bradshaw estava vendendo arte roubada?
— Suspeitávamos que estivesse envolvido em negócios que não eram exatamente legais, mas simplesmente olhávamos para o outro lado e torcíamos para que nada acontecesse.
— E quando souberam que ele tinha sido assassinado na Itália?
— Mantivemos a ficção de que era diplomata. O Ministério de Relações Exteriores deixou claro, no entanto, que iriam negar isso ao primeiro indício de problema. —
Seymour fez uma pausa, depois perguntou: — Esqueci alguma coisa?
— O que aconteceu com Nicole Devereaux?
— Aparentemente, alguém contou ao marido sobre o caso. Ela desapareceu uma noite depois de sair da sede da AFP. Encontraram o corpo alguns dias depois no vale de
Bekaa.
— Foi o Rashid quem a matou?
— Não — respondeu Seymour. — Ele pediu para os sírios fazerem isso. Se divertiram um pouco com ela antes de enforcá-la em um poste e cortar sua garganta. Foi bastante
feio. Mas acho que era de se esperar. Afinal — acrescentou ele sombrio —, eram sírios.
— Fico pensando se foi uma coincidência — falou Gabriel.
— O quê?
— Que alguém matou Jack Bradshaw exatamente da mesma maneira.
Seymour não falou nada, apenas olhou seu relógio com o ar de um homem que ia chegar tarde para uma reunião que preferia não participar.
— Helen está me esperando para jantar — falou com uma profunda falta de entusiasmo. — Infelizmente, ela está em uma fase africana no momento. Não tenho certeza,
mas é possível que tenha comido cabra na semana passada.
— Você é um homem de sorte, Graham.
— Helen diz a mesma coisa. Meu médico não tem tanta certeza.
Seymour colocou o copo sobre a mesa e se levantou. Gabriel não se moveu.
— Acho que você tem mais uma pergunta — falou Seymour.
— Duas, na verdade.
— Estou ouvindo.
— Alguma chance de conseguir dar uma olhada no arquivo de Bradshaw?
— Próxima pergunta.
— Quem é Samir?
— Sobrenome?
— Estou trabalhando nisso.
Seymour olhou para o teto.
— Há um Samir que é dono de um mercadinho na esquina do meu apartamento. É membro devoto da Irmandade Muçulmana que acredita que a Grã-Bretanha deveria ser governada
pela lei da sharia. — Olhou para Gabriel e sorriu. — Tirando isso, é um cara bem legal.
A embaixada israelense estava localizada do outro lado do rio Tâmisa, em uma esquina tranquila de Kensington perto da High Street. Gabriel entrou no prédio através
de uma porta escondida no fundo e desceu para as salas de segurança reservadas para o Escritório. O chefe de estação não estava presente, só um jovem assistente
chamado Noah que se levantou assim que viu o futuro diretor entrar pela porta sem ser anunciado. Gabriel entrou no módulo de comunicações seguras — no léxico do
Escritório era chamado de Santo dos Santos — e enviou uma mensagem para o Boulevard Rei Saul pedindo acesso a qualquer arquivo relacionado com um empresário libanês
chamado Ali Rashid. Não se preocupou em explicar o motivo de seu pedido. Seu futuro cargo tinha seus privilégios.
Vinte minutos se passaram até que o arquivo aparecesse através de um link seguro — tempo suficiente, considerou Gabriel, para que o atual chefe do Escritório aprovasse
sua transmissão. Era breve, cerca de mil palavras, e escrito no estilo conciso exigido dos analistas do Escritório. Afirmava que Ali Rashid era uma peça conhecida
da inteligência síria, que financiava uma grande rede síria no Líbano, e que morreu num ataque de carro bomba na capital libanesa em 2011, cuja autoria era desconhecida.
No fim do arquivo havia uma cifra numérica de seis dígitos do oficial que havia criado o arquivo. Gabriel reconheceu; a analista já tinha sido a maior especialista
do Escritório na Síria e no Partido Baath. Hoje em dia era famosa por outro motivo. Era a esposa do futuro ex-chefe.
Como a maioria dos postos ao redor do mundo, a estação de Londres continha um pequeno quarto para momentos de crise. Gabriel conhecia bem o quarto, pois tinha ficado
nele várias vezes. Ele se deitou na desconfortável cama de solteiro e tentou dormir, mas não conseguiu; o caso não abandonava seus pensamentos. Um promissor espião
britânico que se perdeu, um colaborador da inteligência síria explodido em pedaços por um carro-bomba, três quadros roubados cobertos por falsificações de ótima
qualidade, um cofre no Freeport de Genebra... As possibilidades, pensou Gabriel, eram infinitas. Não valia a pena tentar forçar as peças agora. Ele precisava abrir
outra janela — uma janela para o mercado global de quadros roubados — e para isso precisava da ajuda de um mestre na arte do roubo.
Assim ficou deitado, sem sono, na cama dura, lutando contra suas lembranças e pensando em seu futuro, até as seis da manhã seguinte. Depois de tomar uma ducha e
mudar de roupas, saiu da embaixada enquanto ainda estava escuro e pegou o metrô até St. Pancras. Um Eurostar estava saindo para Paris às sete e meia; ele comprou
alguns jornais antes de embarcar e terminou de lê-los quando o trem parou na Gare du Nord. Do lado de fora, uma fila de táxis molhados esperava debaixo de um céu
cinza-escuro. Gabriel passou por eles e passou uma hora caminhando pelas ruas cheias ao redor da estação até ter certeza de que não estava sendo seguido. Então partiu
para o oitavo Arrondissement e uma rua chamada rue de Miromesnil.
10
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
NO SERVIÇO DE INTELIGÊNCIA, como na vida, às vezes é necessário tratar com indivíduos cujas mãos não estão nada limpas. A melhor forma de pegar um terrorista é usar
outro terrorista como fonte. O mesmo era verdade, reconheceu Gabriel, quando se estava tentando pegar um ladrão. O que explicava o motivo pelo qual, às 9h55, ele
estava sentado numa mesa ao lado da janela de uma boa brasserie na rue de Miromesnil, com uma cópia do Le Monde aberta a sua frente e um café com creme fumegante.
Às 9h58, ele viu um homem com um casaco enorme e chapéu caminhando rapidamente pela calçada na direção do Palácio do Eliseu. O homem entrou em uma pequena loja chamada
Antiquités Scientifiques às dez em ponto, acendeu as luzes, e mudou o cartaz na janela de FERMÉ para OUVERT. Maurice Durand, pensou Gabriel, sorrindo, era alguém
totalmente confiável. Terminou seu café e cruzou a rua vazia até a entrada da loja. O intercomunicador, quando ele tocou, gemeu como uma criança inconsolável. Vinte
segundos se passaram sem nenhum convite para entrar. Então a fechadura se abriu com um ruído pouco hospitaleiro e Gabriel adentrou na loja.
A pequena loja, como o próprio Durand, era um modelo de ordem e precisão. Microscópios e barômetros antigos estavam arrumados em fileiras nas prateleiras, o latão
brilhando como botões de uma farda de soldado; câmeras e telescópios espreitando cegamente para o passado. No centro do salão havia um globo terrestre italiano do
século XIX, preço disponível sob consulta. A pequena mão de Durand descansava sobre a Ásia Menor. Estava usando um terno escuro, uma gravata dourada e o sorriso
menos sincero que Gabriel já tinha visto. Sua careca brilhava sob a luz do teto. Seus pequenos olhos estavam fixos em Gabriel como um terrier em alerta.
— Como andam os negócios? — perguntou Gabriel cordialmente.
Durand se moveu para os aparelhos fotográficos e pegou uma câmera do começo do século XX com lente de latão de Poulenc de Paris.
— Estou enviando para um colecionador na Austrália — falou ele. — Seiscentos euros. Não tanto quanto eu esperava, mas ele barganhou muito.
— Não esse negócio, Maurice.
Durand não respondeu.
— Foi uma obra adorável que você e seus homens conseguiram em Munique no mês passado — falou Gabriel. — Um retrato de El Greco desaparece da Alte Pinakothek, e ninguém
viu ou ouviu falar dele desde então. Nenhum pedido de resgate. Nenhum indício de que a polícia alemã esteja perto de resolver o caso. Nada, a não ser silêncio e
um espaço vazio na parede de um museu onde costumava estar uma obra de arte.
— Não faça perguntas sobre meus negócios — falou Durand —, e não faço sobre os seus. Essas são as regras da nossa relação.
— Onde está o El Greco, Maurice?
— Em Buenos Aires, nas mãos de um dos meus melhores clientes. Ele tem uma fraqueza — acrescentou Durand —, um apetite insaciável que só eu posso satisfazer.
— E qual é?
— Gosta de possuir o impossuível. — Durand colocou a câmera de novo na prateleira. — Imagino que esta não seja uma visita social.
Gabriel negou com a cabeça.
— O que você quer dessa vez?
— Informações.
— Sobre o quê?
— Um inglês morto chamado Jack Bradshaw.
O rosto de Durand permaneceu impassível.
— Suponho que você o conhecia. — falou Gabriel.
— Só sua reputação.
— Alguma ideia de quem o cortou em pedaços?
— Não — falou Durand, balançando a cabeça lentamente. — Mas eu poderia indicar a direção correta.
Gabriel foi até a janela e virou o cartaz de OUVERT para FERMÉ. Durand respirou fundo e colocou seu sobretudo.
Era uma das duplas mais improváveis que alguém poderia ter encontrado em Paris naquela manhã fria, o ladrão de arte e o agente da inteligência, caminhando lado a
lado pelas ruas do oitavo Arrondissement. Maurice Durand, meticuloso em tudo, começou fazendo um guia rápido sobre o negócio de arte roubada. A cada ano, milhares
de quadros e outros objets d’art desapareciam de museus, galerias, instituições públicas e residências. Estimativas do seu valor chegavam a seis bilhões de dólares,
fazendo do roubo de arte a quarta atividade ilícita mais lucrativa do mundo, atrás somente do tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e comércio de armas. E Maurice
Durand era responsável por boa parte disso. Trabalhando com um grupo estável de ladrões profissionais estabelecidos em Marselha, ele tinha realizado alguns dos maiores
roubos de obras de arte da história. Não pensava em si mesmo como um simples ladrão de arte. Era um empresário global, um tipo de corretor, especializado na silenciosa
aquisição de quadros que não estavam à venda.
— Na minha humilde opinião — continuou ele sem um traço de humildade na voz —, há quatro tipos diferentes de ladrões de arte. O primeiro é o que procura emoção,
o amante de arte que rouba para conseguir algo que nunca poderia comprar. Eu me lembro de Stéphane Breitwieser. — Ele olhou de lado para Gabriel. — Conhece o nome?
— Breitwieser foi o garçom que roubou mais de um bilhão de dólares em arte para sua coleção particular.
— Incluindo Sibila de Cleves, de Lucas Cranach, o Velho. Depois de ter sido preso, sua mãe cortou os quadros em pequenos pedaços e os jogou no lixo da cozinha. —
O francês balançou a cabeça, reprovando. — Estou longe de ser perfeito, mas nunca destruí um quadro. — Olhou de novo para Gabriel. — Mesmo quando deveria.
— E a segunda categoria?
— O perdedor incompetente. Rouba um quadro, não sabe o que fazer com ele e entra em pânico. Às vezes, consegue receber um resgate ou uma recompensa. Geralmente é
pego. Francamente — acrescentou Durand —, esse tipo me deixa triste. Dá às pessoas como eu uma má reputação.
— Profissionais que realizam roubos sob encomenda.
Durand assentiu. Estavam caminhando pela avenida Matignon. Passaram pelos escritórios em Paris da Christie’s e entraram na Champs-Élysées. Os galhos das castanheiras
estavam nus contrastando com o céu cinzento.
— Há alguns policiais que insistem que eu não existo — retomou Durand. — Acham que sou uma fantasia, uma idealização. Não entendem que há pessoas muito ricas no
mundo que cobiçam grandes obras de arte e não se importam se são roubadas ou não. Na verdade, há algumas pessoas que querem uma obra de arte porque é roubada.
— Qual é a quarta categoria?
— Crime organizado. São bons roubando quadros, mas não tão bons em colocá-los no mercado. — Durand parou, então acrescentou: — É onde entra Jack Bradshaw. Ele era
um intermediário entre os ladrões e os compradores — um intermediário de luxo, pode-se dizer. E era bom no que fazia.
— Que tipo de compradores?
— Às vezes, ele vendia direto para colecionadores — respondeu Durand. — Mas na maioria das vezes enviava as obras roubadas para uma rede de comerciantes aqui na
Europa.
— Onde?
— Paris, Bruxelas e Amsterdã são excelentes mercados para arte roubada. Mas as leis de propriedade e privacidade da Suíça ainda fazem com que seja a Meca para colocar
propriedades roubadas no mercado.
Cruzaram a Place de la Concorde e entraram no Jardin des Tuileries. À esquerda estava o Jeu de Paume, o pequeno museu que os nazistas tinham usado como um tipo de
depósito quando saquearam a França de sua arte. Durand parecia fazer um esforço consciente para não olhar para lá.
— Seu amigo Jack Bradshaw estava em uma linha perigosa de trabalho — disse ele. — Tinha que lidar com o tipo de pessoa que facilmente usa a violência quando não
consegue o que quer. As gangues sérvias são especialmente ativas na Europa Ocidental. Os russos, também. É possível que Bradshaw tenha sido assassinado como resultado
de um negócio que deu errado. Ou... — A voz de Durand falhou.
— Ou o quê?
Durand hesitou antes de responder.
— Escutei rumores — finalmente falou. — Nada concreto, entenda. Só especulação.
— Que tipo de especulação?
— Que Bradshaw estava envolvido na aquisição de um grande número de quadros no mercado negro para um único indivíduo.
— Sabe o nome desse indivíduo?
— Não.
— Está me contando a verdade, Maurice?
— Isso pode surpreendê-lo — respondeu Durand —, mas quando alguém está comprando uma coleção de quadros roubados, normalmente não divulga o que está fazendo.
— Continue.
— Ouvi rumores de outro tipo sobre Bradshaw, rumores de que estava intermediando um acordo para uma obra de arte. — Durand fez uma verificação quase imperceptível
dos arredores antes de continuar. Era um movimento, pensou Gabriel, típico em um espião profissional. — Uma obra de arte que está desaparecida há várias décadas.
— Sabe qual era o quadro?
— Claro. E você também. — Durand parou de caminhar e se virou para encarar Gabriel. — Era uma natividade pintada por um artista barroco no final de sua carreira.
Seu nome era Michelangelo Merisi, mas a maioria das pessoas o conhece pelo nome da vila de sua família perto de Milão.
Gabriel pensou nas três letras que tinha encontrado no bloco de notas de Bradshaw: C... V... O...
As letras não eram aleatórias.
Eram de Caravaggio.
CONTINUA
EM 18 DE OUTUBRO de 1969, Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio, desapareceu do Oratorio di San Lorenzo em Palermo, Sicília. Natividade, como é conhecida, é uma das últimas grandes obras de Caravaggio, pintada em 1609 enquanto ele era fugitivo da justiça, procurado pelas autoridades papais em Roma por matar um homem durante um duelo de espadas. Durante mais de quatro décadas, o retábulo foi a obra roubada mais procurada do mundo, e mesmo assim, sua localização exata, inclusive seu destino, permaneceu um mistério. Até agora...
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/14_O_CASO_CARAVAGGIO.jpg
PARTE UM
CHIAROSCURO
1
ST. JAMES’S, LONDRES
TUDO COMEÇOU COM UM ACIDENTE, como sempre acontecia com Julian Isherwood. Na verdade, sua reputação de imprudente e azarado era tão bem estabelecida que, caso o
mundo da arte de Londres tivesse ficado sabendo, o que não aconteceu, não teria se surpreendido. Isherwood, declarado um dos maiores especialistas do departamento
de Velhos Mestres da Sotheby’s, era o santo patrono das causas perdidas, um equilibrista atraído por esquemas cuidadosamente planejados que terminavam em desastre,
geralmente não por culpa dele. Em consequência, tanto o admiravam quanto sentiam pena dele, algo incomum para um homem de sua posição. Julian Isherwood fazia com
que a vida fosse um pouco menos chata. E, por isso, o grupo da moda de Londres o adorava.
Sua galeria ficava numa das esquinas do quarteirão conhecido como Mason’s Yard, ocupando três andares de um decadente galpão vitoriano que já tinha sido propriedade
da loja de luxo Fortnum & Mason. De um lado estavam os escritórios da filial londrina de uma pequena empresa de transporte grega; do outro havia um pub frequentado
por garotas bonitas que trabalhavam na região e andavam de scooter. Há muito anos, antes das sucessivas ondas de dinheiro árabe e russo que afogaram o mercado imobiliário
de Londres, a galeria estava na estilosa New Bond Street, ou New Bondstrasse, como era conhecida no meio. Depois vieram as lojas estilo Hermès, Burberry, Chanel
e Cartier, deixando Isherwood e outros como ele — galeristas independentes especializados em quadros de Velhos Mestres que poderiam estar em museus — sem escolha
a não ser procurar um santuário em St. James’s.
Não era a primeira vez que Isherwood tinha sido forçado a se exilar. Nascido em Paris às vésperas da Segunda Guerra Mundial, filho único do renomado negociante de
arte Samuel Isakowitz, ele tinha sido transportado pelos Pireneus depois da invasão alemã e levado escondido para a Grã-Bretanha. Sua infância parisiense e linhagem
judia eram apenas duas partes do confuso passado que Isherwood mantinha escondido do resto do mundo da arte de Londres, famoso por ser fofoqueiro. Para todo efeito,
ele era um verdadeiro inglês — tão inglês quanto o chá da tarde e os dentes ruins, como adorava falar. Era o incomparável Julian Isherwood, Julie para os amigos,
Juicy Julian para seus companheiros de bebedeira ocasional, e Sua Santidade para os historiadores de arte e curadores que frequentemente contavam com seu olho infalível.
Era leal como o dia era longo, confiável ao máximo, impecavelmente educado, e não tinha inimigos verdadeiros, uma conquista singular já que tinha passado toda sua
vida navegando pelas traiçoeiras águas do mundo da arte. Mais do que tudo, Isherwood era decente — algo em falta hoje em dia, em Londres ou em qualquer outro lugar.
A Isherwood Fine Arts era um negócio vertical: salas de depósito lotadas no térreo, escritórios no primeiro andar e uma sala de exposições formal no segundo. A sala
de exposições, considerada por muitos como a mais gloriosa em toda a cidade de Londres, era uma réplica exata da famosa galeria de Paul Rosenberg em Paris, onde
Isherwood tinha passado muitas horas felizes quando criança, geralmente na companhia do próprio Picasso. O escritório era uma toca dickensiana com altas pilhas de
catálogos e monografias amareladas. Para entrar, os visitantes tinham de passar por duas portas de vidro de segurança, a primeira na entrada de Mason’s Yard, a segunda
no alto de uma escadaria estreita coberta por um carpete marrom manchado. Ali encontrariam Maggie, uma loira com cara de sono que não conseguiria diferenciar um
Ticiano de um papel higiênico. Isherwood já tinha passado vergonha ao tentar seduzi-la e, sem outro recurso, decidiu contratá-la como recepcionista. No momento,
ela estava soprando as unhas enquanto o telefone em sua mesa gritava sem resposta.
— Pode atender, Mags? — pediu Isherwood com delicadeza.
— Por quê? — perguntou ela sem um traço de ironia em sua voz.
— Pode ser importante.
Ela revirou os olhos antes de levantar o aparelho, ressentida, e o colocar na orelha, falando: “Isherwood Fine Arts”. Alguns segundos depois, ela desligou sem outra
palavra e voltou a trabalhar em suas unhas.
— E então? — perguntou Isherwood.
— Não tinha ninguém na linha.
— Seja boazinha e veja o número de quem ligou.
— Ele vai ligar de novo.
Isherwood, franzindo o cenho, voltou à silenciosa avaliação da pintura apoiada sobre o cavalete coberto com um grosso tecido no centro da sala — uma representação
de Cristo aparecendo para Maria Madalena, provavelmente por um seguidor de Francesco Albani, que Isherwood tinha conseguido por uma ninharia de uma mansão em Berkshire.
O quadro, como o próprio Isherwood, precisava muito de uma restauração. Ele tinha chegado à idade que os planejadores imobiliários chamavam de “o outono de seus
anos”. Não era um outono dourado, pensou triste. Era o final do outono, com um vento cortante e as luzes de Natal já se acendendo na rua Oxford. Mesmo assim, com
seu terno Savile Row feito sob medida e volumosos cachos grisalhos, ele tinha uma figura elegante, apesar de precária, um visual que descrevia como degradação digna.
Nesse ponto de sua vida, ele não esperava por nada mais.
— Achei que algum russo horrível viria às quatro para olhar um quadro — falou Isherwood de repente, o olhar ainda sobre o cavalete velho.
— O russo horrível cancelou.
— Quando?
— Essa manhã.
— Por quê?
— Não falou.
— Por que não me avisou?
— Eu avisei.
— Besteira.
— Você deve ter se esquecido, Julian. Isso tem acontecido muito ultimamente.
Isherwood se virou com olhos fulminantes para Maggie, de repente pensando como ele poderia ter ficado atraído por uma criatura tão repulsiva. Depois, sem nenhum
outro compromisso na agenda, e sem absolutamente nada melhor para fazer, vestiu seu casaco e foi caminhando até o Green’s Restaurant and Oyster Bar, iniciando assim
a cadeia de eventos que o levaria a outra calamidade que não foi criada por ele. Haviam passado vinte minutos depois das quatro. Era um pouco cedo para os frequentadores
de sempre e o bar estava vazio, exceto por Simon Mendenhall, o sempre bronzeado chefe de leilões da Christie’s. Mendenhall já havia participado involuntariamente
de uma operação de inteligência conjunta israelense-americana para penetrar em uma rede de terror jihadista que estava bombardeando a Europa Ocidental à luz do dia.
Isherwood sabia disso porque havia tido uma pequena participação na operação. Ele não era um espião. Ajudava espiões, um em especial.
— Julie! — chamou Mendenhall. Então, com a voz de alcova que reservava para arrematadores relutantes, acrescentou: — Você parece estar muito bem. Perdeu peso? Foi
a um desses spas caros? Garota nova? Qual é o seu segredo?
— Sancerre — respondeu Isherwood antes de se sentar à mesa de sempre, perto da janela com vista para a rua Duke. Ali pediu uma garrafa da bebida, absurdamente gelada,
porque um copo não seria suficiente. Mendenhall logo foi embora com seu floreio habitual e Isherwood ficou sozinho com seus pensamentos e sua bebida, uma combinação
perigosa para um homem de idade avançada e uma carreira em pleno retrocesso.
Então a porta se abriu e da rua escura e molhada entraram dois curadores da Galeria Nacional. Alguém importante da Tate apareceu logo depois, seguido por uma delegação
do Bonhams liderada por Jeremy Crabbe, o acadêmico diretor do departamento de quadros de Velhos Mestres da casa de leilão. Logo atrás deles entrou Roddy Hutchinson,
amplamente considerado como o negociante mais inescrupuloso de toda Londres. Sua chegada era um mau presságio, pois onde quer que Roddy fosse, o gorducho Oliver
Dimbleby sempre o seguia. Como era de se esperar, este entrou no bar alguns minutos depois com a discrição de um trem apitando à meia-noite. Isherwood pegou seu
celular e fingiu uma conversa urgente, mas Oliver não acreditou. Foi direto para a mesa — como um cão encurralando uma raposa, Isherwood lembraria mais tarde — e
instalou seu amplo traseiro em uma cadeira vazia.
— Domaine Daniel Chotard — falou com aprovação, erguendo a garrafa de vinho do balde de gelo. — Não se importa, não é?
Estava usando um terno azul chamativo que se ajustava a sua figura corpulenta como um pacote de salsichas e grandes abotoaduras douradas do tamanho de uma moeda.
Suas bochechas eram redondas e rosadas; os olhos azul-claros tinham um brilho que sugeria que havia dormido bem à noite. Oliver Dimbleby era um pecador da mais alta
ordem, mas sua consciência não o incomodava.
— Não me entenda mal, Julie — falou ele enquanto se servia de uma taça generosa do vinho de Isherwood —, mas você parece uma pilha de roupa suja.
— Não foi o que Simon Mendenhall me disse.
— Simon ganha a vida convencendo as pessoas a gastar dinheiro. Eu, no entanto, sou uma fonte de sinceridade direta, mesmo quando machuca. — Dimbledy olhou para Isherwood
com preocupação genuína.
— Ah, não me olhe assim, Oliver.
— Assim como?
— Como se estivesse tentando pensar em algo gentil para dizer antes que o médico desligue os aparelhos.
— Já deu uma olhada no espelho ultimamente?
— Tento evitar os espelhos hoje em dia.
— Dá para ver o motivo. — Dimbleby serviu mais um dedo de vinho em sua taça.
— Posso pedir algo mais para você, Oliver? Um pouco de caviar?
— Eu sempre retribuo, não?
— Não, Oliver, não retribui. Na verdade, se eu estivesse contando, algo que não faço, você me deveria alguns milhares de libras.
Dimbleby ignorou o comentário.
— O que foi, Julian? O que o preocupa dessa vez?
— No momento, Oliver, é você.
— É aquela garota, não é, Julie? É isso que a deixa mal. Qual é o nome dela mesmo?
— Cassandra — respondeu Isherwood olhando para a janela.
— Partiu seu coração, não foi?
— Elas sempre fazem isso.
Dimbledy sorriu.
— Sua capacidade de amar me impressiona. O que eu não daria para me apaixonar pelo menos uma vez.
— Você é o maior mulherengo que conheço, Oliver.
— Ser mulherengo tem pouquíssimo a ver com se apaixonar. Amo as mulheres, todas as mulheres. E é aí que está o problema.
Isherwood olhou para a rua. Estava começando a chover de novo, bem na hora do rush.
— Vendeu alguns quadros ultimamente? — perguntou Dimbleby.
— Vários, na verdade.
— Nenhum que eu tenha ouvido falar.
— É porque as vendas foram privadas.
— Besteira — respondeu Oliver com uma risada. — Você não vende nada há meses. Mas isso não o impediu de adquirir quadros novos, não foi? Quantos quadros você tem
armazenados naquele seu galpão? O suficiente para encher um museu, com alguns milhares de quadros de reserva. E estão todos queimados, mais mortos do que a proverbial
tranca na porta.
Isherwood não respondeu, apenas passou a mão pelas costas. A dor nas costas tinha substituído a tosse forte como seu problema físico mais persistente. Pensou que
era uma melhoria. Dor nas costas não perturbava os vizinhos.
— Minha oferta ainda está de pé. — Dimbleby começou a falar.
— Que oferta?
— Vamos, Julie. Não me obrigue a repetir.
Isherwood girou o rosto alguns graus e olhou direto para o rosto rechonchudo e meio infantil de Dimbleby.
— Não está falando em comprar minha galeria de novo, está?
— Estou preparado para ser mais do que generoso. Vou oferecer um preço justo pela pequena porção da sua coleção que pode ser vendida e usar o resto para aquecer
o prédio.
— É muito caridoso da sua parte — respondeu Isherwood com sarcasmo —, mas tenho outros planos para a galeria.
— Realistas?
Isherwood ficou em silêncio.
— Muito bem — falou Dimbleby. — Se não quer que eu tome posse daquele desastre que você chama de galeria, pelo menos deixe que eu faça outra coisa para ajudar a
tirá-lo do seu atual Período Azul.
— Não quero uma de suas garotas, Oliver.
— Não estou falando de garotas. Estou falando de uma boa viagem para ajudá-lo a se esquecer de seus problemas.
— Para onde?
— Lago Como. Tudo pago. Passagem de primeira classe. Duas noites em uma suíte de luxo na Villa d’Este.
— E o que preciso fazer?
— Um pequeno favor.
— Pequeno de verdade?
Dimbleby se serviu de um pouco mais de vinho e contou a Isherwood toda a história.
Parece que Oliver Dimbleby recentemente tinha conhecido um expatriado inglês que era um colecionador voraz, mas que não tinha um conselheiro de arte com conhecimento
para guiá-lo. Além do mais, parecia que as finanças do inglês estavam em decadência, por isso precisava de uma rápida venda de parte de suas posses. Dimbleby tinha
concordado em dar uma olhada com calma na coleção, mas agora que era hora de viajar, ele não conseguia enfrentar a perspectiva de tomar outro avião. Ou era o que
afirmava. Isherwood suspeitava que os verdadeiros motivos de Dimbleby para não querer viajar eram outros, pois Oliver Dimbleby era feito de carne, osso e motivos
escusos.
Mesmo assim, havia algo na ideia de uma viagem inesperada que agradava à Isherwood, e contra todo bom senso, ele aceitou a oferta na hora. Naquela noite fez uma
mala pequena e às nove da manhã seguinte estava entrando na primeira classe do voo 576 da British Airways sem escalas para o aeroporto de Malpensa, em Milão. Bebeu
uma única taça de vinho durante o voo — para o bem do seu coração, falou para si mesmo — e ao meio-dia e meia, quando entrou em uma Mercedes alugada, estava com
o controle completo de suas faculdades. Fez a viagem para o norte até o lago Como sem a ajuda de mapas ou GPS. Um respeitado historiador de arte especializado nos
pintores de Veneza, Isherwood tinha feito incontáveis viagens à Itália para rondar por suas igrejas e museus. Mesmo assim, sempre aproveitava a chance de voltar,
especialmente quando outra pessoa estava pagando a conta. Julian Isherwood era francês de nascimento e inglês de criação, mas dentro de seu peito afundado batia
o coração romântico e indisciplinado de um italiano.
O inglês expatriado com cada vez menos recursos estava esperando Isherwood às duas. Vivia grandiosamente, de acordo com o e-mail escrito às pressas por Dimbleby,
na ponta sudoeste do lago, perto da cidade de Laglio. Isherwood chegou alguns minutos antes e encontrou aberto o imponente portão para recebê-lo. Além do portão
se estendia um caminho recém-pavimentado, que o levava graciosamente até um pátio de cascalho. Estacionou perto do cais privado da villa e caminhou passando por
uma coleção de estátuas até a porta da frente. Ninguém atendeu a campainha. Isherwood olhou seu relógio e depois tocou a campainha pela segunda vez. O resultado
foi igual.
Neste ponto, Isherwood deveria ter sido esperto, voltado ao carro alugado e ido embora de Como o mais rápido possível. Em vez disso, mexeu no trinco e, infelizmente,
descobriu que não estava trancado. Abriu a porta alguns centímetros, berrou um cumprimento para o interior escuro e deu uns passos inseguros no grande hall de entrada.
No mesmo instante, viu a poça de sangue no chão de mármore, os dois pés descalços suspensos no espaço e o rosto azul-escuro e inchado olhando para ele de cima. Isherwood
sentiu os joelhos tremerem e viu o chão vindo em sua direção. Ficou um tempo ali ajoelhado até passar a onda de enjoo. Então se levantou instável e, com a mão sobre
a boca, saiu correndo da casa em direção ao carro. E apesar de não ter percebido na hora, estava xingando o gorducho Oliver Dimbleby a cada passo.
2
VENEZA
NO COMEÇO DA MANHÃ SEGUINTE, VENEZA perdeu outra batalha em sua antiga guerra contra o mar. As marés carregaram criaturas marinhas de todos os tipos para dentro
do lobby do Hotel Cipriani e inundaram o Harry’s Bar. Turistas dinamarqueses nadavam na Piazza San Marco; mesas e cadeiras do Caffè Florian batiam contra os degraus
da basílica como escombros de um transatlântico de luxo afundado. Pela primeira vez, não se via nenhuma pomba. As mais espertas fugiram da cidade submersa em busca
de terra seca.
Havia porções de Veneza, no entanto, onde a acqua alta era mais uma chateação do que uma calamidade. Na verdade, o restaurador encontrou um arquipélago de terra
razoavelmente seca que ia da porta de seu apartamento no sestiere de Cannaregio a Dorsoduro, na parte sul da cidade. O restaurador não tinha nascido em Veneza, mas
conhecia suas passagens e praças melhor do que a maioria dos nativos. Tinha estudado seu ofício em Veneza, amado e sofrido em Veneza, e uma vez, quando era conhecido
por um nome que não era o próprio, tinha sido perseguido e expulso de Veneza por seus inimigos. Agora, depois de uma longa ausência, tinha voltado a sua adorada
cidade de água e pinturas, a única cidade onde já tinha experimentado algo parecido com felicidade. Não paz, no entanto; para o restaurador, paz era somente o período
entre uma guerra e outra. Era algo fugaz, uma falsidade. Poetas e viúvas sonhavam com isso, mas homens como o restaurador nunca se permitiam ser seduzidos pela noção
de que a paz poderia realmente ser possível.
Ele parou em um quiosque para ver se estava sendo seguido e depois continuou na mesma direção. Era um pouco mais baixo que a média — 1,72 m talvez, não mais que
isso — e tinha o físico magro de um ciclista. O rosto era comprido e estreito no queixo, com maçãs do rosto proeminentes e um nariz delgado que parecia ter sido
entalhado na madeira. Os olhos que acompanhavam tudo por baixo da aba de seu chapéu eram estranhamente verdes; os cabelos nas têmporas eram da cor das cinzas. Usava
um casaco impermeável e botas Wellington, mas não carregava nenhum guarda-chuva apesar da garoa constante. Por hábito, ele nunca aparecia em público com nenhum objeto
que pudesse impedir os movimentos rápidos de suas mãos.
Cruzou para Dorsoduro, o ponto mais alto da cidade, e abriu caminho até a Igreja de San Sebastiano. A porta da frente estava bem trancada, e havia um aviso aparentemente
oficial explicando que o prédio estaria fechado ao público até o próximo outono. O restaurador se aproximou de uma pequena porta do lado direito da igreja e a abriu
com uma pesada chave mestra. Uma brisa de ar frio vinda de dentro acariciou seu rosto. Fumaça de vela, incenso, mofo antigo: algo nesse cheiro o lembrava da morte.
Ele trancou a porta atrás de si, desviou de uma fonte cheia de água benta e entrou.
A nave estava escura e sem os bancos. O restaurador andou silenciosamente sobre as pedras desgastadas e cruzou o portão aberto do trilho do altar. A mesa eucarística
ornamentada tinha sido removida para limpeza; em seu lugar havia um andaime de alumínio com nove metros de altura. O restaurador escalou com a agilidade de um gato
doméstico e cruzou uma mortalha de lona até sua plataforma de trabalho. Suas coisas estavam exatamente como ele tinha deixado na noite anterior: frascos de produtos
químicos, uma bola de algodão, um pacote de cavilhas de madeira, uma lente de aumento, duas fortes lâmpadas halógenas, um aparelho de som portátil manchado de tinta.
O retábulo — Virgem e o Menino em Glória com Santos, de Paolo Veronese — estava como ele havia deixado, também. Era outro dos muitos quadros incríveis que Veronese
tinha produzido para a igreja entre 1556 e 1565. Sua tumba, com o ameaçador busto de mármore, estava à esquerda do presbitério. Em momentos como esse, quando a igreja
estava vazia e escura, o restaurador quase podia sentir o fantasma de Veronese observando-o trabalhar.
Ele acendeu as lâmpadas e ficou imóvel por um bom tempo na frente do retábulo. No topo estavam Maria e o Menino Jesus, sentados em cima de nuvens de glória e cercados
por anjos musicistas. Embaixo deles, olhando para cima em arrebatamento, havia um grupo de santos, incluindo o santo patrono daquela igreja, Sebastião, que Veronese
representou em martírio. Nas últimas três semanas, o restaurador tinha removido, delicadamente, o verniz rachado e amarelado com uma mistura cuidadosamente calibrada
de acetona, metil proxitol e destilados minerais. Como ele gostava de explicar, remover o verniz de um quadro barroco não era como espanar um móvel; era mais parecido
com esfregar o chão de um porta-aviões com uma escova de dente. Ele tinha primeiro que esfregar com um pedaço de algodão e uma cavilha de madeira. Depois de umedecer
o algodão com solvente, ele o aplicava na superfície da tela e girava delicadamente para não lascar a tinta ainda mais. Com cada algodão dava para limpar alguns
centímetros quadrados do quadro antes de ficar muito sujo para usar. À noite, quando não estava sonhando com sangue e fogo, ele estava removendo o verniz amarelado
de uma tela do tamanho da Piazza San Marco.
Mais uma semana, pensou, e estaria pronto para passar à segunda fase da restauração, retocar essas porções da tela onde a tinta original de Veronese estava lascada.
As figuras de Maria e do Menino Jesus estavam bem conservadas, mas o restaurador tinha descoberto várias partes prejudicadas no topo e na base da tela. Se tudo corresse
de acordo com o plano, ele terminaria a restauração quando sua esposa estivesse entrando nas semanas finais da gravidez. Se tudo corresse de acordo com o plano,
pensou de novo.
Enfiou um CD de La Bohème no aparelho de som, e um momento depois o santuário foi tomado pelas notas de abertura de “Non sono in vena”. Enquanto Rodolfo e Mimi estavam
se apaixonando em um pequeno estúdio em Paris, o restaurador estava parado sozinho em frente a um Veronese, removendo meticulosamente a sujeira da superfície e o
verniz amarelado. Ele ia trabalhando aos poucos e com um ritmo tranquilo — molhar, girar, descartar... molhar, girar, descartar... — até a plataforma ficar cheia
de bolas de algodão sujas. Veronese tinha aperfeiçoado a fórmula para pinturas que não desapareciam com o tempo; e com o restaurador removendo cada pequeno pedaço
de verniz marrom-tabaco, as cores por baixo brilhavam intensamente. Era quase como se o mestre tivesse aplicado a pintura na tela ontem em vez de quatro séculos
e meio atrás.
O restaurador tinha a igreja para si por mais duas horas. Às dez, ouviu o barulho de botas sobre o chão de pedra da nave. As botas pertenciam a Adrianna Zinetti,
limpadora de altares, sedutora de homens. Depois foi a vez de Lorenzo Vasari, um talentoso restaurador de afrescos que tinha ressuscitado quase sozinho a Última
Ceia, de Leonardo. Depois, o arrastar conspiratório de Antonio Politi, que, para sua contrariedade, era responsável pelos painéis do teto em vez do retábulo principal.
Como resultado, passava os dias deitado de costas como um Michelangelo moderno, olhando ressentido para a plataforma protegida do restaurador, no presbitério.
Não era a primeira vez que o restaurador e os outros membros da equipe trabalhavam juntos. Vários anos antes, tinham feito grandes restaurações na Igreja de San
Giovanni Crisostomo, em Cannaregio, e antes disso, na Igreja de San Zaccaria, em Castello. Na época, eles conheciam o restaurador como o brilhante, mas totalmente
reservado, Mario Delvecchio. Mais tarde, descobririam, junto com o resto do mundo, que ele era um lendário agente da inteligência israelense e assassino chamado
Gabriel Allon. Adrianna Zinetti e Lorenzo Vasari tinham conseguido perdoar a mentira de Gabriel, mas não Antonio Politi. Em sua juventude, ele já tinha acusado Mario
Delvecchio de ser um terrorista, e via Gabriel Allon da mesma maneira. Secretamente, suspeitava que fosse por causa de Gabriel que ele passava seus dias na parte
alta da nave, deitado e contorcido, isolado do contato humano, com solvente e tinta pingando em seu rosto. Os painéis mostravam a história da rainha Esther. Claro,
Politi contava a todos que quisessem ouvir, não era coincidência.
Na verdade, Gabriel não teve nada a ver com a decisão; tinha sido tomada por Francesco Tiepolo, dono da mais importante empresa de restauração no Vêneto e diretor
do projeto San Sebastiano. Uma figura que lembrava um urso com uma barba grisalha, Tiepolo era um homem de enorme apetite e paixões, capaz de grande raiva e amor
ainda maior. Quando chegou ao centro da nave, estava vestido, como de costume, com uma camisa larga estilo túnica e um lenço de seda amarrado no pescoço. A roupa
fazia com que parecesse estar supervisionando a construção da igreja em vez de sua restauração.
Tiepolo parou brevemente para dar um olhar admirado para Adrianna Zinetti, com quem já tinha tido um caso que estava entre os segredos mais mal guardados de Veneza.
Então subiu ao andaime de Gabriel e enfiou a cabeça no buraco da lona. A plataforma de madeira parecia arquear com seu grande peso.
— Cuidado, Francesco — falou Gabriel, franzindo a testa. — O chão do altar é feito de mármore e está a uma boa distância.
— Do que está falando?
— Estou falando que seria melhor se você perdesse uns quilos. Está começando a desenvolver sua própria força gravitacional.
— Para que eu perderia peso? Eu poderia perder vinte quilos e ainda seria gordo. — O italiano deu um passo adiante e examinou o altar sobre o ombro de Gabriel. —
Muito bom — falou com admiração fingida. — Se continuar nesse ritmo, terá terminado a tempo para o primeiro aniversário do seu filho.
— Posso fazer mais rápido — respondeu Gabriel — ou posso fazer direito.
— Não são coisas mutuamente exclusivas, sabe. Aqui na Itália, nossos restauradores trabalham rápido. Mas não você — acrescentou Tiepolo. — Mesmo quando estava fingindo
ser um de nós, sempre foi muito lento.
Gabriel montou uma vareta nova, molhou com solvente e girou sobre o torso de Sebastião ferido com uma flecha. Tiepolo ficou olhando intensamente por um momento;
então montou uma vareta e passou sobre o ombro do santo. O verniz amarelado dissolveu instantaneamente, expondo a pintura limpa de Veronese.
— Sua mistura de solvente é perfeita — falou Tiepolo.
— Sempre é — respondeu Gabriel.
— Qual é a solução?
— É segredo.
— Tudo precisa ser segredo com você?
Ao ver que Gabriel não responderia, Tiepolo olhou para os frascos de produtos químicos.
— Quanto de acetato metílico você usou?
— A medida exata.
Tiepolo fez uma careta.
— Não fui eu quem conseguiu trabalho para você quando sua esposa decidiu que queria passar a gravidez em Veneza?
— Sim, Francesco.
— E não paguei bem mais do que pago aos outros — sussurrou ele —, apesar de você sempre me deixar na mão quando seus mestres exigem seus serviços?
— Você sempre foi muito generoso.
— Então por que não me conta a fórmula do seu solvente?
— Porque Veronese tinha sua fórmula secreta e eu tenho a minha.
Tiepolo fez um gesto de desprezo com a mão enorme. Então jogou fora seu algodão sujo e preparou um novo.
— Recebi uma ligação da chefe de redação do New York Times de Roma ontem à noite — falou, como quem não quer nada. — Ela está interessada em fazer uma matéria sobre
a restauração na seção de artes de domingo. Quer vir aqui na sexta-feira e dar uma olhada.
— Se não se importa, Francesco, acho que vou tirar folga na sexta.
— Achei que ia falar isso. — Tiepolo olhou bem para Gabriel. — Não fica nem tentado?
— A quê?
— A mostrar ao mundo o verdadeiro Gabriel Allon. O Gabriel Allon que se importa com os trabalhos dos grandes mestres. O Gabriel Allon que pinta como um anjo.
— Só falo com jornalistas como último recurso. E nunca sonharia em conversar sobre mim.
— Você teve uma vida interessante.
— Para não dizer o pior.
— Talvez seja hora de sair de trás das sombras.
— E depois?
— Poderia passar o resto dos seus dias aqui em Veneza com a gente. Sempre foi um veneziano de coração, Gabriel.
— É tentador.
— Mas?
Com sua expressão, Gabriel deixou claro que não queria mais discutir o assunto. Então, virando-se para a tela, perguntou:
— Você recebeu alguma outra ligação que eu deveria saber?
— Só uma — respondeu Tiepolo. — O general Ferrari dos Carabinieri está vindo para a cidade esta manhã. Gostaria de conversar com você em particular.
Gabriel se virou e olhou para Tiepolo.
— Sobre o quê?
— Ele não disse. O general é muito melhor fazendo perguntas do que respondendo. — Tiepolo estudou Gabriel por um momento. — Nunca soube que você e o general eram
amigos.
— Não somos.
— Como você o conhece?
— Uma vez ele me pediu um favor e não tive escolha a não ser aceitar.
Tiepolo ficou pensativo.
— Deve ter sido aquele negócio no Vaticano há alguns anos, aquela garota que caiu da cúpula da Basílica. Se bem me lembro, você estava restaurando o Caravaggio deles
na época em que aquilo aconteceu.
— Estava?
— Esse era o boato.
— Não devia prestar atenção em boatos, Francesco. Quase sempre estão errados.
— Menos quando envolvem você. — Tiepolo respondeu com um sorriso.
Gabriel permitiu que o comentário ecoasse sem resposta nas alturas da capela. Então retomou seu trabalho. Um momento antes estava usando sua mão direita. Agora estava
usando a esquerda, com igual destreza.
— Você é como Ticiano — falou Tiepolo, observando. — Um sol entre pequenas estrelas.
— Se não me deixar em paz, o sol nunca vai terminar esse quadro.
Tiepolo não se moveu.
— Tem certeza de que você não é ele? — perguntou depois de um momento.
— Quem?
— Mario Delvecchio.
— Mario está morto, Francesco. Mario nunca existiu.
3
VENEZA
O QUARTEL REGIONAL DOS Carabinieri, a polícia militar da Itália, estava localizado no sestiere de Castello, perto do Campo San Zaccaria. O general Cesare Ferrari
saiu do prédio exatamente à uma da tarde. Ele tinha abandonado o uniforme azul com suas várias medalhas e insígnia, e estava usando um terno de executivo. Uma mão
segurava firme uma mala de aço inoxidável; a outra, a que não tinha dois dedos, estava enfiada no bolso de um sobretudo de corte impecável. Tirou a mão o suficiente
para apertar a de Gabriel. Seu sorriso foi breve e formal. Como sempre, o sorriso não teve influência sobre seu falso olho direito. Mesmo Gabriel achava difícil
aguentar aquele olhar sem vida e inflexível. Era como ser observado pelo olho que tudo vê de um deus impiedoso.
— Você está muito bem — falou o general Ferrari. — Estar de volta a Veneza obviamente lhe faz bem.
— Como soube que eu estava aqui?
O segundo sorriso do general durou um pouco mais do que o primeiro.
— Não há muitas coisas que acontecem na Itália que eu não saiba, especialmente quando dizem respeito a você.
— Como você soube? — Gabriel perguntou de novo.
— Quando você pediu permissão de nossos serviços de inteligência para voltar a Veneza, eles enviaram essa informação para todos os ministérios e divisões relevantes
das forças públicas. Um desses lugares era o palazzo.
O palazzo ao qual se referia o general estava na Piazza di Sant’Ignazio, no centro antigo de Roma. Abrigava a Divisão para a Defesa do Patrimônio Cultural, que era
mais conhecida como Esquadrão de Arte. O general Ferrari era o comandante. E estava certo sobre uma coisa, pensou Gabriel. Não havia muitas coisas acontecendo na
Itália que o general não soubesse.
Filho de professores da empobrecida região da Campânia, Ferrari há muito era visto como um dos oficiais mais competentes e bem-sucedidos da Itália. Durante a década
de 1970, uma época de atentados terroristas no país, ele ajudou a neutralizar as Brigadas Vermelhas Comunistas. Depois, durante as guerras da Máfia nos anos 1980,
serviu como comandante na divisão de Nápoles, infestada pela Camorra. A indicação era tão perigosa que a esposa e as três filhas de Ferrari foram forçadas a viver
24 horas sob proteção. O próprio Ferrari foi alvo de várias tentativas de assassinato, incluindo o ataque com uma carta bomba que lhe custou o olho e dois dedos.
O posto no Esquadrão de Arte deveria ser uma recompensa por uma carreira longa e destacada. Achavam que Ferrari ia simplesmente seguir os passos de seu apagado antecessor,
que iria mexer em uns papéis, fazer longos almoços romanos e, de vez em quando, encontrar um ou dois quadros valiosos que eram roubados todo ano dos museus italianos.
Em vez disso, ele imediatamente começou a modernizar uma unidade que já tinha sido muito eficiente, mas que tinham permitido que se atrofiasse por idade e negligência.
Poucos dias depois de sua chegada, ele demitiu metade do pessoal e logo reabasteceu os postos com jovens oficiais agressivos que conheciam um pouco de arte. Deu
uma ordem simples. Não estava muito interessado nas gangues de rua que realizavam os roubos; ele queria os peixes grandes, os chefes que traziam os bens roubados
para o mercado. Não demorou muito para que a nova abordagem de Ferrari começasse a dar frutos. Mais de uma dúzia de ladrões importantes agora estavam presos, e as
estatísticas sobre roubo de arte, apesar de ainda serem muito altas, estavam começando a melhorar.
— Então, o que o traz a Veneza? — Gabriel perguntou enquanto caminhava com o general entre os lagos temporários no Campo San Zaccaria.
— Tinha negócios no norte — lago Como, mais especificamente.
— Algo foi roubado?
— Não — respondeu o general. — Alguém foi assassinado.
— Desde quando assassinatos são da alçada do Esquadrão de Arte?
— Quando o morto tem uma conexão com o mundo da arte.
Gabriel parou de caminhar e se virou para encarar o general.
— Você ainda não respondeu minha pergunta — falou ele. — Por que está em Veneza?
— Por sua causa, é claro.
— O que um assassinato em Como tem a ver comigo?
— A pessoa que encontrou o corpo.
O general sorriu de novo, mas o olho falso estava olhando inexpressivamente para lugar nenhum. Era o olho de um homem que sabia tudo, pensou Gabriel. Um homem que
não aceitaria um não como resposta.
Entraram na igreja pela entrada principal do campo e foram até o famoso retábulo de San Zaccaria feito por Bellini. Um grupo de turistas estava parado na frente
dele enquanto um guia dava uma explicação sobre a recente restauração da pintura, sem saber que o homem que tinha feito aquilo estava entre a plateia. Até o general
Ferrari parecia interessado, apesar de que depois de um momento, seu olhar de um olho só começou a vagar. O Bellini era a obra mais importante de San Zaccaria, mas
a igreja continha vários outros quadros notáveis também, incluindo trabalhos de Tintoretto, Palma o Velho e Van Dyke. Era só um exemplo de por que os Carabinieri
mantinham uma unidade dedicada de detetives de arte. A Itália tinha sido abençoada com duas coisas em abundância: arte e criminosos profissionais. Boa parte da arte,
como a que estava naquela igreja, era mal protegida. E muitos dos criminosos estavam dispostos a roubar tudo que pudessem.
No lado oposto da nave havia uma pequena capela onde ficava a cripta de seu patrono e uma tela de um pintor veneziano de pouca expressão que ninguém tinha se importado
em limpar em mais de um século. O general Ferrari se sentou em um dos bancos, abriu sua maleta de metal e tirou uma pasta. Depois, da pasta, tirou uma foto 8x10,
que entregou a Gabriel. Mostrava um homem de meia idade pendurado pelos pulsos em um candelabro. A causa da morte não estava clara pela imagem, apesar de ser óbvio
que o homem tinha sido selvagemente torturado. O rosto era uma bagunça ensanguentada e inchada e vários pedaços de pele e carne tinham sido dilacerados do peito.
— Quem era ele? — perguntou Gabriel.
— Seu nome era James Bradshaw, mais conhecido como Jack. Era cidadão britânico, mas passava a maior parte do tempo em Como, junto com vários milhares de seus compatriotas.
— O general fez uma pausa. — Os britânicos não parecem gostar muito de viver em seu próprio país hoje em dia, não é?
— Parece que não.
— Por que será?
— Precisa perguntar a eles. — Gabriel olhou para a fotografia e piscou. — Ele era casado?
— Não.
— Divorciado?
— Não.
— Algum relacionamento?
— Parece que não.
Gabriel devolveu a fotografia ao general e perguntou o que Jack Bradshaw fazia para viver.
— Ele se descrevia como consultor.
— De que tipo?
— Trabalhou no Oriente Médio durante vários anos como diplomata. Depois se aposentou cedo e começou a trabalhar por conta própria. Aparentemente, dava consultoria
a empresas britânicas que queriam fazer negócio no mundo árabe. Devia ser bom no que fazia — acrescentou o general —, porque sua villa estava entre uma das mais
caras dessa região do lago. Também tinha uma impressionante coleção de arte e antiguidades italianas.
— O que explica o interesse do Esquadrão de Arte em sua morte.
— Parcialmente — falou o general. — Afinal, ter uma boa coleção não é crime.
— A menos que a coleção tenha sido comprada de uma forma que infrinja a lei italiana.
— Você sempre está um passo à frente de todo mundo, não é, Allon? — O general olhou para o quadro escuro pendurado na parede da capela. — Por que esse não foi limpo
na última restauração?
— Não tinham dinheiro suficiente.
— O verniz está quase totalmente opaco. — O general parou, depois acrescentou: — Exatamente como Jack Bradshaw.
— Que descanse em paz.
— Isso não é muito provável, não depois de uma morte como essa. — Ferrari olhou para Gabriel e perguntou: — Já teve a oportunidade de contemplar sua própria morte?
— Infelizmente, várias vezes. Mas se não se importa, preferia conversar sobre os hábitos de colecionador de Jack Bradshaw.
— O falecido sr. Bradshaw tinha a reputação de comprar quadros que não estavam realmente à venda.
— Quadros roubados?
— São suas palavras, meu amigo. Não minhas.
— Você o estava seguindo?
— Digamos que o Esquadrão de Arte monitorava suas atividades o melhor que podíamos.
— Como?
— Das formas de sempre — respondeu o general, de forma evasiva.
— Suponho que seus homens estejam fazendo um inventário completo da coleção dele.
— Nesse exato momento.
— E?
— Até agora não encontraram nada de nosso banco de dados de obras perdidas ou roubadas.
— Então acho que você terá de retirar todas as coisas horríveis que disse sobre Jack Bradshaw.
— Só porque não há provas, não quer dizer que não seja verdade.
— Fala como um verdadeiro policial italiano.
Ficou claro pela expressão do general Ferrari que ele interpretou o comentário de Gabriel como um elogio. Depois de um momento, falou:
— Ouvimos outras coisas sobre o falecido Jack Bradshaw.
— Que tipo de coisas?
— Que ele não era apenas um colecionador privado, que estava envolvido na exportação ilegal de quadros e outras obras de arte de solo italiano. — O general baixou
a voz e acrescentou: — O que explica por que seu amigo Julian Isherwood está metido em grandes problemas.
— Julian Isherwood não trabalha com arte roubada.
O general nem se preocupou em responder. Para ele, todos os negociantes de arte eram culpados de algo.
— Onde ele está? — perguntou Gabriel.
— Sob minha custódia.
— Ele foi acusado de algo?
— Ainda não.
— De acordo com a lei italiana, não podem detê-lo por mais de 48 horas sem apresentá-lo a um juiz.
— Ele foi encontrado com um cadáver. Vou pensar em algo.
— Você sabe que Julian não teve nada a ver com o assassinato de Bradshaw.
— Não se preocupe — respondeu o general. — Não tenho intenção de apresentar nenhuma acusação nesse momento. Mas se viesse a público que seu amigo ia se encontrar
com um conhecido contrabandista, sua carreira estaria terminada. Veja, Allon, no mundo da arte, percepção é realidade.
— O que tenho de fazer para manter o nome de Julian fora dos jornais?
O general não respondeu imediatamente; estava esquadrinhando a fotografia do corpo de Jack Bradshaw.
— Por que você acha que ele foi torturado antes de morrer? — perguntou finalmente.
— Talvez porque devesse dinheiro.
— Talvez — concordou o general. — Ou talvez ele tivesse algo que os assassinos queriam, algo mais valioso.
— Você ia me falar o que tenho que fazer para salvar meu amigo.
— Descubra quem matou Jack Bradshaw. E o que estavam procurando.
— E se me recusar?
— O mundo da arte de Londres vai ser tomado por terríveis boatos.
— Você é um chantagista barato, general Ferrari.
— Chantagem é uma palavra feia.
— É — falou Gabriel. — Mas no mundo da arte, percepção é realidade.
4
VENEZA
GABRIEL CONHECIA UM BOM RESTAURANTE perto da igreja, em uma esquina tranquila de Castello onde os turistas raramente se aventuravam. O general Ferrari pediu muita
comida; Gabriel ficou mexendo em seu prato e tomou um pouco de água mineral com limão.
— Não está com fome? — perguntou o general.
— Estava esperando passar mais umas horas com meu Veronese essa tarde.
— Então deveria comer algo. Vai precisar de energia.
— Não funciona assim.
— Não come quando está restaurando?
— Café e um pouco de pão.
— Que tipo de dieta é essa?
— O tipo que permite me concentrar.
— Não me espanta que esteja tão magro.
O general Ferrari foi até a bandeja de antepastos e encheu seu prato pela segunda vez. Não havia mais ninguém no restaurante, a não ser o dono e sua filha, uma garota
bonita de cabelo escuro com 12 ou 13 anos. A criança tinha uma semelhança incrível com a filha de Abu Jihad, o segundo em comando da OLP, que Gabriel, em uma noite
quente de primavera em 1988, tinha assassinado em sua casa em Túnis. O assassinato tinha sido realizado no escritório de Abu Jihad no segundo andar, onde ele estava
assistindo a vídeos da intifada palestina. A garota tinha assistido a tudo: dois tiros imobilizadores no peito, dois tiros fatais na cabeça, tudo sob a música da
rebelião árabe. Gabriel não conseguia mais se lembrar do rosto de Abu Jihad, mas o retrato da jovem garota, serena, mas fervendo de raiva, ficou pendurado com destaque
na sala de exposição de sua memória. Quando o general voltou a sua cadeira, Gabriel apagou o rosto dela com uma camada de tinta. Então se inclinou para frente sobre
a mesa e perguntou:
— Por que eu?
— Por que não você?
— Devo começar com os motivos óbvios?
— Se achar melhor.
— Não sou um policial italiano. Na verdade, sou exatamente o contrário.
— Tem um longo histórico aqui na Itália.
— Nem sempre agradável.
— Verdade — concordou o general. — Mas pelo caminho, fez contatos importantes. Você tem amigos em lugares de prestígio como o Vaticano. E, talvez mais crucial, tem
amigos em lugares ruins, também. Conhece o país de uma ponta a outra, fala nossa língua como um nativo e está casado com uma italiana. Praticamente é um dos nossos.
— Minha esposa não é mais italiana.
— Que língua falam em casa?
— Italiano — admitiu Gabriel.
— Mesmo quando estão em Israel?
Gabriel assentiu.
— Caso encerrado. — O general ficou em silêncio, pensativo. — Isso pode surpreendê-lo — falou, finalmente —, mas quando um quadro some, ou alguém se machuca, eu
normalmente tenho uma boa ideia de quem está por trás. Temos mais de cem informantes em nossa folha de pagamentos e grampeamos mais telefones e contas de e-mail
que a NSA. Quando algo acontece no lado criminoso do mundo da arte, sempre há rumores. Como vocês dizem no negócio do contraterrorismo, as luzes se acendem.
— E agora?
— O silêncio está ensurdecedor.
— O que você acha que isso quer dizer?
— Quer dizer que, mais provavelmente, os homens que mataram Jack Bradshaw não são da Itália.
— Algum palpite de onde são?
— Não — falou o general, balançando a cabeça devagar —, mas o nível de violência me preocupa. Já vi muitos corpos durante minha carreira, mas esse foi diferente.
As coisas que fizeram com Jack Bradshaw foram... — Sua voz falhou um pouco, até sair: — Medievais.
— E agora você quer que eu lide com essa gente.
— Até onde sei você é um homem que sabe como se cuidar.
Gabriel ignorou o comentário.
— Minha esposa está grávida. Não posso deixá-la sozinha.
— Vamos ficar de olho nela. — O general baixou a voz e acrescentou: — Já estamos.
— É bom saber que o governo italiano está nos espionando.
— Não esperava outra coisa, não é?
— Claro que não.
— Foi o que pensei. Além disso, Allon, é para seu próprio bem. Você tem muitos inimigos.
— E agora quer que eu faça mais um.
O general soltou o garfo e olhou contemplativo pela janela da mesma forma que Doge Leonardo Loredan, de Bellini.
— É meio irônico — falou depois de um momento.
— O que é irônico?
— Que um homem como você escolhesse morar em um gueto.
— Na verdade, eu não moro no gueto.
— Bastante perto — falou o general.
— É um bom bairro, o melhor de Veneza, se quiser minha opinião.
— Está cheio de fantasmas.
Gabriel olhou de relance para a garotinha.
— Não acredito em fantasmas.
O general limpou, cético, o canto da boca.
— Como funcionaria? — perguntou Gabriel.
— Considere-se um dos meus informantes.
— E o que isso quer dizer?
— Aprofunde-se no submundo da arte e descubra quem matou Jack Bradshaw. Eu cuido do resto.
— E se eu não encontrar nada?
— Tenho certeza de que vai encontrar.
— Isso parece uma ameaça.
— Parece?
O general não falou mais nada. Gabriel suspirou profundamente.
— Vou precisar de algumas coisas.
— Tipo quais?
— O de sempre — respondeu Gabriel. — Registros de telefone, cartões de crédito, e-mails, históricos de navegação na internet e uma cópia do HD de seu computador.
O general apontou para sua maleta.
— Está tudo aí — falou —, junto com todos os piores rumores que já ouvimos sobre ele.
— Também vou precisar dar uma olhada em sua villa e coleção.
— Darei uma cópia do inventário quando estiver completo.
— Não quero um inventário. Quero ver os quadros.
— Certo — falou o general. — Algo mais?
— Suponho que alguém deveria falar a Francesco Tiepolo que vou sair de Veneza por alguns dias.
— E à sua esposa, também.
— É — falou Gabriel, distante.
— Talvez fosse melhor dividir o trabalho. Eu falo com Francesco, você fala com sua esposa.
— Alguma chance de trocarmos?
— Infelizmente, não. — O general levantou sua mão direita, a que não tinha dois dedos. — Já sofri o suficiente.
Só faltava resolver a situação de Julian Isherwood. Como tinham dito, ele estava no quartel regional dos Carabinieri, em uma sala sem janelas que não era exatamente
uma cela, mas tampouco uma sala de espera. A entrega aconteceu na Ponte della Paglia, sob a vista da ponte dos Suspiros. O general não parecia irritado por se livrar
do prisioneiro. Ele ficou na ponte, com sua mão defeituosa enfiada no bolso do casaco e o olho falso sem piscar, enquanto Gabriel e Isherwood caminharam por Molo
San Marco até o Harry’s Bar. Isherwood bebeu dois Bellinis muito rápido enquanto Gabriel tratava em silêncio dos preparativos para a viagem. Havia um voo da British
Airways saindo de Veneza às seis daquela tarde, chegando em Heathrow alguns minutos depois das sete.
— Isso me deixa com tempo suficiente — falou Isherwood de modo sombrio — para matar Oliver Dimbleby e chegar em casa para assistir ao News at Ten.
— Como seu representante informal nesse assunto — falou Gabriel —, eu o aconselho a não fazer isso.
— Acha que eu deveria esperar até de manhã antes de matar o Oliver?
Gabriel sorriu contra a própria vontade.
— O general foi generoso ao concordar em manter seu nome fora disso — falou ele. — Se eu fosse você, não diria nada em Londres sobre seu breve encontro com a polícia
italiana.
— Não foi tão breve assim — falou Isherwood. — Não sou como você, meu querido. Não estou acostumado a passar noites na cadeia. E claro que não estou acostumado a
encontrar gente morta. Meu Deus, você deveria ter visto o cara. Estava cortado como um filé.
— Mais um motivo para não contar nada quando chegar em casa — disse Gabriel. — A última coisa que você vai querer é que os assassinos de Jack Bradshaw vejam seu
nome nos jornais.
Isherwood mordeu o lábio e assentiu lentamente, concordando.
— O general parece pensar que Bradshaw estava contrabandeando quadros roubados — falou depois de algum tempo. — Também parece achar que eu estava fazendo negócios
com ele. Ele me assustou muito.
— E você estava, Julian?
— Fazendo negócios com Jack Bradshaw?
Gabriel assentiu.
— Não vou nem responder isso.
— Eu tinha que perguntar.
— Fiz muitas coisas feias durante minha carreira, normalmente por ordem sua. Mas eu nunca, e enfatizo nunca, vendi um quadro que soubesse que tinha sido roubado.
— E um quadro contrabandeado?
— Defina contrabandeado — falou Isherwood com um sorriso travesso.
— E o Oliver?
— Está me perguntando se Oliver Dimbleby está vendendo quadros roubados?
— Acho que sim.
Isherwood teve que pensar por um momento antes de responder.
— Eu não duvidaria muito do que Oliver Dimbleby é capaz de fazer — falou finalmente. — Mas não, não acredito que esteja negociando quadros roubados. Foi tudo um
caso de azar e momento errado.
Isherwood chamou o garçom e pediu outro Bellini. Estava finalmente começando a relaxar.
— Tenho de admitir — falou ele —, você era a última pessoa do mundo que esperava ver hoje.
— O sentimento é mútuo, Julian.
— Imagino que você e o general sejam amigos.
— Trocamos nossos cartões de visita.
— Ele é uma das criaturas mais desagradáveis que já conheci.
— Ele não é tão ruim depois de o conhecer melhor.
— Quanto ele sabe sobre o nosso relacionamento?
— Ele sabe que somos amigos e que limpei alguns quadros para você. E se fosse adivinhar — acrescentou Gabriel —, ele provavelmente sabe sobre suas conexões com o
Boulevard Rei Saul.
O Boulevard Rei Saul era o endereço do serviço de inteligência estrangeira de Israel. Um nome comprido e enganador que tinha muito pouco a ver com a verdadeira natureza
de seu trabalho. Quem trabalhava lá chamava de Escritório e nada mais. Era assim que Julian Isherwood o chamava. Ele não era um empregado direto do Escritório; era
membro do sayanim, uma rede global de ajudantes voluntários. Eram banqueiros que forneciam dinheiro aos agentes do Escritório em emergências; médicos que faziam
tratamento em segredo quando se feriam; donos de hotéis que forneciam quartos sob nomes falsos e empresas de aluguel de carros que forneciam veículos que não deixavam
traços. Isherwood tinha sido recrutado na metade dos anos 1970, durante uma onda de ataques terroristas palestinos contra alvos israelenses na Europa. Ele só tinha
uma missão — ajudar na construção e manutenção da operação secreta de um jovem restaurador de arte e assassino chamado Gabriel Allon.
— Acho que minha liberação não foi gratuita — disse Isherwood.
— Não — respondeu Gabriel. — Na verdade, foi bem cara.
— Quanto?
Gabriel contou.
— Ruim para seu período sabático em Veneza — disse Isherwood. — Parece que arruinei tudo.
— É o mínimo que posso fazer, Julian. Tenho uma grande dívida com você.
Isherwood sorriu melancólico.
— Quanto tempo faz? — perguntou.
— Cem anos.
— E agora você vai ser pai de novo, e de gêmeos. Nunca achei que viveria para ver esse dia.
— Nem eu.
Isherwood olhou para Gabriel.
— Você não parece muito animado com a perspectiva de ter filhos.
— Não seja ridículo.
— Mas?
— Estou velho, Julian. — Gabriel parou, depois acrescentou: — Talvez velho demais para começar outra família.
— A vida lhe deu péssimas cartas, meu rapaz. Você tem direito a um pouco de felicidade na velhice. Devo admitir que sinto um pouco de inveja. Está casado com uma
jovem bonita que vai lhe dar duas lindas crianças. Gostaria de estar no seu lugar.
— Cuidado com o que deseja.
Isherwood bebeu devagar seu Bellini, mas não disse nada.
— Não é tarde demais, você sabe.
— Para ter filhos? — perguntou ele incrédulo.
— Para encontrar alguém para passar o resto da sua vida.
— Infelizmente, já passei da data de validade — respondeu Isherwood. — Nesse momento, estou casado com minha galeria.
— Venda a galeria — falou Gabriel. — Aposente-se numa villa no sul da França.
— Ficaria louco em uma semana.
Eles saíram do bar e caminharam um pouco até o Grand Canal. Um largo barco táxi de madeira brilhou na ponta do cais lotado. Isherwood pareceu relutar na hora de
entrar.
— Se eu fosse você — falou Gabriel —, sairia da cidade antes que o general mude de ideia.
— Bom conselho — respondeu Isherwood. — Posso lhe dar um também?
Gabriel ficou em silêncio.
— Diga ao general para encontrar outra pessoa.
— Infelizmente, é muito tarde para isso.
— Então, tome muito cuidado. E não banque o herói de novo. Você tem coisas mais importantes na sua vida.
— Vai perder seu avião, Julian.
Isherwood entrou cambaleante no barco táxi. Enquanto se afastava do cais, virou-se para Gabriel e gritou:
— O que digo para o Oliver?
— Vai pensar em algo.
— É — falou Isherwood. — Eu sempre penso.
Entrou na cabine e desapareceu.
5
VENEZA
GABRIEL TRABALHOU NO Veronese até as janelas da nave escurecerem com o entardecer. Então ligou para Francesco Tiepolo em seu telefonino e deu a notícia de que tinha
que resolver um assunto particular para o general Cesare Ferrari dos Carabinieri. Não entrou em detalhes.
— Quanto tempo você vai precisar? — perguntou Tiepolo.
— Um ou dois dias — respondeu Gabriel. — Talvez um mês.
— O que digo para os outros?
— Diga que morri. Vai deixar o Antonio alegre.
Gabriel arrumou sua plataforma de trabalho com mais cuidado do que o normal e saiu na noite fria. Seguiu sua rota para o norte, como sempre, cruzando San Polo e
Cannaregio, até chegar a uma ponte de ferro, a única ponte de ferro em toda Veneza. Na Idade Média, havia um portão no centro da ponte, e à noite um vigia cristão
ficava de guarda para evitar que quem estivesse preso do outro lado não pudesse escapar. Agora a ponte estava vazia exceto por uma gaivota que olhava de forma maligna
para Gabriel enquanto ele passava.
Entrou em um sottoportego escuro. No final da passagem, abria-se uma ampla praça à sua frente, o Campo di Ghetto Nuovo, o coração do antigo gueto de Veneza. Ele
cruzou a praça e parou na porta do número 2899. Uma pequena placa de latão dizia COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Ele tocou a campainha
e, então, instintivamente, afastou o rosto da câmera de segurança.
— Posso ajudar? — perguntou uma familiar voz feminina em italiano.
— Sou eu.
— Eu, quem?
— Abra a porta, Chiara.
Ouviu um zumbido e a se fechadura abrindo. Gabriel entrou por uma passagem apertada e seguiu até outra porta, que abriu automaticamente quando ele se aproximou.
Dava para uma pequena sala, onde Chiara estava sentada empertigada atrás de uma mesa arrumada. Estava usando um suéter branco de inverno, leggings coloridas e um
par de botas de couro. Seu cabelo ruivo despenteado caía sobre os ombros e o cachecol de seda que Gabriel tinha comprado na ilha de Córsega. Resistiu ao impulso
de beijar sua boca ampla. Não achou apropriado expressar afeto físico na presença da recepcionista do rabino chefe de Veneza, mesmo porque a recepcionista também
era a filha devota do rabino.
Chiara estava prestes a falar algo, mas foi interrompida pelo toque do telefone. Gabriel se sentou na ponta de sua mesa e ouviu como ela resolvia uma pequena crise
afligindo uma comunidade cada vez menor de crentes. Ela se parecia muito com a linda jovem que ele tinha conhecido, dez anos antes, quando tinha ligado para o rabino
Jacob Zolli pedindo informações sobre o destino dos judeus italianos durante a Segunda Guerra Mundial. Gabriel não sabia no momento que Chiara era uma agente da
inteligência israelense ou que tinha sido enviada pelo Boulevard Rei Saul para espioná-lo durante a restauração do retábulo de San Zaccaria. Ela contou tudo pouco
tempo depois em Roma, após um incidente envolvendo um tiroteio e a polícia italiana. Escondido com Chiara em um apartamento seguro, Gabriel quis desesperadamente
tocá-la. Esperou até o caso estar resolvido e voltarem a Veneza. Ali, numa casa no canal de Cannaregio, tinham feito amor pela primeira vez, em uma cama com lençóis
limpos. Foi como fazer amor com uma figura pintada pela mão de Veronese.
No dia do primeiro encontro deles, Chiara tinha oferecido café. Ela não bebia mais café, só água e suco de fruta, bebericando diretamente de uma garrafa plástica
que sempre carregava consigo. Era o único sinal externo de que, depois de uma longa batalha contra a infertilidade, ela estava finalmente grávida de gêmeos. Tinha
jurado não resistir ao inevitável aumento de peso com dietas ou exercícios, que via como outra obsessão imposta sobre o mundo pelos norte-americanos. Chiara era
veneziana de coração e os venezianos não usavam aparelhos cardiovasculares ou levantamento de peso para aumentar seus músculos. Eles comiam e bebiam bem, faziam
amor e quando precisavam de um pouco de exercício, passeavam pelas areias do Lido ou caminhavam até Zattere para tomar um sorvete.
Ela desligou o telefone e olhou para ele. Seus olhos eram da cor de caramelo com manchas douradas, uma combinação que Gabriel nunca tinha sido capaz de reproduzir
perfeitamente na tela. No momento, estavam muito brilhantes. Estava feliz, ele pensou, mais feliz do que ele já tinha visto antes. De repente, ele não teve coragem
de contar que o general Ferrari tinha aparecido como uma enchente para estragar tudo.
— Como está se sentindo? — perguntou ele.
Ela girou os olhos e tomou um gole de sua garrafa de água plástica.
— Falei algo errado?
— Você não precisa me perguntar como estou me sentindo o tempo todo.
— Quero que saiba que estou preocupado com você.
— Sei que está preocupado, querido. Mas não estou com uma doença terminal, estou apenas grávida.
— O que deveria perguntar?
— Deveria me perguntar o que quero jantar.
— Estou faminto — falou ele.
— Estou sempre faminta.
— Vamos comer fora?
— Na verdade, estou com vontade de cozinhar.
— Você pode fazer isso?
— Gabriel!
Ela começou a arrumar os papéis em sua mesa. Não era um bom sinal. Chiara sempre arrumava as coisas quando estava brava.
— Como foi no trabalho? — perguntou ela.
— Cheio de animação.
— Não me diga que está entediado com o Veronese.
— Remover verniz sujo não é a parte mais recompensadora de uma restauração.
— Sem surpresas?
— Com o quadro?
— Em geral — perguntou ela.
Era uma pergunta estranha.
— Adrianna Zinetti veio trabalhar vestida como Groucho Marx — respondeu Gabriel —, mas tirando isso foi um dia normal na Igreja de San Sebastiano.
Chiara franziu a testa. Em seguida, abriu uma gaveta com a ponta de sua bota e sem pensar enfiou uns papéis em uma pasta. Gabriel não ficaria surpreso se os papéis
não tivessem nenhuma relação com os outros que já estavam arquivados.
— Tem algo a incomodando? — perguntou ele.
— Você não vai me perguntar como estou me sentindo de novo, vai?
— Nem sonharia em fazer isso.
Ela fechou a gaveta com mais força do que o necessário.
— Fui até a igreja na hora do almoço para fazer uma surpresa — disse ela depois de um momento —, mas você não estava. Francesco disse que recebeu um visitante. Afirmou
não saber quem era.
— E você sabia que Francesco estava mentindo, claro.
— Não precisa ser uma agente da inteligência treinada para ver isso.
— Continue — falou Gabriel.
— Liguei para a Mesa de Operações para ver se alguém do Boulevard Rei Saul estava na cidade, mas a Mesa de Operações me disse que ninguém estava procurando por você.
— Que novidade.
— Quem veio vê-lo hoje, Gabriel?
— Isso está começando a parecer um interrogatório.
— Quem era? — perguntou ela de novo.
Gabriel levantou a mão direita e depois abaixou dois dedos.
— O general Ferrari?
Gabriel assentiu. Chiara olhou para a mesa como se estivesse procurando algo fora do lugar.
— Como está se sentindo? — perguntou Gabriel, com a voz baixa.
— Estou bem — respondeu ela sem olhar para ele. — Mas se você fizer essa pergunta mais uma vez...
Era verdade que Gabriel e Chiara não viviam realmente no antigo gueto de Veneza. O apartamento alugado deles estava no segundo andar de um antigo palazzo, em um
quarteirão silencioso de Cannaregio onde os judeus nunca tinham sido proibidos de entrar. De um lado havia uma praça silenciosa; do outro estava um canal onde o
Boulevard Rei Saul mantinha um barco pequeno e rápido, caso Gabriel precisasse fugir de Veneza pela segunda vez em sua carreira. Tel Aviv tinha bons motivos para
temer por sua segurança; depois de muitos anos de resistência, ele tinha concordado em se tornar o próximo chefe do Escritório. Faltava um ano para começar seu período.
Depois disso, cada momento acordado seria devotado a proteger o Estado de Israel daqueles que queriam destruí-lo. Não haveria mais restaurações ou longas estadias
em Veneza com sua linda e jovem esposa — pelo menos, não sem um exército de guarda-costas cuidando deles.
O apartamento possuía um sofisticado sistema de segurança, que fazia um barulho acolhedor quando Gabriel abria a porta. Ao entrar, ele tirou a rolha de uma garrafa
de Bardolino e se sentou ao balcão da cozinha, ouvindo as notícias da BBC, enquanto Chiara preparava um prato de bruschetta. Um painel da ONU tinha previsto um aquecimento
apocalíptico do clima global, um carro-bomba tinha matado quarenta pessoas em um bairro xiita de Bagdá e o presidente sírio, o carniceiro de Damasco, tinha usado
mais uma vez armas químicas contra seu próprio povo. Chiara franziu a testa e desligou o rádio. Então olhou com vontade para a garrafa de vinho aberta. Gabriel sentiu
pena dela. Chiara sempre adorava beber um Bardolino na primavera.
— Não vai fazer mal a eles se der apenas um gole — falou ele.
— Minha mãe nunca tocou em vinho quando estava grávida de mim.
— E olha como você saiu.
— Perfeita em todos os sentidos.
Ela sorriu e colocou a bruschetta na frente de Gabriel. Ele pegou duas fatias — uma com azeitonas cortadas, a outra com feijão branco e alecrim — e jogou um pouco
de Bardolino por cima. Chiara tirou a casca de uma cebola e com rápidos movimentos da faca a transformou em uma pilha de perfeitos cubinhos brancos.
— É melhor tomar cuidado — falou Gabriel, olhando para ela — ou vai terminar como o general.
— Não me dê ideias.
— O que eu deveria falar para ele, Chiara?
— Poderia ter falado a verdade.
— Qual versão da verdade?
— Você tem um ano até fazer seu juramento, querido. Depois disso, estará às ordens do primeiro-ministro, e a segurança do Estado será sua responsabilidade. Sua vida
será uma longa reunião intercalada por uma crise ocasional.
— E foi por isso que eu recusei o cargo várias vezes antes de finalmente aceitar.
— Mas agora é seu. E esta é sua última chance de tirar algum tempo, merecido, de férias antes de voltar a Israel.
— Tentei explicar isso ao general sem entrar em todos os detalhes sórdidos. Foi quando ele ameaçou deixar Julian apodrecendo numa cela de prisão italiana.
— Ele não tinha nada contra Julian. Estava blefando.
— Pode ser verdade — concordou Gabriel. — Mas e se algum repórter britânico decidisse fazer alguma pesquisa sobre o passado de Julian? E se o mesmo repórter descobrisse,
de alguma forma, que ele estava ligado ao Escritório? Eu nunca me perdoaria se ele fosse arrastado para a lama. Sempre me ajudou quando precisei.
— Lembra-se de quando você pediu para ele cuidar do gato daquele desertor russo?
— Como poderia esquecer? Nunca imaginei que Julian fosse alérgico a gatos. Ele ficou se coçando por um mês.
Chiara sorriu. Ela colocou a cebola em uma frigideira pesada com azeite de oliva e manteiga, cortou rapidamente uma cenoura e colocou tudo no fogo.
— O que está fazendo?
— É um prato local de carne chamado calandraca.
— Onde você aprendeu a fazer?
Chiara olhou para o teto, como se dissesse que o conhecimento estava no ar e na água da Itália. Não estava longe da verdade.
— Como posso ajudar? — perguntou Gabriel.
— Pode parar de ficar me espiando.
Gabriel levou o prato de bruschetta e o vinho para a pequena sala de estar. Antes de se sentar no sofá, tirou a arma das costas e a colocou com cuidado na mesinha
de café, em cima de uma pilha de revistas coloridas que tratavam de gravidez e parto. A arma era uma Beretta 9 mm, e seu cabo de nogueira estava manchado de tinta:
uma pincelada de Ticiano, um pouco de Bellini, uma gota de Rafael e Tintoretto. Logo ele não carregaria mais uma arma; outros iriam carregar armas por ele. Imaginou
como seria andar pelo mundo desarmado. Seria o mesmo, pensou, que sair de casa sem colocar as calças antes. Alguns homens usavam gravata quando iam ao escritório.
Gabriel Allon carregava uma arma.
— Ainda não entendo por que o general precisa de você para encontrar quem matou Jack Bradshaw — gritou Chiara da cozinha.
— Parece que ele pensa que estavam procurando algo — respondeu Gabriel, folheando uma das revistas. — Ele gostaria que eu encontrasse antes que eles.
— Procurando o quê?
— Ele não foi específico, mas suspeito que sabe mais do que está dizendo.
— Normalmente é assim.
Chiara colocou cubos de carne de vitela levemente passados na farinha dentro da frigideira e logo o apartamento estava tomado pelo cheiro da carne tostando. Em seguida,
acrescentou um pouco de molho de tomate, vinho branco e ervas que ela media na palma da mão. Gabriel viu as luzes de um barco passando lentamente pelas águas escuras
do canal. Então, cuidadoso, contou a Chiara que planejava ir ao lago Como logo pela manhã.
— Quando vai voltar? — perguntou ela.
— Isso depende.
— Do quê?
— Do que encontrar dentro da villa de Jack Bradshaw.
Chiara estava cortando batatas sobre uma tábua. Por causa do barulho da faca, quase não deu para ouvir sua declaração de que tinha a intenção de acompanhá-lo. Gabriel
se afastou da janela e olhou bravo para ela.
— O que foi? — perguntou ela depois de um momento.
— Você não vai a lugar nenhum — respondeu ele afinal.
— É o lago Como. O que poderia acontecer?
— Posso dar alguns exemplos?
Chiara ficou em silêncio. Gabriel se virou para olhar de novo o barco subindo o canal, mas em seus pensamentos estavam as imagens de uma longa e turbulenta carreira.
Era uma carreira, estranhamente, que o tinha levado a alguns dos cenários mais glamorosos da Europa. Ele tinha assassinado pessoas em Cannes e Saint-Tropez e lutado
por sua vida nas ruas de Roma e nas montanhas da Suíça. E certa vez, muitos anos antes, tinha perdido a esposa e um filho em um atentado de carro-bomba em uma rua
pitoresca do Primeiro Distrito de Viena. Não, pensou agora, Chiara não iria acompanhá-lo ao lago Como. Ele a deixaria em Veneza, sob os cuidados de sua família e
sob a proteção da polícia italiana. E que Deus ajude o general se ele permitir que algo aconteça com ela.
Chiara cantava baixinho, umas daquelas bobas canções pop italianas que ela adorava tanto. Acrescentou as batatas cortadas à panela, abaixou o fogo e foi para a sala
de estar com Gabriel. O arquivo do general Ferrari sobre Jack Bradshaw estava na mesa de café, próximo à Beretta. Ela o pegou, mas Gabriel a impediu; não queria
que visse o desastre que os assassinos de Jack Bradshaw tinham feito no seu corpo. Ela encostou a cabeça no ombro dele. Seu cabelo tinha cheiro de baunilha.
— Quanto tempo demora para a calandraca ficar pronta? — perguntou Gabriel.
— Mais ou menos uma hora.
— Não consigo esperar tanto.
— Coma outra bruschetta.
Ele comeu. Chiara também. Então, ela levou a taça de Bardolino até o nariz, mas não bebeu.
— Não vai fazer mal a eles se tomar apenas um gole.
Ela devolveu a taça para a mesa e colocou a mão sobre a barriga. Gabriel colocou a mão perto da dela, e por um instante achou que tinha detectado a leve palpitação
de dois coraçõezinhos. São meus, pensou, segurando-os bem apertados. E que Deus ajude o homem que tentar fazer algum mal a eles.
6
LAGO COMO, ITÁLIA
NA MANHÃ SEGUINTE, OS MORADORES DO Reino Unido acordaram com a notícia de que um de seus compatriotas, o empresário expatriado James “Jack” Bradshaw, tinha sido
brutalmente assassinado em sua villa às margens do lago Como. As autoridades italianas citaram latrocínio como um motivo possível, apesar de não terem provas de
que algo havia sido roubado. O nome do general Ferrari não apareceu na cobertura; nem havia nenhuma menção de que Julian Isherwood, o conhecido comerciante de arte
de Londres, tinha descoberto o corpo. Todos os jornais esforçaram-se ao máximo para encontrar alguém que tivesse uma palavra gentil para falar sobre Bradshaw. O
The Times conseguiu desenterrar um velho colega do Ministério de Relações Exteriores que o descreveu como “um bom funcionário”, mas fora isso parecia que a vida
de Bradshaw não merecia homenagens. A fotografia que apareceu na BBC parecia ter pelo menos vinte anos. Mostrava um homem que não gostava de aparecer em fotos.
Havia outro fato importante que não apareceu na cobertura do assassinato de Jack Bradshaw: Gabriel Allon, o lendário, apesar de caprichoso, filho da inteligência
israelense, tinha sido silenciosamente cooptado pelo Esquadrão de Arte para investigar o caso. Sua investigação começou às sete e meia quando inseriu um pendrive
de alta capacidade em seu notebook. Entregue pelo general Ferrari, o pendrive continha todo o conteúdo do computador pessoal de Jack Bradshaw. A maioria dos documentos
era relacionada à sua empresa, a Meridian Global Consulting Group — um nome curioso, pensou Gabriel, pois a empresa parecia não ter outros empregados. O flash drive
continha mais de vinte mil documentos. Além disso, havia milhares de números de telefones e endereços de e-mail que tinham de ser verificados e cruzados. Era muito
material para Gabriel examinar sozinho. Ele precisava de um assistente, um pesquisador experiente que sabia algo de questões criminais e, preferencialmente, de arte
italiana.
— Eu? — perguntou Chiara incrédula.
— Tem alguma ideia melhor?
— Tem certeza de que quer que eu responda?
Gabriel não falou nada. Dava para ver que algo nessa ideia interessou Chiara. Ela adorava resolver quebra-cabeças e problemas.
— Seria mais fácil se eu pudesse cruzar os números de telefone e endereços de e-mail com os computadores do Boulevard Rei Saul — falou ela, depois de pensar um momento.
— Claro que sim — respondeu Gabriel. — Mas a última coisa que quero fazer é contar ao Escritório que estou investigando um caso para os italianos.
— Eles vão acabar descobrindo. Sempre descobrem.
Gabriel copiou os arquivos de Bradshaw para o HD do notebook e ficou com o pendrive. Depois, fez uma pequena mala com duas mudas de roupa e dois kits de identidade
enquanto Chiara tomava banho e se vestia para trabalhar. Ele a acompanhou até o gueto, e nos degraus do centro comunitário colocou sua mão na barriga dela uma última
vez. Ao sair, não deixou de notar o jovem italiano de boa aparência tomando café no bar kosher. Ligou para o general Ferrari no palazzo em Roma. O general confirmou
que o jovem italiano era um oficial dos Carabinieri especializado em proteção pessoal.
— Não dava para ter colocado alguém para vigiar minha esposa que não parecesse uma estrela de cinema?
— Não me diga que o grande Gabriel Allon está com ciúmes.
— Só quero que garanta que nada vai acontecer com ela. Está me ouvindo?
— Só tenho um olho — respondeu o general —, mas ainda tenho os dois ouvidos, e eles funcionam muito bem.
Como muitos venezianos, temporários ou não, Gabriel mantinha um carro, um sedã Volkswagen, em uma garagem perto da Piazzale Roma. Ele cruzou a ponte até o continente
e depois pegou a autostrada. Quando o trânsito diminuiu, apertou o acelerador e viu o ponteiro do velocímetro subir até cem. Durante semanas ele tinha se arrastado
pela vida de um lado para o outro. Agora, o ruído de um motor de combustão interna dava, de repente, um enorme prazer cheio de culpa. Ele levou o carro até o limite
e viu com satisfação os campos do pântano do Veneto passarem por sua janela em um borrão verde e castanho.
Acelerou para o oeste, passando por Pádua, Verona e Bérgamo, e chegou perto de Milão trinta minutos mais cedo do que tinha imaginado. Dali, dirigiu-se ao norte para
Como; e então seguiu a borda sinuosa do lago até chegar ao portão da villa de Jack Bradshaw. Através das barras dava para ver um carro sem identificação dos Carabinieri
estacionado no pátio. Ligou para o general em Roma, contou onde estava e rapidamente desligou. Trinta segundos depois, o portão se abriu.
Gabriel entrou devagar pelo caminho, em direção à casa de um homem cuja vida tinha sido resumida em uma única linha vazia. “Um bom funcionário...” Ele tinha certeza
apenas de uma coisa, que Jack Bradshaw, diplomata aposentado, consultor de empresas em atividade no Oriente Médio e colecionador de arte italiana, tinha sido um
mentiroso profissional. Sabia disso porque também era um mentiroso. Portanto, quando saiu de seu carro, sentiu certa proximidade com o homem cuja vida estava a ponto
de revirar. Não vinha como inimigo, mas como amigo, a ferramenta perfeita para um trabalho desagradável. Na morte, não há segredos, pensou enquanto cruzava o pátio.
E se houvesse algum segredo escondido na linda villa perto do lago, ele iria encontrar.
Um carabinieri com roupas civis esperava na entrada. Ele se apresentou como Lucca — sem sobrenomes ou posto, somente Lucca — e ofereceu a Gabriel nada mais que um
par de luvas de borracha e cobertura de plástico para os sapatos. Gabriel ficou feliz ao colocá-las. A última coisa que precisava nesse ponto de sua vida era deixar
seu DNA em outra cena de crime italiana.
— Você tem uma hora — falou o carabinieri. — E vou acompanhá-lo.
— Vou demorar o quanto precisar — respondeu Gabriel. — E você vai ficar bem aqui.
Quando o oficial não falou nada, Gabriel vestiu as luvas e as coberturas para os sapatos e entrou na villa. A primeira coisa que notou foi o sangue. Era difícil
não notar; todo o chão de pedra do hall de entrada estava escuro. Ficou pensando por que o assassinato tinha acontecido aqui e não em uma parte mais isolada da casa.
Era possível que Bradshaw tivesse enfrentado seus assassinos logo depois de terem entrado na residência, mas não havia evidências de uma entrada forçada na porta
nem no portão. A explicação mais lógica era que Bradshaw tivesse deixado seus agressores entrarem. Ele os conhecia, pensou Gabriel. E, ingenuamente, tinha confiado
o suficiente neles para deixar que entrassem em sua casa.
Do hall de entrada, Gabriel passou para a sala principal. Tinha elegantes sofás e cadeiras cobertos de seda, e era adornada com mesas caras, lâmpadas e enfeites
de todos os tipos. Uma parede era feita toda de grandes janelas que davam para o lago; nas outras estavam pendurados quadros de Velhos Mestres italianos. A maioria
eram peças devocionais ou retratos produzidos por viajantes ou seguidores de conhecidos pintores de Veneza e Florença. Um, no entanto, era um capriccio arquitetônico
romano que era claramente obra de Giovanni Paolo Panini. Gabriel lambeu a ponta de sua luva e passou pela superfície. O Panini, como os outros quadros na sala, estava
precisando muito de uma boa limpeza.
Gabriel limpou a sujeira em sua calça jeans e caminhou até uma antiga escrivaninha. Nela, havia duas fotografias emolduradas de Jack Bradshaw em épocas mais felizes.
Na primeira ele posava em frente à Grande Pirâmide de Gizé, um topete juvenil sobre um rosto que estava cheio de esperança e promessa. Na segunda foto, a paisagem
era a antiga cidade de Petra, na Jordânia. Tinha sido tirada, supôs Gabriel, quando Bradshaw estava servindo na embaixada britânica em Amã. Ele parecia mais velho,
mais duro, talvez mais sábio. O Oriente Médio era assim. Transformava esperança em desespero, idealistas em maquiavélicos.
Gabriel abriu a gaveta da escrivaninha, não encontrou nada interessante, depois repassou o registro de ligações perdidas no telefone. Um número, 621-5845, aparecia
sete vezes — cinco vezes antes da morte de Bradshaw e duas depois. Gabriel levantou o fone, apertou o botão de discar o último número chamado e, após uns segundos,
ouviu o tom distante de um telefone. Depois de vários toques ouviu uma série de cliques e sons indicando que a pessoa do outro lado da linha tinha atendido a ligação
e rapidamente desligado. Gabriel ligou de novo com o mesmo resultado. Mas quando tentou o número pela terceira vez, uma voz masculina atendeu e falou em italiano:
— É o padre Marco. Como posso ajudá-lo?
Gabriel pousou o fone de volta delicadamente sem falar nada. Próximo ao telefone havia um bloco de anotações. Arrancou a primeira página, anotou o número do telefone
na folha seguinte e enfiou as duas no bolso. Aí decidiu subir.
Havia quadros no amplo corredor central e cobrindo as paredes de dois quartos vazios. Bradshaw tinha usado um terceiro dormitório como depósito. Várias dezenas de
quadros, alguns em molduras, outros em tensores, estavam encostados nas paredes como cadeiras dobráveis depois que a festa acabou. A maioria dos quadros eram italianos,
mas havia vários trabalhos de artistas alemães, flamencos e holandeses também. Um deles, um quadro de lavadeiras holandesas trabalhando em um jardim, provavelmente
pintado por um imitador de Willem Kalf, parecia ter sido restaurado recentemente. Gabriel ficou pensando por que Bradshaw tinha decidido limpar aquele quadro enquanto
os outros em sua coleção, alguns mais valiosos, mofavam debaixo de camadas de verniz amarelado — e por que, tendo feito isso, ele o havia deixado encostado na parede
de um depósito.
Do lado oposto do corredor central estava o quarto e o escritório de Bradshaw. Gabriel rapidamente deu uma olhada neles com a meticulosidade de um homem que sabia
como esconder as coisas. No quarto, escondido debaixo de uma pilha de camisas coloridas dignas de Gatsby, encontrou um envelope de papel pardo amassado cheio de
milhares de euros que tinham, de alguma forma, escapado da atenção dos homens do general Ferrari. No escritório, encontrou pastas de arquivos cheias de papéis, junto
com uma impressionante coleção de monografias e catálogos. Também descobriu uma documentação sugerindo que a Meridian Global Consulting tinha alugado um cofre no
Freeport de Genebra. Ficou pensando se aqueles documentos também tinham escapado da atenção dos homens do general.
Gabriel colocou a documentação do Freeport no bolso de seu casaco e cruzou o corredor até o quarto que Bradshaw tinha usado como depósito. As três lavadeiras ainda
estavam trabalhando em seu jardim de pedra, sem se importar com a presença dele. Gabriel se agachou na frente do quadro e examinou cuidadosamente a pintura. Era
bastante óbvio que era obra de um imitador, pois faltava qualquer traço de confiança ou espontaneidade. Na verdade, na opinião de especialista de Gabriel, tinha
uma qualidade de cópia bem feita, como se o artista estivesse olhando para o original enquanto trabalhava. Talvez estivesse.
Gabriel desceu e, sob o olhar cuidadoso do carabinieri, retirou uma lanterna ultravioleta de sua maleta. Quando lançada sobre a tela de um Velho Mestre em um quarto
escuro, a lâmpada revelaria a extensão da última restauração ao fazer com que os retoques aparecessem como manchas pretas. Em geral, o quadro de um Velho Mestre
holandês daquele período teria sofrido perdas de pequenas a moderadas, o que significava que os retoques — ou restaurações, como eram conhecidas no mercado — apareceriam
como pontos pretos.
Gabriel voltou ao quarto no primeiro andar da villa, fechou a porta e as janelas. Então acendeu a lâmpada ultravioleta e apontou para o quadro. As três lavadeiras
holandesas não estavam mais visíveis. Todo o quadro estava preto como carvão.
7
LAGO COMO, ITÁLIA
EM UMA EMPRESA DE PRODUTOS QUÍMICOS no bairro industrial de Como, Gabriel comprou acetona, álcool, água destilada, um béquer de vidro, além de óculos e máscara protetora.
Em seguida, parou em uma loja de artesanato no centro da cidade onde comprou cavilhas de madeira e um pacote de algodão hidrófilo. Ao voltar à villa perto do lago,
encontrou o carabinieri esperando na entrada com novas luvas e protetores para os sapatos. Dessa vez, o italiano não falou nada sobre limite de hora. Percebeu que
Gabriel ia demorar um bom tempo.
— Você não vai contaminar nada, vai?
— Só meus pulmões — respondeu Gabriel.
No andar de cima, ele tirou a tela da moldura, colocou sobre uma cadeira sem braços e iluminou sua superfície com o máximo de luz que conseguiu. Então misturou quantidades
iguais de acetona, álcool e água destilada no béquer e improvisou um cotonete usando as cavilhas e o algodão. Trabalhando rapidamente, ele tirou o verniz fresco
e a restauração de um pequeno retângulo — cerca de dois por um centímetro — no canto esquerdo inferior da tela. Restauradores chamavam essa técnica de “abrir uma
janela”. Normalmente, era feita para testar a força e a eficácia de uma solução solvente. Nesse caso, no entanto, Gabriel estava abrindo uma janela para tirar as
camadas de superfície do quadro para ver o que havia por baixo. O que ele descobriu foram dobras exuberantes de uma roupa carmim. Claramente, havia uma pintura intacta
por baixo das três lavadeiras holandesas trabalhando em um jardim — um quadro que, na opinião de Gabriel, tinha sido produzido por um verdadeiro Velho Mestre de
considerável talento.
Ele rapidamente abriu mais três janelas, uma na parte inferior direita da tela e duas mais no alto. Na inferior direita, encontrou mais tecido, mais escuro e menos
nítido; mas no alto à direita, a tela estava quase preta. No alto à esquerda, ele encontrou um arco romano marrom-amarelado que parecia ser parte de um fundo arquitetônico.
As quatro janelas abertas davam uma visão superficial de como as figuras estavam ordenadas na tela. Mais importante ainda, diziam que, muito provavelmente, o quadro
era o trabalho de um italiano e não de um artista das escolas holandesa ou flamenca.
Gabriel abriu uma quinta janela alguns centímetros abaixo do arco romano e descobriu uma cabeça masculina careca. Ao expandir, encontrou a base de um nariz e um
olho que estava voltado direto para o espectador. Em seguida, abriu a janela alguns centímetros para a direita e encontrou a testa pálida e luminosa de uma jovem.
Ele expandiu essa janela, também, e encontrou um par de olhos castos. Um nariz comprido surgiu logo após, acompanhado por um par de pequenos lábios vermelhos e um
queixo delicado. Então, depois de outro minuto de trabalho, Gabriel viu a mão esticada de uma criança. Um homem, uma mulher, uma criança... Gabriel estudou a mão
da criança — especificamente, a forma como o dedão e o indicador estavam tocando o queixo da mulher. A pose era familiar. Assim como a técnica das pinceladas.
Cruzou o corredor até o escritório de Jack Bradshaw, ligou o computador e foi até o site do Registro de Arte Perdida, o maior banco de dados do mundo sobre obras
de arte roubadas, perdidas e saqueadas. Depois de alguns cliques, a fotografia de um quadro apareceu na tela — o mesmo quadro que agora estava encostado em uma cadeira
no quarto em frente. Debaixo da foto havia uma breve descrição:
A Sagrada Família, óleo sobre tela, Parmigianino (1503–1540), roubado de um laboratório de restauração no histórico hospital Santo Spirito, em Roma, 31 de julho
de 2004.
O Esquadrão de Arte estava procurando o quadro desaparecido por mais de uma década. E agora Gabriel o havia encontrado, na villa de um inglês assassinado, escondido
sob uma cópia de um quadro holandês de Willem Kalf. Ele começou a ligar para o número do general Ferrari, mas parou. Onde havia um, pensou, certamente haveria outros.
Levantou da mesa do morto e começou a procurar.
Gabriel descobriu dois outros quadros no depósito que, quando submetidos à luz ultravioleta, ficaram totalmente pretos. Um era uma cena costeira da Escola Holandesa
reminiscente do trabalho de Simon de Vlieger; o outro era um vaso de flores que parecia ser uma cópia de um quadro do artista vienense Johann Baptist Drechsler.
Gabriel começou a abrir janelas.
Molhar, girar, descartar...
Uma árvore volumosa contra um céu cheio de nuvens, as pregas de uma saia espalhada em um prado, o flanco nu de uma mulher corpulenta...
Molhar, girar, descartar...
Um pedaço de fundo azul-esverdeado, uma blusa florida, um olho grande e sonolento sobre uma bochecha rosada...
Gabriel reconheceu os dois quadros. Sentou-se no computador e voltou ao site do Registro de Arte Perdida. Depois de uns cliques, a fotografia de um quadro apareceu
na tela:
Jovens Mulheres no Campo, óleo sobre tela, Pierre-Auguste Renoir (1841–1919), 41,6x50,8 cm, desaparecido desde 13 de março de 1981, do Musée de Bagnols-sur-Cèze,
Gard, França. Valor atual estimado: desconhecido.
Mais algumas teclas apertadas, outro quadro, outra história de desaparecimento:
Retrato de uma Mulher, óleo sobre tela, Gustav Klimt (1862–1918), 82,8x54,8 cm, desaparecido desde 18 de fevereiro de 1997, da Galleria Ricci Oddi, Piacenza, Itália.
Valor atual estimado: quatro milhões de dólares.
Gabriel colocou o Renoir e o Klimt perto do Parmigianino, tirou uma foto com seu celular e rapidamente enviou ao palazzo. O general Ferrari ligou trinta segundos
depois. A ajuda estava a caminho.
Gabriel carregou os três quadros para o andar de baixo e colocou-os sobre os sofás da sala principal. Parmigianino, Renoir, Klimt... Três quadros desaparecidos de
três artistas famosos, todos escondidos debaixo de peças de menor valor. Mesmo assim, as cópias eram de ótima qualidade. Era o trabalho de um mestre falsificador,
pensou Gabriel. Talvez até um restaurador. Mas por que todo o trabalho de pedir uma cópia para esconder uma obra roubada? Claramente, Jack Bradshaw estava conectado
a uma sofisticada rede que trabalhava com arte roubada e contrabandeada. Onde havia três, pensou Gabriel, olhando para os quadros, poderia haver mais. Muito mais.
Pegou uma das fotos do jovem Jack Bradshaw. Seu currículo parecia algo de uma era perdida. Educado em Eton e Oxford, fluente em árabe e persa, tinha sido enviado
ao mundo para trabalhar para um império outrora poderoso que havia caído em um declínio terminal. Talvez tivesse sido um diplomata comum, distribuidor de vistos,
carimbador de passaportes, escritor de telegramas espirituosos que ninguém dava a mínima. Ou talvez tivesse sido algo totalmente diferente. Gabriel conhecia um homem
em Londres que poderia colocar um pouco de carne nos ossos do currículo estranhamente magro de Jack Bradshaw. A verdade teria um preço. Nos negócios da espionagem,
a verdade sempre tem.
Gabriel largou a foto e usou seu celular para reservar uma passagem para o voo do dia seguinte para Heathrow. Pegou o pedaço de papel no qual tinha escrito o número
que estava na agenda do telefone de Bradshaw.
621-5845
“É o padre Marco. Como posso ajudá-lo?”
Discou o número de novo, mas dessa vez ninguém atendeu. Então, um pouco relutante, enviou o número à Central de Operações no Boulevard Rei Saul e pediu uma verificação
de rotina. Dez minutos depois veio a resposta: 621-5845 era um número privado localizado na residência da Igreja de San Giovanni Evangelista, em Brienno, que estava
localizada a poucos quilômetros do lago.
Gabriel pegou o pedaço de papel que estava no alto do bloco de anotações ao lado do telefone de Jack Bradshaw na noite de seu assassinato. Aproximando-o do abajur,
estudou as marcas deixadas pela caneta-tinteiro de Bradshaw. Tirou um lápis da primeira gaveta da mesa e raspou a ponta gentilmente pela superfície até aparecer
um padrão de linhas. A maior parte era uma bagunça impenetrável: o número quatro, o número oito, as letras C, V e O. No fim da página, no entanto, uma única palavra
estava bem visível.
Samir...
8
STOCKWELL, LONDRES
A ESTRADA SE CHAMAVA Paradise, mas era um paraíso perdido: blocos mal conservados de prédios de tijolos vermelhos, um pequeno jardim de grama pisada, um playground
vazio no qual um carrossel girava devagar ao sabor do vento. Gabriel ficou parado ali tempo suficiente para ter certeza de que não estava sendo seguido. Levantou
a aba de seu casaco até a orelha e tremeu. A primavera ainda não tinha chegado a Londres.
Além do playground havia um caminho sujo que levava a Clapham Road. Gabriel virou para a esquerda e caminhou em meio à luz do trânsito até a estação de metrô de
Stockwell. Outra curva o levou a uma silenciosa rua com casas escuras do pós-guerra. O número oito tinha uma cerca de ferro escura e torta e um pequeno jardim de
cimento sem nenhuma decoração, a não ser uma lata de lixo azul. Gabriel levantou a tampa, viu que a lata estava vazia e subiu os três degraus até a porta da frente.
Havia um aviso dizendo que pedintes de qualquer tipo não eram bem-vindos. Ignorando-o, apertou a campainha — dois toques curtos, um terceiro mais longo, como tinham
falado.
— Sr. Baker — falou o homem que apareceu na porta. — Que bom que veio. Sou o Davies. Estou aqui para cuidar do senhor.
Gabriel entrou na casa e esperou até a porta fechar antes de se virar de frente para o homem que tinha aberto a porta. Tinha o cabelo claro e o rosto inocente de
um padre do interior. Seu nome não era Davies. Era Nigel Whitcombe.
— Por que toda essa coisa secreta? — perguntou Gabriel. — Não estou desertando. Só preciso falar com o chefe.
— O Serviço de Inteligência não gosta do uso de nomes verdadeiros em casas seguras. Davies é meu nome de trabalho.
— Gostei — falou Gabriel.
— Eu mesmo escolhi. Sempre gostei dos Kinks.
— Quem é Baker?
— Você é o Baker — respondeu Whitcombe sem um traço de ironia na voz.
Gabriel entrou na pequena sala de estar. Estava mobiliada com todo o charme de uma sala de embarque de aeroporto.
— Não dava para encontrar uma casa segura em Mayfair ou Chelsea?
— Todas as propriedades de West End estão ocupadas. Além disso, esta é mais perto de Vauxhall Cross.
Vauxhall Cross era o quartel-general do Serviço de Inteligência Secreto da Grã-Bretanha, também conhecido como MI6. Houve um tempo em que o serviço operava de um
prédio sombrio na Broadway e seu diretor-geral era conhecido apenas como “C”. Agora os espiões trabalhavam em um dos lugares mais bonitos de Londres e o nome de
seus chefe aparecia sempre nos jornais. Gabriel gostava mais dos velhos tempos. Em questões de inteligência, assim como de arte, ele era um tradicionalista por natureza.
— O Serviço de Inteligência permite café em casas seguras hoje em dia? — perguntou ele.
— Não de verdade — respondeu Whitcombe, sorrindo. — Mas pode ter uma jarra de café solúvel na despensa.
Gabriel deu de ombros, como se dissesse que poderia ter coisas piores que café solúvel, e seguiu Whitcombe até a cozinha. Parecia pertencer a um homem que tinha
se separado recentemente e esperava uma rápida reconciliação. Havia realmente um recipiente de café, junto com uma caixa de chá que parecia estar ali desde que Edward
Heath tinha sido primeiro-ministro. Whitcombe encheu a chaleira elétrica com água enquanto Gabriel procurava uma caneca nos armários. Havia duas, uma com o logo
dos Jogos Olímpicos de Londres, a outra com o rosto da rainha. Quando Gabriel escolheu a caneca com a rainha, Whitcombe sorriu.
— Nunca soube que você era admirador de Sua Majestade.
— Ela tem bom gosto em arte.
— Ela tem dinheiro para isso.
Whitcombe fez esse comentário não como crítica, mas somente como uma observação. Ele era assim: cuidadoso, astuto, opaco como uma parede de concreto. Tinha começado
a carreira no MI5, onde havia ganhado experiência operacional trabalhando com Gabriel contra um oligarca russo e traficante de armas chamado Ivan Kharkov. Logo depois,
ele se tornou o principal assistente e garoto de recados informal de Graham Seymour, vice-diretor do MI5. Seymour tinha recentemente sido nomeado novo chefe do MI6,
uma mudança que surpreendeu todo mundo no ramo da inteligência, exceto Gabriel. Whitcombe continuava trabalhando para seu chefe, o que explicava sua presença na
casa segura de Stockwell. Ele colocou uma colher de café na caneca e viu o vapor subindo do bico da chaleira.
— Como está a vida no Seis? — perguntou Gabriel.
— Assim que chegamos, havia muita suspeita entre as tropas. Acho que tinham o direito de ficarem preocupados. Afinal, estávamos cruzando o rio vindo de um serviço
rival.
— Não é como se Graham fosse um total estranho. Seu pai era uma lenda no MI6. Ele foi praticamente criado dentro do serviço.
— Motivo pelo qual as preocupações duraram pouco tempo. — Whitcombe tirou um celular do bolso no peito de seu terno e olhou a tela. — Ele está chegando agora. Você
consegue servir seu café sozinho?
— Jogar a água, depois mexer, certo?
Whitcombe saiu. Gabriel preparou o café e foi até a sala de estar. Ao entrar, viu um homem alto usando um terno cinza-escuro com corte perfeito e gravata de listras
azuis. Seu rosto era forte e bem proporcionado; o cabelo tinha um tom prateado que fazia com que parecesse um modelo que podia ser visto em anúncios de coisas caras
e desnecessárias. Estava falando ao celular, que segurava com a mão esquerda. Esticou a direita distraidamente para Gabriel. Seu aperto era firme, confiante e com
duração apropriada. Era uma arma injusta a ser usada contra oponentes inferiores. Mostrava que ele tinha frequentado as melhores escolas, pertencido aos melhores
clubes e era bom em jogos de cavalheiros, como tênis e golfe, e acontece que tudo isso era verdade. Graham Seymour era uma relíquia do glorioso passado britânico,
filho das classes executivas criadas, educadas e programadas para liderar. Alguns meses antes, cansado depois de anos tentando proteger o território britânico das
forças do extremismo islâmico, ele tinha confidenciado a Gabriel seus planos de deixar a inteligência e se aposentar em sua villa em Portugal. Agora, inesperadamente,
ele tinha recebido as chaves da velha organização de seu pai. Gabriel de repente se sentiu culpado por ter vindo a Londres. Estava a ponto de entregar a Seymour
sua primeira crise em potencial no MI6.
Seymour murmurou algumas palavras ao celular, cortou a comunicação e entregou o aparelho para Nigel Whitcombe. Então se virou para Gabriel e o olhou com curiosidade
por um momento.
— Pelo nosso longo histórico juntos — falou Seymour, finalmente —, estou um pouco relutante de perguntar o que o traz à cidade. Mas acho que não tenho escolha.
Gabriel respondeu contando a Seymour uma pequena parte da verdade — que ele tinha ido a Londres porque estava investigando o assassinato de um inglês expatriado
que vivia na Itália.
— O expatriado inglês tinha nome? — perguntou Seymour.
— James Bradshaw — respondeu Gabriel. Ele parou, depois acrescentou: — Mas seus amigos o chamavam de Jack.
O rosto de Seymour continuou sem reação.
— Acho que li algo sobre isso nos jornais — falou. — Trabalhava no Ministério de Relações Exteriores, não era? Fazia consultoria no Oriente Médio. Foi assassinado
em sua villa em Como. Ao que parece, foi um caos.
— Bastante — concordou Gabriel.
— O que isso tem a ver comigo?
— Jack Bradshaw não era diplomata, não é mesmo, Graham? Ele era do MI6. Um espião.
Seymour conseguiu manter sua compostura por mais algum tempo. Depois apertou os olhos e perguntou:
— O que mais você tem?
— Três quadros roubados, um cofre no Freeport de Genebra e alguém chamado Samir.
— Isso é tudo? — Seymour balançou a cabeça lentamente e se virou para Whitcombe. — Cancele meus compromissos para o resto da tarde, Nigel. E consiga algo para beber.
Isso vai demorar um tempo.
9
STOCKWELL, LONDRES
WHITCOMBE SAIU PARA COMPRAR os ingredientes para um gim e tônica enquanto Gabriel e Graham Seymour se instalaram na sala de estar pequena e sem charme. Gabriel ficou
pensando em que tipos de reuniões de inteligência tinham acontecido nesse lugar antes dele. Um desertor da KGB querendo vender sua alma por trinta moedas de prata
ocidental? Um cientista nuclear iraquiano com uma pasta cheia de mentiras? Um agente duplo jihadista afirmando saber a hora e o lugar do próximo ataque espetacular
da Al-Qaeda? Ele olhou para a parede em cima da lareira elétrica e viu dois cavaleiros com jaquetas vermelhas conduzindo seus cavalos por um prado verde inglês.
Então olhou pela janela e viu um querubim corpulento sobre a grama vigiando solitário o jardim escuro. Graham Seymour parecia ignorar totalmente o que havia ao redor.
Estava olhando para as mãos, como se tentasse decidir por onde começar sua história. Não se importava em delinear as regras, porque isso era desnecessário. Gabriel
e Seymour eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que desconfiavam só um pouco um do outro.
— Os italianos sabem que você está aqui? — perguntou Seymour finalmente.
Gabriel negou.
— E o Escritório?
— Não falei que estava vindo, mas isso não significa que não estejam observando todos meus movimentos.
— Aprecio sua honestidade.
— Sempre sou honesto com você, Graham.
— Pelo menos quando lhe interessa.
Gabriel não se deu ao trabalho de responder. Em vez disso, ouviu atentamente enquanto Seymour, com a voz incomodada de alguém que preferia discutir outras questões,
contava a breve vida e a carreira de James “Jack” Bradshaw. Era um território familiar para um homem como Seymour, porque ele tinha vivido uma versão da vida de
Bradshaw. Os dois eram produtos de lares de classe média razoavelmente felizes, os dois tinham sido enviados para caras, mas frias escolas particulares, e os dois
tinham sido admitidos em universidades de elite, embora Seymour tenha estudado em Cambridge e Bradshaw em Oxford. Ali, enquanto ainda estava na graduação, chamou
a atenção de um professor da faculdade de Estudos Orientais. O professor era na verdade um olheiro do MI6. Graham Seymour também o conhecia.
— O olheiro era seu pai? — perguntou Gabriel.
Seymour assentiu.
— Ele estava no fim de sua carreira. Já estava cansado de tanto estar em campo, e não queria nem saber de um trabalho administrativo. Então foi mandado para Oxford
e lhe disseram para ficar de olho em potenciais recrutas. Um dos primeiros estudantes que notou foi Jack Bradshaw. Era difícil não notar o Jack — acrescentou Seymour.
— Ele era um meteoro. E o mais importante, ele era sedutor, naturalmente enganador e sem escrúpulos ou moral.
— Em outras palavras, tinha tudo para ser um perfeito espião.
— Na melhor tradição inglesa — acrescentou Seymour com um sorriso irônico.
E assim foi, ele continuou, que Jack Bradshaw entrou pelo mesmo caminho que tantos outros tinham seguido antes dele — o que levava das quadras tranquilas de Cambridge
e Oxford à entrada criptografada do Serviço Secreto de Inteligência. Era 1985 quando ele chegou. A Guerra Fria estava perto do fim, e o MI6 ainda estava procurando
uma razão para justificar sua existência depois de ser destruída internamente por Kim Philby e os outros membros do círculo de espiões de Cambridge. Bradshaw passou
dois anos no programa de treinamento do MI6 e depois foi mandado ao Cairo para seu estágio. Tornou-se especialista em extremismo islâmico e previu com precisão o
surgimento de uma rede internacional de terror jihadista liderada por veteranos da guerra do Afeganistão. Em seguida foi a Amã, onde estabeleceu boas conexões com
o chefe da GID, o poderoso serviço de inteligência e segurança da Jordânia. Em pouco tempo, Jack Bradshaw era considerado o principal oficial de campo do MI6 no
Oriente Médio. Pressupôs que seria o próximo chefe da divisão, mas o cargo acabou sendo atribuído a um rival que imediatamente mandou Bradshaw para Beirute, um dos
postos mais perigosos e ingratos da região.
— E aí — falou Seymour —, foi quando começaram os problemas.
— Que tipo de problemas?
— Os de sempre — respondeu Seymour. — Começou a beber muito e trabalhar pouco. Também desenvolveu um complexo de superioridade. Chegou a acreditar que era o cara
mais inteligente em qualquer lugar que estivesse e que seus superiores em Londres eram muito incompetentes. Qual outra explicação para o fato de não ter recebido
a promoção quando era, claramente, o candidato mais qualificado para o cargo? Então conheceu uma mulher chamada Nicole Devereaux, e a situação foi de mal a pior.
— Quem era ela?
— Fotógrafa funcionária da AFP, a agência de notícias francesa. Ela conhecia Beirute melhor do que a maioria de seus concorrentes porque era casada com um empresário
libanês chamado Ai Rashid.
— Como Bradshaw a conheceu? — perguntou Gabriel.
— Uma festa numa sexta-feira à noite na embaixada britânica: jornalistas, diplomatas e espiões trocando fofocas e histórias de horror em Beirute com cerveja quente
e salgadinhos velhos.
— E começaram a ter um caso?
— Bastante tórrido, na verdade. Até onde sei, Bradshaw estava apaixonado por ela. Os rumores começaram a se espalhar, claro, e em pouco tempo chegaram aos ouvidos
do rezident da KGB na embaixada soviética. Ele conseguiu algumas fotos de Nicole no quarto de Bradshaw. E aí atacou.
— Um recrutamento?
— É uma forma de dizer — afirmou Seymour. — Na verdade, foi a velha e boa chantagem.
— A especialidade da KGB.
— A sua, também.
Gabriel ignorou o comentário e perguntou sobre a natureza da chantagem.
— O rezident deu a Bradshaw uma escolha simples — respondeu Seymour. — Ele podia trabalhar como agente pago da KGB ou os russos iriam entregar as fotos de Nicole
Devereaux em flagrante delito para o marido dela.
— Aposto que Ali Rashid não teria reagido tranquilamente à notícia de que sua esposa estava tendo um caso com um espião britânico.
— Rashid era um homem perigoso. — Seymour fez uma pausa, depois acrescentou: — E com uma boa rede de conexões, também.
— Que tipo de conexões?
— Inteligência síria.
— Então Bradshaw tinha medo de que Rashid a matasse?
— Com bons motivos. Não é preciso dizer que ele concordou em cooperar.
— O que entregou a eles?
— Nomes de agentes do MI6, operações em curso, noções sobre a política britânica na região. Resumindo, toda nossa agenda no Oriente Médio.
— Como vocês descobriram isso?
— Nós não descobrimos — falou Seymour. — Os norte-americanos descobriram que Bradshaw tinha uma conta bancária na Suíça com meio milhão de dólares. Revelaram a informação
com grande fanfarra durante uma reunião terrível em Langley.
— Por que Bradshaw não foi preso?
— Você é um homem experiente — falou Seymour. — Diga você.
— Porque levaria a um escândalo que o MI6 não poderia aguentar na época.
Seymour tocou seu nariz.
— Eles até deixaram o dinheiro na conta bancária suíça porque não encontraram uma forma de retê-lo sem levantar uma bandeira vermelha. Possivelmente foi a rede de
segurança mais lucrativa na história do MI6. — Seymour balançou a cabeça lentamente. — Não exatamente o nosso melhor momento.
— O que aconteceu com Bradshaw depois que saiu do MI6?
— Ficou em Beirute por alguns meses lambendo as próprias feridas antes de voltar para a Europa e abrir sua própria empresa de consultoria. Para que fique registrado
— acrescentou Seymour —, a inteligência britânica nunca acreditou na Meridian Global Consulting Group.
— Sabiam que Bradshaw estava vendendo arte roubada?
— Suspeitávamos que estivesse envolvido em negócios que não eram exatamente legais, mas simplesmente olhávamos para o outro lado e torcíamos para que nada acontecesse.
— E quando souberam que ele tinha sido assassinado na Itália?
— Mantivemos a ficção de que era diplomata. O Ministério de Relações Exteriores deixou claro, no entanto, que iriam negar isso ao primeiro indício de problema. —
Seymour fez uma pausa, depois perguntou: — Esqueci alguma coisa?
— O que aconteceu com Nicole Devereaux?
— Aparentemente, alguém contou ao marido sobre o caso. Ela desapareceu uma noite depois de sair da sede da AFP. Encontraram o corpo alguns dias depois no vale de
Bekaa.
— Foi o Rashid quem a matou?
— Não — respondeu Seymour. — Ele pediu para os sírios fazerem isso. Se divertiram um pouco com ela antes de enforcá-la em um poste e cortar sua garganta. Foi bastante
feio. Mas acho que era de se esperar. Afinal — acrescentou ele sombrio —, eram sírios.
— Fico pensando se foi uma coincidência — falou Gabriel.
— O quê?
— Que alguém matou Jack Bradshaw exatamente da mesma maneira.
Seymour não falou nada, apenas olhou seu relógio com o ar de um homem que ia chegar tarde para uma reunião que preferia não participar.
— Helen está me esperando para jantar — falou com uma profunda falta de entusiasmo. — Infelizmente, ela está em uma fase africana no momento. Não tenho certeza,
mas é possível que tenha comido cabra na semana passada.
— Você é um homem de sorte, Graham.
— Helen diz a mesma coisa. Meu médico não tem tanta certeza.
Seymour colocou o copo sobre a mesa e se levantou. Gabriel não se moveu.
— Acho que você tem mais uma pergunta — falou Seymour.
— Duas, na verdade.
— Estou ouvindo.
— Alguma chance de conseguir dar uma olhada no arquivo de Bradshaw?
— Próxima pergunta.
— Quem é Samir?
— Sobrenome?
— Estou trabalhando nisso.
Seymour olhou para o teto.
— Há um Samir que é dono de um mercadinho na esquina do meu apartamento. É membro devoto da Irmandade Muçulmana que acredita que a Grã-Bretanha deveria ser governada
pela lei da sharia. — Olhou para Gabriel e sorriu. — Tirando isso, é um cara bem legal.
A embaixada israelense estava localizada do outro lado do rio Tâmisa, em uma esquina tranquila de Kensington perto da High Street. Gabriel entrou no prédio através
de uma porta escondida no fundo e desceu para as salas de segurança reservadas para o Escritório. O chefe de estação não estava presente, só um jovem assistente
chamado Noah que se levantou assim que viu o futuro diretor entrar pela porta sem ser anunciado. Gabriel entrou no módulo de comunicações seguras — no léxico do
Escritório era chamado de Santo dos Santos — e enviou uma mensagem para o Boulevard Rei Saul pedindo acesso a qualquer arquivo relacionado com um empresário libanês
chamado Ali Rashid. Não se preocupou em explicar o motivo de seu pedido. Seu futuro cargo tinha seus privilégios.
Vinte minutos se passaram até que o arquivo aparecesse através de um link seguro — tempo suficiente, considerou Gabriel, para que o atual chefe do Escritório aprovasse
sua transmissão. Era breve, cerca de mil palavras, e escrito no estilo conciso exigido dos analistas do Escritório. Afirmava que Ali Rashid era uma peça conhecida
da inteligência síria, que financiava uma grande rede síria no Líbano, e que morreu num ataque de carro bomba na capital libanesa em 2011, cuja autoria era desconhecida.
No fim do arquivo havia uma cifra numérica de seis dígitos do oficial que havia criado o arquivo. Gabriel reconheceu; a analista já tinha sido a maior especialista
do Escritório na Síria e no Partido Baath. Hoje em dia era famosa por outro motivo. Era a esposa do futuro ex-chefe.
Como a maioria dos postos ao redor do mundo, a estação de Londres continha um pequeno quarto para momentos de crise. Gabriel conhecia bem o quarto, pois tinha ficado
nele várias vezes. Ele se deitou na desconfortável cama de solteiro e tentou dormir, mas não conseguiu; o caso não abandonava seus pensamentos. Um promissor espião
britânico que se perdeu, um colaborador da inteligência síria explodido em pedaços por um carro-bomba, três quadros roubados cobertos por falsificações de ótima
qualidade, um cofre no Freeport de Genebra... As possibilidades, pensou Gabriel, eram infinitas. Não valia a pena tentar forçar as peças agora. Ele precisava abrir
outra janela — uma janela para o mercado global de quadros roubados — e para isso precisava da ajuda de um mestre na arte do roubo.
Assim ficou deitado, sem sono, na cama dura, lutando contra suas lembranças e pensando em seu futuro, até as seis da manhã seguinte. Depois de tomar uma ducha e
mudar de roupas, saiu da embaixada enquanto ainda estava escuro e pegou o metrô até St. Pancras. Um Eurostar estava saindo para Paris às sete e meia; ele comprou
alguns jornais antes de embarcar e terminou de lê-los quando o trem parou na Gare du Nord. Do lado de fora, uma fila de táxis molhados esperava debaixo de um céu
cinza-escuro. Gabriel passou por eles e passou uma hora caminhando pelas ruas cheias ao redor da estação até ter certeza de que não estava sendo seguido. Então partiu
para o oitavo Arrondissement e uma rua chamada rue de Miromesnil.
10
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
NO SERVIÇO DE INTELIGÊNCIA, como na vida, às vezes é necessário tratar com indivíduos cujas mãos não estão nada limpas. A melhor forma de pegar um terrorista é usar
outro terrorista como fonte. O mesmo era verdade, reconheceu Gabriel, quando se estava tentando pegar um ladrão. O que explicava o motivo pelo qual, às 9h55, ele
estava sentado numa mesa ao lado da janela de uma boa brasserie na rue de Miromesnil, com uma cópia do Le Monde aberta a sua frente e um café com creme fumegante.
Às 9h58, ele viu um homem com um casaco enorme e chapéu caminhando rapidamente pela calçada na direção do Palácio do Eliseu. O homem entrou em uma pequena loja chamada
Antiquités Scientifiques às dez em ponto, acendeu as luzes, e mudou o cartaz na janela de FERMÉ para OUVERT. Maurice Durand, pensou Gabriel, sorrindo, era alguém
totalmente confiável. Terminou seu café e cruzou a rua vazia até a entrada da loja. O intercomunicador, quando ele tocou, gemeu como uma criança inconsolável. Vinte
segundos se passaram sem nenhum convite para entrar. Então a fechadura se abriu com um ruído pouco hospitaleiro e Gabriel adentrou na loja.
A pequena loja, como o próprio Durand, era um modelo de ordem e precisão. Microscópios e barômetros antigos estavam arrumados em fileiras nas prateleiras, o latão
brilhando como botões de uma farda de soldado; câmeras e telescópios espreitando cegamente para o passado. No centro do salão havia um globo terrestre italiano do
século XIX, preço disponível sob consulta. A pequena mão de Durand descansava sobre a Ásia Menor. Estava usando um terno escuro, uma gravata dourada e o sorriso
menos sincero que Gabriel já tinha visto. Sua careca brilhava sob a luz do teto. Seus pequenos olhos estavam fixos em Gabriel como um terrier em alerta.
— Como andam os negócios? — perguntou Gabriel cordialmente.
Durand se moveu para os aparelhos fotográficos e pegou uma câmera do começo do século XX com lente de latão de Poulenc de Paris.
— Estou enviando para um colecionador na Austrália — falou ele. — Seiscentos euros. Não tanto quanto eu esperava, mas ele barganhou muito.
— Não esse negócio, Maurice.
Durand não respondeu.
— Foi uma obra adorável que você e seus homens conseguiram em Munique no mês passado — falou Gabriel. — Um retrato de El Greco desaparece da Alte Pinakothek, e ninguém
viu ou ouviu falar dele desde então. Nenhum pedido de resgate. Nenhum indício de que a polícia alemã esteja perto de resolver o caso. Nada, a não ser silêncio e
um espaço vazio na parede de um museu onde costumava estar uma obra de arte.
— Não faça perguntas sobre meus negócios — falou Durand —, e não faço sobre os seus. Essas são as regras da nossa relação.
— Onde está o El Greco, Maurice?
— Em Buenos Aires, nas mãos de um dos meus melhores clientes. Ele tem uma fraqueza — acrescentou Durand —, um apetite insaciável que só eu posso satisfazer.
— E qual é?
— Gosta de possuir o impossuível. — Durand colocou a câmera de novo na prateleira. — Imagino que esta não seja uma visita social.
Gabriel negou com a cabeça.
— O que você quer dessa vez?
— Informações.
— Sobre o quê?
— Um inglês morto chamado Jack Bradshaw.
O rosto de Durand permaneceu impassível.
— Suponho que você o conhecia. — falou Gabriel.
— Só sua reputação.
— Alguma ideia de quem o cortou em pedaços?
— Não — falou Durand, balançando a cabeça lentamente. — Mas eu poderia indicar a direção correta.
Gabriel foi até a janela e virou o cartaz de OUVERT para FERMÉ. Durand respirou fundo e colocou seu sobretudo.
Era uma das duplas mais improváveis que alguém poderia ter encontrado em Paris naquela manhã fria, o ladrão de arte e o agente da inteligência, caminhando lado a
lado pelas ruas do oitavo Arrondissement. Maurice Durand, meticuloso em tudo, começou fazendo um guia rápido sobre o negócio de arte roubada. A cada ano, milhares
de quadros e outros objets d’art desapareciam de museus, galerias, instituições públicas e residências. Estimativas do seu valor chegavam a seis bilhões de dólares,
fazendo do roubo de arte a quarta atividade ilícita mais lucrativa do mundo, atrás somente do tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e comércio de armas. E Maurice
Durand era responsável por boa parte disso. Trabalhando com um grupo estável de ladrões profissionais estabelecidos em Marselha, ele tinha realizado alguns dos maiores
roubos de obras de arte da história. Não pensava em si mesmo como um simples ladrão de arte. Era um empresário global, um tipo de corretor, especializado na silenciosa
aquisição de quadros que não estavam à venda.
— Na minha humilde opinião — continuou ele sem um traço de humildade na voz —, há quatro tipos diferentes de ladrões de arte. O primeiro é o que procura emoção,
o amante de arte que rouba para conseguir algo que nunca poderia comprar. Eu me lembro de Stéphane Breitwieser. — Ele olhou de lado para Gabriel. — Conhece o nome?
— Breitwieser foi o garçom que roubou mais de um bilhão de dólares em arte para sua coleção particular.
— Incluindo Sibila de Cleves, de Lucas Cranach, o Velho. Depois de ter sido preso, sua mãe cortou os quadros em pequenos pedaços e os jogou no lixo da cozinha. —
O francês balançou a cabeça, reprovando. — Estou longe de ser perfeito, mas nunca destruí um quadro. — Olhou de novo para Gabriel. — Mesmo quando deveria.
— E a segunda categoria?
— O perdedor incompetente. Rouba um quadro, não sabe o que fazer com ele e entra em pânico. Às vezes, consegue receber um resgate ou uma recompensa. Geralmente é
pego. Francamente — acrescentou Durand —, esse tipo me deixa triste. Dá às pessoas como eu uma má reputação.
— Profissionais que realizam roubos sob encomenda.
Durand assentiu. Estavam caminhando pela avenida Matignon. Passaram pelos escritórios em Paris da Christie’s e entraram na Champs-Élysées. Os galhos das castanheiras
estavam nus contrastando com o céu cinzento.
— Há alguns policiais que insistem que eu não existo — retomou Durand. — Acham que sou uma fantasia, uma idealização. Não entendem que há pessoas muito ricas no
mundo que cobiçam grandes obras de arte e não se importam se são roubadas ou não. Na verdade, há algumas pessoas que querem uma obra de arte porque é roubada.
— Qual é a quarta categoria?
— Crime organizado. São bons roubando quadros, mas não tão bons em colocá-los no mercado. — Durand parou, então acrescentou: — É onde entra Jack Bradshaw. Ele era
um intermediário entre os ladrões e os compradores — um intermediário de luxo, pode-se dizer. E era bom no que fazia.
— Que tipo de compradores?
— Às vezes, ele vendia direto para colecionadores — respondeu Durand. — Mas na maioria das vezes enviava as obras roubadas para uma rede de comerciantes aqui na
Europa.
— Onde?
— Paris, Bruxelas e Amsterdã são excelentes mercados para arte roubada. Mas as leis de propriedade e privacidade da Suíça ainda fazem com que seja a Meca para colocar
propriedades roubadas no mercado.
Cruzaram a Place de la Concorde e entraram no Jardin des Tuileries. À esquerda estava o Jeu de Paume, o pequeno museu que os nazistas tinham usado como um tipo de
depósito quando saquearam a França de sua arte. Durand parecia fazer um esforço consciente para não olhar para lá.
— Seu amigo Jack Bradshaw estava em uma linha perigosa de trabalho — disse ele. — Tinha que lidar com o tipo de pessoa que facilmente usa a violência quando não
consegue o que quer. As gangues sérvias são especialmente ativas na Europa Ocidental. Os russos, também. É possível que Bradshaw tenha sido assassinado como resultado
de um negócio que deu errado. Ou... — A voz de Durand falhou.
— Ou o quê?
Durand hesitou antes de responder.
— Escutei rumores — finalmente falou. — Nada concreto, entenda. Só especulação.
— Que tipo de especulação?
— Que Bradshaw estava envolvido na aquisição de um grande número de quadros no mercado negro para um único indivíduo.
— Sabe o nome desse indivíduo?
— Não.
— Está me contando a verdade, Maurice?
— Isso pode surpreendê-lo — respondeu Durand —, mas quando alguém está comprando uma coleção de quadros roubados, normalmente não divulga o que está fazendo.
— Continue.
— Ouvi rumores de outro tipo sobre Bradshaw, rumores de que estava intermediando um acordo para uma obra de arte. — Durand fez uma verificação quase imperceptível
dos arredores antes de continuar. Era um movimento, pensou Gabriel, típico em um espião profissional. — Uma obra de arte que está desaparecida há várias décadas.
— Sabe qual era o quadro?
— Claro. E você também. — Durand parou de caminhar e se virou para encarar Gabriel. — Era uma natividade pintada por um artista barroco no final de sua carreira.
Seu nome era Michelangelo Merisi, mas a maioria das pessoas o conhece pelo nome da vila de sua família perto de Milão.
Gabriel pensou nas três letras que tinha encontrado no bloco de notas de Bradshaw: C... V... O...
As letras não eram aleatórias.
Eram de Caravaggio.