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Series & Trilogias Literarias
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JARDIN DES TUILERIES, PARIS
DOIS SÉCULOS APÓS SUA MORTE, ele tinha sido quase esquecido. Seus quadros juntavam poeira nos depósitos de galerias e museus, muitos eram atribuídos equivocadamente,
suas figuras dramaticamente iluminadas recuando lentamente no vazio de seus característicos fundos negros. Finalmente, em 1951, o famoso historiador de arte Roberto
Longhi reuniu suas obras conhecidas e fez uma exposição para o mundo no palazzo Reale, em Milão. Muitos dos que visitaram a incrível exposição nunca tinham ouvido
falar de Caravaggio.
Os detalhes de sua vida eram no máximo esboços, fracas linhas de carvão em uma tela em branco. Nasceu no vigésimo nono dia de setembro de 1571, provavelmente em
Milão, onde seu pai era um construtor e arquiteto bem-sucedido. No verão de 1576, a peste voltou à cidade. Quando ela finalmente passou, um quinto da diocese de
Milão tinha morrido, incluindo o pai, o avô e o tio do jovem Caravaggio. Em 1584, aos 13 anos, ele entrou na oficina de Simone Peterzano, um maçante, mas competente,
maneirista que afirmava ter sido pupilo de Ticiano. O contrato, que ainda existe, obrigava Caravaggio a treinar “noite e dia” por um período de quatro anos. Não
se sabe se ele foi bem ou mesmo se completou seu aprendizado. Claramente, o trabalho fraco e sem vida de Peterzano teve pouca influência sobre ele.
As circunstâncias exatas sobre a saída de Caravaggio de Milão estão, como quase todo o resto de sua vida, perdidas no tempo e envoltas em mistério. Registros indicam
que sua mãe morreu em 1590 e que, de seus modestos bens, ele recebeu uma herança igual a seiscentos scudi de ouro. Em um ano o dinheiro tinha acabado. Não existe
nenhuma sugestão, em lugar nenhum, de que o volúvel jovem que tinha sido treinado para ser artista pintou algo em seus últimos anos em Milão. Parece que estava muito
ocupado com outras atividades. Giovanni Pietro Bellori, autor de uma de suas primeiras biografias, sugere que Caravaggio teve de fugir da cidade, talvez depois de
um incidente envolvendo uma prostituta e uma navalha, talvez depois do assassinato de um amigo. Ele viajou para o leste, até Veneza, escreveu Bellori, onde ficou
enfeitiçado pela paleta de Giorgione. Então, no outono de 1592, foi para Roma.
A partir daí, a vida de Caravaggio começa a tomar relevos claros. Entrou na cidade, como todos os migrantes do norte, através dos portões do porto del Popolo e chegou
ao bairro dos artistas, uma confusão de ruas sujas ao redor do Campo Marzio. De acordo com o pintor Baglione, ele dividiu um quarto com um artista da Sicília, embora
outro biógrafo, um médico que conheceu Caravaggio em Roma, tenha registrado que ele encontrou alojamento na casa de um padre que o forçava a limpar a casa e só lhe
dava verduras para comer. Caravaggio chamava o padre de Monsignor Insalata e saiu da casa dele após poucos meses. Viveu em dezenas de lugares diferentes durante
seus primeiros anos em Roma, inclusive na oficina de Giuseppe Cesari, onde dormia num colchão de palha. Andava pelas ruas com meias pretas esfarrapadas e uma capa
preta surrada. Seu cabelo preto era um caos completo.
Cesari só permitia que Caravaggio pintasse flores e frutas, uma das tarefas mais baixas para um aprendiz em um ateliê. Entediado, convencido de seu talento superior,
ele começou a produzir seus próprios quadros. Vendeu alguns nos becos perto da Piazza Navona. Mas um deles, uma imagem luminosa de um garotinho romano sendo enganado
por uma dupla de trapaceiros, foi vendido para um negociante cuja loja estava localizada em frente ao palazzo ocupado pelo cardeal Francesco del Monte. A transação
iria mudar completamente o curso da vida de Caravaggio, pois o cardeal, conhecedor e patrono das artes, gostou muito do quadro e o comprou por alguns scudi. Logo
depois, comprou um segundo quadro de Caravaggio mostrando uma vidente que, sorrindo, roubava o anel de um garoto de Roma enquanto lia a palma de sua mão. Em algum
momento, os dois homens se conheceram, embora não esteja claro quem tomou a iniciativa. O cardeal ofereceu ao jovem artista comida, roupas, alojamento e um estúdio
no palazzo. Tudo que pedia de Caravaggio era que ele pintasse. O artista, com 24 anos na época, aceitou a proposta do cardeal. Foi uma das poucas decisões sábias
que tomou.
Depois de se estabelecer em seu quarto no palazzo, Caravaggio produziu vários quadros para o cardeal e seu círculo de amigos ricos, incluindo O Tocador de Ataúde,
Os Músicos, Baco, Marta e Maria Madalena e São Francisco de Assis em Êxtase. Então, em 1599, recebeu seu primeiro pedido público: dois quadros retratando cenas da
vida de São Mateus para a capela Contarelli na Igreja de San Luigi dei Francesi. Os quadros, apesar de controversos, instantaneamente estabeleceram Caravaggio como
o artista mais procurado de Roma. Outros pedidos logo se seguiram, incluindo O Martírio de São Pedro e A Conversão de São Paulo para a capela Cerasi da Igreja de
Santa Maria del Popolo, A Ceia de Emaús, João Batista, A Captura de Cristo, A Incredulidade de São Tomé e O Sacrifício de Isaac. Nem todas suas obras foram aprovadas
quando ficaram prontas. Madonna e a Criança com Santa Ana foi retirada da basílica de São Pedro porque a hierarquia da igreja aparentemente não aprovou o decote
de Maria. O retrato dela com pernas nuas em Morte da Virgem foi considerado tão ofensivo que a igreja que fez o pedido, Santa Maria della Scala, em Trastevere, se
recusou a aceitá-lo. Rubens afirmou que era uma das melhores obras de Caravaggio e o ajudou a encontrar um comprador.
O sucesso como pintor não trouxe tranquilidade à vida pessoal de Caravaggio — na verdade, ela continuava tão caótica e violenta como sempre. Foi preso por andar
com uma espada sem autorização no Campo Marzio. Enfiou um prato de alcachofras no rosto de um garçom na Osteria del Moro. Foi preso por jogar pedras na sbirri, a
polícia papal, na via dei Greci. O incidente de jogar pedras ocorreu às nove e meia de uma noite de outubro de 1604. Nesse momento, Caravaggio estava morando em
uma casa alugada apenas com Cecco, seu aprendiz e modelo ocasional, como companhia. Sua aparência física tinha se deteriorado; era novamente a figura desleixada
usando roupas pretas desalinhadas que vendia seus quadros na rua. Apesar de ter várias encomendas, trabalhava esporadicamente. De alguma forma conseguiu entregar
um monumental retábulo chamado A Deposição de Cristo. Foi considerado por muitos como seu melhor quadro.
Houve mais atritos com as autoridades — seu nome aparece nos registros policiais de Roma cinco vezes só em 1605 —, mas nada mais sério do que o incidente que aconteceu
em 28 de maio de 1606. Era um domingo e, como sempre, Caravaggio fora até as quadras de via della Pallacorda para uma partida de tênis. Lá, ele encontrou Ranuccio
Tomassoni, um lutador de rua e rival nos afetos de uma linda e jovem cortesã que tinha posado para vários dos quadros de Caravaggio. Palavras foram trocadas, e espadas,
desembainhadas. Os detalhes do mêlée são pouco claros, mas terminou com Tomassoni caído no chão com uma profunda ferida no alto de sua coxa. Morreu pouco depois
e, à noite, Caravaggio era o alvo de uma caçada humana por toda a cidade. Procurado por assassinato, um crime com uma única punição possível, ele fugiu para as colinas
Albanas. Nunca mais veria Roma.
Foi para o sul até Nápoles, onde sua reputação como grande pintor o precedia, a despeito do assassinato. Ele deixou para trás As Sete Obras de Misericórdia antes
de navegar para Malta. Lá foi admitido nos Cavalheiros de Malta, uma honra cara pela qual pagou com quadros e, por um breve momento, viveu como um nobre. Então,
uma briga com outro membro da ordem o levou novamente a passar um tempo na prisão. Conseguiu escapar e fugiu para a Sicília onde, segundo informações, era uma alma
louca e perturbada que dormia com uma adaga. Mesmo assim, conseguia pintar. Em Siracusa, ele deixou O Enterro de Santa Lúcia. Em Messina, produziu dois quadros monumentais:
A Ressurreição de Lázaro e o doloroso Adoração dos Pastores. E para o Oratorio di San Lorenzo, em Palermo, pintou Natividade com São Francisco e São Lourenço. Trezentos
e cinquenta e nove anos depois, na noite de 18 de outubro de 1969, dois homens entraram na capela através de uma janela e cortaram a tela de sua moldura. Uma cópia
do quadro está pendurada atrás da mesa do general Cesare Ferrari no palazzo em Roma. Era o alvo número um do Esquadrão de Arte.
— Suspeito que o general já saiba sobre a conexão entre o Caravaggio e Jack Bradshaw — falou Maurice Durand. — Isso explicaria por que ele insistiu tanto para que
você assumisse o caso.
— Você conhece bem o general — falou Gabriel.
— Não tanto — respondeu o francês. — Mas eu o encontrei uma vez.
— Onde?
— Aqui em Paris, em um simpósio sobre crimes contra a arte. O general era um dos palestrantes.
— E você?
— Eu estava na plateia.
— Com que desculpa?
— Como negociante de antiguidades valiosas, claro. — Durand sorriu. — Ele me pareceu um homem sério, muito capaz. Já faz tempo que roubei um quadro na Itália.
Estavam caminhando por uma trilha de cascalho da allée centrale. As nuvens pesadas tinham drenado as cores dos jardins. Era Sisley em vez de Monet.
— É possível? — perguntou Gabriel.
— Que o Caravaggio esteja à venda?
Gabriel assentiu. Durand pareceu pensar muito antes de responder.
— Ouvi todo tipo de história — falou, finalmente. — Que o colecionador que encomendou o roubo se recusou a aceitar o quadro porque ficou muito danificado quando
foi cortado da moldura. Que os chefes da máfia da Sicília costumavam levá-lo durante as reuniões como um tipo de troféu. Que foi destruído em uma enchente. Que foi
comido por ratos. Mas também ouvi rumores — acrescentou ele — de que já esteve à venda antes.
— Quanto valeria no mercado negro?
— Os quadros que Caravaggio produziu enquanto estava fugindo não possuem a mesma profundidade de suas grandes obras romanas. Mesmo assim — acrescentou Durand —,
um Caravaggio ainda é um Caravaggio.
— Quanto, Maurice?
— A regra geral é que um quadro roubado retém dez por cento de seu valor no mercado negro. Se o Caravaggio valesse cinquenta milhões no mercado aberto, sujo chegaria
a uns cinco milhões.
— Não existe mercado aberto para um Caravaggio.
— O que significa que é realmente único. Alguns homens no mundo pagariam quase qualquer valor por ele.
— Você conseguiria vendê-lo?
— Com apenas um telefonema.
Chegaram ao pequeno cais onde vários pequenos veleiros estavam navegando em um minúsculo mar revirado por uma tempestade. Gabriel parou na beira e explicou como
tinha encontrado três quadros roubados — um Parmigianino, um Renoir e um Klimt — escondidos sob cópias de menor valor na villa de Jack Bradshaw no lago Como. Durand,
olhando os barcos, assentia pensativo.
— Parece que estavam prontos para transporte e venda.
— Por que pintar por cima?
— Assim poderiam ser vendidos como obras legítimas. — Durand parou, depois acrescentou: — Obras legítimas de menor valor, claro.
— E quando as vendas fossem finalizadas?
— Uma pessoa como você seria contratada para remover as imagens de cima e preparar os quadros para serem pendurados.
Duas turistas, jovens garotas, posavam para uma fotografia do lado oposto do cais. Gabriel puxou Durand pelo cotovelo e o guiou até a pirâmide do Louvre.
— A pessoa que pintou esses quadros falsos era boa — falou ele. — Boa o suficiente para enganar alguém como eu numa primeira olhada.
— Há muitos artistas talentosos por aí que estão dispostos a oferecer seus serviços para nós, que estamos no lado escuro do negócio. — O francês olhou para Gabriel
e perguntou: — Já teve a ocasião de falsificar um quadro?
— Eu posso ter falsificado um Cassatt uma vez.
— Por uma boa causa, sem dúvida.
Eles continuaram andando, o cascalho fazendo barulho debaixo de seus pés.
— E você, Maurice? Já precisou dos serviços de um falsificador?
— Estamos entrando em território sensível — falou Durand.
— Cruzamos essa fronteira há algum tempo, eu e você.
Eles chegaram à place du Carrousel, viraram à direta e foram até o rio.
— Sempre que possível — falou Durand —, prefiro criar a ilusão de que um quadro roubado não foi realmente roubado.
— Deixa uma cópia no lugar.
— Chamamos de obras substitutas.
— Quantas estão penduradas em museus e casas na Europa?
— Preferia não falar.
— Vamos lá, Maurice.
— Há um homem que faz todo esse trabalho para mim. Ele é rápido, confiável e bastante bom.
— Esse homem tem nome?
Durand hesitou antes de responder. O nome do falsificador era Yves Morel.
— Onde ele estudou?
— Na École Nationale des Beaux-Arts, em Lyon.
— Bastante prestigiada — falou Gabriel. — Por que ele mesmo não se tornou artista?
— Ele tentou. Não saiu como planejava.
— Então se vingou do mundo da arte tornando-se um falsificador?
— Mais ou menos isso.
— Quanta nobreza.
— Quem tem teto de vidro...
— A sua relação é exclusiva?
— Gostaria que fosse, mas não tenho tanto trabalho para ele. Em certas ocasiões, ele aceita pedidos de outros clientes. Um desses clientes era um intermediário recém-falecido
chamado Jack Bradshaw.
Gabriel parou de caminhar e se virou para encarar Durand.
— E é por isso que você sabe tanto sobre as operações de Bradshaw — falou ele. — Estiveram dividindo os serviços do mesmo falsificador.
— Foi tudo bastante Caravaggiesco — respondeu Durand, assentindo.
— Onde Morel trabalhava para Bradshaw?
— Em um quarto no Freeport de Genebra. Bradshaw tinha uma galeria de arte bastante interessante ali. Yves costumava chamar de galeria dos desaparecidos.
— Onde ele está agora?
— Aqui em Paris.
— Onde, Maurice?
Durand tirou a mão do bolso de seu casaco e indicou que o falsificador poderia ser encontrado em algum ponto perto de Sacré-Coeur. Entraram no metrô, o ladrão de
arte e o agente da inteligência, e foram para Montmartre.
12
MONTMARTRE, PARIS
YVES MOREL VIVIA EM UM prédio de apartamentos na rue Ravignon. Quando Durand apertou o botão da campainha, ninguém atendeu.
— Ele deve estar na place du Tertre.
— Fazendo o quê?
— Vendendo cópias de quadros impressionistas famosos para turistas para que as autoridades francesas acreditem que ele tem uma renda legítima.
Caminharam até a praça, uma confusão de cafés a céu aberto com artistas de rua perto da basílica, mas Morel não estava em seu ponto de sempre. Então foram até seu
bar favorito na rue Norvins, mas não havia nenhum sinal dele ali também. Não atendeu uma ligação no seu celular.
— Merde —, falou Durand baixinho, enfiando o celular de novo no bolso do casaco.
— E agora?
— Tenho uma chave do seu apartamento.
— Por quê?
— De vez em quando, ele deixa coisas em seu estúdio para que eu recolha.
— Parece alguém que confia em você.
— Contrariando o dito popular — falou Durand —, há muita honra entre ladrões.
Eles caminharam de volta ao prédio e tocaram a campainha pela segunda vez. Não havendo resposta, Durand tirou um molho de chaves de seu bolso e usou uma para abrir
a porta. Usou a mesma chave para abrir a porta do apartamento de Morel. Estava tomado pela escuridão. Durand mexeu no interruptor da parede, iluminando uma grande
sala aberta que funcionava como estúdio e sala de estar. Gabriel caminhou até um cavalete, sobre o qual havia uma cópia não finalizada de uma paisagem de Pierre
Bonnard.
— Ele vai vender essa para os turistas na place du Tertre?
— Essa é para mim.
— Para quê?
— Use sua imaginação.
Gabriel examinou o quadro mais de perto.
— Se fosse adivinhar — falou ele —, sua intenção é pendurá-lo no Musée des Beaux-Arts, em Nice.
— Você tem um bom olho.
Gabriel se afastou do cavalete e caminhou até a mesa grande e retangular no centro do estúdio. Em cima dela havia uma lona manchada de tinta. Embaixo havia um objeto
de aproximadamente 1,82 m de comprimento e 60 cm de largura.
— Morel é escultor?
— Não.
— Então o que está debaixo da lona?
— Não sei, mas é melhor você dar uma olhada.
Gabriel levantou a ponta da lona e deu uma espiada.
— E então? — perguntou Durand.
— Acho que você vai ter que encontrar outra pessoa para terminar o Bonnard, Maurice.
— Deixe-me ver.
Gabriel levantou a lona.
— Merde — falou Durand baixinho.
PARTE DOIS
GIRASSÓIS
13
SAN REMO, ITÁLIA
O GENERAL FERRARI ESPERAVA PERTO DAS paredes da velha fortaleza em San Remo às duas e meia da tarde seguinte. Usava terno, casaco de lã e óculos escuros que escondiam
seu olho falso que tudo via. Gabriel, vestido de jeans e couro, parecia o irmão mais jovem, o que tinha feito todas as piores escolhas na vida e que precisava, outra
vez, de dinheiro. Enquanto caminhavam pela fonte suja, ele contou ao general o que tinha descoberto, apesar de não revelar suas fontes. O general não pareceu surpreso
com nada do que estava ouvindo.
— Você esqueceu uma coisa — falou ele.
— E qual é?
— Jack Bradshaw não era diplomata. Era espião.
— Como você sabia?
— Todo mundo no negócio de arte sabia do passado de Bradshaw. Era um dos motivos pelos quais ele era tão bom. Mas não se preocupe — acrescentou o general. — Não
vou complicar sua situação com seus amigos de Londres. Tudo que quero é meu Caravaggio.
Eles deixaram a fonte e desceram a colina até o centro da cidade. Gabriel ficou pensando por que alguém iria querer passar as férias ali. A cidade lembrava uma mulher
que já tinha sido bonita e que se arrumava para que pintassem seu retrato.
— Você me enganou — disse ele.
— De jeito nenhum — respondeu o general.
— Como descreveria o que fez?
— Eu não contei certos fatos para não atrapalhar sua investigação.
— Sabia que o Caravaggio estava à venda quando me pediu para investigar a morte de Bradshaw?
— Ouvi rumores sobre isso.
— Já ouviu rumores sobre um colecionador comprando muita arte roubada?
O general assentiu.
— Quem é?
— Não tenho ideia.
— Está me contando a verdade dessa vez?
O general colocou sua mão boa sobre o coração.
— Não sei a identidade da pessoa que está comprando toda peça de arte roubada que consegue encontrar. Nem sei quem está por trás da morte de Jack Bradshaw. — Ele
fez uma pausa, depois acrescentou: — Apesar de suspeitar que seja a mesma pessoa.
— Por que Bradshaw foi assassinado?
— Acho que pode ter perdido sua utilidade.
— Porque ele entregou o Caravaggio?
O general assentiu em dúvida.
— Então por que foi torturado primeiro?
— Talvez seus assassinos quisessem um nome.
— Yves Morel?
— Bradshaw deve ter usado Morel para dar uma melhorada no quadro de modo que pudesse ser vendido. — Ele olhou para Gabriel e perguntou: — Como o mataram?
— Quebraram seu pescoço. Parece ter sido uma separação completa da medula.
O general fez uma careta.
— Silencioso e sem sangue.
— E muito profissional.
— O que você fez com o pobre coitado?
— Vão cuidar dele — falou Gabriel baixinho.
— Quem?
— É melhor não saber os detalhes.
O general balançou a cabeça lentamente. Era agora cúmplice de um crime. Não era a primeira vez.
— Vamos esperar — falou depois de um momento — que a polícia francesa nunca descubra que você esteve no apartamento de Morel. Com seu histórico, eles poderiam ter
a impressão errada.
— Exato — falou Gabriel, taciturno. — Esperemos que não.
Eles entraram na via Roma. Reverberava com o barulho de centenas de scooters. Gabriel, quando voltou a falar, teve de elevar a voz para ser ouvido.
— Quem foi o último dono? — perguntou ele.
— Do Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Nem eu tenho certeza — admitiu o general. — Sempre que prendíamos um mafioso, independentemente de sua importância, ele nos oferecia informações sobre a localização
da Natividade em troca de uma redução da sentença. Chamamos de “carta de Caravaggio”. Não é preciso dizer que perdemos incontáveis horas de trabalho procurando pistas
falsas.
— Achei que você quase o tivesse encontrado há uns anos.
— Eu também, mas escorreu pelos meus dedos. Estava começando a pensar que nunca teria outra oportunidade de recuperá-lo. — Ele sorriu, contra vontade. — E agora
isso.
— Se o quadro foi vendido, provavelmente não está mais na Itália.
— Concordo. Mas minha experiência diz — acrescentou o general — que o melhor momento para encontrar um quadro roubado é imediatamente depois de ter mudado de mãos.
Precisamos agir rapidamente, no entanto. De outra forma, nós poderemos ter que esperar outros 45 anos.
— Nós?
O general parou de caminhar, mas não falou nada.
— Meu envolvimento nesse assunto — falou Gabriel acima do barulho do trânsito — está oficialmente terminado.
— Você prometeu descobrir quem matou Jack Bradshaw em troca de manter o nome do seu amigo fora dos jornais. Até onde vejo, não completou sua missão.
— Forneci uma pista importante, sem mencionar três quadros roubados.
— Mas não o quadro que eu quero. — O general tirou os óculos escuros e fixou seu olhar monocular em Gabriel. — Seu envolvimento nesse caso não terminou, Allon. Na
verdade, está apenas começando.
Eles caminharam até um pequeno bar que dava para a marina. Estava vazio exceto por dois jovens que se queixavam sobre a triste situação da economia. Era uma visão
comum na Itália desses dias. Não havia empregos, nem perspectivas, nem futuro — só as lindas lembranças do passado que o general e sua equipe no Esquadrão de Arte
tinham jurado proteger. Pediu um café e um sanduíche e levou Gabriel até uma mesa do lado de fora, sob a luz fria do sol.
— Francamente — falou ele quando estavam sozinhos de novo —, não sei como você pode pensar em deixar esse caso agora. Seria como deixar um quadro inacabado.
— Meu quadro inacabado está em Veneza — respondeu Gabriel — junto com minha esposa grávida.
— Seu Veronese está seguro. Assim como sua esposa.
Gabriel olhou para uma lata de lixo cheia na ponta da marina e balançou a cabeça. Os antigos romanos tinham inventado o aquecimento central, mas em algum ponto do
caminho seus descendentes tinham esquecido como jogar fora o lixo.
— Poderia demorar meses para encontrar esse quadro — falou ele.
— Não temos meses. Eu diria que temos algumas semanas no máximo.
— Então suponho que você e seus homens deveriam se mexer.
O general balançou a cabeça lentamente.
— Somos bons em grampear telefones e fazer acordos com a escória da máfia. Mas não somos bons em operações secretas, principalmente fora da Itália. Preciso de alguém
que jogue uma isca nas águas do mercado de arte roubada e veja se conseguimos tentar o sr. Grandão a fazer outra aquisição. Ele está aí fora em algum lugar. Você
só precisa encontrar algo que o interesse.
— Em geral, não encontramos obras de arte que valem milhões. Elas são roubadas.
— De forma espetacular — acrescentou o general. — O que significa que não deve ser de uma casa ou galeria particular.
— Está percebendo o que está falando?
— Estou. — O general deu um sorriso conspiratório. — A maioria das operações secretas envolve enviar um comprador falso. Mas a sua será diferente. Você vai aparecer
como o ladrão com uma peça importante para vender. O quadro precisa ser real.
— Por que não me empresta algumas das adoráveis peças da Galleria Borghese?
— O museu nunca aceitaria. Além disso — acrescentou o general —, o quadro não pode ser da Itália. Ou a pessoa que tem o Caravaggio poderia suspeitar do meu envolvimento.
— Você nunca vai conseguir acusar alguém depois de algo assim.
— Acusar alguém está, definitivamente, fora das minhas prioridades. Quero aquele Caravaggio de volta.
O general ficou em silêncio. Gabriel teve que admitir que estava intrigado pela ideia.
— Não tenho como estar à frente da operação — falou depois de um tempo. — Meu rosto é muito conhecido.
— Então, acho que terá que encontrar um bom ator para o papel. E se eu fosse você, contrataria um pouco de músculos também. O submundo pode ser um lugar perigoso.
— Não me diga.
O general não respondeu.
— Músculos não saem barato — falou Gabriel. — E nem ladrões competentes.
— Consegue pegar emprestado alguns do seu serviço?
— Músculos ou ladrões?
— Os dois.
— Sem chance.
— Quanto dinheiro você precisa?
Gabriel pensou um pouco.
— Dois milhões, no mínimo.
— Eu poderia ter um milhão num cofrinho embaixo da minha mesa.
— Eu aceito.
— Na verdade — falou o general, sorrindo —, o dinheiro está no porta-malas do meu carro. Também tenho uma cópia do arquivo do caso Caravaggio. Algo para você ler
enquanto espera o sr. Grandão colocar o barco na água.
— E se ele não morder a isca?
— Acho que você vai ter que roubar outra coisa. — O general deu de ombros. — É a maravilha de roubar obras de arte. Não é tão difícil assim.
O dinheiro, como prometido, estava no porta-malas do sedã oficial do general — um milhão de euros em notas usadas, cuja fonte ele se recusou a especificar. Gabriel
colocou a mala no banco do passageiro de seu carro e foi embora sem falar nada. Quando chegou perto de San Remo, ele já tinha completado os primeiros rascunhos de
sua operação para recuperar o Caravaggio perdido. Tinha financiamento e acesso ao mais bem-sucedido ladrão de arte do mundo. Tudo que precisava agora era alguém
para colocar um quadro roubado no mercado. Um amador não serviria. Precisava de um agente experiente que tivesse sido treinado nas artes negras da fraude. Alguém
que se sentisse confortável na presença de criminosos. Alguém que poderia se virar se as coisas ficassem pesadas. Gabriel conhecia um homem assim do outro lado do
mar, na ilha de Córsega. Era um pouco como Maurice Durand, um velho adversário que agora era cúmplice, mas as semelhanças terminavam aí.
14
CÓRSEGA
ERA QUASE MEIA-NOITE QUANDO a balsa chegou ao porto de Calvi, longe da hora aceitável para se fazer uma ligação telefônica na Córsega, então Gabriel fez o check-in
em um hotel perto do terminal e dormiu. De manhã, tomou café em uma pequena lanchonete de frente para o mar; depois entrou em seu carro e seguiu a sinuosa estrada
na costa oeste. Por um tempo a chuva continuou, mas gradualmente as nuvens diminuíram e o mar passou de granito a turquesa. Gabriel parou na cidade de Porto para
comprar duas garrafas de rosé da Córsega bem geladas e seguiu uma estrada estreita cercada de oliveiras e pinheiros-larício para o interior da ilha. O ar tinha cheiro
de macchia — a densa vegetação formada por alecrim, estevas e lavanda que cobria boa parte da ilha — e nas vilas ele viu muitas mulheres totalmente cobertas de roupas
pretas da viuvez, um sinal de que tinham perdido homens da família para a vendetta. Em outros tempos, as mulheres poderiam ter apontado para ele da maneira típica
da Córsega a fim de avisar sobre os efeitos da occhju, o mau-olhado, mas agora elas evitavam fitá-lo por muito tempo. Sabiam que ele era amigo de dom Anton Orsati,
e amigos do Dom podiam viajar para qualquer lugar na Córsega sem medo de represálias.
Por mais de dois séculos, o clã Orsati estava associado a duas coisas na ilha da Córsega: azeite de oliva e morte. O azeite vinha das oliveiras que se espalhavam
por suas grandes propriedades; a morte vinha das mãos de seus assassinos. Os Orsatis matavam em nome daqueles que não poderiam matar por si mesmos: poderosos que
eram muito sensíveis para sujar suas mãos; mulheres que não tinham homens para realizar a tarefa para elas. Ninguém sabia quantos moradores da ilha tinham morrido
nas mãos dos assassinos dos Orsati, muito menos os próprios Orsatis, mas a tradição colocava o número nos milhares. Poderia ser significativamente mais alto se não
fosse pelo rigoroso processo de veto do clã. Os Orsatis operavam com um código estrito. Recusavam-se a realizar um assassinato se não tivessem certeza de que a pessoa
pedindo tivesse sido injustiçada e uma vingança com sangue fosse realmente necessária.
Isso mudou, no entanto, com dom Anton Orsati. Quando ele assumiu o controle da família, as autoridades francesas tinham erradicado as disputas e as vinganças em
quase todas as partes, menos nos bolsões mais isolados da ilha, deixando poucos moradores com a necessidade de pedir os serviços de seu taddunaghiu. Com a demanda
local em declínio, Orsati precisou procurar oportunidades em outro lugar — quer dizer, do outro lado do mar, na Europa continental. Ele agora aceitava quase qualquer
oferta que cruzava sua mesa, não importava se fosse desagradável, e seus assassinos eram vistos como os mais confiáveis e profissionais do continente. Na verdade,
Gabriel era uma das únicas duas pessoas que já tinham sobrevivido a um contrato da família Orsati.
Dom Anton Orsati vivia nas montanhas no centro da ilha, cercado pelas muralhas de macchia e muitos guarda-costas. Dois estavam parados no portão. Ao verem Gabriel,
eles convidaram-no a entrar. Uma estrada de terra o levou através de oliveiras Van Gogh e, no final, até a entrada da imensa villa. Mais guarda-costas esperavam
do lado de fora. Fizeram uma revista apressada nos pertences de Gabriel, em seguida, um assassino moreno de cara comprida, que parecia ter uns vinte anos, o acompanhou
até o escritório de Orsati no andar de cima. Era um espaço largo com móveis rústicos e um terraço que dava para um vale particular. A madeira macchia queimava na
lareira de pedra. Perfumava o ar com alecrim e sálvia.
No centro da sala estava a larga mesa de carvalho na qual Dom trabalhava. Havia uma garrafa decorativa de azeite de oliva Orsati, um telefone que ele raramente usava
e um livro com capa de couro que continha os segredos de seu negócio. Seus taddunaghiu eram todos empregados da Companhia de Azeite de Oliva Orsati, e os assassinatos
que realizavam eram agendados como pedidos de produto, o que significava que, no mundo de Orsati, azeite e sangue fluíam juntos em um empreendimento homogêneo. Todos
seus assassinos eram descendentes de moradores locais, exceto um. Por causa de seu extenso treinamento, ele era encarregado apenas dos trabalhos mais difíceis. Também
era diretor de vendas de um lucrativo mercado central europeu.
O Dom era um homem grande para os padrões da Córsega, com mais de 1,80 m e de costas e ombros largos. Estava usando calças soltas, sandálias de couro empoeiradas
e uma camisa branca que sua mulher passava para ele toda manhã e novamente de tarde quando ele se levantava de sua sesta. Seu cabelo era negro, como seus olhos.
Sua mão, quando apertou a de Gabriel, parecia ter sido esculpida em pedra.
— Bem-vindo à Córsega — falou Orsati, enquanto pegava as duas garrafas de rosé que Gabriel trazia. — Eu sabia que não conseguiria ficar longe por muito tempo. Não
entenda mal, Gabriel, mas sempre achei que você tinha um pouco de sangue da Córsega nas veias.
— Posso garantir, dom Orsati, que não é o caso.
— Não importa. Você praticamente é um dos nossos agora. — O Dom abaixou a voz e acrescentou: — Homens que matam juntos desenvolvem uma ligação que não pode ser quebrada.
— Esse é um dos seus provérbios da Córsega?
— Nossos provérbios são sagrados e corretos, o que já é um provérbio em si. — Orsati sorriu. — Achei que estaria em Veneza com sua esposa.
— Eu estava — respondeu Gabriel.
— Então, o que o traz à Córsega? Negócios ou prazer?
— Negócios, infelizmente.
— O que foi dessa vez?
— Um favor.
— Outro?
Gabriel assentiu.
— Aqui na Córsega — falou o Dom, franzindo a testa em desaprovação — acreditamos que o destino de um homem está escrito ao nascer. E você, meu amigo, parece destinado
a sempre resolver problemas para outras pessoas.
— Há destinos piores, Dom Orsati.
— Deus ajuda a quem se ajuda.
— Quanta caridade — falou Gabriel.
— Caridade é para padres e tolos. — Olhou para a maleta na mão de Gabriel. — O que tem na mala?
— Um milhão de euro em notas usadas.
— Onde conseguiu tudo isso?
— Com um amigo em Roma.
— Um italiano?
Gabriel assentiu.
— No final de muitos desastres — falou Dom Orsati, sombrio —, há sempre um italiano.
— Estou casado com uma.
— E é por isso que sempre acendo velas por você.
Gabriel tentou, mas não conseguiu reprimir um sorriso.
— Como ela está? — perguntou o Dom.
— Parece que sempre a deixo brava. Tirando isso, está muito bem.
— É a gravidez — falou Orsati, pensativo. — Quando as crianças nascerem, tudo vai ser diferente.
— Como?
— Será como se você não existisse. — Ele voltou a olhar para a maleta. — Por que você anda por aí com um milhão de euros em notas usadas?
— Pediram-me que encontrasse algo valioso e vai ser preciso bastante dinheiro para recuperá-lo.
— Outra garota perdida? — perguntou o Dom.
— Não — respondeu Gabriel. — Isso.
Gabriel entregou a Orsati a fotografia de uma moldura vazia pendurada em cima do altar do Oratorio di San Lorenzo. Dom Orsati reconheceu imediatamente.
— A Natividade? — perguntou ele.
— Nunca soube que você era um homem das artes, dom Orsati.
— Não sou — admitiu ele—, mas segui o caso durante uns anos.
— Algum motivo em particular?
— Por acaso estava em Palermo na noite em que o Caravaggio foi roubado. Na verdade — acrescentou dom Orsati, com um sorriso —, tenho quase certeza de que fui eu
quem descobriu que tinha sumido.
No terraço de frente para o vale, dom Anton Orsati contou como, no final do verão de 1969, apareceu na Córsega um empresário siciliano chamado Renato Francona. O
siciliano queria vingança por sua linda filha, que tinha sido assassinada algumas semanas antes por Sandro di Luca, um membro importante da Cosa Nostra. Dom Carlu
Orsati, então chefe do clã Orsati, não queria participar disso. Mas seu filho, um assassino talentoso chamado Anton, acabou convencendo seu pai para que deixasse
que ele fizesse o trabalho pessoalmente. Tudo aconteceu como planejado naquela noite exceto pelo clima, que o impediu de sair de Palermo. Não tendo nada melhor para
fazer, o jovem Anton procurou uma igreja para confessar seus pecados. A igreja em que entrou foi o Oratorio di San Lorenzo.
— E isso — falou Orsati, segurando a foto da moldura vazia —, foi exatamente o que eu vi naquela noite. Claro que não informei a polícia sobre o roubo.
— O que aconteceu com Renato Francona?
— A Cosa Nostra o matou algumas semanas depois.
— Eles presumiram que estava por trás do assassinato de di Luca?
Orsati assentiu, sério.
— Mas pelo menos morreu com honra.
— Por quê?
— Porque tinha vingado o assassinato de sua filha.
— E ainda perguntam por que a Sicília não é a força econômica e intelectual do Mediterrâneo.
— Não se ganha dinheiro com a felicidade — falou o Dom.
— O que quer dizer?
— A vingança manteve essa família nos negócios por gerações — respondeu. — E o assassinato de Sandro di Luca provou que poderíamos operar fora da Córsega sem sermos
detectados. Meu pai foi contra aquilo até sua morte. Mas quando faleceu, transformei os negócios da família em algo internacional.
— Se você não cresce, morre.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente — respondeu Gabriel.
A mesa estava posta para um tradicional almoço da Córsega com comidas condimentadas com macchia. Gabriel se serviu com os vegetais e queijos, mas ignorou a linguiça.
— É kosher — falou o Dom, enquanto colocava vários pedaços de carne no prato de Gabriel.
— Não sabia que havia algum rabino na Córsega.
— Muitos — garantiu.
Gabriel deixou a linguiça de lado e perguntou ao Dom se ele ainda ia à igreja depois de matar alguém.
— Se eu fosse — respondeu ele —, passaria mais tempo de joelhos do que uma lavadeira. Além disso, nesse ponto já não tenho mais salvação. Deus pode fazer o que quiser
comigo.
— Gostaria de ver a conversa entre você e Deus.
— Poderia ser durante um típico almoço da Córsega. — Orsati sorriu e encheu a taça de Gabriel com o rosé. — Vou lhe contar um segredo — falou, colocando a garrafa
de volta no centro da mesa. — A maioria das pessoas que matamos merece morrer. Do nosso jeito, o clã Orsati fez do mundo um lugar melhor.
— Se sentiria assim se tivesse me matado?
— Não seja tolo — respondeu o Dom. — Permitir que você vivesse foi a melhor decisão que já tomei.
— Até onde me lembro, dom Orsati, você não teve nada a ver com a decisão de me deixar viver. Na verdade — acrescentou Gabriel enfaticamente —, você era contra.
— Mesmo eu, o infalível dom Anton Orsati, cometo erros de vez em quando, apesar de que nunca faria nada tão tolo quanto concordar em encontrar um Caravaggio para
os italianos.
— Não tive muita escolha nessa questão.
— É algo ridículo.
— Minha especialidade.
— Os carabinieri estão procurando aquele quadro há mais de quarenta anos, e nunca conseguiram achar. Na minha opinião, provavelmente foi destruído há muito tempo.
— Não é o que se diz por aí.
— O que você ouviu?
Gabriel respondeu a questão contando ao Dom as mesmas coisas que tinha dito ao general Ferrari em San Remo. Então explicou seu plano para recuperar o quadro. O Dom
ficou bastante intrigado.
— O que isso tem a ver com os Orsatis? — perguntou.
— Preciso de um de seus homens emprestado.
— Algum em especial?
— O diretor de vendas da Europa central.
— Que surpresa.
Gabriel não falou nada.
— E se eu concordar?
— Uma mão lava a outra — falou Gabriel — e as duas lavam o rosto.
O Dom sorriu.
— Talvez você seja da Córsega, afinal de contas.
Gabriel olhou para o vale e sorriu.
— Não tive essa sorte, dom Orsati.
15
CÓRSEGA
INFELIZMENTE, O HOMEM que Gabriel precisava para encontrar o Caravaggio estava fora da ilha a negócios. Dom Orsati não quis dizer onde ele estava ou se seus negócios
tinham a ver com azeite ou sangue, só que iria voltar em dois dias, três no máximo. Deu a Gabriel um revólver Tanfoglio e as chaves de uma villa no vale seguinte,
onde poderia esperar. Gabriel conhecia bem a villa. Tinha ficado ali com Chiara depois da última operação deles e, em seu terraço tomado pelo sol, recebido a notícia
de que ela estava grávida. Só havia um problema com a casa: para chegar até lá, Gabriel tinha que passar por três antigas oliveiras onde sempre estava o infeliz
bode de dom Casabianca tomando conta, desafiando todos que ousassem entrar em seu território. O bode velho era uma criatura maligna em geral, mas parecia reservar
um ódio especial contra Gabriel, com quem já tivera numerosos confrontos cheios de mútuas ameaças e insultos. Dom Orsati, no final do almoço, prometeu falar com
dom Casabianca em nome de Gabriel.
— Talvez ele possa convencer a besta — acrescentou o Dom, cético.
— Ou talvez ele possa transformar o bicho em uma bolsa e um par de sapatos.
— Não venha com ideias — disse. — Se você tocar um pelo da cabeça daquele maldito bode, vai ser um desastre.
— E se ele simplesmente desaparecesse?
— A macchia não tem olhos — avisou o Dom —, mas vê tudo.
Com isso, acompanhou Gabriel até a saída para seu carro. Ele seguiu o caminho até voltar à estrada de terra, continuou um pouco mais adiante, e quando chegou até
uma curva fechada à esquerda, viu o bode de dom Casabianca amarrado a uma das três antigas oliveiras, com um olhar de humilhação em sua cara grisalha. Gabriel abaixou
a janela e, em italiano, soltou vários insultos contra o bode falando de sua aparência, seus ancestrais e da degradação de sua situação atual. Depois, rindo, subiu
a colina até a villa.
Era uma casa pequena, com um telhado vermelho e grandes janelas voltadas para o vale. Quando Gabriel entrou, percebeu instantaneamente que ele e Chiara tinham sido
os últimos ocupantes. Seu bloco de desenho estava sobre a mesinha de centro na sala de estar, e na geladeira encontrou uma garrafa fechada de Chablis que tinha sido
um presente do ausente diretor de vendas europeias de dom Orsati. As prateleiras da despensa estavam vazias. Gabriel abriu as portas francesas para que a brisa da
tarde entrasse e se sentou no terraço, lendo o arquivo de Caravaggio do general, até que o frio o obrigou a entrar. Nesse momento, era um pouco depois das quatro
da tarde e o sol parecia se equilibrar sobre a beira do vale. Tomou um banho rápido, mudou de roupa e foi de carro até a vila para fazer umas compras antes que as
lojas fechassem.
Já havia um povoado nesse canto isolado da Córsega desde os dias complicados depois da queda do Império Romano, quando os vândalos saqueavam as costas com tanta
violência que os nativos aterrorizados não tiveram outra escolha a não ser fugir para as colinas para sobreviver. Uma única e velha rua subia em espiral passando
por casas de campo e edifícios de apartamentos até uma grande praça no ponto mais alto da vila. Em três lados havia lojas e cafés; no quarto, estava a velha igreja.
Gabriel encontrou um lugar para estacionar e começou a andar até o mercado, mas decidiu que precisava de um espresso antes. Entrou em um dos cafés e sentou-se a
uma mesa onde conseguia ver os homens jogando boules na praça sob a luz de um poste. Um dos homens reconheceu Gabriel como um dos amigos de dom Orsati e o convidou
a jogar. Gabriel fingiu que tinha um problema no ombro e, em francês, disse que preferia apenas olhar. Não disse que precisava fazer compras. Na Córsega, ainda são
as mulheres que fazem as compras.
Nesse momento, os sinos da igreja marcaram as cinco horas. Alguns minutos depois, suas pesadas portas de madeira se abriram e um padre com batina preta saiu na escada.
Ele ficou sorrindo ali, benevolente, enquanto vários paroquianos, principalmente mulheres velhas, enchiam a praça. Uma das mulheres, depois de cumprimentar o padre,
parou de repente, como se só ela tivesse percebido a presença do perigo. Então voltou a caminhar e desapareceu por uma porta de uma velha casa ao lado da paróquia.
Gabriel pediu outro café. Então mudou de ideia e pediu uma taça de vinho tinto no lugar. O crepúsculo já era apenas uma lembrança; as luzes iluminavam as lojas e
as janelas da casinha torta ao lado da paróquia. Um menino de uns dez anos com cabelo encaracolado comprido estava agora parado na porta, que estava aberta alguns
centímetros. Uma pequena mão pálida apareceu na abertura segurando um pedaço de papel azul. O menino agarrou o papel e cruzou a praça até o café, onde o colocou
em cima da mesa de Gabriel ao lado da taça de vinho tinto.
— O que foi dessa vez? — perguntou ele.
— Ela não falou — respondeu o menino. — Ela nunca fala.
Gabriel deu umas moedas ao menino para comprar um doce e bebeu o vinho enquanto a noite caía sobre a praça. Finalmente, pegou o pedaço de papel e leu a única frase
que estava escrita ali:
Posso ajudá-lo a encontrar o que você está procurando.
Gabriel sorriu, enfiou o papel no bolso, e terminou seu vinho. Então se levantou e cruzou a praça.
Ela estava parada na entrada para recebê-lo, um xale sobre seus ombros magros. Os olhos eram fundos e negros; seu rosto era tão branco quanto farinha. Ela olhou
um tempo para ele antes de finalmente esticar sua mão. Era quente e leve. Parecia que estava segurando um passarinho.
— Bem-vindo de volta à Córsega — falou ela.
— Como soube que eu estava aqui?
— Eu sei de tudo.
— Então me conte como cheguei à ilha.
— Não me insulte.
O ceticismo de Gabriel era fingido. Ele há muito tempo tinha abandonado as dúvidas de que a velha tinha capacidade de ver tanto o passado quanto o futuro. Ela apertou
as mãos dele e fechou os olhos. — Você estava vivendo na cidade da água com sua esposa e trabalhando numa igreja onde um grande pintor foi enterrado. Estava feliz,
realmente feliz, pela primeira vez em sua vida. Então uma criatura de um olho só apareceu e...
— Certo — falou Gabriel. — Já me convenceu.
Ela liberou a mão de Gabriel e apontou para a pequena mesa de madeira em sua sala. Em cima havia um prato raso com água e uma garrafa de azeite de oliva. Eram as
ferramentas que usava. A velha era uma signadora. Os habitantes da ilha acreditavam que ela tinha o poder de curar os infectados pelo occhju, o mau-olhado. Gabriel
já suspeitou que ela era apenas uma charlatã, mas tinha mudado de ideia.
— Sente-se — falou ela.
— Não — respondeu Gabriel.
— Por que não?
— Porque não acreditamos nessas coisas.
— Israelitas?
— Isso — respondeu ele. — Israelitas.
— Mas já fez isso antes.
— Você me contou coisas sobre meu passado, coisas que não poderia saber.
— Então estava curioso?
— Acho que sim.
— E não está curioso agora?
A mulher se sentou em seu lugar de sempre à mesa e acendeu uma vela. Depois de um momento de hesitação, Gabriel se sentou em frente a ela. Empurrou a jarra de azeite
para o centro da mesa e entrelaçou as mãos, concentrado. A velha fechou os olhos.
— A criatura de um olho só pediu que você encontrasse algo para ele, não foi?
— Foi — respondeu Gabriel.
— É um quadro, não é? O trabalho de um louco, um assassino. Foi roubado de uma pequena igreja há muitos anos, de uma ilha do outro lado do mar.
— Dom Orsati contou isso para você?
A velha abriu os olhos.
— Nunca falei com o Dom sobre esse assunto.
— Continue.
— O quadro foi roubado por homens como o Dom, só que piores. Eles trataram o quadro muito mal. Uma parte dele foi destruída.
— Mas o quadro sobreviveu?
— Sobreviveu — falou ela, assentindo lentamente. — Ele sobreviveu.
— Onde está agora?
— Está perto.
— Perto de onde?
— Não sei dizer. Mas se você realizar o teste do azeite e da água — acrescentou ela olhando para o centro da mesa —, talvez eu possa ajudar.
Gabriel não se moveu.
— Do que você tem medo? — perguntou a velha.
— De você — respondeu Gabriel, honestamente.
— Você tem a força de Deus. Por que iria ter medo de alguém tão frágil e velha como eu?
— Porque você tem poderes também.
— Poderes de visão — falou ela. — Mas não poderes terrenos.
— A capacidade de ver o futuro é uma grande vantagem.
— Especialmente para alguém em sua linha de trabalho.
— Exato — concordou Gabriel, sorrindo.
— Então por que você não quer realizar o teste do azeite e da água?
Gabriel ficou em silêncio.
— Você perdeu muitas coisas — disse a velha, suavemente. — Uma esposa, um filho, sua mãe. Mas seus dias de luto ficaram para trás.
— Os meus inimigos vão tentar matar minha esposa?
— Nem ela nem seus filhos vão sofrer.
A velha apontou com a cabeça para a jarra de azeite de oliva. Dessa vez, Gabriel enfiou o dedo indicador nela e deixou que três gotas caíssem sobre a água. Pelas
leis da física, o azeite deveria ter se juntado em uma única porção. Em vez disso, ele se dividiu em milhares de gotinhas e logo desapareceu.
— Você está infectado com o occhju — falou a velha, com gravidade. — Seria bom que me deixasse entrar em seu sistema.
— Prefiro tomar duas aspirinas.
A mulher olhou para o prato de água e azeite.
— O quadro que você está procurando mostra o Menino Jesus, não é?
— É.
— Que curioso que um homem como você esteja procurando nosso Senhor e salvador. — Ela olhou novamente para o prato de água e azeite. — O quadro foi retirado da ilha
pela água. Parece diferente do que era antes.
— Por quê?
— Foi reparado. O homem que fez o trabalho agora está morto. Mas você já sabe disso.
— Algum dia você vai ter que me mostrar como faz isso.
— Não é algo que pode ser ensinado. É um dom de Deus.
— Onde está o quadro agora?
— Não sei dizer.
— Quem está com ele?
— Está além dos meus poderes saber o nome dele. A mulher pode ajudar você a encontrá-lo.
— Que mulher?
— Não sei dizer. Não deixe que nenhum mal aconteça com ela ou vai perder tudo.
A cabeça da velha caiu sobre seu ombro; a profecia a deixara exausta. Gabriel colocou várias notas debaixo do prato de água e azeite.
— Tenho mais uma coisa para contar antes de você ir embora — falou a velha quando Gabriel se levantou.
— O que é?
— Sua esposa deixou a cidade de água.
— Quando? — perguntou Gabriel.
— Enquanto você estava na companhia da criatura de um olho só na cidade perto do mar.
— Onde ela está agora?
— Está esperando por você — falou a velha — na cidade da luz.
— Isso é tudo?
— Não — falou ela enquanto fechava suas pálpebras. — O velho não vai viver muito. Faça as pazes com ele antes que seja tarde demais.
Ela estava certa pelo menos sobre uma coisa: parecia que Chiara tinha realmente saído de Veneza. Durante uma breve ligação para seu celular, ela tinha falado que
estava se sentindo bem e que tinha voltado a chover. Gabriel rapidamente verificou o clima em Veneza e viu que fazia sol há vários dias. Ligações para o telefone
no apartamento deles não tinham resposta, e seu pai, o inescrutável rabino Zolli, parecia ter uma lista de desculpas prontas para explicar por que sua filha não
estava em sua mesa. Ela estava fazendo compras, ou na livraria do gueto, ou visitando os idosos no asilo. “Vou pedir que ligue para você assim que voltar. Shalom,
Gabriel.” Gabriel se perguntava se o guarda-costas bonitão do general era cúmplice no desaparecimento de Chiara ou se ele tinha sido enganado, também. Suspeitava
que era a segunda opção. Chiara era mais bem treinada e experiente do que qualquer carabinieri musculoso.
Ia duas vezes à vila, uma de manhã para tomar espresso com pão e novamente à tarde para tomar uma taça de vinho no café perto do jogo de boules. Nas duas ocasiões
ele via a signadora saindo da igreja depois da missa. Na primeira tarde, ela não prestou atenção nele. Mas na segunda, o menino com cabelo enrolado apareceu em sua
mesa com outro bilhete. Parecia que o homem por quem Gabriel estava esperando chegaria em Calvi de barco no dia seguinte. Gabriel telefonou para dom Orsati, que
confirmou que era verdade.
— Como você sabia? — perguntou ele.
— O macchia não tem olhos — falou Gabriel enigmático, e desligou. Passou a manhã seguinte dando os últimos retoques no seu plano para encontrar o Caravaggio desaparecido.
Então, ao meio-dia, caminhou até as três antigas oliveiras e liberou o bode de dom Casabianca de seu laço. Uma hora depois viu um Renault velho subindo o vale em
uma nuvem de poeira. Quando se aproximou das oliveiras, o velho bode apareceu desafiador no seu caminho. O carro tocou a buzina e logo o vale ecoava com insultos
e ameaças de uma tremenda violência. Gabriel foi até cozinha e abriu o Chablis. O inglês tinha voltado à Córsega.
16
CÓRSEGA
NÃO ERA SEMPRE QUE alguém tinha a oportunidade de apertar a mão de um morto, mas isso foi precisamente o que aconteceu, dois minutos depois, quando Christopher Keller
cruzou a porta da villa. De acordo com os registros militares britânicos, ele tinha morrido em janeiro de 1991, durante a primeira guerra do Golfo, quando seu esquadrão
de Serviços Aéreos Especiais Sabre foi atacado pela força aérea da Coalizão em um trágico caso de fogo amigo. Seus pais, dois respeitados médicos de Harley Street,
apareceram em público para falar sobre seu heroísmo, embora em particular dissessem que ele nunca teria morrido se tivesse ficado em Cambridge em vez de ter se alistado
no exército. Até hoje, ainda não sabem que só ele tinha sobrevivido ao ataque contra seu esquadrão. Nem sabem que, depois de sair do Iraque disfarçado de árabe,
tinha cruzado a Europa até a Córsega, onde havia sido recebido de braços abertos por dom Anton Orsati. Gabriel tinha perdoado Keller por tentar matá-lo uma vez.
Mas não podia perdoar o fato de que o inglês tinha deixado que seus pais envelhecessem acreditando que seu único filho estava morto.
Keller parecia bem para um morto. Seus olhos eram claros e azuis, seu cabelo curto era quase branco pelo mar e o sol, sua pele estava esticada e muito bronzeada.
Usava uma camisa branca aberta no pescoço e um terno amassado pela viagem. Quando tirou o terno, a letalidade de seu físico foi revelada. Tudo em Keller, de seus
poderosos ombros a seus antebraços fortes, parecia ter sido criado expressamente para matar. Ele colocou o terno sobre as costas de uma cadeira e olhou para a Tanfoglio
sobre a mesa de centro, próxima ao arquivo do general sobre o Caravaggio.
— É minha — falou sobre a arma.
— Não mais.
Keller foi até a garrafa aberta de Chablis e se serviu de uma taça.
— Como foi sua viagem? — perguntou Gabriel.
— Bem-sucedida.
— Tinha medo que falasse isso.
— Melhor do que a alternativa.
— Que tipo de trabalho foi?
— Estava entregando comida e remédios a viúvas e órfãos.
— Onde?
— Varsóvia.
— Minha cidade favorita.
— Deus, que lixo. E o clima é adorável nessa época do ano.
— O que você estava realmente fazendo, Christopher?
— Cuidando de um problema para um banqueiro na Suíça.
— Que tipo de problema?
— Um problema russo.
— O russo tem nome?
— Vamos chamá-lo de Igor.
— Igor era boa gente?
— Nem perto.
— Mafiya?
— Até a medula.
— Aposto que Igor da mafiya confiou seu dinheiro a um banqueiro na Suíça.
— Muito dinheiro — falou Keller. — Mas estava infeliz com os juros que estava ganhando com seus investimentos. Disse ao banqueiro suíço para melhorar seu desempenho.
Ou iria matar o banqueiro, sua esposa, seus filhos e seu cachorro.
— Então o banqueiro suíço pediu ajuda a dom Orsati.
— Que opção ele tinha?
— O que aconteceu com o russo?
— Ele teve um problema depois de uma reunião com um possível sócio. Não vou entediá-lo com detalhes.
— E o dinheiro dele?
— Uma parte foi transferida para uma conta controlada pela Empresa de Azeite de Oliva Orsati. O resto ainda está na Suíça. Sabe como são esses banqueiros suíços
— acrescentou Keller. — Não gostam de se afastar do dinheiro.
O inglês se sentou no sofá, abriu o arquivo sobre Caravaggio e tirou a foto da moldura vazia no Oratorio di San Lorenzo.
— Uma pena — falou, balançando a cabeça. — Esses malditos sicilianos não têm respeito por nada.
— Dom Orsati já contou que foi ele que descobriu que o quadro tinha sido roubado?
— Deve ter mencionado isso uma noite quando seu poço de provérbios da Córsega secou. É uma pena que ele não chegou no oratório alguns minutos antes — acrescentou
Keller. — Poderia ter evitado que os ladrões roubassem o quadro.
— Ou os ladrões poderiam tê-lo matado antes de sair da igreja.
— Você subestima o Dom.
— Nunca.
Keller devolveu a fotografia ao arquivo.
— O que isso tem a ver comigo?
— Os carabinieri me contrataram para recuperar o quadro. Preciso da sua ajuda.
— Que tipo de ajuda?
— Nada muito importante — respondeu Gabriel. — Só preciso que você roube uma obra de arte de valor incalculável e a venda ao homem que matou duas pessoas em menos
de uma semana.
— Só isso? — Keller sorriu. — Estava com medo de que fosse me pedir algo difícil.
Gabriel contou toda a história, começando com a infeliz visita de Julian Isherwood ao lago Como e terminando com a proposta pouco ortodoxa do general Ferrari para
recuperar o quadro roubado mais cobiçado do mundo. Keller permaneceu imóvel o tempo todo, os braços sobre os joelhos, as mãos cruzadas, como um penitente relutante.
Sua capacidade de ficar longos períodos completamente imóvel deixava até mesmo Gabriel nervoso. Enquanto servia no SAS na Irlanda do Norte, Keller tinha se especializado
em observação próxima, uma técnica perigosa de vigilância que exigia que passasse semanas em “esconderijos” apertados como sótãos e celeiros. Também tinha se infiltrado
no IRA ao se passar por um católico de Belfast ocidental, e era por isso que Gabriel tinha confiança de que Keller poderia assumir o papel de um ladrão de arte com
um quadro importante para vender. O inglês, no entanto, não estava tão seguro.
— Não é o que eu faço — falou ele quando Gabriel terminou a apresentação. — Eu espiono pessoas, mato pessoas, explodo coisas. Mas não roubo quadros. E não os vendo
no mercado negro.
— Se você pode se fazer passar por um católico de Ballymurphy, pode fingir ser um cara do leste de Londres. Se bem me lembro — acrescentou Gabriel —, você é bastante
bom com sotaques.
— É verdade — admitiu Keller. — Mas sei muito pouco sobre arte.
— A maioria dos ladrões também. É por isso que são ladrões em vez de curadores ou historiadores de arte. Mas não se preocupe, Keller. Vou estar o tempo todo sussurrando
no seu ouvido.
— Não consigo dizer o quanto estou ansioso por esse momento.
Gabriel não falou nada.
— E os italianos? — perguntou Keller.
— O que tem?
— Sou um assassino profissional que, ocasionalmente, e eles sabem disso, teve que cumprir tarefas em solo italiano. Não serei capaz de voltar lá se seu amigo dos
carabinieri descobrir que estive trabalhando com você.
— O general nunca vai saber que você esteve envolvido.
— Como pode ter certeza?
— Porque ele não quer saber.
Keller não pareceu convencido. Acendeu um cigarro e soltou uma nuvem de fumaça para o teto, pensativo.
— Você precisa fazer isso? — perguntou Gabriel.
— Me ajuda a pensar.
— Dificulta minha respiração.
— Tem certeza de que você é israelense?
— O Dom parece pensar que sou um corso enrustido.
— Não é possível — falou Keller. — Nenhum corso teria concordado em encontrar um quadro que está perdido há mais de quarenta anos, especialmente para um maldito
italiano.
Gabriel foi até a cozinha, pegou um pires do armário e colocou na frente de Keller. O inglês deu uma última tragada antes de apagar o cigarro.
— Quanto dinheiro você planeja usar?
Gabriel contou a Keller sobre a mala cheia de um milhão de euros que o general tinha lhe dado.
— Um milhão não vai ser suficiente.
— Você tem algum trocado sobrando por aí?
— Posso ter um troco que sobrou do trabalho em Varsóvia.
— Quanto?
— Quinhentos ou seiscentos.
— É muito generoso de sua parte, Christopher.
— É meu dinheiro.
— O que são quinhentos ou seiscentos entre amigos?
— Muito dinheiro. — Keller soltou um longo suspiro. — Ainda não tenho certeza se consigo fazer isso.
— Isso o quê?
— Fingir ser um ladrão de arte.
— Você mata pessoas por dinheiro — falou Gabriel. — Não acho que será um grande esforço.
Vestir Christopher Keller para o papel de um ladrão de arte internacional acabou sendo a parte mais fácil de sua preparação, pois nos guarda-roupas de sua villa
havia uma grande seleção de roupas para qualquer ocasião ou assassinato. Havia Keller, o boêmio viajante; Keller, o playboy de elite; e Keller, o montanhista. Havia
até um Keller, o padre católico romano, completo com um breviário e um kit de missa para viagem. No final, Gabriel escolheu o tipo de roupas que Keller usaria naturalmente
— camisa branca, terno escuro e um par de sapatos da moda. Ele colocou alguns acessórios como várias correntes e braceletes de ouro, um relógio suíço muito chamativo,
óculos com lentes azuis e uma peruca loira com um topete denso. Keller tinha seu próprio passaporte britânico e cartões de crédito em nome de Peter Rutledge. Gabriel
achou que parecia um pouco classe alta demais para um criminoso do East End, mas não importava. Ninguém no mundo da arte iria conhecer o nome do ladrão.
17
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
REUNIRAM-SE NO ESCRITÓRIO APERTADO de Antiquités Scientifiques às onze da manhã seguinte: o ladrão de arte, o assassino profissional e o antigo e futuro agente do
serviço secreto israelense. O agente explicou rapidamente ao ladrão de arte como ele esperava encontrar o há muito desaparecido retábulo de Caravaggio. O ladrão,
como o assassino anteriormente, duvidou do plano.
— Eu roubo quadros — afirmou ele, em um tom cansado. — Não encontro quadros para ajudar a polícia. Na verdade, eu faço o máximo para evitar a polícia.
— Os italianos nunca vão saber sobre seu envolvimento.
— É o que você diz.
— Preciso lembrá-lo que o homem que adquiriu o Caravaggio matou seu amigo e sócio?
— Não, monsieur Allon, não precisa.
A campainha tocou. Maurice Durand ignorou.
— O que quer que eu faça?
— Preciso que roube algo que nenhum colecionador sujo poderia resistir.
— E depois?
— Quando os rumores começarem a se espalhar pelo submundo da arte que o quadro está em Paris, vou precisar que aponte os abutres na direção certa.
Durand olhou para Keller.
— Para ele?
Gabriel assentiu.
— E por que os abutres vão pensar que o quadro está em Paris?
— Porque vou contar a eles.
— Você pensa em tudo, não é, monsieur Allon?
— A melhor forma de ganhar um jogo de azar é remover o azar da equação.
— Vou tentar me lembrar disso. — Durand olhou para Keller de novo e perguntou: — Quanto ele sabe sobre o negócio de roubo de arte?
— Nada — admitiu Gabriel. — Mas ele aprende rápido.
— O que ele faz para viver?
— Cuida de viúvas e órfãos.
— Sei — falou Durand, cético. — E eu sou o presidente da França.
Eles passaram o resto do dia trabalhando nos detalhes da operação. Então, quando a noite caiu sobre o oitavo Arrondissement, monsieur Durand mudou a placa na janela
de OUVERT para FERMÉ, e eles saíram para a rue de Miromesnil. O ladrão de arte foi até a brasserie do outro lado da rua para sua taça noturna de vinho tinto, o assassino
tomou um táxi até um hotel na rue de Rivoli e o antigo e futuro agente da inteligência israelense caminhou até um apartamento seguro do Escritório com vista para
Pont Marie. Viu uma dupla de agentes de segurança sentados em um carro estacionado na entrada do prédio; e quando entrou no apartamento, sentiu o aroma de comida
e ouviu Chiara cantando baixinho. Beijou seus lábios e a levou para o quarto. Não perguntou como ela estava se sentindo. Não perguntou nada.
— Percebeu — perguntou ela depois — que é a primeira vez que fazemos amor desde que descobrimos que eu estava grávida?
— É mesmo?
— Quando alguém com sua inteligência finge ser tolo, Gabriel, não é muito eficiente.
Ele enrolou uma mecha do cabelo dela com o dedo, mas não falou nada. O queixo dela estava descansando sobre seu peito. O brilho dos postes de rua de Paris fazia
com que a pele dela parecesse dourada.
— Por que não tinha feito sexo comigo antes? E não me diga que foi por que estava ocupado — acrescentou ela rapidamente —, porque isso nunca o impediu antes.
Ele soltou o cabelo dela, mas não falou nada.
— Tinha medo de que a gravidez desse errado de novo? Foi por isso?
— Foi — respondeu ele. — Acho que sim.
— O que o fez mudar de ideia?
— Passei uns momentos com uma velha na ilha de Córsega.
— O que ela falou?
— Que nenhum mal aconteceria com você e as crianças.
— E acreditou nela?
— Ela já falou muitas coisas que não teria como saber. Então me disse que você tinha saído de Veneza.
— Ela falou que eu estava em Paris?
— Não com essas palavras.
— Estava querendo surpreendê-lo.
— Como sabia onde me encontrar?
— O que você acha?
— Ligou para o Boulevard Rei Saul.
— Na verdade, eles me ligaram.
— Por quê?
— Porque Uzi queria saber por que você estava em companhia de um homem como Maurice Durand. Obviamente, não deixei passar a oportunidade.
— Como escapou do guarda-costas do general?
— Matteo? Foi fácil.
— Não sabia que se tratavam pelo primeiro nome.
— Ele ajudou muito na sua ausência. E nunca me perguntou como eu me sentia.
— Não vou cometer esse erro de novo.
Chiara beijou os lábios de Gabriel e perguntou por que ele tinha retomado sua relação com o ladrão de arte mais conhecido do mundo. Gabriel contou tudo.
— Agora entendo por que o general Ferrari queria tanto que você investigasse a morte de Bradshaw.
— Ele sempre soube que Bradshaw era sujo — falou Gabriel. — E também ouviu rumores de que suas digitais estavam no Caravaggio.
— Acho que isso poderia explicar algo peculiar que descobri nas contas da Meridian Global Consulting Group.
— E o que é?
— Durante os últimos 12 meses, a Meridian fez muitos trabalhos para um lugar chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem são eles?
— Difícil dizer. LXR é uma empresa bastante opaca, para dizer o mínimo.
Gabriel juntou outra mecha de cabelo de Chiara e perguntou o que mais ela tinha descoberto no lixo eletrônico de Jack Bradshaw.
— Durante as últimas semanas de sua vida, ele enviou vários e-mails a uma conta no Gmail com um nome de usuário autogerado.
— Sobre o que conversavam?
— Casamentos, festas, o clima, todas as coisas que as pessoas discutem quando estão, na verdade, falando sobre outra coisa.
— Faz alguma ideia de onde está esse colega dele?
— Cafés com wi-fi em Bruxelas, Antuérpia e Amsterdã.
— Claro.
Chiara deitou de barriga pra cima. Gabriel colocou a mão sobre o abdome dela enquanto ouvia a chuva bater suave contra a janela.
— No que você está pensando? — perguntou ela depois de um momento.
— Estava pensando se era real ou só minha imaginação.
— O quê?
— Nada.
Ela não insistiu.
— Acho que vou ter que dizer alguma coisa ao Uzi.
— Acho que sim.
— O que devo dizer?
— A verdade — respondeu Gabriel. — Que vou roubar um quadro que vale duzentos milhões de dólares e tentar vendê-lo ao sr. Grandão.
— O que você vai fazer agora?
— Tenho que ir para Londres para começar um rumor.
— E depois?
— Vou para Marselha para fazer com que o rumor se torne verdade.
18
HYDE PARK, LONDRES
GABRIEL LIGOU PARA A Isherwood Fine Arts na manhã seguinte enquanto cruzava a Leicester Square. Pediu para vê-lo fora da galeria e dos lugares conhecidos pelo mundo
da arte em St. James’s. Isherwood sugeriu o Lido Café Bar no Hyde Park. Ninguém do mundo da arte, ele assegurou, iria ali nem morto.
Chegou alguns minutos depois de uma da tarde, vestido como se fosse ao campo, com uma jaqueta de tweed e galochas. Ele parecia com muito menos ressaca do que era
o normal no começo da tarde.
— Longe de mim reclamar — falou Gabriel, apertando a mão de Isherwood —, mas sua secretária me deixou esperando por quase dez minutos antes de finalmente passar
a ligação para você.
— Considere-se com sorte.
— Quando vai demiti-la, Julian?
— Não posso.
— Por que não?
— É possível que ainda esteja apaixonado por ela.
— É uma abusada.
— Eu sei. — Isherwood sorriu. — Se pelo menos estivéssemos transando. Então seria perfeito.
Eles se sentaram a uma mesa com vista para a Serpentine. Isherwood franziu o cenho para o menu.
— Não é exatamente o Wilton’s, não é?
— Você vai sobreviver, Julian.
Isherwood não pareceu convencido. Pediu um sanduíche de camarão e uma taça de vinho branco para sua pressão. Gabriel pediu chá e um bolinho. Quando estavam sozinhos
de novo, ele contou a Isherwood tudo que tinha acontecido desde sua partida de Veneza. Então contou o que planejava fazer depois.
— Garoto malvado — falou Isherwood. — Muito malvado.
— Foi ideia do general.
— É um maldito safado, não é?
— Por isso é tão bom no que faz.
— Precisa ser. Mas como diretor do Comitê para Proteção da Arte — acrescentou Isherwood com um tom de formalidade —, eu seria negligente se não desaprovasse um aspecto
da sua inteligente operação.
— Não tem outro jeito, Julian.
— E se o quadro for danificado durante o roubo?
— Tenho certeza de que posso encontrar alguém para consertá-lo.
— Não se faça de desentendido, meu rapaz. Não combina com você.
Um silêncio pesado caiu entre eles.
— Valerá a pena se eu conseguir recuperar o Caravaggio — disse Gabriel finalmente.
— Se — respondeu Isherwood cético. Ele soltou um longo suspiro. — Desculpe metê-lo em tudo isso. E pensar que nada disso teria acontecido se não fosse pelo maldito
Oliver Dimbleby.
— Na verdade, eu até pensei em uma forma para que Oliver expie seus pecados.
— Não está pensando em usá-lo de alguma maneira, está?
Gabriel assentiu lentamente.
— Mas dessa vez, ele nem vai saber.
— Boa ideia — respondeu Isherwood. — Porque Oliver Dimbleby tem uma das maiores bocas de todo o mundo da arte.
— Exatamente.
— O que está pensando?
Gabriel contou. Isherwood deu um sorriso malicioso.
— Garoto malvado — falou. — Muito malvado.
Quando terminaram de comer, Gabriel tinha conseguido convencer Isherwood da eficácia de seu plano. Eles trabalharam nos detalhes finais enquanto cruzavam o Hyde
Park e depois se separaram nas calçadas lotadas de Piccadilly. Isherwood voltou para sua galeria em Mason’s Yard; Gabriel foi para a St. Pancras Station, onde tomou
o Eurostar noturno para Paris. Naquela noite, no apartamento seguro com vista para Pont Marie, ele fez amor com Chiara pela segunda vez desde que descobriu que ela
estava grávida.
De manhã eles tomaram café em uma lanchonete perto do Louvre. Depois de caminhar com Chiara de volta ao apartamento, Gabriel tomou um táxi para a Gare de Lyon. Pegou
um trem para Marselha às nove e às 12h45 estava descendo na Gare Saint-Charles. Saiu no começo do boulevard d’Athènes, que seguia até La Canebière, a larga rua de
compras que ia do centro da cidade até o Velho Porto. Os barcos de pesca tinham voltado das viagens matinais; criaturas marinhas de todo tipo estavam em cima de
mesas de metal ao longo do canto leste do porto. Em uma das mesas havia um homem grisalho com um suéter de lã esfarrapado e um avental de borracha. Gabriel parou
ali um pouco para inspecionar a pesca do homem. Então deu a volta na esquina até a ponta sul do porto e entrou no lado do passageiro de um sedã Renault bastante
velho. Sentado atrás do volante, com a ponta de um cigarro queimando entre seus dedos, estava Christopher Keller.
— Você precisa fumar? — perguntou Gabriel, cansado.
Keller apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
— Não acredito que estamos de volta aqui.
— Onde?
— Marselha — respondeu Keller. — Foi onde começamos nossa busca pela garota inglesa.
— E onde você tirou uma vida desnecessariamente — acrescentou Gabriel, sombrio.
— Não vamos voltar a litigar sobre isso.
— É uma palavra difícil para um ladrão de arte, Christopher.
— Não acha que é uma coincidência estarmos sentados no mesmo carro do mesmo lado do Velho Porto?
— Não.
— Por que não?
— Porque Marselha é onde estão os criminosos.
— Como ele. — Keller indicou com a cabeça o homem com o suéter esfarrapado de lã parado em uma mesa cheia de peixes no canto do porto.
— Conhece ele?
— Todo mundo nessa área conhece Pascal Rameau. Ele e sua tripulação são os melhores ladrões na Côte d’Azur. Roubam tudo. Havia um boato de que já tentaram roubar
a Torre Eiffel.
— O que aconteceu?
— O comprador desistiu. Ou pelo menos é como Pascal gosta de contar a história.
— Já fez negócios com ele?
— Ele não precisa de pessoas como eu.
— E o que isso quer dizer?
— Pascal dirige um barco bem organizado. — Keller soltou uma nuvem de fumaça de cigarro. — Então Maurice faz um pedido e Pascal entrega as mercadorias, não é assim
que funciona?
— Como a Amazon.
— O que é Amazon?
— Você precisa sair do seu vale com mais frequência, Christopher. O mundo mudou desde que você morreu.
Keller ficou em silêncio. Gabriel desviou o olhar de Pascal Rameau, virando para o bairro montanhoso de Marselha perto da basílica. Lembrou-se de imagens do passado:
a porta de um apartamento imponente sobre o boulevard Saint-Rémy, um homem caminhando rapidamente pelas sombras frias da manhã, uma garota árabe com olhos castanhos
impiedosos parada no alto de uma escadaria de pedra. Com licença, monsieur. Está perdido? Ele apagou a lembrança, enfiou a mão no bolso de seu casaco para pegar
o celular, mas parou. Havia uma equipe de segurança do lado de fora do apartamento em Paris. Não aconteceria nada com ela.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Não — respondeu Gabriel. — Está tudo bem.
— Tem certeza?
Gabriel voltou a olhar para Pascal Rameau. Keller sorriu.
— É um pouco estranho, não acha?
— O quê?
— Que um homem como você pudesse estar associado com um ladrão de arte.
— Ou um assassino profissional — acrescentou Gabriel.
— O que você quer dizer?
— Que a vida é complicada, Christopher.
— Nem me fale.
Keller apagou seu cigarro e começou a acender outro.
— Por favor — falou Gabriel, baixo.
Keller colocou o cigarro de volta no maço.
— Quanto tempo vamos ter que esperar?
Gabriel olhou para seu relógio.
— Vinte e oito minutos.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque o trem dele chega a Saint-Charles às 13h34. A caminhada da estação ao porto vai levar 12 minutos.
— E se ele der uma parada no caminho?
— Não vai — respondeu Gabriel. — Monsieur Durand é muito confiável.
— Se é tão confiável, por que voltamos a Marselha?
— Porque ele tem um milhão de euros do dinheiro dos carabinieri e quero ter certeza de que vai terminar no lugar certo.
— No bolso de Pascal Rameau.
Gabriel não falou nada.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller acendeu um cigarro.
— Nem me fale.
Eram 13h45 quando eles o viram descendo a colina de La Canebière, o que significava que estava um minuto adiantado. Trajava um terno cinza de lã e um chapéu elegante,
na mão direita carregava uma maleta contendo um milhão de euros em efetivo. Caminhou até os pescadores e abriu caminho lentamente entre as mesas até parar na frente
de Pascal Rameau. Trocaram palavras, os produtos foram inspecionados com cuidado para ver se estavam frescos e finalmente um deles foi escolhido. Durand entregou
uma única nota, pegou um saco plástico com uma lula e caminhou para o lado sul do porto. Um momento depois, ele passou por Gabriel e Keller sem olhar para eles.
— Aonde ele vai agora?
— A um barco chamado Mistral.
— Quem é o dono do barco?
— René Monjean.
Keller ergueu uma sobrancelha.
— Como você conhece o Monjean?
— Outra história, para outro momento.
Durand agora estava caminhando por um dos cais flutuantes entre as fileiras de barcos de passeio. Como Gabriel previu, ele entrou em um iate chamado Mistral e se
enfiou na cabina. Ficou ali por 17 minutos precisamente, e quando reapareceu não estava mais com a pasta ou a lula. Passou pelo Renault velho de Keller e começou
a voltar para a estação de trem.
— Parabéns, Christopher.
— Pelo quê?
— Você é agora o orgulhoso proprietário de um Van Gogh que vale duzentos milhões de dólares.
— Ainda não.
— Maurice Durand é muito confiável — falou Gabriel. — Assim como René Monjean.
19
AMSTERDÃ
NOS NOVE DIAS SEGUINTES, o mundo da arte girou tranquilo em seu eixo dourado, sem saber da bomba que estava armada em seu ventre. Fazia bons almoços, bebia até tarde
da noite, deslizava cuidadoso nas colinas de Aspen e St. Moritz nas últimas neves boas da estação. Então, na terceira sexta-feira de abril, acordou com a notícia
de que uma calamidade havia acontecido no Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã. Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, tinha desaparecido.
A técnica empregada pelos ladrões não combinava com a sublime beleza de seu alvo. Eles escolheram o porrete no lugar do florete, a velocidade no lugar da sagacidade.
O chefe do departamento de polícia de Amsterdã mais tarde chamaria de melhor demonstração de “ataque surpresa” que já tinha visto, apesar de ser cuidadoso para não
revelar muitos detalhes, principalmente para não facilitar para outro bando de ladrões o roubo de outra obra de arte icônica e insubstituível. Ficou grato só por
uma coisa: que os ladrões não tivessem usado uma navalha para tirar a tela de sua moldura. Na verdade, falou, eles tinham tratado o quadro com uma ternura que beirava
a reverência. Muitos especialistas no campo da segurança de arte, no entanto, viram o trato cuidadoso da tela como um sinal perturbador. Para eles, sugeria um roubo
encomendado, realizado por criminosos profissionais altamente competentes. Um detetive aposentado da Scotland Yard falou cético sobre as perspectivas de recuperar
o quadro. O mais provável, ele falou, é que Doze Girassóis numa Jarra agora estava pendurado no museu dos desaparecidos e nunca mais seria visto pelo público de
novo.
O diretor do Rijksmuseum apareceu na mídia para fazer um apelo pelo retorno seguro do quadro. E quando fracassou em comover os ladrões, ele ofereceu uma recompensa
substancial, o que obrigou a polícia holandesa a desperdiçar incontáveis horas seguindo mentiras e pistas falsas. O prefeito de Amsterdã, um radical não arrependido,
achou que era preciso fazer uma manifestação. Três dias depois, várias centenas de ativistas de todos os tipos convergiram ao Museumplein para exigir que os ladrões
entregassem o quadro. Também defenderam o tratamento ético dos animais, o fim do aquecimento global, a legalização de todos os narcóticos recreativos, o fechamento
da prisão norte-americana em Guantánamo e o fim da ocupação da Cisjordânia e de Gaza. Ninguém foi preso e todos passaram uma boa tarde, especialmente os que se abasteceram
da cannabis e das camisinhas grátis. Até os mais liberais dos jornais holandeses acharam que o protesto tinha sido inútil. “Se isso é o melhor que podemos fazer”,
publicou um deles no editorial, “deveríamos nos preparar para o dia em que as paredes de nossos grandes museus estejam vazias”.
Nos bastidores, no entanto, a polícia holandesa estava envolvida em esforços muito mais tradicionais para recuperar o que era, sem dúvida, a mais famosa obra de
Van Gogh. Conversaram com seus informantes, grampearam telefones e contas de e-mail de ladrões conhecidos, e ficaram de olho em galerias de Amsterdã e Roterdã que
eram suspeitas de trabalhar com bens roubados. Mas quando passou outra semana sem progresso, decidiram abrir um canal com seus companheiros na polícia dos outros
países europeus. Os belgas os enviaram a uma corrida maluca até Lisboa, enquanto os franceses fizeram pouco mais do que desejar boa sorte. A mais intrigante dica
estrangeira veio do general Cesare Ferrari do Esquadrão de Arte, que afirmou ter ouvido um rumor de que a mafiya russa tinha organizado o roubo. Os holandeses fizeram
contato com o Kremlin atrás de informação. Os russos nem se dignaram a responder.
No momento, era o começo de maio e a polícia holandesa não tinha nenhuma pista importante sobre a localização do quadro. Publicamente, o chefe jurava redobrar seus
esforços. Em particular, admitia que, se não houvesse uma intervenção divina, o Van Gogh provavelmente estaria perdido para sempre. Dentro do museu, uma mortalha
escura estava pendurada no lugar do quadro. Um colunista britânico sarcasticamente implorou para que o diretor do museu aumentasse a segurança. Ou, ele brincou,
os ladrões iriam roubar a mortalha também.
Alguns em Londres acharam a coluna de mau gosto, mas a maior parte do mundo da arte coletivamente deu de ombros e continuou com sua vida. Os importantes leilões
de Velhos Mestres estavam se aproximando e todos diziam que a temporada seria a mais lucrativa em anos. Havia quadros para serem vistos, clientes para entreter e
estratégias de lances a criar. Julian Isherwood estava ocupadíssimo. Na quarta-feira daquela semana, ele foi visto no salão de vendas em Bonhams olhando uma paisagem
de rio italiano atribuído ao círculo de Agostino Buonamico. No dia seguinte, estava comendo no Dorchester com um turco expatriado de meios aparentemente ilimitados.
Então, na sexta-feira, ficou até mais tarde na Christie’s para realizar as devidas diligências em um João Batista do século XVIII da Escola de Bolonha. Como resultado,
o bar no Green’s já estava completamente lotado quando ele chegou. Parou para conversar com Jeremy Crabbe antes de se sentar em sua mesa de sempre, com sua garrafa
de Sancerre de sempre. O gorducho Oliver Dimbleby estava flertando desavergonhadamente com Amanda Clifton, a deliciosa nova chefe do departamento de Impressionistas
e Arte Moderna da Sotheby’s. Colocou um de seus cartões dourados na mão dela, jogou um beijo para Simon Mendenhall, depois veio até a mesa de Isherwood.
— Querido Julie — falou enquanto se sentava na cadeira vazia. — Conte-me algo absolutamente escandaloso. Um rumor maldoso. Uma fofoca um pouco maliciosa. Algo com
que possa aguentar o resto da semana.
Isherwood sorriu, serviu dois dedos de vinho na taça vazia de Oliver e se preparou para entretê-lo.
— Paris? É mesmo?
Isherwood assentiu, conspiratório.
— Quem falou?
— Não posso dizer.
— Vamos, minha flor. Está falando comigo. Tenho mais segredos sujos que a MI6.
— É por isso que não vou falar mais nada sobre isso.
Dimbleby pareceu ficar realmente chateado, o que, até aquele momento, Isherwood não achou que fosse possível.
— Minha fonte está conectada com o mundo da arte de Paris. É tudo que posso dizer.
— Bom, é uma revelação. Achei que você ia me dizer que ele era um sous-chef no Maxim’s.
Isherwood não falou nada.
— Está no meio ou é consumidor de arte?
— No meio.
— Vendedor?
— Use sua imaginação.
— E ele realmente viu o Van Gogh?
— Minha fonte nunca estaria na mesma sala que um quadro roubado — respondeu Isherwood com o toque certo de indignação honrada. — Mas ele tem certeza de que vários
negociantes e colecionadores viram fotografias Polaroid.
— Não sabia que elas ainda existiam.
— O quê?
— Câmeras Polaroid.
— Parece que sim.
— Por que usar uma Polaroid?
— Não deixam rastros digitais que podem ser seguidos pela polícia.
— Bom saber — falou Dimbleby, dando uma olhada no traseiro de Amanda Clifton. — Então, quem está vendendo?
— De acordo com os rumores, é um inglês desconhecido.
— Um inglês? Que canalha.
— Chocante — concordou Isherwood.
— Quanto está pedindo?
— Dez milhões.
— Por um maldito Van Gogh? É uma pechincha.
— Exatamente.
— Não vai durar muito, não por esse preço. Alguém vai agarrá-lo e escondê-lo para sempre.
— Minha fonte acha que nosso inglês poderia na verdade ter uma guerra de ofertas nas mãos.
— E é por isso — falou Dimbleby, com o tom repentinamente sério — que você não tem escolha: deve ir à polícia.
— Não posso.
— Por que não?
— Porque tenho que proteger minha fonte.
— Você é profissionalmente obrigado a contar à polícia. Moralmente, também.
— Adoro quando você vem me dar lições de moral, Oliver.
— Não precisa transformar em algo pessoal, Julie. Só estava tentando fazer um favor.
— Como me mandar em uma viagem com tudo pago para o lago Como?
— Vamos repetir essa conversa?
— Ainda tenho pesadelos com aquele corpo pendurado do maldito lustre. Parecia algo pintado por...
A voz de Isherwood falou. Dimbleby franziu a testa, pensativo.
— Por quem?
— Esquece.
— Descobriram quem o matou?
— Quem?
— Jack Bradshaw, seu tonto.
— Acho que foi o mordomo.
Dimbleby sorriu.
— Agora lembre-se, Oliver, tudo que lhe contei sobre o Van Gogh em Paris fica entre nous.
— Nunca vai sair dos meus lábios.
— Jure para mim, Oliver.
— Tem minha palavra de honra — falou Dimbleby. Após terminar de beber, contou para todo mundo no bar.
Na hora do almoço do dia seguinte, era o assunto principal no Wilton’s. Dali, foi se espalhando para a Galeria Nacional, a Tate e, finalmente, para a Galeria Courtauld,
que estava preocupada com o roubo por ter exposto o Autorretrato com a Orelha Cortada, de Van Gogh. Simon Mendenhall contou a todos na Christie’s; Amanda Clifton
fez o mesmo na Sotheby’s. Até o normalmente taciturno Jeremy Crabbe não conseguiu manter seu próprio conselho. Contou tudo em um longo e-mail para alguém no escritório
de Nova York da Bonhams e em pouco tempo já tinha se espalhado pelas galerias de Midtown e do Upper East Side. Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos imensamente
ricos, sussurrou na orelha de uma repórter do New York Times, mas a repórter já tinha ouvido de outra pessoa. Ela ligou para o chefe da polícia holandesa, que já
tinha ouvido também.
O holandês ligou para seu parceiro em Paris, que não deu muita bola. Mesmo assim, a polícia francesa começou a procurar um inglês bonito de meia-idade com cabelo
loiro, óculos com lentes azuis e um leve sotaque cockney. Encontraram vários, mas nenhum era um ladrão de arte. Entre os que caíram na rede estava o sobrinho do
secretário de Estado britânico, cujo sotaque era o elegante de Londres, não tendo nada de cockney. O secretário de Estado ligou para o ministro do interior francês
para reclamar, e o sobrinho foi liberado sem alarde.
Havia um aspecto do rumor, no entanto, que era totalmente real: Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, estava realmente em Paris. Tinha chegado ali
na manhã seguinte ao desaparecimento, no porta-malas de uma Mercedes. Foi primeiro à Antiquités Scientifiques, onde, enrolado em papel vegetal, passou duas noites
descansando em um armário climatizado. Então foi levado em mãos até o apartamento do Escritório com vista para Pont Marie. Gabriel rapidamente colocou o quadro em
um novo tensor e em um cavalete no estúdio que tinha montado no dormitório vazio. Naquela noite, enquanto Chiara estava cozinhando, ele selou a porta com fita adesiva
para evitar qualquer contaminação da superfície. E quando eles dormiram, o quadro dormia perto deles, banhado no brilho amarelado das lâmpadas ao longo do Sena.
Na manhã seguinte, ele foi a uma pequena galeria perto dos Jardins de Luxemburgo onde, passando-se por um alemão, comprou uma paisagem de Paris feita por um impressionista
secundário que usava o mesmo tipo de tela que Van Gogh. Voltou ao apartamento, limpou o quadro usando uma poderosa solução de solvente e removeu a tela do tensor.
Depois de cortar a tela até chegar às dimensões apropriadas, colocou-a no mesmo tipo de suporte no qual havia colocado Doze Girassóis numa Jarra, um suporte medindo
95x73 cm. Em seguida, cobriu a tela com uma camada fresca de base. Doze horas depois, quando a base tinha secado, ele preparou sua paleta com amarelo cromo e amarelo
ocre, e começou a pintar.
Trabalhou como Van Gogh tinha trabalhado, depressa, alla prima e com um toque de loucura. Às vezes, sentia como se Van Gogh estivesse parado olhando por cima do
seu ombro, cachimbo na mão, guiando todas suas pinceladas. Em outras, conseguia vê-lo no estúdio na Casa Amarela em Arles, apressando-se para capturar a beleza dos
girassóis em sua tela antes que murchassem e morressem. Era agosto de 1888 quando Van Gogh produziu seus primeiros estudos de girassóis em Arles; ele os pendurou
num quarto vazio, no qual Paul Gauguin, com muitos receios, ficou no final de outubro. O dominante Gauguin e o suplicante Vincent pintaram juntos pelo resto do outono,
geralmente trabalhando lado a lado nos campos ao redor de Arles, mas eles tinham a tendência de discutir violentamente sobre Deus e a arte. Uma das brigas ocorreu
na tarde de 23 de dezembro. Depois de enfrentar Gauguin com uma navalha, Vincent foi até o bordel na rue du Bout d’Aeles e cortou um pedaço de sua orelha esquerda.
Duas semanas depois, ao sair do hospital, voltou à Casa Amarela, sozinho e com uma atadura, e produziu três impressionantes repetições dos girassóis que tinha pintado
para o quarto de Gauguin. Até recentemente, um desses quadros estava pendurado no Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã.
Van Gogh provavelmente tinha pintado o Doze Girassóis numa Jarra de Amsterdã em algumas horas, assim como tinha feito com seu predecessor no mês de agosto. Gabriel,
no entanto, precisou de três dias para produzir o que mais tarde chamaria de uma versão de Paris. Com a adição da famosa assinatura de Van Gogh ao vaso, a falsificação
era idêntica ao original em todos os aspectos, menos um: não tinha craquelado, a fina rede de rachaduras nas superfícies que aparecem nos quadros com o tempo. Para
induzir um rápido craquelado, Gabriel tirou a tela de sua base e assou no forno por trinta minutos. Então, quando a tela tinha esfriado, segurou-a esticada entre
as duas mãos e arrastou na ponta da mesa de jantar, primeiro na horizontal, depois na vertical. O resultado foi a aparição de um craquelado instantâneo. Ele colocou
a tela de volta na base, cobriu com uma camada de verniz e colocou perto do original. Chiara não conseguia diferenciar um do outro. Nem Maurice Durand.
— Nunca achei que seria possível — disse o francês.
— O quê?
— Que alguém pudesse ser tão bom quanto Yves Morel. — Passou o dedo gentilmente sobre as pinceladas do impasto de Gabriel. — É como se o próprio Vincent tivesse
pintado.
— Esse é o objetivo, Maurice.
— Mas não é tão fácil de conseguir, mesmo para um restaurador profissional. — Durand se inclinou para mais perto da tela. — Que técnica você usou para produzir o
craquelado?
Gabriel contou.
— O método Van Meegeren. Muito eficiente, desde que você não queime o quadro. — Durand olhava da falsificação de Gabriel para o original de Van Gogh.
— Não comece a ter ideias, Maurice. Vai voltar a Amsterdã assim que terminarmos com isso.
— Sabe quanto eu conseguiria por ele?
— Dez milhões.
— Vinte, no mínimo.
— Mas você não roubou, Maurice. Foi roubado por um inglês com cabelo claro e óculos de lentes azuis.
— Um amigo meu acha que realmente o conheceu.
— Espero que não o desiluda dessa ideia.
— De jeito nenhum — respondeu Durand. — O submundo do comércio acredita que seu amigo tem o quadro e que já está negociando com vários compradores em potencial.
Não vai demorar muito para que “você sabe quem” morda a isca.
— Talvez ele precise de um pouco de encorajamento.
— De que tipo?
— Um aviso antes que o martelo seja batido. Você acha que pode fazer isso, Maurice?
Durand sorriu.
— Com apenas um telefonema.
20
GENEBRA
HAVIA UM ASPECTO DO NEGÓCIO que estava inquietando Gabriel desde o começo: as salas secretas de Jack Bradshaw no Freeport de Genebra. Via de regra, um empresário
utilizava os serviços únicos do Freeport porque queria evitar impostos ou porque estava escondendo algo. Gabriel suspeitava que os motivos de Bradshaw pertenciam
à segunda categoria. Mas como ter acesso sem uma ordem da justiça e acompanhamento policial? O Freeport não era o tipo de lugar onde dava para entrar com uma gazua
e um sorriso confiante. Gabriel precisaria de um aliado, alguém com o poder de abrir qualquer porta na Suíça sem fazer barulho. Ele conhecia alguém assim. Uma barganha
teria que ser feita, um acordo secreto. Seria complicado, mas as questões envolvendo a Suíça sempre eram.
O contato inicial foi breve e pouco promissor. Gabriel ligou para o homem em seu escritório em Berna e contou uma história incompleta sobre o que precisava e os
motivos. O homem de Berna não ficou muito impressionado, o que era de se esperar, apesar de ficar interessado.
— Onde você está agora? — perguntou ele.
— Sibéria.
— Com que velocidade pode chegar em Genebra?
— Posso pegar o próximo trem.
— Não sabia que havia um trem direto da Sibéria.
— Na verdade passa por Paris.
— Mande uma mensagem quando estiver na cidade. Vou ver o que posso fazer.
— Não posso ir até Genebra sem garantias.
— Se quiser garantias, ligue para um banqueiro suíço. Mas se quiser dar uma olhada naquelas salas, vai ter que ser do meu jeito. E nem pense em chegar perto do Freeport
sem mim — acrescentou o homem de Berna. — Se fizer isso, vai ficar na Suíça por um bom tempo.
Gabriel teria preferido circunstâncias melhores para fazer a viagem, mas era agora ou nunca. Com a cópia finalizada do Van Gogh, a parte Paris da operação consistia
em esperar. Ele podia passar o dia olhando para o telefone ou utilizar a pausa nas atividades de forma mais produtiva. No final, Chiara tomou a decisão por ele.
Gabriel trancou os dois quadros no armário do quarto, correu até a Gare de Lyon, e pegou o TGV das nove. Chegou em Genebra alguns minutos depois do meio-dia. Gabriel
ligou para o homem em Berna de um telefone público na estação.
— Onde você está? — perguntou o homem.
Gabriel respondeu.
— Vou ver o que posso fazer.
A estação de trem estava em um setor de Genebra que parecia um quartier antigo de uma cidade francesa. Gabriel caminhou até o lago e cruzou a Pont du Mont-Blanc
até a margem sul. Comeu tranquilamente uma pizza no Jardin Anglais e depois caminhou pelas ruas escuras da Cidade Velha do século XVI. Às quatro horas o ar estava
frio, com a noite já se aproximando. Com os pés doloridos, cansado de esperar, Gabriel ligou pela terceira vez para o homem em Berna, mas ninguém atendeu. Dez minutos
depois, enquanto caminhava pelas margens e entre as lojas exclusivas da rue du Rhône, ele ligou de novo. Dessa vez, o homem atendeu.
— Pode me chamar de antiquado — falou Gabriel —, mas realmente não gosto quando as pessoas me deixam esperando.
— Nunca prometi nada.
— Eu poderia ter ficado em Paris.
— Seria uma pena. Genebra é adorável nessa época do ano. E você teria perdido a chance de dar uma olhada dentro do Freeport.
— Quanto tempo mais vai me deixar esperando?
— Podemos fazer isso agora, se quiser.
— Onde você está?
— Vire-se.
Gabriel obedeceu.
— Maldito.
Seu nome era Christoph Bittel — ou pelo menos foi o nome que usou na primeira e única vez que tinham se visto. Ele trabalhava, ou era o que tinha dito na época,
na divisão de contraterrorismo da NDB, o serviço de segurança interna e inteligência da Suíça. Era magro e pálido, com uma testa larga que lhe dava a aparência,
merecida, de alguém muito inteligente. Sua mão pálida, esticada sobre o câmbio de um sedã esportivo alemão, parecia que tinha sido recentemente limpa de bactérias.
— Bem-vindo de volta a Genebra — falou Bittel enquanto saía do trânsito. — Seria bom se você tivesse feito uma reserva, para variar.
— Os dias de operações sem autorização na Suíça estão contados. Somos parceiros agora, lembra-se, Bittel?
— Não vamos nos empolgar, Allon. Não devemos estragar toda a diversão.
Bittel colocou uns óculos escuros largos, que fazia com que parecesse um louva-deus. Dirigia bem, mas com cuidado, como se tivesse contrabando no porta-malas e estivesse
tentando evitar o contato com as autoridades.
— Como era de se esperar — falou depois de um momento —, sua confissão forneceu horas de escuta interessante para nossos oficiais e ministros.
— Não foi uma confissão.
— Como descreveria aquilo?
— Fiz uma completa descrição das minhas atividades em solo suíço — falou Gabriel. — Em troca, você concordou em não me colocar na prisão pelo resto da minha vida.
— Algo que merecia. — Bittel balançou a cabeça devagar enquanto dirigia. — Assassinatos, roubos, sequestros, uma operação de contraterrorismo no cantão de Uri que
terminou com vários membros da Al-Qaeda mortos. Esqueci algo?
— Eu já chantageei um dos seus mais importantes empresários para conseguir acesso à cadeia de suprimentos nucleares do Irã.
— Ah, claro. Como pude me esquecer de Martin Landesmann?
— Foi uma das melhores coisas que fiz.
— E agora quer ter acesso a um depósito no Freeport de Genebra sem uma autorização da justiça?
— É bem evidente que você tem um amigo no Freeport disposto a deixar você dar uma olhada extrajudicial na mercadoria de vez em quando.
— É evidente. Mas eu geralmente gosto de saber o que vou encontrar antes de abrir uma fechadura.
— Quadros, Bittel. Vamos encontrar quadros.
— Quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— E o que acontece se o dono descobrir que nós entramos?
— O dono está morto. Não vai reclamar.
— Os depósitos no Freeport estão registrados em nome da empresa de Bradshaw. E a empresa continua viva.
— A empresa é uma fachada.
— Aqui é a Suíça, Allon. Empresas de fachada é o que nos mantêm nos negócios.
À frente, um semáforo passou de verde para amarelo. Bittel tinha tempo mais do que suficiente para atravessar o cruzamento. Em vez disso, ele foi diminuindo até
parar o carro.
— Ainda não me contou do que se trata tudo isso — falou ele, segurando o câmbio de marcha.
— Com bons motivos.
— E se conseguir abrir os depósitos? O que ganho em troca?
— Se eu estiver certo — respondeu Gabriel —, você e seus amigos no NDB um dia poderão anunciar a recuperação de várias obras de arte há muito desaparecidas.
— Arte roubada no Freeport de Genebra. Não é exatamente boa publicidade para a Confederação.
— Não dá para ter tudo, Bittel.
O semáforo abriu. Bittel tirou o pé do freio e acelerou devagar, como se estivesse tentando economizar combustível.
— Entramos, olhamos e saímos. E tudo que está no depósito fica no depósito. Entendido?
— Você é que manda.
Bittel dirigiu em silêncio, sorrindo.
— O que está achando engraçado? — perguntou Gabriel.
— Acho que gosto do novo Allon.
— Não posso dizer o quanto isso significa para mim, Bittel. Mas você não poderia dirigir um pouco mais rápido? Gostaria de chegar a Freeport ainda hoje.
Eles viram o lugar uns minutos depois, uma fileira de prédios brancos sem nenhum ornamento com uma placa vermelha no alto onde se podia ler PORTS FRANCS. No século
XIX, tinham sido pouco mais que um armazém onde produtos agrícolas eram guardados a caminho do mercado. Agora era um repositório seguro livre de impostos onde os
super-ricos do mundo guardavam todo tipo de tesouro: barras de ouro, joias, vinhos antigos, automóveis e, claro, arte. Ninguém sabia exatamente quantas grandes obras
de arte do mundo havia dentro dos cofres do Freeport de Genebra, mas acreditava-se que seria o suficiente para criar vários grandes museus. Muitas delas nunca mais
veriam a luz do dia; e se mudassem de mãos, seria de forma privada. Não era arte para ser vista e admirada. Era arte como mercadoria, arte como um investimento contra
tempos incertos.
Apesar da vasta riqueza contida dentro de Freeport, a segurança era realizada com a discrição suíça. A cerca ao redor do lugar era mais uma forma de desencorajar
do que uma barreira, e o portão através do qual Bittel dirigiu seu carro demorou para fechar. Câmeras de vídeo brotavam de todos os edifícios e, poucos segundos
depois da chegada deles, um agente de segurança apareceu de uma porta segurando uma prancheta numa mão e um rádio na outra. Bittel saiu do carro e falou umas palavras
com o guarda em francês fluente. O guarda voltou para sua sala e um momento depois apareceu uma morena bonita com saia e blusa apertadas. Ela entregou uma chave
a Bittel e apontou para o final do complexo.
— Imagino que essa seja sua amiga — falou Gabriel quando Bittel voltou ao carro.
— Nosso relacionamento é estritamente profissional.
— Uma pena.
Os endereços em Freeport eram uma combinação de prédio, corredor e porta do depósito. Bittel estacionou em frente ao edifício quatro e entrou com Gabriel. Do hall
de entrada saía um corredor com um número aparentemente infinito de portas. Uma estava aberta. Olhando para dentro, Gabriel viu um homem pequeno e de óculos sentado
atrás de uma mesa chinesa laqueada com um telefone no ouvido. O depósito tinha sido transformado em uma galeria de arte.
— Várias empresas de Genebra se mudaram para Freeport nos últimos anos — explicou Bittel. — O aluguel é mais barato do que na rue du Rhône e os clientes parecem
gostar da reputação intrigante do Freeport.
— É merecida.
— Não mais.
— Vamos ver.
Subiram pela escada até o terceiro andar. O depósito de Bradshaw estava localizado no corredor 12, atrás de uma porta metálica cinza onde se lia o número 24. Bittel
hesitou antes de enfiar a chave.
— Não vai explodir, não é?
— Boa pergunta.
— Isso não é engraçado.
Bittel abriu a porta, acendeu a luz e xingou baixinho. Havia quadros por todos os lados — quadros em molduras, quadros em extensores, quadros enrolados como tapetes
em um bazar persa. Gabriel desenrolou um no chão para Bittel ver. Mostrava um chalé no alto de um penhasco sobre o mar brilhando com flores silvestres.
— Monet? — perguntou Bittel.
Gabriel assentiu.
— Foi roubado de um museu na Polônia há uns vinte anos.
Ele desenrolou outra tela: uma mulher segurando um leque.
— Salvo engano — falou Bittel —, esse é um Modigliani.
— Não está enganado. Foi um dos quadros roubados do Museu de Arte Moderna em Paris, em 2010.
— O roubo do século. Lembro dele.
Bittel seguiu Gabriel até uma porta que dava para uma sala interna do depósito. Continha dois grandes cavaletes, uma lâmpada halógena, frascos de solvente e tintas,
locais para pigmentos, pincéis, uma paleta bastante usada e um catálogo da Christie’s do leilão de Velhos Mestres de Londres de 2004. Estava aberto em uma crucificação
atribuída a um seguidor de Guido Reni, executado de forma competente, mas pouco inspirada, não valendo nem o lucro do vendedor.
Gabriel fechou o catálogo e olhou ao redor do depósito. Era o estúdio secreto de um mestre em falsificações, pensou, na galeria de arte dos desaparecidos. Mas era
óbvio que Yves Morel tinha feito mais nessa sala do que falsificar quadros; também tinha feito muitas restaurações. Gabriel pegou a paleta e passou seu dedo pelas
amostras de tinta que havia na superfície. Ocre, dourado e carmim: as cores da Natividade.
— O que é isso? — perguntou Bittel.
— Provas de vida.
— Do que você está falando?
— O quadro esteve aqui — falou Gabriel. — Ele existe.
Havia 147 quadros nas duas salas do depósito — impressionistas, modernos, Velho Mestres — mas nenhum deles era o Caravaggio. Gabriel fotografou cada tela usando
a câmera em seu celular. Os únicos outros itens no depósito eram uma mesa e um pequeno cofre — pequeno demais, pensou Gabriel, para conter um retábulo italiano de
dois metros por dois e meio. Procurou nas gavetas da mesa, mas estavam vazias. Então se ajoelhou em frente ao cofre e girou o segredo de números com o dedão e o
indicador. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
— No que está pensando? — perguntou Bittel.
— Estou tentando imaginar quanto tempo demoraria para trazer um arrombador aqui.
Bittel sorriu triste.
— Talvez da próxima vez.
É, pensou Gabriel. Da próxima vez.
Eles voltaram à estação de trem passando pela hora do rush de Genebra. Cruzando a Pont du Mont-Blanc, Bittel pressionou Gabriel para obter mais informações sobre
o caso. E quando suas perguntas não resultaram em respostas claras, insistiu em ser avisado com antecedência se o itinerário de Gabriel incluísse outra visita à
Suíça. Gabriel concordou imediatamente, embora os dois soubessem que era uma promessa vazia.
— Em algum momento — falou Bittel —, vamos ter que limpar esse depósito e devolver esses quadros a seus verdadeiros donos.
— Em algum momento — concordou Gabriel.
— Quando?
— Não sei.
— Digo que você tem um mês. Depois disso, terei que falar sobre o assunto para a Polícia Federal.
— Se fizer isso — falou Gabriel — vai aparecer na imprensa, e a Suíça vai terminar com outro olho roxo.
— Estamos acostumados com isso.
— Nós também.
Eles chegaram à estação a tempo de Gabriel pegar o trem das quatro e meia de volta a Paris. Estava escuro quando ele chegou; subiu num táxi que o esperava e deu
ao motorista um endereço perto do apartamento seguro. Mas quando o carro começou a andar, Gabriel sentiu que seu celular estava vibrando. Atendeu a ligação, ouviu
por um momento e depois desligou.
— Mudanças de planos — falou ao motorista.
— Para onde?
— Para a rue de Miromesnil.
— Como quiser.
Gabriel enfiou o celular no bolso e sorriu. O jogo estava começando, pensou. Finalmente, o jogo estava começando.
21
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
NO COMEÇO, MAURICE DURAND TENTOU reivindicar privilégios de confidencialidade sobre a identidade de quem havia ligado. Sob pressão, no entanto, ele admitiu que tinha
sido Jonas Fischer, um rico empresário e colecionador famoso de Munique que usava com regularidade os serviços especiais de monsieur Durand. Herr Fischer deixou
claro desde o começo que não era ele que estava interessado no Van Gogh, que estava intercedendo em nome de um amigo também colecionador que, por motivos óbvios,
não podia dizer o nome. Parecia que o segundo colecionador já tinha despachado um representante a Paris, baseado em certos rumores que davam voltas pelo mundo da
arte. Herr Fischer perguntou se Durand poderia apontar a direção correta ao representante.
— O que você falou para ele? — perguntou Gabriel.
— Falei que não sabia onde estava o Van Gogh, mas que poderia dar uns telefonemas.
— E se você puder ser de ajuda?
— Devo ligar para o representante diretamente.
— Suponho que ele não tenha um nome.
— Só um número de telefone — respondeu Durand.
— Bem profissional.
— Pensei exatamente o mesmo.
Estavam no pequeno escritório nos fundos da loja de Durand. Gabriel estava encostado no batente da porta; Durand, sentado em sua pequena mesa dickensiana. Na frente
dele havia um microscópio de latão, do final do século XIX, de Vérick de Paris.
— Será quem estamos procurando? — perguntou Gabriel.
— Um homem como Herr Fischer não estaria envolvido com ninguém que não fosse um colecionador sério. Também me contou que seu amigo fez várias aquisições importantes
ultimamente.
— Uma dessas aquisições foi um Caravaggio?
— Não perguntei.
— Provavelmente é melhor que não pergunte.
— Provavelmente — concordou Durand.
Um silêncio caiu entre eles.
— Então? — perguntou o francês.
— Diga para ele estar no pátio de Saint-Germain-des-Prés às duas da tarde amanhã, perto da porta vermelha. Avise para levar seu celular, mas nenhuma arma. Não fale
mais nada. Só diga a ele o que fazer, então desligue.
Durand pegou o fone e discou o número.
Saindo da loja cinco minutos depois, o ladrão de arte e o antigo e futuro agente do serviço secreto israelense praticamente não trocaram uma palavra ou olhar. O
ladrão de arte se dirigiu à brasserie do outro lado da rua; o agente, para a embaixada israelense no número três da rue Rabelais. Entrou no prédio pela porta traseira,
desceu até a sala de comunicações seguras e ligou para o chefe de Serviços Domésticos, a divisão do Escritório que administrava as propriedades seguras. Disse que
precisava de algo perto de Paris, mas isolado, de preferência no norte. Não precisava ser nada grande, acrescentou. Não estava planejando fazer nada divertido.
— Lamento — falou o chefe de Serviços Domésticos. — Posso permitir que fique em uma propriedade existente, mas não posso adquirir uma nova sem a aprovação do andar
superior.
— Talvez você não tenha ouvido quando falei meu nome.
— O que devo falar ao Uzi?
— Nada, claro.
— Para quando precisa dela?
— Ontem.
Às nove da manhã seguinte, o Serviços Domésticos tinha fechado a compra de uma fazenda pitoresca na região de Picardia, nos arredores da vila de Andeville. Uma grande
cerca viva protegia a entrada de quem passava do lado de fora, e da ponta de seu bonito jardim traseiro era possível ver as plantações que lembravam uma colcha de
retalhos. Gabriel e Chiara chegaram na hora do almoço e esconderam os dois Van Gogh na adega. Então, Gabriel imediatamente voltou para Paris. Deixou o carro em um
estacionamento perto da estação Odéon Métro e caminhou pelo boulevard até a Place Saint-Germain-des-Prés. Numa esquina da praça lotada havia um café chamado Le Bonaparte.
Sentado em uma mesa de frente para a rua estava Christopher Keller. Gabriel o cumprimentou em francês e se sentou ao lado dele. Olhou para seu relógio. Eram 13h55.
Pediu um café e olhou para a porta vermelha da igreja.
Não foi difícil avistá-lo; naquela perfeita tarde de primavera, com o sol brilhando em um céu sem nuvens e um vento fraco rondando as ruas cheias, era o único que
tinha vindo sozinho até a igreja. Tinha altura mediana, cerca de 1,75 m, e era magro. Seus movimentos eram fluidos e tranquilos — como os de um jogador de futebol,
pensou Gabriel, ou um soldado de elite. Usava um casaco esportivo leve, uma camisa branca e calça de gabardine cinza. Um chapéu de palha encobria seu rosto, óculos
escuros escondiam seus olhos. Ele caminhou até a porta vermelha e fingiu consultar um guia turístico. Duas jovens, uma de shorts, a outra em um vestido sem alças,
estavam sentadas nos degraus, com as pernas desnudas esticadas. Claramente, havia algo no homem que deixou as duas desconfortáveis. Elas esperaram mais um pouco,
depois se levantaram e cruzaram a praça.
— O que você acha? — perguntou Keller.
— Acho que é o próprio.
O garçom trouxe o café de Gabriel. Ele colocou açúcar e mexeu pensativo enquanto olhava o homem parado perto da porta vermelha da igreja.
— Não vai ligar para ele?
— Não são duas horas ainda, Christopher.
— Já são quase.
— É melhor não parecer muito ansioso. Lembre-se, já temos um comprador no anzol. Nosso amigo ali levantou sua mão atrasado no leilão.
Gabriel continuou na mesa até o relógio na torre da igreja mostrar dois minutos depois da hora. Então se levantou e caminhou para o interior do café. Estava deserto,
exceto pelos funcionários. Ele se aproximou da janela, tirou o celular do bolso do casaco e ligou. Alguns segundos depois, o homem parado na frente da igreja atendeu.
— Bonjour.
— Não precisa falar francês só porque estamos em Paris.
— Prefiro francês, se não se importa.
Ele pode preferir francês, pensou Gabriel, mas não era sua língua nativa. Não estava mais fingindo olhar o seu guia. Estava observando a praça, procurando um homem
com um celular ao ouvido.
— Veio sozinho? — perguntou Gabriel.
— Como está me observando agora, sabe que a resposta é sim.
— Vejo um homem parado onde deveria estar, mas não sei se ele veio sozinho.
— Ele veio.
— Foi seguido?
— Não.
— Como pode ter certeza?
— Tenho certeza.
— Como devo chamá-lo?
— Pode me chamar de Sam.
— Sam?
— Isso, Sam.
— Tem alguma arma, Sam?
— Não.
— Tire seu blazer.
— Por quê?
— Quero ver se tem algo debaixo que não deveria estar ali.
— Isso é realmente necessário?
— Quer ver o quadro ou não?
O homem colocou o guia e o celular nos degraus, tirou seu blazer e o dobrou no braço. Então pegou o celular de novo e perguntou:
— Satisfeito?
— Vire-se e olhe para a igreja.
O homem girou uns 45 graus.
— Mais.
Outros 45.
— Muito bom.
O homem voltou à sua posição original e perguntou:
— E agora?
— Você vai dar uma caminhada.
— Não quero caminhar.
— Não se preocupe, Sam. Não vai ser uma caminhada longa.
— Onde quer que eu vá?
— Desça o boulevard até o Quartier Latin. Sabe chegar no Quartier Latin, Sam?
— Claro.
— Conhece Paris?
— Bastante.
— Não olhe para trás nem pare em lugar nenhum. E não use seu celular, também. Poderia perder minha próxima ligação.
Gabriel desligou e voltou até Keller.
— Então? — perguntou o inglês.
— Acho que encontramos Samir. E acho que é um profissional.
— Estamos no jogo?
— Vamos saber em um minuto.
Do outro lado da praça, Sam estava colocando seu blazer esportivo. Ele enfiou o celular no bolso do peito, jogou o guia no lixo e depois começou a caminhar pelo
boulevard Saint-Germain. Uma curva à direita o levaria a Les Invalides; à esquerda, ao Quartier Latin. Ele hesitou por um momento e depois virou à esquerda. Gabriel
contou lentamente até vinte antes de se levantar e segui-lo.
Pelo menos ele era capaz de seguir instruções. Caminhou reto pelo boulevard, passou as lojas e cafés lotados, sem parar ou olhar para trás. Isso permitiu que Gabriel
mantivesse o foco em sua tarefa principal, que era a contrainteligência. Não viu nada que sugerisse que Sam estava trabalhando com um cúmplice. Nem parecia que estivesse
sendo seguido pela polícia francesa. Estava limpo, pensou Gabriel. Tão limpo quanto poderia estar um comprador de arte roubada.
Depois de dez minutos caminhando reto, Sam estava perto do ponto onde o boulevard se encontrava com o Sena. Gabriel, meio quarteirão atrás, tirou seu celular do
bolso e ligou. Novamente Sam atendeu de imediato, com o mesmo bonjour cordial.
— Vire à esquerda na rue du Cardinal Lemoine e siga até o Sena. Cruze a ponte até a Île Saint-Louis e depois siga reto até eu ligar de novo.
— Muito longe ainda?
— Não está longe, Sam. Você está quase lá.
Sam fez a curva como instruído e cruzou a Pont de la Tournelle até a pequena ilha no meio do Sena. Uma série de cais pitorescos seguia o perímetro da ilha, mas só
uma única rua, a rue Saint-Louis, em l’Île, cortava sua extensão. Com uma ligação, Gabriel instruiu Sam para virar à esquerda de novo.
— Muito longe ainda?
— Só mais um pouco, Sam. E não olhe para trás.
Era uma rua estreita, com turistas caminhando e olhando as vitrines. No lado oeste havia uma sorveteria e ao lado desta uma brasserie com uma boa vista de Notre
Dame. Gabriel ligou para Sam e deu as instruções finais.
— Quanto tempo mais vai me deixar esperando?
— Infelizmente não vou almoçar com você, Sam. Sou apenas o assistente.
Gabriel cortou a ligação sem falar mais nada e viu Sam entrar na brasserie. Um garçom o cumprimentou, depois gesticulou para uma mesa lateral ocupada por um inglês
loiro de óculos de lentes azuis. O inglês se levantou e, sorrindo, esticou a mão.
— Meu nome é Reg. — Gabriel ouviu-o dizer antes de dobrar a esquina. — Reg Bartholomew. E você deve ser o Sam.
CONTINUA
11
JARDIN DES TUILERIES, PARIS
DOIS SÉCULOS APÓS SUA MORTE, ele tinha sido quase esquecido. Seus quadros juntavam poeira nos depósitos de galerias e museus, muitos eram atribuídos equivocadamente,
suas figuras dramaticamente iluminadas recuando lentamente no vazio de seus característicos fundos negros. Finalmente, em 1951, o famoso historiador de arte Roberto
Longhi reuniu suas obras conhecidas e fez uma exposição para o mundo no palazzo Reale, em Milão. Muitos dos que visitaram a incrível exposição nunca tinham ouvido
falar de Caravaggio.
Os detalhes de sua vida eram no máximo esboços, fracas linhas de carvão em uma tela em branco. Nasceu no vigésimo nono dia de setembro de 1571, provavelmente em
Milão, onde seu pai era um construtor e arquiteto bem-sucedido. No verão de 1576, a peste voltou à cidade. Quando ela finalmente passou, um quinto da diocese de
Milão tinha morrido, incluindo o pai, o avô e o tio do jovem Caravaggio. Em 1584, aos 13 anos, ele entrou na oficina de Simone Peterzano, um maçante, mas competente,
maneirista que afirmava ter sido pupilo de Ticiano. O contrato, que ainda existe, obrigava Caravaggio a treinar “noite e dia” por um período de quatro anos. Não
se sabe se ele foi bem ou mesmo se completou seu aprendizado. Claramente, o trabalho fraco e sem vida de Peterzano teve pouca influência sobre ele.
As circunstâncias exatas sobre a saída de Caravaggio de Milão estão, como quase todo o resto de sua vida, perdidas no tempo e envoltas em mistério. Registros indicam
que sua mãe morreu em 1590 e que, de seus modestos bens, ele recebeu uma herança igual a seiscentos scudi de ouro. Em um ano o dinheiro tinha acabado. Não existe
nenhuma sugestão, em lugar nenhum, de que o volúvel jovem que tinha sido treinado para ser artista pintou algo em seus últimos anos em Milão. Parece que estava muito
ocupado com outras atividades. Giovanni Pietro Bellori, autor de uma de suas primeiras biografias, sugere que Caravaggio teve de fugir da cidade, talvez depois de
um incidente envolvendo uma prostituta e uma navalha, talvez depois do assassinato de um amigo. Ele viajou para o leste, até Veneza, escreveu Bellori, onde ficou
enfeitiçado pela paleta de Giorgione. Então, no outono de 1592, foi para Roma.
A partir daí, a vida de Caravaggio começa a tomar relevos claros. Entrou na cidade, como todos os migrantes do norte, através dos portões do porto del Popolo e chegou
ao bairro dos artistas, uma confusão de ruas sujas ao redor do Campo Marzio. De acordo com o pintor Baglione, ele dividiu um quarto com um artista da Sicília, embora
outro biógrafo, um médico que conheceu Caravaggio em Roma, tenha registrado que ele encontrou alojamento na casa de um padre que o forçava a limpar a casa e só lhe
dava verduras para comer. Caravaggio chamava o padre de Monsignor Insalata e saiu da casa dele após poucos meses. Viveu em dezenas de lugares diferentes durante
seus primeiros anos em Roma, inclusive na oficina de Giuseppe Cesari, onde dormia num colchão de palha. Andava pelas ruas com meias pretas esfarrapadas e uma capa
preta surrada. Seu cabelo preto era um caos completo.
Cesari só permitia que Caravaggio pintasse flores e frutas, uma das tarefas mais baixas para um aprendiz em um ateliê. Entediado, convencido de seu talento superior,
ele começou a produzir seus próprios quadros. Vendeu alguns nos becos perto da Piazza Navona. Mas um deles, uma imagem luminosa de um garotinho romano sendo enganado
por uma dupla de trapaceiros, foi vendido para um negociante cuja loja estava localizada em frente ao palazzo ocupado pelo cardeal Francesco del Monte. A transação
iria mudar completamente o curso da vida de Caravaggio, pois o cardeal, conhecedor e patrono das artes, gostou muito do quadro e o comprou por alguns scudi. Logo
depois, comprou um segundo quadro de Caravaggio mostrando uma vidente que, sorrindo, roubava o anel de um garoto de Roma enquanto lia a palma de sua mão. Em algum
momento, os dois homens se conheceram, embora não esteja claro quem tomou a iniciativa. O cardeal ofereceu ao jovem artista comida, roupas, alojamento e um estúdio
no palazzo. Tudo que pedia de Caravaggio era que ele pintasse. O artista, com 24 anos na época, aceitou a proposta do cardeal. Foi uma das poucas decisões sábias
que tomou.
Depois de se estabelecer em seu quarto no palazzo, Caravaggio produziu vários quadros para o cardeal e seu círculo de amigos ricos, incluindo O Tocador de Ataúde,
Os Músicos, Baco, Marta e Maria Madalena e São Francisco de Assis em Êxtase. Então, em 1599, recebeu seu primeiro pedido público: dois quadros retratando cenas da
vida de São Mateus para a capela Contarelli na Igreja de San Luigi dei Francesi. Os quadros, apesar de controversos, instantaneamente estabeleceram Caravaggio como
o artista mais procurado de Roma. Outros pedidos logo se seguiram, incluindo O Martírio de São Pedro e A Conversão de São Paulo para a capela Cerasi da Igreja de
Santa Maria del Popolo, A Ceia de Emaús, João Batista, A Captura de Cristo, A Incredulidade de São Tomé e O Sacrifício de Isaac. Nem todas suas obras foram aprovadas
quando ficaram prontas. Madonna e a Criança com Santa Ana foi retirada da basílica de São Pedro porque a hierarquia da igreja aparentemente não aprovou o decote
de Maria. O retrato dela com pernas nuas em Morte da Virgem foi considerado tão ofensivo que a igreja que fez o pedido, Santa Maria della Scala, em Trastevere, se
recusou a aceitá-lo. Rubens afirmou que era uma das melhores obras de Caravaggio e o ajudou a encontrar um comprador.
O sucesso como pintor não trouxe tranquilidade à vida pessoal de Caravaggio — na verdade, ela continuava tão caótica e violenta como sempre. Foi preso por andar
com uma espada sem autorização no Campo Marzio. Enfiou um prato de alcachofras no rosto de um garçom na Osteria del Moro. Foi preso por jogar pedras na sbirri, a
polícia papal, na via dei Greci. O incidente de jogar pedras ocorreu às nove e meia de uma noite de outubro de 1604. Nesse momento, Caravaggio estava morando em
uma casa alugada apenas com Cecco, seu aprendiz e modelo ocasional, como companhia. Sua aparência física tinha se deteriorado; era novamente a figura desleixada
usando roupas pretas desalinhadas que vendia seus quadros na rua. Apesar de ter várias encomendas, trabalhava esporadicamente. De alguma forma conseguiu entregar
um monumental retábulo chamado A Deposição de Cristo. Foi considerado por muitos como seu melhor quadro.
Houve mais atritos com as autoridades — seu nome aparece nos registros policiais de Roma cinco vezes só em 1605 —, mas nada mais sério do que o incidente que aconteceu
em 28 de maio de 1606. Era um domingo e, como sempre, Caravaggio fora até as quadras de via della Pallacorda para uma partida de tênis. Lá, ele encontrou Ranuccio
Tomassoni, um lutador de rua e rival nos afetos de uma linda e jovem cortesã que tinha posado para vários dos quadros de Caravaggio. Palavras foram trocadas, e espadas,
desembainhadas. Os detalhes do mêlée são pouco claros, mas terminou com Tomassoni caído no chão com uma profunda ferida no alto de sua coxa. Morreu pouco depois
e, à noite, Caravaggio era o alvo de uma caçada humana por toda a cidade. Procurado por assassinato, um crime com uma única punição possível, ele fugiu para as colinas
Albanas. Nunca mais veria Roma.
Foi para o sul até Nápoles, onde sua reputação como grande pintor o precedia, a despeito do assassinato. Ele deixou para trás As Sete Obras de Misericórdia antes
de navegar para Malta. Lá foi admitido nos Cavalheiros de Malta, uma honra cara pela qual pagou com quadros e, por um breve momento, viveu como um nobre. Então,
uma briga com outro membro da ordem o levou novamente a passar um tempo na prisão. Conseguiu escapar e fugiu para a Sicília onde, segundo informações, era uma alma
louca e perturbada que dormia com uma adaga. Mesmo assim, conseguia pintar. Em Siracusa, ele deixou O Enterro de Santa Lúcia. Em Messina, produziu dois quadros monumentais:
A Ressurreição de Lázaro e o doloroso Adoração dos Pastores. E para o Oratorio di San Lorenzo, em Palermo, pintou Natividade com São Francisco e São Lourenço. Trezentos
e cinquenta e nove anos depois, na noite de 18 de outubro de 1969, dois homens entraram na capela através de uma janela e cortaram a tela de sua moldura. Uma cópia
do quadro está pendurada atrás da mesa do general Cesare Ferrari no palazzo em Roma. Era o alvo número um do Esquadrão de Arte.
— Suspeito que o general já saiba sobre a conexão entre o Caravaggio e Jack Bradshaw — falou Maurice Durand. — Isso explicaria por que ele insistiu tanto para que
você assumisse o caso.
— Você conhece bem o general — falou Gabriel.
— Não tanto — respondeu o francês. — Mas eu o encontrei uma vez.
— Onde?
— Aqui em Paris, em um simpósio sobre crimes contra a arte. O general era um dos palestrantes.
— E você?
— Eu estava na plateia.
— Com que desculpa?
— Como negociante de antiguidades valiosas, claro. — Durand sorriu. — Ele me pareceu um homem sério, muito capaz. Já faz tempo que roubei um quadro na Itália.
Estavam caminhando por uma trilha de cascalho da allée centrale. As nuvens pesadas tinham drenado as cores dos jardins. Era Sisley em vez de Monet.
— É possível? — perguntou Gabriel.
— Que o Caravaggio esteja à venda?
Gabriel assentiu. Durand pareceu pensar muito antes de responder.
— Ouvi todo tipo de história — falou, finalmente. — Que o colecionador que encomendou o roubo se recusou a aceitar o quadro porque ficou muito danificado quando
foi cortado da moldura. Que os chefes da máfia da Sicília costumavam levá-lo durante as reuniões como um tipo de troféu. Que foi destruído em uma enchente. Que foi
comido por ratos. Mas também ouvi rumores — acrescentou ele — de que já esteve à venda antes.
— Quanto valeria no mercado negro?
— Os quadros que Caravaggio produziu enquanto estava fugindo não possuem a mesma profundidade de suas grandes obras romanas. Mesmo assim — acrescentou Durand —,
um Caravaggio ainda é um Caravaggio.
— Quanto, Maurice?
— A regra geral é que um quadro roubado retém dez por cento de seu valor no mercado negro. Se o Caravaggio valesse cinquenta milhões no mercado aberto, sujo chegaria
a uns cinco milhões.
— Não existe mercado aberto para um Caravaggio.
— O que significa que é realmente único. Alguns homens no mundo pagariam quase qualquer valor por ele.
— Você conseguiria vendê-lo?
— Com apenas um telefonema.
Chegaram ao pequeno cais onde vários pequenos veleiros estavam navegando em um minúsculo mar revirado por uma tempestade. Gabriel parou na beira e explicou como
tinha encontrado três quadros roubados — um Parmigianino, um Renoir e um Klimt — escondidos sob cópias de menor valor na villa de Jack Bradshaw no lago Como. Durand,
olhando os barcos, assentia pensativo.
— Parece que estavam prontos para transporte e venda.
— Por que pintar por cima?
— Assim poderiam ser vendidos como obras legítimas. — Durand parou, depois acrescentou: — Obras legítimas de menor valor, claro.
— E quando as vendas fossem finalizadas?
— Uma pessoa como você seria contratada para remover as imagens de cima e preparar os quadros para serem pendurados.
Duas turistas, jovens garotas, posavam para uma fotografia do lado oposto do cais. Gabriel puxou Durand pelo cotovelo e o guiou até a pirâmide do Louvre.
— A pessoa que pintou esses quadros falsos era boa — falou ele. — Boa o suficiente para enganar alguém como eu numa primeira olhada.
— Há muitos artistas talentosos por aí que estão dispostos a oferecer seus serviços para nós, que estamos no lado escuro do negócio. — O francês olhou para Gabriel
e perguntou: — Já teve a ocasião de falsificar um quadro?
— Eu posso ter falsificado um Cassatt uma vez.
— Por uma boa causa, sem dúvida.
Eles continuaram andando, o cascalho fazendo barulho debaixo de seus pés.
— E você, Maurice? Já precisou dos serviços de um falsificador?
— Estamos entrando em território sensível — falou Durand.
— Cruzamos essa fronteira há algum tempo, eu e você.
Eles chegaram à place du Carrousel, viraram à direta e foram até o rio.
— Sempre que possível — falou Durand —, prefiro criar a ilusão de que um quadro roubado não foi realmente roubado.
— Deixa uma cópia no lugar.
— Chamamos de obras substitutas.
— Quantas estão penduradas em museus e casas na Europa?
— Preferia não falar.
— Vamos lá, Maurice.
— Há um homem que faz todo esse trabalho para mim. Ele é rápido, confiável e bastante bom.
— Esse homem tem nome?
Durand hesitou antes de responder. O nome do falsificador era Yves Morel.
— Onde ele estudou?
— Na École Nationale des Beaux-Arts, em Lyon.
— Bastante prestigiada — falou Gabriel. — Por que ele mesmo não se tornou artista?
— Ele tentou. Não saiu como planejava.
— Então se vingou do mundo da arte tornando-se um falsificador?
— Mais ou menos isso.
— Quanta nobreza.
— Quem tem teto de vidro...
— A sua relação é exclusiva?
— Gostaria que fosse, mas não tenho tanto trabalho para ele. Em certas ocasiões, ele aceita pedidos de outros clientes. Um desses clientes era um intermediário recém-falecido
chamado Jack Bradshaw.
Gabriel parou de caminhar e se virou para encarar Durand.
— E é por isso que você sabe tanto sobre as operações de Bradshaw — falou ele. — Estiveram dividindo os serviços do mesmo falsificador.
— Foi tudo bastante Caravaggiesco — respondeu Durand, assentindo.
— Onde Morel trabalhava para Bradshaw?
— Em um quarto no Freeport de Genebra. Bradshaw tinha uma galeria de arte bastante interessante ali. Yves costumava chamar de galeria dos desaparecidos.
— Onde ele está agora?
— Aqui em Paris.
— Onde, Maurice?
Durand tirou a mão do bolso de seu casaco e indicou que o falsificador poderia ser encontrado em algum ponto perto de Sacré-Coeur. Entraram no metrô, o ladrão de
arte e o agente da inteligência, e foram para Montmartre.
12
MONTMARTRE, PARIS
YVES MOREL VIVIA EM UM prédio de apartamentos na rue Ravignon. Quando Durand apertou o botão da campainha, ninguém atendeu.
— Ele deve estar na place du Tertre.
— Fazendo o quê?
— Vendendo cópias de quadros impressionistas famosos para turistas para que as autoridades francesas acreditem que ele tem uma renda legítima.
Caminharam até a praça, uma confusão de cafés a céu aberto com artistas de rua perto da basílica, mas Morel não estava em seu ponto de sempre. Então foram até seu
bar favorito na rue Norvins, mas não havia nenhum sinal dele ali também. Não atendeu uma ligação no seu celular.
— Merde —, falou Durand baixinho, enfiando o celular de novo no bolso do casaco.
— E agora?
— Tenho uma chave do seu apartamento.
— Por quê?
— De vez em quando, ele deixa coisas em seu estúdio para que eu recolha.
— Parece alguém que confia em você.
— Contrariando o dito popular — falou Durand —, há muita honra entre ladrões.
Eles caminharam de volta ao prédio e tocaram a campainha pela segunda vez. Não havendo resposta, Durand tirou um molho de chaves de seu bolso e usou uma para abrir
a porta. Usou a mesma chave para abrir a porta do apartamento de Morel. Estava tomado pela escuridão. Durand mexeu no interruptor da parede, iluminando uma grande
sala aberta que funcionava como estúdio e sala de estar. Gabriel caminhou até um cavalete, sobre o qual havia uma cópia não finalizada de uma paisagem de Pierre
Bonnard.
— Ele vai vender essa para os turistas na place du Tertre?
— Essa é para mim.
— Para quê?
— Use sua imaginação.
Gabriel examinou o quadro mais de perto.
— Se fosse adivinhar — falou ele —, sua intenção é pendurá-lo no Musée des Beaux-Arts, em Nice.
— Você tem um bom olho.
Gabriel se afastou do cavalete e caminhou até a mesa grande e retangular no centro do estúdio. Em cima dela havia uma lona manchada de tinta. Embaixo havia um objeto
de aproximadamente 1,82 m de comprimento e 60 cm de largura.
— Morel é escultor?
— Não.
— Então o que está debaixo da lona?
— Não sei, mas é melhor você dar uma olhada.
Gabriel levantou a ponta da lona e deu uma espiada.
— E então? — perguntou Durand.
— Acho que você vai ter que encontrar outra pessoa para terminar o Bonnard, Maurice.
— Deixe-me ver.
Gabriel levantou a lona.
— Merde — falou Durand baixinho.
PARTE DOIS
GIRASSÓIS
13
SAN REMO, ITÁLIA
O GENERAL FERRARI ESPERAVA PERTO DAS paredes da velha fortaleza em San Remo às duas e meia da tarde seguinte. Usava terno, casaco de lã e óculos escuros que escondiam
seu olho falso que tudo via. Gabriel, vestido de jeans e couro, parecia o irmão mais jovem, o que tinha feito todas as piores escolhas na vida e que precisava, outra
vez, de dinheiro. Enquanto caminhavam pela fonte suja, ele contou ao general o que tinha descoberto, apesar de não revelar suas fontes. O general não pareceu surpreso
com nada do que estava ouvindo.
— Você esqueceu uma coisa — falou ele.
— E qual é?
— Jack Bradshaw não era diplomata. Era espião.
— Como você sabia?
— Todo mundo no negócio de arte sabia do passado de Bradshaw. Era um dos motivos pelos quais ele era tão bom. Mas não se preocupe — acrescentou o general. — Não
vou complicar sua situação com seus amigos de Londres. Tudo que quero é meu Caravaggio.
Eles deixaram a fonte e desceram a colina até o centro da cidade. Gabriel ficou pensando por que alguém iria querer passar as férias ali. A cidade lembrava uma mulher
que já tinha sido bonita e que se arrumava para que pintassem seu retrato.
— Você me enganou — disse ele.
— De jeito nenhum — respondeu o general.
— Como descreveria o que fez?
— Eu não contei certos fatos para não atrapalhar sua investigação.
— Sabia que o Caravaggio estava à venda quando me pediu para investigar a morte de Bradshaw?
— Ouvi rumores sobre isso.
— Já ouviu rumores sobre um colecionador comprando muita arte roubada?
O general assentiu.
— Quem é?
— Não tenho ideia.
— Está me contando a verdade dessa vez?
O general colocou sua mão boa sobre o coração.
— Não sei a identidade da pessoa que está comprando toda peça de arte roubada que consegue encontrar. Nem sei quem está por trás da morte de Jack Bradshaw. — Ele
fez uma pausa, depois acrescentou: — Apesar de suspeitar que seja a mesma pessoa.
— Por que Bradshaw foi assassinado?
— Acho que pode ter perdido sua utilidade.
— Porque ele entregou o Caravaggio?
O general assentiu em dúvida.
— Então por que foi torturado primeiro?
— Talvez seus assassinos quisessem um nome.
— Yves Morel?
— Bradshaw deve ter usado Morel para dar uma melhorada no quadro de modo que pudesse ser vendido. — Ele olhou para Gabriel e perguntou: — Como o mataram?
— Quebraram seu pescoço. Parece ter sido uma separação completa da medula.
O general fez uma careta.
— Silencioso e sem sangue.
— E muito profissional.
— O que você fez com o pobre coitado?
— Vão cuidar dele — falou Gabriel baixinho.
— Quem?
— É melhor não saber os detalhes.
O general balançou a cabeça lentamente. Era agora cúmplice de um crime. Não era a primeira vez.
— Vamos esperar — falou depois de um momento — que a polícia francesa nunca descubra que você esteve no apartamento de Morel. Com seu histórico, eles poderiam ter
a impressão errada.
— Exato — falou Gabriel, taciturno. — Esperemos que não.
Eles entraram na via Roma. Reverberava com o barulho de centenas de scooters. Gabriel, quando voltou a falar, teve de elevar a voz para ser ouvido.
— Quem foi o último dono? — perguntou ele.
— Do Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Nem eu tenho certeza — admitiu o general. — Sempre que prendíamos um mafioso, independentemente de sua importância, ele nos oferecia informações sobre a localização
da Natividade em troca de uma redução da sentença. Chamamos de “carta de Caravaggio”. Não é preciso dizer que perdemos incontáveis horas de trabalho procurando pistas
falsas.
— Achei que você quase o tivesse encontrado há uns anos.
— Eu também, mas escorreu pelos meus dedos. Estava começando a pensar que nunca teria outra oportunidade de recuperá-lo. — Ele sorriu, contra vontade. — E agora
isso.
— Se o quadro foi vendido, provavelmente não está mais na Itália.
— Concordo. Mas minha experiência diz — acrescentou o general — que o melhor momento para encontrar um quadro roubado é imediatamente depois de ter mudado de mãos.
Precisamos agir rapidamente, no entanto. De outra forma, nós poderemos ter que esperar outros 45 anos.
— Nós?
O general parou de caminhar, mas não falou nada.
— Meu envolvimento nesse assunto — falou Gabriel acima do barulho do trânsito — está oficialmente terminado.
— Você prometeu descobrir quem matou Jack Bradshaw em troca de manter o nome do seu amigo fora dos jornais. Até onde vejo, não completou sua missão.
— Forneci uma pista importante, sem mencionar três quadros roubados.
— Mas não o quadro que eu quero. — O general tirou os óculos escuros e fixou seu olhar monocular em Gabriel. — Seu envolvimento nesse caso não terminou, Allon. Na
verdade, está apenas começando.
Eles caminharam até um pequeno bar que dava para a marina. Estava vazio exceto por dois jovens que se queixavam sobre a triste situação da economia. Era uma visão
comum na Itália desses dias. Não havia empregos, nem perspectivas, nem futuro — só as lindas lembranças do passado que o general e sua equipe no Esquadrão de Arte
tinham jurado proteger. Pediu um café e um sanduíche e levou Gabriel até uma mesa do lado de fora, sob a luz fria do sol.
— Francamente — falou ele quando estavam sozinhos de novo —, não sei como você pode pensar em deixar esse caso agora. Seria como deixar um quadro inacabado.
— Meu quadro inacabado está em Veneza — respondeu Gabriel — junto com minha esposa grávida.
— Seu Veronese está seguro. Assim como sua esposa.
Gabriel olhou para uma lata de lixo cheia na ponta da marina e balançou a cabeça. Os antigos romanos tinham inventado o aquecimento central, mas em algum ponto do
caminho seus descendentes tinham esquecido como jogar fora o lixo.
— Poderia demorar meses para encontrar esse quadro — falou ele.
— Não temos meses. Eu diria que temos algumas semanas no máximo.
— Então suponho que você e seus homens deveriam se mexer.
O general balançou a cabeça lentamente.
— Somos bons em grampear telefones e fazer acordos com a escória da máfia. Mas não somos bons em operações secretas, principalmente fora da Itália. Preciso de alguém
que jogue uma isca nas águas do mercado de arte roubada e veja se conseguimos tentar o sr. Grandão a fazer outra aquisição. Ele está aí fora em algum lugar. Você
só precisa encontrar algo que o interesse.
— Em geral, não encontramos obras de arte que valem milhões. Elas são roubadas.
— De forma espetacular — acrescentou o general. — O que significa que não deve ser de uma casa ou galeria particular.
— Está percebendo o que está falando?
— Estou. — O general deu um sorriso conspiratório. — A maioria das operações secretas envolve enviar um comprador falso. Mas a sua será diferente. Você vai aparecer
como o ladrão com uma peça importante para vender. O quadro precisa ser real.
— Por que não me empresta algumas das adoráveis peças da Galleria Borghese?
— O museu nunca aceitaria. Além disso — acrescentou o general —, o quadro não pode ser da Itália. Ou a pessoa que tem o Caravaggio poderia suspeitar do meu envolvimento.
— Você nunca vai conseguir acusar alguém depois de algo assim.
— Acusar alguém está, definitivamente, fora das minhas prioridades. Quero aquele Caravaggio de volta.
O general ficou em silêncio. Gabriel teve que admitir que estava intrigado pela ideia.
— Não tenho como estar à frente da operação — falou depois de um tempo. — Meu rosto é muito conhecido.
— Então, acho que terá que encontrar um bom ator para o papel. E se eu fosse você, contrataria um pouco de músculos também. O submundo pode ser um lugar perigoso.
— Não me diga.
O general não respondeu.
— Músculos não saem barato — falou Gabriel. — E nem ladrões competentes.
— Consegue pegar emprestado alguns do seu serviço?
— Músculos ou ladrões?
— Os dois.
— Sem chance.
— Quanto dinheiro você precisa?
Gabriel pensou um pouco.
— Dois milhões, no mínimo.
— Eu poderia ter um milhão num cofrinho embaixo da minha mesa.
— Eu aceito.
— Na verdade — falou o general, sorrindo —, o dinheiro está no porta-malas do meu carro. Também tenho uma cópia do arquivo do caso Caravaggio. Algo para você ler
enquanto espera o sr. Grandão colocar o barco na água.
— E se ele não morder a isca?
— Acho que você vai ter que roubar outra coisa. — O general deu de ombros. — É a maravilha de roubar obras de arte. Não é tão difícil assim.
O dinheiro, como prometido, estava no porta-malas do sedã oficial do general — um milhão de euros em notas usadas, cuja fonte ele se recusou a especificar. Gabriel
colocou a mala no banco do passageiro de seu carro e foi embora sem falar nada. Quando chegou perto de San Remo, ele já tinha completado os primeiros rascunhos de
sua operação para recuperar o Caravaggio perdido. Tinha financiamento e acesso ao mais bem-sucedido ladrão de arte do mundo. Tudo que precisava agora era alguém
para colocar um quadro roubado no mercado. Um amador não serviria. Precisava de um agente experiente que tivesse sido treinado nas artes negras da fraude. Alguém
que se sentisse confortável na presença de criminosos. Alguém que poderia se virar se as coisas ficassem pesadas. Gabriel conhecia um homem assim do outro lado do
mar, na ilha de Córsega. Era um pouco como Maurice Durand, um velho adversário que agora era cúmplice, mas as semelhanças terminavam aí.
14
CÓRSEGA
ERA QUASE MEIA-NOITE QUANDO a balsa chegou ao porto de Calvi, longe da hora aceitável para se fazer uma ligação telefônica na Córsega, então Gabriel fez o check-in
em um hotel perto do terminal e dormiu. De manhã, tomou café em uma pequena lanchonete de frente para o mar; depois entrou em seu carro e seguiu a sinuosa estrada
na costa oeste. Por um tempo a chuva continuou, mas gradualmente as nuvens diminuíram e o mar passou de granito a turquesa. Gabriel parou na cidade de Porto para
comprar duas garrafas de rosé da Córsega bem geladas e seguiu uma estrada estreita cercada de oliveiras e pinheiros-larício para o interior da ilha. O ar tinha cheiro
de macchia — a densa vegetação formada por alecrim, estevas e lavanda que cobria boa parte da ilha — e nas vilas ele viu muitas mulheres totalmente cobertas de roupas
pretas da viuvez, um sinal de que tinham perdido homens da família para a vendetta. Em outros tempos, as mulheres poderiam ter apontado para ele da maneira típica
da Córsega a fim de avisar sobre os efeitos da occhju, o mau-olhado, mas agora elas evitavam fitá-lo por muito tempo. Sabiam que ele era amigo de dom Anton Orsati,
e amigos do Dom podiam viajar para qualquer lugar na Córsega sem medo de represálias.
Por mais de dois séculos, o clã Orsati estava associado a duas coisas na ilha da Córsega: azeite de oliva e morte. O azeite vinha das oliveiras que se espalhavam
por suas grandes propriedades; a morte vinha das mãos de seus assassinos. Os Orsatis matavam em nome daqueles que não poderiam matar por si mesmos: poderosos que
eram muito sensíveis para sujar suas mãos; mulheres que não tinham homens para realizar a tarefa para elas. Ninguém sabia quantos moradores da ilha tinham morrido
nas mãos dos assassinos dos Orsati, muito menos os próprios Orsatis, mas a tradição colocava o número nos milhares. Poderia ser significativamente mais alto se não
fosse pelo rigoroso processo de veto do clã. Os Orsatis operavam com um código estrito. Recusavam-se a realizar um assassinato se não tivessem certeza de que a pessoa
pedindo tivesse sido injustiçada e uma vingança com sangue fosse realmente necessária.
Isso mudou, no entanto, com dom Anton Orsati. Quando ele assumiu o controle da família, as autoridades francesas tinham erradicado as disputas e as vinganças em
quase todas as partes, menos nos bolsões mais isolados da ilha, deixando poucos moradores com a necessidade de pedir os serviços de seu taddunaghiu. Com a demanda
local em declínio, Orsati precisou procurar oportunidades em outro lugar — quer dizer, do outro lado do mar, na Europa continental. Ele agora aceitava quase qualquer
oferta que cruzava sua mesa, não importava se fosse desagradável, e seus assassinos eram vistos como os mais confiáveis e profissionais do continente. Na verdade,
Gabriel era uma das únicas duas pessoas que já tinham sobrevivido a um contrato da família Orsati.
Dom Anton Orsati vivia nas montanhas no centro da ilha, cercado pelas muralhas de macchia e muitos guarda-costas. Dois estavam parados no portão. Ao verem Gabriel,
eles convidaram-no a entrar. Uma estrada de terra o levou através de oliveiras Van Gogh e, no final, até a entrada da imensa villa. Mais guarda-costas esperavam
do lado de fora. Fizeram uma revista apressada nos pertences de Gabriel, em seguida, um assassino moreno de cara comprida, que parecia ter uns vinte anos, o acompanhou
até o escritório de Orsati no andar de cima. Era um espaço largo com móveis rústicos e um terraço que dava para um vale particular. A madeira macchia queimava na
lareira de pedra. Perfumava o ar com alecrim e sálvia.
No centro da sala estava a larga mesa de carvalho na qual Dom trabalhava. Havia uma garrafa decorativa de azeite de oliva Orsati, um telefone que ele raramente usava
e um livro com capa de couro que continha os segredos de seu negócio. Seus taddunaghiu eram todos empregados da Companhia de Azeite de Oliva Orsati, e os assassinatos
que realizavam eram agendados como pedidos de produto, o que significava que, no mundo de Orsati, azeite e sangue fluíam juntos em um empreendimento homogêneo. Todos
seus assassinos eram descendentes de moradores locais, exceto um. Por causa de seu extenso treinamento, ele era encarregado apenas dos trabalhos mais difíceis. Também
era diretor de vendas de um lucrativo mercado central europeu.
O Dom era um homem grande para os padrões da Córsega, com mais de 1,80 m e de costas e ombros largos. Estava usando calças soltas, sandálias de couro empoeiradas
e uma camisa branca que sua mulher passava para ele toda manhã e novamente de tarde quando ele se levantava de sua sesta. Seu cabelo era negro, como seus olhos.
Sua mão, quando apertou a de Gabriel, parecia ter sido esculpida em pedra.
— Bem-vindo à Córsega — falou Orsati, enquanto pegava as duas garrafas de rosé que Gabriel trazia. — Eu sabia que não conseguiria ficar longe por muito tempo. Não
entenda mal, Gabriel, mas sempre achei que você tinha um pouco de sangue da Córsega nas veias.
— Posso garantir, dom Orsati, que não é o caso.
— Não importa. Você praticamente é um dos nossos agora. — O Dom abaixou a voz e acrescentou: — Homens que matam juntos desenvolvem uma ligação que não pode ser quebrada.
— Esse é um dos seus provérbios da Córsega?
— Nossos provérbios são sagrados e corretos, o que já é um provérbio em si. — Orsati sorriu. — Achei que estaria em Veneza com sua esposa.
— Eu estava — respondeu Gabriel.
— Então, o que o traz à Córsega? Negócios ou prazer?
— Negócios, infelizmente.
— O que foi dessa vez?
— Um favor.
— Outro?
Gabriel assentiu.
— Aqui na Córsega — falou o Dom, franzindo a testa em desaprovação — acreditamos que o destino de um homem está escrito ao nascer. E você, meu amigo, parece destinado
a sempre resolver problemas para outras pessoas.
— Há destinos piores, Dom Orsati.
— Deus ajuda a quem se ajuda.
— Quanta caridade — falou Gabriel.
— Caridade é para padres e tolos. — Olhou para a maleta na mão de Gabriel. — O que tem na mala?
— Um milhão de euro em notas usadas.
— Onde conseguiu tudo isso?
— Com um amigo em Roma.
— Um italiano?
Gabriel assentiu.
— No final de muitos desastres — falou Dom Orsati, sombrio —, há sempre um italiano.
— Estou casado com uma.
— E é por isso que sempre acendo velas por você.
Gabriel tentou, mas não conseguiu reprimir um sorriso.
— Como ela está? — perguntou o Dom.
— Parece que sempre a deixo brava. Tirando isso, está muito bem.
— É a gravidez — falou Orsati, pensativo. — Quando as crianças nascerem, tudo vai ser diferente.
— Como?
— Será como se você não existisse. — Ele voltou a olhar para a maleta. — Por que você anda por aí com um milhão de euros em notas usadas?
— Pediram-me que encontrasse algo valioso e vai ser preciso bastante dinheiro para recuperá-lo.
— Outra garota perdida? — perguntou o Dom.
— Não — respondeu Gabriel. — Isso.
Gabriel entregou a Orsati a fotografia de uma moldura vazia pendurada em cima do altar do Oratorio di San Lorenzo. Dom Orsati reconheceu imediatamente.
— A Natividade? — perguntou ele.
— Nunca soube que você era um homem das artes, dom Orsati.
— Não sou — admitiu ele—, mas segui o caso durante uns anos.
— Algum motivo em particular?
— Por acaso estava em Palermo na noite em que o Caravaggio foi roubado. Na verdade — acrescentou dom Orsati, com um sorriso —, tenho quase certeza de que fui eu
quem descobriu que tinha sumido.
No terraço de frente para o vale, dom Anton Orsati contou como, no final do verão de 1969, apareceu na Córsega um empresário siciliano chamado Renato Francona. O
siciliano queria vingança por sua linda filha, que tinha sido assassinada algumas semanas antes por Sandro di Luca, um membro importante da Cosa Nostra. Dom Carlu
Orsati, então chefe do clã Orsati, não queria participar disso. Mas seu filho, um assassino talentoso chamado Anton, acabou convencendo seu pai para que deixasse
que ele fizesse o trabalho pessoalmente. Tudo aconteceu como planejado naquela noite exceto pelo clima, que o impediu de sair de Palermo. Não tendo nada melhor para
fazer, o jovem Anton procurou uma igreja para confessar seus pecados. A igreja em que entrou foi o Oratorio di San Lorenzo.
— E isso — falou Orsati, segurando a foto da moldura vazia —, foi exatamente o que eu vi naquela noite. Claro que não informei a polícia sobre o roubo.
— O que aconteceu com Renato Francona?
— A Cosa Nostra o matou algumas semanas depois.
— Eles presumiram que estava por trás do assassinato de di Luca?
Orsati assentiu, sério.
— Mas pelo menos morreu com honra.
— Por quê?
— Porque tinha vingado o assassinato de sua filha.
— E ainda perguntam por que a Sicília não é a força econômica e intelectual do Mediterrâneo.
— Não se ganha dinheiro com a felicidade — falou o Dom.
— O que quer dizer?
— A vingança manteve essa família nos negócios por gerações — respondeu. — E o assassinato de Sandro di Luca provou que poderíamos operar fora da Córsega sem sermos
detectados. Meu pai foi contra aquilo até sua morte. Mas quando faleceu, transformei os negócios da família em algo internacional.
— Se você não cresce, morre.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente — respondeu Gabriel.
A mesa estava posta para um tradicional almoço da Córsega com comidas condimentadas com macchia. Gabriel se serviu com os vegetais e queijos, mas ignorou a linguiça.
— É kosher — falou o Dom, enquanto colocava vários pedaços de carne no prato de Gabriel.
— Não sabia que havia algum rabino na Córsega.
— Muitos — garantiu.
Gabriel deixou a linguiça de lado e perguntou ao Dom se ele ainda ia à igreja depois de matar alguém.
— Se eu fosse — respondeu ele —, passaria mais tempo de joelhos do que uma lavadeira. Além disso, nesse ponto já não tenho mais salvação. Deus pode fazer o que quiser
comigo.
— Gostaria de ver a conversa entre você e Deus.
— Poderia ser durante um típico almoço da Córsega. — Orsati sorriu e encheu a taça de Gabriel com o rosé. — Vou lhe contar um segredo — falou, colocando a garrafa
de volta no centro da mesa. — A maioria das pessoas que matamos merece morrer. Do nosso jeito, o clã Orsati fez do mundo um lugar melhor.
— Se sentiria assim se tivesse me matado?
— Não seja tolo — respondeu o Dom. — Permitir que você vivesse foi a melhor decisão que já tomei.
— Até onde me lembro, dom Orsati, você não teve nada a ver com a decisão de me deixar viver. Na verdade — acrescentou Gabriel enfaticamente —, você era contra.
— Mesmo eu, o infalível dom Anton Orsati, cometo erros de vez em quando, apesar de que nunca faria nada tão tolo quanto concordar em encontrar um Caravaggio para
os italianos.
— Não tive muita escolha nessa questão.
— É algo ridículo.
— Minha especialidade.
— Os carabinieri estão procurando aquele quadro há mais de quarenta anos, e nunca conseguiram achar. Na minha opinião, provavelmente foi destruído há muito tempo.
— Não é o que se diz por aí.
— O que você ouviu?
Gabriel respondeu a questão contando ao Dom as mesmas coisas que tinha dito ao general Ferrari em San Remo. Então explicou seu plano para recuperar o quadro. O Dom
ficou bastante intrigado.
— O que isso tem a ver com os Orsatis? — perguntou.
— Preciso de um de seus homens emprestado.
— Algum em especial?
— O diretor de vendas da Europa central.
— Que surpresa.
Gabriel não falou nada.
— E se eu concordar?
— Uma mão lava a outra — falou Gabriel — e as duas lavam o rosto.
O Dom sorriu.
— Talvez você seja da Córsega, afinal de contas.
Gabriel olhou para o vale e sorriu.
— Não tive essa sorte, dom Orsati.
15
CÓRSEGA
INFELIZMENTE, O HOMEM que Gabriel precisava para encontrar o Caravaggio estava fora da ilha a negócios. Dom Orsati não quis dizer onde ele estava ou se seus negócios
tinham a ver com azeite ou sangue, só que iria voltar em dois dias, três no máximo. Deu a Gabriel um revólver Tanfoglio e as chaves de uma villa no vale seguinte,
onde poderia esperar. Gabriel conhecia bem a villa. Tinha ficado ali com Chiara depois da última operação deles e, em seu terraço tomado pelo sol, recebido a notícia
de que ela estava grávida. Só havia um problema com a casa: para chegar até lá, Gabriel tinha que passar por três antigas oliveiras onde sempre estava o infeliz
bode de dom Casabianca tomando conta, desafiando todos que ousassem entrar em seu território. O bode velho era uma criatura maligna em geral, mas parecia reservar
um ódio especial contra Gabriel, com quem já tivera numerosos confrontos cheios de mútuas ameaças e insultos. Dom Orsati, no final do almoço, prometeu falar com
dom Casabianca em nome de Gabriel.
— Talvez ele possa convencer a besta — acrescentou o Dom, cético.
— Ou talvez ele possa transformar o bicho em uma bolsa e um par de sapatos.
— Não venha com ideias — disse. — Se você tocar um pelo da cabeça daquele maldito bode, vai ser um desastre.
— E se ele simplesmente desaparecesse?
— A macchia não tem olhos — avisou o Dom —, mas vê tudo.
Com isso, acompanhou Gabriel até a saída para seu carro. Ele seguiu o caminho até voltar à estrada de terra, continuou um pouco mais adiante, e quando chegou até
uma curva fechada à esquerda, viu o bode de dom Casabianca amarrado a uma das três antigas oliveiras, com um olhar de humilhação em sua cara grisalha. Gabriel abaixou
a janela e, em italiano, soltou vários insultos contra o bode falando de sua aparência, seus ancestrais e da degradação de sua situação atual. Depois, rindo, subiu
a colina até a villa.
Era uma casa pequena, com um telhado vermelho e grandes janelas voltadas para o vale. Quando Gabriel entrou, percebeu instantaneamente que ele e Chiara tinham sido
os últimos ocupantes. Seu bloco de desenho estava sobre a mesinha de centro na sala de estar, e na geladeira encontrou uma garrafa fechada de Chablis que tinha sido
um presente do ausente diretor de vendas europeias de dom Orsati. As prateleiras da despensa estavam vazias. Gabriel abriu as portas francesas para que a brisa da
tarde entrasse e se sentou no terraço, lendo o arquivo de Caravaggio do general, até que o frio o obrigou a entrar. Nesse momento, era um pouco depois das quatro
da tarde e o sol parecia se equilibrar sobre a beira do vale. Tomou um banho rápido, mudou de roupa e foi de carro até a vila para fazer umas compras antes que as
lojas fechassem.
Já havia um povoado nesse canto isolado da Córsega desde os dias complicados depois da queda do Império Romano, quando os vândalos saqueavam as costas com tanta
violência que os nativos aterrorizados não tiveram outra escolha a não ser fugir para as colinas para sobreviver. Uma única e velha rua subia em espiral passando
por casas de campo e edifícios de apartamentos até uma grande praça no ponto mais alto da vila. Em três lados havia lojas e cafés; no quarto, estava a velha igreja.
Gabriel encontrou um lugar para estacionar e começou a andar até o mercado, mas decidiu que precisava de um espresso antes. Entrou em um dos cafés e sentou-se a
uma mesa onde conseguia ver os homens jogando boules na praça sob a luz de um poste. Um dos homens reconheceu Gabriel como um dos amigos de dom Orsati e o convidou
a jogar. Gabriel fingiu que tinha um problema no ombro e, em francês, disse que preferia apenas olhar. Não disse que precisava fazer compras. Na Córsega, ainda são
as mulheres que fazem as compras.
Nesse momento, os sinos da igreja marcaram as cinco horas. Alguns minutos depois, suas pesadas portas de madeira se abriram e um padre com batina preta saiu na escada.
Ele ficou sorrindo ali, benevolente, enquanto vários paroquianos, principalmente mulheres velhas, enchiam a praça. Uma das mulheres, depois de cumprimentar o padre,
parou de repente, como se só ela tivesse percebido a presença do perigo. Então voltou a caminhar e desapareceu por uma porta de uma velha casa ao lado da paróquia.
Gabriel pediu outro café. Então mudou de ideia e pediu uma taça de vinho tinto no lugar. O crepúsculo já era apenas uma lembrança; as luzes iluminavam as lojas e
as janelas da casinha torta ao lado da paróquia. Um menino de uns dez anos com cabelo encaracolado comprido estava agora parado na porta, que estava aberta alguns
centímetros. Uma pequena mão pálida apareceu na abertura segurando um pedaço de papel azul. O menino agarrou o papel e cruzou a praça até o café, onde o colocou
em cima da mesa de Gabriel ao lado da taça de vinho tinto.
— O que foi dessa vez? — perguntou ele.
— Ela não falou — respondeu o menino. — Ela nunca fala.
Gabriel deu umas moedas ao menino para comprar um doce e bebeu o vinho enquanto a noite caía sobre a praça. Finalmente, pegou o pedaço de papel e leu a única frase
que estava escrita ali:
Posso ajudá-lo a encontrar o que você está procurando.
Gabriel sorriu, enfiou o papel no bolso, e terminou seu vinho. Então se levantou e cruzou a praça.
Ela estava parada na entrada para recebê-lo, um xale sobre seus ombros magros. Os olhos eram fundos e negros; seu rosto era tão branco quanto farinha. Ela olhou
um tempo para ele antes de finalmente esticar sua mão. Era quente e leve. Parecia que estava segurando um passarinho.
— Bem-vindo de volta à Córsega — falou ela.
— Como soube que eu estava aqui?
— Eu sei de tudo.
— Então me conte como cheguei à ilha.
— Não me insulte.
O ceticismo de Gabriel era fingido. Ele há muito tempo tinha abandonado as dúvidas de que a velha tinha capacidade de ver tanto o passado quanto o futuro. Ela apertou
as mãos dele e fechou os olhos. — Você estava vivendo na cidade da água com sua esposa e trabalhando numa igreja onde um grande pintor foi enterrado. Estava feliz,
realmente feliz, pela primeira vez em sua vida. Então uma criatura de um olho só apareceu e...
— Certo — falou Gabriel. — Já me convenceu.
Ela liberou a mão de Gabriel e apontou para a pequena mesa de madeira em sua sala. Em cima havia um prato raso com água e uma garrafa de azeite de oliva. Eram as
ferramentas que usava. A velha era uma signadora. Os habitantes da ilha acreditavam que ela tinha o poder de curar os infectados pelo occhju, o mau-olhado. Gabriel
já suspeitou que ela era apenas uma charlatã, mas tinha mudado de ideia.
— Sente-se — falou ela.
— Não — respondeu Gabriel.
— Por que não?
— Porque não acreditamos nessas coisas.
— Israelitas?
— Isso — respondeu ele. — Israelitas.
— Mas já fez isso antes.
— Você me contou coisas sobre meu passado, coisas que não poderia saber.
— Então estava curioso?
— Acho que sim.
— E não está curioso agora?
A mulher se sentou em seu lugar de sempre à mesa e acendeu uma vela. Depois de um momento de hesitação, Gabriel se sentou em frente a ela. Empurrou a jarra de azeite
para o centro da mesa e entrelaçou as mãos, concentrado. A velha fechou os olhos.
— A criatura de um olho só pediu que você encontrasse algo para ele, não foi?
— Foi — respondeu Gabriel.
— É um quadro, não é? O trabalho de um louco, um assassino. Foi roubado de uma pequena igreja há muitos anos, de uma ilha do outro lado do mar.
— Dom Orsati contou isso para você?
A velha abriu os olhos.
— Nunca falei com o Dom sobre esse assunto.
— Continue.
— O quadro foi roubado por homens como o Dom, só que piores. Eles trataram o quadro muito mal. Uma parte dele foi destruída.
— Mas o quadro sobreviveu?
— Sobreviveu — falou ela, assentindo lentamente. — Ele sobreviveu.
— Onde está agora?
— Está perto.
— Perto de onde?
— Não sei dizer. Mas se você realizar o teste do azeite e da água — acrescentou ela olhando para o centro da mesa —, talvez eu possa ajudar.
Gabriel não se moveu.
— Do que você tem medo? — perguntou a velha.
— De você — respondeu Gabriel, honestamente.
— Você tem a força de Deus. Por que iria ter medo de alguém tão frágil e velha como eu?
— Porque você tem poderes também.
— Poderes de visão — falou ela. — Mas não poderes terrenos.
— A capacidade de ver o futuro é uma grande vantagem.
— Especialmente para alguém em sua linha de trabalho.
— Exato — concordou Gabriel, sorrindo.
— Então por que você não quer realizar o teste do azeite e da água?
Gabriel ficou em silêncio.
— Você perdeu muitas coisas — disse a velha, suavemente. — Uma esposa, um filho, sua mãe. Mas seus dias de luto ficaram para trás.
— Os meus inimigos vão tentar matar minha esposa?
— Nem ela nem seus filhos vão sofrer.
A velha apontou com a cabeça para a jarra de azeite de oliva. Dessa vez, Gabriel enfiou o dedo indicador nela e deixou que três gotas caíssem sobre a água. Pelas
leis da física, o azeite deveria ter se juntado em uma única porção. Em vez disso, ele se dividiu em milhares de gotinhas e logo desapareceu.
— Você está infectado com o occhju — falou a velha, com gravidade. — Seria bom que me deixasse entrar em seu sistema.
— Prefiro tomar duas aspirinas.
A mulher olhou para o prato de água e azeite.
— O quadro que você está procurando mostra o Menino Jesus, não é?
— É.
— Que curioso que um homem como você esteja procurando nosso Senhor e salvador. — Ela olhou novamente para o prato de água e azeite. — O quadro foi retirado da ilha
pela água. Parece diferente do que era antes.
— Por quê?
— Foi reparado. O homem que fez o trabalho agora está morto. Mas você já sabe disso.
— Algum dia você vai ter que me mostrar como faz isso.
— Não é algo que pode ser ensinado. É um dom de Deus.
— Onde está o quadro agora?
— Não sei dizer.
— Quem está com ele?
— Está além dos meus poderes saber o nome dele. A mulher pode ajudar você a encontrá-lo.
— Que mulher?
— Não sei dizer. Não deixe que nenhum mal aconteça com ela ou vai perder tudo.
A cabeça da velha caiu sobre seu ombro; a profecia a deixara exausta. Gabriel colocou várias notas debaixo do prato de água e azeite.
— Tenho mais uma coisa para contar antes de você ir embora — falou a velha quando Gabriel se levantou.
— O que é?
— Sua esposa deixou a cidade de água.
— Quando? — perguntou Gabriel.
— Enquanto você estava na companhia da criatura de um olho só na cidade perto do mar.
— Onde ela está agora?
— Está esperando por você — falou a velha — na cidade da luz.
— Isso é tudo?
— Não — falou ela enquanto fechava suas pálpebras. — O velho não vai viver muito. Faça as pazes com ele antes que seja tarde demais.
Ela estava certa pelo menos sobre uma coisa: parecia que Chiara tinha realmente saído de Veneza. Durante uma breve ligação para seu celular, ela tinha falado que
estava se sentindo bem e que tinha voltado a chover. Gabriel rapidamente verificou o clima em Veneza e viu que fazia sol há vários dias. Ligações para o telefone
no apartamento deles não tinham resposta, e seu pai, o inescrutável rabino Zolli, parecia ter uma lista de desculpas prontas para explicar por que sua filha não
estava em sua mesa. Ela estava fazendo compras, ou na livraria do gueto, ou visitando os idosos no asilo. “Vou pedir que ligue para você assim que voltar. Shalom,
Gabriel.” Gabriel se perguntava se o guarda-costas bonitão do general era cúmplice no desaparecimento de Chiara ou se ele tinha sido enganado, também. Suspeitava
que era a segunda opção. Chiara era mais bem treinada e experiente do que qualquer carabinieri musculoso.
Ia duas vezes à vila, uma de manhã para tomar espresso com pão e novamente à tarde para tomar uma taça de vinho no café perto do jogo de boules. Nas duas ocasiões
ele via a signadora saindo da igreja depois da missa. Na primeira tarde, ela não prestou atenção nele. Mas na segunda, o menino com cabelo enrolado apareceu em sua
mesa com outro bilhete. Parecia que o homem por quem Gabriel estava esperando chegaria em Calvi de barco no dia seguinte. Gabriel telefonou para dom Orsati, que
confirmou que era verdade.
— Como você sabia? — perguntou ele.
— O macchia não tem olhos — falou Gabriel enigmático, e desligou. Passou a manhã seguinte dando os últimos retoques no seu plano para encontrar o Caravaggio desaparecido.
Então, ao meio-dia, caminhou até as três antigas oliveiras e liberou o bode de dom Casabianca de seu laço. Uma hora depois viu um Renault velho subindo o vale em
uma nuvem de poeira. Quando se aproximou das oliveiras, o velho bode apareceu desafiador no seu caminho. O carro tocou a buzina e logo o vale ecoava com insultos
e ameaças de uma tremenda violência. Gabriel foi até cozinha e abriu o Chablis. O inglês tinha voltado à Córsega.
16
CÓRSEGA
NÃO ERA SEMPRE QUE alguém tinha a oportunidade de apertar a mão de um morto, mas isso foi precisamente o que aconteceu, dois minutos depois, quando Christopher Keller
cruzou a porta da villa. De acordo com os registros militares britânicos, ele tinha morrido em janeiro de 1991, durante a primeira guerra do Golfo, quando seu esquadrão
de Serviços Aéreos Especiais Sabre foi atacado pela força aérea da Coalizão em um trágico caso de fogo amigo. Seus pais, dois respeitados médicos de Harley Street,
apareceram em público para falar sobre seu heroísmo, embora em particular dissessem que ele nunca teria morrido se tivesse ficado em Cambridge em vez de ter se alistado
no exército. Até hoje, ainda não sabem que só ele tinha sobrevivido ao ataque contra seu esquadrão. Nem sabem que, depois de sair do Iraque disfarçado de árabe,
tinha cruzado a Europa até a Córsega, onde havia sido recebido de braços abertos por dom Anton Orsati. Gabriel tinha perdoado Keller por tentar matá-lo uma vez.
Mas não podia perdoar o fato de que o inglês tinha deixado que seus pais envelhecessem acreditando que seu único filho estava morto.
Keller parecia bem para um morto. Seus olhos eram claros e azuis, seu cabelo curto era quase branco pelo mar e o sol, sua pele estava esticada e muito bronzeada.
Usava uma camisa branca aberta no pescoço e um terno amassado pela viagem. Quando tirou o terno, a letalidade de seu físico foi revelada. Tudo em Keller, de seus
poderosos ombros a seus antebraços fortes, parecia ter sido criado expressamente para matar. Ele colocou o terno sobre as costas de uma cadeira e olhou para a Tanfoglio
sobre a mesa de centro, próxima ao arquivo do general sobre o Caravaggio.
— É minha — falou sobre a arma.
— Não mais.
Keller foi até a garrafa aberta de Chablis e se serviu de uma taça.
— Como foi sua viagem? — perguntou Gabriel.
— Bem-sucedida.
— Tinha medo que falasse isso.
— Melhor do que a alternativa.
— Que tipo de trabalho foi?
— Estava entregando comida e remédios a viúvas e órfãos.
— Onde?
— Varsóvia.
— Minha cidade favorita.
— Deus, que lixo. E o clima é adorável nessa época do ano.
— O que você estava realmente fazendo, Christopher?
— Cuidando de um problema para um banqueiro na Suíça.
— Que tipo de problema?
— Um problema russo.
— O russo tem nome?
— Vamos chamá-lo de Igor.
— Igor era boa gente?
— Nem perto.
— Mafiya?
— Até a medula.
— Aposto que Igor da mafiya confiou seu dinheiro a um banqueiro na Suíça.
— Muito dinheiro — falou Keller. — Mas estava infeliz com os juros que estava ganhando com seus investimentos. Disse ao banqueiro suíço para melhorar seu desempenho.
Ou iria matar o banqueiro, sua esposa, seus filhos e seu cachorro.
— Então o banqueiro suíço pediu ajuda a dom Orsati.
— Que opção ele tinha?
— O que aconteceu com o russo?
— Ele teve um problema depois de uma reunião com um possível sócio. Não vou entediá-lo com detalhes.
— E o dinheiro dele?
— Uma parte foi transferida para uma conta controlada pela Empresa de Azeite de Oliva Orsati. O resto ainda está na Suíça. Sabe como são esses banqueiros suíços
— acrescentou Keller. — Não gostam de se afastar do dinheiro.
O inglês se sentou no sofá, abriu o arquivo sobre Caravaggio e tirou a foto da moldura vazia no Oratorio di San Lorenzo.
— Uma pena — falou, balançando a cabeça. — Esses malditos sicilianos não têm respeito por nada.
— Dom Orsati já contou que foi ele que descobriu que o quadro tinha sido roubado?
— Deve ter mencionado isso uma noite quando seu poço de provérbios da Córsega secou. É uma pena que ele não chegou no oratório alguns minutos antes — acrescentou
Keller. — Poderia ter evitado que os ladrões roubassem o quadro.
— Ou os ladrões poderiam tê-lo matado antes de sair da igreja.
— Você subestima o Dom.
— Nunca.
Keller devolveu a fotografia ao arquivo.
— O que isso tem a ver comigo?
— Os carabinieri me contrataram para recuperar o quadro. Preciso da sua ajuda.
— Que tipo de ajuda?
— Nada muito importante — respondeu Gabriel. — Só preciso que você roube uma obra de arte de valor incalculável e a venda ao homem que matou duas pessoas em menos
de uma semana.
— Só isso? — Keller sorriu. — Estava com medo de que fosse me pedir algo difícil.
Gabriel contou toda a história, começando com a infeliz visita de Julian Isherwood ao lago Como e terminando com a proposta pouco ortodoxa do general Ferrari para
recuperar o quadro roubado mais cobiçado do mundo. Keller permaneceu imóvel o tempo todo, os braços sobre os joelhos, as mãos cruzadas, como um penitente relutante.
Sua capacidade de ficar longos períodos completamente imóvel deixava até mesmo Gabriel nervoso. Enquanto servia no SAS na Irlanda do Norte, Keller tinha se especializado
em observação próxima, uma técnica perigosa de vigilância que exigia que passasse semanas em “esconderijos” apertados como sótãos e celeiros. Também tinha se infiltrado
no IRA ao se passar por um católico de Belfast ocidental, e era por isso que Gabriel tinha confiança de que Keller poderia assumir o papel de um ladrão de arte com
um quadro importante para vender. O inglês, no entanto, não estava tão seguro.
— Não é o que eu faço — falou ele quando Gabriel terminou a apresentação. — Eu espiono pessoas, mato pessoas, explodo coisas. Mas não roubo quadros. E não os vendo
no mercado negro.
— Se você pode se fazer passar por um católico de Ballymurphy, pode fingir ser um cara do leste de Londres. Se bem me lembro — acrescentou Gabriel —, você é bastante
bom com sotaques.
— É verdade — admitiu Keller. — Mas sei muito pouco sobre arte.
— A maioria dos ladrões também. É por isso que são ladrões em vez de curadores ou historiadores de arte. Mas não se preocupe, Keller. Vou estar o tempo todo sussurrando
no seu ouvido.
— Não consigo dizer o quanto estou ansioso por esse momento.
Gabriel não falou nada.
— E os italianos? — perguntou Keller.
— O que tem?
— Sou um assassino profissional que, ocasionalmente, e eles sabem disso, teve que cumprir tarefas em solo italiano. Não serei capaz de voltar lá se seu amigo dos
carabinieri descobrir que estive trabalhando com você.
— O general nunca vai saber que você esteve envolvido.
— Como pode ter certeza?
— Porque ele não quer saber.
Keller não pareceu convencido. Acendeu um cigarro e soltou uma nuvem de fumaça para o teto, pensativo.
— Você precisa fazer isso? — perguntou Gabriel.
— Me ajuda a pensar.
— Dificulta minha respiração.
— Tem certeza de que você é israelense?
— O Dom parece pensar que sou um corso enrustido.
— Não é possível — falou Keller. — Nenhum corso teria concordado em encontrar um quadro que está perdido há mais de quarenta anos, especialmente para um maldito
italiano.
Gabriel foi até a cozinha, pegou um pires do armário e colocou na frente de Keller. O inglês deu uma última tragada antes de apagar o cigarro.
— Quanto dinheiro você planeja usar?
Gabriel contou a Keller sobre a mala cheia de um milhão de euros que o general tinha lhe dado.
— Um milhão não vai ser suficiente.
— Você tem algum trocado sobrando por aí?
— Posso ter um troco que sobrou do trabalho em Varsóvia.
— Quanto?
— Quinhentos ou seiscentos.
— É muito generoso de sua parte, Christopher.
— É meu dinheiro.
— O que são quinhentos ou seiscentos entre amigos?
— Muito dinheiro. — Keller soltou um longo suspiro. — Ainda não tenho certeza se consigo fazer isso.
— Isso o quê?
— Fingir ser um ladrão de arte.
— Você mata pessoas por dinheiro — falou Gabriel. — Não acho que será um grande esforço.
Vestir Christopher Keller para o papel de um ladrão de arte internacional acabou sendo a parte mais fácil de sua preparação, pois nos guarda-roupas de sua villa
havia uma grande seleção de roupas para qualquer ocasião ou assassinato. Havia Keller, o boêmio viajante; Keller, o playboy de elite; e Keller, o montanhista. Havia
até um Keller, o padre católico romano, completo com um breviário e um kit de missa para viagem. No final, Gabriel escolheu o tipo de roupas que Keller usaria naturalmente
— camisa branca, terno escuro e um par de sapatos da moda. Ele colocou alguns acessórios como várias correntes e braceletes de ouro, um relógio suíço muito chamativo,
óculos com lentes azuis e uma peruca loira com um topete denso. Keller tinha seu próprio passaporte britânico e cartões de crédito em nome de Peter Rutledge. Gabriel
achou que parecia um pouco classe alta demais para um criminoso do East End, mas não importava. Ninguém no mundo da arte iria conhecer o nome do ladrão.
17
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
REUNIRAM-SE NO ESCRITÓRIO APERTADO de Antiquités Scientifiques às onze da manhã seguinte: o ladrão de arte, o assassino profissional e o antigo e futuro agente do
serviço secreto israelense. O agente explicou rapidamente ao ladrão de arte como ele esperava encontrar o há muito desaparecido retábulo de Caravaggio. O ladrão,
como o assassino anteriormente, duvidou do plano.
— Eu roubo quadros — afirmou ele, em um tom cansado. — Não encontro quadros para ajudar a polícia. Na verdade, eu faço o máximo para evitar a polícia.
— Os italianos nunca vão saber sobre seu envolvimento.
— É o que você diz.
— Preciso lembrá-lo que o homem que adquiriu o Caravaggio matou seu amigo e sócio?
— Não, monsieur Allon, não precisa.
A campainha tocou. Maurice Durand ignorou.
— O que quer que eu faça?
— Preciso que roube algo que nenhum colecionador sujo poderia resistir.
— E depois?
— Quando os rumores começarem a se espalhar pelo submundo da arte que o quadro está em Paris, vou precisar que aponte os abutres na direção certa.
Durand olhou para Keller.
— Para ele?
Gabriel assentiu.
— E por que os abutres vão pensar que o quadro está em Paris?
— Porque vou contar a eles.
— Você pensa em tudo, não é, monsieur Allon?
— A melhor forma de ganhar um jogo de azar é remover o azar da equação.
— Vou tentar me lembrar disso. — Durand olhou para Keller de novo e perguntou: — Quanto ele sabe sobre o negócio de roubo de arte?
— Nada — admitiu Gabriel. — Mas ele aprende rápido.
— O que ele faz para viver?
— Cuida de viúvas e órfãos.
— Sei — falou Durand, cético. — E eu sou o presidente da França.
Eles passaram o resto do dia trabalhando nos detalhes da operação. Então, quando a noite caiu sobre o oitavo Arrondissement, monsieur Durand mudou a placa na janela
de OUVERT para FERMÉ, e eles saíram para a rue de Miromesnil. O ladrão de arte foi até a brasserie do outro lado da rua para sua taça noturna de vinho tinto, o assassino
tomou um táxi até um hotel na rue de Rivoli e o antigo e futuro agente da inteligência israelense caminhou até um apartamento seguro do Escritório com vista para
Pont Marie. Viu uma dupla de agentes de segurança sentados em um carro estacionado na entrada do prédio; e quando entrou no apartamento, sentiu o aroma de comida
e ouviu Chiara cantando baixinho. Beijou seus lábios e a levou para o quarto. Não perguntou como ela estava se sentindo. Não perguntou nada.
— Percebeu — perguntou ela depois — que é a primeira vez que fazemos amor desde que descobrimos que eu estava grávida?
— É mesmo?
— Quando alguém com sua inteligência finge ser tolo, Gabriel, não é muito eficiente.
Ele enrolou uma mecha do cabelo dela com o dedo, mas não falou nada. O queixo dela estava descansando sobre seu peito. O brilho dos postes de rua de Paris fazia
com que a pele dela parecesse dourada.
— Por que não tinha feito sexo comigo antes? E não me diga que foi por que estava ocupado — acrescentou ela rapidamente —, porque isso nunca o impediu antes.
Ele soltou o cabelo dela, mas não falou nada.
— Tinha medo de que a gravidez desse errado de novo? Foi por isso?
— Foi — respondeu ele. — Acho que sim.
— O que o fez mudar de ideia?
— Passei uns momentos com uma velha na ilha de Córsega.
— O que ela falou?
— Que nenhum mal aconteceria com você e as crianças.
— E acreditou nela?
— Ela já falou muitas coisas que não teria como saber. Então me disse que você tinha saído de Veneza.
— Ela falou que eu estava em Paris?
— Não com essas palavras.
— Estava querendo surpreendê-lo.
— Como sabia onde me encontrar?
— O que você acha?
— Ligou para o Boulevard Rei Saul.
— Na verdade, eles me ligaram.
— Por quê?
— Porque Uzi queria saber por que você estava em companhia de um homem como Maurice Durand. Obviamente, não deixei passar a oportunidade.
— Como escapou do guarda-costas do general?
— Matteo? Foi fácil.
— Não sabia que se tratavam pelo primeiro nome.
— Ele ajudou muito na sua ausência. E nunca me perguntou como eu me sentia.
— Não vou cometer esse erro de novo.
Chiara beijou os lábios de Gabriel e perguntou por que ele tinha retomado sua relação com o ladrão de arte mais conhecido do mundo. Gabriel contou tudo.
— Agora entendo por que o general Ferrari queria tanto que você investigasse a morte de Bradshaw.
— Ele sempre soube que Bradshaw era sujo — falou Gabriel. — E também ouviu rumores de que suas digitais estavam no Caravaggio.
— Acho que isso poderia explicar algo peculiar que descobri nas contas da Meridian Global Consulting Group.
— E o que é?
— Durante os últimos 12 meses, a Meridian fez muitos trabalhos para um lugar chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem são eles?
— Difícil dizer. LXR é uma empresa bastante opaca, para dizer o mínimo.
Gabriel juntou outra mecha de cabelo de Chiara e perguntou o que mais ela tinha descoberto no lixo eletrônico de Jack Bradshaw.
— Durante as últimas semanas de sua vida, ele enviou vários e-mails a uma conta no Gmail com um nome de usuário autogerado.
— Sobre o que conversavam?
— Casamentos, festas, o clima, todas as coisas que as pessoas discutem quando estão, na verdade, falando sobre outra coisa.
— Faz alguma ideia de onde está esse colega dele?
— Cafés com wi-fi em Bruxelas, Antuérpia e Amsterdã.
— Claro.
Chiara deitou de barriga pra cima. Gabriel colocou a mão sobre o abdome dela enquanto ouvia a chuva bater suave contra a janela.
— No que você está pensando? — perguntou ela depois de um momento.
— Estava pensando se era real ou só minha imaginação.
— O quê?
— Nada.
Ela não insistiu.
— Acho que vou ter que dizer alguma coisa ao Uzi.
— Acho que sim.
— O que devo dizer?
— A verdade — respondeu Gabriel. — Que vou roubar um quadro que vale duzentos milhões de dólares e tentar vendê-lo ao sr. Grandão.
— O que você vai fazer agora?
— Tenho que ir para Londres para começar um rumor.
— E depois?
— Vou para Marselha para fazer com que o rumor se torne verdade.
18
HYDE PARK, LONDRES
GABRIEL LIGOU PARA A Isherwood Fine Arts na manhã seguinte enquanto cruzava a Leicester Square. Pediu para vê-lo fora da galeria e dos lugares conhecidos pelo mundo
da arte em St. James’s. Isherwood sugeriu o Lido Café Bar no Hyde Park. Ninguém do mundo da arte, ele assegurou, iria ali nem morto.
Chegou alguns minutos depois de uma da tarde, vestido como se fosse ao campo, com uma jaqueta de tweed e galochas. Ele parecia com muito menos ressaca do que era
o normal no começo da tarde.
— Longe de mim reclamar — falou Gabriel, apertando a mão de Isherwood —, mas sua secretária me deixou esperando por quase dez minutos antes de finalmente passar
a ligação para você.
— Considere-se com sorte.
— Quando vai demiti-la, Julian?
— Não posso.
— Por que não?
— É possível que ainda esteja apaixonado por ela.
— É uma abusada.
— Eu sei. — Isherwood sorriu. — Se pelo menos estivéssemos transando. Então seria perfeito.
Eles se sentaram a uma mesa com vista para a Serpentine. Isherwood franziu o cenho para o menu.
— Não é exatamente o Wilton’s, não é?
— Você vai sobreviver, Julian.
Isherwood não pareceu convencido. Pediu um sanduíche de camarão e uma taça de vinho branco para sua pressão. Gabriel pediu chá e um bolinho. Quando estavam sozinhos
de novo, ele contou a Isherwood tudo que tinha acontecido desde sua partida de Veneza. Então contou o que planejava fazer depois.
— Garoto malvado — falou Isherwood. — Muito malvado.
— Foi ideia do general.
— É um maldito safado, não é?
— Por isso é tão bom no que faz.
— Precisa ser. Mas como diretor do Comitê para Proteção da Arte — acrescentou Isherwood com um tom de formalidade —, eu seria negligente se não desaprovasse um aspecto
da sua inteligente operação.
— Não tem outro jeito, Julian.
— E se o quadro for danificado durante o roubo?
— Tenho certeza de que posso encontrar alguém para consertá-lo.
— Não se faça de desentendido, meu rapaz. Não combina com você.
Um silêncio pesado caiu entre eles.
— Valerá a pena se eu conseguir recuperar o Caravaggio — disse Gabriel finalmente.
— Se — respondeu Isherwood cético. Ele soltou um longo suspiro. — Desculpe metê-lo em tudo isso. E pensar que nada disso teria acontecido se não fosse pelo maldito
Oliver Dimbleby.
— Na verdade, eu até pensei em uma forma para que Oliver expie seus pecados.
— Não está pensando em usá-lo de alguma maneira, está?
Gabriel assentiu lentamente.
— Mas dessa vez, ele nem vai saber.
— Boa ideia — respondeu Isherwood. — Porque Oliver Dimbleby tem uma das maiores bocas de todo o mundo da arte.
— Exatamente.
— O que está pensando?
Gabriel contou. Isherwood deu um sorriso malicioso.
— Garoto malvado — falou. — Muito malvado.
Quando terminaram de comer, Gabriel tinha conseguido convencer Isherwood da eficácia de seu plano. Eles trabalharam nos detalhes finais enquanto cruzavam o Hyde
Park e depois se separaram nas calçadas lotadas de Piccadilly. Isherwood voltou para sua galeria em Mason’s Yard; Gabriel foi para a St. Pancras Station, onde tomou
o Eurostar noturno para Paris. Naquela noite, no apartamento seguro com vista para Pont Marie, ele fez amor com Chiara pela segunda vez desde que descobriu que ela
estava grávida.
De manhã eles tomaram café em uma lanchonete perto do Louvre. Depois de caminhar com Chiara de volta ao apartamento, Gabriel tomou um táxi para a Gare de Lyon. Pegou
um trem para Marselha às nove e às 12h45 estava descendo na Gare Saint-Charles. Saiu no começo do boulevard d’Athènes, que seguia até La Canebière, a larga rua de
compras que ia do centro da cidade até o Velho Porto. Os barcos de pesca tinham voltado das viagens matinais; criaturas marinhas de todo tipo estavam em cima de
mesas de metal ao longo do canto leste do porto. Em uma das mesas havia um homem grisalho com um suéter de lã esfarrapado e um avental de borracha. Gabriel parou
ali um pouco para inspecionar a pesca do homem. Então deu a volta na esquina até a ponta sul do porto e entrou no lado do passageiro de um sedã Renault bastante
velho. Sentado atrás do volante, com a ponta de um cigarro queimando entre seus dedos, estava Christopher Keller.
— Você precisa fumar? — perguntou Gabriel, cansado.
Keller apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
— Não acredito que estamos de volta aqui.
— Onde?
— Marselha — respondeu Keller. — Foi onde começamos nossa busca pela garota inglesa.
— E onde você tirou uma vida desnecessariamente — acrescentou Gabriel, sombrio.
— Não vamos voltar a litigar sobre isso.
— É uma palavra difícil para um ladrão de arte, Christopher.
— Não acha que é uma coincidência estarmos sentados no mesmo carro do mesmo lado do Velho Porto?
— Não.
— Por que não?
— Porque Marselha é onde estão os criminosos.
— Como ele. — Keller indicou com a cabeça o homem com o suéter esfarrapado de lã parado em uma mesa cheia de peixes no canto do porto.
— Conhece ele?
— Todo mundo nessa área conhece Pascal Rameau. Ele e sua tripulação são os melhores ladrões na Côte d’Azur. Roubam tudo. Havia um boato de que já tentaram roubar
a Torre Eiffel.
— O que aconteceu?
— O comprador desistiu. Ou pelo menos é como Pascal gosta de contar a história.
— Já fez negócios com ele?
— Ele não precisa de pessoas como eu.
— E o que isso quer dizer?
— Pascal dirige um barco bem organizado. — Keller soltou uma nuvem de fumaça de cigarro. — Então Maurice faz um pedido e Pascal entrega as mercadorias, não é assim
que funciona?
— Como a Amazon.
— O que é Amazon?
— Você precisa sair do seu vale com mais frequência, Christopher. O mundo mudou desde que você morreu.
Keller ficou em silêncio. Gabriel desviou o olhar de Pascal Rameau, virando para o bairro montanhoso de Marselha perto da basílica. Lembrou-se de imagens do passado:
a porta de um apartamento imponente sobre o boulevard Saint-Rémy, um homem caminhando rapidamente pelas sombras frias da manhã, uma garota árabe com olhos castanhos
impiedosos parada no alto de uma escadaria de pedra. Com licença, monsieur. Está perdido? Ele apagou a lembrança, enfiou a mão no bolso de seu casaco para pegar
o celular, mas parou. Havia uma equipe de segurança do lado de fora do apartamento em Paris. Não aconteceria nada com ela.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Não — respondeu Gabriel. — Está tudo bem.
— Tem certeza?
Gabriel voltou a olhar para Pascal Rameau. Keller sorriu.
— É um pouco estranho, não acha?
— O quê?
— Que um homem como você pudesse estar associado com um ladrão de arte.
— Ou um assassino profissional — acrescentou Gabriel.
— O que você quer dizer?
— Que a vida é complicada, Christopher.
— Nem me fale.
Keller apagou seu cigarro e começou a acender outro.
— Por favor — falou Gabriel, baixo.
Keller colocou o cigarro de volta no maço.
— Quanto tempo vamos ter que esperar?
Gabriel olhou para seu relógio.
— Vinte e oito minutos.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque o trem dele chega a Saint-Charles às 13h34. A caminhada da estação ao porto vai levar 12 minutos.
— E se ele der uma parada no caminho?
— Não vai — respondeu Gabriel. — Monsieur Durand é muito confiável.
— Se é tão confiável, por que voltamos a Marselha?
— Porque ele tem um milhão de euros do dinheiro dos carabinieri e quero ter certeza de que vai terminar no lugar certo.
— No bolso de Pascal Rameau.
Gabriel não falou nada.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller acendeu um cigarro.
— Nem me fale.
Eram 13h45 quando eles o viram descendo a colina de La Canebière, o que significava que estava um minuto adiantado. Trajava um terno cinza de lã e um chapéu elegante,
na mão direita carregava uma maleta contendo um milhão de euros em efetivo. Caminhou até os pescadores e abriu caminho lentamente entre as mesas até parar na frente
de Pascal Rameau. Trocaram palavras, os produtos foram inspecionados com cuidado para ver se estavam frescos e finalmente um deles foi escolhido. Durand entregou
uma única nota, pegou um saco plástico com uma lula e caminhou para o lado sul do porto. Um momento depois, ele passou por Gabriel e Keller sem olhar para eles.
— Aonde ele vai agora?
— A um barco chamado Mistral.
— Quem é o dono do barco?
— René Monjean.
Keller ergueu uma sobrancelha.
— Como você conhece o Monjean?
— Outra história, para outro momento.
Durand agora estava caminhando por um dos cais flutuantes entre as fileiras de barcos de passeio. Como Gabriel previu, ele entrou em um iate chamado Mistral e se
enfiou na cabina. Ficou ali por 17 minutos precisamente, e quando reapareceu não estava mais com a pasta ou a lula. Passou pelo Renault velho de Keller e começou
a voltar para a estação de trem.
— Parabéns, Christopher.
— Pelo quê?
— Você é agora o orgulhoso proprietário de um Van Gogh que vale duzentos milhões de dólares.
— Ainda não.
— Maurice Durand é muito confiável — falou Gabriel. — Assim como René Monjean.
19
AMSTERDÃ
NOS NOVE DIAS SEGUINTES, o mundo da arte girou tranquilo em seu eixo dourado, sem saber da bomba que estava armada em seu ventre. Fazia bons almoços, bebia até tarde
da noite, deslizava cuidadoso nas colinas de Aspen e St. Moritz nas últimas neves boas da estação. Então, na terceira sexta-feira de abril, acordou com a notícia
de que uma calamidade havia acontecido no Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã. Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, tinha desaparecido.
A técnica empregada pelos ladrões não combinava com a sublime beleza de seu alvo. Eles escolheram o porrete no lugar do florete, a velocidade no lugar da sagacidade.
O chefe do departamento de polícia de Amsterdã mais tarde chamaria de melhor demonstração de “ataque surpresa” que já tinha visto, apesar de ser cuidadoso para não
revelar muitos detalhes, principalmente para não facilitar para outro bando de ladrões o roubo de outra obra de arte icônica e insubstituível. Ficou grato só por
uma coisa: que os ladrões não tivessem usado uma navalha para tirar a tela de sua moldura. Na verdade, falou, eles tinham tratado o quadro com uma ternura que beirava
a reverência. Muitos especialistas no campo da segurança de arte, no entanto, viram o trato cuidadoso da tela como um sinal perturbador. Para eles, sugeria um roubo
encomendado, realizado por criminosos profissionais altamente competentes. Um detetive aposentado da Scotland Yard falou cético sobre as perspectivas de recuperar
o quadro. O mais provável, ele falou, é que Doze Girassóis numa Jarra agora estava pendurado no museu dos desaparecidos e nunca mais seria visto pelo público de
novo.
O diretor do Rijksmuseum apareceu na mídia para fazer um apelo pelo retorno seguro do quadro. E quando fracassou em comover os ladrões, ele ofereceu uma recompensa
substancial, o que obrigou a polícia holandesa a desperdiçar incontáveis horas seguindo mentiras e pistas falsas. O prefeito de Amsterdã, um radical não arrependido,
achou que era preciso fazer uma manifestação. Três dias depois, várias centenas de ativistas de todos os tipos convergiram ao Museumplein para exigir que os ladrões
entregassem o quadro. Também defenderam o tratamento ético dos animais, o fim do aquecimento global, a legalização de todos os narcóticos recreativos, o fechamento
da prisão norte-americana em Guantánamo e o fim da ocupação da Cisjordânia e de Gaza. Ninguém foi preso e todos passaram uma boa tarde, especialmente os que se abasteceram
da cannabis e das camisinhas grátis. Até os mais liberais dos jornais holandeses acharam que o protesto tinha sido inútil. “Se isso é o melhor que podemos fazer”,
publicou um deles no editorial, “deveríamos nos preparar para o dia em que as paredes de nossos grandes museus estejam vazias”.
Nos bastidores, no entanto, a polícia holandesa estava envolvida em esforços muito mais tradicionais para recuperar o que era, sem dúvida, a mais famosa obra de
Van Gogh. Conversaram com seus informantes, grampearam telefones e contas de e-mail de ladrões conhecidos, e ficaram de olho em galerias de Amsterdã e Roterdã que
eram suspeitas de trabalhar com bens roubados. Mas quando passou outra semana sem progresso, decidiram abrir um canal com seus companheiros na polícia dos outros
países europeus. Os belgas os enviaram a uma corrida maluca até Lisboa, enquanto os franceses fizeram pouco mais do que desejar boa sorte. A mais intrigante dica
estrangeira veio do general Cesare Ferrari do Esquadrão de Arte, que afirmou ter ouvido um rumor de que a mafiya russa tinha organizado o roubo. Os holandeses fizeram
contato com o Kremlin atrás de informação. Os russos nem se dignaram a responder.
No momento, era o começo de maio e a polícia holandesa não tinha nenhuma pista importante sobre a localização do quadro. Publicamente, o chefe jurava redobrar seus
esforços. Em particular, admitia que, se não houvesse uma intervenção divina, o Van Gogh provavelmente estaria perdido para sempre. Dentro do museu, uma mortalha
escura estava pendurada no lugar do quadro. Um colunista britânico sarcasticamente implorou para que o diretor do museu aumentasse a segurança. Ou, ele brincou,
os ladrões iriam roubar a mortalha também.
Alguns em Londres acharam a coluna de mau gosto, mas a maior parte do mundo da arte coletivamente deu de ombros e continuou com sua vida. Os importantes leilões
de Velhos Mestres estavam se aproximando e todos diziam que a temporada seria a mais lucrativa em anos. Havia quadros para serem vistos, clientes para entreter e
estratégias de lances a criar. Julian Isherwood estava ocupadíssimo. Na quarta-feira daquela semana, ele foi visto no salão de vendas em Bonhams olhando uma paisagem
de rio italiano atribuído ao círculo de Agostino Buonamico. No dia seguinte, estava comendo no Dorchester com um turco expatriado de meios aparentemente ilimitados.
Então, na sexta-feira, ficou até mais tarde na Christie’s para realizar as devidas diligências em um João Batista do século XVIII da Escola de Bolonha. Como resultado,
o bar no Green’s já estava completamente lotado quando ele chegou. Parou para conversar com Jeremy Crabbe antes de se sentar em sua mesa de sempre, com sua garrafa
de Sancerre de sempre. O gorducho Oliver Dimbleby estava flertando desavergonhadamente com Amanda Clifton, a deliciosa nova chefe do departamento de Impressionistas
e Arte Moderna da Sotheby’s. Colocou um de seus cartões dourados na mão dela, jogou um beijo para Simon Mendenhall, depois veio até a mesa de Isherwood.
— Querido Julie — falou enquanto se sentava na cadeira vazia. — Conte-me algo absolutamente escandaloso. Um rumor maldoso. Uma fofoca um pouco maliciosa. Algo com
que possa aguentar o resto da semana.
Isherwood sorriu, serviu dois dedos de vinho na taça vazia de Oliver e se preparou para entretê-lo.
— Paris? É mesmo?
Isherwood assentiu, conspiratório.
— Quem falou?
— Não posso dizer.
— Vamos, minha flor. Está falando comigo. Tenho mais segredos sujos que a MI6.
— É por isso que não vou falar mais nada sobre isso.
Dimbleby pareceu ficar realmente chateado, o que, até aquele momento, Isherwood não achou que fosse possível.
— Minha fonte está conectada com o mundo da arte de Paris. É tudo que posso dizer.
— Bom, é uma revelação. Achei que você ia me dizer que ele era um sous-chef no Maxim’s.
Isherwood não falou nada.
— Está no meio ou é consumidor de arte?
— No meio.
— Vendedor?
— Use sua imaginação.
— E ele realmente viu o Van Gogh?
— Minha fonte nunca estaria na mesma sala que um quadro roubado — respondeu Isherwood com o toque certo de indignação honrada. — Mas ele tem certeza de que vários
negociantes e colecionadores viram fotografias Polaroid.
— Não sabia que elas ainda existiam.
— O quê?
— Câmeras Polaroid.
— Parece que sim.
— Por que usar uma Polaroid?
— Não deixam rastros digitais que podem ser seguidos pela polícia.
— Bom saber — falou Dimbleby, dando uma olhada no traseiro de Amanda Clifton. — Então, quem está vendendo?
— De acordo com os rumores, é um inglês desconhecido.
— Um inglês? Que canalha.
— Chocante — concordou Isherwood.
— Quanto está pedindo?
— Dez milhões.
— Por um maldito Van Gogh? É uma pechincha.
— Exatamente.
— Não vai durar muito, não por esse preço. Alguém vai agarrá-lo e escondê-lo para sempre.
— Minha fonte acha que nosso inglês poderia na verdade ter uma guerra de ofertas nas mãos.
— E é por isso — falou Dimbleby, com o tom repentinamente sério — que você não tem escolha: deve ir à polícia.
— Não posso.
— Por que não?
— Porque tenho que proteger minha fonte.
— Você é profissionalmente obrigado a contar à polícia. Moralmente, também.
— Adoro quando você vem me dar lições de moral, Oliver.
— Não precisa transformar em algo pessoal, Julie. Só estava tentando fazer um favor.
— Como me mandar em uma viagem com tudo pago para o lago Como?
— Vamos repetir essa conversa?
— Ainda tenho pesadelos com aquele corpo pendurado do maldito lustre. Parecia algo pintado por...
A voz de Isherwood falou. Dimbleby franziu a testa, pensativo.
— Por quem?
— Esquece.
— Descobriram quem o matou?
— Quem?
— Jack Bradshaw, seu tonto.
— Acho que foi o mordomo.
Dimbleby sorriu.
— Agora lembre-se, Oliver, tudo que lhe contei sobre o Van Gogh em Paris fica entre nous.
— Nunca vai sair dos meus lábios.
— Jure para mim, Oliver.
— Tem minha palavra de honra — falou Dimbleby. Após terminar de beber, contou para todo mundo no bar.
Na hora do almoço do dia seguinte, era o assunto principal no Wilton’s. Dali, foi se espalhando para a Galeria Nacional, a Tate e, finalmente, para a Galeria Courtauld,
que estava preocupada com o roubo por ter exposto o Autorretrato com a Orelha Cortada, de Van Gogh. Simon Mendenhall contou a todos na Christie’s; Amanda Clifton
fez o mesmo na Sotheby’s. Até o normalmente taciturno Jeremy Crabbe não conseguiu manter seu próprio conselho. Contou tudo em um longo e-mail para alguém no escritório
de Nova York da Bonhams e em pouco tempo já tinha se espalhado pelas galerias de Midtown e do Upper East Side. Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos imensamente
ricos, sussurrou na orelha de uma repórter do New York Times, mas a repórter já tinha ouvido de outra pessoa. Ela ligou para o chefe da polícia holandesa, que já
tinha ouvido também.
O holandês ligou para seu parceiro em Paris, que não deu muita bola. Mesmo assim, a polícia francesa começou a procurar um inglês bonito de meia-idade com cabelo
loiro, óculos com lentes azuis e um leve sotaque cockney. Encontraram vários, mas nenhum era um ladrão de arte. Entre os que caíram na rede estava o sobrinho do
secretário de Estado britânico, cujo sotaque era o elegante de Londres, não tendo nada de cockney. O secretário de Estado ligou para o ministro do interior francês
para reclamar, e o sobrinho foi liberado sem alarde.
Havia um aspecto do rumor, no entanto, que era totalmente real: Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, estava realmente em Paris. Tinha chegado ali
na manhã seguinte ao desaparecimento, no porta-malas de uma Mercedes. Foi primeiro à Antiquités Scientifiques, onde, enrolado em papel vegetal, passou duas noites
descansando em um armário climatizado. Então foi levado em mãos até o apartamento do Escritório com vista para Pont Marie. Gabriel rapidamente colocou o quadro em
um novo tensor e em um cavalete no estúdio que tinha montado no dormitório vazio. Naquela noite, enquanto Chiara estava cozinhando, ele selou a porta com fita adesiva
para evitar qualquer contaminação da superfície. E quando eles dormiram, o quadro dormia perto deles, banhado no brilho amarelado das lâmpadas ao longo do Sena.
Na manhã seguinte, ele foi a uma pequena galeria perto dos Jardins de Luxemburgo onde, passando-se por um alemão, comprou uma paisagem de Paris feita por um impressionista
secundário que usava o mesmo tipo de tela que Van Gogh. Voltou ao apartamento, limpou o quadro usando uma poderosa solução de solvente e removeu a tela do tensor.
Depois de cortar a tela até chegar às dimensões apropriadas, colocou-a no mesmo tipo de suporte no qual havia colocado Doze Girassóis numa Jarra, um suporte medindo
95x73 cm. Em seguida, cobriu a tela com uma camada fresca de base. Doze horas depois, quando a base tinha secado, ele preparou sua paleta com amarelo cromo e amarelo
ocre, e começou a pintar.
Trabalhou como Van Gogh tinha trabalhado, depressa, alla prima e com um toque de loucura. Às vezes, sentia como se Van Gogh estivesse parado olhando por cima do
seu ombro, cachimbo na mão, guiando todas suas pinceladas. Em outras, conseguia vê-lo no estúdio na Casa Amarela em Arles, apressando-se para capturar a beleza dos
girassóis em sua tela antes que murchassem e morressem. Era agosto de 1888 quando Van Gogh produziu seus primeiros estudos de girassóis em Arles; ele os pendurou
num quarto vazio, no qual Paul Gauguin, com muitos receios, ficou no final de outubro. O dominante Gauguin e o suplicante Vincent pintaram juntos pelo resto do outono,
geralmente trabalhando lado a lado nos campos ao redor de Arles, mas eles tinham a tendência de discutir violentamente sobre Deus e a arte. Uma das brigas ocorreu
na tarde de 23 de dezembro. Depois de enfrentar Gauguin com uma navalha, Vincent foi até o bordel na rue du Bout d’Aeles e cortou um pedaço de sua orelha esquerda.
Duas semanas depois, ao sair do hospital, voltou à Casa Amarela, sozinho e com uma atadura, e produziu três impressionantes repetições dos girassóis que tinha pintado
para o quarto de Gauguin. Até recentemente, um desses quadros estava pendurado no Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã.
Van Gogh provavelmente tinha pintado o Doze Girassóis numa Jarra de Amsterdã em algumas horas, assim como tinha feito com seu predecessor no mês de agosto. Gabriel,
no entanto, precisou de três dias para produzir o que mais tarde chamaria de uma versão de Paris. Com a adição da famosa assinatura de Van Gogh ao vaso, a falsificação
era idêntica ao original em todos os aspectos, menos um: não tinha craquelado, a fina rede de rachaduras nas superfícies que aparecem nos quadros com o tempo. Para
induzir um rápido craquelado, Gabriel tirou a tela de sua base e assou no forno por trinta minutos. Então, quando a tela tinha esfriado, segurou-a esticada entre
as duas mãos e arrastou na ponta da mesa de jantar, primeiro na horizontal, depois na vertical. O resultado foi a aparição de um craquelado instantâneo. Ele colocou
a tela de volta na base, cobriu com uma camada de verniz e colocou perto do original. Chiara não conseguia diferenciar um do outro. Nem Maurice Durand.
— Nunca achei que seria possível — disse o francês.
— O quê?
— Que alguém pudesse ser tão bom quanto Yves Morel. — Passou o dedo gentilmente sobre as pinceladas do impasto de Gabriel. — É como se o próprio Vincent tivesse
pintado.
— Esse é o objetivo, Maurice.
— Mas não é tão fácil de conseguir, mesmo para um restaurador profissional. — Durand se inclinou para mais perto da tela. — Que técnica você usou para produzir o
craquelado?
Gabriel contou.
— O método Van Meegeren. Muito eficiente, desde que você não queime o quadro. — Durand olhava da falsificação de Gabriel para o original de Van Gogh.
— Não comece a ter ideias, Maurice. Vai voltar a Amsterdã assim que terminarmos com isso.
— Sabe quanto eu conseguiria por ele?
— Dez milhões.
— Vinte, no mínimo.
— Mas você não roubou, Maurice. Foi roubado por um inglês com cabelo claro e óculos de lentes azuis.
— Um amigo meu acha que realmente o conheceu.
— Espero que não o desiluda dessa ideia.
— De jeito nenhum — respondeu Durand. — O submundo do comércio acredita que seu amigo tem o quadro e que já está negociando com vários compradores em potencial.
Não vai demorar muito para que “você sabe quem” morda a isca.
— Talvez ele precise de um pouco de encorajamento.
— De que tipo?
— Um aviso antes que o martelo seja batido. Você acha que pode fazer isso, Maurice?
Durand sorriu.
— Com apenas um telefonema.
20
GENEBRA
HAVIA UM ASPECTO DO NEGÓCIO que estava inquietando Gabriel desde o começo: as salas secretas de Jack Bradshaw no Freeport de Genebra. Via de regra, um empresário
utilizava os serviços únicos do Freeport porque queria evitar impostos ou porque estava escondendo algo. Gabriel suspeitava que os motivos de Bradshaw pertenciam
à segunda categoria. Mas como ter acesso sem uma ordem da justiça e acompanhamento policial? O Freeport não era o tipo de lugar onde dava para entrar com uma gazua
e um sorriso confiante. Gabriel precisaria de um aliado, alguém com o poder de abrir qualquer porta na Suíça sem fazer barulho. Ele conhecia alguém assim. Uma barganha
teria que ser feita, um acordo secreto. Seria complicado, mas as questões envolvendo a Suíça sempre eram.
O contato inicial foi breve e pouco promissor. Gabriel ligou para o homem em seu escritório em Berna e contou uma história incompleta sobre o que precisava e os
motivos. O homem de Berna não ficou muito impressionado, o que era de se esperar, apesar de ficar interessado.
— Onde você está agora? — perguntou ele.
— Sibéria.
— Com que velocidade pode chegar em Genebra?
— Posso pegar o próximo trem.
— Não sabia que havia um trem direto da Sibéria.
— Na verdade passa por Paris.
— Mande uma mensagem quando estiver na cidade. Vou ver o que posso fazer.
— Não posso ir até Genebra sem garantias.
— Se quiser garantias, ligue para um banqueiro suíço. Mas se quiser dar uma olhada naquelas salas, vai ter que ser do meu jeito. E nem pense em chegar perto do Freeport
sem mim — acrescentou o homem de Berna. — Se fizer isso, vai ficar na Suíça por um bom tempo.
Gabriel teria preferido circunstâncias melhores para fazer a viagem, mas era agora ou nunca. Com a cópia finalizada do Van Gogh, a parte Paris da operação consistia
em esperar. Ele podia passar o dia olhando para o telefone ou utilizar a pausa nas atividades de forma mais produtiva. No final, Chiara tomou a decisão por ele.
Gabriel trancou os dois quadros no armário do quarto, correu até a Gare de Lyon, e pegou o TGV das nove. Chegou em Genebra alguns minutos depois do meio-dia. Gabriel
ligou para o homem em Berna de um telefone público na estação.
— Onde você está? — perguntou o homem.
Gabriel respondeu.
— Vou ver o que posso fazer.
A estação de trem estava em um setor de Genebra que parecia um quartier antigo de uma cidade francesa. Gabriel caminhou até o lago e cruzou a Pont du Mont-Blanc
até a margem sul. Comeu tranquilamente uma pizza no Jardin Anglais e depois caminhou pelas ruas escuras da Cidade Velha do século XVI. Às quatro horas o ar estava
frio, com a noite já se aproximando. Com os pés doloridos, cansado de esperar, Gabriel ligou pela terceira vez para o homem em Berna, mas ninguém atendeu. Dez minutos
depois, enquanto caminhava pelas margens e entre as lojas exclusivas da rue du Rhône, ele ligou de novo. Dessa vez, o homem atendeu.
— Pode me chamar de antiquado — falou Gabriel —, mas realmente não gosto quando as pessoas me deixam esperando.
— Nunca prometi nada.
— Eu poderia ter ficado em Paris.
— Seria uma pena. Genebra é adorável nessa época do ano. E você teria perdido a chance de dar uma olhada dentro do Freeport.
— Quanto tempo mais vai me deixar esperando?
— Podemos fazer isso agora, se quiser.
— Onde você está?
— Vire-se.
Gabriel obedeceu.
— Maldito.
Seu nome era Christoph Bittel — ou pelo menos foi o nome que usou na primeira e única vez que tinham se visto. Ele trabalhava, ou era o que tinha dito na época,
na divisão de contraterrorismo da NDB, o serviço de segurança interna e inteligência da Suíça. Era magro e pálido, com uma testa larga que lhe dava a aparência,
merecida, de alguém muito inteligente. Sua mão pálida, esticada sobre o câmbio de um sedã esportivo alemão, parecia que tinha sido recentemente limpa de bactérias.
— Bem-vindo de volta a Genebra — falou Bittel enquanto saía do trânsito. — Seria bom se você tivesse feito uma reserva, para variar.
— Os dias de operações sem autorização na Suíça estão contados. Somos parceiros agora, lembra-se, Bittel?
— Não vamos nos empolgar, Allon. Não devemos estragar toda a diversão.
Bittel colocou uns óculos escuros largos, que fazia com que parecesse um louva-deus. Dirigia bem, mas com cuidado, como se tivesse contrabando no porta-malas e estivesse
tentando evitar o contato com as autoridades.
— Como era de se esperar — falou depois de um momento —, sua confissão forneceu horas de escuta interessante para nossos oficiais e ministros.
— Não foi uma confissão.
— Como descreveria aquilo?
— Fiz uma completa descrição das minhas atividades em solo suíço — falou Gabriel. — Em troca, você concordou em não me colocar na prisão pelo resto da minha vida.
— Algo que merecia. — Bittel balançou a cabeça devagar enquanto dirigia. — Assassinatos, roubos, sequestros, uma operação de contraterrorismo no cantão de Uri que
terminou com vários membros da Al-Qaeda mortos. Esqueci algo?
— Eu já chantageei um dos seus mais importantes empresários para conseguir acesso à cadeia de suprimentos nucleares do Irã.
— Ah, claro. Como pude me esquecer de Martin Landesmann?
— Foi uma das melhores coisas que fiz.
— E agora quer ter acesso a um depósito no Freeport de Genebra sem uma autorização da justiça?
— É bem evidente que você tem um amigo no Freeport disposto a deixar você dar uma olhada extrajudicial na mercadoria de vez em quando.
— É evidente. Mas eu geralmente gosto de saber o que vou encontrar antes de abrir uma fechadura.
— Quadros, Bittel. Vamos encontrar quadros.
— Quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— E o que acontece se o dono descobrir que nós entramos?
— O dono está morto. Não vai reclamar.
— Os depósitos no Freeport estão registrados em nome da empresa de Bradshaw. E a empresa continua viva.
— A empresa é uma fachada.
— Aqui é a Suíça, Allon. Empresas de fachada é o que nos mantêm nos negócios.
À frente, um semáforo passou de verde para amarelo. Bittel tinha tempo mais do que suficiente para atravessar o cruzamento. Em vez disso, ele foi diminuindo até
parar o carro.
— Ainda não me contou do que se trata tudo isso — falou ele, segurando o câmbio de marcha.
— Com bons motivos.
— E se conseguir abrir os depósitos? O que ganho em troca?
— Se eu estiver certo — respondeu Gabriel —, você e seus amigos no NDB um dia poderão anunciar a recuperação de várias obras de arte há muito desaparecidas.
— Arte roubada no Freeport de Genebra. Não é exatamente boa publicidade para a Confederação.
— Não dá para ter tudo, Bittel.
O semáforo abriu. Bittel tirou o pé do freio e acelerou devagar, como se estivesse tentando economizar combustível.
— Entramos, olhamos e saímos. E tudo que está no depósito fica no depósito. Entendido?
— Você é que manda.
Bittel dirigiu em silêncio, sorrindo.
— O que está achando engraçado? — perguntou Gabriel.
— Acho que gosto do novo Allon.
— Não posso dizer o quanto isso significa para mim, Bittel. Mas você não poderia dirigir um pouco mais rápido? Gostaria de chegar a Freeport ainda hoje.
Eles viram o lugar uns minutos depois, uma fileira de prédios brancos sem nenhum ornamento com uma placa vermelha no alto onde se podia ler PORTS FRANCS. No século
XIX, tinham sido pouco mais que um armazém onde produtos agrícolas eram guardados a caminho do mercado. Agora era um repositório seguro livre de impostos onde os
super-ricos do mundo guardavam todo tipo de tesouro: barras de ouro, joias, vinhos antigos, automóveis e, claro, arte. Ninguém sabia exatamente quantas grandes obras
de arte do mundo havia dentro dos cofres do Freeport de Genebra, mas acreditava-se que seria o suficiente para criar vários grandes museus. Muitas delas nunca mais
veriam a luz do dia; e se mudassem de mãos, seria de forma privada. Não era arte para ser vista e admirada. Era arte como mercadoria, arte como um investimento contra
tempos incertos.
Apesar da vasta riqueza contida dentro de Freeport, a segurança era realizada com a discrição suíça. A cerca ao redor do lugar era mais uma forma de desencorajar
do que uma barreira, e o portão através do qual Bittel dirigiu seu carro demorou para fechar. Câmeras de vídeo brotavam de todos os edifícios e, poucos segundos
depois da chegada deles, um agente de segurança apareceu de uma porta segurando uma prancheta numa mão e um rádio na outra. Bittel saiu do carro e falou umas palavras
com o guarda em francês fluente. O guarda voltou para sua sala e um momento depois apareceu uma morena bonita com saia e blusa apertadas. Ela entregou uma chave
a Bittel e apontou para o final do complexo.
— Imagino que essa seja sua amiga — falou Gabriel quando Bittel voltou ao carro.
— Nosso relacionamento é estritamente profissional.
— Uma pena.
Os endereços em Freeport eram uma combinação de prédio, corredor e porta do depósito. Bittel estacionou em frente ao edifício quatro e entrou com Gabriel. Do hall
de entrada saía um corredor com um número aparentemente infinito de portas. Uma estava aberta. Olhando para dentro, Gabriel viu um homem pequeno e de óculos sentado
atrás de uma mesa chinesa laqueada com um telefone no ouvido. O depósito tinha sido transformado em uma galeria de arte.
— Várias empresas de Genebra se mudaram para Freeport nos últimos anos — explicou Bittel. — O aluguel é mais barato do que na rue du Rhône e os clientes parecem
gostar da reputação intrigante do Freeport.
— É merecida.
— Não mais.
— Vamos ver.
Subiram pela escada até o terceiro andar. O depósito de Bradshaw estava localizado no corredor 12, atrás de uma porta metálica cinza onde se lia o número 24. Bittel
hesitou antes de enfiar a chave.
— Não vai explodir, não é?
— Boa pergunta.
— Isso não é engraçado.
Bittel abriu a porta, acendeu a luz e xingou baixinho. Havia quadros por todos os lados — quadros em molduras, quadros em extensores, quadros enrolados como tapetes
em um bazar persa. Gabriel desenrolou um no chão para Bittel ver. Mostrava um chalé no alto de um penhasco sobre o mar brilhando com flores silvestres.
— Monet? — perguntou Bittel.
Gabriel assentiu.
— Foi roubado de um museu na Polônia há uns vinte anos.
Ele desenrolou outra tela: uma mulher segurando um leque.
— Salvo engano — falou Bittel —, esse é um Modigliani.
— Não está enganado. Foi um dos quadros roubados do Museu de Arte Moderna em Paris, em 2010.
— O roubo do século. Lembro dele.
Bittel seguiu Gabriel até uma porta que dava para uma sala interna do depósito. Continha dois grandes cavaletes, uma lâmpada halógena, frascos de solvente e tintas,
locais para pigmentos, pincéis, uma paleta bastante usada e um catálogo da Christie’s do leilão de Velhos Mestres de Londres de 2004. Estava aberto em uma crucificação
atribuída a um seguidor de Guido Reni, executado de forma competente, mas pouco inspirada, não valendo nem o lucro do vendedor.
Gabriel fechou o catálogo e olhou ao redor do depósito. Era o estúdio secreto de um mestre em falsificações, pensou, na galeria de arte dos desaparecidos. Mas era
óbvio que Yves Morel tinha feito mais nessa sala do que falsificar quadros; também tinha feito muitas restaurações. Gabriel pegou a paleta e passou seu dedo pelas
amostras de tinta que havia na superfície. Ocre, dourado e carmim: as cores da Natividade.
— O que é isso? — perguntou Bittel.
— Provas de vida.
— Do que você está falando?
— O quadro esteve aqui — falou Gabriel. — Ele existe.
Havia 147 quadros nas duas salas do depósito — impressionistas, modernos, Velho Mestres — mas nenhum deles era o Caravaggio. Gabriel fotografou cada tela usando
a câmera em seu celular. Os únicos outros itens no depósito eram uma mesa e um pequeno cofre — pequeno demais, pensou Gabriel, para conter um retábulo italiano de
dois metros por dois e meio. Procurou nas gavetas da mesa, mas estavam vazias. Então se ajoelhou em frente ao cofre e girou o segredo de números com o dedão e o
indicador. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
— No que está pensando? — perguntou Bittel.
— Estou tentando imaginar quanto tempo demoraria para trazer um arrombador aqui.
Bittel sorriu triste.
— Talvez da próxima vez.
É, pensou Gabriel. Da próxima vez.
Eles voltaram à estação de trem passando pela hora do rush de Genebra. Cruzando a Pont du Mont-Blanc, Bittel pressionou Gabriel para obter mais informações sobre
o caso. E quando suas perguntas não resultaram em respostas claras, insistiu em ser avisado com antecedência se o itinerário de Gabriel incluísse outra visita à
Suíça. Gabriel concordou imediatamente, embora os dois soubessem que era uma promessa vazia.
— Em algum momento — falou Bittel —, vamos ter que limpar esse depósito e devolver esses quadros a seus verdadeiros donos.
— Em algum momento — concordou Gabriel.
— Quando?
— Não sei.
— Digo que você tem um mês. Depois disso, terei que falar sobre o assunto para a Polícia Federal.
— Se fizer isso — falou Gabriel — vai aparecer na imprensa, e a Suíça vai terminar com outro olho roxo.
— Estamos acostumados com isso.
— Nós também.
Eles chegaram à estação a tempo de Gabriel pegar o trem das quatro e meia de volta a Paris. Estava escuro quando ele chegou; subiu num táxi que o esperava e deu
ao motorista um endereço perto do apartamento seguro. Mas quando o carro começou a andar, Gabriel sentiu que seu celular estava vibrando. Atendeu a ligação, ouviu
por um momento e depois desligou.
— Mudanças de planos — falou ao motorista.
— Para onde?
— Para a rue de Miromesnil.
— Como quiser.
Gabriel enfiou o celular no bolso e sorriu. O jogo estava começando, pensou. Finalmente, o jogo estava começando.
21
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
NO COMEÇO, MAURICE DURAND TENTOU reivindicar privilégios de confidencialidade sobre a identidade de quem havia ligado. Sob pressão, no entanto, ele admitiu que tinha
sido Jonas Fischer, um rico empresário e colecionador famoso de Munique que usava com regularidade os serviços especiais de monsieur Durand. Herr Fischer deixou
claro desde o começo que não era ele que estava interessado no Van Gogh, que estava intercedendo em nome de um amigo também colecionador que, por motivos óbvios,
não podia dizer o nome. Parecia que o segundo colecionador já tinha despachado um representante a Paris, baseado em certos rumores que davam voltas pelo mundo da
arte. Herr Fischer perguntou se Durand poderia apontar a direção correta ao representante.
— O que você falou para ele? — perguntou Gabriel.
— Falei que não sabia onde estava o Van Gogh, mas que poderia dar uns telefonemas.
— E se você puder ser de ajuda?
— Devo ligar para o representante diretamente.
— Suponho que ele não tenha um nome.
— Só um número de telefone — respondeu Durand.
— Bem profissional.
— Pensei exatamente o mesmo.
Estavam no pequeno escritório nos fundos da loja de Durand. Gabriel estava encostado no batente da porta; Durand, sentado em sua pequena mesa dickensiana. Na frente
dele havia um microscópio de latão, do final do século XIX, de Vérick de Paris.
— Será quem estamos procurando? — perguntou Gabriel.
— Um homem como Herr Fischer não estaria envolvido com ninguém que não fosse um colecionador sério. Também me contou que seu amigo fez várias aquisições importantes
ultimamente.
— Uma dessas aquisições foi um Caravaggio?
— Não perguntei.
— Provavelmente é melhor que não pergunte.
— Provavelmente — concordou Durand.
Um silêncio caiu entre eles.
— Então? — perguntou o francês.
— Diga para ele estar no pátio de Saint-Germain-des-Prés às duas da tarde amanhã, perto da porta vermelha. Avise para levar seu celular, mas nenhuma arma. Não fale
mais nada. Só diga a ele o que fazer, então desligue.
Durand pegou o fone e discou o número.
Saindo da loja cinco minutos depois, o ladrão de arte e o antigo e futuro agente do serviço secreto israelense praticamente não trocaram uma palavra ou olhar. O
ladrão de arte se dirigiu à brasserie do outro lado da rua; o agente, para a embaixada israelense no número três da rue Rabelais. Entrou no prédio pela porta traseira,
desceu até a sala de comunicações seguras e ligou para o chefe de Serviços Domésticos, a divisão do Escritório que administrava as propriedades seguras. Disse que
precisava de algo perto de Paris, mas isolado, de preferência no norte. Não precisava ser nada grande, acrescentou. Não estava planejando fazer nada divertido.
— Lamento — falou o chefe de Serviços Domésticos. — Posso permitir que fique em uma propriedade existente, mas não posso adquirir uma nova sem a aprovação do andar
superior.
— Talvez você não tenha ouvido quando falei meu nome.
— O que devo falar ao Uzi?
— Nada, claro.
— Para quando precisa dela?
— Ontem.
Às nove da manhã seguinte, o Serviços Domésticos tinha fechado a compra de uma fazenda pitoresca na região de Picardia, nos arredores da vila de Andeville. Uma grande
cerca viva protegia a entrada de quem passava do lado de fora, e da ponta de seu bonito jardim traseiro era possível ver as plantações que lembravam uma colcha de
retalhos. Gabriel e Chiara chegaram na hora do almoço e esconderam os dois Van Gogh na adega. Então, Gabriel imediatamente voltou para Paris. Deixou o carro em um
estacionamento perto da estação Odéon Métro e caminhou pelo boulevard até a Place Saint-Germain-des-Prés. Numa esquina da praça lotada havia um café chamado Le Bonaparte.
Sentado em uma mesa de frente para a rua estava Christopher Keller. Gabriel o cumprimentou em francês e se sentou ao lado dele. Olhou para seu relógio. Eram 13h55.
Pediu um café e olhou para a porta vermelha da igreja.
Não foi difícil avistá-lo; naquela perfeita tarde de primavera, com o sol brilhando em um céu sem nuvens e um vento fraco rondando as ruas cheias, era o único que
tinha vindo sozinho até a igreja. Tinha altura mediana, cerca de 1,75 m, e era magro. Seus movimentos eram fluidos e tranquilos — como os de um jogador de futebol,
pensou Gabriel, ou um soldado de elite. Usava um casaco esportivo leve, uma camisa branca e calça de gabardine cinza. Um chapéu de palha encobria seu rosto, óculos
escuros escondiam seus olhos. Ele caminhou até a porta vermelha e fingiu consultar um guia turístico. Duas jovens, uma de shorts, a outra em um vestido sem alças,
estavam sentadas nos degraus, com as pernas desnudas esticadas. Claramente, havia algo no homem que deixou as duas desconfortáveis. Elas esperaram mais um pouco,
depois se levantaram e cruzaram a praça.
— O que você acha? — perguntou Keller.
— Acho que é o próprio.
O garçom trouxe o café de Gabriel. Ele colocou açúcar e mexeu pensativo enquanto olhava o homem parado perto da porta vermelha da igreja.
— Não vai ligar para ele?
— Não são duas horas ainda, Christopher.
— Já são quase.
— É melhor não parecer muito ansioso. Lembre-se, já temos um comprador no anzol. Nosso amigo ali levantou sua mão atrasado no leilão.
Gabriel continuou na mesa até o relógio na torre da igreja mostrar dois minutos depois da hora. Então se levantou e caminhou para o interior do café. Estava deserto,
exceto pelos funcionários. Ele se aproximou da janela, tirou o celular do bolso do casaco e ligou. Alguns segundos depois, o homem parado na frente da igreja atendeu.
— Bonjour.
— Não precisa falar francês só porque estamos em Paris.
— Prefiro francês, se não se importa.
Ele pode preferir francês, pensou Gabriel, mas não era sua língua nativa. Não estava mais fingindo olhar o seu guia. Estava observando a praça, procurando um homem
com um celular ao ouvido.
— Veio sozinho? — perguntou Gabriel.
— Como está me observando agora, sabe que a resposta é sim.
— Vejo um homem parado onde deveria estar, mas não sei se ele veio sozinho.
— Ele veio.
— Foi seguido?
— Não.
— Como pode ter certeza?
— Tenho certeza.
— Como devo chamá-lo?
— Pode me chamar de Sam.
— Sam?
— Isso, Sam.
— Tem alguma arma, Sam?
— Não.
— Tire seu blazer.
— Por quê?
— Quero ver se tem algo debaixo que não deveria estar ali.
— Isso é realmente necessário?
— Quer ver o quadro ou não?
O homem colocou o guia e o celular nos degraus, tirou seu blazer e o dobrou no braço. Então pegou o celular de novo e perguntou:
— Satisfeito?
— Vire-se e olhe para a igreja.
O homem girou uns 45 graus.
— Mais.
Outros 45.
— Muito bom.
O homem voltou à sua posição original e perguntou:
— E agora?
— Você vai dar uma caminhada.
— Não quero caminhar.
— Não se preocupe, Sam. Não vai ser uma caminhada longa.
— Onde quer que eu vá?
— Desça o boulevard até o Quartier Latin. Sabe chegar no Quartier Latin, Sam?
— Claro.
— Conhece Paris?
— Bastante.
— Não olhe para trás nem pare em lugar nenhum. E não use seu celular, também. Poderia perder minha próxima ligação.
Gabriel desligou e voltou até Keller.
— Então? — perguntou o inglês.
— Acho que encontramos Samir. E acho que é um profissional.
— Estamos no jogo?
— Vamos saber em um minuto.
Do outro lado da praça, Sam estava colocando seu blazer esportivo. Ele enfiou o celular no bolso do peito, jogou o guia no lixo e depois começou a caminhar pelo
boulevard Saint-Germain. Uma curva à direita o levaria a Les Invalides; à esquerda, ao Quartier Latin. Ele hesitou por um momento e depois virou à esquerda. Gabriel
contou lentamente até vinte antes de se levantar e segui-lo.
Pelo menos ele era capaz de seguir instruções. Caminhou reto pelo boulevard, passou as lojas e cafés lotados, sem parar ou olhar para trás. Isso permitiu que Gabriel
mantivesse o foco em sua tarefa principal, que era a contrainteligência. Não viu nada que sugerisse que Sam estava trabalhando com um cúmplice. Nem parecia que estivesse
sendo seguido pela polícia francesa. Estava limpo, pensou Gabriel. Tão limpo quanto poderia estar um comprador de arte roubada.
Depois de dez minutos caminhando reto, Sam estava perto do ponto onde o boulevard se encontrava com o Sena. Gabriel, meio quarteirão atrás, tirou seu celular do
bolso e ligou. Novamente Sam atendeu de imediato, com o mesmo bonjour cordial.
— Vire à esquerda na rue du Cardinal Lemoine e siga até o Sena. Cruze a ponte até a Île Saint-Louis e depois siga reto até eu ligar de novo.
— Muito longe ainda?
— Não está longe, Sam. Você está quase lá.
Sam fez a curva como instruído e cruzou a Pont de la Tournelle até a pequena ilha no meio do Sena. Uma série de cais pitorescos seguia o perímetro da ilha, mas só
uma única rua, a rue Saint-Louis, em l’Île, cortava sua extensão. Com uma ligação, Gabriel instruiu Sam para virar à esquerda de novo.
— Muito longe ainda?
— Só mais um pouco, Sam. E não olhe para trás.
Era uma rua estreita, com turistas caminhando e olhando as vitrines. No lado oeste havia uma sorveteria e ao lado desta uma brasserie com uma boa vista de Notre
Dame. Gabriel ligou para Sam e deu as instruções finais.
— Quanto tempo mais vai me deixar esperando?
— Infelizmente não vou almoçar com você, Sam. Sou apenas o assistente.
Gabriel cortou a ligação sem falar mais nada e viu Sam entrar na brasserie. Um garçom o cumprimentou, depois gesticulou para uma mesa lateral ocupada por um inglês
loiro de óculos de lentes azuis. O inglês se levantou e, sorrindo, esticou a mão.
— Meu nome é Reg. — Gabriel ouviu-o dizer antes de dobrar a esquina. — Reg Bartholomew. E você deve ser o Sam.
CONTINUA
11
JARDIN DES TUILERIES, PARIS
DOIS SÉCULOS APÓS SUA MORTE, ele tinha sido quase esquecido. Seus quadros juntavam poeira nos depósitos de galerias e museus, muitos eram atribuídos equivocadamente,
suas figuras dramaticamente iluminadas recuando lentamente no vazio de seus característicos fundos negros. Finalmente, em 1951, o famoso historiador de arte Roberto
Longhi reuniu suas obras conhecidas e fez uma exposição para o mundo no palazzo Reale, em Milão. Muitos dos que visitaram a incrível exposição nunca tinham ouvido
falar de Caravaggio.
Os detalhes de sua vida eram no máximo esboços, fracas linhas de carvão em uma tela em branco. Nasceu no vigésimo nono dia de setembro de 1571, provavelmente em
Milão, onde seu pai era um construtor e arquiteto bem-sucedido. No verão de 1576, a peste voltou à cidade. Quando ela finalmente passou, um quinto da diocese de
Milão tinha morrido, incluindo o pai, o avô e o tio do jovem Caravaggio. Em 1584, aos 13 anos, ele entrou na oficina de Simone Peterzano, um maçante, mas competente,
maneirista que afirmava ter sido pupilo de Ticiano. O contrato, que ainda existe, obrigava Caravaggio a treinar “noite e dia” por um período de quatro anos. Não
se sabe se ele foi bem ou mesmo se completou seu aprendizado. Claramente, o trabalho fraco e sem vida de Peterzano teve pouca influência sobre ele.
As circunstâncias exatas sobre a saída de Caravaggio de Milão estão, como quase todo o resto de sua vida, perdidas no tempo e envoltas em mistério. Registros indicam
que sua mãe morreu em 1590 e que, de seus modestos bens, ele recebeu uma herança igual a seiscentos scudi de ouro. Em um ano o dinheiro tinha acabado. Não existe
nenhuma sugestão, em lugar nenhum, de que o volúvel jovem que tinha sido treinado para ser artista pintou algo em seus últimos anos em Milão. Parece que estava muito
ocupado com outras atividades. Giovanni Pietro Bellori, autor de uma de suas primeiras biografias, sugere que Caravaggio teve de fugir da cidade, talvez depois de
um incidente envolvendo uma prostituta e uma navalha, talvez depois do assassinato de um amigo. Ele viajou para o leste, até Veneza, escreveu Bellori, onde ficou
enfeitiçado pela paleta de Giorgione. Então, no outono de 1592, foi para Roma.
A partir daí, a vida de Caravaggio começa a tomar relevos claros. Entrou na cidade, como todos os migrantes do norte, através dos portões do porto del Popolo e chegou
ao bairro dos artistas, uma confusão de ruas sujas ao redor do Campo Marzio. De acordo com o pintor Baglione, ele dividiu um quarto com um artista da Sicília, embora
outro biógrafo, um médico que conheceu Caravaggio em Roma, tenha registrado que ele encontrou alojamento na casa de um padre que o forçava a limpar a casa e só lhe
dava verduras para comer. Caravaggio chamava o padre de Monsignor Insalata e saiu da casa dele após poucos meses. Viveu em dezenas de lugares diferentes durante
seus primeiros anos em Roma, inclusive na oficina de Giuseppe Cesari, onde dormia num colchão de palha. Andava pelas ruas com meias pretas esfarrapadas e uma capa
preta surrada. Seu cabelo preto era um caos completo.
Cesari só permitia que Caravaggio pintasse flores e frutas, uma das tarefas mais baixas para um aprendiz em um ateliê. Entediado, convencido de seu talento superior,
ele começou a produzir seus próprios quadros. Vendeu alguns nos becos perto da Piazza Navona. Mas um deles, uma imagem luminosa de um garotinho romano sendo enganado
por uma dupla de trapaceiros, foi vendido para um negociante cuja loja estava localizada em frente ao palazzo ocupado pelo cardeal Francesco del Monte. A transação
iria mudar completamente o curso da vida de Caravaggio, pois o cardeal, conhecedor e patrono das artes, gostou muito do quadro e o comprou por alguns scudi. Logo
depois, comprou um segundo quadro de Caravaggio mostrando uma vidente que, sorrindo, roubava o anel de um garoto de Roma enquanto lia a palma de sua mão. Em algum
momento, os dois homens se conheceram, embora não esteja claro quem tomou a iniciativa. O cardeal ofereceu ao jovem artista comida, roupas, alojamento e um estúdio
no palazzo. Tudo que pedia de Caravaggio era que ele pintasse. O artista, com 24 anos na época, aceitou a proposta do cardeal. Foi uma das poucas decisões sábias
que tomou.
Depois de se estabelecer em seu quarto no palazzo, Caravaggio produziu vários quadros para o cardeal e seu círculo de amigos ricos, incluindo O Tocador de Ataúde,
Os Músicos, Baco, Marta e Maria Madalena e São Francisco de Assis em Êxtase. Então, em 1599, recebeu seu primeiro pedido público: dois quadros retratando cenas da
vida de São Mateus para a capela Contarelli na Igreja de San Luigi dei Francesi. Os quadros, apesar de controversos, instantaneamente estabeleceram Caravaggio como
o artista mais procurado de Roma. Outros pedidos logo se seguiram, incluindo O Martírio de São Pedro e A Conversão de São Paulo para a capela Cerasi da Igreja de
Santa Maria del Popolo, A Ceia de Emaús, João Batista, A Captura de Cristo, A Incredulidade de São Tomé e O Sacrifício de Isaac. Nem todas suas obras foram aprovadas
quando ficaram prontas. Madonna e a Criança com Santa Ana foi retirada da basílica de São Pedro porque a hierarquia da igreja aparentemente não aprovou o decote
de Maria. O retrato dela com pernas nuas em Morte da Virgem foi considerado tão ofensivo que a igreja que fez o pedido, Santa Maria della Scala, em Trastevere, se
recusou a aceitá-lo. Rubens afirmou que era uma das melhores obras de Caravaggio e o ajudou a encontrar um comprador.
O sucesso como pintor não trouxe tranquilidade à vida pessoal de Caravaggio — na verdade, ela continuava tão caótica e violenta como sempre. Foi preso por andar
com uma espada sem autorização no Campo Marzio. Enfiou um prato de alcachofras no rosto de um garçom na Osteria del Moro. Foi preso por jogar pedras na sbirri, a
polícia papal, na via dei Greci. O incidente de jogar pedras ocorreu às nove e meia de uma noite de outubro de 1604. Nesse momento, Caravaggio estava morando em
uma casa alugada apenas com Cecco, seu aprendiz e modelo ocasional, como companhia. Sua aparência física tinha se deteriorado; era novamente a figura desleixada
usando roupas pretas desalinhadas que vendia seus quadros na rua. Apesar de ter várias encomendas, trabalhava esporadicamente. De alguma forma conseguiu entregar
um monumental retábulo chamado A Deposição de Cristo. Foi considerado por muitos como seu melhor quadro.
Houve mais atritos com as autoridades — seu nome aparece nos registros policiais de Roma cinco vezes só em 1605 —, mas nada mais sério do que o incidente que aconteceu
em 28 de maio de 1606. Era um domingo e, como sempre, Caravaggio fora até as quadras de via della Pallacorda para uma partida de tênis. Lá, ele encontrou Ranuccio
Tomassoni, um lutador de rua e rival nos afetos de uma linda e jovem cortesã que tinha posado para vários dos quadros de Caravaggio. Palavras foram trocadas, e espadas,
desembainhadas. Os detalhes do mêlée são pouco claros, mas terminou com Tomassoni caído no chão com uma profunda ferida no alto de sua coxa. Morreu pouco depois
e, à noite, Caravaggio era o alvo de uma caçada humana por toda a cidade. Procurado por assassinato, um crime com uma única punição possível, ele fugiu para as colinas
Albanas. Nunca mais veria Roma.
Foi para o sul até Nápoles, onde sua reputação como grande pintor o precedia, a despeito do assassinato. Ele deixou para trás As Sete Obras de Misericórdia antes
de navegar para Malta. Lá foi admitido nos Cavalheiros de Malta, uma honra cara pela qual pagou com quadros e, por um breve momento, viveu como um nobre. Então,
uma briga com outro membro da ordem o levou novamente a passar um tempo na prisão. Conseguiu escapar e fugiu para a Sicília onde, segundo informações, era uma alma
louca e perturbada que dormia com uma adaga. Mesmo assim, conseguia pintar. Em Siracusa, ele deixou O Enterro de Santa Lúcia. Em Messina, produziu dois quadros monumentais:
A Ressurreição de Lázaro e o doloroso Adoração dos Pastores. E para o Oratorio di San Lorenzo, em Palermo, pintou Natividade com São Francisco e São Lourenço. Trezentos
e cinquenta e nove anos depois, na noite de 18 de outubro de 1969, dois homens entraram na capela através de uma janela e cortaram a tela de sua moldura. Uma cópia
do quadro está pendurada atrás da mesa do general Cesare Ferrari no palazzo em Roma. Era o alvo número um do Esquadrão de Arte.
— Suspeito que o general já saiba sobre a conexão entre o Caravaggio e Jack Bradshaw — falou Maurice Durand. — Isso explicaria por que ele insistiu tanto para que
você assumisse o caso.
— Você conhece bem o general — falou Gabriel.
— Não tanto — respondeu o francês. — Mas eu o encontrei uma vez.
— Onde?
— Aqui em Paris, em um simpósio sobre crimes contra a arte. O general era um dos palestrantes.
— E você?
— Eu estava na plateia.
— Com que desculpa?
— Como negociante de antiguidades valiosas, claro. — Durand sorriu. — Ele me pareceu um homem sério, muito capaz. Já faz tempo que roubei um quadro na Itália.
Estavam caminhando por uma trilha de cascalho da allée centrale. As nuvens pesadas tinham drenado as cores dos jardins. Era Sisley em vez de Monet.
— É possível? — perguntou Gabriel.
— Que o Caravaggio esteja à venda?
Gabriel assentiu. Durand pareceu pensar muito antes de responder.
— Ouvi todo tipo de história — falou, finalmente. — Que o colecionador que encomendou o roubo se recusou a aceitar o quadro porque ficou muito danificado quando
foi cortado da moldura. Que os chefes da máfia da Sicília costumavam levá-lo durante as reuniões como um tipo de troféu. Que foi destruído em uma enchente. Que foi
comido por ratos. Mas também ouvi rumores — acrescentou ele — de que já esteve à venda antes.
— Quanto valeria no mercado negro?
— Os quadros que Caravaggio produziu enquanto estava fugindo não possuem a mesma profundidade de suas grandes obras romanas. Mesmo assim — acrescentou Durand —,
um Caravaggio ainda é um Caravaggio.
— Quanto, Maurice?
— A regra geral é que um quadro roubado retém dez por cento de seu valor no mercado negro. Se o Caravaggio valesse cinquenta milhões no mercado aberto, sujo chegaria
a uns cinco milhões.
— Não existe mercado aberto para um Caravaggio.
— O que significa que é realmente único. Alguns homens no mundo pagariam quase qualquer valor por ele.
— Você conseguiria vendê-lo?
— Com apenas um telefonema.
Chegaram ao pequeno cais onde vários pequenos veleiros estavam navegando em um minúsculo mar revirado por uma tempestade. Gabriel parou na beira e explicou como
tinha encontrado três quadros roubados — um Parmigianino, um Renoir e um Klimt — escondidos sob cópias de menor valor na villa de Jack Bradshaw no lago Como. Durand,
olhando os barcos, assentia pensativo.
— Parece que estavam prontos para transporte e venda.
— Por que pintar por cima?
— Assim poderiam ser vendidos como obras legítimas. — Durand parou, depois acrescentou: — Obras legítimas de menor valor, claro.
— E quando as vendas fossem finalizadas?
— Uma pessoa como você seria contratada para remover as imagens de cima e preparar os quadros para serem pendurados.
Duas turistas, jovens garotas, posavam para uma fotografia do lado oposto do cais. Gabriel puxou Durand pelo cotovelo e o guiou até a pirâmide do Louvre.
— A pessoa que pintou esses quadros falsos era boa — falou ele. — Boa o suficiente para enganar alguém como eu numa primeira olhada.
— Há muitos artistas talentosos por aí que estão dispostos a oferecer seus serviços para nós, que estamos no lado escuro do negócio. — O francês olhou para Gabriel
e perguntou: — Já teve a ocasião de falsificar um quadro?
— Eu posso ter falsificado um Cassatt uma vez.
— Por uma boa causa, sem dúvida.
Eles continuaram andando, o cascalho fazendo barulho debaixo de seus pés.
— E você, Maurice? Já precisou dos serviços de um falsificador?
— Estamos entrando em território sensível — falou Durand.
— Cruzamos essa fronteira há algum tempo, eu e você.
Eles chegaram à place du Carrousel, viraram à direta e foram até o rio.
— Sempre que possível — falou Durand —, prefiro criar a ilusão de que um quadro roubado não foi realmente roubado.
— Deixa uma cópia no lugar.
— Chamamos de obras substitutas.
— Quantas estão penduradas em museus e casas na Europa?
— Preferia não falar.
— Vamos lá, Maurice.
— Há um homem que faz todo esse trabalho para mim. Ele é rápido, confiável e bastante bom.
— Esse homem tem nome?
Durand hesitou antes de responder. O nome do falsificador era Yves Morel.
— Onde ele estudou?
— Na École Nationale des Beaux-Arts, em Lyon.
— Bastante prestigiada — falou Gabriel. — Por que ele mesmo não se tornou artista?
— Ele tentou. Não saiu como planejava.
— Então se vingou do mundo da arte tornando-se um falsificador?
— Mais ou menos isso.
— Quanta nobreza.
— Quem tem teto de vidro...
— A sua relação é exclusiva?
— Gostaria que fosse, mas não tenho tanto trabalho para ele. Em certas ocasiões, ele aceita pedidos de outros clientes. Um desses clientes era um intermediário recém-falecido
chamado Jack Bradshaw.
Gabriel parou de caminhar e se virou para encarar Durand.
— E é por isso que você sabe tanto sobre as operações de Bradshaw — falou ele. — Estiveram dividindo os serviços do mesmo falsificador.
— Foi tudo bastante Caravaggiesco — respondeu Durand, assentindo.
— Onde Morel trabalhava para Bradshaw?
— Em um quarto no Freeport de Genebra. Bradshaw tinha uma galeria de arte bastante interessante ali. Yves costumava chamar de galeria dos desaparecidos.
— Onde ele está agora?
— Aqui em Paris.
— Onde, Maurice?
Durand tirou a mão do bolso de seu casaco e indicou que o falsificador poderia ser encontrado em algum ponto perto de Sacré-Coeur. Entraram no metrô, o ladrão de
arte e o agente da inteligência, e foram para Montmartre.
12
MONTMARTRE, PARIS
YVES MOREL VIVIA EM UM prédio de apartamentos na rue Ravignon. Quando Durand apertou o botão da campainha, ninguém atendeu.
— Ele deve estar na place du Tertre.
— Fazendo o quê?
— Vendendo cópias de quadros impressionistas famosos para turistas para que as autoridades francesas acreditem que ele tem uma renda legítima.
Caminharam até a praça, uma confusão de cafés a céu aberto com artistas de rua perto da basílica, mas Morel não estava em seu ponto de sempre. Então foram até seu
bar favorito na rue Norvins, mas não havia nenhum sinal dele ali também. Não atendeu uma ligação no seu celular.
— Merde —, falou Durand baixinho, enfiando o celular de novo no bolso do casaco.
— E agora?
— Tenho uma chave do seu apartamento.
— Por quê?
— De vez em quando, ele deixa coisas em seu estúdio para que eu recolha.
— Parece alguém que confia em você.
— Contrariando o dito popular — falou Durand —, há muita honra entre ladrões.
Eles caminharam de volta ao prédio e tocaram a campainha pela segunda vez. Não havendo resposta, Durand tirou um molho de chaves de seu bolso e usou uma para abrir
a porta. Usou a mesma chave para abrir a porta do apartamento de Morel. Estava tomado pela escuridão. Durand mexeu no interruptor da parede, iluminando uma grande
sala aberta que funcionava como estúdio e sala de estar. Gabriel caminhou até um cavalete, sobre o qual havia uma cópia não finalizada de uma paisagem de Pierre
Bonnard.
— Ele vai vender essa para os turistas na place du Tertre?
— Essa é para mim.
— Para quê?
— Use sua imaginação.
Gabriel examinou o quadro mais de perto.
— Se fosse adivinhar — falou ele —, sua intenção é pendurá-lo no Musée des Beaux-Arts, em Nice.
— Você tem um bom olho.
Gabriel se afastou do cavalete e caminhou até a mesa grande e retangular no centro do estúdio. Em cima dela havia uma lona manchada de tinta. Embaixo havia um objeto
de aproximadamente 1,82 m de comprimento e 60 cm de largura.
— Morel é escultor?
— Não.
— Então o que está debaixo da lona?
— Não sei, mas é melhor você dar uma olhada.
Gabriel levantou a ponta da lona e deu uma espiada.
— E então? — perguntou Durand.
— Acho que você vai ter que encontrar outra pessoa para terminar o Bonnard, Maurice.
— Deixe-me ver.
Gabriel levantou a lona.
— Merde — falou Durand baixinho.
PARTE DOIS
GIRASSÓIS
13
SAN REMO, ITÁLIA
O GENERAL FERRARI ESPERAVA PERTO DAS paredes da velha fortaleza em San Remo às duas e meia da tarde seguinte. Usava terno, casaco de lã e óculos escuros que escondiam
seu olho falso que tudo via. Gabriel, vestido de jeans e couro, parecia o irmão mais jovem, o que tinha feito todas as piores escolhas na vida e que precisava, outra
vez, de dinheiro. Enquanto caminhavam pela fonte suja, ele contou ao general o que tinha descoberto, apesar de não revelar suas fontes. O general não pareceu surpreso
com nada do que estava ouvindo.
— Você esqueceu uma coisa — falou ele.
— E qual é?
— Jack Bradshaw não era diplomata. Era espião.
— Como você sabia?
— Todo mundo no negócio de arte sabia do passado de Bradshaw. Era um dos motivos pelos quais ele era tão bom. Mas não se preocupe — acrescentou o general. — Não
vou complicar sua situação com seus amigos de Londres. Tudo que quero é meu Caravaggio.
Eles deixaram a fonte e desceram a colina até o centro da cidade. Gabriel ficou pensando por que alguém iria querer passar as férias ali. A cidade lembrava uma mulher
que já tinha sido bonita e que se arrumava para que pintassem seu retrato.
— Você me enganou — disse ele.
— De jeito nenhum — respondeu o general.
— Como descreveria o que fez?
— Eu não contei certos fatos para não atrapalhar sua investigação.
— Sabia que o Caravaggio estava à venda quando me pediu para investigar a morte de Bradshaw?
— Ouvi rumores sobre isso.
— Já ouviu rumores sobre um colecionador comprando muita arte roubada?
O general assentiu.
— Quem é?
— Não tenho ideia.
— Está me contando a verdade dessa vez?
O general colocou sua mão boa sobre o coração.
— Não sei a identidade da pessoa que está comprando toda peça de arte roubada que consegue encontrar. Nem sei quem está por trás da morte de Jack Bradshaw. — Ele
fez uma pausa, depois acrescentou: — Apesar de suspeitar que seja a mesma pessoa.
— Por que Bradshaw foi assassinado?
— Acho que pode ter perdido sua utilidade.
— Porque ele entregou o Caravaggio?
O general assentiu em dúvida.
— Então por que foi torturado primeiro?
— Talvez seus assassinos quisessem um nome.
— Yves Morel?
— Bradshaw deve ter usado Morel para dar uma melhorada no quadro de modo que pudesse ser vendido. — Ele olhou para Gabriel e perguntou: — Como o mataram?
— Quebraram seu pescoço. Parece ter sido uma separação completa da medula.
O general fez uma careta.
— Silencioso e sem sangue.
— E muito profissional.
— O que você fez com o pobre coitado?
— Vão cuidar dele — falou Gabriel baixinho.
— Quem?
— É melhor não saber os detalhes.
O general balançou a cabeça lentamente. Era agora cúmplice de um crime. Não era a primeira vez.
— Vamos esperar — falou depois de um momento — que a polícia francesa nunca descubra que você esteve no apartamento de Morel. Com seu histórico, eles poderiam ter
a impressão errada.
— Exato — falou Gabriel, taciturno. — Esperemos que não.
Eles entraram na via Roma. Reverberava com o barulho de centenas de scooters. Gabriel, quando voltou a falar, teve de elevar a voz para ser ouvido.
— Quem foi o último dono? — perguntou ele.
— Do Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Nem eu tenho certeza — admitiu o general. — Sempre que prendíamos um mafioso, independentemente de sua importância, ele nos oferecia informações sobre a localização
da Natividade em troca de uma redução da sentença. Chamamos de “carta de Caravaggio”. Não é preciso dizer que perdemos incontáveis horas de trabalho procurando pistas
falsas.
— Achei que você quase o tivesse encontrado há uns anos.
— Eu também, mas escorreu pelos meus dedos. Estava começando a pensar que nunca teria outra oportunidade de recuperá-lo. — Ele sorriu, contra vontade. — E agora
isso.
— Se o quadro foi vendido, provavelmente não está mais na Itália.
— Concordo. Mas minha experiência diz — acrescentou o general — que o melhor momento para encontrar um quadro roubado é imediatamente depois de ter mudado de mãos.
Precisamos agir rapidamente, no entanto. De outra forma, nós poderemos ter que esperar outros 45 anos.
— Nós?
O general parou de caminhar, mas não falou nada.
— Meu envolvimento nesse assunto — falou Gabriel acima do barulho do trânsito — está oficialmente terminado.
— Você prometeu descobrir quem matou Jack Bradshaw em troca de manter o nome do seu amigo fora dos jornais. Até onde vejo, não completou sua missão.
— Forneci uma pista importante, sem mencionar três quadros roubados.
— Mas não o quadro que eu quero. — O general tirou os óculos escuros e fixou seu olhar monocular em Gabriel. — Seu envolvimento nesse caso não terminou, Allon. Na
verdade, está apenas começando.
Eles caminharam até um pequeno bar que dava para a marina. Estava vazio exceto por dois jovens que se queixavam sobre a triste situação da economia. Era uma visão
comum na Itália desses dias. Não havia empregos, nem perspectivas, nem futuro — só as lindas lembranças do passado que o general e sua equipe no Esquadrão de Arte
tinham jurado proteger. Pediu um café e um sanduíche e levou Gabriel até uma mesa do lado de fora, sob a luz fria do sol.
— Francamente — falou ele quando estavam sozinhos de novo —, não sei como você pode pensar em deixar esse caso agora. Seria como deixar um quadro inacabado.
— Meu quadro inacabado está em Veneza — respondeu Gabriel — junto com minha esposa grávida.
— Seu Veronese está seguro. Assim como sua esposa.
Gabriel olhou para uma lata de lixo cheia na ponta da marina e balançou a cabeça. Os antigos romanos tinham inventado o aquecimento central, mas em algum ponto do
caminho seus descendentes tinham esquecido como jogar fora o lixo.
— Poderia demorar meses para encontrar esse quadro — falou ele.
— Não temos meses. Eu diria que temos algumas semanas no máximo.
— Então suponho que você e seus homens deveriam se mexer.
O general balançou a cabeça lentamente.
— Somos bons em grampear telefones e fazer acordos com a escória da máfia. Mas não somos bons em operações secretas, principalmente fora da Itália. Preciso de alguém
que jogue uma isca nas águas do mercado de arte roubada e veja se conseguimos tentar o sr. Grandão a fazer outra aquisição. Ele está aí fora em algum lugar. Você
só precisa encontrar algo que o interesse.
— Em geral, não encontramos obras de arte que valem milhões. Elas são roubadas.
— De forma espetacular — acrescentou o general. — O que significa que não deve ser de uma casa ou galeria particular.
— Está percebendo o que está falando?
— Estou. — O general deu um sorriso conspiratório. — A maioria das operações secretas envolve enviar um comprador falso. Mas a sua será diferente. Você vai aparecer
como o ladrão com uma peça importante para vender. O quadro precisa ser real.
— Por que não me empresta algumas das adoráveis peças da Galleria Borghese?
— O museu nunca aceitaria. Além disso — acrescentou o general —, o quadro não pode ser da Itália. Ou a pessoa que tem o Caravaggio poderia suspeitar do meu envolvimento.
— Você nunca vai conseguir acusar alguém depois de algo assim.
— Acusar alguém está, definitivamente, fora das minhas prioridades. Quero aquele Caravaggio de volta.
O general ficou em silêncio. Gabriel teve que admitir que estava intrigado pela ideia.
— Não tenho como estar à frente da operação — falou depois de um tempo. — Meu rosto é muito conhecido.
— Então, acho que terá que encontrar um bom ator para o papel. E se eu fosse você, contrataria um pouco de músculos também. O submundo pode ser um lugar perigoso.
— Não me diga.
O general não respondeu.
— Músculos não saem barato — falou Gabriel. — E nem ladrões competentes.
— Consegue pegar emprestado alguns do seu serviço?
— Músculos ou ladrões?
— Os dois.
— Sem chance.
— Quanto dinheiro você precisa?
Gabriel pensou um pouco.
— Dois milhões, no mínimo.
— Eu poderia ter um milhão num cofrinho embaixo da minha mesa.
— Eu aceito.
— Na verdade — falou o general, sorrindo —, o dinheiro está no porta-malas do meu carro. Também tenho uma cópia do arquivo do caso Caravaggio. Algo para você ler
enquanto espera o sr. Grandão colocar o barco na água.
— E se ele não morder a isca?
— Acho que você vai ter que roubar outra coisa. — O general deu de ombros. — É a maravilha de roubar obras de arte. Não é tão difícil assim.
O dinheiro, como prometido, estava no porta-malas do sedã oficial do general — um milhão de euros em notas usadas, cuja fonte ele se recusou a especificar. Gabriel
colocou a mala no banco do passageiro de seu carro e foi embora sem falar nada. Quando chegou perto de San Remo, ele já tinha completado os primeiros rascunhos de
sua operação para recuperar o Caravaggio perdido. Tinha financiamento e acesso ao mais bem-sucedido ladrão de arte do mundo. Tudo que precisava agora era alguém
para colocar um quadro roubado no mercado. Um amador não serviria. Precisava de um agente experiente que tivesse sido treinado nas artes negras da fraude. Alguém
que se sentisse confortável na presença de criminosos. Alguém que poderia se virar se as coisas ficassem pesadas. Gabriel conhecia um homem assim do outro lado do
mar, na ilha de Córsega. Era um pouco como Maurice Durand, um velho adversário que agora era cúmplice, mas as semelhanças terminavam aí.
14
CÓRSEGA
ERA QUASE MEIA-NOITE QUANDO a balsa chegou ao porto de Calvi, longe da hora aceitável para se fazer uma ligação telefônica na Córsega, então Gabriel fez o check-in
em um hotel perto do terminal e dormiu. De manhã, tomou café em uma pequena lanchonete de frente para o mar; depois entrou em seu carro e seguiu a sinuosa estrada
na costa oeste. Por um tempo a chuva continuou, mas gradualmente as nuvens diminuíram e o mar passou de granito a turquesa. Gabriel parou na cidade de Porto para
comprar duas garrafas de rosé da Córsega bem geladas e seguiu uma estrada estreita cercada de oliveiras e pinheiros-larício para o interior da ilha. O ar tinha cheiro
de macchia — a densa vegetação formada por alecrim, estevas e lavanda que cobria boa parte da ilha — e nas vilas ele viu muitas mulheres totalmente cobertas de roupas
pretas da viuvez, um sinal de que tinham perdido homens da família para a vendetta. Em outros tempos, as mulheres poderiam ter apontado para ele da maneira típica
da Córsega a fim de avisar sobre os efeitos da occhju, o mau-olhado, mas agora elas evitavam fitá-lo por muito tempo. Sabiam que ele era amigo de dom Anton Orsati,
e amigos do Dom podiam viajar para qualquer lugar na Córsega sem medo de represálias.
Por mais de dois séculos, o clã Orsati estava associado a duas coisas na ilha da Córsega: azeite de oliva e morte. O azeite vinha das oliveiras que se espalhavam
por suas grandes propriedades; a morte vinha das mãos de seus assassinos. Os Orsatis matavam em nome daqueles que não poderiam matar por si mesmos: poderosos que
eram muito sensíveis para sujar suas mãos; mulheres que não tinham homens para realizar a tarefa para elas. Ninguém sabia quantos moradores da ilha tinham morrido
nas mãos dos assassinos dos Orsati, muito menos os próprios Orsatis, mas a tradição colocava o número nos milhares. Poderia ser significativamente mais alto se não
fosse pelo rigoroso processo de veto do clã. Os Orsatis operavam com um código estrito. Recusavam-se a realizar um assassinato se não tivessem certeza de que a pessoa
pedindo tivesse sido injustiçada e uma vingança com sangue fosse realmente necessária.
Isso mudou, no entanto, com dom Anton Orsati. Quando ele assumiu o controle da família, as autoridades francesas tinham erradicado as disputas e as vinganças em
quase todas as partes, menos nos bolsões mais isolados da ilha, deixando poucos moradores com a necessidade de pedir os serviços de seu taddunaghiu. Com a demanda
local em declínio, Orsati precisou procurar oportunidades em outro lugar — quer dizer, do outro lado do mar, na Europa continental. Ele agora aceitava quase qualquer
oferta que cruzava sua mesa, não importava se fosse desagradável, e seus assassinos eram vistos como os mais confiáveis e profissionais do continente. Na verdade,
Gabriel era uma das únicas duas pessoas que já tinham sobrevivido a um contrato da família Orsati.
Dom Anton Orsati vivia nas montanhas no centro da ilha, cercado pelas muralhas de macchia e muitos guarda-costas. Dois estavam parados no portão. Ao verem Gabriel,
eles convidaram-no a entrar. Uma estrada de terra o levou através de oliveiras Van Gogh e, no final, até a entrada da imensa villa. Mais guarda-costas esperavam
do lado de fora. Fizeram uma revista apressada nos pertences de Gabriel, em seguida, um assassino moreno de cara comprida, que parecia ter uns vinte anos, o acompanhou
até o escritório de Orsati no andar de cima. Era um espaço largo com móveis rústicos e um terraço que dava para um vale particular. A madeira macchia queimava na
lareira de pedra. Perfumava o ar com alecrim e sálvia.
No centro da sala estava a larga mesa de carvalho na qual Dom trabalhava. Havia uma garrafa decorativa de azeite de oliva Orsati, um telefone que ele raramente usava
e um livro com capa de couro que continha os segredos de seu negócio. Seus taddunaghiu eram todos empregados da Companhia de Azeite de Oliva Orsati, e os assassinatos
que realizavam eram agendados como pedidos de produto, o que significava que, no mundo de Orsati, azeite e sangue fluíam juntos em um empreendimento homogêneo. Todos
seus assassinos eram descendentes de moradores locais, exceto um. Por causa de seu extenso treinamento, ele era encarregado apenas dos trabalhos mais difíceis. Também
era diretor de vendas de um lucrativo mercado central europeu.
O Dom era um homem grande para os padrões da Córsega, com mais de 1,80 m e de costas e ombros largos. Estava usando calças soltas, sandálias de couro empoeiradas
e uma camisa branca que sua mulher passava para ele toda manhã e novamente de tarde quando ele se levantava de sua sesta. Seu cabelo era negro, como seus olhos.
Sua mão, quando apertou a de Gabriel, parecia ter sido esculpida em pedra.
— Bem-vindo à Córsega — falou Orsati, enquanto pegava as duas garrafas de rosé que Gabriel trazia. — Eu sabia que não conseguiria ficar longe por muito tempo. Não
entenda mal, Gabriel, mas sempre achei que você tinha um pouco de sangue da Córsega nas veias.
— Posso garantir, dom Orsati, que não é o caso.
— Não importa. Você praticamente é um dos nossos agora. — O Dom abaixou a voz e acrescentou: — Homens que matam juntos desenvolvem uma ligação que não pode ser quebrada.
— Esse é um dos seus provérbios da Córsega?
— Nossos provérbios são sagrados e corretos, o que já é um provérbio em si. — Orsati sorriu. — Achei que estaria em Veneza com sua esposa.
— Eu estava — respondeu Gabriel.
— Então, o que o traz à Córsega? Negócios ou prazer?
— Negócios, infelizmente.
— O que foi dessa vez?
— Um favor.
— Outro?
Gabriel assentiu.
— Aqui na Córsega — falou o Dom, franzindo a testa em desaprovação — acreditamos que o destino de um homem está escrito ao nascer. E você, meu amigo, parece destinado
a sempre resolver problemas para outras pessoas.
— Há destinos piores, Dom Orsati.
— Deus ajuda a quem se ajuda.
— Quanta caridade — falou Gabriel.
— Caridade é para padres e tolos. — Olhou para a maleta na mão de Gabriel. — O que tem na mala?
— Um milhão de euro em notas usadas.
— Onde conseguiu tudo isso?
— Com um amigo em Roma.
— Um italiano?
Gabriel assentiu.
— No final de muitos desastres — falou Dom Orsati, sombrio —, há sempre um italiano.
— Estou casado com uma.
— E é por isso que sempre acendo velas por você.
Gabriel tentou, mas não conseguiu reprimir um sorriso.
— Como ela está? — perguntou o Dom.
— Parece que sempre a deixo brava. Tirando isso, está muito bem.
— É a gravidez — falou Orsati, pensativo. — Quando as crianças nascerem, tudo vai ser diferente.
— Como?
— Será como se você não existisse. — Ele voltou a olhar para a maleta. — Por que você anda por aí com um milhão de euros em notas usadas?
— Pediram-me que encontrasse algo valioso e vai ser preciso bastante dinheiro para recuperá-lo.
— Outra garota perdida? — perguntou o Dom.
— Não — respondeu Gabriel. — Isso.
Gabriel entregou a Orsati a fotografia de uma moldura vazia pendurada em cima do altar do Oratorio di San Lorenzo. Dom Orsati reconheceu imediatamente.
— A Natividade? — perguntou ele.
— Nunca soube que você era um homem das artes, dom Orsati.
— Não sou — admitiu ele—, mas segui o caso durante uns anos.
— Algum motivo em particular?
— Por acaso estava em Palermo na noite em que o Caravaggio foi roubado. Na verdade — acrescentou dom Orsati, com um sorriso —, tenho quase certeza de que fui eu
quem descobriu que tinha sumido.
No terraço de frente para o vale, dom Anton Orsati contou como, no final do verão de 1969, apareceu na Córsega um empresário siciliano chamado Renato Francona. O
siciliano queria vingança por sua linda filha, que tinha sido assassinada algumas semanas antes por Sandro di Luca, um membro importante da Cosa Nostra. Dom Carlu
Orsati, então chefe do clã Orsati, não queria participar disso. Mas seu filho, um assassino talentoso chamado Anton, acabou convencendo seu pai para que deixasse
que ele fizesse o trabalho pessoalmente. Tudo aconteceu como planejado naquela noite exceto pelo clima, que o impediu de sair de Palermo. Não tendo nada melhor para
fazer, o jovem Anton procurou uma igreja para confessar seus pecados. A igreja em que entrou foi o Oratorio di San Lorenzo.
— E isso — falou Orsati, segurando a foto da moldura vazia —, foi exatamente o que eu vi naquela noite. Claro que não informei a polícia sobre o roubo.
— O que aconteceu com Renato Francona?
— A Cosa Nostra o matou algumas semanas depois.
— Eles presumiram que estava por trás do assassinato de di Luca?
Orsati assentiu, sério.
— Mas pelo menos morreu com honra.
— Por quê?
— Porque tinha vingado o assassinato de sua filha.
— E ainda perguntam por que a Sicília não é a força econômica e intelectual do Mediterrâneo.
— Não se ganha dinheiro com a felicidade — falou o Dom.
— O que quer dizer?
— A vingança manteve essa família nos negócios por gerações — respondeu. — E o assassinato de Sandro di Luca provou que poderíamos operar fora da Córsega sem sermos
detectados. Meu pai foi contra aquilo até sua morte. Mas quando faleceu, transformei os negócios da família em algo internacional.
— Se você não cresce, morre.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente — respondeu Gabriel.
A mesa estava posta para um tradicional almoço da Córsega com comidas condimentadas com macchia. Gabriel se serviu com os vegetais e queijos, mas ignorou a linguiça.
— É kosher — falou o Dom, enquanto colocava vários pedaços de carne no prato de Gabriel.
— Não sabia que havia algum rabino na Córsega.
— Muitos — garantiu.
Gabriel deixou a linguiça de lado e perguntou ao Dom se ele ainda ia à igreja depois de matar alguém.
— Se eu fosse — respondeu ele —, passaria mais tempo de joelhos do que uma lavadeira. Além disso, nesse ponto já não tenho mais salvação. Deus pode fazer o que quiser
comigo.
— Gostaria de ver a conversa entre você e Deus.
— Poderia ser durante um típico almoço da Córsega. — Orsati sorriu e encheu a taça de Gabriel com o rosé. — Vou lhe contar um segredo — falou, colocando a garrafa
de volta no centro da mesa. — A maioria das pessoas que matamos merece morrer. Do nosso jeito, o clã Orsati fez do mundo um lugar melhor.
— Se sentiria assim se tivesse me matado?
— Não seja tolo — respondeu o Dom. — Permitir que você vivesse foi a melhor decisão que já tomei.
— Até onde me lembro, dom Orsati, você não teve nada a ver com a decisão de me deixar viver. Na verdade — acrescentou Gabriel enfaticamente —, você era contra.
— Mesmo eu, o infalível dom Anton Orsati, cometo erros de vez em quando, apesar de que nunca faria nada tão tolo quanto concordar em encontrar um Caravaggio para
os italianos.
— Não tive muita escolha nessa questão.
— É algo ridículo.
— Minha especialidade.
— Os carabinieri estão procurando aquele quadro há mais de quarenta anos, e nunca conseguiram achar. Na minha opinião, provavelmente foi destruído há muito tempo.
— Não é o que se diz por aí.
— O que você ouviu?
Gabriel respondeu a questão contando ao Dom as mesmas coisas que tinha dito ao general Ferrari em San Remo. Então explicou seu plano para recuperar o quadro. O Dom
ficou bastante intrigado.
— O que isso tem a ver com os Orsatis? — perguntou.
— Preciso de um de seus homens emprestado.
— Algum em especial?
— O diretor de vendas da Europa central.
— Que surpresa.
Gabriel não falou nada.
— E se eu concordar?
— Uma mão lava a outra — falou Gabriel — e as duas lavam o rosto.
O Dom sorriu.
— Talvez você seja da Córsega, afinal de contas.
Gabriel olhou para o vale e sorriu.
— Não tive essa sorte, dom Orsati.
15
CÓRSEGA
INFELIZMENTE, O HOMEM que Gabriel precisava para encontrar o Caravaggio estava fora da ilha a negócios. Dom Orsati não quis dizer onde ele estava ou se seus negócios
tinham a ver com azeite ou sangue, só que iria voltar em dois dias, três no máximo. Deu a Gabriel um revólver Tanfoglio e as chaves de uma villa no vale seguinte,
onde poderia esperar. Gabriel conhecia bem a villa. Tinha ficado ali com Chiara depois da última operação deles e, em seu terraço tomado pelo sol, recebido a notícia
de que ela estava grávida. Só havia um problema com a casa: para chegar até lá, Gabriel tinha que passar por três antigas oliveiras onde sempre estava o infeliz
bode de dom Casabianca tomando conta, desafiando todos que ousassem entrar em seu território. O bode velho era uma criatura maligna em geral, mas parecia reservar
um ódio especial contra Gabriel, com quem já tivera numerosos confrontos cheios de mútuas ameaças e insultos. Dom Orsati, no final do almoço, prometeu falar com
dom Casabianca em nome de Gabriel.
— Talvez ele possa convencer a besta — acrescentou o Dom, cético.
— Ou talvez ele possa transformar o bicho em uma bolsa e um par de sapatos.
— Não venha com ideias — disse. — Se você tocar um pelo da cabeça daquele maldito bode, vai ser um desastre.
— E se ele simplesmente desaparecesse?
— A macchia não tem olhos — avisou o Dom —, mas vê tudo.
Com isso, acompanhou Gabriel até a saída para seu carro. Ele seguiu o caminho até voltar à estrada de terra, continuou um pouco mais adiante, e quando chegou até
uma curva fechada à esquerda, viu o bode de dom Casabianca amarrado a uma das três antigas oliveiras, com um olhar de humilhação em sua cara grisalha. Gabriel abaixou
a janela e, em italiano, soltou vários insultos contra o bode falando de sua aparência, seus ancestrais e da degradação de sua situação atual. Depois, rindo, subiu
a colina até a villa.
Era uma casa pequena, com um telhado vermelho e grandes janelas voltadas para o vale. Quando Gabriel entrou, percebeu instantaneamente que ele e Chiara tinham sido
os últimos ocupantes. Seu bloco de desenho estava sobre a mesinha de centro na sala de estar, e na geladeira encontrou uma garrafa fechada de Chablis que tinha sido
um presente do ausente diretor de vendas europeias de dom Orsati. As prateleiras da despensa estavam vazias. Gabriel abriu as portas francesas para que a brisa da
tarde entrasse e se sentou no terraço, lendo o arquivo de Caravaggio do general, até que o frio o obrigou a entrar. Nesse momento, era um pouco depois das quatro
da tarde e o sol parecia se equilibrar sobre a beira do vale. Tomou um banho rápido, mudou de roupa e foi de carro até a vila para fazer umas compras antes que as
lojas fechassem.
Já havia um povoado nesse canto isolado da Córsega desde os dias complicados depois da queda do Império Romano, quando os vândalos saqueavam as costas com tanta
violência que os nativos aterrorizados não tiveram outra escolha a não ser fugir para as colinas para sobreviver. Uma única e velha rua subia em espiral passando
por casas de campo e edifícios de apartamentos até uma grande praça no ponto mais alto da vila. Em três lados havia lojas e cafés; no quarto, estava a velha igreja.
Gabriel encontrou um lugar para estacionar e começou a andar até o mercado, mas decidiu que precisava de um espresso antes. Entrou em um dos cafés e sentou-se a
uma mesa onde conseguia ver os homens jogando boules na praça sob a luz de um poste. Um dos homens reconheceu Gabriel como um dos amigos de dom Orsati e o convidou
a jogar. Gabriel fingiu que tinha um problema no ombro e, em francês, disse que preferia apenas olhar. Não disse que precisava fazer compras. Na Córsega, ainda são
as mulheres que fazem as compras.
Nesse momento, os sinos da igreja marcaram as cinco horas. Alguns minutos depois, suas pesadas portas de madeira se abriram e um padre com batina preta saiu na escada.
Ele ficou sorrindo ali, benevolente, enquanto vários paroquianos, principalmente mulheres velhas, enchiam a praça. Uma das mulheres, depois de cumprimentar o padre,
parou de repente, como se só ela tivesse percebido a presença do perigo. Então voltou a caminhar e desapareceu por uma porta de uma velha casa ao lado da paróquia.
Gabriel pediu outro café. Então mudou de ideia e pediu uma taça de vinho tinto no lugar. O crepúsculo já era apenas uma lembrança; as luzes iluminavam as lojas e
as janelas da casinha torta ao lado da paróquia. Um menino de uns dez anos com cabelo encaracolado comprido estava agora parado na porta, que estava aberta alguns
centímetros. Uma pequena mão pálida apareceu na abertura segurando um pedaço de papel azul. O menino agarrou o papel e cruzou a praça até o café, onde o colocou
em cima da mesa de Gabriel ao lado da taça de vinho tinto.
— O que foi dessa vez? — perguntou ele.
— Ela não falou — respondeu o menino. — Ela nunca fala.
Gabriel deu umas moedas ao menino para comprar um doce e bebeu o vinho enquanto a noite caía sobre a praça. Finalmente, pegou o pedaço de papel e leu a única frase
que estava escrita ali:
Posso ajudá-lo a encontrar o que você está procurando.
Gabriel sorriu, enfiou o papel no bolso, e terminou seu vinho. Então se levantou e cruzou a praça.
Ela estava parada na entrada para recebê-lo, um xale sobre seus ombros magros. Os olhos eram fundos e negros; seu rosto era tão branco quanto farinha. Ela olhou
um tempo para ele antes de finalmente esticar sua mão. Era quente e leve. Parecia que estava segurando um passarinho.
— Bem-vindo de volta à Córsega — falou ela.
— Como soube que eu estava aqui?
— Eu sei de tudo.
— Então me conte como cheguei à ilha.
— Não me insulte.
O ceticismo de Gabriel era fingido. Ele há muito tempo tinha abandonado as dúvidas de que a velha tinha capacidade de ver tanto o passado quanto o futuro. Ela apertou
as mãos dele e fechou os olhos. — Você estava vivendo na cidade da água com sua esposa e trabalhando numa igreja onde um grande pintor foi enterrado. Estava feliz,
realmente feliz, pela primeira vez em sua vida. Então uma criatura de um olho só apareceu e...
— Certo — falou Gabriel. — Já me convenceu.
Ela liberou a mão de Gabriel e apontou para a pequena mesa de madeira em sua sala. Em cima havia um prato raso com água e uma garrafa de azeite de oliva. Eram as
ferramentas que usava. A velha era uma signadora. Os habitantes da ilha acreditavam que ela tinha o poder de curar os infectados pelo occhju, o mau-olhado. Gabriel
já suspeitou que ela era apenas uma charlatã, mas tinha mudado de ideia.
— Sente-se — falou ela.
— Não — respondeu Gabriel.
— Por que não?
— Porque não acreditamos nessas coisas.
— Israelitas?
— Isso — respondeu ele. — Israelitas.
— Mas já fez isso antes.
— Você me contou coisas sobre meu passado, coisas que não poderia saber.
— Então estava curioso?
— Acho que sim.
— E não está curioso agora?
A mulher se sentou em seu lugar de sempre à mesa e acendeu uma vela. Depois de um momento de hesitação, Gabriel se sentou em frente a ela. Empurrou a jarra de azeite
para o centro da mesa e entrelaçou as mãos, concentrado. A velha fechou os olhos.
— A criatura de um olho só pediu que você encontrasse algo para ele, não foi?
— Foi — respondeu Gabriel.
— É um quadro, não é? O trabalho de um louco, um assassino. Foi roubado de uma pequena igreja há muitos anos, de uma ilha do outro lado do mar.
— Dom Orsati contou isso para você?
A velha abriu os olhos.
— Nunca falei com o Dom sobre esse assunto.
— Continue.
— O quadro foi roubado por homens como o Dom, só que piores. Eles trataram o quadro muito mal. Uma parte dele foi destruída.
— Mas o quadro sobreviveu?
— Sobreviveu — falou ela, assentindo lentamente. — Ele sobreviveu.
— Onde está agora?
— Está perto.
— Perto de onde?
— Não sei dizer. Mas se você realizar o teste do azeite e da água — acrescentou ela olhando para o centro da mesa —, talvez eu possa ajudar.
Gabriel não se moveu.
— Do que você tem medo? — perguntou a velha.
— De você — respondeu Gabriel, honestamente.
— Você tem a força de Deus. Por que iria ter medo de alguém tão frágil e velha como eu?
— Porque você tem poderes também.
— Poderes de visão — falou ela. — Mas não poderes terrenos.
— A capacidade de ver o futuro é uma grande vantagem.
— Especialmente para alguém em sua linha de trabalho.
— Exato — concordou Gabriel, sorrindo.
— Então por que você não quer realizar o teste do azeite e da água?
Gabriel ficou em silêncio.
— Você perdeu muitas coisas — disse a velha, suavemente. — Uma esposa, um filho, sua mãe. Mas seus dias de luto ficaram para trás.
— Os meus inimigos vão tentar matar minha esposa?
— Nem ela nem seus filhos vão sofrer.
A velha apontou com a cabeça para a jarra de azeite de oliva. Dessa vez, Gabriel enfiou o dedo indicador nela e deixou que três gotas caíssem sobre a água. Pelas
leis da física, o azeite deveria ter se juntado em uma única porção. Em vez disso, ele se dividiu em milhares de gotinhas e logo desapareceu.
— Você está infectado com o occhju — falou a velha, com gravidade. — Seria bom que me deixasse entrar em seu sistema.
— Prefiro tomar duas aspirinas.
A mulher olhou para o prato de água e azeite.
— O quadro que você está procurando mostra o Menino Jesus, não é?
— É.
— Que curioso que um homem como você esteja procurando nosso Senhor e salvador. — Ela olhou novamente para o prato de água e azeite. — O quadro foi retirado da ilha
pela água. Parece diferente do que era antes.
— Por quê?
— Foi reparado. O homem que fez o trabalho agora está morto. Mas você já sabe disso.
— Algum dia você vai ter que me mostrar como faz isso.
— Não é algo que pode ser ensinado. É um dom de Deus.
— Onde está o quadro agora?
— Não sei dizer.
— Quem está com ele?
— Está além dos meus poderes saber o nome dele. A mulher pode ajudar você a encontrá-lo.
— Que mulher?
— Não sei dizer. Não deixe que nenhum mal aconteça com ela ou vai perder tudo.
A cabeça da velha caiu sobre seu ombro; a profecia a deixara exausta. Gabriel colocou várias notas debaixo do prato de água e azeite.
— Tenho mais uma coisa para contar antes de você ir embora — falou a velha quando Gabriel se levantou.
— O que é?
— Sua esposa deixou a cidade de água.
— Quando? — perguntou Gabriel.
— Enquanto você estava na companhia da criatura de um olho só na cidade perto do mar.
— Onde ela está agora?
— Está esperando por você — falou a velha — na cidade da luz.
— Isso é tudo?
— Não — falou ela enquanto fechava suas pálpebras. — O velho não vai viver muito. Faça as pazes com ele antes que seja tarde demais.
Ela estava certa pelo menos sobre uma coisa: parecia que Chiara tinha realmente saído de Veneza. Durante uma breve ligação para seu celular, ela tinha falado que
estava se sentindo bem e que tinha voltado a chover. Gabriel rapidamente verificou o clima em Veneza e viu que fazia sol há vários dias. Ligações para o telefone
no apartamento deles não tinham resposta, e seu pai, o inescrutável rabino Zolli, parecia ter uma lista de desculpas prontas para explicar por que sua filha não
estava em sua mesa. Ela estava fazendo compras, ou na livraria do gueto, ou visitando os idosos no asilo. “Vou pedir que ligue para você assim que voltar. Shalom,
Gabriel.” Gabriel se perguntava se o guarda-costas bonitão do general era cúmplice no desaparecimento de Chiara ou se ele tinha sido enganado, também. Suspeitava
que era a segunda opção. Chiara era mais bem treinada e experiente do que qualquer carabinieri musculoso.
Ia duas vezes à vila, uma de manhã para tomar espresso com pão e novamente à tarde para tomar uma taça de vinho no café perto do jogo de boules. Nas duas ocasiões
ele via a signadora saindo da igreja depois da missa. Na primeira tarde, ela não prestou atenção nele. Mas na segunda, o menino com cabelo enrolado apareceu em sua
mesa com outro bilhete. Parecia que o homem por quem Gabriel estava esperando chegaria em Calvi de barco no dia seguinte. Gabriel telefonou para dom Orsati, que
confirmou que era verdade.
— Como você sabia? — perguntou ele.
— O macchia não tem olhos — falou Gabriel enigmático, e desligou. Passou a manhã seguinte dando os últimos retoques no seu plano para encontrar o Caravaggio desaparecido.
Então, ao meio-dia, caminhou até as três antigas oliveiras e liberou o bode de dom Casabianca de seu laço. Uma hora depois viu um Renault velho subindo o vale em
uma nuvem de poeira. Quando se aproximou das oliveiras, o velho bode apareceu desafiador no seu caminho. O carro tocou a buzina e logo o vale ecoava com insultos
e ameaças de uma tremenda violência. Gabriel foi até cozinha e abriu o Chablis. O inglês tinha voltado à Córsega.
16
CÓRSEGA
NÃO ERA SEMPRE QUE alguém tinha a oportunidade de apertar a mão de um morto, mas isso foi precisamente o que aconteceu, dois minutos depois, quando Christopher Keller
cruzou a porta da villa. De acordo com os registros militares britânicos, ele tinha morrido em janeiro de 1991, durante a primeira guerra do Golfo, quando seu esquadrão
de Serviços Aéreos Especiais Sabre foi atacado pela força aérea da Coalizão em um trágico caso de fogo amigo. Seus pais, dois respeitados médicos de Harley Street,
apareceram em público para falar sobre seu heroísmo, embora em particular dissessem que ele nunca teria morrido se tivesse ficado em Cambridge em vez de ter se alistado
no exército. Até hoje, ainda não sabem que só ele tinha sobrevivido ao ataque contra seu esquadrão. Nem sabem que, depois de sair do Iraque disfarçado de árabe,
tinha cruzado a Europa até a Córsega, onde havia sido recebido de braços abertos por dom Anton Orsati. Gabriel tinha perdoado Keller por tentar matá-lo uma vez.
Mas não podia perdoar o fato de que o inglês tinha deixado que seus pais envelhecessem acreditando que seu único filho estava morto.
Keller parecia bem para um morto. Seus olhos eram claros e azuis, seu cabelo curto era quase branco pelo mar e o sol, sua pele estava esticada e muito bronzeada.
Usava uma camisa branca aberta no pescoço e um terno amassado pela viagem. Quando tirou o terno, a letalidade de seu físico foi revelada. Tudo em Keller, de seus
poderosos ombros a seus antebraços fortes, parecia ter sido criado expressamente para matar. Ele colocou o terno sobre as costas de uma cadeira e olhou para a Tanfoglio
sobre a mesa de centro, próxima ao arquivo do general sobre o Caravaggio.
— É minha — falou sobre a arma.
— Não mais.
Keller foi até a garrafa aberta de Chablis e se serviu de uma taça.
— Como foi sua viagem? — perguntou Gabriel.
— Bem-sucedida.
— Tinha medo que falasse isso.
— Melhor do que a alternativa.
— Que tipo de trabalho foi?
— Estava entregando comida e remédios a viúvas e órfãos.
— Onde?
— Varsóvia.
— Minha cidade favorita.
— Deus, que lixo. E o clima é adorável nessa época do ano.
— O que você estava realmente fazendo, Christopher?
— Cuidando de um problema para um banqueiro na Suíça.
— Que tipo de problema?
— Um problema russo.
— O russo tem nome?
— Vamos chamá-lo de Igor.
— Igor era boa gente?
— Nem perto.
— Mafiya?
— Até a medula.
— Aposto que Igor da mafiya confiou seu dinheiro a um banqueiro na Suíça.
— Muito dinheiro — falou Keller. — Mas estava infeliz com os juros que estava ganhando com seus investimentos. Disse ao banqueiro suíço para melhorar seu desempenho.
Ou iria matar o banqueiro, sua esposa, seus filhos e seu cachorro.
— Então o banqueiro suíço pediu ajuda a dom Orsati.
— Que opção ele tinha?
— O que aconteceu com o russo?
— Ele teve um problema depois de uma reunião com um possível sócio. Não vou entediá-lo com detalhes.
— E o dinheiro dele?
— Uma parte foi transferida para uma conta controlada pela Empresa de Azeite de Oliva Orsati. O resto ainda está na Suíça. Sabe como são esses banqueiros suíços
— acrescentou Keller. — Não gostam de se afastar do dinheiro.
O inglês se sentou no sofá, abriu o arquivo sobre Caravaggio e tirou a foto da moldura vazia no Oratorio di San Lorenzo.
— Uma pena — falou, balançando a cabeça. — Esses malditos sicilianos não têm respeito por nada.
— Dom Orsati já contou que foi ele que descobriu que o quadro tinha sido roubado?
— Deve ter mencionado isso uma noite quando seu poço de provérbios da Córsega secou. É uma pena que ele não chegou no oratório alguns minutos antes — acrescentou
Keller. — Poderia ter evitado que os ladrões roubassem o quadro.
— Ou os ladrões poderiam tê-lo matado antes de sair da igreja.
— Você subestima o Dom.
— Nunca.
Keller devolveu a fotografia ao arquivo.
— O que isso tem a ver comigo?
— Os carabinieri me contrataram para recuperar o quadro. Preciso da sua ajuda.
— Que tipo de ajuda?
— Nada muito importante — respondeu Gabriel. — Só preciso que você roube uma obra de arte de valor incalculável e a venda ao homem que matou duas pessoas em menos
de uma semana.
— Só isso? — Keller sorriu. — Estava com medo de que fosse me pedir algo difícil.
Gabriel contou toda a história, começando com a infeliz visita de Julian Isherwood ao lago Como e terminando com a proposta pouco ortodoxa do general Ferrari para
recuperar o quadro roubado mais cobiçado do mundo. Keller permaneceu imóvel o tempo todo, os braços sobre os joelhos, as mãos cruzadas, como um penitente relutante.
Sua capacidade de ficar longos períodos completamente imóvel deixava até mesmo Gabriel nervoso. Enquanto servia no SAS na Irlanda do Norte, Keller tinha se especializado
em observação próxima, uma técnica perigosa de vigilância que exigia que passasse semanas em “esconderijos” apertados como sótãos e celeiros. Também tinha se infiltrado
no IRA ao se passar por um católico de Belfast ocidental, e era por isso que Gabriel tinha confiança de que Keller poderia assumir o papel de um ladrão de arte com
um quadro importante para vender. O inglês, no entanto, não estava tão seguro.
— Não é o que eu faço — falou ele quando Gabriel terminou a apresentação. — Eu espiono pessoas, mato pessoas, explodo coisas. Mas não roubo quadros. E não os vendo
no mercado negro.
— Se você pode se fazer passar por um católico de Ballymurphy, pode fingir ser um cara do leste de Londres. Se bem me lembro — acrescentou Gabriel —, você é bastante
bom com sotaques.
— É verdade — admitiu Keller. — Mas sei muito pouco sobre arte.
— A maioria dos ladrões também. É por isso que são ladrões em vez de curadores ou historiadores de arte. Mas não se preocupe, Keller. Vou estar o tempo todo sussurrando
no seu ouvido.
— Não consigo dizer o quanto estou ansioso por esse momento.
Gabriel não falou nada.
— E os italianos? — perguntou Keller.
— O que tem?
— Sou um assassino profissional que, ocasionalmente, e eles sabem disso, teve que cumprir tarefas em solo italiano. Não serei capaz de voltar lá se seu amigo dos
carabinieri descobrir que estive trabalhando com você.
— O general nunca vai saber que você esteve envolvido.
— Como pode ter certeza?
— Porque ele não quer saber.
Keller não pareceu convencido. Acendeu um cigarro e soltou uma nuvem de fumaça para o teto, pensativo.
— Você precisa fazer isso? — perguntou Gabriel.
— Me ajuda a pensar.
— Dificulta minha respiração.
— Tem certeza de que você é israelense?
— O Dom parece pensar que sou um corso enrustido.
— Não é possível — falou Keller. — Nenhum corso teria concordado em encontrar um quadro que está perdido há mais de quarenta anos, especialmente para um maldito
italiano.
Gabriel foi até a cozinha, pegou um pires do armário e colocou na frente de Keller. O inglês deu uma última tragada antes de apagar o cigarro.
— Quanto dinheiro você planeja usar?
Gabriel contou a Keller sobre a mala cheia de um milhão de euros que o general tinha lhe dado.
— Um milhão não vai ser suficiente.
— Você tem algum trocado sobrando por aí?
— Posso ter um troco que sobrou do trabalho em Varsóvia.
— Quanto?
— Quinhentos ou seiscentos.
— É muito generoso de sua parte, Christopher.
— É meu dinheiro.
— O que são quinhentos ou seiscentos entre amigos?
— Muito dinheiro. — Keller soltou um longo suspiro. — Ainda não tenho certeza se consigo fazer isso.
— Isso o quê?
— Fingir ser um ladrão de arte.
— Você mata pessoas por dinheiro — falou Gabriel. — Não acho que será um grande esforço.
Vestir Christopher Keller para o papel de um ladrão de arte internacional acabou sendo a parte mais fácil de sua preparação, pois nos guarda-roupas de sua villa
havia uma grande seleção de roupas para qualquer ocasião ou assassinato. Havia Keller, o boêmio viajante; Keller, o playboy de elite; e Keller, o montanhista. Havia
até um Keller, o padre católico romano, completo com um breviário e um kit de missa para viagem. No final, Gabriel escolheu o tipo de roupas que Keller usaria naturalmente
— camisa branca, terno escuro e um par de sapatos da moda. Ele colocou alguns acessórios como várias correntes e braceletes de ouro, um relógio suíço muito chamativo,
óculos com lentes azuis e uma peruca loira com um topete denso. Keller tinha seu próprio passaporte britânico e cartões de crédito em nome de Peter Rutledge. Gabriel
achou que parecia um pouco classe alta demais para um criminoso do East End, mas não importava. Ninguém no mundo da arte iria conhecer o nome do ladrão.
17
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
REUNIRAM-SE NO ESCRITÓRIO APERTADO de Antiquités Scientifiques às onze da manhã seguinte: o ladrão de arte, o assassino profissional e o antigo e futuro agente do
serviço secreto israelense. O agente explicou rapidamente ao ladrão de arte como ele esperava encontrar o há muito desaparecido retábulo de Caravaggio. O ladrão,
como o assassino anteriormente, duvidou do plano.
— Eu roubo quadros — afirmou ele, em um tom cansado. — Não encontro quadros para ajudar a polícia. Na verdade, eu faço o máximo para evitar a polícia.
— Os italianos nunca vão saber sobre seu envolvimento.
— É o que você diz.
— Preciso lembrá-lo que o homem que adquiriu o Caravaggio matou seu amigo e sócio?
— Não, monsieur Allon, não precisa.
A campainha tocou. Maurice Durand ignorou.
— O que quer que eu faça?
— Preciso que roube algo que nenhum colecionador sujo poderia resistir.
— E depois?
— Quando os rumores começarem a se espalhar pelo submundo da arte que o quadro está em Paris, vou precisar que aponte os abutres na direção certa.
Durand olhou para Keller.
— Para ele?
Gabriel assentiu.
— E por que os abutres vão pensar que o quadro está em Paris?
— Porque vou contar a eles.
— Você pensa em tudo, não é, monsieur Allon?
— A melhor forma de ganhar um jogo de azar é remover o azar da equação.
— Vou tentar me lembrar disso. — Durand olhou para Keller de novo e perguntou: — Quanto ele sabe sobre o negócio de roubo de arte?
— Nada — admitiu Gabriel. — Mas ele aprende rápido.
— O que ele faz para viver?
— Cuida de viúvas e órfãos.
— Sei — falou Durand, cético. — E eu sou o presidente da França.
Eles passaram o resto do dia trabalhando nos detalhes da operação. Então, quando a noite caiu sobre o oitavo Arrondissement, monsieur Durand mudou a placa na janela
de OUVERT para FERMÉ, e eles saíram para a rue de Miromesnil. O ladrão de arte foi até a brasserie do outro lado da rua para sua taça noturna de vinho tinto, o assassino
tomou um táxi até um hotel na rue de Rivoli e o antigo e futuro agente da inteligência israelense caminhou até um apartamento seguro do Escritório com vista para
Pont Marie. Viu uma dupla de agentes de segurança sentados em um carro estacionado na entrada do prédio; e quando entrou no apartamento, sentiu o aroma de comida
e ouviu Chiara cantando baixinho. Beijou seus lábios e a levou para o quarto. Não perguntou como ela estava se sentindo. Não perguntou nada.
— Percebeu — perguntou ela depois — que é a primeira vez que fazemos amor desde que descobrimos que eu estava grávida?
— É mesmo?
— Quando alguém com sua inteligência finge ser tolo, Gabriel, não é muito eficiente.
Ele enrolou uma mecha do cabelo dela com o dedo, mas não falou nada. O queixo dela estava descansando sobre seu peito. O brilho dos postes de rua de Paris fazia
com que a pele dela parecesse dourada.
— Por que não tinha feito sexo comigo antes? E não me diga que foi por que estava ocupado — acrescentou ela rapidamente —, porque isso nunca o impediu antes.
Ele soltou o cabelo dela, mas não falou nada.
— Tinha medo de que a gravidez desse errado de novo? Foi por isso?
— Foi — respondeu ele. — Acho que sim.
— O que o fez mudar de ideia?
— Passei uns momentos com uma velha na ilha de Córsega.
— O que ela falou?
— Que nenhum mal aconteceria com você e as crianças.
— E acreditou nela?
— Ela já falou muitas coisas que não teria como saber. Então me disse que você tinha saído de Veneza.
— Ela falou que eu estava em Paris?
— Não com essas palavras.
— Estava querendo surpreendê-lo.
— Como sabia onde me encontrar?
— O que você acha?
— Ligou para o Boulevard Rei Saul.
— Na verdade, eles me ligaram.
— Por quê?
— Porque Uzi queria saber por que você estava em companhia de um homem como Maurice Durand. Obviamente, não deixei passar a oportunidade.
— Como escapou do guarda-costas do general?
— Matteo? Foi fácil.
— Não sabia que se tratavam pelo primeiro nome.
— Ele ajudou muito na sua ausência. E nunca me perguntou como eu me sentia.
— Não vou cometer esse erro de novo.
Chiara beijou os lábios de Gabriel e perguntou por que ele tinha retomado sua relação com o ladrão de arte mais conhecido do mundo. Gabriel contou tudo.
— Agora entendo por que o general Ferrari queria tanto que você investigasse a morte de Bradshaw.
— Ele sempre soube que Bradshaw era sujo — falou Gabriel. — E também ouviu rumores de que suas digitais estavam no Caravaggio.
— Acho que isso poderia explicar algo peculiar que descobri nas contas da Meridian Global Consulting Group.
— E o que é?
— Durante os últimos 12 meses, a Meridian fez muitos trabalhos para um lugar chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem são eles?
— Difícil dizer. LXR é uma empresa bastante opaca, para dizer o mínimo.
Gabriel juntou outra mecha de cabelo de Chiara e perguntou o que mais ela tinha descoberto no lixo eletrônico de Jack Bradshaw.
— Durante as últimas semanas de sua vida, ele enviou vários e-mails a uma conta no Gmail com um nome de usuário autogerado.
— Sobre o que conversavam?
— Casamentos, festas, o clima, todas as coisas que as pessoas discutem quando estão, na verdade, falando sobre outra coisa.
— Faz alguma ideia de onde está esse colega dele?
— Cafés com wi-fi em Bruxelas, Antuérpia e Amsterdã.
— Claro.
Chiara deitou de barriga pra cima. Gabriel colocou a mão sobre o abdome dela enquanto ouvia a chuva bater suave contra a janela.
— No que você está pensando? — perguntou ela depois de um momento.
— Estava pensando se era real ou só minha imaginação.
— O quê?
— Nada.
Ela não insistiu.
— Acho que vou ter que dizer alguma coisa ao Uzi.
— Acho que sim.
— O que devo dizer?
— A verdade — respondeu Gabriel. — Que vou roubar um quadro que vale duzentos milhões de dólares e tentar vendê-lo ao sr. Grandão.
— O que você vai fazer agora?
— Tenho que ir para Londres para começar um rumor.
— E depois?
— Vou para Marselha para fazer com que o rumor se torne verdade.
18
HYDE PARK, LONDRES
GABRIEL LIGOU PARA A Isherwood Fine Arts na manhã seguinte enquanto cruzava a Leicester Square. Pediu para vê-lo fora da galeria e dos lugares conhecidos pelo mundo
da arte em St. James’s. Isherwood sugeriu o Lido Café Bar no Hyde Park. Ninguém do mundo da arte, ele assegurou, iria ali nem morto.
Chegou alguns minutos depois de uma da tarde, vestido como se fosse ao campo, com uma jaqueta de tweed e galochas. Ele parecia com muito menos ressaca do que era
o normal no começo da tarde.
— Longe de mim reclamar — falou Gabriel, apertando a mão de Isherwood —, mas sua secretária me deixou esperando por quase dez minutos antes de finalmente passar
a ligação para você.
— Considere-se com sorte.
— Quando vai demiti-la, Julian?
— Não posso.
— Por que não?
— É possível que ainda esteja apaixonado por ela.
— É uma abusada.
— Eu sei. — Isherwood sorriu. — Se pelo menos estivéssemos transando. Então seria perfeito.
Eles se sentaram a uma mesa com vista para a Serpentine. Isherwood franziu o cenho para o menu.
— Não é exatamente o Wilton’s, não é?
— Você vai sobreviver, Julian.
Isherwood não pareceu convencido. Pediu um sanduíche de camarão e uma taça de vinho branco para sua pressão. Gabriel pediu chá e um bolinho. Quando estavam sozinhos
de novo, ele contou a Isherwood tudo que tinha acontecido desde sua partida de Veneza. Então contou o que planejava fazer depois.
— Garoto malvado — falou Isherwood. — Muito malvado.
— Foi ideia do general.
— É um maldito safado, não é?
— Por isso é tão bom no que faz.
— Precisa ser. Mas como diretor do Comitê para Proteção da Arte — acrescentou Isherwood com um tom de formalidade —, eu seria negligente se não desaprovasse um aspecto
da sua inteligente operação.
— Não tem outro jeito, Julian.
— E se o quadro for danificado durante o roubo?
— Tenho certeza de que posso encontrar alguém para consertá-lo.
— Não se faça de desentendido, meu rapaz. Não combina com você.
Um silêncio pesado caiu entre eles.
— Valerá a pena se eu conseguir recuperar o Caravaggio — disse Gabriel finalmente.
— Se — respondeu Isherwood cético. Ele soltou um longo suspiro. — Desculpe metê-lo em tudo isso. E pensar que nada disso teria acontecido se não fosse pelo maldito
Oliver Dimbleby.
— Na verdade, eu até pensei em uma forma para que Oliver expie seus pecados.
— Não está pensando em usá-lo de alguma maneira, está?
Gabriel assentiu lentamente.
— Mas dessa vez, ele nem vai saber.
— Boa ideia — respondeu Isherwood. — Porque Oliver Dimbleby tem uma das maiores bocas de todo o mundo da arte.
— Exatamente.
— O que está pensando?
Gabriel contou. Isherwood deu um sorriso malicioso.
— Garoto malvado — falou. — Muito malvado.
Quando terminaram de comer, Gabriel tinha conseguido convencer Isherwood da eficácia de seu plano. Eles trabalharam nos detalhes finais enquanto cruzavam o Hyde
Park e depois se separaram nas calçadas lotadas de Piccadilly. Isherwood voltou para sua galeria em Mason’s Yard; Gabriel foi para a St. Pancras Station, onde tomou
o Eurostar noturno para Paris. Naquela noite, no apartamento seguro com vista para Pont Marie, ele fez amor com Chiara pela segunda vez desde que descobriu que ela
estava grávida.
De manhã eles tomaram café em uma lanchonete perto do Louvre. Depois de caminhar com Chiara de volta ao apartamento, Gabriel tomou um táxi para a Gare de Lyon. Pegou
um trem para Marselha às nove e às 12h45 estava descendo na Gare Saint-Charles. Saiu no começo do boulevard d’Athènes, que seguia até La Canebière, a larga rua de
compras que ia do centro da cidade até o Velho Porto. Os barcos de pesca tinham voltado das viagens matinais; criaturas marinhas de todo tipo estavam em cima de
mesas de metal ao longo do canto leste do porto. Em uma das mesas havia um homem grisalho com um suéter de lã esfarrapado e um avental de borracha. Gabriel parou
ali um pouco para inspecionar a pesca do homem. Então deu a volta na esquina até a ponta sul do porto e entrou no lado do passageiro de um sedã Renault bastante
velho. Sentado atrás do volante, com a ponta de um cigarro queimando entre seus dedos, estava Christopher Keller.
— Você precisa fumar? — perguntou Gabriel, cansado.
Keller apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
— Não acredito que estamos de volta aqui.
— Onde?
— Marselha — respondeu Keller. — Foi onde começamos nossa busca pela garota inglesa.
— E onde você tirou uma vida desnecessariamente — acrescentou Gabriel, sombrio.
— Não vamos voltar a litigar sobre isso.
— É uma palavra difícil para um ladrão de arte, Christopher.
— Não acha que é uma coincidência estarmos sentados no mesmo carro do mesmo lado do Velho Porto?
— Não.
— Por que não?
— Porque Marselha é onde estão os criminosos.
— Como ele. — Keller indicou com a cabeça o homem com o suéter esfarrapado de lã parado em uma mesa cheia de peixes no canto do porto.
— Conhece ele?
— Todo mundo nessa área conhece Pascal Rameau. Ele e sua tripulação são os melhores ladrões na Côte d’Azur. Roubam tudo. Havia um boato de que já tentaram roubar
a Torre Eiffel.
— O que aconteceu?
— O comprador desistiu. Ou pelo menos é como Pascal gosta de contar a história.
— Já fez negócios com ele?
— Ele não precisa de pessoas como eu.
— E o que isso quer dizer?
— Pascal dirige um barco bem organizado. — Keller soltou uma nuvem de fumaça de cigarro. — Então Maurice faz um pedido e Pascal entrega as mercadorias, não é assim
que funciona?
— Como a Amazon.
— O que é Amazon?
— Você precisa sair do seu vale com mais frequência, Christopher. O mundo mudou desde que você morreu.
Keller ficou em silêncio. Gabriel desviou o olhar de Pascal Rameau, virando para o bairro montanhoso de Marselha perto da basílica. Lembrou-se de imagens do passado:
a porta de um apartamento imponente sobre o boulevard Saint-Rémy, um homem caminhando rapidamente pelas sombras frias da manhã, uma garota árabe com olhos castanhos
impiedosos parada no alto de uma escadaria de pedra. Com licença, monsieur. Está perdido? Ele apagou a lembrança, enfiou a mão no bolso de seu casaco para pegar
o celular, mas parou. Havia uma equipe de segurança do lado de fora do apartamento em Paris. Não aconteceria nada com ela.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Não — respondeu Gabriel. — Está tudo bem.
— Tem certeza?
Gabriel voltou a olhar para Pascal Rameau. Keller sorriu.
— É um pouco estranho, não acha?
— O quê?
— Que um homem como você pudesse estar associado com um ladrão de arte.
— Ou um assassino profissional — acrescentou Gabriel.
— O que você quer dizer?
— Que a vida é complicada, Christopher.
— Nem me fale.
Keller apagou seu cigarro e começou a acender outro.
— Por favor — falou Gabriel, baixo.
Keller colocou o cigarro de volta no maço.
— Quanto tempo vamos ter que esperar?
Gabriel olhou para seu relógio.
— Vinte e oito minutos.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque o trem dele chega a Saint-Charles às 13h34. A caminhada da estação ao porto vai levar 12 minutos.
— E se ele der uma parada no caminho?
— Não vai — respondeu Gabriel. — Monsieur Durand é muito confiável.
— Se é tão confiável, por que voltamos a Marselha?
— Porque ele tem um milhão de euros do dinheiro dos carabinieri e quero ter certeza de que vai terminar no lugar certo.
— No bolso de Pascal Rameau.
Gabriel não falou nada.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller acendeu um cigarro.
— Nem me fale.
Eram 13h45 quando eles o viram descendo a colina de La Canebière, o que significava que estava um minuto adiantado. Trajava um terno cinza de lã e um chapéu elegante,
na mão direita carregava uma maleta contendo um milhão de euros em efetivo. Caminhou até os pescadores e abriu caminho lentamente entre as mesas até parar na frente
de Pascal Rameau. Trocaram palavras, os produtos foram inspecionados com cuidado para ver se estavam frescos e finalmente um deles foi escolhido. Durand entregou
uma única nota, pegou um saco plástico com uma lula e caminhou para o lado sul do porto. Um momento depois, ele passou por Gabriel e Keller sem olhar para eles.
— Aonde ele vai agora?
— A um barco chamado Mistral.
— Quem é o dono do barco?
— René Monjean.
Keller ergueu uma sobrancelha.
— Como você conhece o Monjean?
— Outra história, para outro momento.
Durand agora estava caminhando por um dos cais flutuantes entre as fileiras de barcos de passeio. Como Gabriel previu, ele entrou em um iate chamado Mistral e se
enfiou na cabina. Ficou ali por 17 minutos precisamente, e quando reapareceu não estava mais com a pasta ou a lula. Passou pelo Renault velho de Keller e começou
a voltar para a estação de trem.
— Parabéns, Christopher.
— Pelo quê?
— Você é agora o orgulhoso proprietário de um Van Gogh que vale duzentos milhões de dólares.
— Ainda não.
— Maurice Durand é muito confiável — falou Gabriel. — Assim como René Monjean.
19
AMSTERDÃ
NOS NOVE DIAS SEGUINTES, o mundo da arte girou tranquilo em seu eixo dourado, sem saber da bomba que estava armada em seu ventre. Fazia bons almoços, bebia até tarde
da noite, deslizava cuidadoso nas colinas de Aspen e St. Moritz nas últimas neves boas da estação. Então, na terceira sexta-feira de abril, acordou com a notícia
de que uma calamidade havia acontecido no Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã. Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, tinha desaparecido.
A técnica empregada pelos ladrões não combinava com a sublime beleza de seu alvo. Eles escolheram o porrete no lugar do florete, a velocidade no lugar da sagacidade.
O chefe do departamento de polícia de Amsterdã mais tarde chamaria de melhor demonstração de “ataque surpresa” que já tinha visto, apesar de ser cuidadoso para não
revelar muitos detalhes, principalmente para não facilitar para outro bando de ladrões o roubo de outra obra de arte icônica e insubstituível. Ficou grato só por
uma coisa: que os ladrões não tivessem usado uma navalha para tirar a tela de sua moldura. Na verdade, falou, eles tinham tratado o quadro com uma ternura que beirava
a reverência. Muitos especialistas no campo da segurança de arte, no entanto, viram o trato cuidadoso da tela como um sinal perturbador. Para eles, sugeria um roubo
encomendado, realizado por criminosos profissionais altamente competentes. Um detetive aposentado da Scotland Yard falou cético sobre as perspectivas de recuperar
o quadro. O mais provável, ele falou, é que Doze Girassóis numa Jarra agora estava pendurado no museu dos desaparecidos e nunca mais seria visto pelo público de
novo.
O diretor do Rijksmuseum apareceu na mídia para fazer um apelo pelo retorno seguro do quadro. E quando fracassou em comover os ladrões, ele ofereceu uma recompensa
substancial, o que obrigou a polícia holandesa a desperdiçar incontáveis horas seguindo mentiras e pistas falsas. O prefeito de Amsterdã, um radical não arrependido,
achou que era preciso fazer uma manifestação. Três dias depois, várias centenas de ativistas de todos os tipos convergiram ao Museumplein para exigir que os ladrões
entregassem o quadro. Também defenderam o tratamento ético dos animais, o fim do aquecimento global, a legalização de todos os narcóticos recreativos, o fechamento
da prisão norte-americana em Guantánamo e o fim da ocupação da Cisjordânia e de Gaza. Ninguém foi preso e todos passaram uma boa tarde, especialmente os que se abasteceram
da cannabis e das camisinhas grátis. Até os mais liberais dos jornais holandeses acharam que o protesto tinha sido inútil. “Se isso é o melhor que podemos fazer”,
publicou um deles no editorial, “deveríamos nos preparar para o dia em que as paredes de nossos grandes museus estejam vazias”.
Nos bastidores, no entanto, a polícia holandesa estava envolvida em esforços muito mais tradicionais para recuperar o que era, sem dúvida, a mais famosa obra de
Van Gogh. Conversaram com seus informantes, grampearam telefones e contas de e-mail de ladrões conhecidos, e ficaram de olho em galerias de Amsterdã e Roterdã que
eram suspeitas de trabalhar com bens roubados. Mas quando passou outra semana sem progresso, decidiram abrir um canal com seus companheiros na polícia dos outros
países europeus. Os belgas os enviaram a uma corrida maluca até Lisboa, enquanto os franceses fizeram pouco mais do que desejar boa sorte. A mais intrigante dica
estrangeira veio do general Cesare Ferrari do Esquadrão de Arte, que afirmou ter ouvido um rumor de que a mafiya russa tinha organizado o roubo. Os holandeses fizeram
contato com o Kremlin atrás de informação. Os russos nem se dignaram a responder.
No momento, era o começo de maio e a polícia holandesa não tinha nenhuma pista importante sobre a localização do quadro. Publicamente, o chefe jurava redobrar seus
esforços. Em particular, admitia que, se não houvesse uma intervenção divina, o Van Gogh provavelmente estaria perdido para sempre. Dentro do museu, uma mortalha
escura estava pendurada no lugar do quadro. Um colunista britânico sarcasticamente implorou para que o diretor do museu aumentasse a segurança. Ou, ele brincou,
os ladrões iriam roubar a mortalha também.
Alguns em Londres acharam a coluna de mau gosto, mas a maior parte do mundo da arte coletivamente deu de ombros e continuou com sua vida. Os importantes leilões
de Velhos Mestres estavam se aproximando e todos diziam que a temporada seria a mais lucrativa em anos. Havia quadros para serem vistos, clientes para entreter e
estratégias de lances a criar. Julian Isherwood estava ocupadíssimo. Na quarta-feira daquela semana, ele foi visto no salão de vendas em Bonhams olhando uma paisagem
de rio italiano atribuído ao círculo de Agostino Buonamico. No dia seguinte, estava comendo no Dorchester com um turco expatriado de meios aparentemente ilimitados.
Então, na sexta-feira, ficou até mais tarde na Christie’s para realizar as devidas diligências em um João Batista do século XVIII da Escola de Bolonha. Como resultado,
o bar no Green’s já estava completamente lotado quando ele chegou. Parou para conversar com Jeremy Crabbe antes de se sentar em sua mesa de sempre, com sua garrafa
de Sancerre de sempre. O gorducho Oliver Dimbleby estava flertando desavergonhadamente com Amanda Clifton, a deliciosa nova chefe do departamento de Impressionistas
e Arte Moderna da Sotheby’s. Colocou um de seus cartões dourados na mão dela, jogou um beijo para Simon Mendenhall, depois veio até a mesa de Isherwood.
— Querido Julie — falou enquanto se sentava na cadeira vazia. — Conte-me algo absolutamente escandaloso. Um rumor maldoso. Uma fofoca um pouco maliciosa. Algo com
que possa aguentar o resto da semana.
Isherwood sorriu, serviu dois dedos de vinho na taça vazia de Oliver e se preparou para entretê-lo.
— Paris? É mesmo?
Isherwood assentiu, conspiratório.
— Quem falou?
— Não posso dizer.
— Vamos, minha flor. Está falando comigo. Tenho mais segredos sujos que a MI6.
— É por isso que não vou falar mais nada sobre isso.
Dimbleby pareceu ficar realmente chateado, o que, até aquele momento, Isherwood não achou que fosse possível.
— Minha fonte está conectada com o mundo da arte de Paris. É tudo que posso dizer.
— Bom, é uma revelação. Achei que você ia me dizer que ele era um sous-chef no Maxim’s.
Isherwood não falou nada.
— Está no meio ou é consumidor de arte?
— No meio.
— Vendedor?
— Use sua imaginação.
— E ele realmente viu o Van Gogh?
— Minha fonte nunca estaria na mesma sala que um quadro roubado — respondeu Isherwood com o toque certo de indignação honrada. — Mas ele tem certeza de que vários
negociantes e colecionadores viram fotografias Polaroid.
— Não sabia que elas ainda existiam.
— O quê?
— Câmeras Polaroid.
— Parece que sim.
— Por que usar uma Polaroid?
— Não deixam rastros digitais que podem ser seguidos pela polícia.
— Bom saber — falou Dimbleby, dando uma olhada no traseiro de Amanda Clifton. — Então, quem está vendendo?
— De acordo com os rumores, é um inglês desconhecido.
— Um inglês? Que canalha.
— Chocante — concordou Isherwood.
— Quanto está pedindo?
— Dez milhões.
— Por um maldito Van Gogh? É uma pechincha.
— Exatamente.
— Não vai durar muito, não por esse preço. Alguém vai agarrá-lo e escondê-lo para sempre.
— Minha fonte acha que nosso inglês poderia na verdade ter uma guerra de ofertas nas mãos.
— E é por isso — falou Dimbleby, com o tom repentinamente sério — que você não tem escolha: deve ir à polícia.
— Não posso.
— Por que não?
— Porque tenho que proteger minha fonte.
— Você é profissionalmente obrigado a contar à polícia. Moralmente, também.
— Adoro quando você vem me dar lições de moral, Oliver.
— Não precisa transformar em algo pessoal, Julie. Só estava tentando fazer um favor.
— Como me mandar em uma viagem com tudo pago para o lago Como?
— Vamos repetir essa conversa?
— Ainda tenho pesadelos com aquele corpo pendurado do maldito lustre. Parecia algo pintado por...
A voz de Isherwood falou. Dimbleby franziu a testa, pensativo.
— Por quem?
— Esquece.
— Descobriram quem o matou?
— Quem?
— Jack Bradshaw, seu tonto.
— Acho que foi o mordomo.
Dimbleby sorriu.
— Agora lembre-se, Oliver, tudo que lhe contei sobre o Van Gogh em Paris fica entre nous.
— Nunca vai sair dos meus lábios.
— Jure para mim, Oliver.
— Tem minha palavra de honra — falou Dimbleby. Após terminar de beber, contou para todo mundo no bar.
Na hora do almoço do dia seguinte, era o assunto principal no Wilton’s. Dali, foi se espalhando para a Galeria Nacional, a Tate e, finalmente, para a Galeria Courtauld,
que estava preocupada com o roubo por ter exposto o Autorretrato com a Orelha Cortada, de Van Gogh. Simon Mendenhall contou a todos na Christie’s; Amanda Clifton
fez o mesmo na Sotheby’s. Até o normalmente taciturno Jeremy Crabbe não conseguiu manter seu próprio conselho. Contou tudo em um longo e-mail para alguém no escritório
de Nova York da Bonhams e em pouco tempo já tinha se espalhado pelas galerias de Midtown e do Upper East Side. Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos imensamente
ricos, sussurrou na orelha de uma repórter do New York Times, mas a repórter já tinha ouvido de outra pessoa. Ela ligou para o chefe da polícia holandesa, que já
tinha ouvido também.
O holandês ligou para seu parceiro em Paris, que não deu muita bola. Mesmo assim, a polícia francesa começou a procurar um inglês bonito de meia-idade com cabelo
loiro, óculos com lentes azuis e um leve sotaque cockney. Encontraram vários, mas nenhum era um ladrão de arte. Entre os que caíram na rede estava o sobrinho do
secretário de Estado britânico, cujo sotaque era o elegante de Londres, não tendo nada de cockney. O secretário de Estado ligou para o ministro do interior francês
para reclamar, e o sobrinho foi liberado sem alarde.
Havia um aspecto do rumor, no entanto, que era totalmente real: Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, estava realmente em Paris. Tinha chegado ali
na manhã seguinte ao desaparecimento, no porta-malas de uma Mercedes. Foi primeiro à Antiquités Scientifiques, onde, enrolado em papel vegetal, passou duas noites
descansando em um armário climatizado. Então foi levado em mãos até o apartamento do Escritório com vista para Pont Marie. Gabriel rapidamente colocou o quadro em
um novo tensor e em um cavalete no estúdio que tinha montado no dormitório vazio. Naquela noite, enquanto Chiara estava cozinhando, ele selou a porta com fita adesiva
para evitar qualquer contaminação da superfície. E quando eles dormiram, o quadro dormia perto deles, banhado no brilho amarelado das lâmpadas ao longo do Sena.
Na manhã seguinte, ele foi a uma pequena galeria perto dos Jardins de Luxemburgo onde, passando-se por um alemão, comprou uma paisagem de Paris feita por um impressionista
secundário que usava o mesmo tipo de tela que Van Gogh. Voltou ao apartamento, limpou o quadro usando uma poderosa solução de solvente e removeu a tela do tensor.
Depois de cortar a tela até chegar às dimensões apropriadas, colocou-a no mesmo tipo de suporte no qual havia colocado Doze Girassóis numa Jarra, um suporte medindo
95x73 cm. Em seguida, cobriu a tela com uma camada fresca de base. Doze horas depois, quando a base tinha secado, ele preparou sua paleta com amarelo cromo e amarelo
ocre, e começou a pintar.
Trabalhou como Van Gogh tinha trabalhado, depressa, alla prima e com um toque de loucura. Às vezes, sentia como se Van Gogh estivesse parado olhando por cima do
seu ombro, cachimbo na mão, guiando todas suas pinceladas. Em outras, conseguia vê-lo no estúdio na Casa Amarela em Arles, apressando-se para capturar a beleza dos
girassóis em sua tela antes que murchassem e morressem. Era agosto de 1888 quando Van Gogh produziu seus primeiros estudos de girassóis em Arles; ele os pendurou
num quarto vazio, no qual Paul Gauguin, com muitos receios, ficou no final de outubro. O dominante Gauguin e o suplicante Vincent pintaram juntos pelo resto do outono,
geralmente trabalhando lado a lado nos campos ao redor de Arles, mas eles tinham a tendência de discutir violentamente sobre Deus e a arte. Uma das brigas ocorreu
na tarde de 23 de dezembro. Depois de enfrentar Gauguin com uma navalha, Vincent foi até o bordel na rue du Bout d’Aeles e cortou um pedaço de sua orelha esquerda.
Duas semanas depois, ao sair do hospital, voltou à Casa Amarela, sozinho e com uma atadura, e produziu três impressionantes repetições dos girassóis que tinha pintado
para o quarto de Gauguin. Até recentemente, um desses quadros estava pendurado no Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã.
Van Gogh provavelmente tinha pintado o Doze Girassóis numa Jarra de Amsterdã em algumas horas, assim como tinha feito com seu predecessor no mês de agosto. Gabriel,
no entanto, precisou de três dias para produzir o que mais tarde chamaria de uma versão de Paris. Com a adição da famosa assinatura de Van Gogh ao vaso, a falsificação
era idêntica ao original em todos os aspectos, menos um: não tinha craquelado, a fina rede de rachaduras nas superfícies que aparecem nos quadros com o tempo. Para
induzir um rápido craquelado, Gabriel tirou a tela de sua base e assou no forno por trinta minutos. Então, quando a tela tinha esfriado, segurou-a esticada entre
as duas mãos e arrastou na ponta da mesa de jantar, primeiro na horizontal, depois na vertical. O resultado foi a aparição de um craquelado instantâneo. Ele colocou
a tela de volta na base, cobriu com uma camada de verniz e colocou perto do original. Chiara não conseguia diferenciar um do outro. Nem Maurice Durand.
— Nunca achei que seria possível — disse o francês.
— O quê?
— Que alguém pudesse ser tão bom quanto Yves Morel. — Passou o dedo gentilmente sobre as pinceladas do impasto de Gabriel. — É como se o próprio Vincent tivesse
pintado.
— Esse é o objetivo, Maurice.
— Mas não é tão fácil de conseguir, mesmo para um restaurador profissional. — Durand se inclinou para mais perto da tela. — Que técnica você usou para produzir o
craquelado?
Gabriel contou.
— O método Van Meegeren. Muito eficiente, desde que você não queime o quadro. — Durand olhava da falsificação de Gabriel para o original de Van Gogh.
— Não comece a ter ideias, Maurice. Vai voltar a Amsterdã assim que terminarmos com isso.
— Sabe quanto eu conseguiria por ele?
— Dez milhões.
— Vinte, no mínimo.
— Mas você não roubou, Maurice. Foi roubado por um inglês com cabelo claro e óculos de lentes azuis.
— Um amigo meu acha que realmente o conheceu.
— Espero que não o desiluda dessa ideia.
— De jeito nenhum — respondeu Durand. — O submundo do comércio acredita que seu amigo tem o quadro e que já está negociando com vários compradores em potencial.
Não vai demorar muito para que “você sabe quem” morda a isca.
— Talvez ele precise de um pouco de encorajamento.
— De que tipo?
— Um aviso antes que o martelo seja batido. Você acha que pode fazer isso, Maurice?
Durand sorriu.
— Com apenas um telefonema.
20
GENEBRA
HAVIA UM ASPECTO DO NEGÓCIO que estava inquietando Gabriel desde o começo: as salas secretas de Jack Bradshaw no Freeport de Genebra. Via de regra, um empresário
utilizava os serviços únicos do Freeport porque queria evitar impostos ou porque estava escondendo algo. Gabriel suspeitava que os motivos de Bradshaw pertenciam
à segunda categoria. Mas como ter acesso sem uma ordem da justiça e acompanhamento policial? O Freeport não era o tipo de lugar onde dava para entrar com uma gazua
e um sorriso confiante. Gabriel precisaria de um aliado, alguém com o poder de abrir qualquer porta na Suíça sem fazer barulho. Ele conhecia alguém assim. Uma barganha
teria que ser feita, um acordo secreto. Seria complicado, mas as questões envolvendo a Suíça sempre eram.
O contato inicial foi breve e pouco promissor. Gabriel ligou para o homem em seu escritório em Berna e contou uma história incompleta sobre o que precisava e os
motivos. O homem de Berna não ficou muito impressionado, o que era de se esperar, apesar de ficar interessado.
— Onde você está agora? — perguntou ele.
— Sibéria.
— Com que velocidade pode chegar em Genebra?
— Posso pegar o próximo trem.
— Não sabia que havia um trem direto da Sibéria.
— Na verdade passa por Paris.
— Mande uma mensagem quando estiver na cidade. Vou ver o que posso fazer.
— Não posso ir até Genebra sem garantias.
— Se quiser garantias, ligue para um banqueiro suíço. Mas se quiser dar uma olhada naquelas salas, vai ter que ser do meu jeito. E nem pense em chegar perto do Freeport
sem mim — acrescentou o homem de Berna. — Se fizer isso, vai ficar na Suíça por um bom tempo.
Gabriel teria preferido circunstâncias melhores para fazer a viagem, mas era agora ou nunca. Com a cópia finalizada do Van Gogh, a parte Paris da operação consistia
em esperar. Ele podia passar o dia olhando para o telefone ou utilizar a pausa nas atividades de forma mais produtiva. No final, Chiara tomou a decisão por ele.
Gabriel trancou os dois quadros no armário do quarto, correu até a Gare de Lyon, e pegou o TGV das nove. Chegou em Genebra alguns minutos depois do meio-dia. Gabriel
ligou para o homem em Berna de um telefone público na estação.
— Onde você está? — perguntou o homem.
Gabriel respondeu.
— Vou ver o que posso fazer.
A estação de trem estava em um setor de Genebra que parecia um quartier antigo de uma cidade francesa. Gabriel caminhou até o lago e cruzou a Pont du Mont-Blanc
até a margem sul. Comeu tranquilamente uma pizza no Jardin Anglais e depois caminhou pelas ruas escuras da Cidade Velha do século XVI. Às quatro horas o ar estava
frio, com a noite já se aproximando. Com os pés doloridos, cansado de esperar, Gabriel ligou pela terceira vez para o homem em Berna, mas ninguém atendeu. Dez minutos
depois, enquanto caminhava pelas margens e entre as lojas exclusivas da rue du Rhône, ele ligou de novo. Dessa vez, o homem atendeu.
— Pode me chamar de antiquado — falou Gabriel —, mas realmente não gosto quando as pessoas me deixam esperando.
— Nunca prometi nada.
— Eu poderia ter ficado em Paris.
— Seria uma pena. Genebra é adorável nessa época do ano. E você teria perdido a chance de dar uma olhada dentro do Freeport.
— Quanto tempo mais vai me deixar esperando?
— Podemos fazer isso agora, se quiser.
— Onde você está?
— Vire-se.
Gabriel obedeceu.
— Maldito.
Seu nome era Christoph Bittel — ou pelo menos foi o nome que usou na primeira e única vez que tinham se visto. Ele trabalhava, ou era o que tinha dito na época,
na divisão de contraterrorismo da NDB, o serviço de segurança interna e inteligência da Suíça. Era magro e pálido, com uma testa larga que lhe dava a aparência,
merecida, de alguém muito inteligente. Sua mão pálida, esticada sobre o câmbio de um sedã esportivo alemão, parecia que tinha sido recentemente limpa de bactérias.
— Bem-vindo de volta a Genebra — falou Bittel enquanto saía do trânsito. — Seria bom se você tivesse feito uma reserva, para variar.
— Os dias de operações sem autorização na Suíça estão contados. Somos parceiros agora, lembra-se, Bittel?
— Não vamos nos empolgar, Allon. Não devemos estragar toda a diversão.
Bittel colocou uns óculos escuros largos, que fazia com que parecesse um louva-deus. Dirigia bem, mas com cuidado, como se tivesse contrabando no porta-malas e estivesse
tentando evitar o contato com as autoridades.
— Como era de se esperar — falou depois de um momento —, sua confissão forneceu horas de escuta interessante para nossos oficiais e ministros.
— Não foi uma confissão.
— Como descreveria aquilo?
— Fiz uma completa descrição das minhas atividades em solo suíço — falou Gabriel. — Em troca, você concordou em não me colocar na prisão pelo resto da minha vida.
— Algo que merecia. — Bittel balançou a cabeça devagar enquanto dirigia. — Assassinatos, roubos, sequestros, uma operação de contraterrorismo no cantão de Uri que
terminou com vários membros da Al-Qaeda mortos. Esqueci algo?
— Eu já chantageei um dos seus mais importantes empresários para conseguir acesso à cadeia de suprimentos nucleares do Irã.
— Ah, claro. Como pude me esquecer de Martin Landesmann?
— Foi uma das melhores coisas que fiz.
— E agora quer ter acesso a um depósito no Freeport de Genebra sem uma autorização da justiça?
— É bem evidente que você tem um amigo no Freeport disposto a deixar você dar uma olhada extrajudicial na mercadoria de vez em quando.
— É evidente. Mas eu geralmente gosto de saber o que vou encontrar antes de abrir uma fechadura.
— Quadros, Bittel. Vamos encontrar quadros.
— Quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— E o que acontece se o dono descobrir que nós entramos?
— O dono está morto. Não vai reclamar.
— Os depósitos no Freeport estão registrados em nome da empresa de Bradshaw. E a empresa continua viva.
— A empresa é uma fachada.
— Aqui é a Suíça, Allon. Empresas de fachada é o que nos mantêm nos negócios.
À frente, um semáforo passou de verde para amarelo. Bittel tinha tempo mais do que suficiente para atravessar o cruzamento. Em vez disso, ele foi diminuindo até
parar o carro.
— Ainda não me contou do que se trata tudo isso — falou ele, segurando o câmbio de marcha.
— Com bons motivos.
— E se conseguir abrir os depósitos? O que ganho em troca?
— Se eu estiver certo — respondeu Gabriel —, você e seus amigos no NDB um dia poderão anunciar a recuperação de várias obras de arte há muito desaparecidas.
— Arte roubada no Freeport de Genebra. Não é exatamente boa publicidade para a Confederação.
— Não dá para ter tudo, Bittel.
O semáforo abriu. Bittel tirou o pé do freio e acelerou devagar, como se estivesse tentando economizar combustível.
— Entramos, olhamos e saímos. E tudo que está no depósito fica no depósito. Entendido?
— Você é que manda.
Bittel dirigiu em silêncio, sorrindo.
— O que está achando engraçado? — perguntou Gabriel.
— Acho que gosto do novo Allon.
— Não posso dizer o quanto isso significa para mim, Bittel. Mas você não poderia dirigir um pouco mais rápido? Gostaria de chegar a Freeport ainda hoje.
Eles viram o lugar uns minutos depois, uma fileira de prédios brancos sem nenhum ornamento com uma placa vermelha no alto onde se podia ler PORTS FRANCS. No século
XIX, tinham sido pouco mais que um armazém onde produtos agrícolas eram guardados a caminho do mercado. Agora era um repositório seguro livre de impostos onde os
super-ricos do mundo guardavam todo tipo de tesouro: barras de ouro, joias, vinhos antigos, automóveis e, claro, arte. Ninguém sabia exatamente quantas grandes obras
de arte do mundo havia dentro dos cofres do Freeport de Genebra, mas acreditava-se que seria o suficiente para criar vários grandes museus. Muitas delas nunca mais
veriam a luz do dia; e se mudassem de mãos, seria de forma privada. Não era arte para ser vista e admirada. Era arte como mercadoria, arte como um investimento contra
tempos incertos.
Apesar da vasta riqueza contida dentro de Freeport, a segurança era realizada com a discrição suíça. A cerca ao redor do lugar era mais uma forma de desencorajar
do que uma barreira, e o portão através do qual Bittel dirigiu seu carro demorou para fechar. Câmeras de vídeo brotavam de todos os edifícios e, poucos segundos
depois da chegada deles, um agente de segurança apareceu de uma porta segurando uma prancheta numa mão e um rádio na outra. Bittel saiu do carro e falou umas palavras
com o guarda em francês fluente. O guarda voltou para sua sala e um momento depois apareceu uma morena bonita com saia e blusa apertadas. Ela entregou uma chave
a Bittel e apontou para o final do complexo.
— Imagino que essa seja sua amiga — falou Gabriel quando Bittel voltou ao carro.
— Nosso relacionamento é estritamente profissional.
— Uma pena.
Os endereços em Freeport eram uma combinação de prédio, corredor e porta do depósito. Bittel estacionou em frente ao edifício quatro e entrou com Gabriel. Do hall
de entrada saía um corredor com um número aparentemente infinito de portas. Uma estava aberta. Olhando para dentro, Gabriel viu um homem pequeno e de óculos sentado
atrás de uma mesa chinesa laqueada com um telefone no ouvido. O depósito tinha sido transformado em uma galeria de arte.
— Várias empresas de Genebra se mudaram para Freeport nos últimos anos — explicou Bittel. — O aluguel é mais barato do que na rue du Rhône e os clientes parecem
gostar da reputação intrigante do Freeport.
— É merecida.
— Não mais.
— Vamos ver.
Subiram pela escada até o terceiro andar. O depósito de Bradshaw estava localizado no corredor 12, atrás de uma porta metálica cinza onde se lia o número 24. Bittel
hesitou antes de enfiar a chave.
— Não vai explodir, não é?
— Boa pergunta.
— Isso não é engraçado.
Bittel abriu a porta, acendeu a luz e xingou baixinho. Havia quadros por todos os lados — quadros em molduras, quadros em extensores, quadros enrolados como tapetes
em um bazar persa. Gabriel desenrolou um no chão para Bittel ver. Mostrava um chalé no alto de um penhasco sobre o mar brilhando com flores silvestres.
— Monet? — perguntou Bittel.
Gabriel assentiu.
— Foi roubado de um museu na Polônia há uns vinte anos.
Ele desenrolou outra tela: uma mulher segurando um leque.
— Salvo engano — falou Bittel —, esse é um Modigliani.
— Não está enganado. Foi um dos quadros roubados do Museu de Arte Moderna em Paris, em 2010.
— O roubo do século. Lembro dele.
Bittel seguiu Gabriel até uma porta que dava para uma sala interna do depósito. Continha dois grandes cavaletes, uma lâmpada halógena, frascos de solvente e tintas,
locais para pigmentos, pincéis, uma paleta bastante usada e um catálogo da Christie’s do leilão de Velhos Mestres de Londres de 2004. Estava aberto em uma crucificação
atribuída a um seguidor de Guido Reni, executado de forma competente, mas pouco inspirada, não valendo nem o lucro do vendedor.
Gabriel fechou o catálogo e olhou ao redor do depósito. Era o estúdio secreto de um mestre em falsificações, pensou, na galeria de arte dos desaparecidos. Mas era
óbvio que Yves Morel tinha feito mais nessa sala do que falsificar quadros; também tinha feito muitas restaurações. Gabriel pegou a paleta e passou seu dedo pelas
amostras de tinta que havia na superfície. Ocre, dourado e carmim: as cores da Natividade.
— O que é isso? — perguntou Bittel.
— Provas de vida.
— Do que você está falando?
— O quadro esteve aqui — falou Gabriel. — Ele existe.
Havia 147 quadros nas duas salas do depósito — impressionistas, modernos, Velho Mestres — mas nenhum deles era o Caravaggio. Gabriel fotografou cada tela usando
a câmera em seu celular. Os únicos outros itens no depósito eram uma mesa e um pequeno cofre — pequeno demais, pensou Gabriel, para conter um retábulo italiano de
dois metros por dois e meio. Procurou nas gavetas da mesa, mas estavam vazias. Então se ajoelhou em frente ao cofre e girou o segredo de números com o dedão e o
indicador. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
— No que está pensando? — perguntou Bittel.
— Estou tentando imaginar quanto tempo demoraria para trazer um arrombador aqui.
Bittel sorriu triste.
— Talvez da próxima vez.
É, pensou Gabriel. Da próxima vez.
Eles voltaram à estação de trem passando pela hora do rush de Genebra. Cruzando a Pont du Mont-Blanc, Bittel pressionou Gabriel para obter mais informações sobre
o caso. E quando suas perguntas não resultaram em respostas claras, insistiu em ser avisado com antecedência se o itinerário de Gabriel incluísse outra visita à
Suíça. Gabriel concordou imediatamente, embora os dois soubessem que era uma promessa vazia.
— Em algum momento — falou Bittel —, vamos ter que limpar esse depósito e devolver esses quadros a seus verdadeiros donos.
— Em algum momento — concordou Gabriel.
— Quando?
— Não sei.
— Digo que você tem um mês. Depois disso, terei que falar sobre o assunto para a Polícia Federal.
— Se fizer isso — falou Gabriel — vai aparecer na imprensa, e a Suíça vai terminar com outro olho roxo.
— Estamos acostumados com isso.
— Nós também.
Eles chegaram à estação a tempo de Gabriel pegar o trem das quatro e meia de volta a Paris. Estava escuro quando ele chegou; subiu num táxi que o esperava e deu
ao motorista um endereço perto do apartamento seguro. Mas quando o carro começou a andar, Gabriel sentiu que seu celular estava vibrando. Atendeu a ligação, ouviu
por um momento e depois desligou.
— Mudanças de planos — falou ao motorista.
— Para onde?
— Para a rue de Miromesnil.
— Como quiser.
Gabriel enfiou o celular no bolso e sorriu. O jogo estava começando, pensou. Finalmente, o jogo estava começando.
21
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
NO COMEÇO, MAURICE DURAND TENTOU reivindicar privilégios de confidencialidade sobre a identidade de quem havia ligado. Sob pressão, no entanto, ele admitiu que tinha
sido Jonas Fischer, um rico empresário e colecionador famoso de Munique que usava com regularidade os serviços especiais de monsieur Durand. Herr Fischer deixou
claro desde o começo que não era ele que estava interessado no Van Gogh, que estava intercedendo em nome de um amigo também colecionador que, por motivos óbvios,
não podia dizer o nome. Parecia que o segundo colecionador já tinha despachado um representante a Paris, baseado em certos rumores que davam voltas pelo mundo da
arte. Herr Fischer perguntou se Durand poderia apontar a direção correta ao representante.
— O que você falou para ele? — perguntou Gabriel.
— Falei que não sabia onde estava o Van Gogh, mas que poderia dar uns telefonemas.
— E se você puder ser de ajuda?
— Devo ligar para o representante diretamente.
— Suponho que ele não tenha um nome.
— Só um número de telefone — respondeu Durand.
— Bem profissional.
— Pensei exatamente o mesmo.
Estavam no pequeno escritório nos fundos da loja de Durand. Gabriel estava encostado no batente da porta; Durand, sentado em sua pequena mesa dickensiana. Na frente
dele havia um microscópio de latão, do final do século XIX, de Vérick de Paris.
— Será quem estamos procurando? — perguntou Gabriel.
— Um homem como Herr Fischer não estaria envolvido com ninguém que não fosse um colecionador sério. Também me contou que seu amigo fez várias aquisições importantes
ultimamente.
— Uma dessas aquisições foi um Caravaggio?
— Não perguntei.
— Provavelmente é melhor que não pergunte.
— Provavelmente — concordou Durand.
Um silêncio caiu entre eles.
— Então? — perguntou o francês.
— Diga para ele estar no pátio de Saint-Germain-des-Prés às duas da tarde amanhã, perto da porta vermelha. Avise para levar seu celular, mas nenhuma arma. Não fale
mais nada. Só diga a ele o que fazer, então desligue.
Durand pegou o fone e discou o número.
Saindo da loja cinco minutos depois, o ladrão de arte e o antigo e futuro agente do serviço secreto israelense praticamente não trocaram uma palavra ou olhar. O
ladrão de arte se dirigiu à brasserie do outro lado da rua; o agente, para a embaixada israelense no número três da rue Rabelais. Entrou no prédio pela porta traseira,
desceu até a sala de comunicações seguras e ligou para o chefe de Serviços Domésticos, a divisão do Escritório que administrava as propriedades seguras. Disse que
precisava de algo perto de Paris, mas isolado, de preferência no norte. Não precisava ser nada grande, acrescentou. Não estava planejando fazer nada divertido.
— Lamento — falou o chefe de Serviços Domésticos. — Posso permitir que fique em uma propriedade existente, mas não posso adquirir uma nova sem a aprovação do andar
superior.
— Talvez você não tenha ouvido quando falei meu nome.
— O que devo falar ao Uzi?
— Nada, claro.
— Para quando precisa dela?
— Ontem.
Às nove da manhã seguinte, o Serviços Domésticos tinha fechado a compra de uma fazenda pitoresca na região de Picardia, nos arredores da vila de Andeville. Uma grande
cerca viva protegia a entrada de quem passava do lado de fora, e da ponta de seu bonito jardim traseiro era possível ver as plantações que lembravam uma colcha de
retalhos. Gabriel e Chiara chegaram na hora do almoço e esconderam os dois Van Gogh na adega. Então, Gabriel imediatamente voltou para Paris. Deixou o carro em um
estacionamento perto da estação Odéon Métro e caminhou pelo boulevard até a Place Saint-Germain-des-Prés. Numa esquina da praça lotada havia um café chamado Le Bonaparte.
Sentado em uma mesa de frente para a rua estava Christopher Keller. Gabriel o cumprimentou em francês e se sentou ao lado dele. Olhou para seu relógio. Eram 13h55.
Pediu um café e olhou para a porta vermelha da igreja.
Não foi difícil avistá-lo; naquela perfeita tarde de primavera, com o sol brilhando em um céu sem nuvens e um vento fraco rondando as ruas cheias, era o único que
tinha vindo sozinho até a igreja. Tinha altura mediana, cerca de 1,75 m, e era magro. Seus movimentos eram fluidos e tranquilos — como os de um jogador de futebol,
pensou Gabriel, ou um soldado de elite. Usava um casaco esportivo leve, uma camisa branca e calça de gabardine cinza. Um chapéu de palha encobria seu rosto, óculos
escuros escondiam seus olhos. Ele caminhou até a porta vermelha e fingiu consultar um guia turístico. Duas jovens, uma de shorts, a outra em um vestido sem alças,
estavam sentadas nos degraus, com as pernas desnudas esticadas. Claramente, havia algo no homem que deixou as duas desconfortáveis. Elas esperaram mais um pouco,
depois se levantaram e cruzaram a praça.
— O que você acha? — perguntou Keller.
— Acho que é o próprio.
O garçom trouxe o café de Gabriel. Ele colocou açúcar e mexeu pensativo enquanto olhava o homem parado perto da porta vermelha da igreja.
— Não vai ligar para ele?
— Não são duas horas ainda, Christopher.
— Já são quase.
— É melhor não parecer muito ansioso. Lembre-se, já temos um comprador no anzol. Nosso amigo ali levantou sua mão atrasado no leilão.
Gabriel continuou na mesa até o relógio na torre da igreja mostrar dois minutos depois da hora. Então se levantou e caminhou para o interior do café. Estava deserto,
exceto pelos funcionários. Ele se aproximou da janela, tirou o celular do bolso do casaco e ligou. Alguns segundos depois, o homem parado na frente da igreja atendeu.
— Bonjour.
— Não precisa falar francês só porque estamos em Paris.
— Prefiro francês, se não se importa.
Ele pode preferir francês, pensou Gabriel, mas não era sua língua nativa. Não estava mais fingindo olhar o seu guia. Estava observando a praça, procurando um homem
com um celular ao ouvido.
— Veio sozinho? — perguntou Gabriel.
— Como está me observando agora, sabe que a resposta é sim.
— Vejo um homem parado onde deveria estar, mas não sei se ele veio sozinho.
— Ele veio.
— Foi seguido?
— Não.
— Como pode ter certeza?
— Tenho certeza.
— Como devo chamá-lo?
— Pode me chamar de Sam.
— Sam?
— Isso, Sam.
— Tem alguma arma, Sam?
— Não.
— Tire seu blazer.
— Por quê?
— Quero ver se tem algo debaixo que não deveria estar ali.
— Isso é realmente necessário?
— Quer ver o quadro ou não?
O homem colocou o guia e o celular nos degraus, tirou seu blazer e o dobrou no braço. Então pegou o celular de novo e perguntou:
— Satisfeito?
— Vire-se e olhe para a igreja.
O homem girou uns 45 graus.
— Mais.
Outros 45.
— Muito bom.
O homem voltou à sua posição original e perguntou:
— E agora?
— Você vai dar uma caminhada.
— Não quero caminhar.
— Não se preocupe, Sam. Não vai ser uma caminhada longa.
— Onde quer que eu vá?
— Desça o boulevard até o Quartier Latin. Sabe chegar no Quartier Latin, Sam?
— Claro.
— Conhece Paris?
— Bastante.
— Não olhe para trás nem pare em lugar nenhum. E não use seu celular, também. Poderia perder minha próxima ligação.
Gabriel desligou e voltou até Keller.
— Então? — perguntou o inglês.
— Acho que encontramos Samir. E acho que é um profissional.
— Estamos no jogo?
— Vamos saber em um minuto.
Do outro lado da praça, Sam estava colocando seu blazer esportivo. Ele enfiou o celular no bolso do peito, jogou o guia no lixo e depois começou a caminhar pelo
boulevard Saint-Germain. Uma curva à direita o levaria a Les Invalides; à esquerda, ao Quartier Latin. Ele hesitou por um momento e depois virou à esquerda. Gabriel
contou lentamente até vinte antes de se levantar e segui-lo.
Pelo menos ele era capaz de seguir instruções. Caminhou reto pelo boulevard, passou as lojas e cafés lotados, sem parar ou olhar para trás. Isso permitiu que Gabriel
mantivesse o foco em sua tarefa principal, que era a contrainteligência. Não viu nada que sugerisse que Sam estava trabalhando com um cúmplice. Nem parecia que estivesse
sendo seguido pela polícia francesa. Estava limpo, pensou Gabriel. Tão limpo quanto poderia estar um comprador de arte roubada.
Depois de dez minutos caminhando reto, Sam estava perto do ponto onde o boulevard se encontrava com o Sena. Gabriel, meio quarteirão atrás, tirou seu celular do
bolso e ligou. Novamente Sam atendeu de imediato, com o mesmo bonjour cordial.
— Vire à esquerda na rue du Cardinal Lemoine e siga até o Sena. Cruze a ponte até a Île Saint-Louis e depois siga reto até eu ligar de novo.
— Muito longe ainda?
— Não está longe, Sam. Você está quase lá.
Sam fez a curva como instruído e cruzou a Pont de la Tournelle até a pequena ilha no meio do Sena. Uma série de cais pitorescos seguia o perímetro da ilha, mas só
uma única rua, a rue Saint-Louis, em l’Île, cortava sua extensão. Com uma ligação, Gabriel instruiu Sam para virar à esquerda de novo.
— Muito longe ainda?
— Só mais um pouco, Sam. E não olhe para trás.
Era uma rua estreita, com turistas caminhando e olhando as vitrines. No lado oeste havia uma sorveteria e ao lado desta uma brasserie com uma boa vista de Notre
Dame. Gabriel ligou para Sam e deu as instruções finais.
— Quanto tempo mais vai me deixar esperando?
— Infelizmente não vou almoçar com você, Sam. Sou apenas o assistente.
Gabriel cortou a ligação sem falar mais nada e viu Sam entrar na brasserie. Um garçom o cumprimentou, depois gesticulou para uma mesa lateral ocupada por um inglês
loiro de óculos de lentes azuis. O inglês se levantou e, sorrindo, esticou a mão.
— Meu nome é Reg. — Gabriel ouviu-o dizer antes de dobrar a esquina. — Reg Bartholomew. E você deve ser o Sam.
CONTINUA
11
JARDIN DES TUILERIES, PARIS
DOIS SÉCULOS APÓS SUA MORTE, ele tinha sido quase esquecido. Seus quadros juntavam poeira nos depósitos de galerias e museus, muitos eram atribuídos equivocadamente,
suas figuras dramaticamente iluminadas recuando lentamente no vazio de seus característicos fundos negros. Finalmente, em 1951, o famoso historiador de arte Roberto
Longhi reuniu suas obras conhecidas e fez uma exposição para o mundo no palazzo Reale, em Milão. Muitos dos que visitaram a incrível exposição nunca tinham ouvido
falar de Caravaggio.
Os detalhes de sua vida eram no máximo esboços, fracas linhas de carvão em uma tela em branco. Nasceu no vigésimo nono dia de setembro de 1571, provavelmente em
Milão, onde seu pai era um construtor e arquiteto bem-sucedido. No verão de 1576, a peste voltou à cidade. Quando ela finalmente passou, um quinto da diocese de
Milão tinha morrido, incluindo o pai, o avô e o tio do jovem Caravaggio. Em 1584, aos 13 anos, ele entrou na oficina de Simone Peterzano, um maçante, mas competente,
maneirista que afirmava ter sido pupilo de Ticiano. O contrato, que ainda existe, obrigava Caravaggio a treinar “noite e dia” por um período de quatro anos. Não
se sabe se ele foi bem ou mesmo se completou seu aprendizado. Claramente, o trabalho fraco e sem vida de Peterzano teve pouca influência sobre ele.
As circunstâncias exatas sobre a saída de Caravaggio de Milão estão, como quase todo o resto de sua vida, perdidas no tempo e envoltas em mistério. Registros indicam
que sua mãe morreu em 1590 e que, de seus modestos bens, ele recebeu uma herança igual a seiscentos scudi de ouro. Em um ano o dinheiro tinha acabado. Não existe
nenhuma sugestão, em lugar nenhum, de que o volúvel jovem que tinha sido treinado para ser artista pintou algo em seus últimos anos em Milão. Parece que estava muito
ocupado com outras atividades. Giovanni Pietro Bellori, autor de uma de suas primeiras biografias, sugere que Caravaggio teve de fugir da cidade, talvez depois de
um incidente envolvendo uma prostituta e uma navalha, talvez depois do assassinato de um amigo. Ele viajou para o leste, até Veneza, escreveu Bellori, onde ficou
enfeitiçado pela paleta de Giorgione. Então, no outono de 1592, foi para Roma.
A partir daí, a vida de Caravaggio começa a tomar relevos claros. Entrou na cidade, como todos os migrantes do norte, através dos portões do porto del Popolo e chegou
ao bairro dos artistas, uma confusão de ruas sujas ao redor do Campo Marzio. De acordo com o pintor Baglione, ele dividiu um quarto com um artista da Sicília, embora
outro biógrafo, um médico que conheceu Caravaggio em Roma, tenha registrado que ele encontrou alojamento na casa de um padre que o forçava a limpar a casa e só lhe
dava verduras para comer. Caravaggio chamava o padre de Monsignor Insalata e saiu da casa dele após poucos meses. Viveu em dezenas de lugares diferentes durante
seus primeiros anos em Roma, inclusive na oficina de Giuseppe Cesari, onde dormia num colchão de palha. Andava pelas ruas com meias pretas esfarrapadas e uma capa
preta surrada. Seu cabelo preto era um caos completo.
Cesari só permitia que Caravaggio pintasse flores e frutas, uma das tarefas mais baixas para um aprendiz em um ateliê. Entediado, convencido de seu talento superior,
ele começou a produzir seus próprios quadros. Vendeu alguns nos becos perto da Piazza Navona. Mas um deles, uma imagem luminosa de um garotinho romano sendo enganado
por uma dupla de trapaceiros, foi vendido para um negociante cuja loja estava localizada em frente ao palazzo ocupado pelo cardeal Francesco del Monte. A transação
iria mudar completamente o curso da vida de Caravaggio, pois o cardeal, conhecedor e patrono das artes, gostou muito do quadro e o comprou por alguns scudi. Logo
depois, comprou um segundo quadro de Caravaggio mostrando uma vidente que, sorrindo, roubava o anel de um garoto de Roma enquanto lia a palma de sua mão. Em algum
momento, os dois homens se conheceram, embora não esteja claro quem tomou a iniciativa. O cardeal ofereceu ao jovem artista comida, roupas, alojamento e um estúdio
no palazzo. Tudo que pedia de Caravaggio era que ele pintasse. O artista, com 24 anos na época, aceitou a proposta do cardeal. Foi uma das poucas decisões sábias
que tomou.
Depois de se estabelecer em seu quarto no palazzo, Caravaggio produziu vários quadros para o cardeal e seu círculo de amigos ricos, incluindo O Tocador de Ataúde,
Os Músicos, Baco, Marta e Maria Madalena e São Francisco de Assis em Êxtase. Então, em 1599, recebeu seu primeiro pedido público: dois quadros retratando cenas da
vida de São Mateus para a capela Contarelli na Igreja de San Luigi dei Francesi. Os quadros, apesar de controversos, instantaneamente estabeleceram Caravaggio como
o artista mais procurado de Roma. Outros pedidos logo se seguiram, incluindo O Martírio de São Pedro e A Conversão de São Paulo para a capela Cerasi da Igreja de
Santa Maria del Popolo, A Ceia de Emaús, João Batista, A Captura de Cristo, A Incredulidade de São Tomé e O Sacrifício de Isaac. Nem todas suas obras foram aprovadas
quando ficaram prontas. Madonna e a Criança com Santa Ana foi retirada da basílica de São Pedro porque a hierarquia da igreja aparentemente não aprovou o decote
de Maria. O retrato dela com pernas nuas em Morte da Virgem foi considerado tão ofensivo que a igreja que fez o pedido, Santa Maria della Scala, em Trastevere, se
recusou a aceitá-lo. Rubens afirmou que era uma das melhores obras de Caravaggio e o ajudou a encontrar um comprador.
O sucesso como pintor não trouxe tranquilidade à vida pessoal de Caravaggio — na verdade, ela continuava tão caótica e violenta como sempre. Foi preso por andar
com uma espada sem autorização no Campo Marzio. Enfiou um prato de alcachofras no rosto de um garçom na Osteria del Moro. Foi preso por jogar pedras na sbirri, a
polícia papal, na via dei Greci. O incidente de jogar pedras ocorreu às nove e meia de uma noite de outubro de 1604. Nesse momento, Caravaggio estava morando em
uma casa alugada apenas com Cecco, seu aprendiz e modelo ocasional, como companhia. Sua aparência física tinha se deteriorado; era novamente a figura desleixada
usando roupas pretas desalinhadas que vendia seus quadros na rua. Apesar de ter várias encomendas, trabalhava esporadicamente. De alguma forma conseguiu entregar
um monumental retábulo chamado A Deposição de Cristo. Foi considerado por muitos como seu melhor quadro.
Houve mais atritos com as autoridades — seu nome aparece nos registros policiais de Roma cinco vezes só em 1605 —, mas nada mais sério do que o incidente que aconteceu
em 28 de maio de 1606. Era um domingo e, como sempre, Caravaggio fora até as quadras de via della Pallacorda para uma partida de tênis. Lá, ele encontrou Ranuccio
Tomassoni, um lutador de rua e rival nos afetos de uma linda e jovem cortesã que tinha posado para vários dos quadros de Caravaggio. Palavras foram trocadas, e espadas,
desembainhadas. Os detalhes do mêlée são pouco claros, mas terminou com Tomassoni caído no chão com uma profunda ferida no alto de sua coxa. Morreu pouco depois
e, à noite, Caravaggio era o alvo de uma caçada humana por toda a cidade. Procurado por assassinato, um crime com uma única punição possível, ele fugiu para as colinas
Albanas. Nunca mais veria Roma.
Foi para o sul até Nápoles, onde sua reputação como grande pintor o precedia, a despeito do assassinato. Ele deixou para trás As Sete Obras de Misericórdia antes
de navegar para Malta. Lá foi admitido nos Cavalheiros de Malta, uma honra cara pela qual pagou com quadros e, por um breve momento, viveu como um nobre. Então,
uma briga com outro membro da ordem o levou novamente a passar um tempo na prisão. Conseguiu escapar e fugiu para a Sicília onde, segundo informações, era uma alma
louca e perturbada que dormia com uma adaga. Mesmo assim, conseguia pintar. Em Siracusa, ele deixou O Enterro de Santa Lúcia. Em Messina, produziu dois quadros monumentais:
A Ressurreição de Lázaro e o doloroso Adoração dos Pastores. E para o Oratorio di San Lorenzo, em Palermo, pintou Natividade com São Francisco e São Lourenço. Trezentos
e cinquenta e nove anos depois, na noite de 18 de outubro de 1969, dois homens entraram na capela através de uma janela e cortaram a tela de sua moldura. Uma cópia
do quadro está pendurada atrás da mesa do general Cesare Ferrari no palazzo em Roma. Era o alvo número um do Esquadrão de Arte.
— Suspeito que o general já saiba sobre a conexão entre o Caravaggio e Jack Bradshaw — falou Maurice Durand. — Isso explicaria por que ele insistiu tanto para que
você assumisse o caso.
— Você conhece bem o general — falou Gabriel.
— Não tanto — respondeu o francês. — Mas eu o encontrei uma vez.
— Onde?
— Aqui em Paris, em um simpósio sobre crimes contra a arte. O general era um dos palestrantes.
— E você?
— Eu estava na plateia.
— Com que desculpa?
— Como negociante de antiguidades valiosas, claro. — Durand sorriu. — Ele me pareceu um homem sério, muito capaz. Já faz tempo que roubei um quadro na Itália.
Estavam caminhando por uma trilha de cascalho da allée centrale. As nuvens pesadas tinham drenado as cores dos jardins. Era Sisley em vez de Monet.
— É possível? — perguntou Gabriel.
— Que o Caravaggio esteja à venda?
Gabriel assentiu. Durand pareceu pensar muito antes de responder.
— Ouvi todo tipo de história — falou, finalmente. — Que o colecionador que encomendou o roubo se recusou a aceitar o quadro porque ficou muito danificado quando
foi cortado da moldura. Que os chefes da máfia da Sicília costumavam levá-lo durante as reuniões como um tipo de troféu. Que foi destruído em uma enchente. Que foi
comido por ratos. Mas também ouvi rumores — acrescentou ele — de que já esteve à venda antes.
— Quanto valeria no mercado negro?
— Os quadros que Caravaggio produziu enquanto estava fugindo não possuem a mesma profundidade de suas grandes obras romanas. Mesmo assim — acrescentou Durand —,
um Caravaggio ainda é um Caravaggio.
— Quanto, Maurice?
— A regra geral é que um quadro roubado retém dez por cento de seu valor no mercado negro. Se o Caravaggio valesse cinquenta milhões no mercado aberto, sujo chegaria
a uns cinco milhões.
— Não existe mercado aberto para um Caravaggio.
— O que significa que é realmente único. Alguns homens no mundo pagariam quase qualquer valor por ele.
— Você conseguiria vendê-lo?
— Com apenas um telefonema.
Chegaram ao pequeno cais onde vários pequenos veleiros estavam navegando em um minúsculo mar revirado por uma tempestade. Gabriel parou na beira e explicou como
tinha encontrado três quadros roubados — um Parmigianino, um Renoir e um Klimt — escondidos sob cópias de menor valor na villa de Jack Bradshaw no lago Como. Durand,
olhando os barcos, assentia pensativo.
— Parece que estavam prontos para transporte e venda.
— Por que pintar por cima?
— Assim poderiam ser vendidos como obras legítimas. — Durand parou, depois acrescentou: — Obras legítimas de menor valor, claro.
— E quando as vendas fossem finalizadas?
— Uma pessoa como você seria contratada para remover as imagens de cima e preparar os quadros para serem pendurados.
Duas turistas, jovens garotas, posavam para uma fotografia do lado oposto do cais. Gabriel puxou Durand pelo cotovelo e o guiou até a pirâmide do Louvre.
— A pessoa que pintou esses quadros falsos era boa — falou ele. — Boa o suficiente para enganar alguém como eu numa primeira olhada.
— Há muitos artistas talentosos por aí que estão dispostos a oferecer seus serviços para nós, que estamos no lado escuro do negócio. — O francês olhou para Gabriel
e perguntou: — Já teve a ocasião de falsificar um quadro?
— Eu posso ter falsificado um Cassatt uma vez.
— Por uma boa causa, sem dúvida.
Eles continuaram andando, o cascalho fazendo barulho debaixo de seus pés.
— E você, Maurice? Já precisou dos serviços de um falsificador?
— Estamos entrando em território sensível — falou Durand.
— Cruzamos essa fronteira há algum tempo, eu e você.
Eles chegaram à place du Carrousel, viraram à direta e foram até o rio.
— Sempre que possível — falou Durand —, prefiro criar a ilusão de que um quadro roubado não foi realmente roubado.
— Deixa uma cópia no lugar.
— Chamamos de obras substitutas.
— Quantas estão penduradas em museus e casas na Europa?
— Preferia não falar.
— Vamos lá, Maurice.
— Há um homem que faz todo esse trabalho para mim. Ele é rápido, confiável e bastante bom.
— Esse homem tem nome?
Durand hesitou antes de responder. O nome do falsificador era Yves Morel.
— Onde ele estudou?
— Na École Nationale des Beaux-Arts, em Lyon.
— Bastante prestigiada — falou Gabriel. — Por que ele mesmo não se tornou artista?
— Ele tentou. Não saiu como planejava.
— Então se vingou do mundo da arte tornando-se um falsificador?
— Mais ou menos isso.
— Quanta nobreza.
— Quem tem teto de vidro...
— A sua relação é exclusiva?
— Gostaria que fosse, mas não tenho tanto trabalho para ele. Em certas ocasiões, ele aceita pedidos de outros clientes. Um desses clientes era um intermediário recém-falecido
chamado Jack Bradshaw.
Gabriel parou de caminhar e se virou para encarar Durand.
— E é por isso que você sabe tanto sobre as operações de Bradshaw — falou ele. — Estiveram dividindo os serviços do mesmo falsificador.
— Foi tudo bastante Caravaggiesco — respondeu Durand, assentindo.
— Onde Morel trabalhava para Bradshaw?
— Em um quarto no Freeport de Genebra. Bradshaw tinha uma galeria de arte bastante interessante ali. Yves costumava chamar de galeria dos desaparecidos.
— Onde ele está agora?
— Aqui em Paris.
— Onde, Maurice?
Durand tirou a mão do bolso de seu casaco e indicou que o falsificador poderia ser encontrado em algum ponto perto de Sacré-Coeur. Entraram no metrô, o ladrão de
arte e o agente da inteligência, e foram para Montmartre.
12
MONTMARTRE, PARIS
YVES MOREL VIVIA EM UM prédio de apartamentos na rue Ravignon. Quando Durand apertou o botão da campainha, ninguém atendeu.
— Ele deve estar na place du Tertre.
— Fazendo o quê?
— Vendendo cópias de quadros impressionistas famosos para turistas para que as autoridades francesas acreditem que ele tem uma renda legítima.
Caminharam até a praça, uma confusão de cafés a céu aberto com artistas de rua perto da basílica, mas Morel não estava em seu ponto de sempre. Então foram até seu
bar favorito na rue Norvins, mas não havia nenhum sinal dele ali também. Não atendeu uma ligação no seu celular.
— Merde —, falou Durand baixinho, enfiando o celular de novo no bolso do casaco.
— E agora?
— Tenho uma chave do seu apartamento.
— Por quê?
— De vez em quando, ele deixa coisas em seu estúdio para que eu recolha.
— Parece alguém que confia em você.
— Contrariando o dito popular — falou Durand —, há muita honra entre ladrões.
Eles caminharam de volta ao prédio e tocaram a campainha pela segunda vez. Não havendo resposta, Durand tirou um molho de chaves de seu bolso e usou uma para abrir
a porta. Usou a mesma chave para abrir a porta do apartamento de Morel. Estava tomado pela escuridão. Durand mexeu no interruptor da parede, iluminando uma grande
sala aberta que funcionava como estúdio e sala de estar. Gabriel caminhou até um cavalete, sobre o qual havia uma cópia não finalizada de uma paisagem de Pierre
Bonnard.
— Ele vai vender essa para os turistas na place du Tertre?
— Essa é para mim.
— Para quê?
— Use sua imaginação.
Gabriel examinou o quadro mais de perto.
— Se fosse adivinhar — falou ele —, sua intenção é pendurá-lo no Musée des Beaux-Arts, em Nice.
— Você tem um bom olho.
Gabriel se afastou do cavalete e caminhou até a mesa grande e retangular no centro do estúdio. Em cima dela havia uma lona manchada de tinta. Embaixo havia um objeto
de aproximadamente 1,82 m de comprimento e 60 cm de largura.
— Morel é escultor?
— Não.
— Então o que está debaixo da lona?
— Não sei, mas é melhor você dar uma olhada.
Gabriel levantou a ponta da lona e deu uma espiada.
— E então? — perguntou Durand.
— Acho que você vai ter que encontrar outra pessoa para terminar o Bonnard, Maurice.
— Deixe-me ver.
Gabriel levantou a lona.
— Merde — falou Durand baixinho.
PARTE DOIS
GIRASSÓIS
13
SAN REMO, ITÁLIA
O GENERAL FERRARI ESPERAVA PERTO DAS paredes da velha fortaleza em San Remo às duas e meia da tarde seguinte. Usava terno, casaco de lã e óculos escuros que escondiam
seu olho falso que tudo via. Gabriel, vestido de jeans e couro, parecia o irmão mais jovem, o que tinha feito todas as piores escolhas na vida e que precisava, outra
vez, de dinheiro. Enquanto caminhavam pela fonte suja, ele contou ao general o que tinha descoberto, apesar de não revelar suas fontes. O general não pareceu surpreso
com nada do que estava ouvindo.
— Você esqueceu uma coisa — falou ele.
— E qual é?
— Jack Bradshaw não era diplomata. Era espião.
— Como você sabia?
— Todo mundo no negócio de arte sabia do passado de Bradshaw. Era um dos motivos pelos quais ele era tão bom. Mas não se preocupe — acrescentou o general. — Não
vou complicar sua situação com seus amigos de Londres. Tudo que quero é meu Caravaggio.
Eles deixaram a fonte e desceram a colina até o centro da cidade. Gabriel ficou pensando por que alguém iria querer passar as férias ali. A cidade lembrava uma mulher
que já tinha sido bonita e que se arrumava para que pintassem seu retrato.
— Você me enganou — disse ele.
— De jeito nenhum — respondeu o general.
— Como descreveria o que fez?
— Eu não contei certos fatos para não atrapalhar sua investigação.
— Sabia que o Caravaggio estava à venda quando me pediu para investigar a morte de Bradshaw?
— Ouvi rumores sobre isso.
— Já ouviu rumores sobre um colecionador comprando muita arte roubada?
O general assentiu.
— Quem é?
— Não tenho ideia.
— Está me contando a verdade dessa vez?
O general colocou sua mão boa sobre o coração.
— Não sei a identidade da pessoa que está comprando toda peça de arte roubada que consegue encontrar. Nem sei quem está por trás da morte de Jack Bradshaw. — Ele
fez uma pausa, depois acrescentou: — Apesar de suspeitar que seja a mesma pessoa.
— Por que Bradshaw foi assassinado?
— Acho que pode ter perdido sua utilidade.
— Porque ele entregou o Caravaggio?
O general assentiu em dúvida.
— Então por que foi torturado primeiro?
— Talvez seus assassinos quisessem um nome.
— Yves Morel?
— Bradshaw deve ter usado Morel para dar uma melhorada no quadro de modo que pudesse ser vendido. — Ele olhou para Gabriel e perguntou: — Como o mataram?
— Quebraram seu pescoço. Parece ter sido uma separação completa da medula.
O general fez uma careta.
— Silencioso e sem sangue.
— E muito profissional.
— O que você fez com o pobre coitado?
— Vão cuidar dele — falou Gabriel baixinho.
— Quem?
— É melhor não saber os detalhes.
O general balançou a cabeça lentamente. Era agora cúmplice de um crime. Não era a primeira vez.
— Vamos esperar — falou depois de um momento — que a polícia francesa nunca descubra que você esteve no apartamento de Morel. Com seu histórico, eles poderiam ter
a impressão errada.
— Exato — falou Gabriel, taciturno. — Esperemos que não.
Eles entraram na via Roma. Reverberava com o barulho de centenas de scooters. Gabriel, quando voltou a falar, teve de elevar a voz para ser ouvido.
— Quem foi o último dono? — perguntou ele.
— Do Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Nem eu tenho certeza — admitiu o general. — Sempre que prendíamos um mafioso, independentemente de sua importância, ele nos oferecia informações sobre a localização
da Natividade em troca de uma redução da sentença. Chamamos de “carta de Caravaggio”. Não é preciso dizer que perdemos incontáveis horas de trabalho procurando pistas
falsas.
— Achei que você quase o tivesse encontrado há uns anos.
— Eu também, mas escorreu pelos meus dedos. Estava começando a pensar que nunca teria outra oportunidade de recuperá-lo. — Ele sorriu, contra vontade. — E agora
isso.
— Se o quadro foi vendido, provavelmente não está mais na Itália.
— Concordo. Mas minha experiência diz — acrescentou o general — que o melhor momento para encontrar um quadro roubado é imediatamente depois de ter mudado de mãos.
Precisamos agir rapidamente, no entanto. De outra forma, nós poderemos ter que esperar outros 45 anos.
— Nós?
O general parou de caminhar, mas não falou nada.
— Meu envolvimento nesse assunto — falou Gabriel acima do barulho do trânsito — está oficialmente terminado.
— Você prometeu descobrir quem matou Jack Bradshaw em troca de manter o nome do seu amigo fora dos jornais. Até onde vejo, não completou sua missão.
— Forneci uma pista importante, sem mencionar três quadros roubados.
— Mas não o quadro que eu quero. — O general tirou os óculos escuros e fixou seu olhar monocular em Gabriel. — Seu envolvimento nesse caso não terminou, Allon. Na
verdade, está apenas começando.
Eles caminharam até um pequeno bar que dava para a marina. Estava vazio exceto por dois jovens que se queixavam sobre a triste situação da economia. Era uma visão
comum na Itália desses dias. Não havia empregos, nem perspectivas, nem futuro — só as lindas lembranças do passado que o general e sua equipe no Esquadrão de Arte
tinham jurado proteger. Pediu um café e um sanduíche e levou Gabriel até uma mesa do lado de fora, sob a luz fria do sol.
— Francamente — falou ele quando estavam sozinhos de novo —, não sei como você pode pensar em deixar esse caso agora. Seria como deixar um quadro inacabado.
— Meu quadro inacabado está em Veneza — respondeu Gabriel — junto com minha esposa grávida.
— Seu Veronese está seguro. Assim como sua esposa.
Gabriel olhou para uma lata de lixo cheia na ponta da marina e balançou a cabeça. Os antigos romanos tinham inventado o aquecimento central, mas em algum ponto do
caminho seus descendentes tinham esquecido como jogar fora o lixo.
— Poderia demorar meses para encontrar esse quadro — falou ele.
— Não temos meses. Eu diria que temos algumas semanas no máximo.
— Então suponho que você e seus homens deveriam se mexer.
O general balançou a cabeça lentamente.
— Somos bons em grampear telefones e fazer acordos com a escória da máfia. Mas não somos bons em operações secretas, principalmente fora da Itália. Preciso de alguém
que jogue uma isca nas águas do mercado de arte roubada e veja se conseguimos tentar o sr. Grandão a fazer outra aquisição. Ele está aí fora em algum lugar. Você
só precisa encontrar algo que o interesse.
— Em geral, não encontramos obras de arte que valem milhões. Elas são roubadas.
— De forma espetacular — acrescentou o general. — O que significa que não deve ser de uma casa ou galeria particular.
— Está percebendo o que está falando?
— Estou. — O general deu um sorriso conspiratório. — A maioria das operações secretas envolve enviar um comprador falso. Mas a sua será diferente. Você vai aparecer
como o ladrão com uma peça importante para vender. O quadro precisa ser real.
— Por que não me empresta algumas das adoráveis peças da Galleria Borghese?
— O museu nunca aceitaria. Além disso — acrescentou o general —, o quadro não pode ser da Itália. Ou a pessoa que tem o Caravaggio poderia suspeitar do meu envolvimento.
— Você nunca vai conseguir acusar alguém depois de algo assim.
— Acusar alguém está, definitivamente, fora das minhas prioridades. Quero aquele Caravaggio de volta.
O general ficou em silêncio. Gabriel teve que admitir que estava intrigado pela ideia.
— Não tenho como estar à frente da operação — falou depois de um tempo. — Meu rosto é muito conhecido.
— Então, acho que terá que encontrar um bom ator para o papel. E se eu fosse você, contrataria um pouco de músculos também. O submundo pode ser um lugar perigoso.
— Não me diga.
O general não respondeu.
— Músculos não saem barato — falou Gabriel. — E nem ladrões competentes.
— Consegue pegar emprestado alguns do seu serviço?
— Músculos ou ladrões?
— Os dois.
— Sem chance.
— Quanto dinheiro você precisa?
Gabriel pensou um pouco.
— Dois milhões, no mínimo.
— Eu poderia ter um milhão num cofrinho embaixo da minha mesa.
— Eu aceito.
— Na verdade — falou o general, sorrindo —, o dinheiro está no porta-malas do meu carro. Também tenho uma cópia do arquivo do caso Caravaggio. Algo para você ler
enquanto espera o sr. Grandão colocar o barco na água.
— E se ele não morder a isca?
— Acho que você vai ter que roubar outra coisa. — O general deu de ombros. — É a maravilha de roubar obras de arte. Não é tão difícil assim.
O dinheiro, como prometido, estava no porta-malas do sedã oficial do general — um milhão de euros em notas usadas, cuja fonte ele se recusou a especificar. Gabriel
colocou a mala no banco do passageiro de seu carro e foi embora sem falar nada. Quando chegou perto de San Remo, ele já tinha completado os primeiros rascunhos de
sua operação para recuperar o Caravaggio perdido. Tinha financiamento e acesso ao mais bem-sucedido ladrão de arte do mundo. Tudo que precisava agora era alguém
para colocar um quadro roubado no mercado. Um amador não serviria. Precisava de um agente experiente que tivesse sido treinado nas artes negras da fraude. Alguém
que se sentisse confortável na presença de criminosos. Alguém que poderia se virar se as coisas ficassem pesadas. Gabriel conhecia um homem assim do outro lado do
mar, na ilha de Córsega. Era um pouco como Maurice Durand, um velho adversário que agora era cúmplice, mas as semelhanças terminavam aí.
14
CÓRSEGA
ERA QUASE MEIA-NOITE QUANDO a balsa chegou ao porto de Calvi, longe da hora aceitável para se fazer uma ligação telefônica na Córsega, então Gabriel fez o check-in
em um hotel perto do terminal e dormiu. De manhã, tomou café em uma pequena lanchonete de frente para o mar; depois entrou em seu carro e seguiu a sinuosa estrada
na costa oeste. Por um tempo a chuva continuou, mas gradualmente as nuvens diminuíram e o mar passou de granito a turquesa. Gabriel parou na cidade de Porto para
comprar duas garrafas de rosé da Córsega bem geladas e seguiu uma estrada estreita cercada de oliveiras e pinheiros-larício para o interior da ilha. O ar tinha cheiro
de macchia — a densa vegetação formada por alecrim, estevas e lavanda que cobria boa parte da ilha — e nas vilas ele viu muitas mulheres totalmente cobertas de roupas
pretas da viuvez, um sinal de que tinham perdido homens da família para a vendetta. Em outros tempos, as mulheres poderiam ter apontado para ele da maneira típica
da Córsega a fim de avisar sobre os efeitos da occhju, o mau-olhado, mas agora elas evitavam fitá-lo por muito tempo. Sabiam que ele era amigo de dom Anton Orsati,
e amigos do Dom podiam viajar para qualquer lugar na Córsega sem medo de represálias.
Por mais de dois séculos, o clã Orsati estava associado a duas coisas na ilha da Córsega: azeite de oliva e morte. O azeite vinha das oliveiras que se espalhavam
por suas grandes propriedades; a morte vinha das mãos de seus assassinos. Os Orsatis matavam em nome daqueles que não poderiam matar por si mesmos: poderosos que
eram muito sensíveis para sujar suas mãos; mulheres que não tinham homens para realizar a tarefa para elas. Ninguém sabia quantos moradores da ilha tinham morrido
nas mãos dos assassinos dos Orsati, muito menos os próprios Orsatis, mas a tradição colocava o número nos milhares. Poderia ser significativamente mais alto se não
fosse pelo rigoroso processo de veto do clã. Os Orsatis operavam com um código estrito. Recusavam-se a realizar um assassinato se não tivessem certeza de que a pessoa
pedindo tivesse sido injustiçada e uma vingança com sangue fosse realmente necessária.
Isso mudou, no entanto, com dom Anton Orsati. Quando ele assumiu o controle da família, as autoridades francesas tinham erradicado as disputas e as vinganças em
quase todas as partes, menos nos bolsões mais isolados da ilha, deixando poucos moradores com a necessidade de pedir os serviços de seu taddunaghiu. Com a demanda
local em declínio, Orsati precisou procurar oportunidades em outro lugar — quer dizer, do outro lado do mar, na Europa continental. Ele agora aceitava quase qualquer
oferta que cruzava sua mesa, não importava se fosse desagradável, e seus assassinos eram vistos como os mais confiáveis e profissionais do continente. Na verdade,
Gabriel era uma das únicas duas pessoas que já tinham sobrevivido a um contrato da família Orsati.
Dom Anton Orsati vivia nas montanhas no centro da ilha, cercado pelas muralhas de macchia e muitos guarda-costas. Dois estavam parados no portão. Ao verem Gabriel,
eles convidaram-no a entrar. Uma estrada de terra o levou através de oliveiras Van Gogh e, no final, até a entrada da imensa villa. Mais guarda-costas esperavam
do lado de fora. Fizeram uma revista apressada nos pertences de Gabriel, em seguida, um assassino moreno de cara comprida, que parecia ter uns vinte anos, o acompanhou
até o escritório de Orsati no andar de cima. Era um espaço largo com móveis rústicos e um terraço que dava para um vale particular. A madeira macchia queimava na
lareira de pedra. Perfumava o ar com alecrim e sálvia.
No centro da sala estava a larga mesa de carvalho na qual Dom trabalhava. Havia uma garrafa decorativa de azeite de oliva Orsati, um telefone que ele raramente usava
e um livro com capa de couro que continha os segredos de seu negócio. Seus taddunaghiu eram todos empregados da Companhia de Azeite de Oliva Orsati, e os assassinatos
que realizavam eram agendados como pedidos de produto, o que significava que, no mundo de Orsati, azeite e sangue fluíam juntos em um empreendimento homogêneo. Todos
seus assassinos eram descendentes de moradores locais, exceto um. Por causa de seu extenso treinamento, ele era encarregado apenas dos trabalhos mais difíceis. Também
era diretor de vendas de um lucrativo mercado central europeu.
O Dom era um homem grande para os padrões da Córsega, com mais de 1,80 m e de costas e ombros largos. Estava usando calças soltas, sandálias de couro empoeiradas
e uma camisa branca que sua mulher passava para ele toda manhã e novamente de tarde quando ele se levantava de sua sesta. Seu cabelo era negro, como seus olhos.
Sua mão, quando apertou a de Gabriel, parecia ter sido esculpida em pedra.
— Bem-vindo à Córsega — falou Orsati, enquanto pegava as duas garrafas de rosé que Gabriel trazia. — Eu sabia que não conseguiria ficar longe por muito tempo. Não
entenda mal, Gabriel, mas sempre achei que você tinha um pouco de sangue da Córsega nas veias.
— Posso garantir, dom Orsati, que não é o caso.
— Não importa. Você praticamente é um dos nossos agora. — O Dom abaixou a voz e acrescentou: — Homens que matam juntos desenvolvem uma ligação que não pode ser quebrada.
— Esse é um dos seus provérbios da Córsega?
— Nossos provérbios são sagrados e corretos, o que já é um provérbio em si. — Orsati sorriu. — Achei que estaria em Veneza com sua esposa.
— Eu estava — respondeu Gabriel.
— Então, o que o traz à Córsega? Negócios ou prazer?
— Negócios, infelizmente.
— O que foi dessa vez?
— Um favor.
— Outro?
Gabriel assentiu.
— Aqui na Córsega — falou o Dom, franzindo a testa em desaprovação — acreditamos que o destino de um homem está escrito ao nascer. E você, meu amigo, parece destinado
a sempre resolver problemas para outras pessoas.
— Há destinos piores, Dom Orsati.
— Deus ajuda a quem se ajuda.
— Quanta caridade — falou Gabriel.
— Caridade é para padres e tolos. — Olhou para a maleta na mão de Gabriel. — O que tem na mala?
— Um milhão de euro em notas usadas.
— Onde conseguiu tudo isso?
— Com um amigo em Roma.
— Um italiano?
Gabriel assentiu.
— No final de muitos desastres — falou Dom Orsati, sombrio —, há sempre um italiano.
— Estou casado com uma.
— E é por isso que sempre acendo velas por você.
Gabriel tentou, mas não conseguiu reprimir um sorriso.
— Como ela está? — perguntou o Dom.
— Parece que sempre a deixo brava. Tirando isso, está muito bem.
— É a gravidez — falou Orsati, pensativo. — Quando as crianças nascerem, tudo vai ser diferente.
— Como?
— Será como se você não existisse. — Ele voltou a olhar para a maleta. — Por que você anda por aí com um milhão de euros em notas usadas?
— Pediram-me que encontrasse algo valioso e vai ser preciso bastante dinheiro para recuperá-lo.
— Outra garota perdida? — perguntou o Dom.
— Não — respondeu Gabriel. — Isso.
Gabriel entregou a Orsati a fotografia de uma moldura vazia pendurada em cima do altar do Oratorio di San Lorenzo. Dom Orsati reconheceu imediatamente.
— A Natividade? — perguntou ele.
— Nunca soube que você era um homem das artes, dom Orsati.
— Não sou — admitiu ele—, mas segui o caso durante uns anos.
— Algum motivo em particular?
— Por acaso estava em Palermo na noite em que o Caravaggio foi roubado. Na verdade — acrescentou dom Orsati, com um sorriso —, tenho quase certeza de que fui eu
quem descobriu que tinha sumido.
No terraço de frente para o vale, dom Anton Orsati contou como, no final do verão de 1969, apareceu na Córsega um empresário siciliano chamado Renato Francona. O
siciliano queria vingança por sua linda filha, que tinha sido assassinada algumas semanas antes por Sandro di Luca, um membro importante da Cosa Nostra. Dom Carlu
Orsati, então chefe do clã Orsati, não queria participar disso. Mas seu filho, um assassino talentoso chamado Anton, acabou convencendo seu pai para que deixasse
que ele fizesse o trabalho pessoalmente. Tudo aconteceu como planejado naquela noite exceto pelo clima, que o impediu de sair de Palermo. Não tendo nada melhor para
fazer, o jovem Anton procurou uma igreja para confessar seus pecados. A igreja em que entrou foi o Oratorio di San Lorenzo.
— E isso — falou Orsati, segurando a foto da moldura vazia —, foi exatamente o que eu vi naquela noite. Claro que não informei a polícia sobre o roubo.
— O que aconteceu com Renato Francona?
— A Cosa Nostra o matou algumas semanas depois.
— Eles presumiram que estava por trás do assassinato de di Luca?
Orsati assentiu, sério.
— Mas pelo menos morreu com honra.
— Por quê?
— Porque tinha vingado o assassinato de sua filha.
— E ainda perguntam por que a Sicília não é a força econômica e intelectual do Mediterrâneo.
— Não se ganha dinheiro com a felicidade — falou o Dom.
— O que quer dizer?
— A vingança manteve essa família nos negócios por gerações — respondeu. — E o assassinato de Sandro di Luca provou que poderíamos operar fora da Córsega sem sermos
detectados. Meu pai foi contra aquilo até sua morte. Mas quando faleceu, transformei os negócios da família em algo internacional.
— Se você não cresce, morre.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente — respondeu Gabriel.
A mesa estava posta para um tradicional almoço da Córsega com comidas condimentadas com macchia. Gabriel se serviu com os vegetais e queijos, mas ignorou a linguiça.
— É kosher — falou o Dom, enquanto colocava vários pedaços de carne no prato de Gabriel.
— Não sabia que havia algum rabino na Córsega.
— Muitos — garantiu.
Gabriel deixou a linguiça de lado e perguntou ao Dom se ele ainda ia à igreja depois de matar alguém.
— Se eu fosse — respondeu ele —, passaria mais tempo de joelhos do que uma lavadeira. Além disso, nesse ponto já não tenho mais salvação. Deus pode fazer o que quiser
comigo.
— Gostaria de ver a conversa entre você e Deus.
— Poderia ser durante um típico almoço da Córsega. — Orsati sorriu e encheu a taça de Gabriel com o rosé. — Vou lhe contar um segredo — falou, colocando a garrafa
de volta no centro da mesa. — A maioria das pessoas que matamos merece morrer. Do nosso jeito, o clã Orsati fez do mundo um lugar melhor.
— Se sentiria assim se tivesse me matado?
— Não seja tolo — respondeu o Dom. — Permitir que você vivesse foi a melhor decisão que já tomei.
— Até onde me lembro, dom Orsati, você não teve nada a ver com a decisão de me deixar viver. Na verdade — acrescentou Gabriel enfaticamente —, você era contra.
— Mesmo eu, o infalível dom Anton Orsati, cometo erros de vez em quando, apesar de que nunca faria nada tão tolo quanto concordar em encontrar um Caravaggio para
os italianos.
— Não tive muita escolha nessa questão.
— É algo ridículo.
— Minha especialidade.
— Os carabinieri estão procurando aquele quadro há mais de quarenta anos, e nunca conseguiram achar. Na minha opinião, provavelmente foi destruído há muito tempo.
— Não é o que se diz por aí.
— O que você ouviu?
Gabriel respondeu a questão contando ao Dom as mesmas coisas que tinha dito ao general Ferrari em San Remo. Então explicou seu plano para recuperar o quadro. O Dom
ficou bastante intrigado.
— O que isso tem a ver com os Orsatis? — perguntou.
— Preciso de um de seus homens emprestado.
— Algum em especial?
— O diretor de vendas da Europa central.
— Que surpresa.
Gabriel não falou nada.
— E se eu concordar?
— Uma mão lava a outra — falou Gabriel — e as duas lavam o rosto.
O Dom sorriu.
— Talvez você seja da Córsega, afinal de contas.
Gabriel olhou para o vale e sorriu.
— Não tive essa sorte, dom Orsati.
15
CÓRSEGA
INFELIZMENTE, O HOMEM que Gabriel precisava para encontrar o Caravaggio estava fora da ilha a negócios. Dom Orsati não quis dizer onde ele estava ou se seus negócios
tinham a ver com azeite ou sangue, só que iria voltar em dois dias, três no máximo. Deu a Gabriel um revólver Tanfoglio e as chaves de uma villa no vale seguinte,
onde poderia esperar. Gabriel conhecia bem a villa. Tinha ficado ali com Chiara depois da última operação deles e, em seu terraço tomado pelo sol, recebido a notícia
de que ela estava grávida. Só havia um problema com a casa: para chegar até lá, Gabriel tinha que passar por três antigas oliveiras onde sempre estava o infeliz
bode de dom Casabianca tomando conta, desafiando todos que ousassem entrar em seu território. O bode velho era uma criatura maligna em geral, mas parecia reservar
um ódio especial contra Gabriel, com quem já tivera numerosos confrontos cheios de mútuas ameaças e insultos. Dom Orsati, no final do almoço, prometeu falar com
dom Casabianca em nome de Gabriel.
— Talvez ele possa convencer a besta — acrescentou o Dom, cético.
— Ou talvez ele possa transformar o bicho em uma bolsa e um par de sapatos.
— Não venha com ideias — disse. — Se você tocar um pelo da cabeça daquele maldito bode, vai ser um desastre.
— E se ele simplesmente desaparecesse?
— A macchia não tem olhos — avisou o Dom —, mas vê tudo.
Com isso, acompanhou Gabriel até a saída para seu carro. Ele seguiu o caminho até voltar à estrada de terra, continuou um pouco mais adiante, e quando chegou até
uma curva fechada à esquerda, viu o bode de dom Casabianca amarrado a uma das três antigas oliveiras, com um olhar de humilhação em sua cara grisalha. Gabriel abaixou
a janela e, em italiano, soltou vários insultos contra o bode falando de sua aparência, seus ancestrais e da degradação de sua situação atual. Depois, rindo, subiu
a colina até a villa.
Era uma casa pequena, com um telhado vermelho e grandes janelas voltadas para o vale. Quando Gabriel entrou, percebeu instantaneamente que ele e Chiara tinham sido
os últimos ocupantes. Seu bloco de desenho estava sobre a mesinha de centro na sala de estar, e na geladeira encontrou uma garrafa fechada de Chablis que tinha sido
um presente do ausente diretor de vendas europeias de dom Orsati. As prateleiras da despensa estavam vazias. Gabriel abriu as portas francesas para que a brisa da
tarde entrasse e se sentou no terraço, lendo o arquivo de Caravaggio do general, até que o frio o obrigou a entrar. Nesse momento, era um pouco depois das quatro
da tarde e o sol parecia se equilibrar sobre a beira do vale. Tomou um banho rápido, mudou de roupa e foi de carro até a vila para fazer umas compras antes que as
lojas fechassem.
Já havia um povoado nesse canto isolado da Córsega desde os dias complicados depois da queda do Império Romano, quando os vândalos saqueavam as costas com tanta
violência que os nativos aterrorizados não tiveram outra escolha a não ser fugir para as colinas para sobreviver. Uma única e velha rua subia em espiral passando
por casas de campo e edifícios de apartamentos até uma grande praça no ponto mais alto da vila. Em três lados havia lojas e cafés; no quarto, estava a velha igreja.
Gabriel encontrou um lugar para estacionar e começou a andar até o mercado, mas decidiu que precisava de um espresso antes. Entrou em um dos cafés e sentou-se a
uma mesa onde conseguia ver os homens jogando boules na praça sob a luz de um poste. Um dos homens reconheceu Gabriel como um dos amigos de dom Orsati e o convidou
a jogar. Gabriel fingiu que tinha um problema no ombro e, em francês, disse que preferia apenas olhar. Não disse que precisava fazer compras. Na Córsega, ainda são
as mulheres que fazem as compras.
Nesse momento, os sinos da igreja marcaram as cinco horas. Alguns minutos depois, suas pesadas portas de madeira se abriram e um padre com batina preta saiu na escada.
Ele ficou sorrindo ali, benevolente, enquanto vários paroquianos, principalmente mulheres velhas, enchiam a praça. Uma das mulheres, depois de cumprimentar o padre,
parou de repente, como se só ela tivesse percebido a presença do perigo. Então voltou a caminhar e desapareceu por uma porta de uma velha casa ao lado da paróquia.
Gabriel pediu outro café. Então mudou de ideia e pediu uma taça de vinho tinto no lugar. O crepúsculo já era apenas uma lembrança; as luzes iluminavam as lojas e
as janelas da casinha torta ao lado da paróquia. Um menino de uns dez anos com cabelo encaracolado comprido estava agora parado na porta, que estava aberta alguns
centímetros. Uma pequena mão pálida apareceu na abertura segurando um pedaço de papel azul. O menino agarrou o papel e cruzou a praça até o café, onde o colocou
em cima da mesa de Gabriel ao lado da taça de vinho tinto.
— O que foi dessa vez? — perguntou ele.
— Ela não falou — respondeu o menino. — Ela nunca fala.
Gabriel deu umas moedas ao menino para comprar um doce e bebeu o vinho enquanto a noite caía sobre a praça. Finalmente, pegou o pedaço de papel e leu a única frase
que estava escrita ali:
Posso ajudá-lo a encontrar o que você está procurando.
Gabriel sorriu, enfiou o papel no bolso, e terminou seu vinho. Então se levantou e cruzou a praça.
Ela estava parada na entrada para recebê-lo, um xale sobre seus ombros magros. Os olhos eram fundos e negros; seu rosto era tão branco quanto farinha. Ela olhou
um tempo para ele antes de finalmente esticar sua mão. Era quente e leve. Parecia que estava segurando um passarinho.
— Bem-vindo de volta à Córsega — falou ela.
— Como soube que eu estava aqui?
— Eu sei de tudo.
— Então me conte como cheguei à ilha.
— Não me insulte.
O ceticismo de Gabriel era fingido. Ele há muito tempo tinha abandonado as dúvidas de que a velha tinha capacidade de ver tanto o passado quanto o futuro. Ela apertou
as mãos dele e fechou os olhos. — Você estava vivendo na cidade da água com sua esposa e trabalhando numa igreja onde um grande pintor foi enterrado. Estava feliz,
realmente feliz, pela primeira vez em sua vida. Então uma criatura de um olho só apareceu e...
— Certo — falou Gabriel. — Já me convenceu.
Ela liberou a mão de Gabriel e apontou para a pequena mesa de madeira em sua sala. Em cima havia um prato raso com água e uma garrafa de azeite de oliva. Eram as
ferramentas que usava. A velha era uma signadora. Os habitantes da ilha acreditavam que ela tinha o poder de curar os infectados pelo occhju, o mau-olhado. Gabriel
já suspeitou que ela era apenas uma charlatã, mas tinha mudado de ideia.
— Sente-se — falou ela.
— Não — respondeu Gabriel.
— Por que não?
— Porque não acreditamos nessas coisas.
— Israelitas?
— Isso — respondeu ele. — Israelitas.
— Mas já fez isso antes.
— Você me contou coisas sobre meu passado, coisas que não poderia saber.
— Então estava curioso?
— Acho que sim.
— E não está curioso agora?
A mulher se sentou em seu lugar de sempre à mesa e acendeu uma vela. Depois de um momento de hesitação, Gabriel se sentou em frente a ela. Empurrou a jarra de azeite
para o centro da mesa e entrelaçou as mãos, concentrado. A velha fechou os olhos.
— A criatura de um olho só pediu que você encontrasse algo para ele, não foi?
— Foi — respondeu Gabriel.
— É um quadro, não é? O trabalho de um louco, um assassino. Foi roubado de uma pequena igreja há muitos anos, de uma ilha do outro lado do mar.
— Dom Orsati contou isso para você?
A velha abriu os olhos.
— Nunca falei com o Dom sobre esse assunto.
— Continue.
— O quadro foi roubado por homens como o Dom, só que piores. Eles trataram o quadro muito mal. Uma parte dele foi destruída.
— Mas o quadro sobreviveu?
— Sobreviveu — falou ela, assentindo lentamente. — Ele sobreviveu.
— Onde está agora?
— Está perto.
— Perto de onde?
— Não sei dizer. Mas se você realizar o teste do azeite e da água — acrescentou ela olhando para o centro da mesa —, talvez eu possa ajudar.
Gabriel não se moveu.
— Do que você tem medo? — perguntou a velha.
— De você — respondeu Gabriel, honestamente.
— Você tem a força de Deus. Por que iria ter medo de alguém tão frágil e velha como eu?
— Porque você tem poderes também.
— Poderes de visão — falou ela. — Mas não poderes terrenos.
— A capacidade de ver o futuro é uma grande vantagem.
— Especialmente para alguém em sua linha de trabalho.
— Exato — concordou Gabriel, sorrindo.
— Então por que você não quer realizar o teste do azeite e da água?
Gabriel ficou em silêncio.
— Você perdeu muitas coisas — disse a velha, suavemente. — Uma esposa, um filho, sua mãe. Mas seus dias de luto ficaram para trás.
— Os meus inimigos vão tentar matar minha esposa?
— Nem ela nem seus filhos vão sofrer.
A velha apontou com a cabeça para a jarra de azeite de oliva. Dessa vez, Gabriel enfiou o dedo indicador nela e deixou que três gotas caíssem sobre a água. Pelas
leis da física, o azeite deveria ter se juntado em uma única porção. Em vez disso, ele se dividiu em milhares de gotinhas e logo desapareceu.
— Você está infectado com o occhju — falou a velha, com gravidade. — Seria bom que me deixasse entrar em seu sistema.
— Prefiro tomar duas aspirinas.
A mulher olhou para o prato de água e azeite.
— O quadro que você está procurando mostra o Menino Jesus, não é?
— É.
— Que curioso que um homem como você esteja procurando nosso Senhor e salvador. — Ela olhou novamente para o prato de água e azeite. — O quadro foi retirado da ilha
pela água. Parece diferente do que era antes.
— Por quê?
— Foi reparado. O homem que fez o trabalho agora está morto. Mas você já sabe disso.
— Algum dia você vai ter que me mostrar como faz isso.
— Não é algo que pode ser ensinado. É um dom de Deus.
— Onde está o quadro agora?
— Não sei dizer.
— Quem está com ele?
— Está além dos meus poderes saber o nome dele. A mulher pode ajudar você a encontrá-lo.
— Que mulher?
— Não sei dizer. Não deixe que nenhum mal aconteça com ela ou vai perder tudo.
A cabeça da velha caiu sobre seu ombro; a profecia a deixara exausta. Gabriel colocou várias notas debaixo do prato de água e azeite.
— Tenho mais uma coisa para contar antes de você ir embora — falou a velha quando Gabriel se levantou.
— O que é?
— Sua esposa deixou a cidade de água.
— Quando? — perguntou Gabriel.
— Enquanto você estava na companhia da criatura de um olho só na cidade perto do mar.
— Onde ela está agora?
— Está esperando por você — falou a velha — na cidade da luz.
— Isso é tudo?
— Não — falou ela enquanto fechava suas pálpebras. — O velho não vai viver muito. Faça as pazes com ele antes que seja tarde demais.
Ela estava certa pelo menos sobre uma coisa: parecia que Chiara tinha realmente saído de Veneza. Durante uma breve ligação para seu celular, ela tinha falado que
estava se sentindo bem e que tinha voltado a chover. Gabriel rapidamente verificou o clima em Veneza e viu que fazia sol há vários dias. Ligações para o telefone
no apartamento deles não tinham resposta, e seu pai, o inescrutável rabino Zolli, parecia ter uma lista de desculpas prontas para explicar por que sua filha não
estava em sua mesa. Ela estava fazendo compras, ou na livraria do gueto, ou visitando os idosos no asilo. “Vou pedir que ligue para você assim que voltar. Shalom,
Gabriel.” Gabriel se perguntava se o guarda-costas bonitão do general era cúmplice no desaparecimento de Chiara ou se ele tinha sido enganado, também. Suspeitava
que era a segunda opção. Chiara era mais bem treinada e experiente do que qualquer carabinieri musculoso.
Ia duas vezes à vila, uma de manhã para tomar espresso com pão e novamente à tarde para tomar uma taça de vinho no café perto do jogo de boules. Nas duas ocasiões
ele via a signadora saindo da igreja depois da missa. Na primeira tarde, ela não prestou atenção nele. Mas na segunda, o menino com cabelo enrolado apareceu em sua
mesa com outro bilhete. Parecia que o homem por quem Gabriel estava esperando chegaria em Calvi de barco no dia seguinte. Gabriel telefonou para dom Orsati, que
confirmou que era verdade.
— Como você sabia? — perguntou ele.
— O macchia não tem olhos — falou Gabriel enigmático, e desligou. Passou a manhã seguinte dando os últimos retoques no seu plano para encontrar o Caravaggio desaparecido.
Então, ao meio-dia, caminhou até as três antigas oliveiras e liberou o bode de dom Casabianca de seu laço. Uma hora depois viu um Renault velho subindo o vale em
uma nuvem de poeira. Quando se aproximou das oliveiras, o velho bode apareceu desafiador no seu caminho. O carro tocou a buzina e logo o vale ecoava com insultos
e ameaças de uma tremenda violência. Gabriel foi até cozinha e abriu o Chablis. O inglês tinha voltado à Córsega.
16
CÓRSEGA
NÃO ERA SEMPRE QUE alguém tinha a oportunidade de apertar a mão de um morto, mas isso foi precisamente o que aconteceu, dois minutos depois, quando Christopher Keller
cruzou a porta da villa. De acordo com os registros militares britânicos, ele tinha morrido em janeiro de 1991, durante a primeira guerra do Golfo, quando seu esquadrão
de Serviços Aéreos Especiais Sabre foi atacado pela força aérea da Coalizão em um trágico caso de fogo amigo. Seus pais, dois respeitados médicos de Harley Street,
apareceram em público para falar sobre seu heroísmo, embora em particular dissessem que ele nunca teria morrido se tivesse ficado em Cambridge em vez de ter se alistado
no exército. Até hoje, ainda não sabem que só ele tinha sobrevivido ao ataque contra seu esquadrão. Nem sabem que, depois de sair do Iraque disfarçado de árabe,
tinha cruzado a Europa até a Córsega, onde havia sido recebido de braços abertos por dom Anton Orsati. Gabriel tinha perdoado Keller por tentar matá-lo uma vez.
Mas não podia perdoar o fato de que o inglês tinha deixado que seus pais envelhecessem acreditando que seu único filho estava morto.
Keller parecia bem para um morto. Seus olhos eram claros e azuis, seu cabelo curto era quase branco pelo mar e o sol, sua pele estava esticada e muito bronzeada.
Usava uma camisa branca aberta no pescoço e um terno amassado pela viagem. Quando tirou o terno, a letalidade de seu físico foi revelada. Tudo em Keller, de seus
poderosos ombros a seus antebraços fortes, parecia ter sido criado expressamente para matar. Ele colocou o terno sobre as costas de uma cadeira e olhou para a Tanfoglio
sobre a mesa de centro, próxima ao arquivo do general sobre o Caravaggio.
— É minha — falou sobre a arma.
— Não mais.
Keller foi até a garrafa aberta de Chablis e se serviu de uma taça.
— Como foi sua viagem? — perguntou Gabriel.
— Bem-sucedida.
— Tinha medo que falasse isso.
— Melhor do que a alternativa.
— Que tipo de trabalho foi?
— Estava entregando comida e remédios a viúvas e órfãos.
— Onde?
— Varsóvia.
— Minha cidade favorita.
— Deus, que lixo. E o clima é adorável nessa época do ano.
— O que você estava realmente fazendo, Christopher?
— Cuidando de um problema para um banqueiro na Suíça.
— Que tipo de problema?
— Um problema russo.
— O russo tem nome?
— Vamos chamá-lo de Igor.
— Igor era boa gente?
— Nem perto.
— Mafiya?
— Até a medula.
— Aposto que Igor da mafiya confiou seu dinheiro a um banqueiro na Suíça.
— Muito dinheiro — falou Keller. — Mas estava infeliz com os juros que estava ganhando com seus investimentos. Disse ao banqueiro suíço para melhorar seu desempenho.
Ou iria matar o banqueiro, sua esposa, seus filhos e seu cachorro.
— Então o banqueiro suíço pediu ajuda a dom Orsati.
— Que opção ele tinha?
— O que aconteceu com o russo?
— Ele teve um problema depois de uma reunião com um possível sócio. Não vou entediá-lo com detalhes.
— E o dinheiro dele?
— Uma parte foi transferida para uma conta controlada pela Empresa de Azeite de Oliva Orsati. O resto ainda está na Suíça. Sabe como são esses banqueiros suíços
— acrescentou Keller. — Não gostam de se afastar do dinheiro.
O inglês se sentou no sofá, abriu o arquivo sobre Caravaggio e tirou a foto da moldura vazia no Oratorio di San Lorenzo.
— Uma pena — falou, balançando a cabeça. — Esses malditos sicilianos não têm respeito por nada.
— Dom Orsati já contou que foi ele que descobriu que o quadro tinha sido roubado?
— Deve ter mencionado isso uma noite quando seu poço de provérbios da Córsega secou. É uma pena que ele não chegou no oratório alguns minutos antes — acrescentou
Keller. — Poderia ter evitado que os ladrões roubassem o quadro.
— Ou os ladrões poderiam tê-lo matado antes de sair da igreja.
— Você subestima o Dom.
— Nunca.
Keller devolveu a fotografia ao arquivo.
— O que isso tem a ver comigo?
— Os carabinieri me contrataram para recuperar o quadro. Preciso da sua ajuda.
— Que tipo de ajuda?
— Nada muito importante — respondeu Gabriel. — Só preciso que você roube uma obra de arte de valor incalculável e a venda ao homem que matou duas pessoas em menos
de uma semana.
— Só isso? — Keller sorriu. — Estava com medo de que fosse me pedir algo difícil.
Gabriel contou toda a história, começando com a infeliz visita de Julian Isherwood ao lago Como e terminando com a proposta pouco ortodoxa do general Ferrari para
recuperar o quadro roubado mais cobiçado do mundo. Keller permaneceu imóvel o tempo todo, os braços sobre os joelhos, as mãos cruzadas, como um penitente relutante.
Sua capacidade de ficar longos períodos completamente imóvel deixava até mesmo Gabriel nervoso. Enquanto servia no SAS na Irlanda do Norte, Keller tinha se especializado
em observação próxima, uma técnica perigosa de vigilância que exigia que passasse semanas em “esconderijos” apertados como sótãos e celeiros. Também tinha se infiltrado
no IRA ao se passar por um católico de Belfast ocidental, e era por isso que Gabriel tinha confiança de que Keller poderia assumir o papel de um ladrão de arte com
um quadro importante para vender. O inglês, no entanto, não estava tão seguro.
— Não é o que eu faço — falou ele quando Gabriel terminou a apresentação. — Eu espiono pessoas, mato pessoas, explodo coisas. Mas não roubo quadros. E não os vendo
no mercado negro.
— Se você pode se fazer passar por um católico de Ballymurphy, pode fingir ser um cara do leste de Londres. Se bem me lembro — acrescentou Gabriel —, você é bastante
bom com sotaques.
— É verdade — admitiu Keller. — Mas sei muito pouco sobre arte.
— A maioria dos ladrões também. É por isso que são ladrões em vez de curadores ou historiadores de arte. Mas não se preocupe, Keller. Vou estar o tempo todo sussurrando
no seu ouvido.
— Não consigo dizer o quanto estou ansioso por esse momento.
Gabriel não falou nada.
— E os italianos? — perguntou Keller.
— O que tem?
— Sou um assassino profissional que, ocasionalmente, e eles sabem disso, teve que cumprir tarefas em solo italiano. Não serei capaz de voltar lá se seu amigo dos
carabinieri descobrir que estive trabalhando com você.
— O general nunca vai saber que você esteve envolvido.
— Como pode ter certeza?
— Porque ele não quer saber.
Keller não pareceu convencido. Acendeu um cigarro e soltou uma nuvem de fumaça para o teto, pensativo.
— Você precisa fazer isso? — perguntou Gabriel.
— Me ajuda a pensar.
— Dificulta minha respiração.
— Tem certeza de que você é israelense?
— O Dom parece pensar que sou um corso enrustido.
— Não é possível — falou Keller. — Nenhum corso teria concordado em encontrar um quadro que está perdido há mais de quarenta anos, especialmente para um maldito
italiano.
Gabriel foi até a cozinha, pegou um pires do armário e colocou na frente de Keller. O inglês deu uma última tragada antes de apagar o cigarro.
— Quanto dinheiro você planeja usar?
Gabriel contou a Keller sobre a mala cheia de um milhão de euros que o general tinha lhe dado.
— Um milhão não vai ser suficiente.
— Você tem algum trocado sobrando por aí?
— Posso ter um troco que sobrou do trabalho em Varsóvia.
— Quanto?
— Quinhentos ou seiscentos.
— É muito generoso de sua parte, Christopher.
— É meu dinheiro.
— O que são quinhentos ou seiscentos entre amigos?
— Muito dinheiro. — Keller soltou um longo suspiro. — Ainda não tenho certeza se consigo fazer isso.
— Isso o quê?
— Fingir ser um ladrão de arte.
— Você mata pessoas por dinheiro — falou Gabriel. — Não acho que será um grande esforço.
Vestir Christopher Keller para o papel de um ladrão de arte internacional acabou sendo a parte mais fácil de sua preparação, pois nos guarda-roupas de sua villa
havia uma grande seleção de roupas para qualquer ocasião ou assassinato. Havia Keller, o boêmio viajante; Keller, o playboy de elite; e Keller, o montanhista. Havia
até um Keller, o padre católico romano, completo com um breviário e um kit de missa para viagem. No final, Gabriel escolheu o tipo de roupas que Keller usaria naturalmente
— camisa branca, terno escuro e um par de sapatos da moda. Ele colocou alguns acessórios como várias correntes e braceletes de ouro, um relógio suíço muito chamativo,
óculos com lentes azuis e uma peruca loira com um topete denso. Keller tinha seu próprio passaporte britânico e cartões de crédito em nome de Peter Rutledge. Gabriel
achou que parecia um pouco classe alta demais para um criminoso do East End, mas não importava. Ninguém no mundo da arte iria conhecer o nome do ladrão.
17
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
REUNIRAM-SE NO ESCRITÓRIO APERTADO de Antiquités Scientifiques às onze da manhã seguinte: o ladrão de arte, o assassino profissional e o antigo e futuro agente do
serviço secreto israelense. O agente explicou rapidamente ao ladrão de arte como ele esperava encontrar o há muito desaparecido retábulo de Caravaggio. O ladrão,
como o assassino anteriormente, duvidou do plano.
— Eu roubo quadros — afirmou ele, em um tom cansado. — Não encontro quadros para ajudar a polícia. Na verdade, eu faço o máximo para evitar a polícia.
— Os italianos nunca vão saber sobre seu envolvimento.
— É o que você diz.
— Preciso lembrá-lo que o homem que adquiriu o Caravaggio matou seu amigo e sócio?
— Não, monsieur Allon, não precisa.
A campainha tocou. Maurice Durand ignorou.
— O que quer que eu faça?
— Preciso que roube algo que nenhum colecionador sujo poderia resistir.
— E depois?
— Quando os rumores começarem a se espalhar pelo submundo da arte que o quadro está em Paris, vou precisar que aponte os abutres na direção certa.
Durand olhou para Keller.
— Para ele?
Gabriel assentiu.
— E por que os abutres vão pensar que o quadro está em Paris?
— Porque vou contar a eles.
— Você pensa em tudo, não é, monsieur Allon?
— A melhor forma de ganhar um jogo de azar é remover o azar da equação.
— Vou tentar me lembrar disso. — Durand olhou para Keller de novo e perguntou: — Quanto ele sabe sobre o negócio de roubo de arte?
— Nada — admitiu Gabriel. — Mas ele aprende rápido.
— O que ele faz para viver?
— Cuida de viúvas e órfãos.
— Sei — falou Durand, cético. — E eu sou o presidente da França.
Eles passaram o resto do dia trabalhando nos detalhes da operação. Então, quando a noite caiu sobre o oitavo Arrondissement, monsieur Durand mudou a placa na janela
de OUVERT para FERMÉ, e eles saíram para a rue de Miromesnil. O ladrão de arte foi até a brasserie do outro lado da rua para sua taça noturna de vinho tinto, o assassino
tomou um táxi até um hotel na rue de Rivoli e o antigo e futuro agente da inteligência israelense caminhou até um apartamento seguro do Escritório com vista para
Pont Marie. Viu uma dupla de agentes de segurança sentados em um carro estacionado na entrada do prédio; e quando entrou no apartamento, sentiu o aroma de comida
e ouviu Chiara cantando baixinho. Beijou seus lábios e a levou para o quarto. Não perguntou como ela estava se sentindo. Não perguntou nada.
— Percebeu — perguntou ela depois — que é a primeira vez que fazemos amor desde que descobrimos que eu estava grávida?
— É mesmo?
— Quando alguém com sua inteligência finge ser tolo, Gabriel, não é muito eficiente.
Ele enrolou uma mecha do cabelo dela com o dedo, mas não falou nada. O queixo dela estava descansando sobre seu peito. O brilho dos postes de rua de Paris fazia
com que a pele dela parecesse dourada.
— Por que não tinha feito sexo comigo antes? E não me diga que foi por que estava ocupado — acrescentou ela rapidamente —, porque isso nunca o impediu antes.
Ele soltou o cabelo dela, mas não falou nada.
— Tinha medo de que a gravidez desse errado de novo? Foi por isso?
— Foi — respondeu ele. — Acho que sim.
— O que o fez mudar de ideia?
— Passei uns momentos com uma velha na ilha de Córsega.
— O que ela falou?
— Que nenhum mal aconteceria com você e as crianças.
— E acreditou nela?
— Ela já falou muitas coisas que não teria como saber. Então me disse que você tinha saído de Veneza.
— Ela falou que eu estava em Paris?
— Não com essas palavras.
— Estava querendo surpreendê-lo.
— Como sabia onde me encontrar?
— O que você acha?
— Ligou para o Boulevard Rei Saul.
— Na verdade, eles me ligaram.
— Por quê?
— Porque Uzi queria saber por que você estava em companhia de um homem como Maurice Durand. Obviamente, não deixei passar a oportunidade.
— Como escapou do guarda-costas do general?
— Matteo? Foi fácil.
— Não sabia que se tratavam pelo primeiro nome.
— Ele ajudou muito na sua ausência. E nunca me perguntou como eu me sentia.
— Não vou cometer esse erro de novo.
Chiara beijou os lábios de Gabriel e perguntou por que ele tinha retomado sua relação com o ladrão de arte mais conhecido do mundo. Gabriel contou tudo.
— Agora entendo por que o general Ferrari queria tanto que você investigasse a morte de Bradshaw.
— Ele sempre soube que Bradshaw era sujo — falou Gabriel. — E também ouviu rumores de que suas digitais estavam no Caravaggio.
— Acho que isso poderia explicar algo peculiar que descobri nas contas da Meridian Global Consulting Group.
— E o que é?
— Durante os últimos 12 meses, a Meridian fez muitos trabalhos para um lugar chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem são eles?
— Difícil dizer. LXR é uma empresa bastante opaca, para dizer o mínimo.
Gabriel juntou outra mecha de cabelo de Chiara e perguntou o que mais ela tinha descoberto no lixo eletrônico de Jack Bradshaw.
— Durante as últimas semanas de sua vida, ele enviou vários e-mails a uma conta no Gmail com um nome de usuário autogerado.
— Sobre o que conversavam?
— Casamentos, festas, o clima, todas as coisas que as pessoas discutem quando estão, na verdade, falando sobre outra coisa.
— Faz alguma ideia de onde está esse colega dele?
— Cafés com wi-fi em Bruxelas, Antuérpia e Amsterdã.
— Claro.
Chiara deitou de barriga pra cima. Gabriel colocou a mão sobre o abdome dela enquanto ouvia a chuva bater suave contra a janela.
— No que você está pensando? — perguntou ela depois de um momento.
— Estava pensando se era real ou só minha imaginação.
— O quê?
— Nada.
Ela não insistiu.
— Acho que vou ter que dizer alguma coisa ao Uzi.
— Acho que sim.
— O que devo dizer?
— A verdade — respondeu Gabriel. — Que vou roubar um quadro que vale duzentos milhões de dólares e tentar vendê-lo ao sr. Grandão.
— O que você vai fazer agora?
— Tenho que ir para Londres para começar um rumor.
— E depois?
— Vou para Marselha para fazer com que o rumor se torne verdade.
18
HYDE PARK, LONDRES
GABRIEL LIGOU PARA A Isherwood Fine Arts na manhã seguinte enquanto cruzava a Leicester Square. Pediu para vê-lo fora da galeria e dos lugares conhecidos pelo mundo
da arte em St. James’s. Isherwood sugeriu o Lido Café Bar no Hyde Park. Ninguém do mundo da arte, ele assegurou, iria ali nem morto.
Chegou alguns minutos depois de uma da tarde, vestido como se fosse ao campo, com uma jaqueta de tweed e galochas. Ele parecia com muito menos ressaca do que era
o normal no começo da tarde.
— Longe de mim reclamar — falou Gabriel, apertando a mão de Isherwood —, mas sua secretária me deixou esperando por quase dez minutos antes de finalmente passar
a ligação para você.
— Considere-se com sorte.
— Quando vai demiti-la, Julian?
— Não posso.
— Por que não?
— É possível que ainda esteja apaixonado por ela.
— É uma abusada.
— Eu sei. — Isherwood sorriu. — Se pelo menos estivéssemos transando. Então seria perfeito.
Eles se sentaram a uma mesa com vista para a Serpentine. Isherwood franziu o cenho para o menu.
— Não é exatamente o Wilton’s, não é?
— Você vai sobreviver, Julian.
Isherwood não pareceu convencido. Pediu um sanduíche de camarão e uma taça de vinho branco para sua pressão. Gabriel pediu chá e um bolinho. Quando estavam sozinhos
de novo, ele contou a Isherwood tudo que tinha acontecido desde sua partida de Veneza. Então contou o que planejava fazer depois.
— Garoto malvado — falou Isherwood. — Muito malvado.
— Foi ideia do general.
— É um maldito safado, não é?
— Por isso é tão bom no que faz.
— Precisa ser. Mas como diretor do Comitê para Proteção da Arte — acrescentou Isherwood com um tom de formalidade —, eu seria negligente se não desaprovasse um aspecto
da sua inteligente operação.
— Não tem outro jeito, Julian.
— E se o quadro for danificado durante o roubo?
— Tenho certeza de que posso encontrar alguém para consertá-lo.
— Não se faça de desentendido, meu rapaz. Não combina com você.
Um silêncio pesado caiu entre eles.
— Valerá a pena se eu conseguir recuperar o Caravaggio — disse Gabriel finalmente.
— Se — respondeu Isherwood cético. Ele soltou um longo suspiro. — Desculpe metê-lo em tudo isso. E pensar que nada disso teria acontecido se não fosse pelo maldito
Oliver Dimbleby.
— Na verdade, eu até pensei em uma forma para que Oliver expie seus pecados.
— Não está pensando em usá-lo de alguma maneira, está?
Gabriel assentiu lentamente.
— Mas dessa vez, ele nem vai saber.
— Boa ideia — respondeu Isherwood. — Porque Oliver Dimbleby tem uma das maiores bocas de todo o mundo da arte.
— Exatamente.
— O que está pensando?
Gabriel contou. Isherwood deu um sorriso malicioso.
— Garoto malvado — falou. — Muito malvado.
Quando terminaram de comer, Gabriel tinha conseguido convencer Isherwood da eficácia de seu plano. Eles trabalharam nos detalhes finais enquanto cruzavam o Hyde
Park e depois se separaram nas calçadas lotadas de Piccadilly. Isherwood voltou para sua galeria em Mason’s Yard; Gabriel foi para a St. Pancras Station, onde tomou
o Eurostar noturno para Paris. Naquela noite, no apartamento seguro com vista para Pont Marie, ele fez amor com Chiara pela segunda vez desde que descobriu que ela
estava grávida.
De manhã eles tomaram café em uma lanchonete perto do Louvre. Depois de caminhar com Chiara de volta ao apartamento, Gabriel tomou um táxi para a Gare de Lyon. Pegou
um trem para Marselha às nove e às 12h45 estava descendo na Gare Saint-Charles. Saiu no começo do boulevard d’Athènes, que seguia até La Canebière, a larga rua de
compras que ia do centro da cidade até o Velho Porto. Os barcos de pesca tinham voltado das viagens matinais; criaturas marinhas de todo tipo estavam em cima de
mesas de metal ao longo do canto leste do porto. Em uma das mesas havia um homem grisalho com um suéter de lã esfarrapado e um avental de borracha. Gabriel parou
ali um pouco para inspecionar a pesca do homem. Então deu a volta na esquina até a ponta sul do porto e entrou no lado do passageiro de um sedã Renault bastante
velho. Sentado atrás do volante, com a ponta de um cigarro queimando entre seus dedos, estava Christopher Keller.
— Você precisa fumar? — perguntou Gabriel, cansado.
Keller apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
— Não acredito que estamos de volta aqui.
— Onde?
— Marselha — respondeu Keller. — Foi onde começamos nossa busca pela garota inglesa.
— E onde você tirou uma vida desnecessariamente — acrescentou Gabriel, sombrio.
— Não vamos voltar a litigar sobre isso.
— É uma palavra difícil para um ladrão de arte, Christopher.
— Não acha que é uma coincidência estarmos sentados no mesmo carro do mesmo lado do Velho Porto?
— Não.
— Por que não?
— Porque Marselha é onde estão os criminosos.
— Como ele. — Keller indicou com a cabeça o homem com o suéter esfarrapado de lã parado em uma mesa cheia de peixes no canto do porto.
— Conhece ele?
— Todo mundo nessa área conhece Pascal Rameau. Ele e sua tripulação são os melhores ladrões na Côte d’Azur. Roubam tudo. Havia um boato de que já tentaram roubar
a Torre Eiffel.
— O que aconteceu?
— O comprador desistiu. Ou pelo menos é como Pascal gosta de contar a história.
— Já fez negócios com ele?
— Ele não precisa de pessoas como eu.
— E o que isso quer dizer?
— Pascal dirige um barco bem organizado. — Keller soltou uma nuvem de fumaça de cigarro. — Então Maurice faz um pedido e Pascal entrega as mercadorias, não é assim
que funciona?
— Como a Amazon.
— O que é Amazon?
— Você precisa sair do seu vale com mais frequência, Christopher. O mundo mudou desde que você morreu.
Keller ficou em silêncio. Gabriel desviou o olhar de Pascal Rameau, virando para o bairro montanhoso de Marselha perto da basílica. Lembrou-se de imagens do passado:
a porta de um apartamento imponente sobre o boulevard Saint-Rémy, um homem caminhando rapidamente pelas sombras frias da manhã, uma garota árabe com olhos castanhos
impiedosos parada no alto de uma escadaria de pedra. Com licença, monsieur. Está perdido? Ele apagou a lembrança, enfiou a mão no bolso de seu casaco para pegar
o celular, mas parou. Havia uma equipe de segurança do lado de fora do apartamento em Paris. Não aconteceria nada com ela.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Não — respondeu Gabriel. — Está tudo bem.
— Tem certeza?
Gabriel voltou a olhar para Pascal Rameau. Keller sorriu.
— É um pouco estranho, não acha?
— O quê?
— Que um homem como você pudesse estar associado com um ladrão de arte.
— Ou um assassino profissional — acrescentou Gabriel.
— O que você quer dizer?
— Que a vida é complicada, Christopher.
— Nem me fale.
Keller apagou seu cigarro e começou a acender outro.
— Por favor — falou Gabriel, baixo.
Keller colocou o cigarro de volta no maço.
— Quanto tempo vamos ter que esperar?
Gabriel olhou para seu relógio.
— Vinte e oito minutos.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque o trem dele chega a Saint-Charles às 13h34. A caminhada da estação ao porto vai levar 12 minutos.
— E se ele der uma parada no caminho?
— Não vai — respondeu Gabriel. — Monsieur Durand é muito confiável.
— Se é tão confiável, por que voltamos a Marselha?
— Porque ele tem um milhão de euros do dinheiro dos carabinieri e quero ter certeza de que vai terminar no lugar certo.
— No bolso de Pascal Rameau.
Gabriel não falou nada.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller acendeu um cigarro.
— Nem me fale.
Eram 13h45 quando eles o viram descendo a colina de La Canebière, o que significava que estava um minuto adiantado. Trajava um terno cinza de lã e um chapéu elegante,
na mão direita carregava uma maleta contendo um milhão de euros em efetivo. Caminhou até os pescadores e abriu caminho lentamente entre as mesas até parar na frente
de Pascal Rameau. Trocaram palavras, os produtos foram inspecionados com cuidado para ver se estavam frescos e finalmente um deles foi escolhido. Durand entregou
uma única nota, pegou um saco plástico com uma lula e caminhou para o lado sul do porto. Um momento depois, ele passou por Gabriel e Keller sem olhar para eles.
— Aonde ele vai agora?
— A um barco chamado Mistral.
— Quem é o dono do barco?
— René Monjean.
Keller ergueu uma sobrancelha.
— Como você conhece o Monjean?
— Outra história, para outro momento.
Durand agora estava caminhando por um dos cais flutuantes entre as fileiras de barcos de passeio. Como Gabriel previu, ele entrou em um iate chamado Mistral e se
enfiou na cabina. Ficou ali por 17 minutos precisamente, e quando reapareceu não estava mais com a pasta ou a lula. Passou pelo Renault velho de Keller e começou
a voltar para a estação de trem.
— Parabéns, Christopher.
— Pelo quê?
— Você é agora o orgulhoso proprietário de um Van Gogh que vale duzentos milhões de dólares.
— Ainda não.
— Maurice Durand é muito confiável — falou Gabriel. — Assim como René Monjean.
19
AMSTERDÃ
NOS NOVE DIAS SEGUINTES, o mundo da arte girou tranquilo em seu eixo dourado, sem saber da bomba que estava armada em seu ventre. Fazia bons almoços, bebia até tarde
da noite, deslizava cuidadoso nas colinas de Aspen e St. Moritz nas últimas neves boas da estação. Então, na terceira sexta-feira de abril, acordou com a notícia
de que uma calamidade havia acontecido no Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã. Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, tinha desaparecido.
A técnica empregada pelos ladrões não combinava com a sublime beleza de seu alvo. Eles escolheram o porrete no lugar do florete, a velocidade no lugar da sagacidade.
O chefe do departamento de polícia de Amsterdã mais tarde chamaria de melhor demonstração de “ataque surpresa” que já tinha visto, apesar de ser cuidadoso para não
revelar muitos detalhes, principalmente para não facilitar para outro bando de ladrões o roubo de outra obra de arte icônica e insubstituível. Ficou grato só por
uma coisa: que os ladrões não tivessem usado uma navalha para tirar a tela de sua moldura. Na verdade, falou, eles tinham tratado o quadro com uma ternura que beirava
a reverência. Muitos especialistas no campo da segurança de arte, no entanto, viram o trato cuidadoso da tela como um sinal perturbador. Para eles, sugeria um roubo
encomendado, realizado por criminosos profissionais altamente competentes. Um detetive aposentado da Scotland Yard falou cético sobre as perspectivas de recuperar
o quadro. O mais provável, ele falou, é que Doze Girassóis numa Jarra agora estava pendurado no museu dos desaparecidos e nunca mais seria visto pelo público de
novo.
O diretor do Rijksmuseum apareceu na mídia para fazer um apelo pelo retorno seguro do quadro. E quando fracassou em comover os ladrões, ele ofereceu uma recompensa
substancial, o que obrigou a polícia holandesa a desperdiçar incontáveis horas seguindo mentiras e pistas falsas. O prefeito de Amsterdã, um radical não arrependido,
achou que era preciso fazer uma manifestação. Três dias depois, várias centenas de ativistas de todos os tipos convergiram ao Museumplein para exigir que os ladrões
entregassem o quadro. Também defenderam o tratamento ético dos animais, o fim do aquecimento global, a legalização de todos os narcóticos recreativos, o fechamento
da prisão norte-americana em Guantánamo e o fim da ocupação da Cisjordânia e de Gaza. Ninguém foi preso e todos passaram uma boa tarde, especialmente os que se abasteceram
da cannabis e das camisinhas grátis. Até os mais liberais dos jornais holandeses acharam que o protesto tinha sido inútil. “Se isso é o melhor que podemos fazer”,
publicou um deles no editorial, “deveríamos nos preparar para o dia em que as paredes de nossos grandes museus estejam vazias”.
Nos bastidores, no entanto, a polícia holandesa estava envolvida em esforços muito mais tradicionais para recuperar o que era, sem dúvida, a mais famosa obra de
Van Gogh. Conversaram com seus informantes, grampearam telefones e contas de e-mail de ladrões conhecidos, e ficaram de olho em galerias de Amsterdã e Roterdã que
eram suspeitas de trabalhar com bens roubados. Mas quando passou outra semana sem progresso, decidiram abrir um canal com seus companheiros na polícia dos outros
países europeus. Os belgas os enviaram a uma corrida maluca até Lisboa, enquanto os franceses fizeram pouco mais do que desejar boa sorte. A mais intrigante dica
estrangeira veio do general Cesare Ferrari do Esquadrão de Arte, que afirmou ter ouvido um rumor de que a mafiya russa tinha organizado o roubo. Os holandeses fizeram
contato com o Kremlin atrás de informação. Os russos nem se dignaram a responder.
No momento, era o começo de maio e a polícia holandesa não tinha nenhuma pista importante sobre a localização do quadro. Publicamente, o chefe jurava redobrar seus
esforços. Em particular, admitia que, se não houvesse uma intervenção divina, o Van Gogh provavelmente estaria perdido para sempre. Dentro do museu, uma mortalha
escura estava pendurada no lugar do quadro. Um colunista britânico sarcasticamente implorou para que o diretor do museu aumentasse a segurança. Ou, ele brincou,
os ladrões iriam roubar a mortalha também.
Alguns em Londres acharam a coluna de mau gosto, mas a maior parte do mundo da arte coletivamente deu de ombros e continuou com sua vida. Os importantes leilões
de Velhos Mestres estavam se aproximando e todos diziam que a temporada seria a mais lucrativa em anos. Havia quadros para serem vistos, clientes para entreter e
estratégias de lances a criar. Julian Isherwood estava ocupadíssimo. Na quarta-feira daquela semana, ele foi visto no salão de vendas em Bonhams olhando uma paisagem
de rio italiano atribuído ao círculo de Agostino Buonamico. No dia seguinte, estava comendo no Dorchester com um turco expatriado de meios aparentemente ilimitados.
Então, na sexta-feira, ficou até mais tarde na Christie’s para realizar as devidas diligências em um João Batista do século XVIII da Escola de Bolonha. Como resultado,
o bar no Green’s já estava completamente lotado quando ele chegou. Parou para conversar com Jeremy Crabbe antes de se sentar em sua mesa de sempre, com sua garrafa
de Sancerre de sempre. O gorducho Oliver Dimbleby estava flertando desavergonhadamente com Amanda Clifton, a deliciosa nova chefe do departamento de Impressionistas
e Arte Moderna da Sotheby’s. Colocou um de seus cartões dourados na mão dela, jogou um beijo para Simon Mendenhall, depois veio até a mesa de Isherwood.
— Querido Julie — falou enquanto se sentava na cadeira vazia. — Conte-me algo absolutamente escandaloso. Um rumor maldoso. Uma fofoca um pouco maliciosa. Algo com
que possa aguentar o resto da semana.
Isherwood sorriu, serviu dois dedos de vinho na taça vazia de Oliver e se preparou para entretê-lo.
— Paris? É mesmo?
Isherwood assentiu, conspiratório.
— Quem falou?
— Não posso dizer.
— Vamos, minha flor. Está falando comigo. Tenho mais segredos sujos que a MI6.
— É por isso que não vou falar mais nada sobre isso.
Dimbleby pareceu ficar realmente chateado, o que, até aquele momento, Isherwood não achou que fosse possível.
— Minha fonte está conectada com o mundo da arte de Paris. É tudo que posso dizer.
— Bom, é uma revelação. Achei que você ia me dizer que ele era um sous-chef no Maxim’s.
Isherwood não falou nada.
— Está no meio ou é consumidor de arte?
— No meio.
— Vendedor?
— Use sua imaginação.
— E ele realmente viu o Van Gogh?
— Minha fonte nunca estaria na mesma sala que um quadro roubado — respondeu Isherwood com o toque certo de indignação honrada. — Mas ele tem certeza de que vários
negociantes e colecionadores viram fotografias Polaroid.
— Não sabia que elas ainda existiam.
— O quê?
— Câmeras Polaroid.
— Parece que sim.
— Por que usar uma Polaroid?
— Não deixam rastros digitais que podem ser seguidos pela polícia.
— Bom saber — falou Dimbleby, dando uma olhada no traseiro de Amanda Clifton. — Então, quem está vendendo?
— De acordo com os rumores, é um inglês desconhecido.
— Um inglês? Que canalha.
— Chocante — concordou Isherwood.
— Quanto está pedindo?
— Dez milhões.
— Por um maldito Van Gogh? É uma pechincha.
— Exatamente.
— Não vai durar muito, não por esse preço. Alguém vai agarrá-lo e escondê-lo para sempre.
— Minha fonte acha que nosso inglês poderia na verdade ter uma guerra de ofertas nas mãos.
— E é por isso — falou Dimbleby, com o tom repentinamente sério — que você não tem escolha: deve ir à polícia.
— Não posso.
— Por que não?
— Porque tenho que proteger minha fonte.
— Você é profissionalmente obrigado a contar à polícia. Moralmente, também.
— Adoro quando você vem me dar lições de moral, Oliver.
— Não precisa transformar em algo pessoal, Julie. Só estava tentando fazer um favor.
— Como me mandar em uma viagem com tudo pago para o lago Como?
— Vamos repetir essa conversa?
— Ainda tenho pesadelos com aquele corpo pendurado do maldito lustre. Parecia algo pintado por...
A voz de Isherwood falou. Dimbleby franziu a testa, pensativo.
— Por quem?
— Esquece.
— Descobriram quem o matou?
— Quem?
— Jack Bradshaw, seu tonto.
— Acho que foi o mordomo.
Dimbleby sorriu.
— Agora lembre-se, Oliver, tudo que lhe contei sobre o Van Gogh em Paris fica entre nous.
— Nunca vai sair dos meus lábios.
— Jure para mim, Oliver.
— Tem minha palavra de honra — falou Dimbleby. Após terminar de beber, contou para todo mundo no bar.
Na hora do almoço do dia seguinte, era o assunto principal no Wilton’s. Dali, foi se espalhando para a Galeria Nacional, a Tate e, finalmente, para a Galeria Courtauld,
que estava preocupada com o roubo por ter exposto o Autorretrato com a Orelha Cortada, de Van Gogh. Simon Mendenhall contou a todos na Christie’s; Amanda Clifton
fez o mesmo na Sotheby’s. Até o normalmente taciturno Jeremy Crabbe não conseguiu manter seu próprio conselho. Contou tudo em um longo e-mail para alguém no escritório
de Nova York da Bonhams e em pouco tempo já tinha se espalhado pelas galerias de Midtown e do Upper East Side. Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos imensamente
ricos, sussurrou na orelha de uma repórter do New York Times, mas a repórter já tinha ouvido de outra pessoa. Ela ligou para o chefe da polícia holandesa, que já
tinha ouvido também.
O holandês ligou para seu parceiro em Paris, que não deu muita bola. Mesmo assim, a polícia francesa começou a procurar um inglês bonito de meia-idade com cabelo
loiro, óculos com lentes azuis e um leve sotaque cockney. Encontraram vários, mas nenhum era um ladrão de arte. Entre os que caíram na rede estava o sobrinho do
secretário de Estado britânico, cujo sotaque era o elegante de Londres, não tendo nada de cockney. O secretário de Estado ligou para o ministro do interior francês
para reclamar, e o sobrinho foi liberado sem alarde.
Havia um aspecto do rumor, no entanto, que era totalmente real: Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, estava realmente em Paris. Tinha chegado ali
na manhã seguinte ao desaparecimento, no porta-malas de uma Mercedes. Foi primeiro à Antiquités Scientifiques, onde, enrolado em papel vegetal, passou duas noites
descansando em um armário climatizado. Então foi levado em mãos até o apartamento do Escritório com vista para Pont Marie. Gabriel rapidamente colocou o quadro em
um novo tensor e em um cavalete no estúdio que tinha montado no dormitório vazio. Naquela noite, enquanto Chiara estava cozinhando, ele selou a porta com fita adesiva
para evitar qualquer contaminação da superfície. E quando eles dormiram, o quadro dormia perto deles, banhado no brilho amarelado das lâmpadas ao longo do Sena.
Na manhã seguinte, ele foi a uma pequena galeria perto dos Jardins de Luxemburgo onde, passando-se por um alemão, comprou uma paisagem de Paris feita por um impressionista
secundário que usava o mesmo tipo de tela que Van Gogh. Voltou ao apartamento, limpou o quadro usando uma poderosa solução de solvente e removeu a tela do tensor.
Depois de cortar a tela até chegar às dimensões apropriadas, colocou-a no mesmo tipo de suporte no qual havia colocado Doze Girassóis numa Jarra, um suporte medindo
95x73 cm. Em seguida, cobriu a tela com uma camada fresca de base. Doze horas depois, quando a base tinha secado, ele preparou sua paleta com amarelo cromo e amarelo
ocre, e começou a pintar.
Trabalhou como Van Gogh tinha trabalhado, depressa, alla prima e com um toque de loucura. Às vezes, sentia como se Van Gogh estivesse parado olhando por cima do
seu ombro, cachimbo na mão, guiando todas suas pinceladas. Em outras, conseguia vê-lo no estúdio na Casa Amarela em Arles, apressando-se para capturar a beleza dos
girassóis em sua tela antes que murchassem e morressem. Era agosto de 1888 quando Van Gogh produziu seus primeiros estudos de girassóis em Arles; ele os pendurou
num quarto vazio, no qual Paul Gauguin, com muitos receios, ficou no final de outubro. O dominante Gauguin e o suplicante Vincent pintaram juntos pelo resto do outono,
geralmente trabalhando lado a lado nos campos ao redor de Arles, mas eles tinham a tendência de discutir violentamente sobre Deus e a arte. Uma das brigas ocorreu
na tarde de 23 de dezembro. Depois de enfrentar Gauguin com uma navalha, Vincent foi até o bordel na rue du Bout d’Aeles e cortou um pedaço de sua orelha esquerda.
Duas semanas depois, ao sair do hospital, voltou à Casa Amarela, sozinho e com uma atadura, e produziu três impressionantes repetições dos girassóis que tinha pintado
para o quarto de Gauguin. Até recentemente, um desses quadros estava pendurado no Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã.
Van Gogh provavelmente tinha pintado o Doze Girassóis numa Jarra de Amsterdã em algumas horas, assim como tinha feito com seu predecessor no mês de agosto. Gabriel,
no entanto, precisou de três dias para produzir o que mais tarde chamaria de uma versão de Paris. Com a adição da famosa assinatura de Van Gogh ao vaso, a falsificação
era idêntica ao original em todos os aspectos, menos um: não tinha craquelado, a fina rede de rachaduras nas superfícies que aparecem nos quadros com o tempo. Para
induzir um rápido craquelado, Gabriel tirou a tela de sua base e assou no forno por trinta minutos. Então, quando a tela tinha esfriado, segurou-a esticada entre
as duas mãos e arrastou na ponta da mesa de jantar, primeiro na horizontal, depois na vertical. O resultado foi a aparição de um craquelado instantâneo. Ele colocou
a tela de volta na base, cobriu com uma camada de verniz e colocou perto do original. Chiara não conseguia diferenciar um do outro. Nem Maurice Durand.
— Nunca achei que seria possível — disse o francês.
— O quê?
— Que alguém pudesse ser tão bom quanto Yves Morel. — Passou o dedo gentilmente sobre as pinceladas do impasto de Gabriel. — É como se o próprio Vincent tivesse
pintado.
— Esse é o objetivo, Maurice.
— Mas não é tão fácil de conseguir, mesmo para um restaurador profissional. — Durand se inclinou para mais perto da tela. — Que técnica você usou para produzir o
craquelado?
Gabriel contou.
— O método Van Meegeren. Muito eficiente, desde que você não queime o quadro. — Durand olhava da falsificação de Gabriel para o original de Van Gogh.
— Não comece a ter ideias, Maurice. Vai voltar a Amsterdã assim que terminarmos com isso.
— Sabe quanto eu conseguiria por ele?
— Dez milhões.
— Vinte, no mínimo.
— Mas você não roubou, Maurice. Foi roubado por um inglês com cabelo claro e óculos de lentes azuis.
— Um amigo meu acha que realmente o conheceu.
— Espero que não o desiluda dessa ideia.
— De jeito nenhum — respondeu Durand. — O submundo do comércio acredita que seu amigo tem o quadro e que já está negociando com vários compradores em potencial.
Não vai demorar muito para que “você sabe quem” morda a isca.
— Talvez ele precise de um pouco de encorajamento.
— De que tipo?
— Um aviso antes que o martelo seja batido. Você acha que pode fazer isso, Maurice?
Durand sorriu.
— Com apenas um telefonema.
20
GENEBRA
HAVIA UM ASPECTO DO NEGÓCIO que estava inquietando Gabriel desde o começo: as salas secretas de Jack Bradshaw no Freeport de Genebra. Via de regra, um empresário
utilizava os serviços únicos do Freeport porque queria evitar impostos ou porque estava escondendo algo. Gabriel suspeitava que os motivos de Bradshaw pertenciam
à segunda categoria. Mas como ter acesso sem uma ordem da justiça e acompanhamento policial? O Freeport não era o tipo de lugar onde dava para entrar com uma gazua
e um sorriso confiante. Gabriel precisaria de um aliado, alguém com o poder de abrir qualquer porta na Suíça sem fazer barulho. Ele conhecia alguém assim. Uma barganha
teria que ser feita, um acordo secreto. Seria complicado, mas as questões envolvendo a Suíça sempre eram.
O contato inicial foi breve e pouco promissor. Gabriel ligou para o homem em seu escritório em Berna e contou uma história incompleta sobre o que precisava e os
motivos. O homem de Berna não ficou muito impressionado, o que era de se esperar, apesar de ficar interessado.
— Onde você está agora? — perguntou ele.
— Sibéria.
— Com que velocidade pode chegar em Genebra?
— Posso pegar o próximo trem.
— Não sabia que havia um trem direto da Sibéria.
— Na verdade passa por Paris.
— Mande uma mensagem quando estiver na cidade. Vou ver o que posso fazer.
— Não posso ir até Genebra sem garantias.
— Se quiser garantias, ligue para um banqueiro suíço. Mas se quiser dar uma olhada naquelas salas, vai ter que ser do meu jeito. E nem pense em chegar perto do Freeport
sem mim — acrescentou o homem de Berna. — Se fizer isso, vai ficar na Suíça por um bom tempo.
Gabriel teria preferido circunstâncias melhores para fazer a viagem, mas era agora ou nunca. Com a cópia finalizada do Van Gogh, a parte Paris da operação consistia
em esperar. Ele podia passar o dia olhando para o telefone ou utilizar a pausa nas atividades de forma mais produtiva. No final, Chiara tomou a decisão por ele.
Gabriel trancou os dois quadros no armário do quarto, correu até a Gare de Lyon, e pegou o TGV das nove. Chegou em Genebra alguns minutos depois do meio-dia. Gabriel
ligou para o homem em Berna de um telefone público na estação.
— Onde você está? — perguntou o homem.
Gabriel respondeu.
— Vou ver o que posso fazer.
A estação de trem estava em um setor de Genebra que parecia um quartier antigo de uma cidade francesa. Gabriel caminhou até o lago e cruzou a Pont du Mont-Blanc
até a margem sul. Comeu tranquilamente uma pizza no Jardin Anglais e depois caminhou pelas ruas escuras da Cidade Velha do século XVI. Às quatro horas o ar estava
frio, com a noite já se aproximando. Com os pés doloridos, cansado de esperar, Gabriel ligou pela terceira vez para o homem em Berna, mas ninguém atendeu. Dez minutos
depois, enquanto caminhava pelas margens e entre as lojas exclusivas da rue du Rhône, ele ligou de novo. Dessa vez, o homem atendeu.
— Pode me chamar de antiquado — falou Gabriel —, mas realmente não gosto quando as pessoas me deixam esperando.
— Nunca prometi nada.
— Eu poderia ter ficado em Paris.
— Seria uma pena. Genebra é adorável nessa época do ano. E você teria perdido a chance de dar uma olhada dentro do Freeport.
— Quanto tempo mais vai me deixar esperando?
— Podemos fazer isso agora, se quiser.
— Onde você está?
— Vire-se.
Gabriel obedeceu.
— Maldito.
Seu nome era Christoph Bittel — ou pelo menos foi o nome que usou na primeira e única vez que tinham se visto. Ele trabalhava, ou era o que tinha dito na época,
na divisão de contraterrorismo da NDB, o serviço de segurança interna e inteligência da Suíça. Era magro e pálido, com uma testa larga que lhe dava a aparência,
merecida, de alguém muito inteligente. Sua mão pálida, esticada sobre o câmbio de um sedã esportivo alemão, parecia que tinha sido recentemente limpa de bactérias.
— Bem-vindo de volta a Genebra — falou Bittel enquanto saía do trânsito. — Seria bom se você tivesse feito uma reserva, para variar.
— Os dias de operações sem autorização na Suíça estão contados. Somos parceiros agora, lembra-se, Bittel?
— Não vamos nos empolgar, Allon. Não devemos estragar toda a diversão.
Bittel colocou uns óculos escuros largos, que fazia com que parecesse um louva-deus. Dirigia bem, mas com cuidado, como se tivesse contrabando no porta-malas e estivesse
tentando evitar o contato com as autoridades.
— Como era de se esperar — falou depois de um momento —, sua confissão forneceu horas de escuta interessante para nossos oficiais e ministros.
— Não foi uma confissão.
— Como descreveria aquilo?
— Fiz uma completa descrição das minhas atividades em solo suíço — falou Gabriel. — Em troca, você concordou em não me colocar na prisão pelo resto da minha vida.
— Algo que merecia. — Bittel balançou a cabeça devagar enquanto dirigia. — Assassinatos, roubos, sequestros, uma operação de contraterrorismo no cantão de Uri que
terminou com vários membros da Al-Qaeda mortos. Esqueci algo?
— Eu já chantageei um dos seus mais importantes empresários para conseguir acesso à cadeia de suprimentos nucleares do Irã.
— Ah, claro. Como pude me esquecer de Martin Landesmann?
— Foi uma das melhores coisas que fiz.
— E agora quer ter acesso a um depósito no Freeport de Genebra sem uma autorização da justiça?
— É bem evidente que você tem um amigo no Freeport disposto a deixar você dar uma olhada extrajudicial na mercadoria de vez em quando.
— É evidente. Mas eu geralmente gosto de saber o que vou encontrar antes de abrir uma fechadura.
— Quadros, Bittel. Vamos encontrar quadros.
— Quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— E o que acontece se o dono descobrir que nós entramos?
— O dono está morto. Não vai reclamar.
— Os depósitos no Freeport estão registrados em nome da empresa de Bradshaw. E a empresa continua viva.
— A empresa é uma fachada.
— Aqui é a Suíça, Allon. Empresas de fachada é o que nos mantêm nos negócios.
À frente, um semáforo passou de verde para amarelo. Bittel tinha tempo mais do que suficiente para atravessar o cruzamento. Em vez disso, ele foi diminuindo até
parar o carro.
— Ainda não me contou do que se trata tudo isso — falou ele, segurando o câmbio de marcha.
— Com bons motivos.
— E se conseguir abrir os depósitos? O que ganho em troca?
— Se eu estiver certo — respondeu Gabriel —, você e seus amigos no NDB um dia poderão anunciar a recuperação de várias obras de arte há muito desaparecidas.
— Arte roubada no Freeport de Genebra. Não é exatamente boa publicidade para a Confederação.
— Não dá para ter tudo, Bittel.
O semáforo abriu. Bittel tirou o pé do freio e acelerou devagar, como se estivesse tentando economizar combustível.
— Entramos, olhamos e saímos. E tudo que está no depósito fica no depósito. Entendido?
— Você é que manda.
Bittel dirigiu em silêncio, sorrindo.
— O que está achando engraçado? — perguntou Gabriel.
— Acho que gosto do novo Allon.
— Não posso dizer o quanto isso significa para mim, Bittel. Mas você não poderia dirigir um pouco mais rápido? Gostaria de chegar a Freeport ainda hoje.
Eles viram o lugar uns minutos depois, uma fileira de prédios brancos sem nenhum ornamento com uma placa vermelha no alto onde se podia ler PORTS FRANCS. No século
XIX, tinham sido pouco mais que um armazém onde produtos agrícolas eram guardados a caminho do mercado. Agora era um repositório seguro livre de impostos onde os
super-ricos do mundo guardavam todo tipo de tesouro: barras de ouro, joias, vinhos antigos, automóveis e, claro, arte. Ninguém sabia exatamente quantas grandes obras
de arte do mundo havia dentro dos cofres do Freeport de Genebra, mas acreditava-se que seria o suficiente para criar vários grandes museus. Muitas delas nunca mais
veriam a luz do dia; e se mudassem de mãos, seria de forma privada. Não era arte para ser vista e admirada. Era arte como mercadoria, arte como um investimento contra
tempos incertos.
Apesar da vasta riqueza contida dentro de Freeport, a segurança era realizada com a discrição suíça. A cerca ao redor do lugar era mais uma forma de desencorajar
do que uma barreira, e o portão através do qual Bittel dirigiu seu carro demorou para fechar. Câmeras de vídeo brotavam de todos os edifícios e, poucos segundos
depois da chegada deles, um agente de segurança apareceu de uma porta segurando uma prancheta numa mão e um rádio na outra. Bittel saiu do carro e falou umas palavras
com o guarda em francês fluente. O guarda voltou para sua sala e um momento depois apareceu uma morena bonita com saia e blusa apertadas. Ela entregou uma chave
a Bittel e apontou para o final do complexo.
— Imagino que essa seja sua amiga — falou Gabriel quando Bittel voltou ao carro.
— Nosso relacionamento é estritamente profissional.
— Uma pena.
Os endereços em Freeport eram uma combinação de prédio, corredor e porta do depósito. Bittel estacionou em frente ao edifício quatro e entrou com Gabriel. Do hall
de entrada saía um corredor com um número aparentemente infinito de portas. Uma estava aberta. Olhando para dentro, Gabriel viu um homem pequeno e de óculos sentado
atrás de uma mesa chinesa laqueada com um telefone no ouvido. O depósito tinha sido transformado em uma galeria de arte.
— Várias empresas de Genebra se mudaram para Freeport nos últimos anos — explicou Bittel. — O aluguel é mais barato do que na rue du Rhône e os clientes parecem
gostar da reputação intrigante do Freeport.
— É merecida.
— Não mais.
— Vamos ver.
Subiram pela escada até o terceiro andar. O depósito de Bradshaw estava localizado no corredor 12, atrás de uma porta metálica cinza onde se lia o número 24. Bittel
hesitou antes de enfiar a chave.
— Não vai explodir, não é?
— Boa pergunta.
— Isso não é engraçado.
Bittel abriu a porta, acendeu a luz e xingou baixinho. Havia quadros por todos os lados — quadros em molduras, quadros em extensores, quadros enrolados como tapetes
em um bazar persa. Gabriel desenrolou um no chão para Bittel ver. Mostrava um chalé no alto de um penhasco sobre o mar brilhando com flores silvestres.
— Monet? — perguntou Bittel.
Gabriel assentiu.
— Foi roubado de um museu na Polônia há uns vinte anos.
Ele desenrolou outra tela: uma mulher segurando um leque.
— Salvo engano — falou Bittel —, esse é um Modigliani.
— Não está enganado. Foi um dos quadros roubados do Museu de Arte Moderna em Paris, em 2010.
— O roubo do século. Lembro dele.
Bittel seguiu Gabriel até uma porta que dava para uma sala interna do depósito. Continha dois grandes cavaletes, uma lâmpada halógena, frascos de solvente e tintas,
locais para pigmentos, pincéis, uma paleta bastante usada e um catálogo da Christie’s do leilão de Velhos Mestres de Londres de 2004. Estava aberto em uma crucificação
atribuída a um seguidor de Guido Reni, executado de forma competente, mas pouco inspirada, não valendo nem o lucro do vendedor.
Gabriel fechou o catálogo e olhou ao redor do depósito. Era o estúdio secreto de um mestre em falsificações, pensou, na galeria de arte dos desaparecidos. Mas era
óbvio que Yves Morel tinha feito mais nessa sala do que falsificar quadros; também tinha feito muitas restaurações. Gabriel pegou a paleta e passou seu dedo pelas
amostras de tinta que havia na superfície. Ocre, dourado e carmim: as cores da Natividade.
— O que é isso? — perguntou Bittel.
— Provas de vida.
— Do que você está falando?
— O quadro esteve aqui — falou Gabriel. — Ele existe.
Havia 147 quadros nas duas salas do depósito — impressionistas, modernos, Velho Mestres — mas nenhum deles era o Caravaggio. Gabriel fotografou cada tela usando
a câmera em seu celular. Os únicos outros itens no depósito eram uma mesa e um pequeno cofre — pequeno demais, pensou Gabriel, para conter um retábulo italiano de
dois metros por dois e meio. Procurou nas gavetas da mesa, mas estavam vazias. Então se ajoelhou em frente ao cofre e girou o segredo de números com o dedão e o
indicador. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
— No que está pensando? — perguntou Bittel.
— Estou tentando imaginar quanto tempo demoraria para trazer um arrombador aqui.
Bittel sorriu triste.
— Talvez da próxima vez.
É, pensou Gabriel. Da próxima vez.
Eles voltaram à estação de trem passando pela hora do rush de Genebra. Cruzando a Pont du Mont-Blanc, Bittel pressionou Gabriel para obter mais informações sobre
o caso. E quando suas perguntas não resultaram em respostas claras, insistiu em ser avisado com antecedência se o itinerário de Gabriel incluísse outra visita à
Suíça. Gabriel concordou imediatamente, embora os dois soubessem que era uma promessa vazia.
— Em algum momento — falou Bittel —, vamos ter que limpar esse depósito e devolver esses quadros a seus verdadeiros donos.
— Em algum momento — concordou Gabriel.
— Quando?
— Não sei.
— Digo que você tem um mês. Depois disso, terei que falar sobre o assunto para a Polícia Federal.
— Se fizer isso — falou Gabriel — vai aparecer na imprensa, e a Suíça vai terminar com outro olho roxo.
— Estamos acostumados com isso.
— Nós também.
Eles chegaram à estação a tempo de Gabriel pegar o trem das quatro e meia de volta a Paris. Estava escuro quando ele chegou; subiu num táxi que o esperava e deu
ao motorista um endereço perto do apartamento seguro. Mas quando o carro começou a andar, Gabriel sentiu que seu celular estava vibrando. Atendeu a ligação, ouviu
por um momento e depois desligou.
— Mudanças de planos — falou ao motorista.
— Para onde?
— Para a rue de Miromesnil.
— Como quiser.
Gabriel enfiou o celular no bolso e sorriu. O jogo estava começando, pensou. Finalmente, o jogo estava começando.
21
RUE DE MIROMESNIL, PARIS
NO COMEÇO, MAURICE DURAND TENTOU reivindicar privilégios de confidencialidade sobre a identidade de quem havia ligado. Sob pressão, no entanto, ele admitiu que tinha
sido Jonas Fischer, um rico empresário e colecionador famoso de Munique que usava com regularidade os serviços especiais de monsieur Durand. Herr Fischer deixou
claro desde o começo que não era ele que estava interessado no Van Gogh, que estava intercedendo em nome de um amigo também colecionador que, por motivos óbvios,
não podia dizer o nome. Parecia que o segundo colecionador já tinha despachado um representante a Paris, baseado em certos rumores que davam voltas pelo mundo da
arte. Herr Fischer perguntou se Durand poderia apontar a direção correta ao representante.
— O que você falou para ele? — perguntou Gabriel.
— Falei que não sabia onde estava o Van Gogh, mas que poderia dar uns telefonemas.
— E se você puder ser de ajuda?
— Devo ligar para o representante diretamente.
— Suponho que ele não tenha um nome.
— Só um número de telefone — respondeu Durand.
— Bem profissional.
— Pensei exatamente o mesmo.
Estavam no pequeno escritório nos fundos da loja de Durand. Gabriel estava encostado no batente da porta; Durand, sentado em sua pequena mesa dickensiana. Na frente
dele havia um microscópio de latão, do final do século XIX, de Vérick de Paris.
— Será quem estamos procurando? — perguntou Gabriel.
— Um homem como Herr Fischer não estaria envolvido com ninguém que não fosse um colecionador sério. Também me contou que seu amigo fez várias aquisições importantes
ultimamente.
— Uma dessas aquisições foi um Caravaggio?
— Não perguntei.
— Provavelmente é melhor que não pergunte.
— Provavelmente — concordou Durand.
Um silêncio caiu entre eles.
— Então? — perguntou o francês.
— Diga para ele estar no pátio de Saint-Germain-des-Prés às duas da tarde amanhã, perto da porta vermelha. Avise para levar seu celular, mas nenhuma arma. Não fale
mais nada. Só diga a ele o que fazer, então desligue.
Durand pegou o fone e discou o número.
Saindo da loja cinco minutos depois, o ladrão de arte e o antigo e futuro agente do serviço secreto israelense praticamente não trocaram uma palavra ou olhar. O
ladrão de arte se dirigiu à brasserie do outro lado da rua; o agente, para a embaixada israelense no número três da rue Rabelais. Entrou no prédio pela porta traseira,
desceu até a sala de comunicações seguras e ligou para o chefe de Serviços Domésticos, a divisão do Escritório que administrava as propriedades seguras. Disse que
precisava de algo perto de Paris, mas isolado, de preferência no norte. Não precisava ser nada grande, acrescentou. Não estava planejando fazer nada divertido.
— Lamento — falou o chefe de Serviços Domésticos. — Posso permitir que fique em uma propriedade existente, mas não posso adquirir uma nova sem a aprovação do andar
superior.
— Talvez você não tenha ouvido quando falei meu nome.
— O que devo falar ao Uzi?
— Nada, claro.
— Para quando precisa dela?
— Ontem.
Às nove da manhã seguinte, o Serviços Domésticos tinha fechado a compra de uma fazenda pitoresca na região de Picardia, nos arredores da vila de Andeville. Uma grande
cerca viva protegia a entrada de quem passava do lado de fora, e da ponta de seu bonito jardim traseiro era possível ver as plantações que lembravam uma colcha de
retalhos. Gabriel e Chiara chegaram na hora do almoço e esconderam os dois Van Gogh na adega. Então, Gabriel imediatamente voltou para Paris. Deixou o carro em um
estacionamento perto da estação Odéon Métro e caminhou pelo boulevard até a Place Saint-Germain-des-Prés. Numa esquina da praça lotada havia um café chamado Le Bonaparte.
Sentado em uma mesa de frente para a rua estava Christopher Keller. Gabriel o cumprimentou em francês e se sentou ao lado dele. Olhou para seu relógio. Eram 13h55.
Pediu um café e olhou para a porta vermelha da igreja.
Não foi difícil avistá-lo; naquela perfeita tarde de primavera, com o sol brilhando em um céu sem nuvens e um vento fraco rondando as ruas cheias, era o único que
tinha vindo sozinho até a igreja. Tinha altura mediana, cerca de 1,75 m, e era magro. Seus movimentos eram fluidos e tranquilos — como os de um jogador de futebol,
pensou Gabriel, ou um soldado de elite. Usava um casaco esportivo leve, uma camisa branca e calça de gabardine cinza. Um chapéu de palha encobria seu rosto, óculos
escuros escondiam seus olhos. Ele caminhou até a porta vermelha e fingiu consultar um guia turístico. Duas jovens, uma de shorts, a outra em um vestido sem alças,
estavam sentadas nos degraus, com as pernas desnudas esticadas. Claramente, havia algo no homem que deixou as duas desconfortáveis. Elas esperaram mais um pouco,
depois se levantaram e cruzaram a praça.
— O que você acha? — perguntou Keller.
— Acho que é o próprio.
O garçom trouxe o café de Gabriel. Ele colocou açúcar e mexeu pensativo enquanto olhava o homem parado perto da porta vermelha da igreja.
— Não vai ligar para ele?
— Não são duas horas ainda, Christopher.
— Já são quase.
— É melhor não parecer muito ansioso. Lembre-se, já temos um comprador no anzol. Nosso amigo ali levantou sua mão atrasado no leilão.
Gabriel continuou na mesa até o relógio na torre da igreja mostrar dois minutos depois da hora. Então se levantou e caminhou para o interior do café. Estava deserto,
exceto pelos funcionários. Ele se aproximou da janela, tirou o celular do bolso do casaco e ligou. Alguns segundos depois, o homem parado na frente da igreja atendeu.
— Bonjour.
— Não precisa falar francês só porque estamos em Paris.
— Prefiro francês, se não se importa.
Ele pode preferir francês, pensou Gabriel, mas não era sua língua nativa. Não estava mais fingindo olhar o seu guia. Estava observando a praça, procurando um homem
com um celular ao ouvido.
— Veio sozinho? — perguntou Gabriel.
— Como está me observando agora, sabe que a resposta é sim.
— Vejo um homem parado onde deveria estar, mas não sei se ele veio sozinho.
— Ele veio.
— Foi seguido?
— Não.
— Como pode ter certeza?
— Tenho certeza.
— Como devo chamá-lo?
— Pode me chamar de Sam.
— Sam?
— Isso, Sam.
— Tem alguma arma, Sam?
— Não.
— Tire seu blazer.
— Por quê?
— Quero ver se tem algo debaixo que não deveria estar ali.
— Isso é realmente necessário?
— Quer ver o quadro ou não?
O homem colocou o guia e o celular nos degraus, tirou seu blazer e o dobrou no braço. Então pegou o celular de novo e perguntou:
— Satisfeito?
— Vire-se e olhe para a igreja.
O homem girou uns 45 graus.
— Mais.
Outros 45.
— Muito bom.
O homem voltou à sua posição original e perguntou:
— E agora?
— Você vai dar uma caminhada.
— Não quero caminhar.
— Não se preocupe, Sam. Não vai ser uma caminhada longa.
— Onde quer que eu vá?
— Desça o boulevard até o Quartier Latin. Sabe chegar no Quartier Latin, Sam?
— Claro.
— Conhece Paris?
— Bastante.
— Não olhe para trás nem pare em lugar nenhum. E não use seu celular, também. Poderia perder minha próxima ligação.
Gabriel desligou e voltou até Keller.
— Então? — perguntou o inglês.
— Acho que encontramos Samir. E acho que é um profissional.
— Estamos no jogo?
— Vamos saber em um minuto.
Do outro lado da praça, Sam estava colocando seu blazer esportivo. Ele enfiou o celular no bolso do peito, jogou o guia no lixo e depois começou a caminhar pelo
boulevard Saint-Germain. Uma curva à direita o levaria a Les Invalides; à esquerda, ao Quartier Latin. Ele hesitou por um momento e depois virou à esquerda. Gabriel
contou lentamente até vinte antes de se levantar e segui-lo.
Pelo menos ele era capaz de seguir instruções. Caminhou reto pelo boulevard, passou as lojas e cafés lotados, sem parar ou olhar para trás. Isso permitiu que Gabriel
mantivesse o foco em sua tarefa principal, que era a contrainteligência. Não viu nada que sugerisse que Sam estava trabalhando com um cúmplice. Nem parecia que estivesse
sendo seguido pela polícia francesa. Estava limpo, pensou Gabriel. Tão limpo quanto poderia estar um comprador de arte roubada.
Depois de dez minutos caminhando reto, Sam estava perto do ponto onde o boulevard se encontrava com o Sena. Gabriel, meio quarteirão atrás, tirou seu celular do
bolso e ligou. Novamente Sam atendeu de imediato, com o mesmo bonjour cordial.
— Vire à esquerda na rue du Cardinal Lemoine e siga até o Sena. Cruze a ponte até a Île Saint-Louis e depois siga reto até eu ligar de novo.
— Muito longe ainda?
— Não está longe, Sam. Você está quase lá.
Sam fez a curva como instruído e cruzou a Pont de la Tournelle até a pequena ilha no meio do Sena. Uma série de cais pitorescos seguia o perímetro da ilha, mas só
uma única rua, a rue Saint-Louis, em l’Île, cortava sua extensão. Com uma ligação, Gabriel instruiu Sam para virar à esquerda de novo.
— Muito longe ainda?
— Só mais um pouco, Sam. E não olhe para trás.
Era uma rua estreita, com turistas caminhando e olhando as vitrines. No lado oeste havia uma sorveteria e ao lado desta uma brasserie com uma boa vista de Notre
Dame. Gabriel ligou para Sam e deu as instruções finais.
— Quanto tempo mais vai me deixar esperando?
— Infelizmente não vou almoçar com você, Sam. Sou apenas o assistente.
Gabriel cortou a ligação sem falar mais nada e viu Sam entrar na brasserie. Um garçom o cumprimentou, depois gesticulou para uma mesa lateral ocupada por um inglês
loiro de óculos de lentes azuis. O inglês se levantou e, sorrindo, esticou a mão.
— Meu nome é Reg. — Gabriel ouviu-o dizer antes de dobrar a esquina. — Reg Bartholomew. E você deve ser o Sam.