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Series & Trilogias Literarias
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BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
ELES COMEÇARAM A BUSCA NÃO com o filho, mas com o pai: o homem que tinha governado a Síria de 1970 até sua morte de um ataque cardíaco em 2000. Ele tinha nascido
nas montanhas Ansariya no noroeste da Síria, em outubro de 1930, na vila de Qurdaha. Como as outras vilas da região, Qurdaha pertencia aos alauítas, seguidores de
uma pequena e perseguida ramificação xiita do islamismo que eram vistos pela maioria sunita como hereges. Qurdaha não tinha mesquita ou igreja, além de nenhum café
ou loja, mas a chuva caía sobre a terra trinta dias a cada ano, e havia uma fonte mineral em uma caverna próxima que os moradores chamavam de ‘Ayn Zarqa. O nono
de 11 filhos, ele vivia em uma casa de pedras de dois quartos com um pequeno jardim de terra batida na frente e um pedaço de terra com lama para os animais. Seu
avô, uma celebridade na pequena vila, bom com os punhos e uma arma, era conhecido como al-Wahhish, o Selvagem, porque já tinha acabado com um lutador turco andarilho.
Seu pai conseguia atirar em um maço de cigarros a cem passos de distância.
Em 1944, ele saiu de Qurdaha para estudar na cidade costeira de Latakia. Ali começou a participar da política, filiando-se ao novo Partido Socialista Baath Árabe,
um movimento secular que procurava acabar com a influência ocidental no Oriente Médio através do socialismo pan-árabe. Em 1951, entrou na academia militar em Alepo,
uma rota tradicional para um alauíta tentando escapar das garras da pobreza das montanhas, e em 1964 estava no comando da força aérea. Depois de um golpe baathista
em 1966, tornou-se o ministro de defesa da Síria, um cargo que manteve durante a desastrosa guerra da Síria com Israel em 1967, quando perderam as colinas de Golã.
Apesar do catastrófico fracasso de suas forças, ele seria o presidente da Síria apenas três anos depois. Em um sinal do que estava por vir, chamou o golpe sem violência
que o levou ao poder como um “movimento corretivo”.
Sua ascensão terminou um longo ciclo de instabilidade política na Síria, mas com um alto custo para o povo sírio e o resto do Oriente Médio. Cliente da União Soviética,
seu regime estava entre os mais perigosos na região. Ele apoiava elementos radicais do movimento palestino — Abu Nidal operou com impunidade em Damasco durante anos
— e equipou seus militares com o que havia de mais moderno em tanques, aviões e defesa aérea soviética. A própria Síria se transformou em uma imensa prisão, um lugar
onde máquinas de fax eram proibidas e uma palavra errada sobre o dirigente poderia terminar em uma viagem a Mezzeh, a notória prisão numa colina ao oeste de Damasco.
Quinze serviços de segurança separados espiavam o povo sírio e um ao outro. Todos eram controlados pelos alauítas, assim como os militares. Um elaborado culto à
personalidade foi criado ao redor do dirigente e de sua família. Seu rosto, com sua testa alta e palidez doentia, aparecia em toda praça e estava pendurado nas paredes
de todo edifício público do país. Sua mãe camponesa era reverenciada quase como uma santa.
Uma década depois de sua ascensão, no entanto, boa parte da maioria sunita do país não estava mais contente de ser dirigida por um camponês alauíta de Qurdaha. Bombas
explodiam o tempo todo em Damasco e, em junho de 1979, um membro da Irmandade Muçulmana matou pelo menos cinquenta cadetes alauítas no refeitório da academia militar
de Alepo. Um ano depois, militantes islâmicos arremessaram duas granadas contra o dirigente durante uma reunião diplomática em Damasco — nesse momento, o irmão de
temperamento forte do dirigente declarou guerra total contra a Irmandade e seus apoiadores muçulmanos sunitas. Entre suas primeiras decisões, mandou unidades de
suas Companhias de Defesa, os guardiães do regime, para a prisão no deserto de Palmira. A estimativa é que oitocentos prisioneiros políticos foram mortos em suas
celas.
Mas foi na cidade de Hama, um foco de atividades da Irmandade Muçulmana nas margens do rio Orontes, que o regime mostrou até onde iria para garantir sua sobrevivência.
Com o país à beira da guerra civil, as Companhias de Defesa entraram na cidade no começo da manhã de 2 de fevereiro de 1982, junto com várias centenas de agentes
da temida polícia secreta Mukhabarat. O que se seguiu foi o pior massacre na história do Oriente Médio moderno, um frenesi de um mês de assassinatos, tortura e destruição
que deixou pelo menos vinte mil pessoas mortas e uma cidade reduzida a escombros. O dirigente nunca negou o massacre, nem perdeu tempo discutindo sobre o número
de mortos. Na verdade, deixou que a cidade ficasse em ruínas por meses como um lembrete do que aconteceria com aqueles que ousassem desafiá-lo. No Oriente Médio,
começou a entrar em voga uma nova expressão: As Regras de Hama.
O dirigente nunca mais enfrentou uma ameaça séria. Na verdade, em um plebiscito presidencial em 1991, ele recebeu 99,9% dos votos, o que fez um comentarista sírio
observar que nem mesmo Alá teria conseguido uma votação tão boa. Ele contratou um famoso arquiteto para construir um extravagante palácio presidencial, e quando
sua saúde começou a deteriorar pensou seriamente em um sucessor. O irmão mais novo tentou tomar o poder quando o dirigente estava incapacitado pela doença, e foi
exilado. O querido filho mais velho, um soldado, campeão de equitação, morreu violentamente em um acidente de automóvel. O que deixou apenas o delicado filho do
meio, um oftalmologista educado em Londres, para assumir os negócios da família.
Os primeiros anos de seu regime foram cheios de esperança e promessas. Ele garantiu a seus cidadãos acesso à internet e permitiu que viajassem para o exterior do
país sem precisar pedir permissão do governo. Jantava em restaurantes com sua esposa, que conhecia muito de moda, e libertou várias centenas de prisioneiros políticos.
Hotéis luxuosos e shopping centers alteraram a paisagem das apagadas Damasco e Alepo. Cigarros ocidentais, banidos por seu pai, apareceram nas prateleiras sírias.
Então ocorreu a grande Primavera Árabe. Os sírios ficaram olhando enquanto a velha ordem ruía ao redor deles, como se tivessem uma premonição do que estava por vir.
Então, em março de 2011, 15 jovens ousaram pintar um grafite contra o regime na parede de uma escola em Daraa, uma pequena cidade agrícola a 96 quilômetros de Damasco.
A Mukhabarat rapidamente prendeu os garotos e aconselhou seus pais a ir para casa e fazer novos filhos, porque eles nunca voltariam a ver aqueles de novo. Daraa
explodiu em protestos, que rapidamente se espalharam para Homs, Hama e, no final, Damasco. Em um ano, a Síria estaria tomada por uma guerra civil completa. E o filho,
como seu pai antes dele, seguiria as Regras de Hama.
Mas onde estava o dinheiro? O dinheiro que tinha sido saqueado do tesouro sírio por duas gerações. O dinheiro que tinha sido tirado de empresas estatais sírias e
afunilado até os bolsos do dirigente e sua família alauíta de Qurdaha. Uma parte dele estava escondida em uma empresa chamada LXR Investments of Luxembourg, e era
lá que Gabriel e a equipe fizeram suas pesquisas iniciais. Foram pesquisas educadas no começo e, por isso, totalmente insatisfatórias. Uma simples busca na Internet
revelava que a LXR não tinha nenhum site público e não tinha aparecido em nenhuma notícia ou publicado algum press release. Havia uma pequena entrada no registro
comercial de Luxemburgo, mas não continha nenhum nome dos investidores ou da diretoria da LXR — só um endereço, que era do escritório de um advogado corporativo.
Era óbvio para Eli Lavon, o investigador financeiro mais experiente da equipe, que a LXR era um instrumento clássico usado por alguém que quer investir seu dinheiro
de forma anônima. Era uma empresa fantasma, uma concha dentro de uma concha.
Eles ampliaram sua busca para registros comerciais na Europa ocidental. E quando isso não mostrou mais que outro bipe fraco na tela do radar, repassaram os registros
de imposto e bens imóveis em todos os países onde estes documentos estavam disponíveis. A única busca que deu resultado foi no Reino Unido, onde descobriram que
a LXR Investments era a arrendatária de um prédio comercial em King’s Road no bairro de Chelsea, atualmente ocupado por uma empresa de roupas femininas muito conhecida.
O advogado representante da LXR na Grã-Bretanha trabalhava para um pequeno escritório de advocacia em Southwark, Londres. Seu nome era Hamid Khaddam. Tinha nascido
em novembro de 1964 na cidade de Qurdaha, Síria.
Vivia em uma casa no bairro de Tower Hamlets, em Londres, com sua esposa nascida em Bagdá, Aisha e três filhas adolescentes que estavam muito ocidentalizadas para
o gosto dele. Viajava para trabalhar toda manhã de metrô, apesar de que às vezes, quando estava chovendo ou estava atrasado, ele se permitia o pequeno luxo de um
táxi. O escritório de advocacia estava localizado em um pequeno prédio de tijolos na rua Great Suffolk, longe dos estilosos endereços de Knightsbridge e Mayfair.
Havia oito advogados no total — quatro sírios, dois iraquianos, um egípcio e um jovem jordaniano que afirmava ser da família dos dirigentes hachemitas do seu país.
Hamid Khaddam era o único alauíta. Ele tinha uma televisão em sua sala, sempre ligada na Al Jazeera. Lia a maioria das notícias, no entanto, através de blogs em
árabe do Oriente Médio. Todos com inclinação editorial a favor do regime.
Ele era cuidadoso em sua vida pessoal e profissional, apesar de não ser cuidadoso o suficiente para perceber que era o alvo de um ataque da inteligência que tinha
grande capacidade e era muito silencioso. Começou na manhã depois que a equipe descobriu seu nome, quando Mordecai e Oded desembarcaram em Londres com passaportes
canadenses no bolso e malas cheias das ferramentas necessárias para seu trabalho, cuidadosamente disfarçadas. Durante dois dias, eles o observaram à distância. Então,
na manhã do terceiro dia, Mordecai, com dedos ligeiros, conseguiu roubar o celular de Khaddam enquanto ele estava na linha central do metrô entre Mile End e Liverpool
Street. O software que Mordecai inseriu no sistema operacional do aparelho deu à equipe acesso em tempo real aos e-mails, mensagens de texto, contatos, fotos e ligações
de Khaddam. Também transformou o aparelho em um transmissor de tempo integral, o que significava que onde Hamid Khaddam fosse, a equipe poderia segui-lo. Além do
mais, eles tinham entrada na rede de computadores do escritório e no desktop pessoal de Hamid Khaddam em casa. Era, falou Eli Lavon, um presente que continuava a
ser dado.
Os dados passavam do celular de Khaddam para um computador dentro da estação de Londres e de lá eram enviados com segurança para o Covil de Gabriel nas profundezas
do Boulevard Rei Saul. Ali, a equipe separou tudo, todos os números de telefone, endereços de e-mail, nomes. A LXR Investments aparecia em um e-mail de um advogado
sírio em Paris e em um segundo e-mail enviado a um contador em Bruxelas. A equipe seguiu as duas linhas de investigação, mas estas desapareciam muito antes de chegar
a Damasco. Na verdade, não encontraram nada na coleção de materiais que sugerisse que Khaddam estava em contato com qualquer elemento do regime sírio ou com a família
dirigente. Ele era um personagem secundário, declarou Lavon, que realizava tarefas financeiras obedecendo a uma autoridade maior. Na verdade, falou, era possível
que o simplório advogado sírio de Londres nem soubesse para quem estava trabalhando.
Então eles cavaram, peneiraram e discutiram entre eles enquanto o resto do Boulevard Rei Saul apenas observava e esperava ansioso. As regras de compartimentalização
significavam que somente um punhado de oficiais principais sabia a natureza do trabalho deles, mas o fluxo de arquivos de Pesquisa para a Sala 456C iluminava claramente
o caminho que estavam seguindo. Não demorou muito para se espalhar a notícia de que Gabriel estava de volta ao prédio. Nem era segredo que Bella Navot, mulher de
seu rival derrotado, estava trabalhando fielmente ao lado dele. Os rumores cresciam. Rumores de que Navot estava planejando entregar as rédeas a Gabriel antes do
final de seu mandato. Rumores de que Gabriel e o primeiro-ministro estavam na verdade tentando acelerar a saída de Navot. Havia até o rumor de que Bella estava planejando
se divorciar de seu marido quando ele perdesse o poder. Todos terminaram uma tarde quando Gabriel e os Navots foram vistos almoçando tranquilos na sala de jantar
executiva. Navot estava comendo peixe cozido e vegetais no vapor, um sinal de que tinha voltado às draconianas restrições alimentares de Bella. Claramente, falavam
os rumores, ele não iria se submeter à vontade de uma mulher que estava planejando deixá-lo.
Mas não havia como negar o fato de que o Escritório tinha voltado à vida desde o retorno de Gabriel. Foi como se todo o prédio tivesse limpado as teias de aranha
depois de um longo descanso operacional. Havia uma sensação de ataque iminente, mesmo se as tropas não tivessem ideia de onde aconteceria o ataque ou como ele seria.
Até Bella parecia ter sido arrastada na mudança que tinha acontecido no serviço de seu marido. Sua aparência mudou profundamente. Ela trocou seus terninhos estilo
Fortune 500 por jeans e suéter e começou a prender seu cabelo com um rabo de cavalo como se fosse uma estudante. Era como Gabriel sempre pensava nela, a intensa
jovem analista usando sandálias e uma camisa amassada, trabalhando em sua mesa muito depois que todo mundo tinha ido para casa à noite. Havia um motivo pelo qual
Bella era vista como a principal especialista na Síria do país; ela trabalhou mais duro do que todo o resto e não precisava fazer coisas como comer ou dormir. Também
era implacável em seu desejo de ser bem-sucedida, seja na área acadêmica ou dentro das paredes do Boulevard Rei Saul. Gabriel sempre se perguntou se ela não tinha
sido contaminada um pouco pelos baathistas nesses anos. Bella era uma assassina natural.
Sua reputação a precedia, claro, então era compreensível que a equipe mantivesse uma polida distância dela no começo. Mas gradualmente os muros começaram a cair,
e em poucos dias eles a tratavam como se estivesse com eles desde o começo. Quando a equipe começava uma de suas lendárias disputas, Bella sempre estava do lado
vencedor. E quando se juntaram uma noite para o tradicional jantar familiar, Bella deixou o marido com seus assuntos e juntou-se a eles. Era costume evitar falar
sobre o caso nas refeições, então todos debateram o lugar de Israel dentro das mudanças que aconteciam no mundo árabe. Como as grandes potências do ocidente, Israel
sempre tinha preferido os ditadores árabes às pessoas das ruas árabes. Nunca tinha conseguido fazer a paz com uma democracia árabe, só com ditadores e potentados.
Durante várias décadas, os ditadores tinham fornecido uma estabilidade regional módica, mas a um terrível custo para o povo que vivia debaixo de suas botas. Os números
não mentiam, e Bella, uma especialista do regime mais cruel da região, poderia recitá-los de cor. Apesar da incrível riqueza do petróleo, um quinto do mundo árabe
sobrevivia com menos de dois dólares por dia. Sessenta e cinco milhões de árabes, a maioria deles mulheres, não sabiam ler ou escrever, e milhões não tinham nenhuma
educação. Os árabes, que já tinham sido pioneiros no campo da matemática e geometria, tinham ficado para trás em termos de pesquisa científica e tecnológica. Durante
o último milênio, os árabes tinham traduzido menos livros que a Espanha traduzia em um único ano. Em muitas partes do mundo árabe, o Corão era o único livro que
importava.
Mas como, perguntava Bella, a situação tinha chegado a esse ponto? O islamismo radical tinha desempenhado seu papel, mas o dinheiro também. Dinheiro que os ditadores
gastavam com eles mesmos e não com seu povo. Dinheiro que fluía do mundo árabe e ia para bancos privados de Genebra, Zurique e Liechtenstein. Dinheiro que Gabriel
e a equipe estavam tentando desesperadamente encontrar. Com os dias se arrastando, eles chegaram a muros de tijolos, becos sem saída, covas vazias e portas que não
conseguiam abrir. E liam os e-mails de um advogado ralé de Londres chamado Hamid Khaddam e acompanhavam cuidadosamente o dia dele: as viagens de metrô, as reuniões
com clientes com questões grandes e pequenas, as pequenas discordâncias com seus sócios pan-árabes. E ouviam, também, quando ele voltava toda noite a sua casa em
Tower Hamlets onde vivia na companhia de quatro mulheres. Uma dessas noites, ele teve uma forte discussão com sua filha mais velha sobre o comprimento de uma saia
que ela estava planejando usar em uma festa onde haveria rapazes. Como a jovem garota, a equipe ficou agradecida pela interrupção causada pelo celular dele. A conversação
demorou dois minutos e dezoito segundos. E quando terminou, Gabriel e sua equipe sabiam que tinham finalmente encontrado o homem que estavam procurando.
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LINZ, ÁUSTRIA
A CENTO E OITENTA QUILÔMETROS A OESTE DE Viena, o rio Danúbio faz uma curva abrupta do noroeste para o sudeste. Os antigos romanos instalaram um forte nesse lugar;
e quando os romanos partiram, o povo que um dia seria conhecido como austríaco construiu uma cidade que chamaram de Linz. A cidade foi crescendo e enriquecendo com
o minério de ferro e o sal que era transportado pelo rio, e por um tempo foi a mais importante do Império Austro-Húngaro — mais importante até do que Viena. Mozart
compôs sua Sinfonia nº 36 enquanto vivia em Linz; Anton Bruckner foi organista na Velha Catedral. E no pequeno subúrbio de Leonding, no número 16 da Michaelsbergstrasse,
há uma pequena casa amarela onde Adolf Hitler morou quando era criança. Hitler se mudou para Viena em 1905 com a esperança de ser admitido na Academia de Belas Artes,
mas nunca esqueceria sua amada Linz. Ela seria o centro cultural do Reich de Mil Anos, e era ali que Hitler planejava construir o monumental Führermuseum, seu museu
de arte saqueada. Na verdade, o próprio nome de sua operação de pilhagem era Sonderauftrag Linz ou Missão Especial Linz. A moderna Linz tinha trabalhado duro para
esconder suas ligações com Hitler, mas havia lembranças do passado por todos os lados. A empresa mais eminente da cidade, a gigante do aço Voestalpine AG, era originalmente
conhecida como Hermann-Göring-Werke. E a vinte quilômetros a leste do centro da cidade estava o resto de Mauthausen, o campo de concentração nazista onde os presos
eram sujeitos ao “extermínio pelo trabalho”. Entre os prisioneiros que viveram para ver a libertação do campo estava Simon Wiesenthal, que mais tarde se tornaria
o mais famoso caçador de nazistas do mundo.
O homem que veio a Linz na primeira terça-feira de junho conhecia bem o passado negro da cidade. Na verdade, por um período de sua multifacetada vida, essa tinha
sido sua principal obsessão. Quando desceu do trem em Hauptbahnhof, estava usando um terno escuro que sugeria muita riqueza e um relógio de ouro que deixava a impressão
que não tinha chegado a essa riqueza de forma honesta, o que era verdade. Tinha viajado a Linz de Viena, e antes disso tinha estado em Munique, Budapeste e Praga.
Duas vezes em sua viagem ele tinha mudado de identidade. Por enquanto era Feliks Adler, um cidadão da Europa Central de origem incerta, amante de muitas mulheres,
soldado em guerras esquecidas, um homem que se sentia mais confortável em Gstaad e Saint-Tropez do que em sua cidade natal, onde quer que fosse. Seu nome real, no
entanto, era Eli Lavon.
Da estação, ele tinha caminhado por uma rua formada por casas altas de cor creme até chegar à Nova Catedral, a maior igreja da Áustria. Por decreto, seu pináculo
ascendente era três metros mais curto do que o de sua contraparte em Viena, a poderosa Stephansdom. Lavon entrou para ver se alguém da rua o seguia. E, debaixo da
nave exuberante, pensou, não pela primeira vez, como uma terra tão devotamente católica romana pôde ter tido um papel tão grande no assassinato de seis milhões de
pessoas. Estava nos ossos deles, pensou. Entrava pelo leite materno.
Mas essas eram as opiniões de Lavon, não de Feliks Adler, e quando voltou à praça estava sonhando apenas com dinheiro. Caminhou até Hauptplatz, a praça mais famosa
de Linz, e realizou uma última verificação de vigilância. Então se encaminhou para o Danúbio e se dirigiu à rotatória do bonde, onde uns dois bondes modernos descansavam
sob o sol quente, parecendo que tinham caído equivocadamente na cidade errada, no século errado. De um lado da rotatória havia uma rua chamada Gerstnerstrasse, e
perto do final da rua havia uma porta imponente com uma placa de latão onde se lia BANK WEBER AG: SOMENTE COM HORA MARCADA.
Lavon chegou à campainha, mas algo o fez hesitar. Era o velho medo, o medo de quem tinha batido em muitas portas e caminhado por muitas ruas escuras atrás de homens
que o teriam matado se soubessem que ele estava ali. Então pensou em um campo que estava a vinte quilômetros ao leste, e de uma cidade na Síria que tinha sido quase
apagada do mapa. E ficou pensando se havia uma ligação em algum lugar, um arco do mal, entre os dois. Uma súbita raiva cresceu dentro dele, que controlou apertando
o nó de sua gravata e arrumando o que lhe sobrava de cabelo. Então colocou seu dedão firmemente na campainha e, com uma voz que não era dele, declarou que era Feliks
Adler e que tinha agendado uma reunião. Passaram-se alguns segundos, que para Lavon pareceram uma eternidade. Finalmente, os trincos se abriram e um ruído o impulsionou
como o tiro de uma corrida. Ele respirou fundo, colocou a mão na maçaneta e entrou.
Além da porta havia um vestíbulo, e além do vestíbulo havia uma sala de espera onde estava sentada uma jovem austríaca do norte, tão pálida e bonita que parecia
irreal. A garota aparentemente estava acostumada com a atenção indesejada de homens como Herr Adler, pois o cumprimento que ela deu foi ao mesmo tempo cordial e
desdenhoso. Ela ofereceu a ele uma cadeira na sala de espera, que ele aceitou, e café, que ele recusou educadamente. Sentou-se com os joelhos juntos e as mãos cruzadas
no colo, como se estivesse esperando na plataforma de uma estação de trem. Na parede acima de sua cabeça havia uma televisão transmitindo em silêncio as notícias
financeiras norte-americanas. Na mesa que ficava na altura de seu cotovelo, havia cópias das revistas econômicas mais importantes do mundo, junto com várias revistas
exaltando os benefícios da vida nas montanhas da Áustria.
Finalmente, o telefone na mesa da jovem tocou, e ela anunciou que Herr Weber — Herr Markus Weber, presidente e fundador do Bank Weber AG — o receberia agora. Ele
estava esperando do outro lado da porta, uma figura macilenta, alta, careca, de óculos, usando um terno escuro de agente funerário e um sorriso de superioridade.
Ele apertou solene a mão de Lavon, como se o consolasse pela morte de uma tia distante, e o levou por um corredor cheio de pinturas a óleo de lagos nas montanhas
e prados floridos. No final do corredor havia uma mesa onde outra mulher, mais velha do que a primeira e com o cabelo e a pele mais escuros, estava sentada olhando
para a tela do computador. O escritório de Herr Weber estava à direita; à esquerda estava o escritório que pertencia a seu sócio, Waleed al-Siddiqi. A porta do escritório
do sr. al-Siddiqi estava bem fechada. Parados do lado de fora havia dois guarda-costas tão imóveis quanto duas plantas. Os ternos de bom corte não conseguiam esconder
o fato de que estavam armados.
Lavon acenou para os dois homens, obtendo nada mais que uma piscada, e depois olhou para a mulher. Seu cabelo era tão negro quanto uma asa de corvo e quase caía
sobre os ombros de seu terno escuro. Seus olhos eram grandes e castanhos; seu nariz era reto e proeminente. A impressão geral deixada por sua aparência era de seriedade
e, talvez, um traço de distante tristeza. Lavon olhou para sua mão esquerda e viu que no dedo anelar não havia uma aliança. Ele achou que ela tinha uns quarenta
anos, a zona de perigo para a solteirice. Não era feia, mas tampouco era bonita. O sutil arranjo de ossos e pele que formam o rosto humano tinha conspirado para
torná-la alguém comum.
— Essa é Jihan Nawaz — anunciou Herr Weber. — A senhorita Nawaz é nossa gerente de contas.
Seu cumprimento foi apenas um pouco mais agradável do que o que Lavon tinha recebido da recepcionista austríaca. Ele largou a mão fria dela rapidamente e seguiu
Herr Weber até sua sala. Os móveis eram modernos, mas confortáveis, e o chão estava coberto por um tapete grosso que parecia absorver todo o som. Herr Weber dirigiu
Lavon até uma cadeira antes de se estabelecer atrás de sua mesa.
— Como posso ajudá-lo? — falou, de repente voltado aos negócios.
— Estou interessado em colocar uma soma de dinheiro sob seus cuidados — respondeu Lavon.
— Posso perguntar como ouviu sobre nosso banco?
— Um sócio meu é cliente daqui.
— Poderia perguntar o nome dele?
— Preferia não falar.
Herr Weber levantou uma palma, como se tivesse entendido tudo.
— Tenho uma pergunta — falou Lavon. — É verdade que o banco passou por dificuldades alguns anos atrás?
— Isso mesmo — concordou Weber. — Como muitas instituições bancárias europeias, fomos atingidos duramente pelo colapso do mercado imobiliário norte-americano e a
subsequente crise financeira.
— E então você foi forçado a aceitar um sócio?
— Na verdade, fiquei feliz em aceitá-lo.
— O sr. al-Siddiqi.
Weber assentiu cuidadosamente.
— Ele é do Líbano, estou certo?
— Síria, na verdade.
— Uma pena.
— O quê?
— A guerra — respondeu Lavon.
A expressão neutra de Weber deixou claro que ele não estava interessado em discutir a situação atual do país de origem de seu sócio.
— Você fala alemão como se viesse de Viena — falou depois de um momento.
— Vivi ali por um período de tempo.
— E agora?
— Meu passaporte é canadense, mas prefiro pensar que sou um cidadão do mundo.
— O dinheiro não conhece fronteiras internacionais hoje em dia.
— E é por isso que vim a Linz.
— Já esteve aqui antes?
— Muitas vezes — respondeu Lavon, sinceramente.
O telefone de Weber tocou.
— Se importa?
— Por favor.
O austríaco levantou o fone e ficou olhando diretamente para Lavon enquanto ouvia a voz do outro lado da linha. O tapete grosso engoliu sua resposta murmurada. Então
desligou o telefone e perguntou:
— Onde estávamos?
— Você estava a ponto de me garantir que seu banco tem solvência, é estável e que meu dinheiro vai ficar seguro aqui.
— Essas coisas são verdade, Herr Adler.
— Também estou interessado em discrição.
— Como você sem dúvida sabe — respondeu Weber —, a Áustria recentemente concordou em algumas modificações em nosso sistema bancário para agradar aos vizinhos europeus.
Dito isso, nossas leis de sigilo bancário continuam entre as mais rigorosas do mundo.
— É do meu conhecimento que vocês têm um mínimo de dez milhões de euros para novos clientes.
— Essa é nossa política. — Weber parou, depois perguntou: — Algum problema, Herr Adler?
— Nenhum.
— Achei que essa seria sua resposta. O senhor parece uma pessoa muito séria.
Herr Adler aceitou esse elogio com um aceno de cabeça.
— Quem mais dentro do banco vai saber que tenho uma conta aqui?
— Eu e a senhorita Nawaz.
— E o sr. al-Siddiqi?
— O sr. al-Siddiqi tem seus clientes, eu tenho os meus. — Weber bateu sua caneta-tinteiro de ouro contra o mata-borrão de couro na mesa. — Bem, Herr Adler, como
devemos proceder?
— É minha intenção colocar dez milhões de euros sob seus cuidados. Gostaria que mantivesse cinco milhões deles em dinheiro. O resto gostaria que investisse. Nada
muito complicado — acrescentou. — Meu objetivo é preservar a riqueza, não criar mais.
— Não ficará desapontado — respondeu Weber. — Deveria saber, no entanto, que cobramos uma taxa por nossos serviços.
— Sim — falou Lavon, sorrindo. — O sigilo tem seu preço.
Armado com sua caneta-tinteiro de ouro, o banqueiro anotou alguns dados de Lavon, sendo que nenhum deles era verdadeiro. Para sua senha, ele escolheu “pedreira”,
uma referência à mina de trabalho escravo em Mauthausen. Referência que não passou pela cabeça brilhante e careca de Herr Weber que, por sua vez, nunca tinha encontrado
tempo para visitar o memorial do Holocausto localizado a poucos quilômetros de sua cidade natal.
— A senha tem a ver com a natureza do meu negócio — explicou Lavon com um falso sorriso.
— Seu negócio é a mineração, Herr Adler?
— Mais ou menos isso.
Com isso, o banqueiro se levantou e o confiou aos cuidados da senhorita Nawaz, a gerente de contas. Havia formulários a serem preenchidos, declarações a serem assinadas
e compromissos dos dois lados sobre sigilo e aderência às leis fiscais. A entrada de dez milhões de euros ao balanço do Bank Weber não melhorou a atitude defensiva
dela. Não era naturalmente fria, reconheceu Lavon; era outra coisa. Ele olhou para os dois guarda-costas parados do lado de fora da porta de Waleed al-Siddiqi, o
salvador sírio do Bank Weber AG. Então olhou de novo para Jihan Nawaz.
— Algum cliente importante? — perguntou ele.
Ela não demonstrou nenhuma reação.
— Como deseja fazer o depósito na conta? — perguntou ela.
— Uma transferência seria mais conveniente.
Ela entregou um papel no qual estava escrito o número para a transferência.
— Podemos fazer isso agora? — perguntou Lavon.
— Como quiser.
Lavon tirou seu celular e ligou para um banco de confiança em Bruxelas que não sabia que controlava boa parte dos fundos operacionais do Escritório na Europa. Informou
a seu banqueiro que desejava transferir dez milhões de euros urgentemente para o Bank Weber AG de Linz, Áustria. Então desligou e sorriu de novo para Jihan Nawaz.
— Terá o dinheiro ao meio-dia de amanhã, no máximo — falou.
— Quer que eu ligue confirmando?
— Por favor.
Herr Adler entregou seu cartão. Ela fez o mesmo.
— Se houver algo mais que precisar, Herr Adler, por favor, pode me ligar diretamente. Irei ajudá-lo, se puder.
Lavon enfiou o cartão no bolso de seu terno, junto com o celular. Levantando-se, apertou a mão de Jihan Nawaz uma última vez antes de voltar à recepção, onde a linda
jovem austríaca estava esperando por ele. Enquanto se movia pela sala acarpetada, podia sentir os olhos dos dois guarda-costas em sua nuca, mas não ousou olhar por
cima do ombro. Ele estava com medo, pensou. E Jihan Nawaz também.
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BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
PARECE DIFÍCIL IMAGINAR, mas houve uma época em que os seres humanos não sentiam a necessidade de compartilhar todos os seus momentos acordados com centenas de milhões,
até bilhões, de completos estranhos. Se íamos a um shopping center para comprar uma peça de roupa, não postávamos detalhes minuto a minuto em uma rede social; e
se acontecia alguma besteira em uma festa, não havia um registro fotográfico do triste episódio em um álbum de fotos digital que iria sobreviver por toda a eternidade.
Mas agora, na era da perda da inibição, parecia que nenhum detalhe da vida era mundano ou humilhante demais para ser compartilhado. Na era online, era mais importante
viver se mostrando do que viver com dignidade. Seguidores na internet eram mais apreciados do que amigos de carne e osso, pois davam a ilusória promessa de celebridade,
até imortalidade. Se Descartes estivesse vivo hoje, ele poderia ter escrito: eu tuíto, logo existo.
Empregadores aprenderam há muito tempo que a presença online de um indivíduo falava muito sobre seu caráter. Não é surpreendente que os serviços de inteligência
mundial tenham descoberto a mesma coisa. No passado, os espiões tinham que abrir correspondências e inspecionar gavetas para aprender os segredos mais profundos
de um alvo ou recruta em potencial. Agora tudo que precisavam fazer era digitar algumas teclas, e os segredos apareciam na sua frente: nomes de amigos e inimigos,
amores perdidos e velhas feridas, paixões secretas e desejos. Nas mãos de um agente experiente, esses detalhes eram um verdadeiro mapa para o coração humano. Permitiam
que eles apertassem qualquer botão, incitando qualquer emoção, quando quisessem. Era fácil fazer um alvo sentir medo, por exemplo, se ele já tinha entregado voluntariamente
as chaves do seu centro nervoso. O mesmo era verdade se o agente quisesse fazer o alvo se sentir feliz.
Jihan Nawaz, gerente de contas do Bank Weber AG, nascida na Síria, naturalizada cidadã da Alemanha, não era exceção. Habilidosa em questões tecnológicas, era pioneira
no Facebook, usuária inveterada do Twitter, e recentemente havia descoberto as delícias do Instagram. Ao investigar suas contas, a equipe descobriu que vivia em
um pequeno apartamento pouco além do perímetro da Innere Stadt de Linz, que tinha uma gata problemática chamada Cleópatra, e que seu carro, um Volvo antigo, tinha
causado vários problemas a ela. Descobriram os nomes de seus bares e clubes noturnos favoritos, seus restaurantes favoritos e o café onde ela parava toda manhã para
comprar espresso e pão a caminho do trabalho. Descobriram também que ela nunca tinha se casado e que tinha sido muito maltratada por seu último namorado sério. Mas
o principal é que tinham descoberto que ela nunca tinha conseguido vencer a inata xenofobia dos austríacos e que se sentia sozinha. Era uma história que a equipe
entendia bem. Jihan Nawaz, como os judeus antes dela, era a estrangeira.
Curiosamente, havia dois elementos de sua vida que Jihan Nawaz nunca citava online: seu lugar de trabalho e o país em que tinha nascido. Nem havia menção ao banco
ou à Síria na montanha de e-mails privados que os hackers da Unidade 8200, o serviço de vigilância eletrônica de Israel, coletaram em suas várias contas. Eli Lavon,
que tinha sentido a tensa atmosfera dentro do banco, ficou pensando se Jihan estava apenas seguindo as regras de Waleed al-Siddiqi, o homem que trabalhava por trás
de uma porta trancada, guardada por dois alauítas armados. Mas Bella Navot suspeitou que a fonte do silêncio de Jihan fosse outra. E assim, enquanto o resto da equipe
vasculhava o lixo digital, Bella foi para a sala de arquivos de Pesquisa e começou a cavar.
As primeiras 24 horas de sua pesquisa não produziram nada de valor. Então, seguindo um palpite, ela encontrou seus velhos arquivos de um incidente que tinha ocorrido
na Síria em fevereiro de 1982. Sob a direção de Bella, o Escritório tinha produzido dois registros definitivos do incidente — um documento altamente secreto para
uso dentro da comunidade da inteligência de Israel, e outro não confidencial que foi divulgado para o público através do Ministério de Relações Exteriores. As duas
versões do relatório continham o testemunho de uma jovem garota, mas Bella tinha retirado seu nome dos dois documentos para proteger sua identidade. No fundo de
seus arquivos pessoais, no entanto, havia uma transcrição da declaração original da garota, e no final da transcrição estava seu nome. Dois minutos depois, sem fôlego
por correr de Pesquisas à Sala 456C, ela colocou, triunfante, o documento na frente de Gabriel.
— É por Hama — falou ela. — A coitadinha estava em Hama.
— Quanto realmente sabemos sobre Waleed al-Siddiqi?
— O suficiente para saber que é quem estamos procurando, Uzi.
— Me alegre, Gabriel.
Navot tirou os óculos e massageou a base do nariz, algo que sempre fazia quando não sabia como continuar. Estava sentado atrás de sua grande mesa de vidro, com um
pé descansando sobre ela. Atrás dele, o sol laranja estava afundando lentamente na superfície do Mediterrâneo. Gabriel ficou olhando por um momento. Há muito tempo
ele não olhava o sol.
— É um alauíta — falou por fim —, originalmente de Alepo. Quando estava trabalhando em Damasco, afirmava ser parente da família dirigente. Como pode imaginar, não
há nenhuma menção a sua linhagem em nenhum dos panfletos do Bank Weber.
— Qual é a relação dele?
— Aparentemente é um primo distante da mãe, o que é importante. Foi a mãe quem mandou seu filho reprimir os manifestantes com força.
— Parece que você está andando muito com minha esposa.
— Estou.
Navot sorriu.
— Então Waleed al-Siddiqi é um sócio fundador da Mal S.A.?
— É o que estou dizendo, Uzi.
— Como ele ganhou seu dinheiro?
— Começou sua carreira na indústria farmacêutica estatal da Síria, o que também é importante.
— Porque a indústria farmacêutica da Síria é uma extensão do programa de armas químicas e biológicas.
Gabriel assentiu lentamente.
— Al-Siddiqi fez com que uma boa parte dos lucros da indústria fosse diretamente para os cofres da família. Também garantiu que as empresas ocidentais que quisessem
fazer negócios na Síria pagassem pelo privilégio na forma de suborno e comissões. Com tudo isso, al-Siddiqi ficou muito rico. — Gabriel parou, depois acrescentou:
— Rico o suficiente para comprar um banco.
Navot franziu a testa.
— Quando al-Siddiqi deixou a Síria?
— Há quatro anos.
— Quando a Primavera Árabe estava no auge — falou Navot.
— Não foi coincidência. Al-Siddiqi estava procurando um lugar seguro para administrar a fortuna familiar. E encontrou quando um pequeno banco em Linz teve problemas
durante a Grande Recessão.
— Acha que o dinheiro está guardado em contas no Bank Weber?
— Uma parte dele — respondeu Gabriel. — E ele está controlando o resto usando o Bank Weber como seu cartão de entrada.
— Herr Weber faz parte disso?
— Não tenho certeza.
— E a garota?
— Não — falou Gabriel. — Ela não sabe.
— Como pode ter certeza?
— Porque um primo do dirigente sírio nunca confiaria em uma garota de Hama como sua gerente de contas.
Navot colocou o pé no chão e apoiou os pesados antebraços na mesa. O vidro parecia em risco de quebrar debaixo da tensão do seu corpo forte.
— Então, em que você está pensando? — perguntou ele.
— Ela está procurando um amigo — respondeu Gabriel. — Vou dar um para ela.
— Menino ou menina?
— Menina — falou Gabriel. — Definitivamente uma menina.
— Quem está planejando usar?
Gabriel respondeu.
— Ela é analista.
— Fala alemão e árabe fluentemente.
— Que tipo de aproximação está pensando?
— Difícil, infelizmente.
— E a bandeira?
— Posso garantir que não será branca e azul.
Navot sorriu. Quando ele tinha trabalhado no campo como katsa, as operações com bandeira falsa eram sua especialidade. Ele tinha várias vezes se apresentado como
oficial da inteligência alemã quando recrutava espiões de países árabes ou de dentro das fileiras das organizações terroristas. Convencer um árabe a trair seu país,
ou sua causa, era mais fácil se o árabe não soubesse que estava trabalhando para o Estado de Israel.
— O que está planejando fazer com Bella? — perguntou ele.
— Ela quer ir a campo. Falei que a decisão era sua.
— A esposa do chefe não vai a campo.
— Ela vai ficar desapontada.
— Estou acostumado com isso.
— E você, Uzi?
— O que tenho eu?
— Poderia ser útil para o recrutamento.
— Por quê?
— Porque seus avôs viveram em Viena antes da guerra, e você fala alemão como uma cabra austríaca.
— É melhor que o horrível sotaque de Berlim que você tem.
Navot olhou para a parede de televisões, onde uma família da cidade sitiada de Homs estava preparando uma refeição de folhas fervidas. Era a única coisa que havia
na cidade para comer.
— Tem outra coisa em que você precisa pensar — falou ele. — Se cometer o menor erro, Waleed al-Siddiqi vai cortar essa garota em pedaços e jogá-la no Danúbio.
— Na verdade — respondeu Gabriel —, ele vai deixar os rapazes fazerem uma festinha com ela primeiro. Depois vai matá-la.
Navot desviou o olhar da tela e virou-se para Gabriel, sério.
— Tem certeza de que quer continuar com isso?
— Totalmente.
— Esperava que essa fosse sua resposta.
— O que vamos fazer com a Bella?
— Leve-a com você. Ou melhor ainda, envie-a direto para Damasco. — Navot olhou para a parede de monitores de novo e balançou a cabeça. — Essa maldita guerra estaria
terminada em uma semana.
Mais tarde naquela mesma noite, o The Guardian de Londres publicou uma matéria acusando o regime sírio de utilizar tortura e assassinato em escala industrial. A
matéria baseava-se em uma coleção de fotografias que tinham sido contrabandeadas da Síria pelo homem que as tinha tirado. Mostravam corpos de milhares de pessoas,
homens jovens principalmente, que tinham morrido enquanto estavam sob custódia do governo. Alguns dos homens tinham marcas de tiros. Outros, marcas de enforcamento
ou de eletrocussão. Outros não tinham olhos. Quase todos pareciam esqueletos humanos.
Foi nesse cenário que a equipe realizou os preparativos finais. De Serviços Domésticos eles conseguiram duas propriedades seguras — um pequeno apartamento no centro
de Linz e uma grande vila amarela às margens do lago Attersee, quarenta quilômetros ao sul. A Divisão de Transportes deu os carros e as motos; Identidade, os passaportes.
Gabriel tinha vários para escolher, mas no final ficou com Jonathan Albright, um norte-americano que trabalhava para algo chamado Markham Capital Advisers, de Greenwich,
Connecticut. Albright não era um consultor financeiro qualquer. Recentemente tinha levado um espião russo de São Petersburgo para o Ocidente. E antes disso tinha
enfiado um carregamento de centrífugas sabotadas na cadeia de suprimentos nuclear do Irã.
Quando os preparativos estavam terminados, os membros da equipe deixaram o Boulevard Rei Saul e foram para seus “locais de transição” designados, uma constelação
de apartamentos seguros na área de Tel Aviv onde os agentes de campo do Escritório assumiam suas novas identidades antes de deixar Israel para suas missões. Como
sempre, viajavam para seus destinos em momentos diferentes, e por diferentes rotas, para não levantar a suspeita das autoridades de imigração local. Mordecai e Oded
foram os primeiros a chegar à Áustria; Dina Sarid, a última. Seu passaporte a identificava como Ingrid Roth, uma nativa de Munique. Ela passou apenas uma noite na
casa de Attersee. Depois, ao meio-dia do dia seguinte, tomou posse de seu apartamento em Linz. Naquela noite, enquanto estava parada na frente da janela de uma sala
de estar apertada, viu um Volvo velho parar em frente ao prédio do outro lado da rua. A mulher que desceu do carro era Jihan Nawaz.
Dina tirou uma foto de Jihan e a enviou com segurança para a Sala 465C, onde Gabriel estava trabalhando até tarde, apenas com os arquivos de Bella sobre o massacre
de Hama como companhia. Ele saiu do Boulevard Rei Saul alguns minutos depois das dez e, ignorando os procedimentos normais do Escritório, voltou ao seu apartamento
na rua Narkiss para passar sua última noite em Israel com a esposa. Ela estava dormindo quando ele chegou; Gabriel deitou em silêncio na cama e colocou a mão sobre
a barriga dela. Ela se virou, deu um beijo sonolento nele e depois voltou a dormir. E de manhã, quando acordou, ele já tinha partido.
35
MUNIQUE, ALEMANHA
AS MUITAS VERSÕES DO ROSTO DE Gabriel eram bem conhecidas dos serviços de segurança da Áustria, por isso, Viagens pensou que a melhor rota para ele era por Munique.
Ele sorriu quando passou pelo controle de passaportes como faria um norte-americano rico e depois foi até o estacionamento, onde Transporte tinha deixado um Audi
A7 não rastreável. A chave estava escondida em uma caixa magnética na roda esquerda. Gabriel a tirou em um rápido movimento e, agachado, procurou por alguma evidência
de bomba. Não vendo nada fora do comum, entrou no carro e ligou o motor. O rádio tinha ficado ligado; uma mulher com uma voz chata e grave estava lendo um boletim
de notícias na Deutschlandfunk. Ao contrário de muitos de seus compatriotas, Gabriel não se contraía ao som do alemão. Era o idioma que tinha ouvido no útero de
sua mãe, e mesmo agora continuava sendo a língua dos seus sonhos. Chiara, quando falava com ele nos seus sonhos, falava em alemão.
Encontrou o cartão de estacionamento onde Transporte disse que estaria — no console do centro, enfiado dentro de um panfleto com os clubes noturnos de Munique —
e dirigiu com o cuidado de um estrangeiro até a saída. O atendente do estacionamento examinou o cartão tempo suficiente para enviar a primeira descarga de energia
operacional pela coluna de Gabriel. Então o braço da cancela se levantou, e ele se dirigiu à entrada da autobahn. Dirigiu sob o sol da Bavária, sendo assaltado pelas
lembranças em cada curva. À sua direita, flutuando sobre a paisagem de Munique, estava a espacial Torre Olímpica, dentro da qual aconteceu o Setembro Negro onde
começou a carreira de Gabriel. E uma hora depois, quando ele cruzou para a Áustria, a primeira cidade em que entrou foi Braunau am Inn, onde Hitler tinha nascido.
Ele tentou evitar pensar em Viena, mas estava além do seu poder de compartimentalização. Ouviu o motor de um carro falhar e viu uma explosão de fogo subindo em uma
rua tranquila. E se sentou de novo na cama de hospital de Leah e contou que seu filho tinha morrido. Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas
teriam sido diferentes... Sim, ele pensou agora. As coisas teriam sido diferentes. Ele teria um filho de 25 anos. E nunca teria se apaixonado por uma linda jovem
do gueto chamada Chiara Zolli.
A casa onde Hitler nasceu ficava no número 15 da Salzburger Vorstadt, perto da principal região de comércio de Braunau. Gabriel estacionou do outro lado da rua e
se sentou um momento sem desligar o motor, pensando se teria forças para passar por tudo isso. De repente, abriu a porta e cruzou a rua, como se quisesse remover
a opção de voltar. Vinte e cinco anos antes, o prefeito de Braunau tinha decidido colocar uma placa na frente da casa. Tinha sido tirada da pedreira em Mauthausen
e entalhada com uma inscrição que não fazia nenhuma menção específica aos judeus nem ao Holocausto. Sozinho, Gabriel ficou ali parado, pensando não no assassinato
de seis milhões de pessoas, mas na guerra acontecendo a quatro mil quilômetros ao sudeste dali, na Síria. Apesar de todos os livros, documentários, memoriais e declarações
sobre os direitos humanos universais, um ditador estava mais uma vez matando seu povo com gás venenoso e transformando-os em esqueletos humanos em campos e prisões.
Era quase como se as lições do Holocausto tivessem sido esquecidas. Ou talvez, pensou Gabriel, nunca tinham sido aprendidas.
Um jovem casal alemão — os sotaques mostravam que eram bávaros — se juntou a ele na observação da placa e falou de Hitler como se fosse um tirano menor de um império
distante. Desanimado, Gabriel voltou a seu carro e cruzou a parte alta da Áustria. Havia neve nos picos das montanhas, mas nos vales, onde estavam as vilas, os campos
estavam cheios de flores. Ele entrou em Linz alguns minutos depois das duas horas e estacionou perto da Nova Catedral. Então passou uma hora vigiando o que logo
seria o mais bucólico campo de batalha da guerra civil síria. Era a temporada de festivais em Linz. Um festival de cinema tinha acabado de terminar; um festival
de jazz logo começaria. Austríacos branquelos tomavam sol na grama verde do parque Danúbio. No alto, uma única nuvem branca movia-se pelo céu azul-celeste como um
balão.
A última parada na pesquisa de Gabriel era a rotatória do bonde adjacente ao Bank Weber AG. Estacionado em frente à entrada principal do banco, com o motor em ponto
morto, havia uma limusine Mercedes Maybach preta. Julgando pela forma como os pneus pareciam aguentar o peso do carro, ele era blindado. Gabriel se sentou em um
banco e deixou dois bondes passarem. Então, quando um terceiro estava chegando na parada, viu um homem elegantemente vestido sair do banco e entrar rapidamente no
carro. Seu rosto era marcado por bochechas duras e uma boca estranhamente pequena e reta. Alguns segundos depois, o carro passou por Gabriel como um borrão escuro.
O homem estava agora falando tenso pelo celular. O dinheiro não dorme nunca, pensou Gabriel. Inclusive o dinheiro manchado de sangue.
Quando um quarto bonde deslizou pela rotatória, Gabriel subiu nele e cruzou para o outro lado do Danúbio. Olhou debaixo do carro uma segunda vez para ter certeza
de que não tinha sido mexido durante sua ausência. Aí partiu para Attersee. A casa segura estava localizada na margem ocidental do lago perto da cidade de Litzlberg.
Havia um portão de madeira e, além dele, um caminho marcado com pinheiros e vinhedos. Vários carros estavam estacionados na frente, incluindo um velho Renault com
placas da Córsega. Seu dono estava parado na porta aberta da villa, vestido casualmente com calça cáqui larga e um pulôver de algodão amarelo.
— Sou Peter Rutledge — falou, estendendo a mão para Gabriel com um sorriso. — Bem-vindo a Shangri-La.
Supostamente estavam de férias, por isso os romances abertos nas cadeiras de descanso e os tacos de badminton espalhados pela grama, além do brilhante barco de madeira,
alugado pela incrível soma de 25 mil por semana, parado no final de um comprido cais. Dentro da villa, no entanto, estavam todos trabalhando. Nas paredes da sala
de jantar havia mapas e fotografias de vigilância penduradas, e sobre a mesa havia vários notebooks abertos. Na tela de um deles havia a foto de uma moderna mansão
de vidro e aço localizada nas colinas acima de Linz. Em outra aparecia a entrada do Bank Weber AG. Dez minutos depois das cinco, Herr Weber saía pela porta e entrava
em um sedã BMW simples. Dois minutos depois, aparecia uma jovem que era tão pálida e bonita que nem parecia real. E depois da jovem veio Jihan Nawaz. Ela correu
pela pracinha e subiu ao bonde que estava parado. E apesar de não perceber, o homem com a pele do rosto manchada sentado do outro lado do corredor era um agente
da inteligência israelense chamado Yaakov Rossman. Juntos eles viajaram no bonde até Mozartstrasse, sem prestar atenção um ao outro, e depois se separaram — Yaakov
foi para o oeste, Jihan para o leste. Quando ela chegou a seu apartamento, viu Dina Sarid descendo de sua scooter azul brilhante do outro lado da rua. As duas mulheres
trocaram um rápido sorriso. Então Jihan entrou em seu prédio e subiu pelas escadas até seu apartamento. Dois minutos depois, apareceu em sua conta de Twitter, declarando
que estava pensando em tomar algo no bar Vanilli aquela noite. Ninguém respondeu.
Nos três dias seguintes, as duas mulheres andaram pelas tranquilas ruas de Linz sem que seus caminhos se cruzassem. Houve um quase encontro no passeio em frente
ao Museu de Arte Moderna e um breve encontro de olhos nos corredores do Alter Markt. Mas, tirando isso, o destino parecia conspirar para mantê-las separadas. Pareciam
destinadas a serem vizinhas que não se conhecem, estranhas que se olham através de um golfo que não pode ser cruzado.
Mas sem que Jihan Nawaz soubesse, o encontro delas já estava organizado. Na verdade, estava sendo ativamente preparado por um grupo de homens e mulheres trabalhando
em uma linda villa nas margens de um lago quarenta quilômetros a sudoeste. Não era uma questão de se as duas mulheres iriam se conhecer, mas de quando. Tudo que
a equipe precisava era de mais uma evidência.
Esta chegou na madrugada do quarto dia, quando ouviram Hamid Khaddam, o advogado de Londres que trabalhava para a LXR Investments, abrir contas em um banco suspeito
nas Ilhas Caimã. Depois disso, ele ligou para a casa de Waleed al-Siddiqi em Linz e contou que as contas agora estavam prontas para receber fundos. O dinheiro chegou
24 horas depois, em uma transação que foi monitorada pelos hackers da Unidade 8200. A primeira conta recebeu vinte milhões de dólares em fundos que passaram pelo
Bank Weber AG. A segunda recebeu 25 milhões.
O que faltava era somente a hora, lugar e circunstâncias do encontro entre as duas mulheres. A hora seria às cinco e meia da tarde do dia seguinte; o lugar seria
o Pfarrplatz. Dina estava sentada na frente do café Meier, lendo uma edição esfarrapada de Os Vestígios do Dia, quando Jihan passou por sua mesa sozinha, carregando
uma bolsa de compras. Ela parou de repente, se virou e caminhou até a mesa.
— É realmente uma coincidência — falou em alemão.
— O quê? — perguntou Dina na mesma língua.
— Está lendo meu livro favorito.
— Bom, não me conte como termina. — Dina colocou o livro na mesa e esticou a mão. — Me chamo Ingrid — falou ela. — Acho que moro em frente a você.
— Acho que sim. Sou Jihan. — Ela sorriu. — Jihan Nawaz.
36
LINZ, ÁUSTRIA
ELAS CAMINHARAM ATÉ UM PEQUENO lugar perto de seus apartamentos onde tomaram vinho. Dina pediu um riesling austríaco, sabendo muito bem que, como Os Vestígios do
Dia, riesling era o favorito de Jihan. O garçom encheu as taças e saiu. Jihan levantou a dela e fez um brinde pela nova amizade. Então sorriu de forma estranha,
como se tivesse medo de estar sendo presunçosa. Ela parecia ansiosa, nervosa.
— Você não está em Linz há muito tempo — falou.
— Dez dias — respondeu Dina.
— E onde vivia antes?
— Em Berlim.
— Berlim é muito diferente de Linz.
— Muito — concordou Dina.
— E por que veio para cá? — Jihan deu outro sorriso estranho. — Desculpa. Não deveria ser bisbilhoteira. É meu maior defeito.
— Bisbilhotar a vida dos outros?
— Sou muito intrometida, não tenho jeito — respondeu ela, assentindo. — Sinta-se livre para me mandar cuidar da minha vida sempre que achar necessário.
— Nem sonharia em fazer isso. — Dina olhou para sua taça. — Eu me divorciei do meu marido recentemente. Decidi que precisava de uma mudança de ritmo, então vim para
cá.
— Por que Linz?
— Minha família costumava passar os verões no norte da Áustria, em um lago. Sempre gostei daqui.
— Qual lago?
— O Attersee.
A longa sombra do campanário da igreja se esticava pela rua em direção à mesa delas. Yossi Gavish e Rimona Stern passaram perto, rindo, como se estivessem dividindo
uma piada. A recentemente divorciada Ingrid Roth parecia entristecida pela visão do casal feliz. Jihan pareceu incomodada.
— Mas você não foi criada na Alemanha, foi, Ingrid?
— Por que pergunta isso?
— Seu alemão não parece ser o de um nativo.
— Meu pai trabalhou em Nova York — explicou Dina. — Cresci em Manhattan. Quando era jovem, me recusava a falar alemão em casa. Achava que era muito brega.
Se Jihan achou a explicação suspeita, não deu nenhum sinal.
— Está trabalhando em Linz? — perguntou ela.
— Acho que isso depende do que você define por trabalho.
— Defino como ir a um escritório toda manhã.
— Então realmente não estou trabalhando.
— Então por que está aqui?
Estou aqui por sua causa, pensou Dina. Então explicou que tinha vindo para Linz para trabalhar em um livro.
— É escritora?
— Ainda não.
— O livro é sobre o quê?
— É uma história de amor não correspondido.
— Como Stevens e a senhorita Kenton? — Jihan apontou para o livro que estava na mesa entre elas.
— Um pouco.
— A história acontece aqui em Linz?
— Viena, na verdade — respondeu Dina. — Durante a guerra.
— Segunda Guerra Mundial?
Dina assentiu.
— Seus personagens são judeus?
— Um deles.
— O rapaz ou a garota?
— O rapaz.
— E você?
— O que tenho eu?
— É judia, Ingrid?
— Não, Jihan — falou Dina. — Não sou judia.
O rosto de Jihan permaneceu impassível.
— E você? — perguntou Dina, mudando de assunto.
— Não sou judia, também — respondeu Jihan com um sorriso.
— E não é da Áustria.
— Cresci em Hamburgo.
— E antes disso?
— Nasci no Oriente Médio. — Fez uma pausa e acrescentou: — Na Síria.
— Que guerra terrível — falou Dina, distante.
— Se não for incômodo, Ingrid, prefiro não falar sobre a guerra. Me deixa deprimida.
— Então vamos fingir que a guerra não existe.
— Pelo menos por enquanto. — Jihan pegou um maço de cigarros de sua bolsa e quando acendeu um, Dina percebeu que sua mão estava tremendo um pouco. A primeira inalação
de tabaco pareceu acalmá-la.
— Não vai me perguntar o que estou fazendo em Linz?
— O que está fazendo em Linz, Jihan?
— Um homem do meu país comprou ações em um pequeno banco privado aqui. Precisava de alguém na equipe que falasse árabe.
— Qual banco?
Jihan respondeu com a verdade.
— Suponho que o homem do seu país não se chame Weber — comentou Dina.
— Não. — Jihan hesitou, depois disse: — Seu nome é Waleed al-Siddiqi.
— Que tipo de trabalho você faz?
Jihan parecia grata pela mudança de assunto.
— Sou gerente de contas.
— Parece importante.
— Posso garantir que não. Na maior parte do tempo, abro e fecho contas para nossos clientes. Também acompanho transações com outros bancos e instituições financeiras.
— É tão secreto como todo mundo comenta?
— O sistema bancário austríaco?
Dina assentiu.
Jihan adotou uma expressão rígida.
— O Bank Weber leva muito a sério a privacidade de seus clientes.
— Isso parece o slogan de um panfleto.
Jihan sorriu.
— É.
— E esse sr. al-Siddiqi? — perguntou Dina. — Ele leva a privacidade de seus clientes a sério também?
O sorriso de Jihan desapareceu. Ela apagou o cigarro e olhou nervosa para a rua vazia.
— Preciso pedir um favor, Ingrid — falou finalmente.
— Pode pedir.
— Por favor, não faça perguntas sobre o sr. al-Siddiqi. Na verdade, prefiro que nunca mencione o nome dele de novo.
Trinta minutos depois, na casa de Attersee, Gabriel e Eli Lavon estavam sentados na frente de um laptop, ouvindo quando as duas mulheres se separaram na rua em que
estavam seus apartamentos. Quando Dina já estava em casa, Gabriel moveu a barra do player de áudio para o começo e ouviu todo o encontro pela segunda vez. Então
ouviu de novo. Poderia ter repassado uma quarta vez se Eli Lavon não tivesse apertado o botão STOP.
— Falei que era ela — disse Lavou.
Gabriel franziu a testa. Então colocou a barra em 17h47 e clicou no PLAY.
“Seus personagens são judeus?”
“Um deles.”
“O rapaz ou a garota?”
“O rapaz.”
“E você?”
“O que tenho eu?”
“É judia, Ingrid?”
“Não, Jihan. Não sou judia.”
Gabriel apertou STOP e olhou para Lavon.
— Não dá para ter tudo, Gabriel. Além disso, essa é a parte importante.
Lavon deslizou a barra para frente e apertou PLAY de novo.
“Eu abro e fecho contas para nossos clientes. Também acompanho transações com outros bancos e instituições financeiras.”
STOP.
— Entendeu o que quero dizer? — perguntou Lavon.
— Não tenho certeza se entendi.
— Flerte com ela. Deixe que se sinta confortável. E depois a traga aqui. Mas independente do que faça — acrescentou Lavon —, não demore muito. Não gostaria que o
sr. al-Siddiqi descobrisse que Jihan tem uma nova amiga que pode ou não ser judia.
— Acha que ele se importaria?
— Acho.
— Então como seguimos?
Lavon deslizou a barra para frente e apertou o PLAY.
“Foi um prazer conhecê-la, Ingrid. Uma pena que não nos encontramos antes.”
“Não vamos deixar passar outros dez dias.”
“Está livre para almoçar amanhã?”
“Normalmente trabalho durante o almoço.”
Lavon clicou em STOP.
— Acho que Ingrid está forçando demais, não acha?
— Poderia ser perigoso quebrar o ritmo de sua rotina de escrita.
— Às vezes uma mudança pode ajudar. Quem sabe? Ela poderia se inspirar a escrever um livro diferente.
— Qual é o argumento da história?
— É sobre uma garota que decide trair seu chefe quando descobre que ele está escondendo dinheiro para o pior homem do mundo.
— Como termina?
— Os mocinhos vencem.
— A garota termina machucada?
— Envie a mensagem, Gabriel.
Gabriel rapidamente enviou um e-mail encriptado para Dina a instruindo a se encontrar para almoçar com Jihan Nawaz no dia seguinte. Então voltou a barra e apertou
o PLAY uma última vez.
“E o sr. al-Siddiqi? Ele leva a privacidade de seus clientes a sério também?”
“Preciso pedir um favor, Ingrid.”
“Pode pedir.”
“Por favor, não faça perguntas sobre o sr. al-Siddiqi. Na verdade, prefiro que nunca mencione o nome dele de novo.”
STOP.
— Ela sabe — falou Lavon. — A única pergunta é: quanto?
— Suspeito que o suficiente para terminar morta.
— As Regras de Hama.
Gabriel assentiu lentamente.
— Então suponho que isso nos deixe somente uma opção.
— Qual, Eli?
— Vamos ter que jogar pelas Regras de Hama, também.
As duas mulheres almoçaram no dia seguinte em Ikaan, e na noite seguinte foram beber no bar Vanilli. Gabriel permitiu que se passasse dois dias sem nenhum contato,
em parte porque precisava mover um certo ativo de Israel a Attersee, que era Uzi Navot. Então, na quinta-feira daquela semana, Jihan e Dina tiveram um encontro casual
no Alter Markt que na verdade não foi nada casual. Jihan convidou Dina para um café, mas Dina pediu desculpas e disse que tinha que voltar a escrever.
— Mas você vai fazer algo no sábado? — perguntou ela.
— Não tenho certeza. Por quê?
— Uns amigos meus vão dar uma festa.
— Que tipo de festa?
— Comida, bebida, passeios de barco no lago — o que as pessoas fazem sempre nos sábados à tarde durante o verão.
— Não quero ser um incômodo.
— Não vai ser. Na verdade — acrescentou Dina —, tenho certeza de que meus amigos vão tratá-la como convidada de honra.
Jihan sorriu.
— Vou precisar de um vestido novo.
— E um maiô — falou Dina.
— Pode vir fazer compras comigo agora?
— Claro.
— E o seu livro?
— Depois vou ter tempo.
37
LAGO ATTERSEE, ÁUSTRIA
TINHAM DUAS OPÇÕES DE TRANSPORTE: a pequena scooter de Dina ou o Volvo instável de Jihan. Escolheram o Volvo instável. Ele começou a balançar muito na Innere Stadt
uns minutos depois do meio-dia, meia hora depois ela tinha passado os últimos subúrbios de Linz e estavam acelerando por Salzkammergut na A1. O clima tinha conspirado
para criar a ilusão de alegria. O sol brilhava em um céu sem nuvens, e o ar que soprava pela janela aberta era fresco e doce. Jihan usava o vestido branco sem mangas
que Dina tinha escolhido para ela e grandes óculos escuros que escondiam a modéstia de seus traços. Suas unhas estavam pintadas; o perfume era doce e intoxicante.
Enchia Dina de culpa. Ela tinha dado uma falsa alegria a uma mulher solitária e sem amigos. Era, pensou, a maior traição feminina.
Tinha em sua bolsa um papel com as instruções, que tirou quando saíram da A1, entrando na Atterseestrasse. Gabriel tinha insistido para que levasse com elas, e agora,
com sua consciência se rebelando, ela apertava forte o papel enquanto guiava Jihan para seu destino. Elas passaram por uma pequena cidade, depois atravessaram uma
parte de terra cultivada. O lago estava à esquerda, de um azul profundo e cercado de montanhas verdes. Dina, fazendo o papel de guia turística, apontou a pequena
ilha, que podia ser alcançada por um píer, onde Gustav Klimt tinha pintado suas famosas paisagens de Attersee.
Além da ilha havia uma marina onde barcos brancos se espalhavam no ancoradouro, e além da marina havia uma colônia de villas de frente para o lago. Dina fingiu um
momento de confusão sobre qual pertencia a seu anfitrião. Então, de repente, apontou para um portão aberto, como se estivesse surpresa de chegarem tão rapidamente.
Jihan virou o carro para a esquerda e subiu devagar o caminho. Dina agradeceu o forte perfume dos pinheiros e vinhedos, porque isso superava temporariamente o aroma
acusatório do perfume de Jihan. Vários carros estavam estacionados ao acaso na sombra da varanda. Jihan encontrou um espaço vazio e desligou o motor. Então, pegou
no banco traseiro as flores e o vinho que tinha trazido como presentes. Quando saíram do carro, ouviram a música que saía de uma janela aberta: “Trust in Me”, de
Etta James.
A porta da frente estava aberta também. Quando Dina e Jihan se aproximaram, apareceu um homem de meia-idade com cabelo ralo e esvoaçante. Estava usando uma camisa
azul francesa e cara, calça de linho claro e um grande relógio de ouro. Estava sorrindo amigavelmente, mas seus olhos castanhos eram vigilantes. Jihan deu uns passos
na direção dele e parou. Então sua cabeça se virou para Dina, que pareceu não perceber sua apreensão.
— Gostaria que conhecesse um velho amigo da minha família — dizia ela. — Jihan Nawaz, esse é Feliks Adler.
Jihan ficou parada, sem saber se deveria avançar ou recuar, quando o homem que ela conhecia como Feliks Adler desceu devagar os degraus. Ainda sorrindo, ele pegou
as flores e o vinho. Então olhou para Dina.
— Acho que eu e a senhorita Nawaz já nos conhecemos. — O olhar dele foi de Dina para Jihan. — Mas ela não pode falar disso porque violaria as tradições do sistema
bancário privado da Áustria. — Ele parou tempo suficiente para dar outro sorriso. — Não é mesmo, senhorita Nawaz?
Jihan permaneceu em silêncio. Estava encarando as flores na mão de Herr Adler.
— Não é coincidência que abri uma conta no Bank Weber na semana passada — falou ele, depois de um momento. — Nem é coincidência que você esteja aqui hoje. Veja,
senhorita Nawaz, Ingrid e eu somos mais do que velhos amigos. Somos colegas, também.
Jihan dirigiu um olhar de raiva para Dina. Então olhou de novo para o homem que conhecia como Herr Adler. Quando finalmente falou, sua voz estava tomada pelo medo.
— O que quer comigo? — perguntou.
— Temos um sério problema — respondeu ele. — E precisamos da sua ajuda para resolvê-lo.
— Que tipo de problema?
— Entre, Jihan. Ninguém vai machucá-la aqui. — Ele sorriu e levou-a gentilmente pelo cotovelo. — Tome uma taça de vinho. Desfrute da festa. Conheça o resto de nossos
amigos.
Na grande sala da villa havia uma mesa com comida e bebida. Não tinha sido tocada, então a impressão era de uma festa cancelada ou, pelo menos, adiada. Um vento
gentil soprava pelas portas francesas abertas, trazendo com ele o barulho ocasional de um barco passando. Do outro lado da sala havia uma lareira apagada onde Gabriel
estava sentado, olhando atentamente uma pasta. Usava terno escuro sem gravata, e estava irreconhecível com uma peruca grisalha, lentes de contato e óculos. Uzi Navot
estava sentado perto dele, com roupa parecida, e ao lado deste estava Yossi Gavish. Usava calças de sarja e um blazer amassado e estava olhando para o teto como
um viajante sofrendo de um tédio terminal.
Apenas Gabriel entrou em ação com a chegada de Jihan Nawaz. Ele fechou a pasta, colocou-a na mesinha de café na frente dele, e levantou-se devagar.
— Jihan — falou com um sorriso carinhoso. — Que bom que veio. — Ele avançou cauteloso até ela, um adulto se aproximando de uma criança perdida. — Por favor, desculpe
a natureza pouco ortodoxa de nosso convite, mas foi tudo feito para sua proteção.
Falou isso em alemão, com seu sotaque de Berlim. Não passou despercebido para Jihan, a garota síria de Hamburgo agora vivendo em Linz.
— Quem é você? — perguntou ela depois de um momento.
— Prefiro não começar essa conversa mentindo para você — falou ele, ainda sorrindo —, então não vou lhe dar nenhum nome. Sou empregado de um departamento do governo
que lida com questões relacionadas a impostos e finanças. — Apontou para Navot e Yossi. — Esses senhores também trabalham para seus respectivos governos. O rapaz
grande e com cara de infeliz é da Áustria, e o cara amassado sentado ao lado dele é da Grã-Bretanha.
— E eles? — perguntou Jihan com um aceno para Lavon e Dina.
— Ingrid e Herr Adler estão comigo.
— São muito bons. — Ela olhou para Dina com os olhos entrecerrados. — Principalmente ela.
— Desculpe por tê-la enganado, Jihan, mas não tínhamos outra escolha. Tudo foi feito para sua segurança.
— Minha segurança?
Ele se aproximou dela.
— Queríamos nos encontrar com você de uma forma que não levantaria a suspeita do seu patrão. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — O sr. al-Siddiqi.
Ela pareceu recuar ao ouvir o nome dele. Gabriel fingiu não notar.
— Imagino que tenha trazido seu celular com você — disse ele, como se tivesse pensado nisso agora.
— Claro.
— Poderia entregar a Ingrid, por favor? É importante desligar todos nossos celulares antes de continuar essa conversa. Nunca dá para saber quem está ouvindo.
Jihan tirou seu celular da bolsa e o entregou a Dina, que o desligou antes de sair da sala. Gabriel voltou à mesinha de café e pegou a pasta. Abriu-a com ar grave,
como se tivesse material que ele não queria mostrar em público.
— Infelizmente, o banco para o qual você trabalha está sendo investigado há algum tempo — falou ele depois de um momento. — A investigação é de natureza internacional,
como você pode ver pela presença de meus colegas da Áustria e do Reino Unido. Descobrimos evidências substanciais para sugerir que Bank Weber AG é quase que somente
um empreendimento criminoso envolvido com lavagem de dinheiro, fraude e ocultação ilegal de bens e rendas tributáveis. O que significa que você, Jihan, está em sérios
problemas.
— Sou apenas a gerente de contas.
— Exatamente. — Ele tirou uma folha de papel da pasta e entregou para que ela visse. — Sempre que uma conta é aberta no Bank Weber, Jihan, sua assinatura aparece
em toda a documentação. Também realiza a maioria das transferências do banco. — Ele tirou outra folha de papel da pasta, apesar de que, dessa vez, sua consulta foi
privada. — Por exemplo, você recentemente transferiu uma grande soma de dinheiro para o Trade Winds Bank nas ilhas Caimã.
— Como sabem sobre essa transferência?
— Foram duas, na verdade, uma de 25 milhões, a outra de apenas vinte milhões. As contas para onde o dinheiro foi mandado são controladas pela LXR Investments. Um
advogado chamado Hamid Khaddam abriu as duas instruído pelo sr. al-Siddiqi. Hamid Khaddam é de Londres. Ele nasceu na Síria. — Gabriel levantou a vista do arquivo.
— Como você, Jihan.
O medo dela era palpável. Ela conseguiu levantar o queixo um pouco antes de responder.
— Nunca conheci o sr. Khaddam.
— Mas conhece o nome dele?
Ela assentiu lentamente.
— Não nega o fato de que transferiu pessoalmente o dinheiro para essas contas?
— Fiz o que me mandaram.
— O sr. al-Siddiqi?
Ela ficou em silêncio. Gabriel colocou os documentos de volta na pasta e esta em cima da mesa. Yossi estava olhando de novo para o teto. Navot estava olhando, pelas
portas francesas abertas, para os barcos que passavam como se desejasse estar num deles.
— Parece que estou perdendo minha plateia — falou Gabriel, gesticulando para os dois homens imóveis. — Posso ver que eles gostariam de ir direto ao ponto para podermos
passar às questões importantes.
— Que questões? — perguntou Jihan com mais calma do que Gabriel teria pensado ser possível.
— Meus amigos de Viena e de Londres não estão interessados em perseguir uma mera caixa de banco. E, para ser sincero, nem eu. Queremos o homem que manda no Bank
Weber, o homem que trabalha atrás de uma porta trancada, protegido por uma dupla de guarda-costas armados. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Queremos o
sr. al-Siddiqi.
— Infelizmente, não posso ajudá-los.
— Claro que pode.
— Tenho escolha?
— Todos temos escolhas na vida — respondeu Gabriel. — Infelizmente, você escolheu aceitar um emprego no banco mais sujo da Áustria.
— Não sabia que era sujo.
— Prove.
— Como?
— Nos contando tudo que sabe sobre o sr. al-Siddiqi. E entregando uma lista completa de todos os clientes do Bank Weber, a quantia de dinheiro que depositaram lá
e a localização dos vários instrumentos financeiros nos quais o dinheiro está investido.
— Isso é impossível.
— Por quê?
— Porque seria uma violação das leis bancárias austríacas.
Gabriel colocou uma mão no ombro de Navot.
— Esse homem trabalha para o governo austríaco. E se ele diz que não é uma violação da lei austríaca, então não é.
Jihan hesitou.
— Há outra razão pela qual não posso ajudar — falou ela finalmente. — Não tenho acesso completo aos nomes de todos os correntistas.
— Não é a gerente de contas?
— Claro.
— E não é responsabilidade da gerente de contas gerenciar realmente as contas?
— Obviamente — respondeu ela, franzindo a testa.
— Então, qual é o problema?
— O sr. al-Siddiqi.
— Então talvez devêssemos começar por aí, Jihan. — Gabriel colocou gentilmente uma mão no ombro dela. — Com o sr. al-Siddiqi.
38
LAGO ATTERSEE, ÁUSTRIA
ELES A COLOCARAM em um lugar de honra na sala, com Dina, sua falsa amiga, à esquerda, e Gabriel, o auditor fiscal sem nome de Berlim, à direita. Uzi Navot ofereceu
comida, que ela recusou, e chá, que aceitou. Serviu-a ao estilo árabe, em um copo pequeno, meio doce. Ela tomou um pequeno gole, soprou gentilmente na superfície
e colocou o copo cuidadosamente na mesa em frente. Então descreveu uma tarde no outono de 2010 quando viu um anúncio em uma revista de negócios que falava sobre
um emprego em Linz. Estava trabalhando na sede de um importante banco alemão em Hamburgo e, sem alarde, estava explorando outras opções. Viajou a Linz na semana
seguinte e fez uma entrevista com Herr Weber. Então caminhou pelo corredor, passou pelos guarda-costas, e teve uma reunião separada com o sr. al-Siddiqi. Realizada
totalmente em árabe.
— Ele mencionou o fato de que era da Síria? — perguntou Gabriel.
— Ele não precisou.
— Os sírios têm um sotaque diferente?
Ela assentiu.
— Especialmente quando vêm das montanhas Ansariya.
— Elas estão no lado ocidental da Síria? Perto do Mediterrâneo?
— Isso mesmo.
— E o povo que vive lá são principalmente alauítas, não são?
Ela hesitou, depois assentiu lentamente.
— Perdoe-me, Jihan, mas sou um pouco novato quando se trata das questões do Oriente Médio.
— Como a maioria dos alemães.
Ele aceitou a repreensão dela com um sorriso conciliador e depois retomou seus questionamentos.
— Sua impressão era que o sr. al-Siddiqi era alauíta? — perguntou ele.
— Era óbvio.
— Você é alauíta, Jihan?
— Não — respondeu ela. — Não sou alauíta.
Ela não contou nenhum outro detalhe biográfico sobre si, e Gabriel não perguntou.
— Os alauítas são os dirigentes do seu país, não são?
— Sou uma cidadã alemã vivendo na Áustria — respondeu ela.
— Posso refazer minha pergunta?
— Por favor.
— A família dirigente da Síria é alauíta, não é correto, Jihan?
— É.
— E os alauítas mantêm as posições mais importantes nas Forças Armadas e nos serviços de segurança do país.
Ela deu um breve sorriso.
— Talvez não seja tão novato afinal.
— Aprendo rápido.
— É evidente.
— O sr. al-Siddiqi contou que era parente do presidente?
— Ele deu a entender — falou ela.
— Isso a deixou preocupada?
— Foi antes da Primavera Árabe. — Fez uma pausa e acrescentou: — Antes da guerra.
— E os dois guarda-costas na porta dele? — perguntou Gabriel. — Como ele explicou isso?
— Ele me contou que tinha sido sequestrado em Beirute vários anos antes e o mantiveram como refém.
— E acreditou nele?
— Beirute é uma cidade perigosa.
— Já esteve lá?
— Nunca.
Gabriel olhou para sua pasta de novo.
— O sr. al-Siddiqi deve ter ficado muito impressionado com você — falou ele depois de um momento. — Ofereceu um emprego no ato, com o dobro do salário que estava
ganhando em Hamburgo.
— Como sabe disso?
— Estava na sua página no Facebook. Você contou a todo mundo que estava querendo recomeçar. Seus colegas em Hamburgo deram uma festa de despedida para você em um
restaurante elegante nas margens do rio. Posso mostrar as fotos se quiser.
— Não é necessário — falou ela. — Lembro bem daquela noite.
— E quando chegou em Linz — continuou Gabriel —, o sr. al-Siddiqi tinha um apartamento esperando por você, não foi? Estava totalmente mobiliado: lençóis, pratos,
jarras e panelas, até os aparelhos eletrônicos.
— Estava incluído no meu pacote de compensação.
Gabriel levantou a vista do arquivo e franziu a testa.
— Não achou isso estranho?
— Ele falou que queria que minha transição fosse a menos dolorosa possível.
— Foi isso que ele falou? Menos dolorosa?
— Foi.
— E o que o sr. al-Siddiqi pediu em retorno?
— Lealdade.
— Só isso?
— Não — respondeu ela. — Ele disse que eu nunca deveria discutir os negócios do Bank Weber com ninguém.
— Com bons motivos.
Ela ficou em silêncio.
— Quanto tempo você demorou para perceber que o Bank Weber não era um banco comum, Jihan?
— Eu suspeitei desde o início — respondeu ela. — Mas quando chegou a primavera, tive certeza.
— O que aconteceu na primavera?
— Quinze rapazes de Daraa pintaram um grafite na parede de uma escola. E o sr. al-Siddiqi começou a ficar muito nervoso.
Nos seis meses seguintes, contou, ele estava em movimento constante — Londres, Bruxelas, Genebra, Dubai, Hong Kong, Argentina, às vezes tudo isso na mesma semana.
Sua aparência começou a piorar. Perdeu peso; apareceram olheiras. Sua preocupação com a segurança aumentou muito. Quando estava em seu escritório, o que era algo
raro, a televisão estava sempre ligada na Al Jazeera.
— Estava acompanhando a guerra? — perguntou Gabriel.
— De forma obsessiva — respondeu Jihan.
— Ele escolheu um lado?
— O que você acha?
Gabriel não falou nada. Jihan tomou um gole de chá, pensando antes de responder.
— Ficou furioso com os norte-americanos por pedirem ao presidente sírio para deixar o poder — falou ela finalmente. — Falou que aconteceria como no Egito. Falou
que iriam lamentar o dia que permitissem que ele fosse retirado do poder.
— Por que a al-Qaeda tomaria a Síria?
— É.
— E você, Jihan? Defende um lado na guerra?
Ela ficou em silêncio.
— Certamente o sr. al-Siddiqi deve ter ficado curioso sobre como você se sentia.
Mais silêncio. Ela olhou nervosa pela sala, para as paredes, para o teto. Era a doença síria, pensou Gabriel. O medo nunca os abandonava.
— Está segura aqui, Jihan — falou Gabriel, em voz baixa. — Está entre amigos.
— Estou?
Olhou para os rostos reunidos ao redor dela. O cliente que não era cliente. A vizinha que não era vizinha. Os três auditores fiscais que não eram auditores fiscais.
— Não damos nossa verdadeira opinião na frente de um homem como o sr. al-Siddiqi — falou ela depois de um momento. — Especialmente se ainda temos parentes vivendo
na Síria.
— Tinha medo dele?
— Com bons motivos.
— Então falou que tinha a mesma opinião sobre a guerra.
Ela hesitou, depois assentiu lentamente.
— E tem, Jihan?
— A mesma opinião?
— É.
Hesitou de novo. Outro olhar nervoso ao redor da sala. Finalmente, falou:
— Não, não tenho a mesma opinião que o sr. al-Siddiqi sobre a guerra.
— Apoia os rebeldes?
— Apoio a liberdade.
— Você é uma jihadista?
Ela levantou o braço nu e perguntou:
— Pareço uma jihadista?
— Não — falou Gabriel, sorrindo para a demonstração dela. — Parece uma mulher totalmente moderna e ocidentalizada que sem dúvida acha que a conduta do regime sírio
é repugnante.
— É o que acho.
— Então por que continua trabalhando para um homem que apoia um regime que está matando seus próprios cidadãos?
— Às vezes, eu me pergunto a mesma coisa.
— O sr. al-Siddiqi a pressionou para ficar?
— Não.
— Então talvez tenha ficado pelo dinheiro. Afinal, ele estava pagando o dobro do que ganhava em seu emprego anterior. — Gabriel parou e virou a cabeça de lado, pensativo.
— Ou talvez tenha ficado por outro motivo, Jihan. Talvez tenha ficado porque estava curiosa sobre o que estava acontecendo por trás da porta trancada e os guarda-costas.
Talvez tenha ficado curiosa para saber por que o sr. al-Siddiqi estava viajando tanto e perdendo tanto peso.
Ela hesitou, então falou:
— Talvez estivesse.
— Sabe o que o sr. al-Siddiqi está fazendo, Jihan?
— Está administrando o dinheiro de um cliente muito especial.
— Sabe o nome desse cliente?
— Sei.
— Como descobriu?
— Por acidente.
— Que tipo de acidente?
— Esqueci minha carteira no trabalho uma noite — respondeu ela. — E quando voltei para pegá-la, ouvi algo que não deveria.
39
LAGO ATTERSEE, ÁUSTRIA
MAIS TARDE, QUANDO JIHAN PENSOU SOBRE aquele dia, ela iria lembrá-lo como a Sexta-Feira Negra. O medo da crise grega tinha feito com que os preços das ações caíssem
dramaticamente na Europa e nos Estados Unidos. Na Suíça, o ministro da Economia tinha anunciado que estava congelando duzentos milhões de dólares de bens ligados
à família governante da Síria e seus associados. O sr. al-Siddiqi ficou louco com as notícias. Ficou trancado em seu escritório quase toda a tarde, saindo apenas
duas vezes para gritar alguma besteira trivial para Jihan. Ela passou as últimas horas do dia olhando o relógio, e, ao dar as cinco da tarde saiu sem desejar ao
sr. al-Siddiqi ou a Herr Weber um bom fim de semana, como era seu costume. Foi só depois, quando estava se vestindo para jantar, que percebeu que tinha deixado sua
carteira no escritório.
— Como você voltou ao banco? — perguntou Gabriel.
— Com minhas chaves, claro.
— Não sabia que tinha suas próprias chaves.
Ela abriu sua bolsa e tirou as chaves para mostrar a Gabriel.
— Como você sabe — falou ela —, Bank Weber não é um banco comercial. Somos um banco de investimento, o que significa que gerenciamos riquezas para indivíduos com
renda alta.
— Mantêm dinheiro?
— Uma pequena quantia.
— O banco oferece cofres de segurança para seus clientes?
— Claro.
— Onde estão?
— No porão.
— Tem acesso a eles?
— Sou a gerente de contas.
— O que significa?
— Posso ir a qualquer lugar do banco, exceto nas salas de Herr Weber ou do sr. al-Siddiqi.
— É proibido entrar nelas?
— A menos que seja convidada.
Ele fez uma pausa, como se quisesse digerir essa informação, e depois pediu a Jihan para retomar sua narrativa sobre a Sexta-Feira Negra. Ela explicou que tinha
voltado ao banco em seu carro e, usando suas chaves pessoais, entrou pela porta da frente. Quando a porta abriu, ela tinha trinta segundos para digitar os oito números
no painel de controle do sistema de segurança; do contrário, o alarme iria tocar e metade da força policial de Linz estaria ali em questão de minutos. Mas quando
se aproximou do painel, viu que o sistema de alarme não tinha sido ativado.
— O que quer dizer que mais alguém estava no banco?
— Correto.
— Era o sr. al-Siddiqi?
— Ele estava em seu escritório — falou ela, assentindo lentamente. — Ao telefone.
— Com quem?
— Alguém que estava infeliz por seus bens terem sido congelados pelo governo suíço.
— Sabe quem era?
— Não — respondeu ela. — Mas suspeito que fosse alguém poderoso.
— Por que diz isso?
— Porque o sr. al-Siddiqi parecia assustado. — Ela ficou em silêncio por um momento. — Foi bastante chocante. Não é algo que vou esquecer.
— Os guarda-costas estavam presentes?
— Não.
— Por que não?
— Suponho que ele tinha mandado que fossem embora.
Gabriel perguntou o que ela fez em seguida. Jihan respondeu que pegou sua carteira e saiu do banco o mais rápido possível. Na segunda de manhã, quando voltou ao
trabalho depois do fim de semana, havia um bilhete em sua mesa. Era do sr. al-Siddiqi. Ele queria conversar a sós com ela.
— Por que ele queria vê-la?
— Disse que queria se desculpar. — Inesperadamente, ela sorriu. — Outra coisa que nunca tinha acontecido antes.
— Pelo que estava se desculpando?
— Por ter me tratado mal na sexta-feira anterior. Era mentira, claro — acrescentou ela rapidamente. — Ele queria ver se eu tinha ouvido algo quando estava dentro
do banco naquela noite.
— Ele sabia que você esteve lá?
Ela assentiu.
— Como?
— Ele sempre verifica a memória das câmeras de vigilância. Na verdade, elas estão conectadas diretamente ao computador em sua mesa.
— Ele perguntou de maneira direta o que você tinha ouvido?
— O sr. al-Siddiqi nunca faz nada direto. Prefere ir comendo pelas beiradas.
— O que contou a ele?
— O suficiente para tranquilizá-lo.
— E acreditou em você?
— Acreditou — respondeu ela depois de pensar por um momento. — Acho que sim.
— E foi tudo?
— Não — respondeu ela. — Ele queria falar sobre a guerra.
— O quê?
— Ele perguntou se meus parentes que ainda viviam na Síria estavam bem. Queria saber se havia algo que ele poderia fazer para ajudá-los.
— Ele estava sendo sincero?
— Quando um parente da família dirigente oferece ajuda, normalmente quer dizer o oposto.
— Ele estava ameaçando você?
Ela ficou em silêncio.
— E, mesmo assim, você ficou — disse Gabriel.
— É — respondeu ela. — Fiquei.
— E seus parentes? — perguntou ele, consultando sua pasta de novo. — Estão bem, Jihan?
— Vários morreram ou ficaram feridos.
— Sinto muito por isso.
Ela assentiu uma vez, mas não disse nada.
— Onde foram mortos?
— Em Damasco.
— Você é de lá, Jihan?
— Vivi pouco tempo lá quando era criança.
— Mas não nasceu lá?
— Não — respondeu ela. — Nasci ao norte de Damasco.
— Onde?
— Hama — falou ela. — Nasci em Hama.
40
LAGO ATTERSEE, ÁUSTRIA
UM SILÊNCIO SE ABATEU SOBRE A SALA, pesado e com mau presságio, como o silêncio que se segue à explosão de um atentado suicida em um mercado lotado. Bella entrou
sem se apresentar e se sentou em uma cadeira vazia diretamente na frente de Jihan. As duas mulheres ficaram se olhando, como se apenas as duas conhecessem um terrível
segredo, enquanto Gabriel olhava distraído para sua pasta. Quando ele finalmente falou de novo, adotou um tom de indiferença clínica, um médico realizando um exame
de rotina em uma paciente saudável.
— Você tem 38 anos, Jihan? — perguntou ele.
— Trinta e nove — corrigiu ela. — Mas ninguém nunca lhe disse que é terrivelmente grosseiro perguntar a idade de uma mulher?
Seu comentário fez com que vários sorrissem na sala, mas os sorrisos desapareceram quando Gabriel fez a seguinte pergunta.
— O que significa que nasceu em... — Sua voz sumiu, como se estivesse tentando calcular. Jihan forneceu a data para ele sem demora.
— Nasci em 1976 — falou ela.
— Em Hama?
— Isso — respondeu ela. — Em Hama.
Bella olhou para seu marido, que estava olhando para outro lado. Gabriel estava novamente folheando algo em sua pasta com a devoção de um auditor fiscal por papel
impresso.
— E quando se mudou para Damasco, Jihan? — perguntou ele.
— Foi no outono de 1982.
Ele levantou o rosto de repente e franziu a testa.
— Por quê, Jihan? — perguntou ele. — Por que deixou Hama no outono de 1982?
Ela olhou para ele em silêncio. Então olhou para Bella, a recém-chegada, a mulher sem aparente emprego ou propósito, e respondeu.
— Deixamos Hama — falou ela —, porque no outono de 1982 não havia mais Hama. A cidade tinha desaparecido. Hama foi apagada da face da Terra.
— Houve um enfrentamento em Hama entre o regime e a Irmandade Muçulmana?
— Não houve um enfrentamento — respondeu ela. — Foi um massacre.
— Então você e sua família se mudaram para Damasco?
— Não — respondeu ela. — Fui sozinha.
— Por quê, Jihan? — perguntou ele, fechando o arquivo. — Por que você foi a Damasco sozinha?
— Porque não tinha mais família. Nem família, nem cidade. — Ela olhou para Bella de novo. — Eu estava sozinha.
Para entender o que aconteceu em Hama, Jihan continuou, era necessário saber o que tinha acontecido antes. A cidade já tinha sido considerada a mais bonita da Síria,
célebre por suas graciosas rodas d’água no rio Orontes. Também era conhecida pelo fervor especial de seu islamismo sunita. As mulheres de Hama usavam o véu longo
muito antes de ser moda no mundo muçulmano, especialmente no antigo bairro de Barudi, onde a família Nawaz vivia em um apartamento apertado. Jihan era uma entre
cinco filhos, a mais nova, a única menina. Seu pai não tinha educação formal e trabalhava fazendo bicos no velho mercado do outro lado do rio. Acima de tudo, ele
estudava o Corão e atacava o ditador sírio, que via como um herege e um camponês que não tinha o direito de governar sobre os sunitas. Seu pai não era membro da
Irmandade Muçulmana, mas apoiava o objetivo da organização de transformar a Síria em um Estado islâmico. Tinha sido preso duas vezes e torturado pela Mukhabarat,
e uma vez tinha sido forçado a dançar na rua enquanto cantava louvores ao dirigente e sua família.
— Foi o maior dos insultos — explicou Jihan. — Como um devoto muçulmano sunita, meu pai não ouvia música. E ele nunca dançava.
Suas lembranças pessoais dos problemas que levaram ao massacre eram embaçadas, no melhor dos casos. Lembrava-se de alguns dos maiores ataques terroristas da Irmandade
— em especial, um ataque em Damasco que matou 64 pessoas inocentes — e lembrava-se de corpos cheios de balas nos becos de Barudi, vítimas de execuções sumárias feitas
por agentes da Mukhabarat. Mas como a maioria dos moradores, ela não tinha ideia da calamidade que cairia sobre a linda cidade às margens do Orontes. Então, numa
noite fria e chuvosa do começo de fevereiro, espalhou-se a notícia de que unidades das Companhias de Defesa tinham chegado em silêncio na cidade. Eles tentaram fazer
o primeiro ataque em Barudi, mas a Irmandade estava esperando. Vários homens do regime foram mortos a tiros de metralhadora. Então, a Irmandade e seus apoiadores
lançaram uma série de ataques assassinos contra membros do Partido Baath e da Mukhabarat em toda a cidade. Dos minaretes veio a mesma exortação: “Levantem-se e expulsem
os descrentes de Hama!”. A batalha pela cidade tinha começado.
No final, os sucessos iniciais da Irmandade iriam liberar a fúria do regime como nunca se tinha visto antes. Nas três semanas seguintes, o exército sírio usou tanques,
helicópteros de ataque e artilharia para transformar Hama em uma pilha de escombros. E quando a fase militar da operação estava completa, especialistas em demolição
dinamitaram qualquer prédio que tinha sobrado e esmagaram os escombros. Quem tinha conseguido sobreviver ao massacre foi preso e colocado em centros de detenção.
Qualquer suspeito de ter conexões com a Irmandade foi brutalmente torturado e morto. Os cadáveres foram enterrados em covas comuns, e foi colocado asfalto por cima.
— Caminhar pelas ruas de Hama hoje — falou Jihan — é o mesmo que caminhar sobre os ossos dos mortos.
— Mas você sobreviveu — falou Gabriel em voz baixa.
— É — respondeu ela. — Eu sobrevivi.
Uma lágrima escorreu por seu rosto e criou um caminho que ia até seu queixo. Era a primeira. Ela a enxugou abruptamente, como se tivesse medo de mostrar suas emoções
na frente de estranhos, e arrumou a bainha de seu vestido.
— E sua família? — perguntou Gabriel, penetrando seu silêncio. — O que aconteceu com eles?
— Meu pai e meus irmãos foram mortos durante a luta.
— E sua mãe?
— Ela foi morta alguns dias depois. Tinha dado à luz quatro inimigos do regime. Não poderia viver.
Outra lágrima escapou de seus olhos. Dessa vez ela ignorou.
— E você, Jihan? Qual foi seu destino?
— Fui enviada a um acampamento junto com outras crianças de Hama. Estava em algum lugar do deserto, não tenho certeza onde. Alguns meses depois, a Mukhabarat me
deixou ir para Damasco para viver com um primo distante. Ele nunca gostou muito de mim, então me mandou para a Alemanha para morar com o irmão dele.
— Em Hamburgo?
Ela assentiu lentamente.
— Morávamos em Marienstrasse. Número 57. — Ela parou, depois perguntou: — Já ouviu falar dessa rua? A Marienstrasse?
Gabriel disse que não. Era outra mentira.
— Havia uns rapazes que viviam do outro lado da rua no número 54. Rapazes muçulmanos. Árabes. Achava que um deles era bem bonito. Era quieto, intenso. Nunca me olhava
nos olhos quando nos cruzávamos na rua porque eu não usava o véu. — Os olhos dela iam de um rosto ao outro. — E sabe quem era esse rapaz? Mohamed Atta. — Ela balançou
a cabeça lentamente. — Era quase como se eu nunca tivesse saído de Barudi. Troquei um bairro da Irmandade Muçulmana por outro.
— Mas não estava interessada na política do Oriente Médio?
— Nunca — falou ela, balançando a cabeça com força. — Tentei ao máximo ser uma boa garota alemã, mesmo que os alemães não gostassem muito de mim. Fui para a escola,
para a universidade, e depois consegui um emprego num banco alemão.
— E depois veio para Linz — falou Gabriel. — E conseguiu um emprego trabalhando para um homem que estava relacionado com as pessoas que mataram sua família.
Ela ficou em silêncio.
— Por quê? — perguntou Gabriel. — Por que foi trabalhar para um homem como Waleed al-Siddiqi?
— Não sei. — Olhou para os rostos ao redor dela. O cliente que não era cliente. A vizinha que não era vizinha. Os três auditores fiscais que não eram auditores fiscais.
— Mas estou feliz por ter aceitado o emprego.
Gabriel sorriu.
— Eu também.
41
LAGO ATTERSEE, ÁUSTRIA
A essa altura, JÁ ERA O FINAL da tarde. Do lado de fora, o vento tinha parado e a superfície do lago parecia uma folha de vidro escuro. Jihan parecia de repente
exausta; estava olhando pelas portas francesas abertas com os olhos vazios de uma refugiada. Gabriel colocou seus arquivos na mesa e tirou seu terno burocrático.
Então, sozinho, levou Jihan pelo jardim até o barco a motor amarrado no final de um longo píer. Ele entrou primeiro e, pegando a mão de Jihan, a ajudou a entrar
e se sentar. Ela colocou seus óculos escuros de estrela de cinema e se arrumou cuidadosamente, como se estivessem a ponto de tirar uma foto. Gabriel ligou o motor,
desamarrou as cordas e deixou-as boiando. Afastou-se do píer devagar, para não fazer ondas, e virou o barco para o sul. O céu ainda estava claro, mas os picos das
montanhas no final do lago retinham os resquícios de uma nuvem que passava. Os austríacos chamavam essas montanhas de Höllengebirge: as Montanhas do Inferno.
— Você dirige bem o barco — falou Jihan atrás dele.
— Costumava velejar quando era mais jovem.
— Onde?
— No Báltico — respondeu ele. — Passava os verões lá quando era criança.
— Entendo — falou Jihan, distante. — E ouvi que Ingrid costumava passar seus verões aqui no Attersee.
Estavam sozinhos no centro do lago. Gabriel desligou o motor e virou seu banco para ficar de frente para ela.
— Você sabe tudo sobre mim agora — falou ela —, e eu não sei nada sobre você. Nem mesmo seu nome.
— É para sua proteção.
— Ou talvez para a sua. — Ela levantou os óculos escuros para mostrar seus olhos. O sol do final da tarde os iluminou. — Sabe o que vai acontecer comigo se o sr.
al-Siddiqi descobrir que contei essas coisas?
— Ele vai matá-la — respondeu Gabriel, direto. — E é por isso que devemos ter certeza de que ele nunca vai saber.
— Talvez ele já saiba. — Ela olhou séria para ele por um momento. — Ou talvez você trabalhe para o sr. al-Siddiqi? Talvez eu já esteja morta.
— Pareço alguém que trabalha para o sr. al-Siddiqi?
— Não — admitiu ela. — Mas não parece um auditor fiscal alemão, também.
— As aparências enganam.
— Os auditores fiscais alemães também.
Um vento cruzou o barco e criou ondas na superfície do lago.
— Sente esse cheiro? — perguntou Jihan. — O cheiro de flores.
— Chamam de Rosenwind.
— É mesmo?
Ele assentiu. Jihan fechou os olhos e inalou o perfume.
— Minha mãe sempre usou um pouco de óleo de rosas no pescoço e na barra de seu hijab. Quando os sírios estavam bombardeando Hama, ela me abraçava forte para não
ficar com medo. Eu costumava apertar meu rosto contra seu pescoço para poder sentir o cheiro das rosas em vez da fumaça dos incêndios.
Ela abriu os olhos e fixou-os em Gabriel.
— Quem é você? — perguntou ela.
— Sou o homem que vai ajudá-la a terminar o que você começou.
— O que isso significa?
— Você ficou no Bank Weber por um motivo, Jihan. Queria saber o que o sr. al-Siddiqi estava fazendo. E agora sabe que ele esteve escondendo dinheiro para o regime.
Bilhões de dólares que deveriam ser usados para educar e cuidar do povo sírio. Bilhões de dólares agora escondidos em uma rede de contas bancárias espalhadas pelo
mundo.
— O que você pretende fazer com isso?
— Vou transformar a família dirigente síria em camponeses das montanhas Ansariya de novo. — Ele parou, depois acrescentou: — E você vai me ajudar.
— Não posso.
— Por que não?
— Porque não tenho a informação que você está procurando.
— Onde está?
— Uma parte está no computador do escritório do sr. al-Siddiqi. É muito seguro.
— Segurança informática é um mito, Jihan.
— E é por isso que ele não mantém a informação realmente importante guardada ali. Ele sabe bem que não deve confiar em nenhum aparelho eletrônico.
— Está me dizendo que está tudo na cabeça dele?
— Não — respondeu ela. — Está aqui.
Ela colocou sua mão sobre o coração.
— Ele carrega com ele?
— Em um pequeno caderno de couro — respondeu ela, assentindo. — Está ou no bolso do peito de seu terno ou em sua maleta, mas ele nunca o perde de vista.
— O que tem no caderno?
— Uma lista de números de contas, instituições e saldos atualizados. Muito simples. Muito direto.
— Já viu o caderno?
Ela assentiu.
— Estava em sua mesa uma vez quando ele me chamou em sua sala. Está escrito com sua própria letra. Contas que foram fechadas ou transferidas estão cruzadas por uma
linha simples.
— Há outras cópias?
Ela negou com a cabeça.
— Tem certeza?
— Absoluta — respondeu ela. — Ele guarda somente uma cópia, assim sabe se alguém teve acesso a ela.
— E se suspeitasse que alguém viu o caderno?
— Acho que tem uma forma de trancar as contas.
Uma leve brisa fez parecer que um buquê de rosas tivesse sido atirado entre eles. Voltou a colocar seus óculos escuros e passou a ponta do dedo pela superfície da
água.
— Há outro problema — falou ela depois de um momento. — Se vários bilhões de dólares de bens sírios desaparecerem, o sr. al-Siddiqi e seus amigos em Damasco vão
começar a procurar. — Ela parou, depois acrescentou: — O que significa que você vai ter que me fazer desaparecer, também. — Ela tirou sua mão da água e olhou para
Gabriel. — Pode fazer isso?
— Num piscar de olhos.
— Ficarei segura?
— Ficará, Jihan. Ficará segura.
— Onde vou viver?
— Onde quiser, desde que seja razoável, claro.
— Gosto daqui — falou ela, olhando para as montanhas. — Mas é muito perto de Linz.
— Então vamos encontrar algum lugar parecido.
— Vou precisar de uma casa. E um pouco de dinheiro. Não muito — acrescentou ela, rápido. — Só o suficiente para viver.
— Algo me diz que dinheiro não será problema.
— Quero ter certeza de que não é dinheiro do dirigente. — Ela enfiou seu dedo no lago de novo. — Está coberto de sangue.
Ela parecia estar escrevendo algo na superfície da água. Gabriel ficou tentado a perguntar o que era, mas preferiu deixá-la em paz. Uma nuvem tinha se liberado das
Montanhas do Inferno. Flutuava sobre suas cabeças, parecia tão perto que Gabriel teve que resistir à vontade de esticar a mão e agarrá-la.
— Nunca explicou como me encontrou — falou Jihan de repente.
— Não acreditaria se eu lhe contasse.
— É uma boa história?
— Acho que sim.
— Talvez Ingrid possa escrevê-la em vez do livro em que está trabalhando agora. Nunca gostei de histórias sobre Viena durante a guerra. São muito parecidas com as
de Hama.
Ela levantou a cabeça e olhou para Gabriel.
— Vai me contar quem você é?
— Quando tudo terminar.
— Está me dizendo a verdade?
— Estou, Jihan. Estou dizendo a verdade.
— Diga-me seu nome — insistiu ela. — Diga-me agora e vou escrever no lago. E quando acabar, vou esquecê-lo.
— Infelizmente, não funciona assim.
— Vai pelo menos levar o barco de volta para a casa?
— Sabe pilotar isso?
— Não.
— Venha aqui — falou ele. — Eu mostro para você.
Ela ficou na villa no lago Attersee muito tempo depois de escurecer; então, ao lado de Dina, voltou com seu Volvo preto para Linz. Passou boa parte da viagem tentando
descobrir o nome e a afiliação do homem que iria roubar a fortuna conquistada de forma ilícita pela família dirigente síria, mas Dina não falou nada. Falou somente
da festa que não tinham participado, de um jovem arquiteto bonito que parecia ter ficado muito interessado em Jihan, e do atraente cheiro de rosas que apareceu com
o vento noturno. Quando chegaram perto da cidade, Jihan parecia ter esquecido temporariamente os eventos da tarde.
— Acha que ele vai mesmo me ligar? — perguntou sobre o imaginário arquiteto de Dina.
— Vai — falou Dina, sentindo novamente a culpa sobre seus ombros. — Acho que vai.
Tinha passado um pouco da meia-noite quando elas entraram na rua tranquila perto de Innere Stadt. Elas se separaram com beijos formais no rosto e subiram para seus
apartamentos. Quando Dina entrou no dela, viu a silhueta de um homem forte sentado rígido na janela. Estava olhando pelo espaço das persianas. No chão perto de seu
pé havia uma HK 9mm.
— Alguma coisa? — perguntou ela.
— Não — respondeu Christopher Keller. — Ela está limpa.
— Quer que eu faça café?
— Não precisa.
— Quer comer algo?
— Eu trouxe algo.
— Quem vai substituí-lo?
— Vou trabalhar sozinho por enquanto.
— Mas você precisa dormir de vez em quando.
— Sou do Regimento — falou Keller enquanto olhava para fora. — Não preciso dormir.
PARTE QUATRO
O RESULTADO
42
LONDRES
MAS COMO CONSEGUIR PEGAR o caderno durante tempo suficiente para roubar seu conteúdo? E como fazer isso de uma forma que Waleed al-Siddiqi nunca percebesse que o
caderno tinha sumido? Essas foram as perguntas que a equipe debateu depois da partida de Jihan da casa de Attersee. A solução mais óbvia era o equivalente do Escritório
de invasão forçada, mas Gabriel rejeitou a proposta. Insistia que a operação fosse realizada sem sangue e de uma forma que não alertaria o clã dirigente da Síria
de que acontecia algo estranho com o dinheiro deles. Tampouco gostou da sugestão de Yaakov de uma armadilha de sedução. Até onde sabiam, o sr. al-Siddiqi era um
homem sem vícios pessoais, a não ser pelo fato de que administrava a riqueza que um assassino em massa tinha saqueado.
Havia uma máxima rigorosa no Escritório, criada por Shamron, de que um problema simples às vezes tinha uma solução simples. E a solução para o problema deles, falou
Gabriel, tinha apenas dois componentes. Eles tinham que obrigar Waleed al-Siddiqi a entrar num avião, e forçá-lo a cruzar uma fronteira amiga. Além disso, ele acrescentou,
a equipe deveria saber com antecipação dos dois eventos.
O que explicava por que logo cedo na manhã seguinte, tendo dormido muito pouco, Gabriel entrou em um Audi alugado e saiu da Áustria pela mesma rota que tinha entrado.
A Alemanha nunca tinha parecido tão linda. As verdes fazendas da Bavária eram seu Éden; Munique, com a espiral da Torre Olímpica flutuando por cima da névoa do verão
como um minarete, era sua Jerusalém. Ele deixou o carro no estacionamento do aeroporto de Munique e correu para pegar o voo das dez e meia da British Airways para
Londres. Seu companheiro de assento era alguém que gostava de beber logo cedo, de Birmingham; e Gabriel, poucas horas depois de deixar a presença de Jihan, era novamente
Jonathan Albright da Markham Capital Advisers. Tinha ido a Munique, explicou, para explorar a possibilidade de adquirir uma empresa de tecnologia alemã. E sim, tinha
acrescentado, prometia ser muito lucrativa.
Estava chovendo em Londres, uma nuvem baixa e escura de tempestade, e parecia ser noite no aeroporto de Heathrow. Gabriel passou pelo controle de passaportes e seguiu
os sinais amarelos até o hall de entrada, onde Nigel Whitcombe o esperava usando uma capa de chuva ensopada, parecendo um governador colonial em algum canto distante
do Império.
— Sr. Baker — falou ele quando apertou a mão de Gabriel. — É bom vê-lo de novo. Bem-vindo de volta à Inglaterra.
Whitcombe tinha um Vauxhall Astra, que dirigia muito rápido e com uma habilidade indolente. Foi para Londres usando a M4. Então, a pedido de Gabriel, deu algumas
voltas de contravigilância através de Earl’s Court e West Kensington antes de finalmente continuar até um chalé em Maida Vale. Tinha uma porta na frente da cor da
casca de limão e uma placa de boas-vindas onde se podia ler ABENÇOADOS TODOS AQUELES QUE ENTRAREM NESSA CASA. Graham Seymour estava sentado na biblioteca, um volume
de Trollope aberto sobre seu joelho. Quando Gabriel entrou sozinho, o chefe do MI6 fechou o livro lentamente e, levantando-se, colocou-o de novo na prateleira.
— O que foi dessa vez? — perguntou ele.
— Dinheiro — respondeu Gabriel.
— A quem pertence?
— Ao povo sírio. Mas por enquanto — acrescentou Gabriel —, está nas mãos de Mal S.A.
Seymour levantou uma sobrancelha nobre.
— Como você encontrou? — perguntou ele.
— Jack Bradshaw me indicou a direção correta. E uma mulher chamada Jihan me contou como encontrar o mapa do tesouro.
— E você, imagino, quer escavá-lo.
Gabriel ficou em silêncio.
— O que precisa do Serviço Secreto de Sua Majestade?
— Permissão para realizar uma operação em solo britânico.
— Haverá mortos?
— Acho que não.
— Onde vai acontecer?
— No Tate Modern, se ainda estiver disponível.
— Algum outro lugar?
— Aeroporto de Heathrow.
Seymour franziu a testa.
— Talvez você devesse começar do começo, Gabriel. E dessa vez — acrescentou ele —, poderia ser uma boa ideia me contar tudo.
Foi Jack Bradshaw, o espião britânico caído transformado em contrabandista de arte, que tinha juntado Gabriel e Graham Seymour, assim, foi por Bradshaw que Gabriel
começou sua história. Foi completa, mas, por necessidade, bastante censurada. Por exemplo, Gabriel não mencionou o nome do ladrão de arte que tinha contado que o
Caravaggio, desaparecido há tanto tempo, tinha sido recentemente vendido. Nem identificou o mestre falsificador que tinha encontrado morto em seu estúdio em Paris,
ou os ladrões que tinham roubado o Doze Girassóis numa Jarra do Rijksmuseum Vincent van Gogh, em Amsterdã, ou o nome do agente secreto suíço que tinha dado acesso
à galeria de quadros roubados de Jack Bradshaw no Freeport de Genebra. Foi a carta encontrada no cofre de Bradshaw que levou Gabriel à LXR Investments e, no final,
a um pequeno banco particular em Linz, apesar de que Gabriel não afirmou que a trilha tinha passado por um escritório de advogados pan-árabes com sede na rua Great
Suffolk.
— Quem foi o sujeito que colocou sua versão falsa do Van Gogh no mercado em Paris? — perguntou Seymour.
— Era do Escritório.
— É mesmo? — duvidou Seymour. — Porque se ouviu por aí que ele era britânico.
— Quem você acha que espalhou isso, Graham?
— Você pensa em tudo, não é? — Seymour ainda estava parado na frente das estantes de livros. — E o verdadeiro Van Gogh? — perguntou ele. — Você vai devolvê-lo, não
vai?
— Assim que conseguir colocar as mãos no caderno de Waleed al-Siddiqi.
— Ah, o caderno. — Ele tirou um livro de Greene e o abriu com o dedo indicador. — Vamos supor que você seja bem-sucedido em ter acesso àquela lista de contas. E
daí?
— Use sua imaginação, Graham.
— Vai roubar? É isso que está sugerindo?
— Roubar é uma palavra feia.
— O seu serviço tem esse tipo de capacidade?
Gabriel deu um breve sorriso.
— Depois de tudo que fizemos juntos — falou ele —, me surpreende que faça essa pergunta.
Seymour devolveu o volume de Greene a seu lugar original.
— Não sou contra dar uma olhada na contabilidade dos bancos de vez em quando — falou depois de um tempo —, mas roubar é outra coisa. Afinal, somos britânicos. Acreditamos
em jogar limpo.
— Não temos esse luxo.
— Não banque a vítima, Gabriel. Não combina com você. — Seymour tirou outro livro da estante, mas dessa vez nem abriu a capa.
— Algo o incomoda, Graham?
— O dinheiro.
— O que tem o dinheiro?
— Há uma grande possibilidade de que uma parte dele esteja em instituições financeiras britânicas. E se vários milhões de libras de repente desaparecessem de seus
balanços... — Sua voz desapareceu, sem terminar o pensamento.
— Não deveriam ter aceitado o dinheiro para início de conversa, Graham.
— As contas foram, sem dúvida, abertas por um intermediário — respondeu Seymour. — O que significa que os bancos não têm ideia de quem é o verdadeiro dono do dinheiro.
— Logo irão saber.
— Não se quiser minha ajuda.
Um silêncio pairou entre eles. Foi quebrado, no final, por Graham Seymour.
— Sabe o que vai acontecer se vier a público que o ajudei a roubar um banco britânico? — perguntou ele. — Vou terminar mendigando em Leicester Square.
— Então vamos fazer isso discretamente, Graham, da forma como sempre fazemos.
— Desculpe, Gabriel, mas os bancos britânicos estão fora de cogitação.
— E as agências de bancos britânicos em solo estrangeiro?
— Ainda são bancos britânicos.
— E bancos nos territórios britânicos externos?
— Fora de cogitação — repetiu Seymour.
Gabriel fingiu pensar um pouco.
— Então, acho que vou ter que fazer isso sem sua ajuda. — Ele se levantou. — Desculpe ter tirado você do seu escritório, Graham. Diga a Nigel que posso voltar sozinho
a Heathrow.
Gabriel começou a caminhar até a porta.
— Está esquecendo uma coisa — disse Seymour.
Gabriel se virou.
— Para parar você, só preciso dizer a Waleed al-Siddiqi para queimar esse caderno.
— Eu sei — respondeu Gabriel. — Mas também sei que você nunca faria isso. Sua consciência não permitiria. E lá no fundo, quer esse dinheiro tanto quanto eu.
— Não se estiver depositado em um banco britânico.
Gabriel olhou para o teto e contou até cinco em sua cabeça.
— Se o dinheiro estiver nas ilhas Caimã, Bermuda ou qualquer outro território britânico, eu vou pegá-lo. Se estiver aqui em Londres, fica em Londres.
— Combinado — falou Seymour.
— Desde que — acrescentou Gabriel rapidamente — a HMG congele esses bens.
— O primeiro-ministro teria que tomar uma decisão como essa.
— Estou muito confiante de que o primeiro-ministro vai concordar comigo.
Dessa vez, foi Graham Seymour que olhou para o teto, bravo.
— Você ainda não me contou como vai conseguir o caderno.
— Na verdade — falou Gabriel —, você vai fazer isso para mim.
— Ainda bem que me contou isso. Mas como vamos fazer com que al-Siddiqi venha para a Grã-Bretanha?
— Vou convidá-lo para uma festa. Com alguma sorte — acrescentou Gabriel —, será a última que ele vai participar.
— Melhor que seja uma grande festa, então.
— É o que pretendo.
— Quem vai organizar?
— Um amigo meu da Rússia que não gosta de ditadores que roubam dinheiro.
— Nesse caso — falou Seymour, sorrindo pela primeira vez —, promete ser uma noite inesquecível.
43
CHELSEA, LONDRES
UM ESPIÃO BRITÂNICO CAÍDO, UM POLICIAL ITALIANO COM APENAS UM OLHO, um mestre no roubo de quadros, um assassino profissional da ilha da Córsega: essa foi a coleção
de personagens através dos quais o caso tinha avançado até agora. Então parecia combinar bem que a próxima parada nessa improvável viagem de Gabriel fosse no número
43 da rua Cheyne Walk, a casa em Londres de Viktor Orlov. Orlov era um pouco como Julian Isherwood; fazia com que a vida fosse mais interessante, e por isso Gabriel
o adorava. Mas sua afeição pelo russo era baseada em algo bem mais prático. Se não fosse por Orlov, Gabriel estaria morto em um campo de concentração da era de Stalin
ao leste de Moscou. E Chiara estaria deitada ao lado dele.
Diziam que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a serem usadas e aquelas que eram muito estúpidas para perceber que estavam
sendo usadas. Alguns acrescentariam ainda um terceiro tipo: aquelas dispostas a deixar Viktor roubar seu dinheiro. Ele não escondia que era um predador e um barão
dos ladrões. Na verdade, usava esses rótulos com orgulho, junto com seus ternos italianos de dez mil dólares e suas camisas listradas, que eram sua marca registrada,
especialmente feitas por um homem em Hong Kong. A dramática queda do comunismo soviético tinha apresentado a Orlov a oportunidade de ganhar muito dinheiro em pouco
tempo, e ele não tinha perdido essa oportunidade. Orlov raramente pedia desculpas por algo, menos ainda pela maneira como tinha ficado rico. “Se tivesse nascido
na Inglaterra, poderia ter ganhado meu dinheiro honestamente.”, ele contou a um entrevistador britânico pouco depois de estabelecer sua residência em Londres. “Mas
nasci na Rússia. E ganhei uma fortuna russa.”
Criado em Moscou durante os piores dias da Guerra Fria, Orlov tinha sido abençoado com uma facilidade natural com os números. Depois de completar o ensino médio,
estudou física na Universidade de Leningrado de Tecnologia da Informação, Mecânica e Ótica, e depois desapareceu no programa de armas nucleares russo, onde trabalhou
até o final da União Soviética. Enquanto a maioria dos seus colegas continuava a trabalhar sem salário, Orlov renunciou ao Partido Comunista e jurou ficar rico.
Em poucos anos, tinha ganhado uma fortuna razoável importando computadores, aparelhos e outros bens ocidentais para o nascente mercado russo. Mais tarde, usou essa
fortuna para comprar a maior empresa estatal de aço da Rússia junto com Ruzoil, a gigante petroleira da Sibéria, a preços muito baixos. Em pouco tempo, Viktor Orlov,
ex-físico do governo que já tinha compartilhado um apartamento com duas outras famílias soviéticas, era um bilionário e o homem mais rico da Rússia.
Mas na Rússia pós-soviética, uma terra sem lei e tomada pelo crime e pela corrupção, a fortuna de Orlov fez dele um homem marcado. Sobreviveu a pelo menos três atentados
contra sua vida e dizem que mandou matar vários homens como retaliação. Mas a maior ameaça contra Orlov viria do homem que sucedeu Boris Yeltsin como presidente
da Rússia. Ele acreditava que Viktor Orlov e outros oligarcas tinham roubado os bens mais valiosos do país, e era sua intenção tomá-los de volta. Depois de se estabelecer
no Kremlin, o novo presidente se reuniu com Orlov e exigiu duas coisas: sua empresa de aço e Ruzoil. “E fique longe da política”, ele acrescentou, ameaçador. “Ou
vou ter que eliminá-lo.”
Orlov concordou em abrir mão de sua parte no aço, mas não de Ruzoil. O presidente não ficou satisfeito. Imediatamente mandou que os promotores abrissem uma investigação
sobre fraude e suborno e, em uma semana, os promotores russos tinham um mandado para a prisão de Orlov. Enfrentando a perspectiva de uma longa estadia em um neo-gulag,
ele sabiamente fugiu para Londres, onde se tornou um dos críticos mais ferozes do presidente russo. Durante vários anos, a Ruzoil ficou congelada por ordem da justiça,
fora do alcance tanto de Orlov como dos novos mestres do Kremlin. Finalmente, Orlov concordou em entregar a empresa no que foi, na verdade, o maior pagamento de
resgate da história — 12 bilhões de dólares em troca da libertação de três agentes sequestrados do Escritório. Por sua generosidade, Orlov recebeu um passaporte
britânico e uma reunião bastante privada com a rainha. No final, declarou que este tinha sido o dia de que mais se orgulhava em sua vida.
Havia se passado mais de cinco anos desde que Viktor Orlov tinha feito o acordo financeiro com o Kremlin, mas continuava no topo da lista de inimigos russos. Como
resultado, anda por Londres em uma limusine blindada, e sua casa em Cheyne Walk parece a embaixada de uma nação sitiada. As janelas eram à prova de bala, e estacionado
no meio-fio havia um Range Rover cheio de guarda-costas, todos ex-membros do velho regimento de Christopher Keller, o Serviço Aéreo Especial. Não prestaram muita
atenção em Gabriel quando ele chegou na hora marcada, às quatro e meia, e passando pelo portão de ferro, se apresentou na porta da frente de Orlov. A campainha,
quando ele a tocou, foi atendida por uma empregada com um uniforme preto e branco engomado, que acompanhou Gabriel por uma escadaria ampla e elegante até o escritório
de Orlov. A sala era uma réplica exata do gabinete privado da rainha no Palácio de Buckingham, exceto pela tela de plasma gigante atrás da mesa de Orlov. Normalmente,
ela transmitia dados financeiros do mundo todo, mas naquela tarde era a crise na Ucrânia que chamava a atenção de Orlov. O exército russo tinha invadido a península
da Crimeia e agora estava ameaçando tomar outras regiões do leste da Ucrânia. A Guerra Fria tinha oficialmente voltado, era o que declarava o comentarista. A lógica
dele tinha apenas um erro. Na cabeça do presidente russo, a Guerra Fria nunca tinha terminado.
— Avisei que isso iria acontecer — falou Orlov depois de um momento. — Avisei que o czar queria o império de volta. Deixei muito claro que a Geórgia era apenas o
aperitivo e que a Ucrânia, o celeiro da velha união, seria o prato principal. E agora está acontecendo ao vivo na televisão. E o que os europeus fizeram?
— Nada — respondeu Gabriel.
Orlov assentiu lentamente, os olhos fixos na tela.
— E você sabe por que os europeus não estão fazendo nada enquanto o Exército Vermelho invade de forma brutal outra nação independente.
— Dinheiro — respondeu Gabriel.
Orlov assentiu de novo.
— Avisei sobre isso também. Falei para eles não ficarem tão dependentes do comércio com a Rússia. Pedi que não ficassem viciados no gás natural barato da Rússia.
Ninguém me ouviu, claro. E agora os europeus não têm como impor sanções sérias contra o czar porque isso iria atacar muito suas economias. — Balançou a cabeça lentamente.
— Isso me deixa mal.
Nesse instante, apareceu o presidente russo na tela, uma mão rígida ao lado do corpo e a outra balançando como uma foice. Seu rosto tinha sido operado recentemente
de novo; os olhos estavam tão esticados que ele parecia um homem das repúblicas da Ásia Central. Seria uma figura cômica se não fosse pelo sangue em suas mãos, um
pouco do qual pertencia a Gabriel.
— Na última estimativa — dizia Orlov, os olhos fixos em seu velho inimigo —, ele vale 130 bilhões de dólares, o que o tornaria o homem mais rico do mundo. Como acha
que conseguiu todo esse dinheiro? Afinal, ele passou toda sua vida recebendo um salário do governo.
— Acho que ele roubou.
— Você acha?
Orlov se virou da tela e olhou para Gabriel pela primeira vez. Era um homem pequeno e ágil de sessenta anos, com uma cabeça de cabelos grisalhos penteados com gel
de uma forma jovem e espetada. Atrás dos óculos sem armação, seu olho esquerdo tremia nervoso. Era o que acontecia normalmente quando falava sobre o presidente russo.
— Sei com certeza que ele embolsou uma boa porção da Ruzoil depois que a entreguei ao Kremlin para tirá-lo da Rússia. Valia uns 12 bilhões de dólares na época. Coisa
pouca no grande esquema geral — acrescentou Orlov. — Ele e seu círculo interno estão ficando incrivelmente ricos às custas do povo russo. É por isso que vai fazer
o que for preciso para continuar no poder. — Orlov fez uma pausa, depois acrescentou: — Assim como seu amigo na Síria.
— Então por que não me ajuda a fazer algo sobre isso?
— Roubar o dinheiro do czar? É o que mais adoraria no mundo. Afinal — acrescentou Orlov —, uma parte dele é meu. Mas não é possível.
— Concordo.
— Então, o que está sugerindo?
— Que roubemos o dinheiro de seu amigo sírio, no lugar.
— Você o encontrou?
— Não — respondeu Gabriel. — Mas sei quem está controlando o dinheiro.
— Seria Kemel al-Farouk — falou Orlov. — Mas o homem que está realmente administrando o portfólio de investimentos é Waleed al-Siddiqi.
Gabriel ficou muito assombrado para responder. Orlov sorriu.
— Você deveria ter vindo falar comigo antes — disse ele. — Poderia ter evitado muitos problemas.
— Como sabe sobre al-Siddiqi?
— Porque você não é o único procurando o dinheiro. — Orlov olhou para a TV atrás de si, onde o presidente russo estava agora recebendo um informe de seus generais.
— O czar também está atrás dele. Mas isso não é surpresa — acrescentou ele. — O czar quer tudo.
Quando deu cinco horas, a empregada apareceu com uma garrafa de Château Pétrus, o lendário vinho de Pomerol que Orlov bebia como se fosse água Evian.
— Quer uma taça, Gabriel?
— Não, obrigado, Viktor. Estou dirigindo.
Orlov balançou a mão desdenhoso e serviu vários centímetros do vinho tinto escuro em uma taça.
— Onde estávamos? — perguntou ele.
— Estava prestes a me contar como é que sabe sobre Waleed al-Siddiqi.
— Tenho fontes em Moscou. Excelentes fontes — acrescentou ele com um sorriso. — Achei que já sabia disso.
— Suas fontes são as melhores, Viktor.
— Melhores que as do MI6 — falou ele. — Deveria aconselhar seu amigo Graham Seymour a atender minhas ligações de vez em quando. Posso ser muito útil para ele.
— Vou mencionar isso da próxima vez que me encontrar com ele.
Orlov se sentou na ponta de um sofá comprido e convidou Gabriel a se sentar na outra ponta. Do outro lado das janelas à prova de bala, o trânsito da noite fluía
por Chelsea Embankment cruzando a ponte Albert até Battersea. No mundo de Viktor Orlov, no entanto, só havia a figura ligeiramente ridícula cruzando as telas de
sua TV.
— Por que você acha que ele saiu em defesa do presidente sírio quando o resto do mundo civilizado estava pronto para usar a força militar contra ele? Foi por que
queria proteger o único amigo da Rússia no mundo árabe? Queria manter sua base naval em Tartus? A resposta para as duas questões é sim. Mas há outra razão. — Orlov
olhou para Gabriel e disse: — Dinheiro.
— Quanto?
— Meio bilhão de dólares, pagável diretamente para uma conta controlada pelo czar.
— Quem falou?
— Preferia não falar.
— De onde vem esse meio bilhão?
— O que você acha?
— Como não sobrou nada no tesouro sírio, eu diria que veio diretamente do bolso do dirigente.
Orlov assentiu e olhou para a tela de novo.
— E o que você acha que o czar fez depois de ter recebido a confirmação de que o dinheiro tinha sido depositado em sua conta?
— Como o czar é um maldito ambicioso, acho que mandou que seus velhos colegas na SVR encontrassem o resto.
— Você conhece bem o czar.
— E tenho as cicatrizes para provar.
Orlov sorriu e tomou um gole do vinho.
— Minhas fontes me dizem que a busca foi realizada pelo rezident da SVR em Damasco. Ele já sabia sobre Kemel al-Farouk. Demorou cinco minutos para chegar ao nome
de al-Siddiqi.
— Al-Siddiqi controla toda a fortuna?
— Nem perto disso — respondeu Orlov. — Se tivesse que adivinhar, diria que ele administra mais ou menos metade do dinheiro do dirigente.
— Então o que o czar está esperando?
— Está esperando para ver se o dirigente sobrevive ou se termina como Gaddafi. Se sobreviver, pode ficar com seu próprio dinheiro. Mas se terminar como Gaddafi,
a SVR vai agarrar aquela lista de contas que al-Siddiqi carrega em seu bolso.
— Vou chegar antes deles — falou Gabriel. — E você vai me ajudar.
— O que exatamente precisa que eu faça?
Gabriel contou. Orlov girou os óculos pela haste, algo que sempre fazia quando estava pensando em dinheiro.
— Não vai ser barato — falou depois de um momento.
— Quanto, Viktor?
— Trinta milhões, no mínimo. Talvez quarenta quando tudo estiver preparado.
— O que você diz de cada um pagar sua parte dessa vez?
— Quanto você tem?
— Poderia conseguir uns dez milhões por aí — falou Gabriel. — Mas eu teria que lhe dar em dinheiro.
— É verdadeiro?
— Totalmente.
Orlov sorriu.
— Então aceito em dinheiro.
44
LONDRES — LINZ, ÁUSTRIA
HOUVE UM INTENSO DEBATE sobre como chamar aquilo. Orlov exigia que seu nome estivesse associado com o empreendimento — algo pouco surpreendente, pois ele estava
colocando a maior parte do dinheiro. “O nome Orlov é símbolo de qualidade”, ele argumentava. “O nome Orlov é símbolo de sucesso.” Verdade, falou Gabriel, mas também
é símbolo de corrupção, jogo duplo e rumores de violência, acusações que Orlov nunca se importou em negar. No final, eles ficaram com “Iniciativa de Negócios Europeia”:
estoico, sólido e sem nenhuma controvérsia. Orlov ficou resmungando com a derrota.
— Por que não chamamos de “doze horas de tédio irrestrito”? — murmurou. — Dessa forma podemos ter certeza de que ninguém vai querer participar.
Eles anunciaram o empreendimento na segunda-feira seguinte nas páginas do Financial Journal, o venerável diário de negócios de Londres que Orlov tinha comprado por
uma bagatela alguns anos antes, quando estava à beira da falência. O objetivo declarado da reunião, ele dizia, era juntar as mentes mais brilhantes do governo, indústria
e finanças para chegar a um consenso sobre recomendações políticas que levantariam a economia europeia de sua estagnação pós-recessão. A reação inicial foi morna,
no melhor dos casos. Um comentarista chamou de Loucura de Orlov. Outro a batizou de Titanic de Orlov.
— Com uma diferença crítica — acrescentou. — Esse barco vai afundar antes de deixar o porto.
Ainda houve outros que desdenharam da conferência como mais um na longa lista de truques publicitários de Orlov, uma acusação que ele negou várias vezes durante
um dia inteiro de entrevistas nas redes de notícias de negócios. Então, como se quisesse provar que seus críticos estavam errados, embarcou em uma turnê silenciosa
pelas capitais europeias para angariar apoio a seu empreendimento. Sua primeira parada foi Paris, onde, depois de uma maratona de reuniões de negociação, o ministro
de Economia francês concordou em enviar uma delegação. Em seguida partiu para Berlim, onde conseguiu uma promessa dos alemães de que iam participar. O resto do continente
seguiu. Os Países Baixos concordaram numa tarde, assim como a Escandinávia. Os espanhóis ficaram tão desesperados para participar que Orlov nem precisou ir até Madri.
Também não foi necessário viajar a Roma. Na verdade, o primeiro-ministro italiano disse que iria participar pessoalmente — desde que, claro, ainda estivesse no cargo
na ocasião.
Tendo ganhado o compromisso dos governos europeus, Orlov foi atrás das estrelas dos negócios e das finanças. Capturou os titãs da indústria automobilística alemã,
e os gigantes industriais da Suécia e da Noruega. Transportes quis entrar na brincadeira, assim como Aço e Energia. Os bancos suíços relutaram no começo, mas concordaram
depois que Orlov garantiu que não seriam crucificados por seus pecados anteriores. Mesmo Martin Landesmann, o rei suíço dos fundos de investimento e realizador internacional
de boas ações, anunciou que encontraria tempo em sua agenda lotada, apesar de ter implorado para Orlov devotar pelo menos parte do programa para questões importantes
para ele como a mudança climática, a dívida do Terceiro Mundo e agricultura sustentável.
E assim, em poucos dias, a conferência que já tinha sido chamada de loucura se tornou o evento mais importante do mundo dos negócios. Orlov estava tomado por pedidos
de convites. Havia os norte-americanos que se perguntavam por que não tinham sido convidados. Modelos, estrelas do rock e atores que queriam se juntar aos ricos
e poderosos. O ex-primeiro-ministro, caído em desgraça por um escândalo pessoal, que queria uma chance de se redimir. Até os companheiros da oligarquia russa que
mantinham ligações desconfortáveis com os inimigos de Orlov no Kremlin. Ele deu a mesma resposta para todos. Os convites seriam enviados por correio noturno no primeiro
dia de julho. RSVPs deveriam voltar em 48 horas. A imprensa teria autorização para ver os comentários iniciais de Orlov, mas todas as outras discussões, incluindo
o jantar de gala, seriam fechadas para a imprensa. “Queremos que nossos participantes se sintam livres para falar o que quiserem”, disse Orlov. “E não poderão fazer
isso se a imprensa estiver ouvindo suas palavras.”
Tudo isso parecia de pouca importância na encantada cidade austríaca localizada numa curva estranhamente pontuda do rio Danúbio. Sim, o presidente da Voestalpine
AG, a gigante de aço de Linz, tinha recebido sondagens de Orlov sobre sua participação na conferência em Londres, mas, tirando isso, a vida continuava normal. Houve
alguns festivais de verão, os cafés enchiam e esvaziavam duas vezes por dia, e no pequeno banco privado localizado perto da rotatória do bonde, uma filha de Hama
continuava com sua rotina diária como se nada incomum tivesse ocorrido. Com seu celular hackeado, que agora agia como um transmissor em tempo integral, Gabriel e
o resto da equipe eram capazes de ouvir todos seus movimentos. Eles ouviam quando ela abria contas e movimentava dinheiro. Ouviam suas reuniões com Herr Weber e
com o sr. al-Siddiqi. E à noite, ouviam como ela sonhava com Hama.
Ouviam, também, como ela retomava sua amizade com uma aspirante a romancista, recentemente divorciada e vivendo sozinha em Linz, chamada Ingrid Roth. Elas almoçavam
juntas, faziam compras, visitavam museus. E em duas ocasiões voltaram à linda villa amarela na margem ocidental do Attersee, onde Jihan foi interrogada e preparada
por um homem que tinha sido levada a acreditar que era alemão. No final da primeira sessão, ele pediu uma descrição detalhada do escritório do sr. al-Siddiqi. E
quando voltou para a segunda sessão, uma réplica do escritório tinha sido criada em um dos quartos da villa. Era uma falsificação perfeita em todos os detalhes:
a mesma mesa, o mesmo computador, o mesmo telefone, até a mesma câmera de segurança no alto e o mesmo teclado numérico na porta.
— Para que isso? — perguntou Jihan, assombrada.
— Para praticar — falou Gabriel com um sorriso.
E eles praticaram, durante três horas sem parar, até ela conseguir realizar sua missão sem demonstrar um traço de medo ou tensão. Então, ela refez no escuro, e com
um alarme, e com Gabriel gritando que os homens do sr. al-Siddiqi estavam vindo atrás dela. Ele não contou a Jihan que o treinamento que ela recebia tinha sido criado
pelo serviço secreto do Estado de Israel. Nem mencionou o fato de que, em várias ocasiões, ele tinha passado por períodos desse mesmo treinamento. Na presença dela,
ele nunca era Gabriel Allon. Era um auditor fiscal tedioso e sem nome que era muito bom no seu trabalho.
A farsa de Jihan parecia pesar cada vez mais na consciência de Gabriel com a aproximação do dia da operação. Ele lembrava a equipe a cada momento que seus oponentes
iam jogar pelas Regras de Hama — e talvez pela Regra de Moscou também — e repassava cada pequeno detalhe. Com o humor de Gabriel cada vez pior, Eli Lavon tomou a
liberdade de adquirir um pequeno barco de madeira, só para conseguir tirá-lo da casa por algumas horas a cada tarde. Ele navegava até as Montanhas do Inferno e depois
voltava para casa, sempre tentando melhorar seu tempo. O cheiro do Rosenwind o fazia lembrar da criança aterrorizada agarrando-se à sua mãe — e, às vezes, do aviso
que a velha bruxa tinha sussurrado em seu ouvido na ilha da Córsega.
Não deixe que nenhum mal aconteça com ela ou vai perder tudo...
Mas sua obsessão principal durante esses últimos dias de junho era com Waleed al-Siddiq, o banqueiro sírio que ia a todos lugares com um caderno de couro preto em
seu bolso. Estava viajando com frequência nesse período e, como era seu costume, com passagens compradas com poucas horas de antecedência. Houve uma viagem de um
dia a Bruxelas, um voo noturno para Beirute e, finalmente, uma visita rápida a Dubai, onde passou boa parte do tempo na sede do Banco TransArabian, uma instituição
que o Escritório conhecia muito bem. Voltou a Viena à uma hora, no primeiro dia de julho, e às três estava passando pela porta do Bank Weber AG, seguido, como sempre,
por seus dois guarda-costas alauítas. Jihan o cumprimentou cordialmente em árabe e entregou uma pilha de correspondência que tinha chegado. Incluía um envelope DHL,
dentro do qual havia um convite chique para algo chamado a Iniciativa de Negócios Europeia. Ele o carregou sem abrir até seu escritório e fechou a porta.
Era uma quarta-feira, o que significava que ele tinha até as cinco horas da sexta-feira para enviar seu RSVP via e-mail. Gabriel tinha se preparado para uma longa
espera e, infelizmente, Waleed al-Siddiqi não o desapontou. A quarta-feira passou sem resposta, assim como a quinta-feira de manhã e de tarde. Eli Lavon via a demora
como um sinal positivo. Significava, ele falou, que o banqueiro estava lisonjeado pelo convite e estava deliberando se iria participar. Mas Gabriel temia outra coisa.
Tinha investido muito em tempo e dinheiro para atrair o banqueiro sírio para a Grã-Bretanha. E agora parecia que não tinha nada para mostrar por seus esforços a
não ser uma deslumbrante palestra para empresários europeus. Melhorar a anêmica economia europeia era um empreendimento nobre, ele disse a Lavon, mas estava longe
de ser uma de suas principais prioridades.
Na sexta-feira de manhã, Gabriel estava tomado pela preocupação. Ligava para Viktor Orlov em Londres a cada hora. Caminhava pela sala principal. Murmurava para o
teto em qualquer idioma que parecesse melhor para seu humor, que se alterava a cada momento. Finalmente, às duas, ele abriu a porta do falso escritório de al-Siddiqi
e gritou em árabe para ele se decidir logo. Foi nesse ponto que Eli Lavon achou melhor intervir. Pegou Gabriel gentilmente pelo cotovelo e o levou até o final do
longo píer.
— Vai — falou, apontando para a ponta distante do lago. — E não volte aqui nem um minuto antes das cinco.
Gabriel subiu relutante no barco e navegou até as Montanhas do Inferno, de uma ponta à outra, seguido pelo perfume das rosas. Só demorou uma hora para chegar à ponta
sul do lago; baixou as velas em uma enseada protegida e se esquentou sob o sol, o tempo todo resistindo à vontade de usar seu celular. Finalmente, às três e meia,
levantou a vela principal e a bujarrona, voltando para o norte. Chegou à cidade de Seeberg às dez para as cinco, virou mais uma vez para estibordo, e acelerou para
a viagem direto até a casa no lado oposto do lago. Quando se aproximou, viu a pequena figura de Eli Lavon parado no píer, um braço levantado em uma saudação silenciosa.
— E então? — perguntou Gabriel.
— Parece que o sr. al-Siddiqi sente-se honrado em participar da Iniciativa de Negócios Europeia.
— Só isso?
— Não — falou Lavon, franzindo a testa. — Ele também gostaria de conversar em particular com a senhorita Nawaz.
— Sobre o quê?
— Entre — respondeu Lavon. — Vamos saber em um minuto.
45
LINZ, ÁUSTRIA
ELA HAVIA PEDIDO cinco minutos. Cinco minutos para fechar os últimos arquivos de contas. Cinco minutos para arrumar sua já arrumada mesa. Cinco minutos para que
seu coração caótico voltasse ao normal. O tempo tinha se esgotado. Ela se levantou, de forma um pouco mais abrupta do que o normal e arrumou sua saia. Ou estava
enxugando o suor das palmas de suas mãos? Ela verificou se não tinha nenhum fio solto e depois olhou para os guarda-costas parados na porta do sr. al-Siddiqi. Estavam
olhando para ela. Imaginou que o sr. al-Siddiqi estivesse olhando para ela, também. Sorrindo, ela cruzou o corredor. Sua batida na porta fingia ser decidida: três
golpes duros que doeram em sua mão.
— Entre — foi tudo que ele disse.
Ela ficou olhando direto para frente enquanto o guarda-costas à sua direita — o alto chamado Yusuf — digitou o código de acesso no teclado na parede. Os trincos
se liberaram com um ruído e a porta se abriu tranquilamente com seu toque. A sala em que entrou estava na semiescuridão, iluminada por uma única lâmpada halógena
na mesa. Ela notou que a lâmpada tinha sido movida um pouco, mas do contrário, a mesa estava organizada como sempre: o computador à esquerda, a base de couro no
centro, o telefone à direita. No momento, o fone estava apertado forte contra o ouvido do sr. al-Siddiqi. Estava usando um terno cinza escuro, uma camisa branca
e uma gravata preta que brilhava como granito polido. Seus pequenos olhos escuros estavam focados em algum ponto acima da cabeça de Jihan; seu dedo indicador estava
ao lado do seu nariz aquilino, criando um ar contemplativo. Ele o apontou, como uma pistola, para a cadeira vazia. Jihan se sentou e se endireitou. Ela percebeu
que ainda estava sorrindo. Olhando para baixo, verificou seu e-mail no celular e tentou não ficar adivinhando quem estava do outro lado da ligação do sr. al-Siddiqi.
Finalmente, ele murmurou algumas palavras em árabe e desligou o telefone.
— Perdoe-me, Jihan — falou no mesmo idioma —, mas infelizmente, essa ligação não podia esperar.
— Algum problema?
— Nada além do normal. — Ele colocou as mãos debaixo do queixo pensativo e olhou sério para ela por um momento. — Tem algo que eu gostaria de discutir com você —
falou ele finalmente. — É tanto pessoal quanto profissional. Espero que você me permita falar livremente.
— Tem algo errado?
— Você é que deve me dizer, Jihan.
Seu pescoço parecia estar pegando fogo.
— Não entendo — falou ela, calma.
— Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Está feliz aqui em Linz?
Ela franziu a testa.
— Por que está perguntando algo assim?
— Porque você nem sempre parece muito feliz. — Sua boca pequena e dura fez um movimento que parecia um sorriso. — Eu a vejo como uma pessoa muito séria, Jihan.
— E sou.
— E honesta? — perguntou ele. — Você se considera uma pessoa honesta?
— Bastante.
— Nunca violaria a privacidade de nossos clientes?
— Claro que não.
— E nunca discutiria nossos negócios com ninguém fora do banco?
— Nunca.
— Nem com algum membro de sua família?
— Não.
— Nem com um amigo?
Ela balançou a cabeça.
— Tem certeza, Jihan?
— Tenho, sr. al-Siddiqi.
Ele olhou para a televisão. Estava ligada, como sempre, na Al Jazeera. O volume estava no mudo.
— E sobre lealdade? — perguntou depois de um momento. — Você se considera uma pessoa leal?
— Bastante.
— Ao que você é leal?
— Nunca pensei nisso, na verdade.
— Pense agora, por favor. — Ele olhou para a tela de seu computador para lhe dar um momento de privacidade.
— Acho que sou leal a mim mesma — falou ela.
— Resposta interessante. — Seus olhos escuros se moveram da tela do computador para o rosto dela. — De que forma você é leal a si mesma?
— Tento viver seguindo um certo código.
— Como qual?
— Nunca machucaria alguém intencionalmente.
— Mesmo se essa pessoa machucar você?
— É — respondeu ela. — Mesmo se me machucasse.
— E se você suspeitasse que alguém fez algo errado, Jihan? Tentaria machucá-lo então?
Ela sorriu forçadamente.
— Essa é a parte pessoal ou profissional do que o senhor queria discutir? — perguntou ela.
Sua pergunta pareceu desconcertá-lo. Seu olhar passeou pela televisão silenciosa.
— E em relação a seu país? — perguntou ele. — Você é leal a seu país?
— Gosto muito da Alemanha — respondeu ela.
— Você tem um passaporte alemão e fala o idioma como nativa, Jihan, mas você não é alemã. Você é síria. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Como eu.
— É por isso que me contratou?
— Eu contratei você — afirmou ele — porque precisava de alguém com sua capacidade idiomática para me ajudar aqui na Áustria. Você provou ser muito valiosa para mim,
Jihan, e é por isso que estou pensando em criar um novo cargo para você.
— Que tipo de cargo?
— Você trabalharia diretamente para mim.
— Que tipo de trabalho?
— O que eu precisar.
— Não sou secretária, sr. al-Siddiqi.
— Nem eu a trataria como uma. Iria me ajudar a administrar os portfólios de investimento de meus clientes. — Ele a olhou por um momento como se estivesse tentando
ler seus pensamentos. — Isso lhe interessa?
— Quem seria o gerente de contas?
— Alguém novo.
Ela abaixou a vista e respondeu olhando para suas mãos.
— Estou muito lisonjeada por me considerar para esse cargo, sr. al-Siddiqi.
— Não parece muito animada com a ideia. Na verdade, Jihan, parece um pouco desconfortável.
— De jeito nenhum — respondeu ela. — Só estou tentando imaginar por que iria querer alguém como eu nessa posição importante.
— Por que não você? — retrucou ele.
— Não tenho experiência gerenciando bens.
— Tem algo muito mais valioso do que experiência.
— O quê, sr. al-Siddiqi?
— Lealdade e honestidade, as duas qualidades que mais valorizo em um funcionário. Preciso de alguém em quem possa confiar. — Ele formou um triângulo com seus dedos
longos e magros, e apoiou na ponta de seu nariz. — Eu posso confiar em você, não posso, Jihan?
— Claro, sr. al-Siddiqi.
— Isso significa que você está interessada?
— Muito — respondeu ela. — Mas gostaria de uns dias para pensar.
— Infelizmente, não posso esperar tanto tempo por uma resposta.
— Quanto tempo eu tenho?
— Diria que tem uns dez segundos. — Ele sorriu de novo. Parecia que tinha aprendido a fazer a expressão praticando em frente ao espelho.
— E se eu aceitar? — perguntou Jihan.
— Vou precisar fazer uma verificação de antecedentes antes de continuar. — Ficou silencioso por um momento. — Você não teria problema com isso, teria?
— Imagino que já tenha passado por uma verificação de antecedentes antes de ser contratada.
— É verdade.
— Então por que o senhor deve fazer outra?
— Porque essa vai ser diferente.
Ele fez parecer como uma ameaça. Talvez fosse.
Na sala de espera da casa de Attersee, Gabriel tinha, sem saber, adotado a mesma pose de Waleed al-Siddiqi: as pontas dos dedos pressionando a ponta do nariz, os
olhos mirando para frente. Estavam fixos não em Jihan Nawaz, mas no computador que estava emitindo o som de sua voz. Eli Lavon estava sentado ao lado dele, mordendo
a parte interna da bochecha. E ao lado de Lavon estava sentado Yaakov Rossman, o melhor falante de árabe da equipe. Como sempre, Yaakov parecia estar contemplando
um ato de violência.
— Poderia ser uma coincidência — disse Lavon sem convicção.
— Poderia — repetiu Gabriel. — Ou é possível que o sr. al-Siddiqi não goste das companhias com que Jihan tem andado.
— Não é contra as regras ter uma amiga.
— A menos que a amiga trabalhe para o serviço de inteligência do Estado de Israel. Então suspeito que ele seria contra.
— Por que ele suporia que Dina é israelense?
— Ele é sírio, Eli. Automaticamente supõe o pior.
Do computador veio o som de Jihan saindo da sala do sr. al-Siddiqi e voltando para sua mesa. Gabriel voltou a barra para cinco minutos e nove segundos e clicou no
PLAY.
“Você se considera uma pessoa honesta?”
“Bastante.”
“Nunca violaria a privacidade de nossos clientes?”
“Claro que não.”
“E nunca discutiria nossos negócios com ninguém fora do banco?”
“Nunca.”
“Nem com algum membro de sua família?”
“Não.”
“Nem com um amigo?”
Gabriel apertou STOP e olhou para Lavon.
— Vamos combinar que isso não parece muito encorajador — falou Lavon.
— Que tal isso?
Gabriel clicou no PLAY.
“De que forma você é leal a si mesma?”
“Tento viver seguindo um certo código.”
“Como qual?”
“Nunca machucaria alguém intencionalmente.”
“Mesmo se essa pessoa machucar você?”
“É. Mesmo se me machucasse.”
“E se você suspeitasse que alguém fez algo errado, Jihan? Tentaria machucá-lo então?”
STOP.
— Se ele suspeita da lealdade dela — falou Lavon —, por que está oferecendo uma promoção? Por que não mandá-la embora?
— Mantenha seus amigos perto e seus inimigos mais perto ainda.
— Shamron disse isso?
— Pode ter sido.
— O que quer dizer?
— Al-Siddiqi não pode demiti-la porque tem medo de que ela saiba muito. Então está usando a promoção como uma desculpa para fazer outra verificação sobre ela.
— Ele não precisa de uma desculpa. Tudo que precisa é fazer umas ligações a seus amigos na Mukhabarat.
— Quanto tempo temos, Eli?
— Difícil dizer. Afinal, estão bastante ocupados no momento.
— Quanto tempo? — pressionou Gabriel.
— Alguns dias, talvez uma semana.
Gabriel aumentou o volume da transmissão ao vivo que vinha do celular de Jihan. Ela estava arrumando sua bolsa e dando boa noite a Herr Weber.
— Não há nada de errado em tirá-la daqui e desistir — falou Lavon, em voz baixa.
— Também não teríamos o dinheiro.
Lavon estava mordendo a parte interna de sua boca de novo.
— O que vamos fazer? — perguntou ele finalmente.
— Vamos nos certificar de que nada aconteça com ela.
— Esperemos que os amigos do sr. al-Siddiqi na Mukhabarat estejam ocupados demais para atender seu pedido.
— É — falou Gabriel. — Vamos esperar que sim.
Alguns minutos depois das cinco horas Jihan Nawaz saiu do Bank Weber AG. Um bonde estava esperando na rotatória; ela cruzou o Danúbio até a Mozartstrasse e depois
caminhou pelas ruas tranquilas do Innere Stadt, cantando baixinho para esconder o medo. Era uma música que tinha tocado no rádio o verão todo, o tipo de música que
Jihan nunca tinha ouvido quando era criança. No bairro Barudi de Hama não havia música, só o Corão.
Quando entrou em sua rua, notou um homem alto e magro com a pele pálida e olhos cinzentos caminhando na calçada em frente. Ela já o tinha visto algumas vezes nos
últimos dias; na verdade, ele tinha sentado atrás dela no bonde naquela manhã a caminho do trabalho. Na manhã anterior, era o homem com o rosto marcado que a tinha
seguido. E no dia anterior tinha sido um homem pequeno e quadrado que parecia capaz de dobrar uma barra de ferro. Seu favorito, no entanto, era o homem que tinha
vindo ao banco como Herr Feliks Adler. Ele era diferente dos outros, pensou. Era um verdadeiro artista.
O medo desapareceu tempo suficiente para ela pegar a correspondência na caixa de correio. O chão da entrada do prédio estava tomado por folhetos; pisou sobre eles,
subiu as escadas até seu apartamento e se trancou dentro. A sala de estar encontrava-se precisamente como ela havia deixado, assim como a cozinha e seu quarto. Ela
se sentou na frente do computador e olhou sua página de Facebook e seu Twitter, e por alguns minutos conseguiu se convencer de que a conversa com o sr. al-Siddiqi
tinha sido uma troca normal de questões de trabalho. Então o medo voltou e suas mãos começaram a tremer.
“E se você suspeitasse que alguém fez algo errado, Jihan? Tentaria machucá-lo então?
Ela pegou seu celular e discou para a mulher que conhecia como Ingrid Roth.
— Não queria ficar sozinha agora. Alguma chance de ir até seu apartamento?
— É melhor que não venha.
— Algum problema?
— Só estou tentando trabalhar um pouco.
— Está tudo bem?
— Está tudo bem.
— Tem certeza, Ingrid?
— Tenho certeza.
Elas desligaram o telefone. Jihan colocou o celular perto do computador e caminhou até a janela. E por um instante viu o rosto de um homem que a observava do outro
lado da rua. “Talvez você trabalhe para o sr. al-Siddiqi”, ela pensou quando o rosto do homem desapareceu. “Talvez eu já esteja morta.”