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O CASO CARAVAGGIO
O CASO CARAVAGGIO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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22
ÎLE SAINT-LOUIS, PARIS
– EU GOSTARIA DE COMEÇAR ESSA Conversa, sr. Bartholomew, dando-lhe meus parabéns. Foi uma transação impressionante que você e seus homens realizaram em Amsterdã.
— Quem disse que não fiz isso sozinho?
— Não é o tipo de coisa que alguém faz sozinho. Certamente teve ajuda — acrescentou Sam. — Como seu amigo que estava no telefone comigo. Ele fala francês muito bem,
mas não é francês, é?
— Que diferença isso faz?
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios.
— Isso não é a Harrods, querido.
Sam olhou a rua com a calma de um turista que tinha visitado muitos museus em pouco tempo.
— Ele está aí fora em algum lugar, não está?
— Não saberia dizer.
— E há outros?
— Vários.
— E mesmo assim exigiram que eu viesse sozinho.
— É o vendedor quem manda.
— Foi o que ouvi.
Sam retomou sua inspeção da rua. Ainda estava de chapéu e óculos escuros, o que deixava apenas a parte inferior do seu rosto visível. Estava com a barba bem feita.
As bochechas eram altas e proeminentes, o queixo forte, os dentes brancos e perfeitos. Suas mãos não tinham cicatrizes ou tatuagens. Não usava anéis nos dedos ou
braceletes nos pulsos, só um grande Rolex dourado para indicar que era um homem de posses. Tinha os maneirismos refinados de um árabe bem nascido, mas um tanto grosseiro.
— Ouvimos outras coisas também — continuou Sam depois de um momento. — Aqueles que viram a mercadoria dizem que você conseguiu tirá-la de Amsterdã com danos mínimos.
— Nenhum, na verdade.
— Também ouvimos que há Polaroids.
— Onde ouviu isso?
Sam deu um sorriso desagradável.
— Isso vai demorar muito mais do que o necessário se você insistir nesses jogos, sr. Bartholomew.
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios — disse Keller, enfático.
— Está pedindo informações sobre o homem que represento, sr. Bartholomew?
— Nem sonharia em fazer isso.
Houve um silêncio.
— Meu cliente é um empresário — falou Sam finalmente. — Bastante bem-sucedido, bastante rico. Também ama as artes. Coleciona muito, mas como muitos colecionadores
sérios, foi ficando frustrado com o fato de que não há mais bons quadros à venda. Ele quer há muitos anos adquirir um Van Gogh. Você agora tem um muito bom. Meu
cliente gostaria de tê-lo.
— Assim como muitas outras pessoas.
Sam pareceu não se perturbar com isso.
— E você? — perguntou depois de um momento. — Por que não me fala um pouco sobre você?
— Roubo coisas para viver.
— É inglês?
— Infelizmente.
— Sempre gostei dos ingleses.
— Não vou usar isso contra você.
Apareceu um garçom que entregou o menu. Sam pediu uma garrafa de água mineral; Keller, uma taça de vinho que não tinha intenção de beber.
— Quero deixar uma coisa clara desde o começo — falou quando ficaram novamente sozinhos. — Não estou interessado em drogas, armas ou garotas, nem em um condomínio
em Boca Raton, na Flórida. Só aceito dinheiro.
— De quanto dinheiro estamos falando, sr. Bartholomew?
— Tenho uma oferta de vinte milhões na mesa.
— Que sabor?
— Euros.
— É uma oferta firme?
— Deixei a venda em espera para me encontrar com você.
— Que lisonjeiro. Por que faria algo assim?
— Porque ouvi falar que seu cliente, quem quer que seja, é um homem com bolsos bem grandes.
— Bem grandes. — Outro sorriso, só um pouco mais agradável que o primeiro. — Então como quer continuar, sr. Bartholomew?
— Preciso saber se está interessado em aumentar a oferta que está na mesa.
— Estou.
— Quanto mais?
— Acho que poderia oferecer algo trivial, como um adicional de quinhentos mil, mas meu cliente não gosta de leilões. — Fez uma pausa, então perguntou: — Será que
25 milhões seriam suficientes para tirar o quadro da mesa?
— Seriam, Sam.
— Excelente — falou. — Agora seria um bom momento para você me mostrar as Polaroids.
As Polaroids estavam no porta-luvas de uma Mercedes alugada estacionada em uma rua calma atrás de Notre Dame. Keller e Sam caminharam até lá juntos e entraram, Keller
atrás do volante, Sam no banco do passageiro. Keller submeteu-o a uma rápida e completa inspeção antes de abrir o porta-luvas e pegar as fotos. Eram quatro ao todo
— uma da obra inteira, três mostrando os detalhes. Sam olhou para elas cético.
— Parece o Van Gogh que está pendurado em cima da cama no meu hotel.
— Não é.
Fez uma careta para indicar que não estava convencido.
— A pintura nessa fotografia poderia ser uma cópia. E você poderia ser um trapaceiro inteligente que está querendo ganhar em cima do roubo em Amsterdã.
— Tire seus óculos escuros e dê uma olhada melhor, Sam.
— É o que pretendo. — Entregou as fotos de volta a Keller. — Preciso ver o quadro real, não fotografias.
— Não tenho um museu, Sam.
— O que quer dizer?
— Não posso mostrar o Van Gogh a qualquer um que queira vê-lo. Preciso saber se você está falando sério.
— Ofereci 25 milhões de euros em dinheiro por ele.
— É fácil oferecer 25 milhões, Sam. Entregar é outra coisa.
— Meu cliente é um homem de riqueza extraordinária.
— Então tenho certeza de que ele não lhe enviou a Paris de mãos vazias. — Keller devolveu as fotos ao porta-luvas e o trancou.
— É dessa forma que seu golpe funciona? Exige ver o dinheiro antes de mostrar o quadro e depois rouba?
— Se fosse um golpe, você e seu cliente já saberiam disso.
Não tinha respostas para aquilo.
— Não consigo mais de dez mil em dinheiro em tão pouco tempo.
— Quero ver um milhão.
Ele bufou, como se dissesse que um milhão era impossível.
— Se você quiser ver um Van Gogh por menos de um milhão — falou Keller — pode ir ao Louvre ou ao Musée d’Orsay. Mas se quiser ver o meu Van Gogh, vai ter que me
mostrar o dinheiro.
— Não é seguro andar pelas ruas de Paris com essa quantidade de dinheiro.
— Algo me diz que você sabe se cuidar muito bem.
Sam deu um suspiro capitulador.
— Onde e quando?
— Saint-Germain-des-Prés, duas da tarde. Sem amigos. Sem armas.
Sam saiu do carro sem falar nada e foi embora.
Ele cruzou o Sena para a margem direita e caminhou pela rue de Rivoli, passando a ala norte do Louvre, até o Jardin des Tuileries. Passou boa parte desse tempo no
telefone e duas vezes realizou um movimento elementar de espiões para ver se estava sendo seguido. Mesmo assim, não pareceu notar Gabriel caminhando cinquenta metros
atrás dele.
Antes de chegar a Jeu de Paume, cortou para a rue Saint-Honoré e entrou em uma loja exclusiva que vendia caros produtos de couro para homens. Saiu dez minutos depois
com uma mala nova, que carregou até uma filial do HSBC Private Bank no boulevard Haussmann. Ficou ali precisamente 22 minutos, e quando saiu, a mala parecia mais
pesada que quando tinha entrado. Ele a levou com cuidado até a Place de la Concorde e depois através da grande entrada do hôtel de Crillon. Vendo de longe, Gabriel
sorriu. Só o melhor para o representante do sr. Grandão. Enquanto se afastava, ligou para Keller e contou as novidades. O jogo tinha começado, falou. Definitivamente
o jogo tinha começado.
23
BOULEVARD SAINT-GERMAIN, PARIS
ELE ESTAVA PARADO DO LADO DE FORA DA porta vermelha da igreja às duas da tarde seguinte, com seu chapéu e óculos escuros firmemente no lugar e a nova maleta segura
na mão direita. Gabriel esperou cinco minutos antes de ligar.
— Você de novo — falou Sam desanimado.
— Infelizmente.
— E agora?
— Vamos dar outra volta.
— Para onde agora?
— Siga a rue Bonaparte até a place Saint-Sulpice. Mesmas regras da última vez. Não faça nenhuma parada e não olhe para trás. Sem ligações também.
— Até onde você pretende me levar dessa vez?
Gabriel desligou sem falar nada. Do outro lado da praça lotada, Sam começou a caminhar. Gabriel contou lentamente até vinte e o seguiu.
Deixou Sam caminhar até os Jardins de Luxemburgo antes de ligar de novo. Dali, foram para o sudoeste pela rue de Vaugirard, depois para o norte no boulevard Raspail
até a entrada do hôtel Lutetia. Keller estava sentado na mesa do bar, lendo o Telegraph. Sam se uniu a ele, como tinha sido instruído.
— Como ele foi dessa vez? — perguntou Keller.
— Tão meticuloso como sempre.
— Posso pedir algo para você beber?
— Não bebo.
— Que pena. — Keller dobrou seu jornal. — É melhor tirar esses óculos escuros, Sam. Do contrário, a gerência vai ter a impressão errada sobre você.
Ele fez o que Keller sugeriu. Seus olhos eram castanhos claros e grandes. Com o rosto exposto, era uma figura muito menos ameaçadora.
— Agora o chapéu — falou Keller. — Um cavalheiro não usa um chapéu no bar do Lutetia.
Ele tirou o chapéu, revelando uma cabeça com muito cabelo, marrom, não negro, com toques grisalhos ao redor das orelhas. Se era árabe, não era da península ou do
golfo. Keller olhou para a maleta.
— Trouxe o dinheiro?
— Um milhão, como você pediu.
— Deixe-me dar uma olhada. Mas com cuidado — acrescentou Keller. — Há uma câmera de segurança em cima do seu ombro direito.
Sam colocou a maleta na mesa, abriu os trincos e levantou a tampa dois centímetros, o suficiente para Keller dar uma olhada nas fileiras bem organizadas de notas
de cem euros.
— Pode fechar — falou Keller, em voz baixa.
Sam fechou e travou a maleta.
— Satisfeito? — perguntou ele.
— Ainda não. — Keller se levantou.
— Para onde agora?
— Meu quarto.
— Vai ter mais alguém?
— Seremos apenas nós dois, Sam. Muito romântico.
Sam se levantou e pegou a maleta.
— Acho que é importante deixar algo claro antes de subirmos.
— O que é, Sam?
— Se algo acontecer comigo ou com o dinheiro do meu cliente, você e seu amigo vão sofrer muito. — Ele colocou os óculos escuros e sorriu. — Só para nos entendermos,
querido.
No hall de entrada do quarto, longe dos olhos das câmeras de vigilância do hotel, Keller revistou Sam à procura de armas ou aparelhos de gravação. Sem encontrar
nada importante, colocou a maleta na beira da cama e abriu os trincos. Então, tirou três pacotes de dinheiro e, de cada um, uma nota. Inspecionou cada nota com lentes
de aumento profissionais; depois, no banheiro escuro, submeteu-as à lâmpada ultravioleta de Gabriel. As fitas de segurança brilharam verde limão; as notas eram genuínas.
Ele devolveu as notas a seus pacotes e estes à maleta. Então fechou os trincos e, com um aceno de cabeça, indicou que estavam prontos para passar ao próximo passo.
— Quando? — perguntou Sam.
— Amanhã à noite.
— Tenho uma ideia melhor — falou ele. — Vamos hoje à noite. Ou então, não tem acordo.
Maurice Durand tinha dito para esperarem algo assim — uma pequena jogada tática, uma rebeldia simbólica, que permitiria a Sam sentir que era ele, e não Keller, que
estava controlando o processo de negociação. Keller recusou gentilmente, mas Sam bateu o pé. Queria estar na frente do Van Gogh antes da meia-noite; se não estivesse,
ele e seus 25 milhões de euros desapareceriam. O que não deixou a Keller outra opção a não ser aceitar os desejos de seu oponente. Fez isso com um sorriso de concessão,
como se a mudança de planos fosse pouco mais que uma inconveniência. Então rapidamente estabeleceu as regras para mostrá-lo essa noite. Sam poderia tocar o quadro,
cheirar o quadro ou fazer amor com o quadro. Mas sob nenhuma circunstância poderia fotografá-lo.
— Onde e quando? — perguntou Sam.
— Vamos ligar às nove e dizer como proceder.
— Tudo bem.
— Onde você está hospedado?
— O senhor sabe exatamente onde estou hospedado, sr. Bartholomew. Vou estar no lobby do Crillon às nove da noite, sem amigos, sem armas. E diga para seu amigo não
me deixar esperando dessa vez.
Ele saiu do hotel dez minutos depois, com seu chapéu e óculos escuros, e caminhou até o HSBC Private Bank no boulevard Haussmann, onde, supostamente, devolveu o
um milhão de euros ao cofre do seu cliente. Depois, caminhou a pé até o Musée d’Orsay e passou as duas horas seguintes estudando os quadros de um tal Vincent van
Gogh. Quando saiu do museu, eram quase seis. Comeu um jantar leve em um bistrô no Champs-Élysées e depois voltou ao seu quarto no Crillon. Como prometido, estava
no lobby às nove horas em ponto, vestido com calça cinza, um pulôver negro e uma jaqueta de couro. Gabriel sabia disso porque estava sentado a poucos passos, no
bar. Esperou dois minutos depois das nove antes de ligar para o número de Sam.
— Sabe usar o metrô de Paris?
— Claro.
— Caminhe até a estação Concorde e pegue o número 12 até Marx Dormoy. O sr. Bartholomew estará esperando por você.
Sam saiu do lobby. Gabriel ficou no bar por outros cinco minutos. Então pegou seu carro com o manobrista e foi até a casa de campo na Picardia.
A estação Marx Dormoy estava localizada no oitavo Arrondissement, na rue de la Chapelle. Keller estava estacionado do outro lado da rua fumando um cigarro quando
Sam subiu a escada. Caminhou até o carro e entrou no lado do passageiro sem uma palavra.
— Onde está seu celular? — perguntou Keller.
Sam tirou do bolso do casaco e mostrou a Keller.
— Desligue e tire o chip.
Sam obedeceu. Keller pôs o carro em movimento e avançou pelo trânsito noturno.
Ele permitiu que Sam ficasse no banco do passageiro até chegarem aos subúrbios do norte. Então, parou perto de algumas árvores antes da cidade de Ézanville e mandou
que ele entrasse no porta-malas. Pegou o caminho mais longo até a Picardia, acrescentando pelo menos uma hora à viagem. Como resultado, era quase meia-noite quando
ele chegou à casa de campo. Quando Sam saiu do porta-malas, viu a silhueta de um homem parado sob a luz da lua na entrada da propriedade.
— Imagino que seja seu sócio.
Keller não respondeu. Em vez disso, levou-o até a porta traseira da propriedade e desceu um lance de escada até a adega. Encostado em uma parede, iluminado por uma
lâmpada pendurada de um fio, estava Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Vincent van Gogh. Sam ficou parado na frente dele por um longo momento
sem falar. Keller permaneceu ao seu lado.
— Então? — perguntou ele finalmente.
— Num minuto, sr. Bartholomew. Num minuto.
Finalmente, deu um passo, pegou o quadro pelas laterais e virou para examinar as marcas do museu na parte de trás da tela. Então olhou para as pontas do quadro e
fez uma careta.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Vincent era famoso por ser descuidado na forma como tratava seus quadros. Olha aqui — acrescentou ele, virando as pontas do quadro para Keller. — Ele deixou suas
digitais por todo lado.
Sam sorriu, segurou o quadro perto da luz e passou vários minutos examinando cuidadosamente as pinceladas. Em seguida, colocou-o em sua posição original e deu um
passo para trás, a fim de observar à distância. Dessa vez, Keller não interrompeu seu silêncio.
— Espetacular — falou depois de um momento.
— E real — acrescentou Keller.
— Poderia ser. Ou poderia ser o trabalho de um falsificador muito talentoso.
— Não é.
— Vou precisar realizar um teste simples para ter certeza, uma análise de lasca de tinta. Se o quadro for genuíno, fechamos negócio. Se não for, você nunca mais
vai ouvir falar de mim, deixando-o livre para empurrá-lo a um comprador menos sofisticado.
— Quanto tempo vai levar?
— Setenta e duas horas.
— Você tem 48.
— Não vai me apressar, sr. Batholomew. Nem meu cliente.
Keller hesitou antes de assentir uma vez. Usando um bisturi cirúrgico, Sam removeu com cuidado dois pequenos pedaços de tinta da tela — um da parte inferior direita,
a outra da parte inferior esquerda — e colocou-as em um frasco de vidro. Então enfiou o frasco no bolso do casaco e, seguido por Keller, subiu as escadas. Do lado
de fora, a figura em silhueta ainda estava parada na porta da casa.
— Vou conhecer seu sócio? — perguntou Sam.
— Não aconselho — respondeu Keller.
— Por que não?
— Porque seria o último rosto que você veria.
Sam franziu a testa e entrou no porta-malas da Mercedes. Keller fechou o trinco e voltou a Paris.
Eram todas operações conhecidas, cada uma de natureza específica, mas eles mais tarde diriam que os três dias seguintes passaram com a velocidade de um rio congelado.
O conhecido autodomínio de Gabriel o abandonou. Ele tinha organizado o roubo de um dos quadros mais famosos do mundo como parte de um golpe para encontrar outro;
e mesmo assim tudo poderia não dar em nada se o homem chamado Sam desistisse do negócio. Só Maurice Durand, talvez o especialista mais conhecido no comércio ilícito
de arte, continuava confiante. Em sua experiência, colecionadores sujos como o sr. Grandão raramente desistiam da chance de comprar um Van Gogh. Claro, ele falou,
a isca do Doze Girassóis numa Jarra era muito forte para resistir. A menos que Gabriel tivesse mostrado a Sam a falsificação por erro, o que não tinha, a análise
da tinta seria positiva e o negócio continuaria.
Eles tinham outra opção caso Sam desistisse; poderiam segui-lo e tentar determinar a identidade de seu cliente, o homem de grande riqueza que estava disposto a pagar
25 milhões de euros por uma obra de arte roubada. Era só uma das razões pelas quais Gabriel e Keller, dois dos homens mais experientes em vigilância do mundo, monitoraram
cada movimento de Sam durante os três dias de espera. Vigiavam de manhã enquanto ele caminhava pelos passeios de Tuileries, à tarde enquanto visitava as atrações
turísticas para manter seu disfarce e à noite quando jantava, sempre sozinho, na Champs-Élysées. A impressão que dava era de disciplina. Em algum momento de sua
vida, Keller e Gabriel concordaram, Sam tinha sido membro da irmandade secreta de espiões. Ou talvez, pensaram, ainda seja.
Na manhã do terceiro dia, ele deu um susto nos dois quando não apareceu para sua caminhada usual. Ficaram mais preocupados às quatro da tarde quando viram como ele
saía do Crillon com duas grandes malas e subia em uma limusine. Mas a preocupação rapidamente desapareceu quando o carro o levou até o HSBC Private Bank no boulevard
Haussmann. Trinta minutos depois, ele estava de volta ao seu quarto. Havia somente duas possibilidades, falou Keller. Ou Sam tinha realizado o mais silencioso roubo
de banco da história ou tinha acabado de retirar uma grande soma em dinheiro de um cofre. Keller suspeitava que fosse a segunda opção. Assim como Gabriel. Portanto,
o suspense era pouco quando chegou a hora de Sam finalmente ligar com uma resposta. Keller fez as honras. Quando a ligação terminou, ele olhou para Gabriel e sorriu.
— Podemos nunca encontrar o Caravaggio — disse ele —, mas acabamos de tirar 25 milhões de euros do sr. Grandão.
24
CHELLES, FRANÇA
MAS HAVIA UMA CONDIÇÃO: Sam se reservava o direito de escolher a hora e o lugar da troca de dinheiro e mercadoria. A hora, ele falou, seria onze e meia da noite
seguinte. O lugar seria um depósito em Chelles, uma comuna apagada no leste de Paris. Keller dirigiu até lá na manhã seguinte enquanto o resto do norte da França
estava viajando para o centro da cidade. O depósito estava onde Sam tinha dito que estaria, na avenida François Miterrand, bem em frente a uma concessionária Renault.
Havia uma placa apagada onde se lia EUROTRANZ, apesar de que não havia nenhuma indicação do tipo de serviços que a empresa realizava. Pombas entravam e saíam das
janelas quebradas; havia muitos arbustos crescendo por trás das barras do portão de ferro. Keller desceu do carro e inspecionou o portão automático. Há muito tempo
ninguém o abria.
Ele passou uma hora fazendo um reconhecimento de rotina nas ruas ao redor do depósito e depois seguiu para o norte até a casa de campo em Andeville. Quando chegou,
encontrou Gabriel e Chiara descansando no jardim ensolarado. Os dois Van Gogh estavam encostados na parede na sala.
— Ainda não sei como você consegue diferenciar um do outro — falou Keller.
— É bastante óbvio, não acha?
— Não.
Gabriel inclinou a cabeça para o quadro da direita.
— Tem certeza?
— Estas são minhas digitais nas laterais da tela, não as de Vincent. E tem isso.
Gabriel ligou seu BlackBerry do Escritório e o segurou perto do canto superior direito da tela. A tela piscou vermelha, indicando a presença de um transmissor escondido.
— Tem certeza da distância? — perguntou Keller.
— Testei de novo essa manhã. Funciona perfeitamente a dez quilômetros.
Keller olhou para o Van Gogh genuíno.
— Pena que ninguém pensou em colocar um rastreador nesse.
— É — falou Gabriel, distante.
— Quanto tempo você pensa ficar com ele?
— Nem um dia a mais do que o necessário.
— Quem vai guardá-lo enquanto seguimos a falsificação?
— Estava querendo deixá-lo na embaixada em Paris — falou Gabriel —, mas o chefe de estação não quer nem saber. Então tive que organizar outra coisa.
— Que coisa?
Quando Gabriel respondeu, Keller balançou a cabeça.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller sorriu.
— Nem me fale.
Eles deixaram a exótica casa de campo pela última vez às oito da noite. A cópia do Doze Girassóis numa Jarra estava no porta-malas da Mercedes de Keller; o Van Gogh
autêntico estava no de Gabriel. Ele o entregou a Maurice Durand em sua loja na rue de Miromesnil. Então deixou Chiara no apartamento seguro com vista para Pont Marie
e partiu para a comuna de Chelles.
Chegou alguns minutos antes das onze e foi até o depósito na avenida François Mitterrand. Era uma parte da cidade onde havia pouca vida nas ruas quando escurecia.
Ele circulou duas vezes a propriedade, procurando evidências de vigilância ou algo que sugeria que Keller estava a ponto de cair em uma armadilha. Sem encontrar
nada fora do comum, procurou um bom ponto de observação onde um homem sentado sozinho não atrairia a atenção da polícia. A única opção era um parque onde uns skatistas
estavam bebendo cerveja. De um lado do parque havia uma fileira de bancos iluminados por lâmpadas amareladas. Gabriel estacionou o carro na rua e se sentou no banco
mais perto da entrada da Eurotranz. Os skatistas olharam para ele estranhando por um momento antes de voltarem a discutir as questões do dia. Gabriel olhou para
seu relógio. Eram 11h05. Aí consultou seu BlackBerry. O sinal ainda não estava dentro do alcance.
Erguendo a cabeça, viu os faróis de um carro na avenida. Um pequeno Citröen vermelho passou pela entrada da Eurotranz e seguiu pela beira do parque, deixando a vibração
do hip-hop francês no ar. Atrás vinha outro carro, uma BMW preta tão limpa que parecia ter sido recentemente lavada para a ocasião. Parou no portão e o motorista
desceu. No escuro era impossível ver seu rosto, mas pela constituição e movimento era um sósia de Sam.
Ele apertou o teclado algumas vezes com a confiança de um homem que conhece a combinação há muito tempo. Então voltou a subir no carro, esperou o portão abrir, e
entrou. Parou enquanto o portão se fechava e depois foi até a entrada do depósito. Novamente, desceu do carro e apertou o teclado de segurança com uma velocidade
que sugeria familiaridade. Quando a porta se abriu, ele entrou com o carro e desapareceu de vista.
No pequeno parque escuro, a chegada de um carro de luxo em um depósito abandonado na avenida François Mitterand passou despercebida por todo mundo, exceto pelo homem
de meia idade sentado sozinho. O homem olhou para seu relógio e viu que eram 23h08. Aí consultou seu BlackBerry. A luz vermelha estava piscando e vindo em sua direção.
Keller chegou exatamente às onze e meia da noite. Ligou para o celular de Sam e o portão se abriu. Um caminho de asfalto com buracos se abria na frente dele, vazio,
escuro. Ele avançou lentamente e, seguindo as instruções de Sam, embicou o carro no depósito. Do lado oposto de um espaço do tamanho de um campo de futebol brilhavam
os faróis baixos de uma BMW. Keller podia ver a figura de um homem inclinado sobre o capô, com um telefone ao ouvido e duas grandes malas aos pés. Não havia mais
ninguém visível.
— Pare aí — falou Sam.
Keller pisou no freio.
— Desligue o motor e apague os faróis.
Keller fez como instruído.
— Saia do carro e fique onde eu possa vê-lo.
Keller saiu devagar e ficou parado na frente do carro. Sam enfiou a mão dentro da BMW e acendeu os faróis.
— Tire seu casaco.
— Isso é realmente necessário?
— Quer o dinheiro ou não?
Keller tirou seu casaco e o jogou sobre o capô do carro.
— Vire-se e fique de frente para o carro.
Keller hesitou, depois se virou de costas para Sam.
— Muito bom.
Keller se virou devagar e encarou Sam de novo.
— Onde está o quadro?
— No porta-malas.
— Pegue-o e coloque no chão alguns metros na frente do carro.
Keller abriu o porta-malas e tirou o quadro. Estava envolvido com uma camada protetora de papel vegetal e escondido dentro de um saco de lixo comum. Colocou no chão
de concreto do depósito a uns cinco metros na frente da Mercedes e esperou pela próxima instrução de Sam.
— Volte para seu carro — veio a voz do lado oposto do depósito.
— De jeito nenhum — respondeu Keller para o brilho dos faróis de Sam.
Ocorreu um breve impasse. Então Sam se aproximou. Parou a poucos metros de Keller, olhou para o chão e franziu a testa.
— Preciso vê-lo mais uma vez.
— Então sugiro que remova o envoltório de plástico. Mas eu seria cuidadoso, Sam. Se algo acontecer com esse quadro, você será o responsável.
Sam se agachou e removeu o quadro de dentro do saco. Então virou a imagem na direção dos faróis de seu carro e observou as pinceladas e a assinatura.
— Então? — perguntou Keller.
Sam olhou para as digitais na lateral da moldura, depois para as marcas do museu na parte de trás.
— Um minuto — falou baixinho. — Um minuto.
O carro de Keller saiu do depósito às 23h40. O portão estava aberto quando ele chegou. Virou para a direita e passou rápido pelo banco onde Gabriel estava sentado.
Gabriel o ignorou; estava olhando os faróis traseiros de uma BMW que se movia pela avenida François Mitterand. Olhou para o BlackBerry e sorriu. Tinha funcionado,
ele pensou. Tinha realmente funcionado.
A luz vermelha piscava com a regularidade de uma pulsação. Flutuou pelos subúrbios de Paris e depois correu para o leste pela A4 até Reims. Gabriel seguia um quilômetro
atrás e Keller um quilômetro atrás de Gabriel. Eles falaram por telefone só uma vez, uma breve conversa durante a qual Keller confirmou que o negócio tinha sido
concretizado. Sam tinha o quadro; Keller tinha o dinheiro de Sam. Estava escondido no porta-malas do carro, dentro do saco de lixo que Gabriel tinha colocado ao
redor da cópia do Doze Girassóis numa Jarra. Tudo exceto por um único pacote de notas de cem euros, que estava no bolso do casaco de Keller.
— Por que isso está no seu bolso? — perguntou Gabriel.
— Dinheiro para a gasolina — respondeu Keller.
Cento e vinte quilômetros separavam os subúrbios do leste de Paris de Reims, uma distância que Sam cobriu em menos de uma hora. Pouco depois da cidade, a luz vermelha
parou de repente na A4. Gabriel rapidamente o alcançou e viu Sam enchendo o tanque do carro em um posto da estrada. Imediatamente ligou para Keller e mandou que
encostasse; depois esperou até Sam voltar à estrada. Em poucos minutos, os três carros tinham retomado a formação original. Sam na frente, Gabriel seguindo um quilômetro
atrás de Sam e Keller seguindo um quilômetro atrás de Gabriel.
Depois de Reims, eles continuaram para o leste, passando por Verdun e Metz. Então a A4 virou para o sul levando todos até Estrasburgo, a capital da região da Alsácia
da França e sede do Parlamento Europeu. Na beira da cidade fluíam as águas verde-escuras do Reno. Alguns minutos depois do nascer do sol, 25 milhões de euros em
dinheiro e uma cópia de uma obra-prima roubada de Vincent van Gogh cruzaram para a Alemanha sem serem detectados.
A primeira cidade do lado alemão da fronteira era Kehl e depois de Kehl estava a autobahn A5. Sam seguiu até Karlsruhe; então entrou na A8 e se dirigiu a Stuttgart.
Quando chegou aos subúrbios do sul, o rush da manhã estava no auge. Ele cruzou lentamente a cidade pela Hauptstätterstrasse e abriu caminho por Stuttgart-Mitte,
um agradável distrito de escritórios e lojas no coração da metrópole. Gabriel sentiu que Sam estava perto de seu destino final, e se aproximou alguns metros. E então
aconteceu a coisa que ele menos esperava.
A luz vermelha piscante desapareceu de sua tela.
De acordo com o BlackBerry de Gabriel, a luzinha brilhou pela última vez no número oito da Böheimstrasse. O endereço correspondia a um hotel de estuque cinza que
parecia ter sido importado de Berlim Oriental durante os piores dias da Guerra Fria. Nos fundos do hotel, que davam a um beco, havia um estacionamento público. A
BMW estava no último nível, em um canto onde a lâmpada havia sido quebrada. Sam estava caído sobre o volante, os olhos bem abertos, sangue e pedaços do cérebro espalhados
por dentro do vidro. E Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon, tinha desaparecido.
25
GENEBRA
ELES FORAM EMBORA DE Stuttgart PELA mesma rota que tinham entrado e cruzaram de volta para a França em Estrasburgo. Keller foi para a Córsega; Gabriel, para Genebra.
Ele chegou no meio da tarde e imediatamente ligou para Christoph Bittel de um telefone público perto do lago. O membro da polícia secreta não pareceu gostar de ouvir
sua voz tão cedo. Ficou ainda menos feliz quando Gabriel explicou por que tinha voltado à cidade.
— De jeito nenhum — falou ele.
— Então acho que terei de contar ao mundo sobre todos esses quadros roubados que encontrei naquele cofre.
— Lá se foi o novo Gabriel Allon.
— A que horas nos encontramos, Bittel?
— Vou ver o que posso fazer.
Bittel demorou uma hora para limpar sua mesa na sede da NDB e outras duas horas para dirigir de Berna a Genebra. Gabriel estava esperando por ele em uma esquina
cheia de gente na rue du Rhône. Passava um pouco das seis. Pequenos bancários suíços estavam saindo dos bonitos edifícios de escritórios; lindas garotas e estrangeiros
astutos estavam entrando nos cafés animados. Tudo muito organizado. Até assassinos em massa se comportavam direito quando estavam em Genebra.
— Você ia me dizer por que devo abrir aquele cofre para você — falou Bittel enquanto voltava a enfrentar o trânsito com seu usual excesso de cuidado.
— Porque a operação em que estou envolvido está com um problema.
— Que tipo de problema?
— Um cadáver.
— Onde?
Gabriel hesitou.
— Onde? — perguntou Bittel de novo.
— Stuttgart — respondeu Gabriel.
— O árabe que levou um tiro na cabeça essa manhã no centro da cidade?
— Quem falou que era um árabe?
— O BfV.
O BfV era o serviço de segurança interno da Alemanha. Mantinha relações próximas com seu irmão germanófilo em Berna.
— Quanto sabem sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Quase nada e foi por isso que entraram em contato conosco. Parece que os assassinos levaram sua carteira depois de atirarem.
— Não foi tudo que levaram.
— Você é responsável pela morte dele?
— Não tenho certeza.
— Deixe-me perguntar de outra forma, Allon. Você colocou uma arma na cabeça dele e puxou o gatilho?
— Não seja ridículo.
— Não é uma pergunta absurda. Afinal, você tem um histórico quando se trata de cadáveres em solo europeu.
Gabriel não falou nada.
— Sabe o nome do homem que estava dentro do carro?
— Ele se chamava Sam, mas tenho a sensação de que seu nome verdadeiro era Samir.
— Sobrenome?
— Nunca me falou.
— Passaporte?
— Ele falava francês muito bem. Se tivesse que adivinhar, acho que era do Levante.
— Líbano?
— Talvez. Ou talvez Síria.
— Por que ele foi morto?
— Não tenho certeza.
— Pode fazer melhor que isso, Allon.
— É possível que estivesse de posse de um quadro que se parecia muito com o Doze Girassóis numa Jarra, de Vincent van Gogh.
— O que foi roubado de Amsterdã?
— Emprestado — falou Gabriel.
— Quem pintou a falsificação?
— Eu.
— Por que Sam estava com ele?
— Eu o vendi por 25 milhões de euros.
Bittel respirou fundo.
— Você me perguntou, Bittel.
— Onde está o quadro?
— Qual quadro?
— O Van Gogh verdadeiro — respondeu Bittel.
— Em mãos seguras.
— E o dinheiro?
— Em mãos ainda mais seguras.
— Por que você roubou um Van Gogh e vendeu uma cópia a um árabe chamado Sam?
— Porque estou procurando um Caravaggio.
— Para quem?
— Os italianos.
— Por que um agente da inteligência israelense está procurando um quadro para os italianos?
— Porque ele acha difícil dizer não às pessoas.
— E se eu puder colocá-lo naquele cofre? O que você espera encontrar?
— Para ser honesto com você, Bittel, não tenho ideia.
Bittel respirou fundo e pegou seu telefone.
Fez duas ligações, uma atrás da outra. A primeira foi para sua linda amiga no Freeport. A segunda foi para um arrombador que ocasionalmente fazia favores para a
NDB na área de Genebra. A mulher estava esperando no portão quando eles chegaram; o arrombador apareceu uma hora mais tarde. Seu nome era Zimmer. Tinha um rosto
redondo e suave, junto com o olhar assustado de um animal empalhado. Sua mão era tão fina e macia que Gabriel a soltou rapidamente, com medo de machucá-lo.
Tinha em seu poder uma mala retangular pesada de couro escuro, que agarrava firme enquanto seguia Bittel e Gabriel pela porta externa do depósito de Jack Bradshaw.
Se notou os quadros, não deu nenhum sinal disso; tinha olhos somente para o pequeno cofre perto da mesa. Havia sido construído por um fabricante alemão de Colônia.
Zimmer franziu a testa, como se esperasse algo mais desafiador.
O arrombador, como o restaurador de arte, não gostava que as pessoas ficassem olhando enquanto ele trabalhava. Por isso, Gabriel e Bittel foram forçados a se confinar
na sala interior do depósito que Yves Morel tinha usado como estúdio clandestino. Eles se sentaram no chão, encostados na parede e com as pernas esticadas. Era óbvio
pelos sons que vinham da porta aberta que Zimmer estava usando uma técnica conhecida como perfuração do ponto fraco. O ar tinha cheiro de metal quente. Lembrava
a Gabriel o cheiro de uma arma recentemente usada. Olhou para seu relógio e franziu a testa.
— Quanto tempo isso vai demorar? — perguntou ele.
— Alguns cofres são mais fáceis que outros.
— É por isso que sempre preferi uma carga bem colocada de explosivo plástico. Semtex é um grande equalizador.
Bittel tirou seu celular e foi repassando sua caixa de e-mails; Gabriel ficou mexendo na paleta de tintas de Yves Morel: ocre, dourado, vermelho... Finalmente, uma
hora depois que Zimmer começou a trabalhar, ouviu um forte barulho metálico na sala ao lado. O arrombador apareceu na porta, segurando sua mala de couro negro, e
acenou uma vez para Bittel.
— Acho que sei como ir embora — falou. E desapareceu.
Gabriel e Bittel ficaram de pé e foram até a sala ao lado. A porta do cofre estava um pouco aberta, um dedo, nada mais. Gabriel se aproximou, mas Bittel o impediu.
— Eu faço isso — disse ele.
Mandou Gabriel dar um passo para trás. Então abriu a porta do cofre e deu uma olhada no interior. Estava vazio, exceto por um envelope branco. Bittel o pegou e leu
o nome escrito na frente.
— O que é isso? — perguntou Gabriel.
— Parece ser uma carta.
— Para quem?
Bittel entregou a Gabriel e falou:
— Para você.
Parecia mais um memorando do que uma carta, um relatório pós-ação em campo escrito por um espião caído com problemas de consciência por sua traição. Gabriel leu
duas vezes, a primeira enquanto estava no depósito de Jack Bradshaw, e uma segunda vez enquanto estava sentado no salão de embarque do Aeroporto Internacional de
Genebra. Seu voo foi anunciado alguns minutos depois das nove, primeiro em francês, depois em inglês e, finalmente, em hebraico. O som de seu idioma nativo acelerou
sua pulsação. Ele enfiou a carta em sua mala de mão, levantou-se e embarcou no avião.
PARTE TRÊS
A JANELA ABERTA
26
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
O EDIFÍCIO COMERCIAL QUE FICAVA numa ponta do Boulevard Rei Saul era opaco, sem nenhuma característica e, melhor de tudo, anônimo. Não havia nenhum emblema pendurado
na entrada, nenhuma placa que mostrasse a identidade de seu ocupante. Na verdade, não havia nada para sugerir que era a sede de um dos serviços de inteligência mais
temidos e respeitados do mundo. Uma inspeção mais de perto da estrutura, no entanto, teria revelado a existência de um prédio dentro do prédio, com seu próprio fornecimento
de energia, suas próprias linhas de água e esgoto, e seu próprio sistema de comunicações seguras. Os funcionários carregavam duas chaves. Uma abria uma porta sem
nenhuma marca no lobby, a outra operava o elevador. Aqueles que cometiam o imperdoável pecado de perder uma ou as duas chaves eram banidos para o deserto da Judeia,
e nunca mais eram vistos ou citados.
Havia alguns funcionários que eram muito importantes ou cujo trabalho era muito confidencial para aparecer no lobby. Eles entravam no prédio “preto” através do estacionamento
no subsolo, como Gabriel fez trinta minutos depois que seu avião de Genebra aterrissou no aeroporto Ben-Gurion. Sua caravana incluía um veículo cheio de uma equipe
de segurança fortemente armada. Ele pensou que era um sinal do que estava por vir.
Dois dos agentes de segurança o seguiram até o elevador, que o levou até o andar mais alto do prédio. Do lobby, ele atravessou uma porta protegida até uma antessala
onde uma mulher com quase quarenta anos estava sentada atrás de uma mesa moderna com uma superfície negra brilhante. A mesa só tinha um abajur e um telefone multilinhas
seguro; a mulher tinha longas pernas queimadas de sol. Dentro do Boulevard Rei Saul ela era conhecida como a Cúpula de Ferro por sua habilidade imbatível de evitar
pedidos indesejados por uma palavra com o chefe. Seu nome verdadeiro era Orit.
— Está em uma reunião — falou ela, olhando para a luz vermelha brilhando em cima da impressionante porta dupla do chefe. — Sente-se. Não vai demorar.
— Ele sabe que estou no prédio?
— Sabe.
Gabriel se sentou no que era possivelmente o sofá mais desconfortável de todo Israel e olhou para a luz vermelha brilhando sobre a porta. Então olhou para Orit,
que sorriu, desconfortável.
— Posso servir algo? — perguntou ela.
— Um aríete — respondeu Gabriel.
Finalmente, a luz mudou de vermelho para verde. Gabriel se levantou rapidamente e entrou no escritório enquanto os participantes da reunião agora adiada saíam por
uma segunda porta. Reconheceu dois deles. Uma era Rimona Stern, a chefe do programa nuclear do Irã do Escritório. O outro era Mikhail Abramov, um agente de campo
e atirador que tinha trabalhado com Gabriel em várias operações de extrema importância. O terno que estava usando sugeria uma promoção recente.
Quando a porta se fechou, Gabriel se virou lentamente para encarar o único outro ocupante da sala. Estava parado perto de uma grande mesa de vidro escuro, uma pasta
aberta nas mãos. Usava um terno cinza que parecia um número menor e uma camisa branca com um colarinho alto que deixava a impressão de que sua cabeça estava parafusada
em seus fortes ombros. Seus óculos eram pequenos e sem aro, do tipo usado por executivos alemães que queriam parecer jovens e na moda. Seu cabelo, ou o que sobrara
dele, era espetado e grisalho.
— Desde quando Mikhail participa de reuniões na sala do chefe? — perguntou Gabriel.
— Desde que dei uma promoção a ele — respondeu Uzi Navot.
— A quê?
— Vice-chefe de Operações Especiais. — Navot colocou a pasta na mesa e sorriu, sem sinceridade. — Tudo bem se fizer movimentos de pessoal, Gabriel? Afinal, ainda
sou o chefe por mais um ano.
— Tinha planos para ele.
— Que tipo de planos?
— Na verdade, ia colocá-lo como responsável de Operações Especiais.
— Mikhail? Ele não está pronto, ainda falta muito.
— Ele vai ficar bem, desde que tenha um planejador operacional experiente olhando sobre o seu ombro.
— Alguém como você?
Gabriel ficou em silêncio.
— E eu? — perguntou Navot. — Já decidiu o que vai fazer?
— Isso depende totalmente de você.
— É óbvio que não.
Navot largou a pasta na mesa e apertou um botão do seu painel de controle que fez descer as venezianas lentamente sobre as janelas à prova de bala que iam do chão
ao teto. Ficou ali por um momento em silêncio, como se estivesse preso pelas barras de sombras. Gabriel vislumbrou um retrato desagradável de seu próprio futuro,
um homem cinzento em uma jaula cinzenta.
— Preciso admitir — falou Navot —, tenho muita inveja de você. O Egito está à beira da guerra civil, a al-Qaeda está controlado uma faixa de terra que vai de Faluja
ao Mediterrâneo, e um dos conflitos mais sangrentos da história moderna está acontecendo na nossa fronteira norte. E mesmo assim você tem tempo para ficar procurando
uma obra roubada para o governo italiano.
— Não foi ideia minha, Uzi.
— Poderia ter, pelo menos, mostrado a cortesia de pedir minha aprovação quando os carabinieri o procuraram.
— Teria dado?
— Claro que não.
Navot caminhou lentamente por sua longa mesa de reuniões executivas até a área de estar, mais confortável. As redes de televisão do mundo apareciam silenciosamente
em sua parede de vídeos; os jornais do mundo estavam organizados na mesa de café.
— A polícia europeia esteve bem ocupada ultimamente — falou ele. — Um expatriado britânico assassinado em lago Como, uma obra roubada de Van Gogh, e agora isso.
— Ele pegou uma cópia do Die Welt e entregou para que Gabriel visse. — Um árabe morto no meio de Stuttgart. Três eventos aparentemente desconectados com uma coisa
em comum. — Navot deixou o jornal cair sobre a mesa. — Gabriel Allon, o futuro chefe do serviço de inteligência de Israel.
— Duas coisas, na verdade.
— Qual é a segunda?
— LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— O pior homem do mundo.
— Ele está na folha de pagamento do Escritório?
— Não, Uzi — falou Gabriel, sorrindo. — Ainda não.
Navot conhecia em linhas gerais a busca de Gabriel pelo Caravaggio perdido, pois tinha acompanhado à distância: reservas de viagens aéreas, gastos de cartão de crédito,
passagens de fronteira, pedidos de propriedades seguras, notícias de uma obra desaparecida. Agora, sentado na sala que logo seria dele, Gabriel completou a narrativa,
começando com as reuniões com o general Ferrari em Veneza e terminando com a morte de um homem chamado Sam em Stuttgart — um homem que tinha acabado de pagar 25
milhões de euros por Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon. Então, ele entregou as três páginas da carta que Jack Bradshaw tinha
deixado para ele no Freeport de Genebra.
— O nome verdadeiro de Sam era Samir Basara. Bradshaw o conheceu quando estava trabalhando em Beirute. Samir era um clássico vigarista. Drogas, armas, garotas, todas
as coisas que faziam a vida mais interessante em um lugar como Beirute nos anos 1980. Mas na verdade, Samir não era libanês. Samir era da Síria, e estava trabalhando
para a inteligência síria.
— Estava trabalhando para eles quando foi morto?
— Com certeza — respondeu Gabriel.
— Fazendo o quê?
— Comprando arte roubada.
— De Jack Bradshaw?
Gabriel assentiu.
— Samir e Bradshaw renovaram seu relacionamento há 14 meses em um almoço em Milão. Samir tinha uma proposta de negócios. Disse que tinha um cliente, um empresário
rico do Oriente Médio que estava interessado em adquirir quadros. Em poucas semanas, Bradshaw usou seus contatos no submundo da arte para assegurar um Rembrandt
e um Monet, sendo que os dois tinham sido roubados. Isso não incomodava Samir. Na verdade, ele gostava disso. Deu a Bradshaw cinco milhões de dólares e o mandou
encontrar mais.
— Como ele pagava pelos quadros?
— Enviava o dinheiro para a empresa de Bradshaw através de algo chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— Vou chegar lá — falou Gabriel.
— Por que Sam queria quadros roubados?
— Também vou chegar lá. — Gabriel olhou para a carta. — Nesse ponto, Jack Bradshaw começou a comprar loucamente para seu novo cliente cheio de dinheiro. Uns Renoir,
um Matisse, um Corot que foi roubado do Museu de Belas Artes de Montreal, em 1972. Ele também adquiriu vários quadros italianos importantes que não deveriam deixar
o país. Samir ainda não estava satisfeito. Disse que seu cliente queria algo grande. Foi quando Bradshaw sugeriu o Santo Graal dos quadros desaparecidos.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Onde estava?
— Ainda na Sicília, nas mãos da Cosa Nostra. Bradshaw foi a Palermo e negociou o acordo. Depois de todos esses anos, os mafiosos realmente ficaram felizes por se
livrar dele. Bradshaw o levou à Suíça em um carregamento de tapetes. Não é preciso dizer que o retábulo não estava em boas condições quando chegou. Ele aceitou cinco
milhões de euros como adiantamento de Samir e contratou um falsificador francês para tornar a Natividade apresentável de novo. Mas algo aconteceu antes que pudesse
completar a venda.
— O quê?
— Ele descobriu quem estava comprando os quadros.
— Quem era?
Antes de responder, Gabriel voltou a uma pergunta que Navot tinha feito alguns minutos antes: por que o cliente rico de Samir Basara estava no mercado de quadros
roubados? Para responder isso, Gabriel primeiro explicou as quatro categorias básicas de ladrões de arte: o amante de arte sem dinheiro, o perdedor incompetente,
o profissional e o membro do crime organizado. O membro do crime organizado, ele falou, era responsável pelos grandes roubos. Às vezes ele tinha um comprador à espera,
mas geralmente os quadros roubados terminavam sendo usados como uma forma de dinheiro no submundo, um traveler check para a classe criminosa. Um Monet, por exemplo,
poderia ser usado como pagamento colateral para um envio de armas russas; um Picasso, por heroína turca. Eventualmente, alguém na rede de posse decidiria obter lucro,
normalmente com a ajuda de um intermediário especialista como Jack Bradshaw. Um quadro que vale duzentos milhões de dólares no mercado legítimo valeria vinte milhões
no mercado negro. Vinte milhões que nunca seriam rastreados, acrescentou Gabriel. Vinte milhões que nunca seriam congelados pelos governos dos Estados Unidos e da
União Europeia.
— Vê onde estou chegando com isso, Uzi?
— Quem é? — perguntou Navot de novo.
— É um homem que está por trás de uma terrível guerra civil, um homem que está acostumado a torturar sistematicamente, a criar barragens de artilharia indiscriminada
e ataques de armas químicas contra seu próprio povo. Viu Hosni Mubarak ser colocado em uma jaula e Muammar Gaddafi ser linchado por uma multidão louca por sangue.
Como resultado, está preocupado com o que poderia acontecer se caísse, e é por isso que pediu a Samir Basara para preparar um pequeno ninho para ele e sua família.
— Está dizendo que Jack Bradshaw estava vendendo quadros roubados para o presidente da Síria?
Gabriel levantou o rosto para as imagens piscando na parede de vídeos de Navot. O regime tinha acabado de atacar um bairro dominado por rebeldes em Damasco. O número
de mortos era incalculável.
— O dirigente sírio e seu clã valem bilhões — falou Navot.
— É verdade — respondeu Gabriel. — Mas os norte-americanos e a UE estão congelando seus bens e os de seus ajudantes mais próximos onde conseguem encontrá-los. Até
a Suíça congelou centenas de milhões de bens sírios.
— Mas grande parte da fortuna ainda está aí, em algum lugar.
— Por enquanto — falou Gabriel.
— Por que não barras de ouro ou cofres cheios de dinheiro? Por que quadros?
— Imagino que ele tenha ouro e dinheiro, também. Afinal, como qualquer assessor de investimentos diria, a diversidade é a chave para o sucesso a longo prazo. Mas
se fosse eu assessorando o presidente sírio — acrescentou Gabriel —, diria para investir em bens que são fáceis de esconder e transportar.
— Quadros? — perguntou Navot.
Gabriel assentiu.
— Se ele compra um quadro por cinco milhões no mercado negro, pode vender por quase o mesmo preço, menos comissões para o intermediário, claro. É um preço menor
a pagar para ter dezenas de milhões em dinheiro não rastreável.
— Engenhoso.
— Ninguém os acusou de serem estúpidos, só cruéis e brutais.
— Quem matou Samir Basara?
— Se eu tivesse que adivinhar, foi alguém que o conhecia. — Gabriel parou, depois acrescentou: — Alguém que estava sentado no banco de trás do carro quando puxou
o gatilho.
— Alguém da inteligência síria?
— É normalmente assim que funciona.
— Por que o mataram?
— Talvez soubesse muito. Ou talvez tenham ficado bravos com ele.
— Por quê?
— Por deixar que Jack Bradshaw descobrisse sobre as finanças pessoais da família dirigente.
— Quanto ele sabia?
Gabriel pegou a carta e falou:
— Bastante, Uzi.
27
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
– O QUE VOCÊ ACHA QUE BRADSHAW fez com o Caravaggio?
— Ele deve ter levado de volta a sua villa no lago Como — respondeu Gabriel. — Então, pediu a Oliver Dimbleby vir à Itália para dar uma olhada em sua coleção. Foi
uma falcatrua, uma operação inteligente concebida por um ex-espião britânico. O que ele realmente queria era que Oliver entregasse uma mensagem a Julian Isherwood
que, por sua vez, a entregaria a mim. Não saiu como planejado. Oliver enviou Julian a Como em seu lugar. E quando chegou, Bradshaw estava morto.
— E o Caravaggio desapareceu?
Gabriel assentiu.
— Por que Bradshaw queria contar a você sobre a conexão com o presidente sírio?
— Suponho que ele pensou que eu iria lidar com o assunto com discrição.
— E o que isso quer dizer?
— Eu não diria à polícia britânica ou italiana que ele era um ladrão e um intermediário — respondeu Gabriel. — Estava esperando encontrar-se comigo. Mas também tomou
a precaução de colocar tudo que sabia por escrito dentro do cofre no Freeport.
— Junto com alguns quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— Por que a súbita mudança de ideia? Por que não pegar o dinheiro sujo de sangue do dirigente e ir rindo até o banco?
— Nicole Devereaux.
Navot apertou os olhos, pensativo.
— Por que esse nome me é familiar?
— Ela era a fotógrafa da AFP que foi sequestrada e morta em Beirute nos anos 1980 — falou Gabriel. Então contou a Navot o resto da história: o caso amoroso, o recrutamento
pela KGB, meio milhão em uma conta de banco suíço. — Bradshaw nunca se perdoou pela morte de Nicole — acrescentou ele. — E certamente nunca perdoou o regime sírio
por matá-la.
Navot ficou em silêncio por um momento.
— Seu amigo Jack Bradshaw fez várias besteiras durante sua vida — falou finalmente. — Mas a coisa mais idiota que já fez foi aceitar cinco milhões de euros da família
governante da Síria por um quadro que não conseguiu entregar. Só há uma coisa que a família odeia mais do que deslealdade: pessoas que tentam roubá-los.
Navot assistia às imagens que passavam na parede de vídeo.
— Na minha opinião — falou ele —, é disso que se trata esse exercício inteiro de depravação humana. Cento e cinquenta mil mortos e milhões de pessoas sem lugar para
morar. E para quê? Por que a família do governante está se agarrando a isso como se não houvesse amanhã? Por que estão praticando assassinato em escala industrial?
Pela fé deles? Pelo ideal sírio? Não existe ideal sírio. Francamente, não existe mais Síria. E mesmo assim as mortes acontecem por um motivo, e apenas um motivo.
— Dinheiro — falou Gabriel.
Navot assentiu lentamente.
— Você parece ter uma visão especial sobre a situação da Síria, Uzi.
— Por acaso sou casado com uma conceituada especialista sobre a Síria e o movimento baathista. — Ele parou, então acrescentou: — Mas você já sabia isso.
Navot levantou, caminhou até o aparador e serviu uma xícara de café da garrafa térmica. Gabriel notou a ausência de creme ou biscoitos amanteigados, duas coisas
que Navot não conseguia resistir. Ele bebia seu café preto agora, sem nenhum acompanhamento a não ser uma pastilha de adoçante branco, que colocou em sua xícara
de um recipiente plástico.
— Desde quando você coloca cianeto no seu café, Uzi?
— Bella quer que eu perca o vício em açúcar. Em seguida, será a cafeína.
— Não consigo imaginar esse trabalho sem cafeína.
— Logo vai descobrir.
Navot sorriu mesmo sem vontade e voltou para sua cadeira. Gabriel estava olhando os monitores de vídeo. O corpo de uma criança — menino ou menina, era impossível
dizer — estava sendo retirado do meio dos escombros. Uma mulher estava em prantos. Um homem barbudo clamava por vingança.
— Quanto há? — perguntou ele.
— Dinheiro?
Gabriel assentiu.
— Dez bilhões é o número que aparece na imprensa — respondeu Navot —, mas achamos que o número real é muito maior. E é todo controlado por Kemel al-Farouk. — Navot
olhou de canto de olho para Gabriel e perguntou: — Conhece o nome?
— A Síria não é minha área de especialização, Uzi.
— Logo será. — Navot deu outro sorriso apagado antes de continuar. — Kemel não é um membro da família dirigente, mas esteve trabalhando nos negócios da família por
toda sua vida. Começou como guarda-costas do pai do dirigente. Kemel recebeu uma bala pelo velho no final dos anos setenta e o pai do dirigente nunca esqueceu isso.
Deu a Kemel um bom trabalho na Mukhabarat, onde ele ganhou uma reputação como interrogador terrível de prisioneiros políticos. Costumava pregar membros da Irmandade
Muçulmana na parede por diversão.
— Onde ele está agora?
— Seu título oficial é vice-ministro de Estado para Relações Exteriores, mas em muitos aspectos é quem está dirigindo o país e a guerra. O dirigente nunca toma decisões
sem falar primeiro com Kemel. E, talvez mais importante, Kemel é quem está cuidando do dinheiro. Ele colocou uma parte da fortuna em Moscou e Teerã, mas de jeito
nenhum confiaria totalmente nos russos e nos iranianos. Achamos que ele tem alguém trabalhando na Europa Ocidental escondendo os bens. O que não sabemos — falou
Navot —, é quem é essa pessoa ou onde está escondendo o dinheiro.
— Graças a Jack Bradshaw, agora sabemos que parte dele está na LXR Investments. E podemos usar a LXR como janela para ver o resto do dinheiro da família.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio. Navot assistia a outro corpo sendo retirado dos escombros em Damasco.
— É duro para os israelenses verem cenas como essa — falou depois de um momento. — Nos deixa incomodados. Traz más recordações. Nosso instinto natural é matar o
monstro antes que o monstro possa fazer mais danos. Mas o Escritório e a IDF concluíram que é melhor deixar o monstro no lugar, pelo menos por enquanto, porque a
alternativa poderia ser pior. E os norte-americanos e os europeus chegaram à mesma conclusão, apesar de todas as conversações otimistas sobre a negociação de um
acordo. Ninguém quer que a Síria caia nas mãos da al-Qaeda, mas isso é o que vai acontecer se a família governante cair.
— Boa parte da Síria já é controlada pela al-Qaeda.
— Verdade — concordou Navot. — E o contágio está se espalhando. Há algumas semanas, uma delegação de chefes de inteligência europeu foi a Damasco com uma lista de
seus cidadãos muçulmanos que vieram à Síria se unir à jihad. Eu poderia ter dado a eles mais alguns nomes, mas não fui convidado para a festa.
— Que surpresa.
— Provavelmente foi melhor não ter ido. Na última vez que estive em Damasco, viajei sob um nome falso.
— Quem?
— Vincent Laffont.
— O escritor de guias de viagem.
Navot assentiu.
— Sempre foi um dos meus favoritos — disse Gabriel.
— Meu também. — Navot colocou sua xícara de café na mesa. — O Escritório nunca evitou se comprometer com crimes estranhos a serviço de uma operação moral e justa.
Mas se atropelarmos o sistema bancário internacional, as repercussões podem ser desastrosas.
— A família governante síria não teve acesso a esses bens honestamente, Uzi. Já estão saqueando a economia por duas gerações.
— Isso não significa que podemos roubá-las.
— Não — falou Gabriel com um remorso fingido. — Isso seria errado.
— Então, o que está sugerindo?
— Congelarmos os bens.
— Como?
Gabriel sorriu e falou:
— Ao estilo do Escritório.
— Que tal nossos amigos em Langley? — perguntou Navot quando Gabriel tinha terminado de explicar.
— O que tem?
— Não podemos lançar uma operação como essa sem o apoio da Agência.
— Se contarmos à Agência, eles vão contar à Casa Branca. E isso vai terminar na primeira página do The New York Times.
Navot sorriu.
— Tudo que precisamos é da aprovação do primeiro-ministro e do dinheiro para realizar a operação.
— Já temos dinheiro, Uzi. Muito dinheiro.
— Os 25 milhões que você ganhou com a venda do Van Gogh falso?
Gabriel assentiu.
— É a beleza dessa operação — falou ele. — Ela se autofinancia.
— Onde está o dinheiro agora?
— Pode estar no porta-malas do carro de Christopher Keller.
— Na Córsega.
— Infelizmente.
— Vou mandar um bodel para pegá-lo.
— O grande dom Orsati não lida com mensageiros, Uzi. Ele acharia isso um insulto muito grande.
— O que está sugerindo?
— Vou resgatar o dinheiro assim que tivermos uma operação em funcionamento, apesar de que seja possível que tenha de deixar um pequeno pagamento de tributo ao Dom.
— Pequeno? Quanto?
— Dois milhões devem deixá-lo feliz.
— Isso é muito dinheiro.
— Uma mão lava a outra, e as duas mãos lavam o rosto.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente, Uzi.
O que faltava era pensar na composição da equipe operacional de Gabriel. Rimona Stern e Mikhail Abramov eram indispensáveis, ele falou. Assim como Dina Sarid, Yossi
Gavish e Yaakov Rossman.
— Não é possível ter Yaakov num momento como esse — objetou Navot.
— Por que não?
— Porque Yaakov é quem está rastreando todos os mísseis e outros artigos mortais que estão indo dos sírios para os amigos deles no Hezbollah.
— Yaakov pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
— Quem mais?
— Preciso de Eli Lavon.
— Ele ainda está escavando embaixo do Muro das Lamentações.
— Amanhã à tarde, ele já estará escavando em outro lugar.
— Só isso?
— Não — falou Gabriel. — Tem outra pessoa que preciso para uma operação como essa.
— Quem?
— A maior especialista do país em Síria e no movimento baathista.
Navot sorriu.
— Talvez você devesse levar uns guarda-costas, por segurança.
28
PETAH TIKVA, ISRAEL
OS NAVOTS VIVIAM NO lado oriental de Petah Tikva, em uma rua calma onde as casas ficavam escondidas atrás de muros de concreto e arbustos. Havia uma campainha perto
do portão de metal, que tocou em silêncio quando Gabriel apertou. Olhou diretamente para as lentes da câmera de segurança e apertou de novo. Dessa vez, o intercomunicador
emitiu o som da voz de uma mulher.
— Quem é?
— Sou eu, Bella. Abra o portão.
Outro silêncio, 15 segundos, talvez mais, antes que o trinco fosse liberado com uma pancada. Conforme o portão abria, surgia a casa, uma estrutura cubista com grandes
janelas reforçadas e uma antena de comunicações seguras aparecendo no teto. Bella estava à sombra do pórtico, os braços cruzados na defensiva. Ela usava calça de
seda branca e blusa amarela com um cinto na cintura esbelta. Seu cabelo escuro parecia recém-pintado e penteado. De acordo com a usina de rumores do Escritório,
ela tinha uma hora marcada toda manhã em um dos salões mais exclusivos de Tel Aviv.
— Você tem muita coragem de vir a essa casa, Gabriel.
— Para com isso, Bella. Vamos tentar ser civilizados.
Ela ficou parada um momento antes de se virar e, com um movimento indiferente da mão, convidá-lo a entrar. Tinha decorado os cômodos da casa como a seu marido: cinza,
brilhante, moderno. Gabriel a seguiu pela muito brilhante cozinha cromada e de granito negro polido, indo até o terraço do fundo onde estava servido um almoço leve
israelense. A mesa estava na sombra, mas o sol brilhava forte no jardim. Havia pequenas piscinas e fontes murmurantes. Gabriel se lembrou de repente que Bella sempre
tinha adorado o Japão.
— Adoro o que você fez com esse lugar, Bella.
— Sente-se — foi tudo que ela respondeu.
Gabriel se sentou em uma cadeira de jardim com almofada. Bella serviu um copo alto de suco de laranja e colocou bem na frente dele.
— Já pensou onde você e Chiara vão morar quando se tornar chefe? — perguntou ela.
Ele não sabia dizer se a pergunta dela sincera ou maliciosa. Decidiu responder honestamente.
— Chiara acha que precisamos viver perto do Boulevard Rei Saul — falou ele —, mas eu preferia ficar em Jerusalém.
— É muito longe.
— Não vou dirigir o carro.
O rosto dela ficou tenso.
— Desculpe, Bella. Não foi isso que quis dizer.
Ela não respondeu diretamente.
— Nunca gostei muito de Jerusalém. Perto demais de Deus para meu gosto. Gosto daqui, o meu pequeno subúrbio secular.
Um silêncio se abateu entre eles. Os dois sabiam a verdadeira razão pela qual Gabriel preferia Jerusalém a Tel Aviv.
— Desculpe por nunca ter enviado a você e Chiara os parabéns pela gravidez. — Ela deu um breve sorriso. — Deus sabe como os dois merecem alguma felicidade depois
de tudo que aconteceu.
Gabriel assentiu e murmurou algo apropriado. Bella nunca tinha dado os parabéns, ele pensou, porque sua raiva não tinha permitido. Ela tinha um comportamento vingativo.
Era uma de suas características mais duradouras.
— Acho que deveríamos conversar, Bella.
— Achei que estávamos conversando.
— Conversar de verdade — falou ele.
— Seria melhor se nos comportássemos como personagens em um daqueles programas de suspense que passam na BBC. Ou posso falar algo que me arrependa depois.
— Há uma razão pela qual esses programas nunca têm Israel como cenário. Não falamos daquela forma.
— Talvez devêssemos.
Ela pegou um prato e começou a servir Gabriel.
— Não estou com fome, Bella.
Ela colocou o prato na mesa.
— Estou brava com você, droga.
— Achei que sim.
— Por que está roubando o cargo do Uzi?
— Não estou.
— Como descreveria isso?
— Não tive escolha.
— Poderia ter dito não a eles.
— Eu tentei. Não funcionou.
— Deveria ter tentado mais.
— Não foi culpa minha, Bella.
— Eu sei, Gabriel! Nada nunca é culpa sua.
Ela olhou para as fontes no jardim. Isso pareceu acalmá-la momentaneamente.
— Nunca vou esquecer a primeira vez que vi você — falou, finalmente. — Estava andando sozinho por um corredor dentro do Boulevard Rei Saul, pouco depois de Túnis.
Você estava exatamente como está agora, os mesmos olhos verdes, as mesmas têmporas grisalhas. Era como um anjo, o anjo da vingança de Israel. Todo mundo adorava
você. Uzi idolatrava você.
— Não vamos exagerar, Bella.
Ela agiu como se não tivesse ouvido.
— E então aconteceu Viena — retomou ela depois de um momento. — Foi um cataclisma, um desastre de proporções bíblicas.
— Todos perdemos entes queridos, Bella. Todos ficamos de luto.
— É verdade, Gabriel. Mas Viena foi diferente. Você nunca mais foi o mesmo depois de Viena. Nenhum de nós foi. — Ela fez uma pausa e acrescentou: — Especialmente
Shamron.
Gabriel seguiu o olhar de Bella até o jardim, mas por um momento ele foi transportado para o pátio iluminado pelo sol da Academia Bezalel de Arte e Design em Jerusalém.
Era setembro de 1972, alguns dias depois do assassinato de 11 atletas e técnicos israelenses nas Olimpíadas de Munique. Do nada apareceu um homem que parecia uma
pequena barra de ferro, com óculos negros horríveis e dentes como uma armadilha de aço. O homem não falou seu nome, pois não era necessário. Era o homem sobre o
qual falavam somente em sussurros. Era quem tinha roubado os segredos que levaram Israel à vitória rápida na Guerra dos Seis Dias. O que tinha sequestrado Adolf
Eichmann, diretor-gerente do Holocausto, em uma esquina argentina.
Shamron...
— Ari se culpou pelo que aconteceu com você em Viena — dizia Bella. — E ele nunca se perdoou, também. Tratou você como um filho depois daquilo. Ele o deixava fazer
o que quisesse. Mas nunca desistiu da esperança de que um dia você viria e assumiria o controle do Escritório que ele amava tanto.
— Sabe quantas vezes eu recusei o cargo?
— Tantas que Shamron acabou entregando a Uzi. Ele ganhou o cargo como um prêmio de consolação.
— Na verdade, fui eu que sugeri que Uzi se tornasse o novo chefe.
— Como se o cargo fosse seu pra poder atribuir. — Ela sorriu, amarga. — Uzi já contou que eu o aconselhei a não aceitar o cargo?
— Não, Bella. Ele nunca mencionou isso.
— Sempre soube que terminaria assim. Você deveria ter deixado o palco sem fazer alarde e ficado na Europa. Mas o que fez? Inseriu um carregamento de centrífugas
sabotadas na cadeia de suprimentos nucleares iraniana e destruiu quatro instalações de enriquecimento secretas.
— Essa operação ocorreu sob a supervisão do Uzi.
— Mas foi sua operação. Todo mundo no Boulevard Rei Saul sabe que foi sua, assim como todo mundo na rua Kaplan.
A rua Kaplan era a localização do escritório do primeiro-ministro. Sem dúvidas, Bella era uma visitante bastante frequente. Gabriel sempre suspeitou que a influência
dela no Boulevard Rei Saul ia muito além da decoração do escritório de seu marido.
— Uzi tem sido um bom chefe — falou ela. — Um excelente chefe. Ele só tem um defeito. Não é você, Gabriel. Ele nunca vai ser você. E por isso, está sendo descartado.
— Não se eu puder evitar.
— Já não fez o suficiente?
Dentro da casa tocou um telefone. Bella não mostrou nenhum interesse em atender.
— Por que está aqui? — perguntou ela.
— Quero conversar sobre o futuro do Uzi.
— Graças a você, ele já não tem nenhum.
— Bella...
Ela se recusava a se acalmar, não tão cedo.
— Se você tem algo a falar sobre o futuro do Uzi, deveria conversar com ele.
— Achei que seria mais produtivo se passasse por cima dele.
— Não tente me lisonjear, Gabriel.
— Nem sonharia em fazer isso.
Ela bateu a unha de seu dedo indicador na mesa. Tinha sido recentemente pintada.
— Ele me contou sobre a conversa que tiveram em Londres quando estavam procurando aquela garota sequestrada. Não é preciso dizer que não pensei muito na sua proposta.
— Por que não?
— Porque não há precedentes para isso. Quando termina o período de um chefe, ele gentilmente desaparece na noite, nunca mais se ouve falar dele.
— Diga isso ao Shamron.
— Shamron é diferente.
— Eu também.
— O que você está propondo exatamente?
— Dirigirmos juntos o Escritório. Eu serei o chefe e Uzi será meu vice.
— Nunca vai funcionar.
— Por que não?
— Porque vai deixar a impressão de que você não está totalmente preparado para o cargo.
— Ninguém pensa isso.
— A aparência é importante.
— Você está me confundindo com outra pessoa, Bella.
— Com quem?
— Com alguém que se preocupa com as aparências.
— E se ele concordar?
— Terá um escritório ao lado do meu. Vai estar envolvido em toda decisão central, toda operação importante.
— E o salário dele?
— Vai ter o mesmo salário, sem mencionar o carro e a segurança.
— Por quê? — perguntou ela. — Por que está fazendo isso?
— Porque preciso dele, Bella. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — De você, também.
— De mim?
— Quero que volte ao Escritório.
— Quando?
— Amanhã de manhã, às dez horas. Uzi e eu vamos organizar uma operação contra os sírios. Precisamos da sua ajuda.
— Que tipo de operação?
Quando Gabriel contou, ela sorriu, triste.
— Pena que Uzi não pensou nisso — falou ela. — Ele ainda poderia ser o chefe.
Passaram a hora seguinte no jardim de Bella negociando os termos da volta dela ao Boulevard Rei Saul. Depois disso, acompanhou-o até o carro oficial.
— Você fica bem assim — falou ela pela porta aberta.
— Como, Bella?
Ela sorriu e falou:
— Nos vemos amanhã, Gabriel. — Então se virou e desapareceu. Um guarda-costas fechou a porta do carro; outro subiu no banco do passageiro. Gabriel percebeu de repente
que não estava armado. Ficou sentado ali por um momento pensando aonde iria em seguida. Em seguida, olhou para o motorista pelo espelho retrovisor e deu um endereço
em Jerusalém Ocidental. Ele tinha mais um negócio desagradável para resolver antes de ir para casa. Tinha de contar a um fantasma que seria pai de novo.
29
JERUSALÉM
O PEQUENO PASSEIO CIRCULAR DO Hospital Psiquiátrico Monte Herzl vibrou sob o peso da caravana de três carros de Gabriel. Ele saiu do banco traseiro de sua limusine
e, depois de uma troca curta de palavras com o chefe de sua segurança, entrou sozinho no hospital. Esperando na recepção estava um médico barbudo, com jeito de rabino,
chegando aos sessenta anos. Estava sorrindo, apesar do fato de que, como sempre, tinha sido avisado com pouca antecedência da chegada de Gabriel. Estendeu a mão
e ficou olhando a comoção na entrada, normalmente tranquila, da instalação mais privada de Israel para pacientes com problemas mentais.
— Parece que sua vida está a ponto de mudar de novo — falou o médico.
— Em mais de um sentido — respondeu Gabriel.
— Para melhor, espero.
Gabriel assentiu e depois contou ao médico sobre a gravidez. O médico sorriu, mas só por um momento. Ele tinha testemunhado a longa luta de Gabriel para decidir
se devia voltar a se casar. Ser pai, ele sabia, levaria a sentimentos complicados.
— E gêmeos, ainda por cima. Bem — acrescentou o médico, lembrando-se de sorrir de novo —, você certamente...
— Preciso contar a ela — falou Gabriel, interrompendo o médico. — Já adiei isso por tempo demais.
— Não é necessário.
— É.
— Ela não vai entender, não totalmente.
— Eu sei.
O médico sabia que não devia insistir.
— Poderia ser melhor se eu ficasse com você — falou ele. — Para bem dos dois.
— Obrigado — respondeu Gabriel —, mas preciso fazer isso sozinho.
O médico se afastou sem uma palavra e deixou Gabriel seguir por um corredor feito de calcário de Jerusalém até uma sala comum onde alguns pacientes estavam olhando
para uma televisão com o olhar perdido. Um par de grandes janelas dava para um jardim com muro. Do lado de fora, uma mulher estava sentada sozinha na sombra de um
pinheiro-manso, imóvel como uma lápide.
— Como ela está? — perguntou Gabriel.
— Sente sua falta. Já faz tempo que você não vem vê-la.
— É difícil.
— Eu entendo.
Eles ficaram parados por um momento na janela, sem falar e sem se mover.
— Há algo que você deveria saber — falou o médico finalmente. — Ela nunca deixou de amá-lo, mesmo depois do divórcio.
— Isso deveria me fazer sentir melhor?
— Não — disse o médico. — Mas você merece saber a verdade.
— Ela também.
Outro silêncio.
— Gêmeos, hein?
— Gêmeos.
— Menino ou menina?
— Um de cada.
— Talvez pudesse deixar que ela passasse um tempo com eles.
— Uma coisa de cada vez, doutor.
— Claro — falou o médico quando Gabriel entrou no jardim sozinho. — Uma coisa de cada vez.
Ela estava sentada em sua cadeira de rodas com o que sobrava de suas mãos retorcidas descansando no colo. O cabelo, antes comprido e escuro como o de Chiara, agora
estava curto e grisalho. Gabriel beijou a pele fria e firme da cicatriz de seu rosto antes de se sentar no banco ao seu lado. Ela olhou perdida para o jardim, sem
perceber a presença dele. Estava ficando mais velha, ele pensou. Todos estavam ficando mais velhos.
— Olhe para a neve, Gabriel — falou ela de repente. — Não é linda?
Ele olhou para o sol queimando no céu sem nuvens.
— É, Leah — falou ele distraído. — É linda.
— A neve absolve Viena de seus pecados — falou ela depois de um momento. — A neve cai sobre Viena enquanto os mísseis caem sobre Tel Aviv.
Tinham sido algumas das últimas palavras que Leah tinha falado para ele na noite do atentado em Viena. Ela sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão
psicótica e desordem de estresse pós-traumático. Às vezes, ela experimentava momentos de lucidez, mas na maior parte do tempo permanecia prisioneira do passado.
Viena passava incessantemente em sua cabeça como um loop de videoteipe que era incapaz de parar: a última refeição que comeram juntos, o último beijo, o fogo que
matou o único filho deles e queimou a pele do corpo de Leah. Sua vida tinha se reduzido a cinco minutos; e ela passava revivendo-os, várias vezes, por mais de vinte
anos.
— Achei que tinha se esquecido de mim, Gabriel.
Sua cabeça se virou lentamente e por um momento houve um lampejo de reconhecimento em seus olhos. Sua voz, quando falou de novo, parecia estranhamente com a voz
que ele tinha ouvido pela primeira vez há muitos anos, chamando-o de um estúdio em Bezalel.
— Quando foi a última vez que veio aqui?
— Vim para seu aniversário.
— Não me lembro.
— Fizemos uma festa, Leah. Todos os outros pacientes vieram. Foi muito legal.
— Estou sozinha aqui, Gabriel.
— Eu sei, Leah.
— Não tenho ninguém. Ninguém a não ser você, meu amor.
Ele sentiu que tinha perdido a capacidade de encher seus pulmões de ar. Leah colocou a mão sobre a dele.
— Você não tem tinta nos seus dedos — falou ela.
— Não trabalhei nos últimos dias.
— Por que não?
— É uma longa história.
— Tenho tempo — falou ela. — É só o que tenho.
Desviou o olhar dele e olhou para o jardim. A luz estava se apagando dos seus olhos.
— Não se vá, Leah. Tenho algo para lhe contar.
Ela se virou de novo para ele.
— Está restaurando um quadro agora? — perguntou ela.
— Veronese — respondeu ele.
— Qual?
Ele contou.
— Então está morando em Veneza de novo?
— Por mais alguns meses.
Ela sorriu.
— Lembra-se quando moramos juntos em Veneza, Gabriel? Foi quando você era aprendiz de Umberto Conti.
— Eu lembro, Leah.
— Nosso apartamento era tão pequeno.
— Porque era só um quarto.
— Foram dias maravilhosos, não foram, Gabriel? Dias de arte e vinho. Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes se você não
tivesse voltado ao Escritório.
Gabriel não respondeu. Não era capaz de falar.
— Sua esposa é de Veneza, não é?
— É sim, Leah.
— Ela é bonita?
— É, Leah, é muito bonita.
— Gostaria de conhecê-la algum dia.
— Já a conheceu, Leah. Ela veio visitá-la várias vezes.
— Não me lembro dela. Talvez seja melhor assim. — Ela se afastou dele. — Quero falar com a minha mãe — disse. — Quero ouvir o som da voz da minha mãe.
— Vamos ligar para ela, Leah.
— Não deixe de ver se o Dani está bem preso na sua cadeirinha. As ruas estão escorregadias.
— Ele está bem, Leah.
Ela virou o rosto para ele de novo. Então, depois de um momento, perguntou:
— Você tem filhos?
Ele não estava seguro se ela estava no presente ou no passado.
— Não entendi — falou ele.
— Com Chiara.
— Não — respondeu ele. — Não temos filhos.
— Talvez um dia.
— É — ele falou, mas não continuou.
— Me faça uma promessa, Gabriel.
— Qualquer coisa, meu amor.
— Se tiver outro filho, não deve se esquecer do Dani.
— Penso nele todo dia.
— Não penso em nada mais.
Ele sentiu como se os ossos de sua caixa torácica estivessem se quebrando debaixo do peso da pedra que Deus tinha colocado sobre seu coração.
— E quando você sair de Veneza? — perguntou Leah depois de um momento. — O que vai fazer?
— Vou voltar para casa.
— De vez?
— De vez, Leah.
— O que vai fazer? Não há pinturas aqui em Israel.
— Vou ser o chefe do Escritório.
— Achei que Ari era o chefe.
— Isso foi há muito tempo.
— Onde vai viver?
— Aqui em Jerusalém para ficar perto de você.
— Naquele pequeno apartamento?
— Sempre gostei dele.
— Não é grande o suficiente para crianças.
— Vamos encontrar espaço.
— Ainda virá me visitar depois que tiver filhos, Gabriel?
— Sempre que eu puder.
Ela levantou o rosto para o céu sem nuvens.
— Olhe para a neve, Gabriel.
— É — falou ele, chorando baixinho. — Não é linda?
O médico estava esperando por Gabriel na sala comum. Não falou nada até terem voltado à recepção.
— Tem algo que você gostaria de me contar? — perguntou ele.
— Foi tão bem quanto se poderia esperar.
— Para ela ou para você?
Gabriel não falou nada.
— Está tudo bem, sabe — disse o médico depois de um momento.
— O quê?
— Você deve ser feliz.
— Não tenho certeza se sei como.
— Tente — disse o médico. — E se você precisar de alguém para conversar, sabe onde me encontrar.
— Cuide bem dela.
— Sempre cuidarei.
Com isso, Gabriel se entregou ao cuidado de seus seguranças e subiu no banco traseiro da limusine. Era estranho, ele pensou, mas ele não sentia mais vontade de chorar.
Supôs que era isso que significava ser chefe.
30
RUA NARKISS, JERUSALÉM
CHIARA TINHA CHEGADO A Jerusalém apenas uma hora antes de Gabriel e, mesmo assim, o apartamento deles na rua Narkiss já parecia uma fotografia numa dessas revistas
de decoração de casas que ela sempre estava lendo. Havia flores frescas nos vasos e tigelas de aperitivos nas mesinhas, e a taça de vinho que ela colocou na mão
dele estava perfeitamente fria. Os lábios dela, quando o beijou, estavam quentes do sol de Jerusalém.
— Esperava que você chegasse mais cedo — falou ela.
— Tinha umas coisas para fazer.
— Onde você estava?
— No inferno — respondeu ele sério.
Ela franziu a testa.
— Vai ter que me contar sobre isso mais tarde.
— Por que mais tarde?
— Porque temos visitas chegando, querido.
— Preciso perguntar quem é?
— Provavelmente não.
— Como ele soube que tínhamos voltado?
— Ele mencionou algo sobre um arbusto queimando.
— Não pode ser outra noite?
— É muito tarde para cancelar agora. Ele e Gilah já saíram de Tiberíades.
— Suponho que esteja mandando atualizações de sua localização.
— Ele já ligou duas vezes. Está muito animado para vê-lo.
— Eu imagino por quê.
Ele beijou Chiara de novo e levou a taça de vinho para o quarto. As paredes estavam cheias de quadros. Havia quadros de Gabriel, quadros de sua talentosa mãe e vários
quadros de seu avô, o famoso expressionista alemão Viktor Franekel, que foi assassinado em Auschwitz no letal inverno de 1942. Havia também um retrato médio, sem
assinatura, de um jovem homem desolado que parecia assombrado pela sombra da morte. Leah tinha pintado alguns dias depois que Gabriel havia retornado a Israel com
o sangue de seis terroristas do Setembro Negro nas mãos. Foi a primeira e última vez que ele tinha concordado em posar para ela.
“Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes...”
Ele tirou sua roupa debaixo do olhar impiedoso do retrato e ficou parado debaixo do chuveiro até que os últimos traços do toque de Leah tivessem saído de sua pele.
Então colocou roupas limpas e voltou à sala de estar, bem quando Gilah e Ari Shamron estavam entrando pela porta da frente. Gilah trazia um prato de sua famosa berinjela
com condimentos marroquinos; seu famoso marido trazia apenas uma bengala feita de madeira de oliveira. Ele estava vestido, como sempre, com calças cáqui bem passadas,
uma camisa de algodão branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Era óbvio que ele não estava bem, mas seu sorriso expressava contentamento. Shamron
tinha passado anos tentando convencer Gabriel a voltar à Israel para assumir seu lugar no escritório executivo no Boulevard Rei Saul. Agora, tanto tempo depois,
a tarefa estava completa. Seu sucessor estava no lugar. A linhagem estava assegurada.
Ele encostou sua bengala na parede da entrada e, seguido de Gabriel, foi até a pequena varanda onde havia duas cadeiras de ferro debaixo da copa de um eucalipto.
A rua Narkiss estava silenciosa e vazia debaixo deles, mas à distância vinha o barulho do trânsito noturno na King George. Shamron sentou-se com dificuldade em uma
das cadeiras e fez um movimento para que Gabriel se sentasse na outra. Então pegou o maço de cigarros turcos e, com enorme concentração, tirou um. Gabriel olhou
para as mãos de Shamron, as mãos que quase tinham tirado a vida de Adolf Eichmann em uma esquina no norte de Buenos Aires. Foi uma das razões pelas quais Shamron
tinha recebido a missão: o tamanho e força incomuns de suas mãos. Agora elas estavam cheias de manchas dos problemas de fígado e de machucados que não tinham se
curado. Gabriel desviou o olhar enquanto elas lutavam com o velho isqueiro.
— Você não devia fumar, Ari.
— Que diferença faz agora?
Depois que apagou o isqueiro, o cheiro de fumaça turca se misturou ao forte odor do eucalipto. Gabriel foi subitamente inundado por lembranças. Ele tentou mantê-las
à distância, mas não conseguiu; Leah tinha destruído o que restava de suas defesas. Estava dirigindo por um mar de arbustos movidos pelo vento na Cornualha com Shamron
ao seu lado. Era o início de um novo milênio, os dias de ataques suicidas e ilusão. Shamron tinha sido retirado recentemente de sua aposentadoria para reformar o
Escritório depois de uma série de desastres operacionais e queria a ajuda de Gabriel nesse empreendimento. A isca que usou foi Tariq al-Hourani, o mestre terrorista
palestino que tinha plantado a bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena.
“Talvez se você me ajudar a acabar com Tariq, finalmente vai superar o que aconteceu com Leah e continuar com sua vida...”
Gabriel ouviu o som da risada de Chiara na sala e a lembrança se dissolveu.
— O que foi agora? — perguntou ele gentilmente a Shamron.
— A lista dos meus problemas físicos é quase tão longa quanto a lista de desafios que Israel está enfrentando. Mas não se preocupe — acrescentou ele rapidamente.
— Ainda não vou a lugar nenhum. Tenho toda a intenção de estar por aqui para testemunhar o nascimento dos meus netos.
Gabriel resistiu ao impulso de lembrar Shamron de que eles não eram realmente pai e filho.
— Esperamos que esteja lá, Ari.
Shamron sorriu.
— Decidiram onde vão viver depois que eles nascerem?
— Curioso — respondeu Gabriel —, mas Bella me perguntou a mesma coisa.
— Ouvi dizer que foi uma conversa interessante.
— Como sabe que fui vê-la?
— Uzi me contou.
— Achei que ele não estava atendendo suas ligações.
— Parece que começou o grande degelo. É uma das poucas vantagens de ter problemas de saúde — acrescentou ele. — Todas as pequenas queixas e promessas quebradas parecem
desaparecer quando chegamos perto do fim.
Os galhos do eucalipto se moveram com a primeira brisa noturna. O ar estava esfriando a cada minuto. Gabriel sempre adorou a forma como esfriava à noite em Jerusalém,
mesmo no verão. Ele desejou ter o poder de congelar esse momento por um pouco mais de tempo. Olhou para Shamron, que estava batendo seu cigarro pensativo na borda
do cinzeiro.
— Foi preciso muita coragem de sua parte para se sentar e conversar com Bella. E perspicácia, também. Prova que eu estava certo sobre uma coisa o tempo todo.
— O quê, Ari?
— Que você tem tudo para ser um grande chefe.
— Às vezes, eu me pergunto se estou prestes a cometer meu primeiro erro.
— O de manter Uzi com algum poder?
Gabriel assentiu lentamente.
— É arriscado — concordou Shamron. — Mas se há alguém que pode encarar isso, é você.
— Nenhum conselho?
— Já não preciso mais dar conselhos, meu filho. Sou o pior que um homem pode ser, velho e obsoleto. Sou um espectador. Uma vergonha. — Shamron olhou para Gabriel
e franziu a testa. — Sinta-se livre para discordar de mim quando quiser.
Gabriel sorriu, mas não disse nada.
— Uzi me contou que as coisas ficaram um pouco acaloradas entre você e Bella — disse Shamron.
— Lembrou-me o interrogatório que tive que enfrentar aquela noite no Empty Quarter.
— A pior noite da minha vida. — Shamron pensou nisso por um momento. — Na verdade — falou —, foi a segunda pior.
Ele não precisava falar qual tinha sido a primeira. Estava falando de Viena.
— Acho que Bella está mais chateada com tudo isso do que Uzi — continuou ele. — Infelizmente, ela se acostumou demais às armadilhas do poder.
— O que lhe dá essa impressão?
— A forma como se aferra a elas. Ela me culpa por tudo, claro. Acha que planejei isso desde o início.
— E é verdade.
Shamron fez uma cara que ficava em algum ponto entre um sorriso e uma careta.
— Não vai negar? — perguntou Gabriel.
— Nada — respondeu Shamron. — Tive minha cota de triunfos, mas no final, a sua será a carreira usada para medir a de todos os outros. É verdade que tive preferências,
especialmente depois de Viena. Mas minha fé em você foi recompensada com uma série de operações que estavam muito além dos talentos de alguém como Uzi. Certamente
até Bella percebe isso.
Gabriel não falou nada. Estava olhando um menino de dez ou onze anos andando de bicicleta na rua tranquila.
— E agora — falou Shamron — parece que você pode ter encontrado uma forma de atacar as finanças do açougueiro de Damasco. Com um pouco de sorte, será o primeiro
grande triunfo da era de Gabriel Allon.
— Achei que não acreditava em sorte.
— Não acredito. — Shamron acendeu outro cigarro, então, com um movimento do pulso, fechou o isqueiro com um golpe rápido. — O açougueiro tem a crueldade do pai,
mas não possui a mesma inteligência, o que o torna ainda mais perigoso. Nesse ponto, só o dinheiro importa. É o que mantém o clã unido. É por isso que os leais permanecem
leais. É por isso que as crianças estão morrendo aos milhares. Mas se você puder realmente controlar o dinheiro... — Ele sorriu. — As possibilidades serão infinitas.
— Realmente não tem nenhum conselho para mim?
— Mantenha o açougueiro no poder pelo tempo que ele continuar sendo palatável, mesmo remotamente. De outra forma, os próximos anos serão muito interessantes para
você e seus amigos em Washington e Londres.
— Então é assim que termina a Grande Primavera Árabe? — perguntou Gabriel. — Apoiamos um assassino em massa porque ele é o único que pode salvar a Síria da al-Qaeda?
— Longe de mim dizer que avisei, mas previ que a Primavera Árabe iria terminar em desastre e foi o que aconteceu. Os árabes ainda não estão prontos para a verdadeira
democracia, não no momento em que o islamismo radical está em ascensão. O melhor que podemos esperar são regimes autoritários decentes em lugares como Síria e Egito.
— Shamron parou, depois acrescentou: — Quem sabe, Gabriel? Talvez você possa encontrar alguma forma de convencer o dirigente a educar seu povo de forma apropriada
e tratá-los com a dignidade que merecem. Talvez possa obrigá-lo a parar de matar crianças com gás.
— Tem uma coisa que quero dele.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Primeiro encontre o dinheiro — falou Shamron, apagando o cigarro. — E depois o quadro.
Gabriel não falou mais nada. Estava olhando o menino na bicicleta aparecendo e desaparecendo debaixo das sombras no final da rua. Quando o menino sumiu, ele levantou
o rosto para o céu de Jerusalém. “Olhe para a neve”, ele pensou. “Não é linda?”
31
JERUSALÉM
O TOQUE DOS SINOS DA IGREJA acordou Gabriel de um sono sem sonhos. Ele ficou imóvel por um momento, incerto de onde estava. Então viu o retrato taciturno olhando
para ele da parede e percebeu que estava em seu próprio quarto na rua Narkiss. Saiu de debaixo dos lençóis, sem fazer barulho, para não acordar Chiara e foi até
a cozinha. A única prova do jantar da noite anterior era o forte cheiro doce de flores subindo dos vasos. Na pia limpa havia uma cafeteira francesa e uma lata de
Lavazza. Gabriel colocou a chaleira no fogão e ficou esperando a água ferver.
Tomou seu café no terraço e leu os jornais da manhã em seu BlackBerry. Então entrou no banheiro para fazer a barba e tomar banho. Quando saiu, Chiara ainda estava
dormindo profundamente. Ele abriu o guarda-roupa e ficou parado ali por um momento, pensando no que usaria. Um terno, decidiu, era impróprio; poderia enviar a mensagem
às tropas de que ele já estava no comando. No final, decidiu usar a roupa de sempre: um jeans desbotado, um pulôver de algodão e uma jaqueta de couro. Shamron tinha
seu uniforme, pensou, e ele também.
Alguns minutos depois das oito, ouviu o comboio de carros perturbando o silêncio da rua Narkiss. Beijou Chiara suavemente e depois desceu para encontrar a limusine
que o aguardava. Esta o levou para o leste, cruzando Jerusalém até a Porta do Esterco, a entrada principal do Bairro Judeu da Cidade Velha. Ele passou pelos detectores
de metal e, junto com seus guarda-costas, cruzou a praça aberta em direção ao Muro das Lamentações, a tão disputada reminiscência da antiga barreira de retenção
que já tinha cercado o grande Templo de Jerusalém. Em cima do Muro, brilhando com o sol do começo da manhã, estava a dourada Cúpula da Rocha, o terceiro lugar mais
sagrado do islamismo. Havia muitos aspectos no conflito árabe-israelense, mas Gabriel tinha concluído que tudo se resumia a isso — duas fés presas em uma luta mortal
pela mesma parcela de uma terra sagrada. Poderia haver períodos de calma, meses ou até anos sem bombas ou sangue; mas Gabriel temia que nunca haveria paz.
A porção do Muro das Lamentações visível da praça tinha 57 metros de largura e 19 metros de altura. O verdadeiro muro ao redor da colina do Monte do Templo, no entanto,
era muito mais longo, descendo uns 13 metros depois da praça e se estendendo mais uns quatrocentos metros até o Bairro Muçulmano, onde estava escondido por trás
de estruturas residenciais. Depois de anos de escavações arqueológicas cheias de problemas políticos e religiosos, agora era possível caminhar por quase toda a extensão
do muro através do Túnel do Muro das Lamentações, uma passagem subterrânea que ia da praça até a Via Dolorosa.
A entrada do túnel estava do lado esquerdo da praça, não muito longe do Arco de Wilson. Gabriel passou pela moderna porta de vidro e, seguido por seus guarda-costas,
desceu uma escada de alumínio até o porão. Um caminho recentemente pavimentado seguia a base do muro. Ele o seguiu passando pelas enormes pedras do tempo de Herodes
até chegar a uma seção do túnel que estava escondida por uma cortina de plástico opaco. Além da cortina havia uma cova de escavação retangular onde uma figura solitária,
um homem pequeno de meia idade, mexia no solo sob um cone de suave luz branca. Ele pareceu não ter percebido a presença de Gabriel, mas foi só impressão. Seria mais
fácil surpreender um esquilo do que Eli Lavon.
Outro momento se passou antes de Lavon levantar a cabeça e sorrir. Ele tinha o cabelo ralo e desgrenhado, um rosto quase sem traços que mesmo o artista mais talentoso
teria dificuldades para capturar na tela. Eli Lavon era um fantasma, um camaleão que facilmente passava despercebido e logo era esquecido. Shamron já tinha dito
que ele poderia desaparecer enquanto apertava sua mão. Não estava muito longe da verdade.
Gabriel tinha trabalhado com Lavon pela primeira vez na Ira de Deus, a operação secreta da inteligência israelense para caçar e matar os autores do massacre das
Olimpíadas de Munique. No léxico da equipe, baseado no hebreu, Lavon tinha sido um ayin, um rastreador e artista da vigilância. Durante três anos ele tinha seguido
os terroristas do Setembro Negro por toda a Europa e Oriente Médio, geralmente com uma proximidade perigosa. O trabalho o deixou com várias desordens por estresse,
incluindo um famoso estômago instável que o incomodava até hoje.
Quando a unidade foi dissolvida em 1975, Lavon se estabeleceu em Viena, onde abriu uma pequena unidade investigativa chamada Alegações e Investigações da Época da
Guerra. Operando com um orçamento baixíssimo, ele conseguiu encontrar bens saqueados no Holocausto valendo milhões de dólares e teve um papel importante num acordo
multibilionário com os bancos suíços. O trabalho fez com que ganhasse poucos admiradores em Viena e, em 2003, uma bomba explodiu em seu escritório, matando duas
jovens funcionárias. Abalado, ele voltou a Israel para seguir sua primeira paixão, que era a arqueologia. Ele agora era professor adjunto na Universidade Hebraica
e participava regularmente em escavações por todo o país. Tinha passado a maior parte dos dois últimos anos remexendo o solo do Túnel do Muro das Lamentações.
— Quem são seus amiguinhos? — perguntou ele, olhando para os guarda-costas parados nas pontas da cova.
— Eu encontrei os dois perdidos na praça.
— Não vão estragar nada, vão?
— Não ousariam.
Lavon olhou para o chão e recomeçou a trabalhar.
— O que você tem aí? — perguntou Gabriel.
— Umas moedas perdidas.
— Quem deixou cair?
— Alguém muito bravo pelo fato de que os persas estavam a ponto de conquistar Jerusalém. É óbvio que estava com pressa.
Lavon esticou o braço e ajustou o ângulo de sua lâmpada de trabalho. O fundo da vala brilhou com os dourados pedacinhos encrustados.
— O que são? — perguntou Gabriel.
— Trinta e seis moedas de ouro da era bizantina e um grande medalhão com um menorá. Provam que os judeus viviam aqui antes da conquista muçulmana de Jerusalém em
638. Para a maioria dos arqueólogos bíblicos, isso seria a descoberta de toda uma vida. Mas não para mim. — Lavon olhou para Gabriel e acrescentou: — Nem para você.
Gabriel olhou sobre o ombro dele para as pedras do Muro. Um ano antes, numa câmara secreta de cinquenta metros debaixo da superfície do Monte do Templo, ele e Lavon
tinham descoberto 22 pilares do Templo de Jerusalém de Salomão, provando assim, sem nenhuma dúvida, que o antigo santuário judeu, descrito no Livro dos Reis e nas
Crônicas, tinha realmente existido. Eles também tinham descoberto uma enorme bomba que, se tivesse detonado, teria destruído todo o sagrado planalto. Os pilares
agora estavam em uma exibição de alta segurança no Museu de Israel. Um deles teve de ser especialmente limpo antes de ser posto em exposição porque estava manchado
com o sangue de Lavon.
— Recebi uma ligação do Uzi na noite passada — falou Lavon depois de um momento. — Ele me contou que você poderia dar uma passada.
— Falou o motivo?
— Mencionou algo sobre um Caravaggio perdido e uma empresa chamada LXR Investments. Falou que você estava interessado em adquiri-la, junto com o resto da Mal S.A.
— Pode ser feito?
— Não dá para fazer muita coisa de fora. No final, você vai precisar da ajuda de alguém que possa entregar as chaves do reino.
— Então nós vamos encontrar essa pessoa.
— Nós? — Quando Gabriel não respondeu, Lavon se inclinou e começou a mexer no solo ao redor de uma das moedas antigas. — O que precisa que eu faça?
— Exatamente o que você está fazendo agora — respondeu Gabriel. — Mas quero que use um computador e um balanço financeiro em vez de uma espátula e um pincel.
— Hoje em dia, prefiro uma espátula e um pincel.
— Eu sei, Eli, mas não vou conseguir fazer isso sem você.
— Não vai ser nada difícil, vai?
— Não, Eli, claro que não.
— Você sempre fala isso, Gabriel.
— E?
— Sempre é.
Gabriel se abaixou e desconectou a lâmpada de sua fonte de energia. Lavon trabalhou na escuridão por mais um momento. Então se levantou, limpou as mãos nas calças
e saiu da cova.
Um solteirão, Lavon mantinha um pequeno apartamento no distrito Talpiot de Jerusalém, na estrada para Hebron. Eles pararam ali tempo suficiente para que vestisse
roupas limpas e depois seguiram pela Bab al-Wad até o Boulevard Rei Saul. Depois de entrarem no edifício “preto”, eles subiram três lances de escadas e caminharam
por um corredor sem janelas até uma porta com a inscrição 456C. A sala do outro lado já tinha sido um depósito para computadores obsoletos e móveis velhos, geralmente
usados pela equipe noturna como um ponto de encontro clandestino para relações românticas. Agora era conhecido por todos no Boulevard Rei Saul apenas como o Covil
de Gabriel.
O código para a fechadura era a versão numérica da data de aniversário de Gabriel, que tinha a reputação de ser o segredo mais bem guardado do Escritório. Com Lavon
olhando por cima do ombro, ele digitou o código e abriu a porta. Lá dentro estava Dina Sarid, uma mulher pequena, de cabelos escuros com um ar de viúva precoce.
Um banco de dados humano, ela era capaz de recitar a hora, lugar, perpetradores e números de baixas de todo ato de terrorismo cometido contra alvos israelenses e
ocidentais. Dina já tinha dito a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles mesmos. E Gabriel acreditava nela.
— Onde estão os outros? — perguntou ele.
— Presos em Recursos Humanos.
— Qual é o problema?
— Aparentemente, os chefes de divisão estão revoltados. — Dina parou, então acrescentou: — Isso é o que acontece com um serviço de inteligência quando se espalha
que o chefe não vai durar.
— Talvez eu deva subir e conversar com os chefes de divisão.
— Espere alguns minutos.
— Tem sido tão ruim assim?
— Criei uma lista de agentes da al-Qaeda que se estabeleceram ao lado na Síria — jihadistas globais sérios que precisam ser tirados de circulação permanentemente.
E adivinha o que acontece sempre que proponho uma operação?
— Nada.
Dina assentiu lentamente.
— Estamos congelados no tempo — falou ela. — Estamos marcando passo justamente no momento que menos podemos.
— Isso vai acabar, Dina.
Bem nesse momento a porta se abriu e Rimona Stern entrou na sala. Mikhail Abramov apareceu logo depois, seguido alguns minutos mais tarde por Yaakov Rossman, que
parecia não dormir há um mês. Em seguida, apareceu um par de agentes de campo chamados Mordecai e Oded, seguidos por Yossi Gavish, um homem alto e careca vestido
com cotelê e tweed. Yossi era um alto funcionário de Pesquisa, que é como o Escritório chamava sua divisão analítica. Nascido na região Golders Green de Londres,
ele tinha estudado em Oxford e ainda falava hebraico com um forte sotaque inglês.
Dentro dos corredores e salas de conferência do Boulevard Rei Saul, os oito homens e mulheres reunidos na sala subterrânea eram conhecidos pelo codinome Barak, a
palavra em hebreu para raio, por sua habilidade incomum de se reunir e atacar rapidamente. Eram um serviço dentro do serviço, uma equipe de agentes sem igual e sem
medo de nada. Durante sua existência, tinha às vezes sido necessário admitir gente de fora no meio deles — um jornalista investigativo britânico, um bilionário russo,
a filha de um homem que tinham matado —, mas nunca antes tinham permitido que outro agente do Escritório se juntasse à sua fraternidade. Portanto, ficaram surpresos
quando, assim que o relógio marcou dez horas, Bella Navot apareceu na porta. Estava vestida para a reunião com uma calça cinza e trazia uma pasta de arquivos ao
peito. Ficou parada na porta por um momento, como se esperasse um convite para entrar, antes de se sentar, sem falar nada, perto de Yossi em uma das mesas de trabalho
comuns.
Se a equipe achou estranha a presença de Bella, não deu nenhum sinal disso quando Gabriel se levantou e caminhou até o último quadro-negro existente em todo o Boulevard
Rei Saul. Nele estavam escritas três palavras: SANGUE NUNCA DORME. Apagou-as com um único movimento da mão e no lugar escrever as letras LXR. Então contou à equipe
a incrível série de eventos que tinham levado àquela reunião, começando com o assassinato de um espião britânico transformado em ladrão de arte chamado Jack Bradshaw
e terminando com o bilhete que Bradshaw tinha deixado para Gabriel em seu cofre no Freeport de Genebra. Na morte, Bradshaw tinha tentado corrigir seus pecados ao
dar a Gabriel a identidade do homem que estava comprando quadros roubados a rodo: o criminoso dirigente da Síria. Também tinha fornecido a Gabriel o nome da empresa
de fachada que o dirigente tinha usado para essas compras: LXR Investments of Luxembourg. Certamente, a LXR era apenas uma pequena estrela numa galáxia de riqueza
global, sendo que boa parte dela estava cuidadosamente escondida por baixo de camadas de armações e empresas de fachada. Mas uma rede de riqueza, assim como uma
de rede de terroristas, precisava ter uma cabeça operativa habilidosa para funcionar. O dirigente tinha confiado o dinheiro de sua família a Kemel al-Farouk, o guarda-costas
do pai do dirigente, o assistente que torturava e matava sob o comando do regime. Mas Kemel não podia administrar o dinheiro ele mesmo, não com a NSA e seus sócios
monitorando cada movimento seu. Em algum lugar, havia um homem de confiança — um advogado, um banqueiro, um parente — que tinha o poder de mover esses bens como
quisesse. Usariam a LXR como uma forma de encontrá-lo. E Bella Navot iria guiá-los em todos os passos.


CONTINUA

22
ÎLE SAINT-LOUIS, PARIS
– EU GOSTARIA DE COMEÇAR ESSA Conversa, sr. Bartholomew, dando-lhe meus parabéns. Foi uma transação impressionante que você e seus homens realizaram em Amsterdã.
— Quem disse que não fiz isso sozinho?
— Não é o tipo de coisa que alguém faz sozinho. Certamente teve ajuda — acrescentou Sam. — Como seu amigo que estava no telefone comigo. Ele fala francês muito bem,
mas não é francês, é?
— Que diferença isso faz?
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios.
— Isso não é a Harrods, querido.
Sam olhou a rua com a calma de um turista que tinha visitado muitos museus em pouco tempo.
— Ele está aí fora em algum lugar, não está?
— Não saberia dizer.
— E há outros?
— Vários.
— E mesmo assim exigiram que eu viesse sozinho.
— É o vendedor quem manda.
— Foi o que ouvi.
Sam retomou sua inspeção da rua. Ainda estava de chapéu e óculos escuros, o que deixava apenas a parte inferior do seu rosto visível. Estava com a barba bem feita.
As bochechas eram altas e proeminentes, o queixo forte, os dentes brancos e perfeitos. Suas mãos não tinham cicatrizes ou tatuagens. Não usava anéis nos dedos ou
braceletes nos pulsos, só um grande Rolex dourado para indicar que era um homem de posses. Tinha os maneirismos refinados de um árabe bem nascido, mas um tanto grosseiro.
— Ouvimos outras coisas também — continuou Sam depois de um momento. — Aqueles que viram a mercadoria dizem que você conseguiu tirá-la de Amsterdã com danos mínimos.
— Nenhum, na verdade.
— Também ouvimos que há Polaroids.
— Onde ouviu isso?
Sam deu um sorriso desagradável.
— Isso vai demorar muito mais do que o necessário se você insistir nesses jogos, sr. Bartholomew.
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios — disse Keller, enfático.
— Está pedindo informações sobre o homem que represento, sr. Bartholomew?
— Nem sonharia em fazer isso.
Houve um silêncio.
— Meu cliente é um empresário — falou Sam finalmente. — Bastante bem-sucedido, bastante rico. Também ama as artes. Coleciona muito, mas como muitos colecionadores
sérios, foi ficando frustrado com o fato de que não há mais bons quadros à venda. Ele quer há muitos anos adquirir um Van Gogh. Você agora tem um muito bom. Meu
cliente gostaria de tê-lo.
— Assim como muitas outras pessoas.
Sam pareceu não se perturbar com isso.
— E você? — perguntou depois de um momento. — Por que não me fala um pouco sobre você?
— Roubo coisas para viver.
— É inglês?
— Infelizmente.
— Sempre gostei dos ingleses.
— Não vou usar isso contra você.
Apareceu um garçom que entregou o menu. Sam pediu uma garrafa de água mineral; Keller, uma taça de vinho que não tinha intenção de beber.
— Quero deixar uma coisa clara desde o começo — falou quando ficaram novamente sozinhos. — Não estou interessado em drogas, armas ou garotas, nem em um condomínio
em Boca Raton, na Flórida. Só aceito dinheiro.
— De quanto dinheiro estamos falando, sr. Bartholomew?
— Tenho uma oferta de vinte milhões na mesa.
— Que sabor?
— Euros.
— É uma oferta firme?
— Deixei a venda em espera para me encontrar com você.
— Que lisonjeiro. Por que faria algo assim?
— Porque ouvi falar que seu cliente, quem quer que seja, é um homem com bolsos bem grandes.
— Bem grandes. — Outro sorriso, só um pouco mais agradável que o primeiro. — Então como quer continuar, sr. Bartholomew?
— Preciso saber se está interessado em aumentar a oferta que está na mesa.
— Estou.
— Quanto mais?
— Acho que poderia oferecer algo trivial, como um adicional de quinhentos mil, mas meu cliente não gosta de leilões. — Fez uma pausa, então perguntou: — Será que
25 milhões seriam suficientes para tirar o quadro da mesa?
— Seriam, Sam.
— Excelente — falou. — Agora seria um bom momento para você me mostrar as Polaroids.
As Polaroids estavam no porta-luvas de uma Mercedes alugada estacionada em uma rua calma atrás de Notre Dame. Keller e Sam caminharam até lá juntos e entraram, Keller
atrás do volante, Sam no banco do passageiro. Keller submeteu-o a uma rápida e completa inspeção antes de abrir o porta-luvas e pegar as fotos. Eram quatro ao todo
— uma da obra inteira, três mostrando os detalhes. Sam olhou para elas cético.
— Parece o Van Gogh que está pendurado em cima da cama no meu hotel.
— Não é.
Fez uma careta para indicar que não estava convencido.
— A pintura nessa fotografia poderia ser uma cópia. E você poderia ser um trapaceiro inteligente que está querendo ganhar em cima do roubo em Amsterdã.
— Tire seus óculos escuros e dê uma olhada melhor, Sam.
— É o que pretendo. — Entregou as fotos de volta a Keller. — Preciso ver o quadro real, não fotografias.
— Não tenho um museu, Sam.
— O que quer dizer?
— Não posso mostrar o Van Gogh a qualquer um que queira vê-lo. Preciso saber se você está falando sério.
— Ofereci 25 milhões de euros em dinheiro por ele.
— É fácil oferecer 25 milhões, Sam. Entregar é outra coisa.
— Meu cliente é um homem de riqueza extraordinária.
— Então tenho certeza de que ele não lhe enviou a Paris de mãos vazias. — Keller devolveu as fotos ao porta-luvas e o trancou.
— É dessa forma que seu golpe funciona? Exige ver o dinheiro antes de mostrar o quadro e depois rouba?
— Se fosse um golpe, você e seu cliente já saberiam disso.
Não tinha respostas para aquilo.
— Não consigo mais de dez mil em dinheiro em tão pouco tempo.
— Quero ver um milhão.
Ele bufou, como se dissesse que um milhão era impossível.
— Se você quiser ver um Van Gogh por menos de um milhão — falou Keller — pode ir ao Louvre ou ao Musée d’Orsay. Mas se quiser ver o meu Van Gogh, vai ter que me
mostrar o dinheiro.
— Não é seguro andar pelas ruas de Paris com essa quantidade de dinheiro.
— Algo me diz que você sabe se cuidar muito bem.
Sam deu um suspiro capitulador.
— Onde e quando?
— Saint-Germain-des-Prés, duas da tarde. Sem amigos. Sem armas.
Sam saiu do carro sem falar nada e foi embora.
Ele cruzou o Sena para a margem direita e caminhou pela rue de Rivoli, passando a ala norte do Louvre, até o Jardin des Tuileries. Passou boa parte desse tempo no
telefone e duas vezes realizou um movimento elementar de espiões para ver se estava sendo seguido. Mesmo assim, não pareceu notar Gabriel caminhando cinquenta metros
atrás dele.
Antes de chegar a Jeu de Paume, cortou para a rue Saint-Honoré e entrou em uma loja exclusiva que vendia caros produtos de couro para homens. Saiu dez minutos depois
com uma mala nova, que carregou até uma filial do HSBC Private Bank no boulevard Haussmann. Ficou ali precisamente 22 minutos, e quando saiu, a mala parecia mais
pesada que quando tinha entrado. Ele a levou com cuidado até a Place de la Concorde e depois através da grande entrada do hôtel de Crillon. Vendo de longe, Gabriel
sorriu. Só o melhor para o representante do sr. Grandão. Enquanto se afastava, ligou para Keller e contou as novidades. O jogo tinha começado, falou. Definitivamente
o jogo tinha começado.
23
BOULEVARD SAINT-GERMAIN, PARIS
ELE ESTAVA PARADO DO LADO DE FORA DA porta vermelha da igreja às duas da tarde seguinte, com seu chapéu e óculos escuros firmemente no lugar e a nova maleta segura
na mão direita. Gabriel esperou cinco minutos antes de ligar.
— Você de novo — falou Sam desanimado.
— Infelizmente.
— E agora?
— Vamos dar outra volta.
— Para onde agora?
— Siga a rue Bonaparte até a place Saint-Sulpice. Mesmas regras da última vez. Não faça nenhuma parada e não olhe para trás. Sem ligações também.
— Até onde você pretende me levar dessa vez?
Gabriel desligou sem falar nada. Do outro lado da praça lotada, Sam começou a caminhar. Gabriel contou lentamente até vinte e o seguiu.
Deixou Sam caminhar até os Jardins de Luxemburgo antes de ligar de novo. Dali, foram para o sudoeste pela rue de Vaugirard, depois para o norte no boulevard Raspail
até a entrada do hôtel Lutetia. Keller estava sentado na mesa do bar, lendo o Telegraph. Sam se uniu a ele, como tinha sido instruído.
— Como ele foi dessa vez? — perguntou Keller.
— Tão meticuloso como sempre.
— Posso pedir algo para você beber?
— Não bebo.
— Que pena. — Keller dobrou seu jornal. — É melhor tirar esses óculos escuros, Sam. Do contrário, a gerência vai ter a impressão errada sobre você.
Ele fez o que Keller sugeriu. Seus olhos eram castanhos claros e grandes. Com o rosto exposto, era uma figura muito menos ameaçadora.
— Agora o chapéu — falou Keller. — Um cavalheiro não usa um chapéu no bar do Lutetia.
Ele tirou o chapéu, revelando uma cabeça com muito cabelo, marrom, não negro, com toques grisalhos ao redor das orelhas. Se era árabe, não era da península ou do
golfo. Keller olhou para a maleta.
— Trouxe o dinheiro?
— Um milhão, como você pediu.
— Deixe-me dar uma olhada. Mas com cuidado — acrescentou Keller. — Há uma câmera de segurança em cima do seu ombro direito.
Sam colocou a maleta na mesa, abriu os trincos e levantou a tampa dois centímetros, o suficiente para Keller dar uma olhada nas fileiras bem organizadas de notas
de cem euros.
— Pode fechar — falou Keller, em voz baixa.
Sam fechou e travou a maleta.
— Satisfeito? — perguntou ele.
— Ainda não. — Keller se levantou.
— Para onde agora?
— Meu quarto.
— Vai ter mais alguém?
— Seremos apenas nós dois, Sam. Muito romântico.
Sam se levantou e pegou a maleta.
— Acho que é importante deixar algo claro antes de subirmos.
— O que é, Sam?
— Se algo acontecer comigo ou com o dinheiro do meu cliente, você e seu amigo vão sofrer muito. — Ele colocou os óculos escuros e sorriu. — Só para nos entendermos,
querido.
No hall de entrada do quarto, longe dos olhos das câmeras de vigilância do hotel, Keller revistou Sam à procura de armas ou aparelhos de gravação. Sem encontrar
nada importante, colocou a maleta na beira da cama e abriu os trincos. Então, tirou três pacotes de dinheiro e, de cada um, uma nota. Inspecionou cada nota com lentes
de aumento profissionais; depois, no banheiro escuro, submeteu-as à lâmpada ultravioleta de Gabriel. As fitas de segurança brilharam verde limão; as notas eram genuínas.
Ele devolveu as notas a seus pacotes e estes à maleta. Então fechou os trincos e, com um aceno de cabeça, indicou que estavam prontos para passar ao próximo passo.
— Quando? — perguntou Sam.
— Amanhã à noite.
— Tenho uma ideia melhor — falou ele. — Vamos hoje à noite. Ou então, não tem acordo.
Maurice Durand tinha dito para esperarem algo assim — uma pequena jogada tática, uma rebeldia simbólica, que permitiria a Sam sentir que era ele, e não Keller, que
estava controlando o processo de negociação. Keller recusou gentilmente, mas Sam bateu o pé. Queria estar na frente do Van Gogh antes da meia-noite; se não estivesse,
ele e seus 25 milhões de euros desapareceriam. O que não deixou a Keller outra opção a não ser aceitar os desejos de seu oponente. Fez isso com um sorriso de concessão,
como se a mudança de planos fosse pouco mais que uma inconveniência. Então rapidamente estabeleceu as regras para mostrá-lo essa noite. Sam poderia tocar o quadro,
cheirar o quadro ou fazer amor com o quadro. Mas sob nenhuma circunstância poderia fotografá-lo.
— Onde e quando? — perguntou Sam.
— Vamos ligar às nove e dizer como proceder.
— Tudo bem.
— Onde você está hospedado?
— O senhor sabe exatamente onde estou hospedado, sr. Bartholomew. Vou estar no lobby do Crillon às nove da noite, sem amigos, sem armas. E diga para seu amigo não
me deixar esperando dessa vez.
Ele saiu do hotel dez minutos depois, com seu chapéu e óculos escuros, e caminhou até o HSBC Private Bank no boulevard Haussmann, onde, supostamente, devolveu o
um milhão de euros ao cofre do seu cliente. Depois, caminhou a pé até o Musée d’Orsay e passou as duas horas seguintes estudando os quadros de um tal Vincent van
Gogh. Quando saiu do museu, eram quase seis. Comeu um jantar leve em um bistrô no Champs-Élysées e depois voltou ao seu quarto no Crillon. Como prometido, estava
no lobby às nove horas em ponto, vestido com calça cinza, um pulôver negro e uma jaqueta de couro. Gabriel sabia disso porque estava sentado a poucos passos, no
bar. Esperou dois minutos depois das nove antes de ligar para o número de Sam.
— Sabe usar o metrô de Paris?
— Claro.
— Caminhe até a estação Concorde e pegue o número 12 até Marx Dormoy. O sr. Bartholomew estará esperando por você.
Sam saiu do lobby. Gabriel ficou no bar por outros cinco minutos. Então pegou seu carro com o manobrista e foi até a casa de campo na Picardia.
A estação Marx Dormoy estava localizada no oitavo Arrondissement, na rue de la Chapelle. Keller estava estacionado do outro lado da rua fumando um cigarro quando
Sam subiu a escada. Caminhou até o carro e entrou no lado do passageiro sem uma palavra.
— Onde está seu celular? — perguntou Keller.
Sam tirou do bolso do casaco e mostrou a Keller.
— Desligue e tire o chip.
Sam obedeceu. Keller pôs o carro em movimento e avançou pelo trânsito noturno.
Ele permitiu que Sam ficasse no banco do passageiro até chegarem aos subúrbios do norte. Então, parou perto de algumas árvores antes da cidade de Ézanville e mandou
que ele entrasse no porta-malas. Pegou o caminho mais longo até a Picardia, acrescentando pelo menos uma hora à viagem. Como resultado, era quase meia-noite quando
ele chegou à casa de campo. Quando Sam saiu do porta-malas, viu a silhueta de um homem parado sob a luz da lua na entrada da propriedade.
— Imagino que seja seu sócio.
Keller não respondeu. Em vez disso, levou-o até a porta traseira da propriedade e desceu um lance de escada até a adega. Encostado em uma parede, iluminado por uma
lâmpada pendurada de um fio, estava Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Vincent van Gogh. Sam ficou parado na frente dele por um longo momento
sem falar. Keller permaneceu ao seu lado.
— Então? — perguntou ele finalmente.
— Num minuto, sr. Bartholomew. Num minuto.
Finalmente, deu um passo, pegou o quadro pelas laterais e virou para examinar as marcas do museu na parte de trás da tela. Então olhou para as pontas do quadro e
fez uma careta.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Vincent era famoso por ser descuidado na forma como tratava seus quadros. Olha aqui — acrescentou ele, virando as pontas do quadro para Keller. — Ele deixou suas
digitais por todo lado.
Sam sorriu, segurou o quadro perto da luz e passou vários minutos examinando cuidadosamente as pinceladas. Em seguida, colocou-o em sua posição original e deu um
passo para trás, a fim de observar à distância. Dessa vez, Keller não interrompeu seu silêncio.
— Espetacular — falou depois de um momento.
— E real — acrescentou Keller.
— Poderia ser. Ou poderia ser o trabalho de um falsificador muito talentoso.
— Não é.
— Vou precisar realizar um teste simples para ter certeza, uma análise de lasca de tinta. Se o quadro for genuíno, fechamos negócio. Se não for, você nunca mais
vai ouvir falar de mim, deixando-o livre para empurrá-lo a um comprador menos sofisticado.
— Quanto tempo vai levar?
— Setenta e duas horas.
— Você tem 48.
— Não vai me apressar, sr. Batholomew. Nem meu cliente.
Keller hesitou antes de assentir uma vez. Usando um bisturi cirúrgico, Sam removeu com cuidado dois pequenos pedaços de tinta da tela — um da parte inferior direita,
a outra da parte inferior esquerda — e colocou-as em um frasco de vidro. Então enfiou o frasco no bolso do casaco e, seguido por Keller, subiu as escadas. Do lado
de fora, a figura em silhueta ainda estava parada na porta da casa.
— Vou conhecer seu sócio? — perguntou Sam.
— Não aconselho — respondeu Keller.
— Por que não?
— Porque seria o último rosto que você veria.
Sam franziu a testa e entrou no porta-malas da Mercedes. Keller fechou o trinco e voltou a Paris.
Eram todas operações conhecidas, cada uma de natureza específica, mas eles mais tarde diriam que os três dias seguintes passaram com a velocidade de um rio congelado.
O conhecido autodomínio de Gabriel o abandonou. Ele tinha organizado o roubo de um dos quadros mais famosos do mundo como parte de um golpe para encontrar outro;
e mesmo assim tudo poderia não dar em nada se o homem chamado Sam desistisse do negócio. Só Maurice Durand, talvez o especialista mais conhecido no comércio ilícito
de arte, continuava confiante. Em sua experiência, colecionadores sujos como o sr. Grandão raramente desistiam da chance de comprar um Van Gogh. Claro, ele falou,
a isca do Doze Girassóis numa Jarra era muito forte para resistir. A menos que Gabriel tivesse mostrado a Sam a falsificação por erro, o que não tinha, a análise
da tinta seria positiva e o negócio continuaria.
Eles tinham outra opção caso Sam desistisse; poderiam segui-lo e tentar determinar a identidade de seu cliente, o homem de grande riqueza que estava disposto a pagar
25 milhões de euros por uma obra de arte roubada. Era só uma das razões pelas quais Gabriel e Keller, dois dos homens mais experientes em vigilância do mundo, monitoraram
cada movimento de Sam durante os três dias de espera. Vigiavam de manhã enquanto ele caminhava pelos passeios de Tuileries, à tarde enquanto visitava as atrações
turísticas para manter seu disfarce e à noite quando jantava, sempre sozinho, na Champs-Élysées. A impressão que dava era de disciplina. Em algum momento de sua
vida, Keller e Gabriel concordaram, Sam tinha sido membro da irmandade secreta de espiões. Ou talvez, pensaram, ainda seja.
Na manhã do terceiro dia, ele deu um susto nos dois quando não apareceu para sua caminhada usual. Ficaram mais preocupados às quatro da tarde quando viram como ele
saía do Crillon com duas grandes malas e subia em uma limusine. Mas a preocupação rapidamente desapareceu quando o carro o levou até o HSBC Private Bank no boulevard
Haussmann. Trinta minutos depois, ele estava de volta ao seu quarto. Havia somente duas possibilidades, falou Keller. Ou Sam tinha realizado o mais silencioso roubo
de banco da história ou tinha acabado de retirar uma grande soma em dinheiro de um cofre. Keller suspeitava que fosse a segunda opção. Assim como Gabriel. Portanto,
o suspense era pouco quando chegou a hora de Sam finalmente ligar com uma resposta. Keller fez as honras. Quando a ligação terminou, ele olhou para Gabriel e sorriu.
— Podemos nunca encontrar o Caravaggio — disse ele —, mas acabamos de tirar 25 milhões de euros do sr. Grandão.
24
CHELLES, FRANÇA
MAS HAVIA UMA CONDIÇÃO: Sam se reservava o direito de escolher a hora e o lugar da troca de dinheiro e mercadoria. A hora, ele falou, seria onze e meia da noite
seguinte. O lugar seria um depósito em Chelles, uma comuna apagada no leste de Paris. Keller dirigiu até lá na manhã seguinte enquanto o resto do norte da França
estava viajando para o centro da cidade. O depósito estava onde Sam tinha dito que estaria, na avenida François Miterrand, bem em frente a uma concessionária Renault.
Havia uma placa apagada onde se lia EUROTRANZ, apesar de que não havia nenhuma indicação do tipo de serviços que a empresa realizava. Pombas entravam e saíam das
janelas quebradas; havia muitos arbustos crescendo por trás das barras do portão de ferro. Keller desceu do carro e inspecionou o portão automático. Há muito tempo
ninguém o abria.
Ele passou uma hora fazendo um reconhecimento de rotina nas ruas ao redor do depósito e depois seguiu para o norte até a casa de campo em Andeville. Quando chegou,
encontrou Gabriel e Chiara descansando no jardim ensolarado. Os dois Van Gogh estavam encostados na parede na sala.
— Ainda não sei como você consegue diferenciar um do outro — falou Keller.
— É bastante óbvio, não acha?
— Não.
Gabriel inclinou a cabeça para o quadro da direita.
— Tem certeza?
— Estas são minhas digitais nas laterais da tela, não as de Vincent. E tem isso.
Gabriel ligou seu BlackBerry do Escritório e o segurou perto do canto superior direito da tela. A tela piscou vermelha, indicando a presença de um transmissor escondido.
— Tem certeza da distância? — perguntou Keller.
— Testei de novo essa manhã. Funciona perfeitamente a dez quilômetros.
Keller olhou para o Van Gogh genuíno.
— Pena que ninguém pensou em colocar um rastreador nesse.
— É — falou Gabriel, distante.
— Quanto tempo você pensa ficar com ele?
— Nem um dia a mais do que o necessário.
— Quem vai guardá-lo enquanto seguimos a falsificação?
— Estava querendo deixá-lo na embaixada em Paris — falou Gabriel —, mas o chefe de estação não quer nem saber. Então tive que organizar outra coisa.
— Que coisa?
Quando Gabriel respondeu, Keller balançou a cabeça.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller sorriu.
— Nem me fale.
Eles deixaram a exótica casa de campo pela última vez às oito da noite. A cópia do Doze Girassóis numa Jarra estava no porta-malas da Mercedes de Keller; o Van Gogh
autêntico estava no de Gabriel. Ele o entregou a Maurice Durand em sua loja na rue de Miromesnil. Então deixou Chiara no apartamento seguro com vista para Pont Marie
e partiu para a comuna de Chelles.
Chegou alguns minutos antes das onze e foi até o depósito na avenida François Mitterrand. Era uma parte da cidade onde havia pouca vida nas ruas quando escurecia.
Ele circulou duas vezes a propriedade, procurando evidências de vigilância ou algo que sugeria que Keller estava a ponto de cair em uma armadilha. Sem encontrar
nada fora do comum, procurou um bom ponto de observação onde um homem sentado sozinho não atrairia a atenção da polícia. A única opção era um parque onde uns skatistas
estavam bebendo cerveja. De um lado do parque havia uma fileira de bancos iluminados por lâmpadas amareladas. Gabriel estacionou o carro na rua e se sentou no banco
mais perto da entrada da Eurotranz. Os skatistas olharam para ele estranhando por um momento antes de voltarem a discutir as questões do dia. Gabriel olhou para
seu relógio. Eram 11h05. Aí consultou seu BlackBerry. O sinal ainda não estava dentro do alcance.
Erguendo a cabeça, viu os faróis de um carro na avenida. Um pequeno Citröen vermelho passou pela entrada da Eurotranz e seguiu pela beira do parque, deixando a vibração
do hip-hop francês no ar. Atrás vinha outro carro, uma BMW preta tão limpa que parecia ter sido recentemente lavada para a ocasião. Parou no portão e o motorista
desceu. No escuro era impossível ver seu rosto, mas pela constituição e movimento era um sósia de Sam.
Ele apertou o teclado algumas vezes com a confiança de um homem que conhece a combinação há muito tempo. Então voltou a subir no carro, esperou o portão abrir, e
entrou. Parou enquanto o portão se fechava e depois foi até a entrada do depósito. Novamente, desceu do carro e apertou o teclado de segurança com uma velocidade
que sugeria familiaridade. Quando a porta se abriu, ele entrou com o carro e desapareceu de vista.
No pequeno parque escuro, a chegada de um carro de luxo em um depósito abandonado na avenida François Mitterand passou despercebida por todo mundo, exceto pelo homem
de meia idade sentado sozinho. O homem olhou para seu relógio e viu que eram 23h08. Aí consultou seu BlackBerry. A luz vermelha estava piscando e vindo em sua direção.
Keller chegou exatamente às onze e meia da noite. Ligou para o celular de Sam e o portão se abriu. Um caminho de asfalto com buracos se abria na frente dele, vazio,
escuro. Ele avançou lentamente e, seguindo as instruções de Sam, embicou o carro no depósito. Do lado oposto de um espaço do tamanho de um campo de futebol brilhavam
os faróis baixos de uma BMW. Keller podia ver a figura de um homem inclinado sobre o capô, com um telefone ao ouvido e duas grandes malas aos pés. Não havia mais
ninguém visível.
— Pare aí — falou Sam.
Keller pisou no freio.
— Desligue o motor e apague os faróis.
Keller fez como instruído.
— Saia do carro e fique onde eu possa vê-lo.
Keller saiu devagar e ficou parado na frente do carro. Sam enfiou a mão dentro da BMW e acendeu os faróis.
— Tire seu casaco.
— Isso é realmente necessário?
— Quer o dinheiro ou não?
Keller tirou seu casaco e o jogou sobre o capô do carro.
— Vire-se e fique de frente para o carro.
Keller hesitou, depois se virou de costas para Sam.
— Muito bom.
Keller se virou devagar e encarou Sam de novo.
— Onde está o quadro?
— No porta-malas.
— Pegue-o e coloque no chão alguns metros na frente do carro.
Keller abriu o porta-malas e tirou o quadro. Estava envolvido com uma camada protetora de papel vegetal e escondido dentro de um saco de lixo comum. Colocou no chão
de concreto do depósito a uns cinco metros na frente da Mercedes e esperou pela próxima instrução de Sam.
— Volte para seu carro — veio a voz do lado oposto do depósito.
— De jeito nenhum — respondeu Keller para o brilho dos faróis de Sam.
Ocorreu um breve impasse. Então Sam se aproximou. Parou a poucos metros de Keller, olhou para o chão e franziu a testa.
— Preciso vê-lo mais uma vez.
— Então sugiro que remova o envoltório de plástico. Mas eu seria cuidadoso, Sam. Se algo acontecer com esse quadro, você será o responsável.
Sam se agachou e removeu o quadro de dentro do saco. Então virou a imagem na direção dos faróis de seu carro e observou as pinceladas e a assinatura.
— Então? — perguntou Keller.
Sam olhou para as digitais na lateral da moldura, depois para as marcas do museu na parte de trás.
— Um minuto — falou baixinho. — Um minuto.
O carro de Keller saiu do depósito às 23h40. O portão estava aberto quando ele chegou. Virou para a direita e passou rápido pelo banco onde Gabriel estava sentado.
Gabriel o ignorou; estava olhando os faróis traseiros de uma BMW que se movia pela avenida François Mitterand. Olhou para o BlackBerry e sorriu. Tinha funcionado,
ele pensou. Tinha realmente funcionado.
A luz vermelha piscava com a regularidade de uma pulsação. Flutuou pelos subúrbios de Paris e depois correu para o leste pela A4 até Reims. Gabriel seguia um quilômetro
atrás e Keller um quilômetro atrás de Gabriel. Eles falaram por telefone só uma vez, uma breve conversa durante a qual Keller confirmou que o negócio tinha sido
concretizado. Sam tinha o quadro; Keller tinha o dinheiro de Sam. Estava escondido no porta-malas do carro, dentro do saco de lixo que Gabriel tinha colocado ao
redor da cópia do Doze Girassóis numa Jarra. Tudo exceto por um único pacote de notas de cem euros, que estava no bolso do casaco de Keller.
— Por que isso está no seu bolso? — perguntou Gabriel.
— Dinheiro para a gasolina — respondeu Keller.
Cento e vinte quilômetros separavam os subúrbios do leste de Paris de Reims, uma distância que Sam cobriu em menos de uma hora. Pouco depois da cidade, a luz vermelha
parou de repente na A4. Gabriel rapidamente o alcançou e viu Sam enchendo o tanque do carro em um posto da estrada. Imediatamente ligou para Keller e mandou que
encostasse; depois esperou até Sam voltar à estrada. Em poucos minutos, os três carros tinham retomado a formação original. Sam na frente, Gabriel seguindo um quilômetro
atrás de Sam e Keller seguindo um quilômetro atrás de Gabriel.
Depois de Reims, eles continuaram para o leste, passando por Verdun e Metz. Então a A4 virou para o sul levando todos até Estrasburgo, a capital da região da Alsácia
da França e sede do Parlamento Europeu. Na beira da cidade fluíam as águas verde-escuras do Reno. Alguns minutos depois do nascer do sol, 25 milhões de euros em
dinheiro e uma cópia de uma obra-prima roubada de Vincent van Gogh cruzaram para a Alemanha sem serem detectados.
A primeira cidade do lado alemão da fronteira era Kehl e depois de Kehl estava a autobahn A5. Sam seguiu até Karlsruhe; então entrou na A8 e se dirigiu a Stuttgart.
Quando chegou aos subúrbios do sul, o rush da manhã estava no auge. Ele cruzou lentamente a cidade pela Hauptstätterstrasse e abriu caminho por Stuttgart-Mitte,
um agradável distrito de escritórios e lojas no coração da metrópole. Gabriel sentiu que Sam estava perto de seu destino final, e se aproximou alguns metros. E então
aconteceu a coisa que ele menos esperava.
A luz vermelha piscante desapareceu de sua tela.
De acordo com o BlackBerry de Gabriel, a luzinha brilhou pela última vez no número oito da Böheimstrasse. O endereço correspondia a um hotel de estuque cinza que
parecia ter sido importado de Berlim Oriental durante os piores dias da Guerra Fria. Nos fundos do hotel, que davam a um beco, havia um estacionamento público. A
BMW estava no último nível, em um canto onde a lâmpada havia sido quebrada. Sam estava caído sobre o volante, os olhos bem abertos, sangue e pedaços do cérebro espalhados
por dentro do vidro. E Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon, tinha desaparecido.
25
GENEBRA
ELES FORAM EMBORA DE Stuttgart PELA mesma rota que tinham entrado e cruzaram de volta para a França em Estrasburgo. Keller foi para a Córsega; Gabriel, para Genebra.
Ele chegou no meio da tarde e imediatamente ligou para Christoph Bittel de um telefone público perto do lago. O membro da polícia secreta não pareceu gostar de ouvir
sua voz tão cedo. Ficou ainda menos feliz quando Gabriel explicou por que tinha voltado à cidade.
— De jeito nenhum — falou ele.
— Então acho que terei de contar ao mundo sobre todos esses quadros roubados que encontrei naquele cofre.
— Lá se foi o novo Gabriel Allon.
— A que horas nos encontramos, Bittel?
— Vou ver o que posso fazer.
Bittel demorou uma hora para limpar sua mesa na sede da NDB e outras duas horas para dirigir de Berna a Genebra. Gabriel estava esperando por ele em uma esquina
cheia de gente na rue du Rhône. Passava um pouco das seis. Pequenos bancários suíços estavam saindo dos bonitos edifícios de escritórios; lindas garotas e estrangeiros
astutos estavam entrando nos cafés animados. Tudo muito organizado. Até assassinos em massa se comportavam direito quando estavam em Genebra.
— Você ia me dizer por que devo abrir aquele cofre para você — falou Bittel enquanto voltava a enfrentar o trânsito com seu usual excesso de cuidado.
— Porque a operação em que estou envolvido está com um problema.
— Que tipo de problema?
— Um cadáver.
— Onde?
Gabriel hesitou.
— Onde? — perguntou Bittel de novo.
— Stuttgart — respondeu Gabriel.
— O árabe que levou um tiro na cabeça essa manhã no centro da cidade?
— Quem falou que era um árabe?
— O BfV.
O BfV era o serviço de segurança interno da Alemanha. Mantinha relações próximas com seu irmão germanófilo em Berna.
— Quanto sabem sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Quase nada e foi por isso que entraram em contato conosco. Parece que os assassinos levaram sua carteira depois de atirarem.
— Não foi tudo que levaram.
— Você é responsável pela morte dele?
— Não tenho certeza.
— Deixe-me perguntar de outra forma, Allon. Você colocou uma arma na cabeça dele e puxou o gatilho?
— Não seja ridículo.
— Não é uma pergunta absurda. Afinal, você tem um histórico quando se trata de cadáveres em solo europeu.
Gabriel não falou nada.
— Sabe o nome do homem que estava dentro do carro?
— Ele se chamava Sam, mas tenho a sensação de que seu nome verdadeiro era Samir.
— Sobrenome?
— Nunca me falou.
— Passaporte?
— Ele falava francês muito bem. Se tivesse que adivinhar, acho que era do Levante.
— Líbano?
— Talvez. Ou talvez Síria.
— Por que ele foi morto?
— Não tenho certeza.
— Pode fazer melhor que isso, Allon.
— É possível que estivesse de posse de um quadro que se parecia muito com o Doze Girassóis numa Jarra, de Vincent van Gogh.
— O que foi roubado de Amsterdã?
— Emprestado — falou Gabriel.
— Quem pintou a falsificação?
— Eu.
— Por que Sam estava com ele?
— Eu o vendi por 25 milhões de euros.
Bittel respirou fundo.
— Você me perguntou, Bittel.
— Onde está o quadro?
— Qual quadro?
— O Van Gogh verdadeiro — respondeu Bittel.
— Em mãos seguras.
— E o dinheiro?
— Em mãos ainda mais seguras.
— Por que você roubou um Van Gogh e vendeu uma cópia a um árabe chamado Sam?
— Porque estou procurando um Caravaggio.
— Para quem?
— Os italianos.
— Por que um agente da inteligência israelense está procurando um quadro para os italianos?
— Porque ele acha difícil dizer não às pessoas.
— E se eu puder colocá-lo naquele cofre? O que você espera encontrar?
— Para ser honesto com você, Bittel, não tenho ideia.
Bittel respirou fundo e pegou seu telefone.
Fez duas ligações, uma atrás da outra. A primeira foi para sua linda amiga no Freeport. A segunda foi para um arrombador que ocasionalmente fazia favores para a
NDB na área de Genebra. A mulher estava esperando no portão quando eles chegaram; o arrombador apareceu uma hora mais tarde. Seu nome era Zimmer. Tinha um rosto
redondo e suave, junto com o olhar assustado de um animal empalhado. Sua mão era tão fina e macia que Gabriel a soltou rapidamente, com medo de machucá-lo.
Tinha em seu poder uma mala retangular pesada de couro escuro, que agarrava firme enquanto seguia Bittel e Gabriel pela porta externa do depósito de Jack Bradshaw.
Se notou os quadros, não deu nenhum sinal disso; tinha olhos somente para o pequeno cofre perto da mesa. Havia sido construído por um fabricante alemão de Colônia.
Zimmer franziu a testa, como se esperasse algo mais desafiador.
O arrombador, como o restaurador de arte, não gostava que as pessoas ficassem olhando enquanto ele trabalhava. Por isso, Gabriel e Bittel foram forçados a se confinar
na sala interior do depósito que Yves Morel tinha usado como estúdio clandestino. Eles se sentaram no chão, encostados na parede e com as pernas esticadas. Era óbvio
pelos sons que vinham da porta aberta que Zimmer estava usando uma técnica conhecida como perfuração do ponto fraco. O ar tinha cheiro de metal quente. Lembrava
a Gabriel o cheiro de uma arma recentemente usada. Olhou para seu relógio e franziu a testa.
— Quanto tempo isso vai demorar? — perguntou ele.
— Alguns cofres são mais fáceis que outros.
— É por isso que sempre preferi uma carga bem colocada de explosivo plástico. Semtex é um grande equalizador.
Bittel tirou seu celular e foi repassando sua caixa de e-mails; Gabriel ficou mexendo na paleta de tintas de Yves Morel: ocre, dourado, vermelho... Finalmente, uma
hora depois que Zimmer começou a trabalhar, ouviu um forte barulho metálico na sala ao lado. O arrombador apareceu na porta, segurando sua mala de couro negro, e
acenou uma vez para Bittel.
— Acho que sei como ir embora — falou. E desapareceu.
Gabriel e Bittel ficaram de pé e foram até a sala ao lado. A porta do cofre estava um pouco aberta, um dedo, nada mais. Gabriel se aproximou, mas Bittel o impediu.
— Eu faço isso — disse ele.
Mandou Gabriel dar um passo para trás. Então abriu a porta do cofre e deu uma olhada no interior. Estava vazio, exceto por um envelope branco. Bittel o pegou e leu
o nome escrito na frente.
— O que é isso? — perguntou Gabriel.
— Parece ser uma carta.
— Para quem?
Bittel entregou a Gabriel e falou:
— Para você.
Parecia mais um memorando do que uma carta, um relatório pós-ação em campo escrito por um espião caído com problemas de consciência por sua traição. Gabriel leu
duas vezes, a primeira enquanto estava no depósito de Jack Bradshaw, e uma segunda vez enquanto estava sentado no salão de embarque do Aeroporto Internacional de
Genebra. Seu voo foi anunciado alguns minutos depois das nove, primeiro em francês, depois em inglês e, finalmente, em hebraico. O som de seu idioma nativo acelerou
sua pulsação. Ele enfiou a carta em sua mala de mão, levantou-se e embarcou no avião.
PARTE TRÊS
A JANELA ABERTA
26
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
O EDIFÍCIO COMERCIAL QUE FICAVA numa ponta do Boulevard Rei Saul era opaco, sem nenhuma característica e, melhor de tudo, anônimo. Não havia nenhum emblema pendurado
na entrada, nenhuma placa que mostrasse a identidade de seu ocupante. Na verdade, não havia nada para sugerir que era a sede de um dos serviços de inteligência mais
temidos e respeitados do mundo. Uma inspeção mais de perto da estrutura, no entanto, teria revelado a existência de um prédio dentro do prédio, com seu próprio fornecimento
de energia, suas próprias linhas de água e esgoto, e seu próprio sistema de comunicações seguras. Os funcionários carregavam duas chaves. Uma abria uma porta sem
nenhuma marca no lobby, a outra operava o elevador. Aqueles que cometiam o imperdoável pecado de perder uma ou as duas chaves eram banidos para o deserto da Judeia,
e nunca mais eram vistos ou citados.
Havia alguns funcionários que eram muito importantes ou cujo trabalho era muito confidencial para aparecer no lobby. Eles entravam no prédio “preto” através do estacionamento
no subsolo, como Gabriel fez trinta minutos depois que seu avião de Genebra aterrissou no aeroporto Ben-Gurion. Sua caravana incluía um veículo cheio de uma equipe
de segurança fortemente armada. Ele pensou que era um sinal do que estava por vir.
Dois dos agentes de segurança o seguiram até o elevador, que o levou até o andar mais alto do prédio. Do lobby, ele atravessou uma porta protegida até uma antessala
onde uma mulher com quase quarenta anos estava sentada atrás de uma mesa moderna com uma superfície negra brilhante. A mesa só tinha um abajur e um telefone multilinhas
seguro; a mulher tinha longas pernas queimadas de sol. Dentro do Boulevard Rei Saul ela era conhecida como a Cúpula de Ferro por sua habilidade imbatível de evitar
pedidos indesejados por uma palavra com o chefe. Seu nome verdadeiro era Orit.
— Está em uma reunião — falou ela, olhando para a luz vermelha brilhando em cima da impressionante porta dupla do chefe. — Sente-se. Não vai demorar.
— Ele sabe que estou no prédio?
— Sabe.
Gabriel se sentou no que era possivelmente o sofá mais desconfortável de todo Israel e olhou para a luz vermelha brilhando sobre a porta. Então olhou para Orit,
que sorriu, desconfortável.
— Posso servir algo? — perguntou ela.
— Um aríete — respondeu Gabriel.
Finalmente, a luz mudou de vermelho para verde. Gabriel se levantou rapidamente e entrou no escritório enquanto os participantes da reunião agora adiada saíam por
uma segunda porta. Reconheceu dois deles. Uma era Rimona Stern, a chefe do programa nuclear do Irã do Escritório. O outro era Mikhail Abramov, um agente de campo
e atirador que tinha trabalhado com Gabriel em várias operações de extrema importância. O terno que estava usando sugeria uma promoção recente.
Quando a porta se fechou, Gabriel se virou lentamente para encarar o único outro ocupante da sala. Estava parado perto de uma grande mesa de vidro escuro, uma pasta
aberta nas mãos. Usava um terno cinza que parecia um número menor e uma camisa branca com um colarinho alto que deixava a impressão de que sua cabeça estava parafusada
em seus fortes ombros. Seus óculos eram pequenos e sem aro, do tipo usado por executivos alemães que queriam parecer jovens e na moda. Seu cabelo, ou o que sobrara
dele, era espetado e grisalho.
— Desde quando Mikhail participa de reuniões na sala do chefe? — perguntou Gabriel.
— Desde que dei uma promoção a ele — respondeu Uzi Navot.
— A quê?
— Vice-chefe de Operações Especiais. — Navot colocou a pasta na mesa e sorriu, sem sinceridade. — Tudo bem se fizer movimentos de pessoal, Gabriel? Afinal, ainda
sou o chefe por mais um ano.
— Tinha planos para ele.
— Que tipo de planos?
— Na verdade, ia colocá-lo como responsável de Operações Especiais.
— Mikhail? Ele não está pronto, ainda falta muito.
— Ele vai ficar bem, desde que tenha um planejador operacional experiente olhando sobre o seu ombro.
— Alguém como você?
Gabriel ficou em silêncio.
— E eu? — perguntou Navot. — Já decidiu o que vai fazer?
— Isso depende totalmente de você.
— É óbvio que não.
Navot largou a pasta na mesa e apertou um botão do seu painel de controle que fez descer as venezianas lentamente sobre as janelas à prova de bala que iam do chão
ao teto. Ficou ali por um momento em silêncio, como se estivesse preso pelas barras de sombras. Gabriel vislumbrou um retrato desagradável de seu próprio futuro,
um homem cinzento em uma jaula cinzenta.
— Preciso admitir — falou Navot —, tenho muita inveja de você. O Egito está à beira da guerra civil, a al-Qaeda está controlado uma faixa de terra que vai de Faluja
ao Mediterrâneo, e um dos conflitos mais sangrentos da história moderna está acontecendo na nossa fronteira norte. E mesmo assim você tem tempo para ficar procurando
uma obra roubada para o governo italiano.
— Não foi ideia minha, Uzi.
— Poderia ter, pelo menos, mostrado a cortesia de pedir minha aprovação quando os carabinieri o procuraram.
— Teria dado?
— Claro que não.
Navot caminhou lentamente por sua longa mesa de reuniões executivas até a área de estar, mais confortável. As redes de televisão do mundo apareciam silenciosamente
em sua parede de vídeos; os jornais do mundo estavam organizados na mesa de café.
— A polícia europeia esteve bem ocupada ultimamente — falou ele. — Um expatriado britânico assassinado em lago Como, uma obra roubada de Van Gogh, e agora isso.
— Ele pegou uma cópia do Die Welt e entregou para que Gabriel visse. — Um árabe morto no meio de Stuttgart. Três eventos aparentemente desconectados com uma coisa
em comum. — Navot deixou o jornal cair sobre a mesa. — Gabriel Allon, o futuro chefe do serviço de inteligência de Israel.
— Duas coisas, na verdade.
— Qual é a segunda?
— LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— O pior homem do mundo.
— Ele está na folha de pagamento do Escritório?
— Não, Uzi — falou Gabriel, sorrindo. — Ainda não.
Navot conhecia em linhas gerais a busca de Gabriel pelo Caravaggio perdido, pois tinha acompanhado à distância: reservas de viagens aéreas, gastos de cartão de crédito,
passagens de fronteira, pedidos de propriedades seguras, notícias de uma obra desaparecida. Agora, sentado na sala que logo seria dele, Gabriel completou a narrativa,
começando com as reuniões com o general Ferrari em Veneza e terminando com a morte de um homem chamado Sam em Stuttgart — um homem que tinha acabado de pagar 25
milhões de euros por Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon. Então, ele entregou as três páginas da carta que Jack Bradshaw tinha
deixado para ele no Freeport de Genebra.
— O nome verdadeiro de Sam era Samir Basara. Bradshaw o conheceu quando estava trabalhando em Beirute. Samir era um clássico vigarista. Drogas, armas, garotas, todas
as coisas que faziam a vida mais interessante em um lugar como Beirute nos anos 1980. Mas na verdade, Samir não era libanês. Samir era da Síria, e estava trabalhando
para a inteligência síria.
— Estava trabalhando para eles quando foi morto?
— Com certeza — respondeu Gabriel.
— Fazendo o quê?
— Comprando arte roubada.
— De Jack Bradshaw?
Gabriel assentiu.
— Samir e Bradshaw renovaram seu relacionamento há 14 meses em um almoço em Milão. Samir tinha uma proposta de negócios. Disse que tinha um cliente, um empresário
rico do Oriente Médio que estava interessado em adquirir quadros. Em poucas semanas, Bradshaw usou seus contatos no submundo da arte para assegurar um Rembrandt
e um Monet, sendo que os dois tinham sido roubados. Isso não incomodava Samir. Na verdade, ele gostava disso. Deu a Bradshaw cinco milhões de dólares e o mandou
encontrar mais.
— Como ele pagava pelos quadros?
— Enviava o dinheiro para a empresa de Bradshaw através de algo chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— Vou chegar lá — falou Gabriel.
— Por que Sam queria quadros roubados?
— Também vou chegar lá. — Gabriel olhou para a carta. — Nesse ponto, Jack Bradshaw começou a comprar loucamente para seu novo cliente cheio de dinheiro. Uns Renoir,
um Matisse, um Corot que foi roubado do Museu de Belas Artes de Montreal, em 1972. Ele também adquiriu vários quadros italianos importantes que não deveriam deixar
o país. Samir ainda não estava satisfeito. Disse que seu cliente queria algo grande. Foi quando Bradshaw sugeriu o Santo Graal dos quadros desaparecidos.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Onde estava?
— Ainda na Sicília, nas mãos da Cosa Nostra. Bradshaw foi a Palermo e negociou o acordo. Depois de todos esses anos, os mafiosos realmente ficaram felizes por se
livrar dele. Bradshaw o levou à Suíça em um carregamento de tapetes. Não é preciso dizer que o retábulo não estava em boas condições quando chegou. Ele aceitou cinco
milhões de euros como adiantamento de Samir e contratou um falsificador francês para tornar a Natividade apresentável de novo. Mas algo aconteceu antes que pudesse
completar a venda.
— O quê?
— Ele descobriu quem estava comprando os quadros.
— Quem era?
Antes de responder, Gabriel voltou a uma pergunta que Navot tinha feito alguns minutos antes: por que o cliente rico de Samir Basara estava no mercado de quadros
roubados? Para responder isso, Gabriel primeiro explicou as quatro categorias básicas de ladrões de arte: o amante de arte sem dinheiro, o perdedor incompetente,
o profissional e o membro do crime organizado. O membro do crime organizado, ele falou, era responsável pelos grandes roubos. Às vezes ele tinha um comprador à espera,
mas geralmente os quadros roubados terminavam sendo usados como uma forma de dinheiro no submundo, um traveler check para a classe criminosa. Um Monet, por exemplo,
poderia ser usado como pagamento colateral para um envio de armas russas; um Picasso, por heroína turca. Eventualmente, alguém na rede de posse decidiria obter lucro,
normalmente com a ajuda de um intermediário especialista como Jack Bradshaw. Um quadro que vale duzentos milhões de dólares no mercado legítimo valeria vinte milhões
no mercado negro. Vinte milhões que nunca seriam rastreados, acrescentou Gabriel. Vinte milhões que nunca seriam congelados pelos governos dos Estados Unidos e da
União Europeia.
— Vê onde estou chegando com isso, Uzi?
— Quem é? — perguntou Navot de novo.
— É um homem que está por trás de uma terrível guerra civil, um homem que está acostumado a torturar sistematicamente, a criar barragens de artilharia indiscriminada
e ataques de armas químicas contra seu próprio povo. Viu Hosni Mubarak ser colocado em uma jaula e Muammar Gaddafi ser linchado por uma multidão louca por sangue.
Como resultado, está preocupado com o que poderia acontecer se caísse, e é por isso que pediu a Samir Basara para preparar um pequeno ninho para ele e sua família.
— Está dizendo que Jack Bradshaw estava vendendo quadros roubados para o presidente da Síria?
Gabriel levantou o rosto para as imagens piscando na parede de vídeos de Navot. O regime tinha acabado de atacar um bairro dominado por rebeldes em Damasco. O número
de mortos era incalculável.
— O dirigente sírio e seu clã valem bilhões — falou Navot.
— É verdade — respondeu Gabriel. — Mas os norte-americanos e a UE estão congelando seus bens e os de seus ajudantes mais próximos onde conseguem encontrá-los. Até
a Suíça congelou centenas de milhões de bens sírios.
— Mas grande parte da fortuna ainda está aí, em algum lugar.
— Por enquanto — falou Gabriel.
— Por que não barras de ouro ou cofres cheios de dinheiro? Por que quadros?
— Imagino que ele tenha ouro e dinheiro, também. Afinal, como qualquer assessor de investimentos diria, a diversidade é a chave para o sucesso a longo prazo. Mas
se fosse eu assessorando o presidente sírio — acrescentou Gabriel —, diria para investir em bens que são fáceis de esconder e transportar.
— Quadros? — perguntou Navot.
Gabriel assentiu.
— Se ele compra um quadro por cinco milhões no mercado negro, pode vender por quase o mesmo preço, menos comissões para o intermediário, claro. É um preço menor
a pagar para ter dezenas de milhões em dinheiro não rastreável.
— Engenhoso.
— Ninguém os acusou de serem estúpidos, só cruéis e brutais.
— Quem matou Samir Basara?
— Se eu tivesse que adivinhar, foi alguém que o conhecia. — Gabriel parou, depois acrescentou: — Alguém que estava sentado no banco de trás do carro quando puxou
o gatilho.
— Alguém da inteligência síria?
— É normalmente assim que funciona.
— Por que o mataram?
— Talvez soubesse muito. Ou talvez tenham ficado bravos com ele.
— Por quê?
— Por deixar que Jack Bradshaw descobrisse sobre as finanças pessoais da família dirigente.
— Quanto ele sabia?
Gabriel pegou a carta e falou:
— Bastante, Uzi.
27
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
– O QUE VOCÊ ACHA QUE BRADSHAW fez com o Caravaggio?
— Ele deve ter levado de volta a sua villa no lago Como — respondeu Gabriel. — Então, pediu a Oliver Dimbleby vir à Itália para dar uma olhada em sua coleção. Foi
uma falcatrua, uma operação inteligente concebida por um ex-espião britânico. O que ele realmente queria era que Oliver entregasse uma mensagem a Julian Isherwood
que, por sua vez, a entregaria a mim. Não saiu como planejado. Oliver enviou Julian a Como em seu lugar. E quando chegou, Bradshaw estava morto.
— E o Caravaggio desapareceu?
Gabriel assentiu.
— Por que Bradshaw queria contar a você sobre a conexão com o presidente sírio?
— Suponho que ele pensou que eu iria lidar com o assunto com discrição.
— E o que isso quer dizer?
— Eu não diria à polícia britânica ou italiana que ele era um ladrão e um intermediário — respondeu Gabriel. — Estava esperando encontrar-se comigo. Mas também tomou
a precaução de colocar tudo que sabia por escrito dentro do cofre no Freeport.
— Junto com alguns quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— Por que a súbita mudança de ideia? Por que não pegar o dinheiro sujo de sangue do dirigente e ir rindo até o banco?
— Nicole Devereaux.
Navot apertou os olhos, pensativo.
— Por que esse nome me é familiar?
— Ela era a fotógrafa da AFP que foi sequestrada e morta em Beirute nos anos 1980 — falou Gabriel. Então contou a Navot o resto da história: o caso amoroso, o recrutamento
pela KGB, meio milhão em uma conta de banco suíço. — Bradshaw nunca se perdoou pela morte de Nicole — acrescentou ele. — E certamente nunca perdoou o regime sírio
por matá-la.
Navot ficou em silêncio por um momento.
— Seu amigo Jack Bradshaw fez várias besteiras durante sua vida — falou finalmente. — Mas a coisa mais idiota que já fez foi aceitar cinco milhões de euros da família
governante da Síria por um quadro que não conseguiu entregar. Só há uma coisa que a família odeia mais do que deslealdade: pessoas que tentam roubá-los.
Navot assistia às imagens que passavam na parede de vídeo.
— Na minha opinião — falou ele —, é disso que se trata esse exercício inteiro de depravação humana. Cento e cinquenta mil mortos e milhões de pessoas sem lugar para
morar. E para quê? Por que a família do governante está se agarrando a isso como se não houvesse amanhã? Por que estão praticando assassinato em escala industrial?
Pela fé deles? Pelo ideal sírio? Não existe ideal sírio. Francamente, não existe mais Síria. E mesmo assim as mortes acontecem por um motivo, e apenas um motivo.
— Dinheiro — falou Gabriel.
Navot assentiu lentamente.
— Você parece ter uma visão especial sobre a situação da Síria, Uzi.
— Por acaso sou casado com uma conceituada especialista sobre a Síria e o movimento baathista. — Ele parou, então acrescentou: — Mas você já sabia isso.
Navot levantou, caminhou até o aparador e serviu uma xícara de café da garrafa térmica. Gabriel notou a ausência de creme ou biscoitos amanteigados, duas coisas
que Navot não conseguia resistir. Ele bebia seu café preto agora, sem nenhum acompanhamento a não ser uma pastilha de adoçante branco, que colocou em sua xícara
de um recipiente plástico.
— Desde quando você coloca cianeto no seu café, Uzi?
— Bella quer que eu perca o vício em açúcar. Em seguida, será a cafeína.
— Não consigo imaginar esse trabalho sem cafeína.
— Logo vai descobrir.
Navot sorriu mesmo sem vontade e voltou para sua cadeira. Gabriel estava olhando os monitores de vídeo. O corpo de uma criança — menino ou menina, era impossível
dizer — estava sendo retirado do meio dos escombros. Uma mulher estava em prantos. Um homem barbudo clamava por vingança.
— Quanto há? — perguntou ele.
— Dinheiro?
Gabriel assentiu.
— Dez bilhões é o número que aparece na imprensa — respondeu Navot —, mas achamos que o número real é muito maior. E é todo controlado por Kemel al-Farouk. — Navot
olhou de canto de olho para Gabriel e perguntou: — Conhece o nome?
— A Síria não é minha área de especialização, Uzi.
— Logo será. — Navot deu outro sorriso apagado antes de continuar. — Kemel não é um membro da família dirigente, mas esteve trabalhando nos negócios da família por
toda sua vida. Começou como guarda-costas do pai do dirigente. Kemel recebeu uma bala pelo velho no final dos anos setenta e o pai do dirigente nunca esqueceu isso.
Deu a Kemel um bom trabalho na Mukhabarat, onde ele ganhou uma reputação como interrogador terrível de prisioneiros políticos. Costumava pregar membros da Irmandade
Muçulmana na parede por diversão.
— Onde ele está agora?
— Seu título oficial é vice-ministro de Estado para Relações Exteriores, mas em muitos aspectos é quem está dirigindo o país e a guerra. O dirigente nunca toma decisões
sem falar primeiro com Kemel. E, talvez mais importante, Kemel é quem está cuidando do dinheiro. Ele colocou uma parte da fortuna em Moscou e Teerã, mas de jeito
nenhum confiaria totalmente nos russos e nos iranianos. Achamos que ele tem alguém trabalhando na Europa Ocidental escondendo os bens. O que não sabemos — falou
Navot —, é quem é essa pessoa ou onde está escondendo o dinheiro.
— Graças a Jack Bradshaw, agora sabemos que parte dele está na LXR Investments. E podemos usar a LXR como janela para ver o resto do dinheiro da família.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio. Navot assistia a outro corpo sendo retirado dos escombros em Damasco.
— É duro para os israelenses verem cenas como essa — falou depois de um momento. — Nos deixa incomodados. Traz más recordações. Nosso instinto natural é matar o
monstro antes que o monstro possa fazer mais danos. Mas o Escritório e a IDF concluíram que é melhor deixar o monstro no lugar, pelo menos por enquanto, porque a
alternativa poderia ser pior. E os norte-americanos e os europeus chegaram à mesma conclusão, apesar de todas as conversações otimistas sobre a negociação de um
acordo. Ninguém quer que a Síria caia nas mãos da al-Qaeda, mas isso é o que vai acontecer se a família governante cair.
— Boa parte da Síria já é controlada pela al-Qaeda.
— Verdade — concordou Navot. — E o contágio está se espalhando. Há algumas semanas, uma delegação de chefes de inteligência europeu foi a Damasco com uma lista de
seus cidadãos muçulmanos que vieram à Síria se unir à jihad. Eu poderia ter dado a eles mais alguns nomes, mas não fui convidado para a festa.
— Que surpresa.
— Provavelmente foi melhor não ter ido. Na última vez que estive em Damasco, viajei sob um nome falso.
— Quem?
— Vincent Laffont.
— O escritor de guias de viagem.
Navot assentiu.
— Sempre foi um dos meus favoritos — disse Gabriel.
— Meu também. — Navot colocou sua xícara de café na mesa. — O Escritório nunca evitou se comprometer com crimes estranhos a serviço de uma operação moral e justa.
Mas se atropelarmos o sistema bancário internacional, as repercussões podem ser desastrosas.
— A família governante síria não teve acesso a esses bens honestamente, Uzi. Já estão saqueando a economia por duas gerações.
— Isso não significa que podemos roubá-las.
— Não — falou Gabriel com um remorso fingido. — Isso seria errado.
— Então, o que está sugerindo?
— Congelarmos os bens.
— Como?
Gabriel sorriu e falou:
— Ao estilo do Escritório.
— Que tal nossos amigos em Langley? — perguntou Navot quando Gabriel tinha terminado de explicar.
— O que tem?
— Não podemos lançar uma operação como essa sem o apoio da Agência.
— Se contarmos à Agência, eles vão contar à Casa Branca. E isso vai terminar na primeira página do The New York Times.
Navot sorriu.
— Tudo que precisamos é da aprovação do primeiro-ministro e do dinheiro para realizar a operação.
— Já temos dinheiro, Uzi. Muito dinheiro.
— Os 25 milhões que você ganhou com a venda do Van Gogh falso?
Gabriel assentiu.
— É a beleza dessa operação — falou ele. — Ela se autofinancia.
— Onde está o dinheiro agora?
— Pode estar no porta-malas do carro de Christopher Keller.
— Na Córsega.
— Infelizmente.
— Vou mandar um bodel para pegá-lo.
— O grande dom Orsati não lida com mensageiros, Uzi. Ele acharia isso um insulto muito grande.
— O que está sugerindo?
— Vou resgatar o dinheiro assim que tivermos uma operação em funcionamento, apesar de que seja possível que tenha de deixar um pequeno pagamento de tributo ao Dom.
— Pequeno? Quanto?
— Dois milhões devem deixá-lo feliz.
— Isso é muito dinheiro.
— Uma mão lava a outra, e as duas mãos lavam o rosto.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente, Uzi.
O que faltava era pensar na composição da equipe operacional de Gabriel. Rimona Stern e Mikhail Abramov eram indispensáveis, ele falou. Assim como Dina Sarid, Yossi
Gavish e Yaakov Rossman.
— Não é possível ter Yaakov num momento como esse — objetou Navot.
— Por que não?
— Porque Yaakov é quem está rastreando todos os mísseis e outros artigos mortais que estão indo dos sírios para os amigos deles no Hezbollah.
— Yaakov pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
— Quem mais?
— Preciso de Eli Lavon.
— Ele ainda está escavando embaixo do Muro das Lamentações.
— Amanhã à tarde, ele já estará escavando em outro lugar.
— Só isso?
— Não — falou Gabriel. — Tem outra pessoa que preciso para uma operação como essa.
— Quem?
— A maior especialista do país em Síria e no movimento baathista.
Navot sorriu.
— Talvez você devesse levar uns guarda-costas, por segurança.
28
PETAH TIKVA, ISRAEL
OS NAVOTS VIVIAM NO lado oriental de Petah Tikva, em uma rua calma onde as casas ficavam escondidas atrás de muros de concreto e arbustos. Havia uma campainha perto
do portão de metal, que tocou em silêncio quando Gabriel apertou. Olhou diretamente para as lentes da câmera de segurança e apertou de novo. Dessa vez, o intercomunicador
emitiu o som da voz de uma mulher.
— Quem é?
— Sou eu, Bella. Abra o portão.
Outro silêncio, 15 segundos, talvez mais, antes que o trinco fosse liberado com uma pancada. Conforme o portão abria, surgia a casa, uma estrutura cubista com grandes
janelas reforçadas e uma antena de comunicações seguras aparecendo no teto. Bella estava à sombra do pórtico, os braços cruzados na defensiva. Ela usava calça de
seda branca e blusa amarela com um cinto na cintura esbelta. Seu cabelo escuro parecia recém-pintado e penteado. De acordo com a usina de rumores do Escritório,
ela tinha uma hora marcada toda manhã em um dos salões mais exclusivos de Tel Aviv.
— Você tem muita coragem de vir a essa casa, Gabriel.
— Para com isso, Bella. Vamos tentar ser civilizados.
Ela ficou parada um momento antes de se virar e, com um movimento indiferente da mão, convidá-lo a entrar. Tinha decorado os cômodos da casa como a seu marido: cinza,
brilhante, moderno. Gabriel a seguiu pela muito brilhante cozinha cromada e de granito negro polido, indo até o terraço do fundo onde estava servido um almoço leve
israelense. A mesa estava na sombra, mas o sol brilhava forte no jardim. Havia pequenas piscinas e fontes murmurantes. Gabriel se lembrou de repente que Bella sempre
tinha adorado o Japão.
— Adoro o que você fez com esse lugar, Bella.
— Sente-se — foi tudo que ela respondeu.
Gabriel se sentou em uma cadeira de jardim com almofada. Bella serviu um copo alto de suco de laranja e colocou bem na frente dele.
— Já pensou onde você e Chiara vão morar quando se tornar chefe? — perguntou ela.
Ele não sabia dizer se a pergunta dela sincera ou maliciosa. Decidiu responder honestamente.
— Chiara acha que precisamos viver perto do Boulevard Rei Saul — falou ele —, mas eu preferia ficar em Jerusalém.
— É muito longe.
— Não vou dirigir o carro.
O rosto dela ficou tenso.
— Desculpe, Bella. Não foi isso que quis dizer.
Ela não respondeu diretamente.
— Nunca gostei muito de Jerusalém. Perto demais de Deus para meu gosto. Gosto daqui, o meu pequeno subúrbio secular.
Um silêncio se abateu entre eles. Os dois sabiam a verdadeira razão pela qual Gabriel preferia Jerusalém a Tel Aviv.
— Desculpe por nunca ter enviado a você e Chiara os parabéns pela gravidez. — Ela deu um breve sorriso. — Deus sabe como os dois merecem alguma felicidade depois
de tudo que aconteceu.
Gabriel assentiu e murmurou algo apropriado. Bella nunca tinha dado os parabéns, ele pensou, porque sua raiva não tinha permitido. Ela tinha um comportamento vingativo.
Era uma de suas características mais duradouras.
— Acho que deveríamos conversar, Bella.
— Achei que estávamos conversando.
— Conversar de verdade — falou ele.
— Seria melhor se nos comportássemos como personagens em um daqueles programas de suspense que passam na BBC. Ou posso falar algo que me arrependa depois.
— Há uma razão pela qual esses programas nunca têm Israel como cenário. Não falamos daquela forma.
— Talvez devêssemos.
Ela pegou um prato e começou a servir Gabriel.
— Não estou com fome, Bella.
Ela colocou o prato na mesa.
— Estou brava com você, droga.
— Achei que sim.
— Por que está roubando o cargo do Uzi?
— Não estou.
— Como descreveria isso?
— Não tive escolha.
— Poderia ter dito não a eles.
— Eu tentei. Não funcionou.
— Deveria ter tentado mais.
— Não foi culpa minha, Bella.
— Eu sei, Gabriel! Nada nunca é culpa sua.
Ela olhou para as fontes no jardim. Isso pareceu acalmá-la momentaneamente.
— Nunca vou esquecer a primeira vez que vi você — falou, finalmente. — Estava andando sozinho por um corredor dentro do Boulevard Rei Saul, pouco depois de Túnis.
Você estava exatamente como está agora, os mesmos olhos verdes, as mesmas têmporas grisalhas. Era como um anjo, o anjo da vingança de Israel. Todo mundo adorava
você. Uzi idolatrava você.
— Não vamos exagerar, Bella.
Ela agiu como se não tivesse ouvido.
— E então aconteceu Viena — retomou ela depois de um momento. — Foi um cataclisma, um desastre de proporções bíblicas.
— Todos perdemos entes queridos, Bella. Todos ficamos de luto.
— É verdade, Gabriel. Mas Viena foi diferente. Você nunca mais foi o mesmo depois de Viena. Nenhum de nós foi. — Ela fez uma pausa e acrescentou: — Especialmente
Shamron.
Gabriel seguiu o olhar de Bella até o jardim, mas por um momento ele foi transportado para o pátio iluminado pelo sol da Academia Bezalel de Arte e Design em Jerusalém.
Era setembro de 1972, alguns dias depois do assassinato de 11 atletas e técnicos israelenses nas Olimpíadas de Munique. Do nada apareceu um homem que parecia uma
pequena barra de ferro, com óculos negros horríveis e dentes como uma armadilha de aço. O homem não falou seu nome, pois não era necessário. Era o homem sobre o
qual falavam somente em sussurros. Era quem tinha roubado os segredos que levaram Israel à vitória rápida na Guerra dos Seis Dias. O que tinha sequestrado Adolf
Eichmann, diretor-gerente do Holocausto, em uma esquina argentina.
Shamron...
— Ari se culpou pelo que aconteceu com você em Viena — dizia Bella. — E ele nunca se perdoou, também. Tratou você como um filho depois daquilo. Ele o deixava fazer
o que quisesse. Mas nunca desistiu da esperança de que um dia você viria e assumiria o controle do Escritório que ele amava tanto.
— Sabe quantas vezes eu recusei o cargo?
— Tantas que Shamron acabou entregando a Uzi. Ele ganhou o cargo como um prêmio de consolação.
— Na verdade, fui eu que sugeri que Uzi se tornasse o novo chefe.
— Como se o cargo fosse seu pra poder atribuir. — Ela sorriu, amarga. — Uzi já contou que eu o aconselhei a não aceitar o cargo?
— Não, Bella. Ele nunca mencionou isso.
— Sempre soube que terminaria assim. Você deveria ter deixado o palco sem fazer alarde e ficado na Europa. Mas o que fez? Inseriu um carregamento de centrífugas
sabotadas na cadeia de suprimentos nucleares iraniana e destruiu quatro instalações de enriquecimento secretas.
— Essa operação ocorreu sob a supervisão do Uzi.
— Mas foi sua operação. Todo mundo no Boulevard Rei Saul sabe que foi sua, assim como todo mundo na rua Kaplan.
A rua Kaplan era a localização do escritório do primeiro-ministro. Sem dúvidas, Bella era uma visitante bastante frequente. Gabriel sempre suspeitou que a influência
dela no Boulevard Rei Saul ia muito além da decoração do escritório de seu marido.
— Uzi tem sido um bom chefe — falou ela. — Um excelente chefe. Ele só tem um defeito. Não é você, Gabriel. Ele nunca vai ser você. E por isso, está sendo descartado.
— Não se eu puder evitar.
— Já não fez o suficiente?
Dentro da casa tocou um telefone. Bella não mostrou nenhum interesse em atender.
— Por que está aqui? — perguntou ela.
— Quero conversar sobre o futuro do Uzi.
— Graças a você, ele já não tem nenhum.
— Bella...
Ela se recusava a se acalmar, não tão cedo.
— Se você tem algo a falar sobre o futuro do Uzi, deveria conversar com ele.
— Achei que seria mais produtivo se passasse por cima dele.
— Não tente me lisonjear, Gabriel.
— Nem sonharia em fazer isso.
Ela bateu a unha de seu dedo indicador na mesa. Tinha sido recentemente pintada.
— Ele me contou sobre a conversa que tiveram em Londres quando estavam procurando aquela garota sequestrada. Não é preciso dizer que não pensei muito na sua proposta.
— Por que não?
— Porque não há precedentes para isso. Quando termina o período de um chefe, ele gentilmente desaparece na noite, nunca mais se ouve falar dele.
— Diga isso ao Shamron.
— Shamron é diferente.
— Eu também.
— O que você está propondo exatamente?
— Dirigirmos juntos o Escritório. Eu serei o chefe e Uzi será meu vice.
— Nunca vai funcionar.
— Por que não?
— Porque vai deixar a impressão de que você não está totalmente preparado para o cargo.
— Ninguém pensa isso.
— A aparência é importante.
— Você está me confundindo com outra pessoa, Bella.
— Com quem?
— Com alguém que se preocupa com as aparências.
— E se ele concordar?
— Terá um escritório ao lado do meu. Vai estar envolvido em toda decisão central, toda operação importante.
— E o salário dele?
— Vai ter o mesmo salário, sem mencionar o carro e a segurança.
— Por quê? — perguntou ela. — Por que está fazendo isso?
— Porque preciso dele, Bella. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — De você, também.
— De mim?
— Quero que volte ao Escritório.
— Quando?
— Amanhã de manhã, às dez horas. Uzi e eu vamos organizar uma operação contra os sírios. Precisamos da sua ajuda.
— Que tipo de operação?
Quando Gabriel contou, ela sorriu, triste.
— Pena que Uzi não pensou nisso — falou ela. — Ele ainda poderia ser o chefe.
Passaram a hora seguinte no jardim de Bella negociando os termos da volta dela ao Boulevard Rei Saul. Depois disso, acompanhou-o até o carro oficial.
— Você fica bem assim — falou ela pela porta aberta.
— Como, Bella?
Ela sorriu e falou:
— Nos vemos amanhã, Gabriel. — Então se virou e desapareceu. Um guarda-costas fechou a porta do carro; outro subiu no banco do passageiro. Gabriel percebeu de repente
que não estava armado. Ficou sentado ali por um momento pensando aonde iria em seguida. Em seguida, olhou para o motorista pelo espelho retrovisor e deu um endereço
em Jerusalém Ocidental. Ele tinha mais um negócio desagradável para resolver antes de ir para casa. Tinha de contar a um fantasma que seria pai de novo.
29
JERUSALÉM
O PEQUENO PASSEIO CIRCULAR DO Hospital Psiquiátrico Monte Herzl vibrou sob o peso da caravana de três carros de Gabriel. Ele saiu do banco traseiro de sua limusine
e, depois de uma troca curta de palavras com o chefe de sua segurança, entrou sozinho no hospital. Esperando na recepção estava um médico barbudo, com jeito de rabino,
chegando aos sessenta anos. Estava sorrindo, apesar do fato de que, como sempre, tinha sido avisado com pouca antecedência da chegada de Gabriel. Estendeu a mão
e ficou olhando a comoção na entrada, normalmente tranquila, da instalação mais privada de Israel para pacientes com problemas mentais.
— Parece que sua vida está a ponto de mudar de novo — falou o médico.
— Em mais de um sentido — respondeu Gabriel.
— Para melhor, espero.
Gabriel assentiu e depois contou ao médico sobre a gravidez. O médico sorriu, mas só por um momento. Ele tinha testemunhado a longa luta de Gabriel para decidir
se devia voltar a se casar. Ser pai, ele sabia, levaria a sentimentos complicados.
— E gêmeos, ainda por cima. Bem — acrescentou o médico, lembrando-se de sorrir de novo —, você certamente...
— Preciso contar a ela — falou Gabriel, interrompendo o médico. — Já adiei isso por tempo demais.
— Não é necessário.
— É.
— Ela não vai entender, não totalmente.
— Eu sei.
O médico sabia que não devia insistir.
— Poderia ser melhor se eu ficasse com você — falou ele. — Para bem dos dois.
— Obrigado — respondeu Gabriel —, mas preciso fazer isso sozinho.
O médico se afastou sem uma palavra e deixou Gabriel seguir por um corredor feito de calcário de Jerusalém até uma sala comum onde alguns pacientes estavam olhando
para uma televisão com o olhar perdido. Um par de grandes janelas dava para um jardim com muro. Do lado de fora, uma mulher estava sentada sozinha na sombra de um
pinheiro-manso, imóvel como uma lápide.
— Como ela está? — perguntou Gabriel.
— Sente sua falta. Já faz tempo que você não vem vê-la.
— É difícil.
— Eu entendo.
Eles ficaram parados por um momento na janela, sem falar e sem se mover.
— Há algo que você deveria saber — falou o médico finalmente. — Ela nunca deixou de amá-lo, mesmo depois do divórcio.
— Isso deveria me fazer sentir melhor?
— Não — disse o médico. — Mas você merece saber a verdade.
— Ela também.
Outro silêncio.
— Gêmeos, hein?
— Gêmeos.
— Menino ou menina?
— Um de cada.
— Talvez pudesse deixar que ela passasse um tempo com eles.
— Uma coisa de cada vez, doutor.
— Claro — falou o médico quando Gabriel entrou no jardim sozinho. — Uma coisa de cada vez.
Ela estava sentada em sua cadeira de rodas com o que sobrava de suas mãos retorcidas descansando no colo. O cabelo, antes comprido e escuro como o de Chiara, agora
estava curto e grisalho. Gabriel beijou a pele fria e firme da cicatriz de seu rosto antes de se sentar no banco ao seu lado. Ela olhou perdida para o jardim, sem
perceber a presença dele. Estava ficando mais velha, ele pensou. Todos estavam ficando mais velhos.
— Olhe para a neve, Gabriel — falou ela de repente. — Não é linda?
Ele olhou para o sol queimando no céu sem nuvens.
— É, Leah — falou ele distraído. — É linda.
— A neve absolve Viena de seus pecados — falou ela depois de um momento. — A neve cai sobre Viena enquanto os mísseis caem sobre Tel Aviv.
Tinham sido algumas das últimas palavras que Leah tinha falado para ele na noite do atentado em Viena. Ela sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão
psicótica e desordem de estresse pós-traumático. Às vezes, ela experimentava momentos de lucidez, mas na maior parte do tempo permanecia prisioneira do passado.
Viena passava incessantemente em sua cabeça como um loop de videoteipe que era incapaz de parar: a última refeição que comeram juntos, o último beijo, o fogo que
matou o único filho deles e queimou a pele do corpo de Leah. Sua vida tinha se reduzido a cinco minutos; e ela passava revivendo-os, várias vezes, por mais de vinte
anos.
— Achei que tinha se esquecido de mim, Gabriel.
Sua cabeça se virou lentamente e por um momento houve um lampejo de reconhecimento em seus olhos. Sua voz, quando falou de novo, parecia estranhamente com a voz
que ele tinha ouvido pela primeira vez há muitos anos, chamando-o de um estúdio em Bezalel.
— Quando foi a última vez que veio aqui?
— Vim para seu aniversário.
— Não me lembro.
— Fizemos uma festa, Leah. Todos os outros pacientes vieram. Foi muito legal.
— Estou sozinha aqui, Gabriel.
— Eu sei, Leah.
— Não tenho ninguém. Ninguém a não ser você, meu amor.
Ele sentiu que tinha perdido a capacidade de encher seus pulmões de ar. Leah colocou a mão sobre a dele.
— Você não tem tinta nos seus dedos — falou ela.
— Não trabalhei nos últimos dias.
— Por que não?
— É uma longa história.
— Tenho tempo — falou ela. — É só o que tenho.
Desviou o olhar dele e olhou para o jardim. A luz estava se apagando dos seus olhos.
— Não se vá, Leah. Tenho algo para lhe contar.
Ela se virou de novo para ele.
— Está restaurando um quadro agora? — perguntou ela.
— Veronese — respondeu ele.
— Qual?
Ele contou.
— Então está morando em Veneza de novo?
— Por mais alguns meses.
Ela sorriu.
— Lembra-se quando moramos juntos em Veneza, Gabriel? Foi quando você era aprendiz de Umberto Conti.
— Eu lembro, Leah.
— Nosso apartamento era tão pequeno.
— Porque era só um quarto.
— Foram dias maravilhosos, não foram, Gabriel? Dias de arte e vinho. Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes se você não
tivesse voltado ao Escritório.
Gabriel não respondeu. Não era capaz de falar.
— Sua esposa é de Veneza, não é?
— É sim, Leah.
— Ela é bonita?
— É, Leah, é muito bonita.
— Gostaria de conhecê-la algum dia.
— Já a conheceu, Leah. Ela veio visitá-la várias vezes.
— Não me lembro dela. Talvez seja melhor assim. — Ela se afastou dele. — Quero falar com a minha mãe — disse. — Quero ouvir o som da voz da minha mãe.
— Vamos ligar para ela, Leah.
— Não deixe de ver se o Dani está bem preso na sua cadeirinha. As ruas estão escorregadias.
— Ele está bem, Leah.
Ela virou o rosto para ele de novo. Então, depois de um momento, perguntou:
— Você tem filhos?
Ele não estava seguro se ela estava no presente ou no passado.
— Não entendi — falou ele.
— Com Chiara.
— Não — respondeu ele. — Não temos filhos.
— Talvez um dia.
— É — ele falou, mas não continuou.
— Me faça uma promessa, Gabriel.
— Qualquer coisa, meu amor.
— Se tiver outro filho, não deve se esquecer do Dani.
— Penso nele todo dia.
— Não penso em nada mais.
Ele sentiu como se os ossos de sua caixa torácica estivessem se quebrando debaixo do peso da pedra que Deus tinha colocado sobre seu coração.
— E quando você sair de Veneza? — perguntou Leah depois de um momento. — O que vai fazer?
— Vou voltar para casa.
— De vez?
— De vez, Leah.
— O que vai fazer? Não há pinturas aqui em Israel.
— Vou ser o chefe do Escritório.
— Achei que Ari era o chefe.
— Isso foi há muito tempo.
— Onde vai viver?
— Aqui em Jerusalém para ficar perto de você.
— Naquele pequeno apartamento?
— Sempre gostei dele.
— Não é grande o suficiente para crianças.
— Vamos encontrar espaço.
— Ainda virá me visitar depois que tiver filhos, Gabriel?
— Sempre que eu puder.
Ela levantou o rosto para o céu sem nuvens.
— Olhe para a neve, Gabriel.
— É — falou ele, chorando baixinho. — Não é linda?
O médico estava esperando por Gabriel na sala comum. Não falou nada até terem voltado à recepção.
— Tem algo que você gostaria de me contar? — perguntou ele.
— Foi tão bem quanto se poderia esperar.
— Para ela ou para você?
Gabriel não falou nada.
— Está tudo bem, sabe — disse o médico depois de um momento.
— O quê?
— Você deve ser feliz.
— Não tenho certeza se sei como.
— Tente — disse o médico. — E se você precisar de alguém para conversar, sabe onde me encontrar.
— Cuide bem dela.
— Sempre cuidarei.
Com isso, Gabriel se entregou ao cuidado de seus seguranças e subiu no banco traseiro da limusine. Era estranho, ele pensou, mas ele não sentia mais vontade de chorar.
Supôs que era isso que significava ser chefe.
30
RUA NARKISS, JERUSALÉM
CHIARA TINHA CHEGADO A Jerusalém apenas uma hora antes de Gabriel e, mesmo assim, o apartamento deles na rua Narkiss já parecia uma fotografia numa dessas revistas
de decoração de casas que ela sempre estava lendo. Havia flores frescas nos vasos e tigelas de aperitivos nas mesinhas, e a taça de vinho que ela colocou na mão
dele estava perfeitamente fria. Os lábios dela, quando o beijou, estavam quentes do sol de Jerusalém.
— Esperava que você chegasse mais cedo — falou ela.
— Tinha umas coisas para fazer.
— Onde você estava?
— No inferno — respondeu ele sério.
Ela franziu a testa.
— Vai ter que me contar sobre isso mais tarde.
— Por que mais tarde?
— Porque temos visitas chegando, querido.
— Preciso perguntar quem é?
— Provavelmente não.
— Como ele soube que tínhamos voltado?
— Ele mencionou algo sobre um arbusto queimando.
— Não pode ser outra noite?
— É muito tarde para cancelar agora. Ele e Gilah já saíram de Tiberíades.
— Suponho que esteja mandando atualizações de sua localização.
— Ele já ligou duas vezes. Está muito animado para vê-lo.
— Eu imagino por quê.
Ele beijou Chiara de novo e levou a taça de vinho para o quarto. As paredes estavam cheias de quadros. Havia quadros de Gabriel, quadros de sua talentosa mãe e vários
quadros de seu avô, o famoso expressionista alemão Viktor Franekel, que foi assassinado em Auschwitz no letal inverno de 1942. Havia também um retrato médio, sem
assinatura, de um jovem homem desolado que parecia assombrado pela sombra da morte. Leah tinha pintado alguns dias depois que Gabriel havia retornado a Israel com
o sangue de seis terroristas do Setembro Negro nas mãos. Foi a primeira e última vez que ele tinha concordado em posar para ela.
“Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes...”
Ele tirou sua roupa debaixo do olhar impiedoso do retrato e ficou parado debaixo do chuveiro até que os últimos traços do toque de Leah tivessem saído de sua pele.
Então colocou roupas limpas e voltou à sala de estar, bem quando Gilah e Ari Shamron estavam entrando pela porta da frente. Gilah trazia um prato de sua famosa berinjela
com condimentos marroquinos; seu famoso marido trazia apenas uma bengala feita de madeira de oliveira. Ele estava vestido, como sempre, com calças cáqui bem passadas,
uma camisa de algodão branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Era óbvio que ele não estava bem, mas seu sorriso expressava contentamento. Shamron
tinha passado anos tentando convencer Gabriel a voltar à Israel para assumir seu lugar no escritório executivo no Boulevard Rei Saul. Agora, tanto tempo depois,
a tarefa estava completa. Seu sucessor estava no lugar. A linhagem estava assegurada.
Ele encostou sua bengala na parede da entrada e, seguido de Gabriel, foi até a pequena varanda onde havia duas cadeiras de ferro debaixo da copa de um eucalipto.
A rua Narkiss estava silenciosa e vazia debaixo deles, mas à distância vinha o barulho do trânsito noturno na King George. Shamron sentou-se com dificuldade em uma
das cadeiras e fez um movimento para que Gabriel se sentasse na outra. Então pegou o maço de cigarros turcos e, com enorme concentração, tirou um. Gabriel olhou
para as mãos de Shamron, as mãos que quase tinham tirado a vida de Adolf Eichmann em uma esquina no norte de Buenos Aires. Foi uma das razões pelas quais Shamron
tinha recebido a missão: o tamanho e força incomuns de suas mãos. Agora elas estavam cheias de manchas dos problemas de fígado e de machucados que não tinham se
curado. Gabriel desviou o olhar enquanto elas lutavam com o velho isqueiro.
— Você não devia fumar, Ari.
— Que diferença faz agora?
Depois que apagou o isqueiro, o cheiro de fumaça turca se misturou ao forte odor do eucalipto. Gabriel foi subitamente inundado por lembranças. Ele tentou mantê-las
à distância, mas não conseguiu; Leah tinha destruído o que restava de suas defesas. Estava dirigindo por um mar de arbustos movidos pelo vento na Cornualha com Shamron
ao seu lado. Era o início de um novo milênio, os dias de ataques suicidas e ilusão. Shamron tinha sido retirado recentemente de sua aposentadoria para reformar o
Escritório depois de uma série de desastres operacionais e queria a ajuda de Gabriel nesse empreendimento. A isca que usou foi Tariq al-Hourani, o mestre terrorista
palestino que tinha plantado a bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena.
“Talvez se você me ajudar a acabar com Tariq, finalmente vai superar o que aconteceu com Leah e continuar com sua vida...”
Gabriel ouviu o som da risada de Chiara na sala e a lembrança se dissolveu.
— O que foi agora? — perguntou ele gentilmente a Shamron.
— A lista dos meus problemas físicos é quase tão longa quanto a lista de desafios que Israel está enfrentando. Mas não se preocupe — acrescentou ele rapidamente.
— Ainda não vou a lugar nenhum. Tenho toda a intenção de estar por aqui para testemunhar o nascimento dos meus netos.
Gabriel resistiu ao impulso de lembrar Shamron de que eles não eram realmente pai e filho.
— Esperamos que esteja lá, Ari.
Shamron sorriu.
— Decidiram onde vão viver depois que eles nascerem?
— Curioso — respondeu Gabriel —, mas Bella me perguntou a mesma coisa.
— Ouvi dizer que foi uma conversa interessante.
— Como sabe que fui vê-la?
— Uzi me contou.
— Achei que ele não estava atendendo suas ligações.
— Parece que começou o grande degelo. É uma das poucas vantagens de ter problemas de saúde — acrescentou ele. — Todas as pequenas queixas e promessas quebradas parecem
desaparecer quando chegamos perto do fim.
Os galhos do eucalipto se moveram com a primeira brisa noturna. O ar estava esfriando a cada minuto. Gabriel sempre adorou a forma como esfriava à noite em Jerusalém,
mesmo no verão. Ele desejou ter o poder de congelar esse momento por um pouco mais de tempo. Olhou para Shamron, que estava batendo seu cigarro pensativo na borda
do cinzeiro.
— Foi preciso muita coragem de sua parte para se sentar e conversar com Bella. E perspicácia, também. Prova que eu estava certo sobre uma coisa o tempo todo.
— O quê, Ari?
— Que você tem tudo para ser um grande chefe.
— Às vezes, eu me pergunto se estou prestes a cometer meu primeiro erro.
— O de manter Uzi com algum poder?
Gabriel assentiu lentamente.
— É arriscado — concordou Shamron. — Mas se há alguém que pode encarar isso, é você.
— Nenhum conselho?
— Já não preciso mais dar conselhos, meu filho. Sou o pior que um homem pode ser, velho e obsoleto. Sou um espectador. Uma vergonha. — Shamron olhou para Gabriel
e franziu a testa. — Sinta-se livre para discordar de mim quando quiser.
Gabriel sorriu, mas não disse nada.
— Uzi me contou que as coisas ficaram um pouco acaloradas entre você e Bella — disse Shamron.
— Lembrou-me o interrogatório que tive que enfrentar aquela noite no Empty Quarter.
— A pior noite da minha vida. — Shamron pensou nisso por um momento. — Na verdade — falou —, foi a segunda pior.
Ele não precisava falar qual tinha sido a primeira. Estava falando de Viena.
— Acho que Bella está mais chateada com tudo isso do que Uzi — continuou ele. — Infelizmente, ela se acostumou demais às armadilhas do poder.
— O que lhe dá essa impressão?
— A forma como se aferra a elas. Ela me culpa por tudo, claro. Acha que planejei isso desde o início.
— E é verdade.
Shamron fez uma cara que ficava em algum ponto entre um sorriso e uma careta.
— Não vai negar? — perguntou Gabriel.
— Nada — respondeu Shamron. — Tive minha cota de triunfos, mas no final, a sua será a carreira usada para medir a de todos os outros. É verdade que tive preferências,
especialmente depois de Viena. Mas minha fé em você foi recompensada com uma série de operações que estavam muito além dos talentos de alguém como Uzi. Certamente
até Bella percebe isso.
Gabriel não falou nada. Estava olhando um menino de dez ou onze anos andando de bicicleta na rua tranquila.
— E agora — falou Shamron — parece que você pode ter encontrado uma forma de atacar as finanças do açougueiro de Damasco. Com um pouco de sorte, será o primeiro
grande triunfo da era de Gabriel Allon.
— Achei que não acreditava em sorte.
— Não acredito. — Shamron acendeu outro cigarro, então, com um movimento do pulso, fechou o isqueiro com um golpe rápido. — O açougueiro tem a crueldade do pai,
mas não possui a mesma inteligência, o que o torna ainda mais perigoso. Nesse ponto, só o dinheiro importa. É o que mantém o clã unido. É por isso que os leais permanecem
leais. É por isso que as crianças estão morrendo aos milhares. Mas se você puder realmente controlar o dinheiro... — Ele sorriu. — As possibilidades serão infinitas.
— Realmente não tem nenhum conselho para mim?
— Mantenha o açougueiro no poder pelo tempo que ele continuar sendo palatável, mesmo remotamente. De outra forma, os próximos anos serão muito interessantes para
você e seus amigos em Washington e Londres.
— Então é assim que termina a Grande Primavera Árabe? — perguntou Gabriel. — Apoiamos um assassino em massa porque ele é o único que pode salvar a Síria da al-Qaeda?
— Longe de mim dizer que avisei, mas previ que a Primavera Árabe iria terminar em desastre e foi o que aconteceu. Os árabes ainda não estão prontos para a verdadeira
democracia, não no momento em que o islamismo radical está em ascensão. O melhor que podemos esperar são regimes autoritários decentes em lugares como Síria e Egito.
— Shamron parou, depois acrescentou: — Quem sabe, Gabriel? Talvez você possa encontrar alguma forma de convencer o dirigente a educar seu povo de forma apropriada
e tratá-los com a dignidade que merecem. Talvez possa obrigá-lo a parar de matar crianças com gás.
— Tem uma coisa que quero dele.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Primeiro encontre o dinheiro — falou Shamron, apagando o cigarro. — E depois o quadro.
Gabriel não falou mais nada. Estava olhando o menino na bicicleta aparecendo e desaparecendo debaixo das sombras no final da rua. Quando o menino sumiu, ele levantou
o rosto para o céu de Jerusalém. “Olhe para a neve”, ele pensou. “Não é linda?”
31
JERUSALÉM
O TOQUE DOS SINOS DA IGREJA acordou Gabriel de um sono sem sonhos. Ele ficou imóvel por um momento, incerto de onde estava. Então viu o retrato taciturno olhando
para ele da parede e percebeu que estava em seu próprio quarto na rua Narkiss. Saiu de debaixo dos lençóis, sem fazer barulho, para não acordar Chiara e foi até
a cozinha. A única prova do jantar da noite anterior era o forte cheiro doce de flores subindo dos vasos. Na pia limpa havia uma cafeteira francesa e uma lata de
Lavazza. Gabriel colocou a chaleira no fogão e ficou esperando a água ferver.
Tomou seu café no terraço e leu os jornais da manhã em seu BlackBerry. Então entrou no banheiro para fazer a barba e tomar banho. Quando saiu, Chiara ainda estava
dormindo profundamente. Ele abriu o guarda-roupa e ficou parado ali por um momento, pensando no que usaria. Um terno, decidiu, era impróprio; poderia enviar a mensagem
às tropas de que ele já estava no comando. No final, decidiu usar a roupa de sempre: um jeans desbotado, um pulôver de algodão e uma jaqueta de couro. Shamron tinha
seu uniforme, pensou, e ele também.
Alguns minutos depois das oito, ouviu o comboio de carros perturbando o silêncio da rua Narkiss. Beijou Chiara suavemente e depois desceu para encontrar a limusine
que o aguardava. Esta o levou para o leste, cruzando Jerusalém até a Porta do Esterco, a entrada principal do Bairro Judeu da Cidade Velha. Ele passou pelos detectores
de metal e, junto com seus guarda-costas, cruzou a praça aberta em direção ao Muro das Lamentações, a tão disputada reminiscência da antiga barreira de retenção
que já tinha cercado o grande Templo de Jerusalém. Em cima do Muro, brilhando com o sol do começo da manhã, estava a dourada Cúpula da Rocha, o terceiro lugar mais
sagrado do islamismo. Havia muitos aspectos no conflito árabe-israelense, mas Gabriel tinha concluído que tudo se resumia a isso — duas fés presas em uma luta mortal
pela mesma parcela de uma terra sagrada. Poderia haver períodos de calma, meses ou até anos sem bombas ou sangue; mas Gabriel temia que nunca haveria paz.
A porção do Muro das Lamentações visível da praça tinha 57 metros de largura e 19 metros de altura. O verdadeiro muro ao redor da colina do Monte do Templo, no entanto,
era muito mais longo, descendo uns 13 metros depois da praça e se estendendo mais uns quatrocentos metros até o Bairro Muçulmano, onde estava escondido por trás
de estruturas residenciais. Depois de anos de escavações arqueológicas cheias de problemas políticos e religiosos, agora era possível caminhar por quase toda a extensão
do muro através do Túnel do Muro das Lamentações, uma passagem subterrânea que ia da praça até a Via Dolorosa.
A entrada do túnel estava do lado esquerdo da praça, não muito longe do Arco de Wilson. Gabriel passou pela moderna porta de vidro e, seguido por seus guarda-costas,
desceu uma escada de alumínio até o porão. Um caminho recentemente pavimentado seguia a base do muro. Ele o seguiu passando pelas enormes pedras do tempo de Herodes
até chegar a uma seção do túnel que estava escondida por uma cortina de plástico opaco. Além da cortina havia uma cova de escavação retangular onde uma figura solitária,
um homem pequeno de meia idade, mexia no solo sob um cone de suave luz branca. Ele pareceu não ter percebido a presença de Gabriel, mas foi só impressão. Seria mais
fácil surpreender um esquilo do que Eli Lavon.
Outro momento se passou antes de Lavon levantar a cabeça e sorrir. Ele tinha o cabelo ralo e desgrenhado, um rosto quase sem traços que mesmo o artista mais talentoso
teria dificuldades para capturar na tela. Eli Lavon era um fantasma, um camaleão que facilmente passava despercebido e logo era esquecido. Shamron já tinha dito
que ele poderia desaparecer enquanto apertava sua mão. Não estava muito longe da verdade.
Gabriel tinha trabalhado com Lavon pela primeira vez na Ira de Deus, a operação secreta da inteligência israelense para caçar e matar os autores do massacre das
Olimpíadas de Munique. No léxico da equipe, baseado no hebreu, Lavon tinha sido um ayin, um rastreador e artista da vigilância. Durante três anos ele tinha seguido
os terroristas do Setembro Negro por toda a Europa e Oriente Médio, geralmente com uma proximidade perigosa. O trabalho o deixou com várias desordens por estresse,
incluindo um famoso estômago instável que o incomodava até hoje.
Quando a unidade foi dissolvida em 1975, Lavon se estabeleceu em Viena, onde abriu uma pequena unidade investigativa chamada Alegações e Investigações da Época da
Guerra. Operando com um orçamento baixíssimo, ele conseguiu encontrar bens saqueados no Holocausto valendo milhões de dólares e teve um papel importante num acordo
multibilionário com os bancos suíços. O trabalho fez com que ganhasse poucos admiradores em Viena e, em 2003, uma bomba explodiu em seu escritório, matando duas
jovens funcionárias. Abalado, ele voltou a Israel para seguir sua primeira paixão, que era a arqueologia. Ele agora era professor adjunto na Universidade Hebraica
e participava regularmente em escavações por todo o país. Tinha passado a maior parte dos dois últimos anos remexendo o solo do Túnel do Muro das Lamentações.
— Quem são seus amiguinhos? — perguntou ele, olhando para os guarda-costas parados nas pontas da cova.
— Eu encontrei os dois perdidos na praça.
— Não vão estragar nada, vão?
— Não ousariam.
Lavon olhou para o chão e recomeçou a trabalhar.
— O que você tem aí? — perguntou Gabriel.
— Umas moedas perdidas.
— Quem deixou cair?
— Alguém muito bravo pelo fato de que os persas estavam a ponto de conquistar Jerusalém. É óbvio que estava com pressa.
Lavon esticou o braço e ajustou o ângulo de sua lâmpada de trabalho. O fundo da vala brilhou com os dourados pedacinhos encrustados.
— O que são? — perguntou Gabriel.
— Trinta e seis moedas de ouro da era bizantina e um grande medalhão com um menorá. Provam que os judeus viviam aqui antes da conquista muçulmana de Jerusalém em
638. Para a maioria dos arqueólogos bíblicos, isso seria a descoberta de toda uma vida. Mas não para mim. — Lavon olhou para Gabriel e acrescentou: — Nem para você.
Gabriel olhou sobre o ombro dele para as pedras do Muro. Um ano antes, numa câmara secreta de cinquenta metros debaixo da superfície do Monte do Templo, ele e Lavon
tinham descoberto 22 pilares do Templo de Jerusalém de Salomão, provando assim, sem nenhuma dúvida, que o antigo santuário judeu, descrito no Livro dos Reis e nas
Crônicas, tinha realmente existido. Eles também tinham descoberto uma enorme bomba que, se tivesse detonado, teria destruído todo o sagrado planalto. Os pilares
agora estavam em uma exibição de alta segurança no Museu de Israel. Um deles teve de ser especialmente limpo antes de ser posto em exposição porque estava manchado
com o sangue de Lavon.
— Recebi uma ligação do Uzi na noite passada — falou Lavon depois de um momento. — Ele me contou que você poderia dar uma passada.
— Falou o motivo?
— Mencionou algo sobre um Caravaggio perdido e uma empresa chamada LXR Investments. Falou que você estava interessado em adquiri-la, junto com o resto da Mal S.A.
— Pode ser feito?
— Não dá para fazer muita coisa de fora. No final, você vai precisar da ajuda de alguém que possa entregar as chaves do reino.
— Então nós vamos encontrar essa pessoa.
— Nós? — Quando Gabriel não respondeu, Lavon se inclinou e começou a mexer no solo ao redor de uma das moedas antigas. — O que precisa que eu faça?
— Exatamente o que você está fazendo agora — respondeu Gabriel. — Mas quero que use um computador e um balanço financeiro em vez de uma espátula e um pincel.
— Hoje em dia, prefiro uma espátula e um pincel.
— Eu sei, Eli, mas não vou conseguir fazer isso sem você.
— Não vai ser nada difícil, vai?
— Não, Eli, claro que não.
— Você sempre fala isso, Gabriel.
— E?
— Sempre é.
Gabriel se abaixou e desconectou a lâmpada de sua fonte de energia. Lavon trabalhou na escuridão por mais um momento. Então se levantou, limpou as mãos nas calças
e saiu da cova.
Um solteirão, Lavon mantinha um pequeno apartamento no distrito Talpiot de Jerusalém, na estrada para Hebron. Eles pararam ali tempo suficiente para que vestisse
roupas limpas e depois seguiram pela Bab al-Wad até o Boulevard Rei Saul. Depois de entrarem no edifício “preto”, eles subiram três lances de escadas e caminharam
por um corredor sem janelas até uma porta com a inscrição 456C. A sala do outro lado já tinha sido um depósito para computadores obsoletos e móveis velhos, geralmente
usados pela equipe noturna como um ponto de encontro clandestino para relações românticas. Agora era conhecido por todos no Boulevard Rei Saul apenas como o Covil
de Gabriel.
O código para a fechadura era a versão numérica da data de aniversário de Gabriel, que tinha a reputação de ser o segredo mais bem guardado do Escritório. Com Lavon
olhando por cima do ombro, ele digitou o código e abriu a porta. Lá dentro estava Dina Sarid, uma mulher pequena, de cabelos escuros com um ar de viúva precoce.
Um banco de dados humano, ela era capaz de recitar a hora, lugar, perpetradores e números de baixas de todo ato de terrorismo cometido contra alvos israelenses e
ocidentais. Dina já tinha dito a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles mesmos. E Gabriel acreditava nela.
— Onde estão os outros? — perguntou ele.
— Presos em Recursos Humanos.
— Qual é o problema?
— Aparentemente, os chefes de divisão estão revoltados. — Dina parou, então acrescentou: — Isso é o que acontece com um serviço de inteligência quando se espalha
que o chefe não vai durar.
— Talvez eu deva subir e conversar com os chefes de divisão.
— Espere alguns minutos.
— Tem sido tão ruim assim?
— Criei uma lista de agentes da al-Qaeda que se estabeleceram ao lado na Síria — jihadistas globais sérios que precisam ser tirados de circulação permanentemente.
E adivinha o que acontece sempre que proponho uma operação?
— Nada.
Dina assentiu lentamente.
— Estamos congelados no tempo — falou ela. — Estamos marcando passo justamente no momento que menos podemos.
— Isso vai acabar, Dina.
Bem nesse momento a porta se abriu e Rimona Stern entrou na sala. Mikhail Abramov apareceu logo depois, seguido alguns minutos mais tarde por Yaakov Rossman, que
parecia não dormir há um mês. Em seguida, apareceu um par de agentes de campo chamados Mordecai e Oded, seguidos por Yossi Gavish, um homem alto e careca vestido
com cotelê e tweed. Yossi era um alto funcionário de Pesquisa, que é como o Escritório chamava sua divisão analítica. Nascido na região Golders Green de Londres,
ele tinha estudado em Oxford e ainda falava hebraico com um forte sotaque inglês.
Dentro dos corredores e salas de conferência do Boulevard Rei Saul, os oito homens e mulheres reunidos na sala subterrânea eram conhecidos pelo codinome Barak, a
palavra em hebreu para raio, por sua habilidade incomum de se reunir e atacar rapidamente. Eram um serviço dentro do serviço, uma equipe de agentes sem igual e sem
medo de nada. Durante sua existência, tinha às vezes sido necessário admitir gente de fora no meio deles — um jornalista investigativo britânico, um bilionário russo,
a filha de um homem que tinham matado —, mas nunca antes tinham permitido que outro agente do Escritório se juntasse à sua fraternidade. Portanto, ficaram surpresos
quando, assim que o relógio marcou dez horas, Bella Navot apareceu na porta. Estava vestida para a reunião com uma calça cinza e trazia uma pasta de arquivos ao
peito. Ficou parada na porta por um momento, como se esperasse um convite para entrar, antes de se sentar, sem falar nada, perto de Yossi em uma das mesas de trabalho
comuns.
Se a equipe achou estranha a presença de Bella, não deu nenhum sinal disso quando Gabriel se levantou e caminhou até o último quadro-negro existente em todo o Boulevard
Rei Saul. Nele estavam escritas três palavras: SANGUE NUNCA DORME. Apagou-as com um único movimento da mão e no lugar escrever as letras LXR. Então contou à equipe
a incrível série de eventos que tinham levado àquela reunião, começando com o assassinato de um espião britânico transformado em ladrão de arte chamado Jack Bradshaw
e terminando com o bilhete que Bradshaw tinha deixado para Gabriel em seu cofre no Freeport de Genebra. Na morte, Bradshaw tinha tentado corrigir seus pecados ao
dar a Gabriel a identidade do homem que estava comprando quadros roubados a rodo: o criminoso dirigente da Síria. Também tinha fornecido a Gabriel o nome da empresa
de fachada que o dirigente tinha usado para essas compras: LXR Investments of Luxembourg. Certamente, a LXR era apenas uma pequena estrela numa galáxia de riqueza
global, sendo que boa parte dela estava cuidadosamente escondida por baixo de camadas de armações e empresas de fachada. Mas uma rede de riqueza, assim como uma
de rede de terroristas, precisava ter uma cabeça operativa habilidosa para funcionar. O dirigente tinha confiado o dinheiro de sua família a Kemel al-Farouk, o guarda-costas
do pai do dirigente, o assistente que torturava e matava sob o comando do regime. Mas Kemel não podia administrar o dinheiro ele mesmo, não com a NSA e seus sócios
monitorando cada movimento seu. Em algum lugar, havia um homem de confiança — um advogado, um banqueiro, um parente — que tinha o poder de mover esses bens como
quisesse. Usariam a LXR como uma forma de encontrá-lo. E Bella Navot iria guiá-los em todos os passos.


CONTINUA

22
ÎLE SAINT-LOUIS, PARIS
– EU GOSTARIA DE COMEÇAR ESSA Conversa, sr. Bartholomew, dando-lhe meus parabéns. Foi uma transação impressionante que você e seus homens realizaram em Amsterdã.
— Quem disse que não fiz isso sozinho?
— Não é o tipo de coisa que alguém faz sozinho. Certamente teve ajuda — acrescentou Sam. — Como seu amigo que estava no telefone comigo. Ele fala francês muito bem,
mas não é francês, é?
— Que diferença isso faz?
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios.
— Isso não é a Harrods, querido.
Sam olhou a rua com a calma de um turista que tinha visitado muitos museus em pouco tempo.
— Ele está aí fora em algum lugar, não está?
— Não saberia dizer.
— E há outros?
— Vários.
— E mesmo assim exigiram que eu viesse sozinho.
— É o vendedor quem manda.
— Foi o que ouvi.
Sam retomou sua inspeção da rua. Ainda estava de chapéu e óculos escuros, o que deixava apenas a parte inferior do seu rosto visível. Estava com a barba bem feita.
As bochechas eram altas e proeminentes, o queixo forte, os dentes brancos e perfeitos. Suas mãos não tinham cicatrizes ou tatuagens. Não usava anéis nos dedos ou
braceletes nos pulsos, só um grande Rolex dourado para indicar que era um homem de posses. Tinha os maneirismos refinados de um árabe bem nascido, mas um tanto grosseiro.
— Ouvimos outras coisas também — continuou Sam depois de um momento. — Aqueles que viram a mercadoria dizem que você conseguiu tirá-la de Amsterdã com danos mínimos.
— Nenhum, na verdade.
— Também ouvimos que há Polaroids.
— Onde ouviu isso?
Sam deu um sorriso desagradável.
— Isso vai demorar muito mais do que o necessário se você insistir nesses jogos, sr. Bartholomew.
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios — disse Keller, enfático.
— Está pedindo informações sobre o homem que represento, sr. Bartholomew?
— Nem sonharia em fazer isso.
Houve um silêncio.
— Meu cliente é um empresário — falou Sam finalmente. — Bastante bem-sucedido, bastante rico. Também ama as artes. Coleciona muito, mas como muitos colecionadores
sérios, foi ficando frustrado com o fato de que não há mais bons quadros à venda. Ele quer há muitos anos adquirir um Van Gogh. Você agora tem um muito bom. Meu
cliente gostaria de tê-lo.
— Assim como muitas outras pessoas.
Sam pareceu não se perturbar com isso.
— E você? — perguntou depois de um momento. — Por que não me fala um pouco sobre você?
— Roubo coisas para viver.
— É inglês?
— Infelizmente.
— Sempre gostei dos ingleses.
— Não vou usar isso contra você.
Apareceu um garçom que entregou o menu. Sam pediu uma garrafa de água mineral; Keller, uma taça de vinho que não tinha intenção de beber.
— Quero deixar uma coisa clara desde o começo — falou quando ficaram novamente sozinhos. — Não estou interessado em drogas, armas ou garotas, nem em um condomínio
em Boca Raton, na Flórida. Só aceito dinheiro.
— De quanto dinheiro estamos falando, sr. Bartholomew?
— Tenho uma oferta de vinte milhões na mesa.
— Que sabor?
— Euros.
— É uma oferta firme?
— Deixei a venda em espera para me encontrar com você.
— Que lisonjeiro. Por que faria algo assim?
— Porque ouvi falar que seu cliente, quem quer que seja, é um homem com bolsos bem grandes.
— Bem grandes. — Outro sorriso, só um pouco mais agradável que o primeiro. — Então como quer continuar, sr. Bartholomew?
— Preciso saber se está interessado em aumentar a oferta que está na mesa.
— Estou.
— Quanto mais?
— Acho que poderia oferecer algo trivial, como um adicional de quinhentos mil, mas meu cliente não gosta de leilões. — Fez uma pausa, então perguntou: — Será que
25 milhões seriam suficientes para tirar o quadro da mesa?
— Seriam, Sam.
— Excelente — falou. — Agora seria um bom momento para você me mostrar as Polaroids.
As Polaroids estavam no porta-luvas de uma Mercedes alugada estacionada em uma rua calma atrás de Notre Dame. Keller e Sam caminharam até lá juntos e entraram, Keller
atrás do volante, Sam no banco do passageiro. Keller submeteu-o a uma rápida e completa inspeção antes de abrir o porta-luvas e pegar as fotos. Eram quatro ao todo
— uma da obra inteira, três mostrando os detalhes. Sam olhou para elas cético.
— Parece o Van Gogh que está pendurado em cima da cama no meu hotel.
— Não é.
Fez uma careta para indicar que não estava convencido.
— A pintura nessa fotografia poderia ser uma cópia. E você poderia ser um trapaceiro inteligente que está querendo ganhar em cima do roubo em Amsterdã.
— Tire seus óculos escuros e dê uma olhada melhor, Sam.
— É o que pretendo. — Entregou as fotos de volta a Keller. — Preciso ver o quadro real, não fotografias.
— Não tenho um museu, Sam.
— O que quer dizer?
— Não posso mostrar o Van Gogh a qualquer um que queira vê-lo. Preciso saber se você está falando sério.
— Ofereci 25 milhões de euros em dinheiro por ele.
— É fácil oferecer 25 milhões, Sam. Entregar é outra coisa.
— Meu cliente é um homem de riqueza extraordinária.
— Então tenho certeza de que ele não lhe enviou a Paris de mãos vazias. — Keller devolveu as fotos ao porta-luvas e o trancou.
— É dessa forma que seu golpe funciona? Exige ver o dinheiro antes de mostrar o quadro e depois rouba?
— Se fosse um golpe, você e seu cliente já saberiam disso.
Não tinha respostas para aquilo.
— Não consigo mais de dez mil em dinheiro em tão pouco tempo.
— Quero ver um milhão.
Ele bufou, como se dissesse que um milhão era impossível.
— Se você quiser ver um Van Gogh por menos de um milhão — falou Keller — pode ir ao Louvre ou ao Musée d’Orsay. Mas se quiser ver o meu Van Gogh, vai ter que me
mostrar o dinheiro.
— Não é seguro andar pelas ruas de Paris com essa quantidade de dinheiro.
— Algo me diz que você sabe se cuidar muito bem.
Sam deu um suspiro capitulador.
— Onde e quando?
— Saint-Germain-des-Prés, duas da tarde. Sem amigos. Sem armas.
Sam saiu do carro sem falar nada e foi embora.
Ele cruzou o Sena para a margem direita e caminhou pela rue de Rivoli, passando a ala norte do Louvre, até o Jardin des Tuileries. Passou boa parte desse tempo no
telefone e duas vezes realizou um movimento elementar de espiões para ver se estava sendo seguido. Mesmo assim, não pareceu notar Gabriel caminhando cinquenta metros
atrás dele.
Antes de chegar a Jeu de Paume, cortou para a rue Saint-Honoré e entrou em uma loja exclusiva que vendia caros produtos de couro para homens. Saiu dez minutos depois
com uma mala nova, que carregou até uma filial do HSBC Private Bank no boulevard Haussmann. Ficou ali precisamente 22 minutos, e quando saiu, a mala parecia mais
pesada que quando tinha entrado. Ele a levou com cuidado até a Place de la Concorde e depois através da grande entrada do hôtel de Crillon. Vendo de longe, Gabriel
sorriu. Só o melhor para o representante do sr. Grandão. Enquanto se afastava, ligou para Keller e contou as novidades. O jogo tinha começado, falou. Definitivamente
o jogo tinha começado.
23
BOULEVARD SAINT-GERMAIN, PARIS
ELE ESTAVA PARADO DO LADO DE FORA DA porta vermelha da igreja às duas da tarde seguinte, com seu chapéu e óculos escuros firmemente no lugar e a nova maleta segura
na mão direita. Gabriel esperou cinco minutos antes de ligar.
— Você de novo — falou Sam desanimado.
— Infelizmente.
— E agora?
— Vamos dar outra volta.
— Para onde agora?
— Siga a rue Bonaparte até a place Saint-Sulpice. Mesmas regras da última vez. Não faça nenhuma parada e não olhe para trás. Sem ligações também.
— Até onde você pretende me levar dessa vez?
Gabriel desligou sem falar nada. Do outro lado da praça lotada, Sam começou a caminhar. Gabriel contou lentamente até vinte e o seguiu.
Deixou Sam caminhar até os Jardins de Luxemburgo antes de ligar de novo. Dali, foram para o sudoeste pela rue de Vaugirard, depois para o norte no boulevard Raspail
até a entrada do hôtel Lutetia. Keller estava sentado na mesa do bar, lendo o Telegraph. Sam se uniu a ele, como tinha sido instruído.
— Como ele foi dessa vez? — perguntou Keller.
— Tão meticuloso como sempre.
— Posso pedir algo para você beber?
— Não bebo.
— Que pena. — Keller dobrou seu jornal. — É melhor tirar esses óculos escuros, Sam. Do contrário, a gerência vai ter a impressão errada sobre você.
Ele fez o que Keller sugeriu. Seus olhos eram castanhos claros e grandes. Com o rosto exposto, era uma figura muito menos ameaçadora.
— Agora o chapéu — falou Keller. — Um cavalheiro não usa um chapéu no bar do Lutetia.
Ele tirou o chapéu, revelando uma cabeça com muito cabelo, marrom, não negro, com toques grisalhos ao redor das orelhas. Se era árabe, não era da península ou do
golfo. Keller olhou para a maleta.
— Trouxe o dinheiro?
— Um milhão, como você pediu.
— Deixe-me dar uma olhada. Mas com cuidado — acrescentou Keller. — Há uma câmera de segurança em cima do seu ombro direito.
Sam colocou a maleta na mesa, abriu os trincos e levantou a tampa dois centímetros, o suficiente para Keller dar uma olhada nas fileiras bem organizadas de notas
de cem euros.
— Pode fechar — falou Keller, em voz baixa.
Sam fechou e travou a maleta.
— Satisfeito? — perguntou ele.
— Ainda não. — Keller se levantou.
— Para onde agora?
— Meu quarto.
— Vai ter mais alguém?
— Seremos apenas nós dois, Sam. Muito romântico.
Sam se levantou e pegou a maleta.
— Acho que é importante deixar algo claro antes de subirmos.
— O que é, Sam?
— Se algo acontecer comigo ou com o dinheiro do meu cliente, você e seu amigo vão sofrer muito. — Ele colocou os óculos escuros e sorriu. — Só para nos entendermos,
querido.
No hall de entrada do quarto, longe dos olhos das câmeras de vigilância do hotel, Keller revistou Sam à procura de armas ou aparelhos de gravação. Sem encontrar
nada importante, colocou a maleta na beira da cama e abriu os trincos. Então, tirou três pacotes de dinheiro e, de cada um, uma nota. Inspecionou cada nota com lentes
de aumento profissionais; depois, no banheiro escuro, submeteu-as à lâmpada ultravioleta de Gabriel. As fitas de segurança brilharam verde limão; as notas eram genuínas.
Ele devolveu as notas a seus pacotes e estes à maleta. Então fechou os trincos e, com um aceno de cabeça, indicou que estavam prontos para passar ao próximo passo.
— Quando? — perguntou Sam.
— Amanhã à noite.
— Tenho uma ideia melhor — falou ele. — Vamos hoje à noite. Ou então, não tem acordo.
Maurice Durand tinha dito para esperarem algo assim — uma pequena jogada tática, uma rebeldia simbólica, que permitiria a Sam sentir que era ele, e não Keller, que
estava controlando o processo de negociação. Keller recusou gentilmente, mas Sam bateu o pé. Queria estar na frente do Van Gogh antes da meia-noite; se não estivesse,
ele e seus 25 milhões de euros desapareceriam. O que não deixou a Keller outra opção a não ser aceitar os desejos de seu oponente. Fez isso com um sorriso de concessão,
como se a mudança de planos fosse pouco mais que uma inconveniência. Então rapidamente estabeleceu as regras para mostrá-lo essa noite. Sam poderia tocar o quadro,
cheirar o quadro ou fazer amor com o quadro. Mas sob nenhuma circunstância poderia fotografá-lo.
— Onde e quando? — perguntou Sam.
— Vamos ligar às nove e dizer como proceder.
— Tudo bem.
— Onde você está hospedado?
— O senhor sabe exatamente onde estou hospedado, sr. Bartholomew. Vou estar no lobby do Crillon às nove da noite, sem amigos, sem armas. E diga para seu amigo não
me deixar esperando dessa vez.
Ele saiu do hotel dez minutos depois, com seu chapéu e óculos escuros, e caminhou até o HSBC Private Bank no boulevard Haussmann, onde, supostamente, devolveu o
um milhão de euros ao cofre do seu cliente. Depois, caminhou a pé até o Musée d’Orsay e passou as duas horas seguintes estudando os quadros de um tal Vincent van
Gogh. Quando saiu do museu, eram quase seis. Comeu um jantar leve em um bistrô no Champs-Élysées e depois voltou ao seu quarto no Crillon. Como prometido, estava
no lobby às nove horas em ponto, vestido com calça cinza, um pulôver negro e uma jaqueta de couro. Gabriel sabia disso porque estava sentado a poucos passos, no
bar. Esperou dois minutos depois das nove antes de ligar para o número de Sam.
— Sabe usar o metrô de Paris?
— Claro.
— Caminhe até a estação Concorde e pegue o número 12 até Marx Dormoy. O sr. Bartholomew estará esperando por você.
Sam saiu do lobby. Gabriel ficou no bar por outros cinco minutos. Então pegou seu carro com o manobrista e foi até a casa de campo na Picardia.
A estação Marx Dormoy estava localizada no oitavo Arrondissement, na rue de la Chapelle. Keller estava estacionado do outro lado da rua fumando um cigarro quando
Sam subiu a escada. Caminhou até o carro e entrou no lado do passageiro sem uma palavra.
— Onde está seu celular? — perguntou Keller.
Sam tirou do bolso do casaco e mostrou a Keller.
— Desligue e tire o chip.
Sam obedeceu. Keller pôs o carro em movimento e avançou pelo trânsito noturno.
Ele permitiu que Sam ficasse no banco do passageiro até chegarem aos subúrbios do norte. Então, parou perto de algumas árvores antes da cidade de Ézanville e mandou
que ele entrasse no porta-malas. Pegou o caminho mais longo até a Picardia, acrescentando pelo menos uma hora à viagem. Como resultado, era quase meia-noite quando
ele chegou à casa de campo. Quando Sam saiu do porta-malas, viu a silhueta de um homem parado sob a luz da lua na entrada da propriedade.
— Imagino que seja seu sócio.
Keller não respondeu. Em vez disso, levou-o até a porta traseira da propriedade e desceu um lance de escada até a adega. Encostado em uma parede, iluminado por uma
lâmpada pendurada de um fio, estava Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Vincent van Gogh. Sam ficou parado na frente dele por um longo momento
sem falar. Keller permaneceu ao seu lado.
— Então? — perguntou ele finalmente.
— Num minuto, sr. Bartholomew. Num minuto.
Finalmente, deu um passo, pegou o quadro pelas laterais e virou para examinar as marcas do museu na parte de trás da tela. Então olhou para as pontas do quadro e
fez uma careta.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Vincent era famoso por ser descuidado na forma como tratava seus quadros. Olha aqui — acrescentou ele, virando as pontas do quadro para Keller. — Ele deixou suas
digitais por todo lado.
Sam sorriu, segurou o quadro perto da luz e passou vários minutos examinando cuidadosamente as pinceladas. Em seguida, colocou-o em sua posição original e deu um
passo para trás, a fim de observar à distância. Dessa vez, Keller não interrompeu seu silêncio.
— Espetacular — falou depois de um momento.
— E real — acrescentou Keller.
— Poderia ser. Ou poderia ser o trabalho de um falsificador muito talentoso.
— Não é.
— Vou precisar realizar um teste simples para ter certeza, uma análise de lasca de tinta. Se o quadro for genuíno, fechamos negócio. Se não for, você nunca mais
vai ouvir falar de mim, deixando-o livre para empurrá-lo a um comprador menos sofisticado.
— Quanto tempo vai levar?
— Setenta e duas horas.
— Você tem 48.
— Não vai me apressar, sr. Batholomew. Nem meu cliente.
Keller hesitou antes de assentir uma vez. Usando um bisturi cirúrgico, Sam removeu com cuidado dois pequenos pedaços de tinta da tela — um da parte inferior direita,
a outra da parte inferior esquerda — e colocou-as em um frasco de vidro. Então enfiou o frasco no bolso do casaco e, seguido por Keller, subiu as escadas. Do lado
de fora, a figura em silhueta ainda estava parada na porta da casa.
— Vou conhecer seu sócio? — perguntou Sam.
— Não aconselho — respondeu Keller.
— Por que não?
— Porque seria o último rosto que você veria.
Sam franziu a testa e entrou no porta-malas da Mercedes. Keller fechou o trinco e voltou a Paris.
Eram todas operações conhecidas, cada uma de natureza específica, mas eles mais tarde diriam que os três dias seguintes passaram com a velocidade de um rio congelado.
O conhecido autodomínio de Gabriel o abandonou. Ele tinha organizado o roubo de um dos quadros mais famosos do mundo como parte de um golpe para encontrar outro;
e mesmo assim tudo poderia não dar em nada se o homem chamado Sam desistisse do negócio. Só Maurice Durand, talvez o especialista mais conhecido no comércio ilícito
de arte, continuava confiante. Em sua experiência, colecionadores sujos como o sr. Grandão raramente desistiam da chance de comprar um Van Gogh. Claro, ele falou,
a isca do Doze Girassóis numa Jarra era muito forte para resistir. A menos que Gabriel tivesse mostrado a Sam a falsificação por erro, o que não tinha, a análise
da tinta seria positiva e o negócio continuaria.
Eles tinham outra opção caso Sam desistisse; poderiam segui-lo e tentar determinar a identidade de seu cliente, o homem de grande riqueza que estava disposto a pagar
25 milhões de euros por uma obra de arte roubada. Era só uma das razões pelas quais Gabriel e Keller, dois dos homens mais experientes em vigilância do mundo, monitoraram
cada movimento de Sam durante os três dias de espera. Vigiavam de manhã enquanto ele caminhava pelos passeios de Tuileries, à tarde enquanto visitava as atrações
turísticas para manter seu disfarce e à noite quando jantava, sempre sozinho, na Champs-Élysées. A impressão que dava era de disciplina. Em algum momento de sua
vida, Keller e Gabriel concordaram, Sam tinha sido membro da irmandade secreta de espiões. Ou talvez, pensaram, ainda seja.
Na manhã do terceiro dia, ele deu um susto nos dois quando não apareceu para sua caminhada usual. Ficaram mais preocupados às quatro da tarde quando viram como ele
saía do Crillon com duas grandes malas e subia em uma limusine. Mas a preocupação rapidamente desapareceu quando o carro o levou até o HSBC Private Bank no boulevard
Haussmann. Trinta minutos depois, ele estava de volta ao seu quarto. Havia somente duas possibilidades, falou Keller. Ou Sam tinha realizado o mais silencioso roubo
de banco da história ou tinha acabado de retirar uma grande soma em dinheiro de um cofre. Keller suspeitava que fosse a segunda opção. Assim como Gabriel. Portanto,
o suspense era pouco quando chegou a hora de Sam finalmente ligar com uma resposta. Keller fez as honras. Quando a ligação terminou, ele olhou para Gabriel e sorriu.
— Podemos nunca encontrar o Caravaggio — disse ele —, mas acabamos de tirar 25 milhões de euros do sr. Grandão.
24
CHELLES, FRANÇA
MAS HAVIA UMA CONDIÇÃO: Sam se reservava o direito de escolher a hora e o lugar da troca de dinheiro e mercadoria. A hora, ele falou, seria onze e meia da noite
seguinte. O lugar seria um depósito em Chelles, uma comuna apagada no leste de Paris. Keller dirigiu até lá na manhã seguinte enquanto o resto do norte da França
estava viajando para o centro da cidade. O depósito estava onde Sam tinha dito que estaria, na avenida François Miterrand, bem em frente a uma concessionária Renault.
Havia uma placa apagada onde se lia EUROTRANZ, apesar de que não havia nenhuma indicação do tipo de serviços que a empresa realizava. Pombas entravam e saíam das
janelas quebradas; havia muitos arbustos crescendo por trás das barras do portão de ferro. Keller desceu do carro e inspecionou o portão automático. Há muito tempo
ninguém o abria.
Ele passou uma hora fazendo um reconhecimento de rotina nas ruas ao redor do depósito e depois seguiu para o norte até a casa de campo em Andeville. Quando chegou,
encontrou Gabriel e Chiara descansando no jardim ensolarado. Os dois Van Gogh estavam encostados na parede na sala.
— Ainda não sei como você consegue diferenciar um do outro — falou Keller.
— É bastante óbvio, não acha?
— Não.
Gabriel inclinou a cabeça para o quadro da direita.
— Tem certeza?
— Estas são minhas digitais nas laterais da tela, não as de Vincent. E tem isso.
Gabriel ligou seu BlackBerry do Escritório e o segurou perto do canto superior direito da tela. A tela piscou vermelha, indicando a presença de um transmissor escondido.
— Tem certeza da distância? — perguntou Keller.
— Testei de novo essa manhã. Funciona perfeitamente a dez quilômetros.
Keller olhou para o Van Gogh genuíno.
— Pena que ninguém pensou em colocar um rastreador nesse.
— É — falou Gabriel, distante.
— Quanto tempo você pensa ficar com ele?
— Nem um dia a mais do que o necessário.
— Quem vai guardá-lo enquanto seguimos a falsificação?
— Estava querendo deixá-lo na embaixada em Paris — falou Gabriel —, mas o chefe de estação não quer nem saber. Então tive que organizar outra coisa.
— Que coisa?
Quando Gabriel respondeu, Keller balançou a cabeça.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller sorriu.
— Nem me fale.
Eles deixaram a exótica casa de campo pela última vez às oito da noite. A cópia do Doze Girassóis numa Jarra estava no porta-malas da Mercedes de Keller; o Van Gogh
autêntico estava no de Gabriel. Ele o entregou a Maurice Durand em sua loja na rue de Miromesnil. Então deixou Chiara no apartamento seguro com vista para Pont Marie
e partiu para a comuna de Chelles.
Chegou alguns minutos antes das onze e foi até o depósito na avenida François Mitterrand. Era uma parte da cidade onde havia pouca vida nas ruas quando escurecia.
Ele circulou duas vezes a propriedade, procurando evidências de vigilância ou algo que sugeria que Keller estava a ponto de cair em uma armadilha. Sem encontrar
nada fora do comum, procurou um bom ponto de observação onde um homem sentado sozinho não atrairia a atenção da polícia. A única opção era um parque onde uns skatistas
estavam bebendo cerveja. De um lado do parque havia uma fileira de bancos iluminados por lâmpadas amareladas. Gabriel estacionou o carro na rua e se sentou no banco
mais perto da entrada da Eurotranz. Os skatistas olharam para ele estranhando por um momento antes de voltarem a discutir as questões do dia. Gabriel olhou para
seu relógio. Eram 11h05. Aí consultou seu BlackBerry. O sinal ainda não estava dentro do alcance.
Erguendo a cabeça, viu os faróis de um carro na avenida. Um pequeno Citröen vermelho passou pela entrada da Eurotranz e seguiu pela beira do parque, deixando a vibração
do hip-hop francês no ar. Atrás vinha outro carro, uma BMW preta tão limpa que parecia ter sido recentemente lavada para a ocasião. Parou no portão e o motorista
desceu. No escuro era impossível ver seu rosto, mas pela constituição e movimento era um sósia de Sam.
Ele apertou o teclado algumas vezes com a confiança de um homem que conhece a combinação há muito tempo. Então voltou a subir no carro, esperou o portão abrir, e
entrou. Parou enquanto o portão se fechava e depois foi até a entrada do depósito. Novamente, desceu do carro e apertou o teclado de segurança com uma velocidade
que sugeria familiaridade. Quando a porta se abriu, ele entrou com o carro e desapareceu de vista.
No pequeno parque escuro, a chegada de um carro de luxo em um depósito abandonado na avenida François Mitterand passou despercebida por todo mundo, exceto pelo homem
de meia idade sentado sozinho. O homem olhou para seu relógio e viu que eram 23h08. Aí consultou seu BlackBerry. A luz vermelha estava piscando e vindo em sua direção.
Keller chegou exatamente às onze e meia da noite. Ligou para o celular de Sam e o portão se abriu. Um caminho de asfalto com buracos se abria na frente dele, vazio,
escuro. Ele avançou lentamente e, seguindo as instruções de Sam, embicou o carro no depósito. Do lado oposto de um espaço do tamanho de um campo de futebol brilhavam
os faróis baixos de uma BMW. Keller podia ver a figura de um homem inclinado sobre o capô, com um telefone ao ouvido e duas grandes malas aos pés. Não havia mais
ninguém visível.
— Pare aí — falou Sam.
Keller pisou no freio.
— Desligue o motor e apague os faróis.
Keller fez como instruído.
— Saia do carro e fique onde eu possa vê-lo.
Keller saiu devagar e ficou parado na frente do carro. Sam enfiou a mão dentro da BMW e acendeu os faróis.
— Tire seu casaco.
— Isso é realmente necessário?
— Quer o dinheiro ou não?
Keller tirou seu casaco e o jogou sobre o capô do carro.
— Vire-se e fique de frente para o carro.
Keller hesitou, depois se virou de costas para Sam.
— Muito bom.
Keller se virou devagar e encarou Sam de novo.
— Onde está o quadro?
— No porta-malas.
— Pegue-o e coloque no chão alguns metros na frente do carro.
Keller abriu o porta-malas e tirou o quadro. Estava envolvido com uma camada protetora de papel vegetal e escondido dentro de um saco de lixo comum. Colocou no chão
de concreto do depósito a uns cinco metros na frente da Mercedes e esperou pela próxima instrução de Sam.
— Volte para seu carro — veio a voz do lado oposto do depósito.
— De jeito nenhum — respondeu Keller para o brilho dos faróis de Sam.
Ocorreu um breve impasse. Então Sam se aproximou. Parou a poucos metros de Keller, olhou para o chão e franziu a testa.
— Preciso vê-lo mais uma vez.
— Então sugiro que remova o envoltório de plástico. Mas eu seria cuidadoso, Sam. Se algo acontecer com esse quadro, você será o responsável.
Sam se agachou e removeu o quadro de dentro do saco. Então virou a imagem na direção dos faróis de seu carro e observou as pinceladas e a assinatura.
— Então? — perguntou Keller.
Sam olhou para as digitais na lateral da moldura, depois para as marcas do museu na parte de trás.
— Um minuto — falou baixinho. — Um minuto.
O carro de Keller saiu do depósito às 23h40. O portão estava aberto quando ele chegou. Virou para a direita e passou rápido pelo banco onde Gabriel estava sentado.
Gabriel o ignorou; estava olhando os faróis traseiros de uma BMW que se movia pela avenida François Mitterand. Olhou para o BlackBerry e sorriu. Tinha funcionado,
ele pensou. Tinha realmente funcionado.
A luz vermelha piscava com a regularidade de uma pulsação. Flutuou pelos subúrbios de Paris e depois correu para o leste pela A4 até Reims. Gabriel seguia um quilômetro
atrás e Keller um quilômetro atrás de Gabriel. Eles falaram por telefone só uma vez, uma breve conversa durante a qual Keller confirmou que o negócio tinha sido
concretizado. Sam tinha o quadro; Keller tinha o dinheiro de Sam. Estava escondido no porta-malas do carro, dentro do saco de lixo que Gabriel tinha colocado ao
redor da cópia do Doze Girassóis numa Jarra. Tudo exceto por um único pacote de notas de cem euros, que estava no bolso do casaco de Keller.
— Por que isso está no seu bolso? — perguntou Gabriel.
— Dinheiro para a gasolina — respondeu Keller.
Cento e vinte quilômetros separavam os subúrbios do leste de Paris de Reims, uma distância que Sam cobriu em menos de uma hora. Pouco depois da cidade, a luz vermelha
parou de repente na A4. Gabriel rapidamente o alcançou e viu Sam enchendo o tanque do carro em um posto da estrada. Imediatamente ligou para Keller e mandou que
encostasse; depois esperou até Sam voltar à estrada. Em poucos minutos, os três carros tinham retomado a formação original. Sam na frente, Gabriel seguindo um quilômetro
atrás de Sam e Keller seguindo um quilômetro atrás de Gabriel.
Depois de Reims, eles continuaram para o leste, passando por Verdun e Metz. Então a A4 virou para o sul levando todos até Estrasburgo, a capital da região da Alsácia
da França e sede do Parlamento Europeu. Na beira da cidade fluíam as águas verde-escuras do Reno. Alguns minutos depois do nascer do sol, 25 milhões de euros em
dinheiro e uma cópia de uma obra-prima roubada de Vincent van Gogh cruzaram para a Alemanha sem serem detectados.
A primeira cidade do lado alemão da fronteira era Kehl e depois de Kehl estava a autobahn A5. Sam seguiu até Karlsruhe; então entrou na A8 e se dirigiu a Stuttgart.
Quando chegou aos subúrbios do sul, o rush da manhã estava no auge. Ele cruzou lentamente a cidade pela Hauptstätterstrasse e abriu caminho por Stuttgart-Mitte,
um agradável distrito de escritórios e lojas no coração da metrópole. Gabriel sentiu que Sam estava perto de seu destino final, e se aproximou alguns metros. E então
aconteceu a coisa que ele menos esperava.
A luz vermelha piscante desapareceu de sua tela.
De acordo com o BlackBerry de Gabriel, a luzinha brilhou pela última vez no número oito da Böheimstrasse. O endereço correspondia a um hotel de estuque cinza que
parecia ter sido importado de Berlim Oriental durante os piores dias da Guerra Fria. Nos fundos do hotel, que davam a um beco, havia um estacionamento público. A
BMW estava no último nível, em um canto onde a lâmpada havia sido quebrada. Sam estava caído sobre o volante, os olhos bem abertos, sangue e pedaços do cérebro espalhados
por dentro do vidro. E Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon, tinha desaparecido.
25
GENEBRA
ELES FORAM EMBORA DE Stuttgart PELA mesma rota que tinham entrado e cruzaram de volta para a França em Estrasburgo. Keller foi para a Córsega; Gabriel, para Genebra.
Ele chegou no meio da tarde e imediatamente ligou para Christoph Bittel de um telefone público perto do lago. O membro da polícia secreta não pareceu gostar de ouvir
sua voz tão cedo. Ficou ainda menos feliz quando Gabriel explicou por que tinha voltado à cidade.
— De jeito nenhum — falou ele.
— Então acho que terei de contar ao mundo sobre todos esses quadros roubados que encontrei naquele cofre.
— Lá se foi o novo Gabriel Allon.
— A que horas nos encontramos, Bittel?
— Vou ver o que posso fazer.
Bittel demorou uma hora para limpar sua mesa na sede da NDB e outras duas horas para dirigir de Berna a Genebra. Gabriel estava esperando por ele em uma esquina
cheia de gente na rue du Rhône. Passava um pouco das seis. Pequenos bancários suíços estavam saindo dos bonitos edifícios de escritórios; lindas garotas e estrangeiros
astutos estavam entrando nos cafés animados. Tudo muito organizado. Até assassinos em massa se comportavam direito quando estavam em Genebra.
— Você ia me dizer por que devo abrir aquele cofre para você — falou Bittel enquanto voltava a enfrentar o trânsito com seu usual excesso de cuidado.
— Porque a operação em que estou envolvido está com um problema.
— Que tipo de problema?
— Um cadáver.
— Onde?
Gabriel hesitou.
— Onde? — perguntou Bittel de novo.
— Stuttgart — respondeu Gabriel.
— O árabe que levou um tiro na cabeça essa manhã no centro da cidade?
— Quem falou que era um árabe?
— O BfV.
O BfV era o serviço de segurança interno da Alemanha. Mantinha relações próximas com seu irmão germanófilo em Berna.
— Quanto sabem sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Quase nada e foi por isso que entraram em contato conosco. Parece que os assassinos levaram sua carteira depois de atirarem.
— Não foi tudo que levaram.
— Você é responsável pela morte dele?
— Não tenho certeza.
— Deixe-me perguntar de outra forma, Allon. Você colocou uma arma na cabeça dele e puxou o gatilho?
— Não seja ridículo.
— Não é uma pergunta absurda. Afinal, você tem um histórico quando se trata de cadáveres em solo europeu.
Gabriel não falou nada.
— Sabe o nome do homem que estava dentro do carro?
— Ele se chamava Sam, mas tenho a sensação de que seu nome verdadeiro era Samir.
— Sobrenome?
— Nunca me falou.
— Passaporte?
— Ele falava francês muito bem. Se tivesse que adivinhar, acho que era do Levante.
— Líbano?
— Talvez. Ou talvez Síria.
— Por que ele foi morto?
— Não tenho certeza.
— Pode fazer melhor que isso, Allon.
— É possível que estivesse de posse de um quadro que se parecia muito com o Doze Girassóis numa Jarra, de Vincent van Gogh.
— O que foi roubado de Amsterdã?
— Emprestado — falou Gabriel.
— Quem pintou a falsificação?
— Eu.
— Por que Sam estava com ele?
— Eu o vendi por 25 milhões de euros.
Bittel respirou fundo.
— Você me perguntou, Bittel.
— Onde está o quadro?
— Qual quadro?
— O Van Gogh verdadeiro — respondeu Bittel.
— Em mãos seguras.
— E o dinheiro?
— Em mãos ainda mais seguras.
— Por que você roubou um Van Gogh e vendeu uma cópia a um árabe chamado Sam?
— Porque estou procurando um Caravaggio.
— Para quem?
— Os italianos.
— Por que um agente da inteligência israelense está procurando um quadro para os italianos?
— Porque ele acha difícil dizer não às pessoas.
— E se eu puder colocá-lo naquele cofre? O que você espera encontrar?
— Para ser honesto com você, Bittel, não tenho ideia.
Bittel respirou fundo e pegou seu telefone.
Fez duas ligações, uma atrás da outra. A primeira foi para sua linda amiga no Freeport. A segunda foi para um arrombador que ocasionalmente fazia favores para a
NDB na área de Genebra. A mulher estava esperando no portão quando eles chegaram; o arrombador apareceu uma hora mais tarde. Seu nome era Zimmer. Tinha um rosto
redondo e suave, junto com o olhar assustado de um animal empalhado. Sua mão era tão fina e macia que Gabriel a soltou rapidamente, com medo de machucá-lo.
Tinha em seu poder uma mala retangular pesada de couro escuro, que agarrava firme enquanto seguia Bittel e Gabriel pela porta externa do depósito de Jack Bradshaw.
Se notou os quadros, não deu nenhum sinal disso; tinha olhos somente para o pequeno cofre perto da mesa. Havia sido construído por um fabricante alemão de Colônia.
Zimmer franziu a testa, como se esperasse algo mais desafiador.
O arrombador, como o restaurador de arte, não gostava que as pessoas ficassem olhando enquanto ele trabalhava. Por isso, Gabriel e Bittel foram forçados a se confinar
na sala interior do depósito que Yves Morel tinha usado como estúdio clandestino. Eles se sentaram no chão, encostados na parede e com as pernas esticadas. Era óbvio
pelos sons que vinham da porta aberta que Zimmer estava usando uma técnica conhecida como perfuração do ponto fraco. O ar tinha cheiro de metal quente. Lembrava
a Gabriel o cheiro de uma arma recentemente usada. Olhou para seu relógio e franziu a testa.
— Quanto tempo isso vai demorar? — perguntou ele.
— Alguns cofres são mais fáceis que outros.
— É por isso que sempre preferi uma carga bem colocada de explosivo plástico. Semtex é um grande equalizador.
Bittel tirou seu celular e foi repassando sua caixa de e-mails; Gabriel ficou mexendo na paleta de tintas de Yves Morel: ocre, dourado, vermelho... Finalmente, uma
hora depois que Zimmer começou a trabalhar, ouviu um forte barulho metálico na sala ao lado. O arrombador apareceu na porta, segurando sua mala de couro negro, e
acenou uma vez para Bittel.
— Acho que sei como ir embora — falou. E desapareceu.
Gabriel e Bittel ficaram de pé e foram até a sala ao lado. A porta do cofre estava um pouco aberta, um dedo, nada mais. Gabriel se aproximou, mas Bittel o impediu.
— Eu faço isso — disse ele.
Mandou Gabriel dar um passo para trás. Então abriu a porta do cofre e deu uma olhada no interior. Estava vazio, exceto por um envelope branco. Bittel o pegou e leu
o nome escrito na frente.
— O que é isso? — perguntou Gabriel.
— Parece ser uma carta.
— Para quem?
Bittel entregou a Gabriel e falou:
— Para você.
Parecia mais um memorando do que uma carta, um relatório pós-ação em campo escrito por um espião caído com problemas de consciência por sua traição. Gabriel leu
duas vezes, a primeira enquanto estava no depósito de Jack Bradshaw, e uma segunda vez enquanto estava sentado no salão de embarque do Aeroporto Internacional de
Genebra. Seu voo foi anunciado alguns minutos depois das nove, primeiro em francês, depois em inglês e, finalmente, em hebraico. O som de seu idioma nativo acelerou
sua pulsação. Ele enfiou a carta em sua mala de mão, levantou-se e embarcou no avião.
PARTE TRÊS
A JANELA ABERTA
26
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
O EDIFÍCIO COMERCIAL QUE FICAVA numa ponta do Boulevard Rei Saul era opaco, sem nenhuma característica e, melhor de tudo, anônimo. Não havia nenhum emblema pendurado
na entrada, nenhuma placa que mostrasse a identidade de seu ocupante. Na verdade, não havia nada para sugerir que era a sede de um dos serviços de inteligência mais
temidos e respeitados do mundo. Uma inspeção mais de perto da estrutura, no entanto, teria revelado a existência de um prédio dentro do prédio, com seu próprio fornecimento
de energia, suas próprias linhas de água e esgoto, e seu próprio sistema de comunicações seguras. Os funcionários carregavam duas chaves. Uma abria uma porta sem
nenhuma marca no lobby, a outra operava o elevador. Aqueles que cometiam o imperdoável pecado de perder uma ou as duas chaves eram banidos para o deserto da Judeia,
e nunca mais eram vistos ou citados.
Havia alguns funcionários que eram muito importantes ou cujo trabalho era muito confidencial para aparecer no lobby. Eles entravam no prédio “preto” através do estacionamento
no subsolo, como Gabriel fez trinta minutos depois que seu avião de Genebra aterrissou no aeroporto Ben-Gurion. Sua caravana incluía um veículo cheio de uma equipe
de segurança fortemente armada. Ele pensou que era um sinal do que estava por vir.
Dois dos agentes de segurança o seguiram até o elevador, que o levou até o andar mais alto do prédio. Do lobby, ele atravessou uma porta protegida até uma antessala
onde uma mulher com quase quarenta anos estava sentada atrás de uma mesa moderna com uma superfície negra brilhante. A mesa só tinha um abajur e um telefone multilinhas
seguro; a mulher tinha longas pernas queimadas de sol. Dentro do Boulevard Rei Saul ela era conhecida como a Cúpula de Ferro por sua habilidade imbatível de evitar
pedidos indesejados por uma palavra com o chefe. Seu nome verdadeiro era Orit.
— Está em uma reunião — falou ela, olhando para a luz vermelha brilhando em cima da impressionante porta dupla do chefe. — Sente-se. Não vai demorar.
— Ele sabe que estou no prédio?
— Sabe.
Gabriel se sentou no que era possivelmente o sofá mais desconfortável de todo Israel e olhou para a luz vermelha brilhando sobre a porta. Então olhou para Orit,
que sorriu, desconfortável.
— Posso servir algo? — perguntou ela.
— Um aríete — respondeu Gabriel.
Finalmente, a luz mudou de vermelho para verde. Gabriel se levantou rapidamente e entrou no escritório enquanto os participantes da reunião agora adiada saíam por
uma segunda porta. Reconheceu dois deles. Uma era Rimona Stern, a chefe do programa nuclear do Irã do Escritório. O outro era Mikhail Abramov, um agente de campo
e atirador que tinha trabalhado com Gabriel em várias operações de extrema importância. O terno que estava usando sugeria uma promoção recente.
Quando a porta se fechou, Gabriel se virou lentamente para encarar o único outro ocupante da sala. Estava parado perto de uma grande mesa de vidro escuro, uma pasta
aberta nas mãos. Usava um terno cinza que parecia um número menor e uma camisa branca com um colarinho alto que deixava a impressão de que sua cabeça estava parafusada
em seus fortes ombros. Seus óculos eram pequenos e sem aro, do tipo usado por executivos alemães que queriam parecer jovens e na moda. Seu cabelo, ou o que sobrara
dele, era espetado e grisalho.
— Desde quando Mikhail participa de reuniões na sala do chefe? — perguntou Gabriel.
— Desde que dei uma promoção a ele — respondeu Uzi Navot.
— A quê?
— Vice-chefe de Operações Especiais. — Navot colocou a pasta na mesa e sorriu, sem sinceridade. — Tudo bem se fizer movimentos de pessoal, Gabriel? Afinal, ainda
sou o chefe por mais um ano.
— Tinha planos para ele.
— Que tipo de planos?
— Na verdade, ia colocá-lo como responsável de Operações Especiais.
— Mikhail? Ele não está pronto, ainda falta muito.
— Ele vai ficar bem, desde que tenha um planejador operacional experiente olhando sobre o seu ombro.
— Alguém como você?
Gabriel ficou em silêncio.
— E eu? — perguntou Navot. — Já decidiu o que vai fazer?
— Isso depende totalmente de você.
— É óbvio que não.
Navot largou a pasta na mesa e apertou um botão do seu painel de controle que fez descer as venezianas lentamente sobre as janelas à prova de bala que iam do chão
ao teto. Ficou ali por um momento em silêncio, como se estivesse preso pelas barras de sombras. Gabriel vislumbrou um retrato desagradável de seu próprio futuro,
um homem cinzento em uma jaula cinzenta.
— Preciso admitir — falou Navot —, tenho muita inveja de você. O Egito está à beira da guerra civil, a al-Qaeda está controlado uma faixa de terra que vai de Faluja
ao Mediterrâneo, e um dos conflitos mais sangrentos da história moderna está acontecendo na nossa fronteira norte. E mesmo assim você tem tempo para ficar procurando
uma obra roubada para o governo italiano.
— Não foi ideia minha, Uzi.
— Poderia ter, pelo menos, mostrado a cortesia de pedir minha aprovação quando os carabinieri o procuraram.
— Teria dado?
— Claro que não.
Navot caminhou lentamente por sua longa mesa de reuniões executivas até a área de estar, mais confortável. As redes de televisão do mundo apareciam silenciosamente
em sua parede de vídeos; os jornais do mundo estavam organizados na mesa de café.
— A polícia europeia esteve bem ocupada ultimamente — falou ele. — Um expatriado britânico assassinado em lago Como, uma obra roubada de Van Gogh, e agora isso.
— Ele pegou uma cópia do Die Welt e entregou para que Gabriel visse. — Um árabe morto no meio de Stuttgart. Três eventos aparentemente desconectados com uma coisa
em comum. — Navot deixou o jornal cair sobre a mesa. — Gabriel Allon, o futuro chefe do serviço de inteligência de Israel.
— Duas coisas, na verdade.
— Qual é a segunda?
— LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— O pior homem do mundo.
— Ele está na folha de pagamento do Escritório?
— Não, Uzi — falou Gabriel, sorrindo. — Ainda não.
Navot conhecia em linhas gerais a busca de Gabriel pelo Caravaggio perdido, pois tinha acompanhado à distância: reservas de viagens aéreas, gastos de cartão de crédito,
passagens de fronteira, pedidos de propriedades seguras, notícias de uma obra desaparecida. Agora, sentado na sala que logo seria dele, Gabriel completou a narrativa,
começando com as reuniões com o general Ferrari em Veneza e terminando com a morte de um homem chamado Sam em Stuttgart — um homem que tinha acabado de pagar 25
milhões de euros por Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon. Então, ele entregou as três páginas da carta que Jack Bradshaw tinha
deixado para ele no Freeport de Genebra.
— O nome verdadeiro de Sam era Samir Basara. Bradshaw o conheceu quando estava trabalhando em Beirute. Samir era um clássico vigarista. Drogas, armas, garotas, todas
as coisas que faziam a vida mais interessante em um lugar como Beirute nos anos 1980. Mas na verdade, Samir não era libanês. Samir era da Síria, e estava trabalhando
para a inteligência síria.
— Estava trabalhando para eles quando foi morto?
— Com certeza — respondeu Gabriel.
— Fazendo o quê?
— Comprando arte roubada.
— De Jack Bradshaw?
Gabriel assentiu.
— Samir e Bradshaw renovaram seu relacionamento há 14 meses em um almoço em Milão. Samir tinha uma proposta de negócios. Disse que tinha um cliente, um empresário
rico do Oriente Médio que estava interessado em adquirir quadros. Em poucas semanas, Bradshaw usou seus contatos no submundo da arte para assegurar um Rembrandt
e um Monet, sendo que os dois tinham sido roubados. Isso não incomodava Samir. Na verdade, ele gostava disso. Deu a Bradshaw cinco milhões de dólares e o mandou
encontrar mais.
— Como ele pagava pelos quadros?
— Enviava o dinheiro para a empresa de Bradshaw através de algo chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— Vou chegar lá — falou Gabriel.
— Por que Sam queria quadros roubados?
— Também vou chegar lá. — Gabriel olhou para a carta. — Nesse ponto, Jack Bradshaw começou a comprar loucamente para seu novo cliente cheio de dinheiro. Uns Renoir,
um Matisse, um Corot que foi roubado do Museu de Belas Artes de Montreal, em 1972. Ele também adquiriu vários quadros italianos importantes que não deveriam deixar
o país. Samir ainda não estava satisfeito. Disse que seu cliente queria algo grande. Foi quando Bradshaw sugeriu o Santo Graal dos quadros desaparecidos.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Onde estava?
— Ainda na Sicília, nas mãos da Cosa Nostra. Bradshaw foi a Palermo e negociou o acordo. Depois de todos esses anos, os mafiosos realmente ficaram felizes por se
livrar dele. Bradshaw o levou à Suíça em um carregamento de tapetes. Não é preciso dizer que o retábulo não estava em boas condições quando chegou. Ele aceitou cinco
milhões de euros como adiantamento de Samir e contratou um falsificador francês para tornar a Natividade apresentável de novo. Mas algo aconteceu antes que pudesse
completar a venda.
— O quê?
— Ele descobriu quem estava comprando os quadros.
— Quem era?
Antes de responder, Gabriel voltou a uma pergunta que Navot tinha feito alguns minutos antes: por que o cliente rico de Samir Basara estava no mercado de quadros
roubados? Para responder isso, Gabriel primeiro explicou as quatro categorias básicas de ladrões de arte: o amante de arte sem dinheiro, o perdedor incompetente,
o profissional e o membro do crime organizado. O membro do crime organizado, ele falou, era responsável pelos grandes roubos. Às vezes ele tinha um comprador à espera,
mas geralmente os quadros roubados terminavam sendo usados como uma forma de dinheiro no submundo, um traveler check para a classe criminosa. Um Monet, por exemplo,
poderia ser usado como pagamento colateral para um envio de armas russas; um Picasso, por heroína turca. Eventualmente, alguém na rede de posse decidiria obter lucro,
normalmente com a ajuda de um intermediário especialista como Jack Bradshaw. Um quadro que vale duzentos milhões de dólares no mercado legítimo valeria vinte milhões
no mercado negro. Vinte milhões que nunca seriam rastreados, acrescentou Gabriel. Vinte milhões que nunca seriam congelados pelos governos dos Estados Unidos e da
União Europeia.
— Vê onde estou chegando com isso, Uzi?
— Quem é? — perguntou Navot de novo.
— É um homem que está por trás de uma terrível guerra civil, um homem que está acostumado a torturar sistematicamente, a criar barragens de artilharia indiscriminada
e ataques de armas químicas contra seu próprio povo. Viu Hosni Mubarak ser colocado em uma jaula e Muammar Gaddafi ser linchado por uma multidão louca por sangue.
Como resultado, está preocupado com o que poderia acontecer se caísse, e é por isso que pediu a Samir Basara para preparar um pequeno ninho para ele e sua família.
— Está dizendo que Jack Bradshaw estava vendendo quadros roubados para o presidente da Síria?
Gabriel levantou o rosto para as imagens piscando na parede de vídeos de Navot. O regime tinha acabado de atacar um bairro dominado por rebeldes em Damasco. O número
de mortos era incalculável.
— O dirigente sírio e seu clã valem bilhões — falou Navot.
— É verdade — respondeu Gabriel. — Mas os norte-americanos e a UE estão congelando seus bens e os de seus ajudantes mais próximos onde conseguem encontrá-los. Até
a Suíça congelou centenas de milhões de bens sírios.
— Mas grande parte da fortuna ainda está aí, em algum lugar.
— Por enquanto — falou Gabriel.
— Por que não barras de ouro ou cofres cheios de dinheiro? Por que quadros?
— Imagino que ele tenha ouro e dinheiro, também. Afinal, como qualquer assessor de investimentos diria, a diversidade é a chave para o sucesso a longo prazo. Mas
se fosse eu assessorando o presidente sírio — acrescentou Gabriel —, diria para investir em bens que são fáceis de esconder e transportar.
— Quadros? — perguntou Navot.
Gabriel assentiu.
— Se ele compra um quadro por cinco milhões no mercado negro, pode vender por quase o mesmo preço, menos comissões para o intermediário, claro. É um preço menor
a pagar para ter dezenas de milhões em dinheiro não rastreável.
— Engenhoso.
— Ninguém os acusou de serem estúpidos, só cruéis e brutais.
— Quem matou Samir Basara?
— Se eu tivesse que adivinhar, foi alguém que o conhecia. — Gabriel parou, depois acrescentou: — Alguém que estava sentado no banco de trás do carro quando puxou
o gatilho.
— Alguém da inteligência síria?
— É normalmente assim que funciona.
— Por que o mataram?
— Talvez soubesse muito. Ou talvez tenham ficado bravos com ele.
— Por quê?
— Por deixar que Jack Bradshaw descobrisse sobre as finanças pessoais da família dirigente.
— Quanto ele sabia?
Gabriel pegou a carta e falou:
— Bastante, Uzi.
27
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
– O QUE VOCÊ ACHA QUE BRADSHAW fez com o Caravaggio?
— Ele deve ter levado de volta a sua villa no lago Como — respondeu Gabriel. — Então, pediu a Oliver Dimbleby vir à Itália para dar uma olhada em sua coleção. Foi
uma falcatrua, uma operação inteligente concebida por um ex-espião britânico. O que ele realmente queria era que Oliver entregasse uma mensagem a Julian Isherwood
que, por sua vez, a entregaria a mim. Não saiu como planejado. Oliver enviou Julian a Como em seu lugar. E quando chegou, Bradshaw estava morto.
— E o Caravaggio desapareceu?
Gabriel assentiu.
— Por que Bradshaw queria contar a você sobre a conexão com o presidente sírio?
— Suponho que ele pensou que eu iria lidar com o assunto com discrição.
— E o que isso quer dizer?
— Eu não diria à polícia britânica ou italiana que ele era um ladrão e um intermediário — respondeu Gabriel. — Estava esperando encontrar-se comigo. Mas também tomou
a precaução de colocar tudo que sabia por escrito dentro do cofre no Freeport.
— Junto com alguns quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— Por que a súbita mudança de ideia? Por que não pegar o dinheiro sujo de sangue do dirigente e ir rindo até o banco?
— Nicole Devereaux.
Navot apertou os olhos, pensativo.
— Por que esse nome me é familiar?
— Ela era a fotógrafa da AFP que foi sequestrada e morta em Beirute nos anos 1980 — falou Gabriel. Então contou a Navot o resto da história: o caso amoroso, o recrutamento
pela KGB, meio milhão em uma conta de banco suíço. — Bradshaw nunca se perdoou pela morte de Nicole — acrescentou ele. — E certamente nunca perdoou o regime sírio
por matá-la.
Navot ficou em silêncio por um momento.
— Seu amigo Jack Bradshaw fez várias besteiras durante sua vida — falou finalmente. — Mas a coisa mais idiota que já fez foi aceitar cinco milhões de euros da família
governante da Síria por um quadro que não conseguiu entregar. Só há uma coisa que a família odeia mais do que deslealdade: pessoas que tentam roubá-los.
Navot assistia às imagens que passavam na parede de vídeo.
— Na minha opinião — falou ele —, é disso que se trata esse exercício inteiro de depravação humana. Cento e cinquenta mil mortos e milhões de pessoas sem lugar para
morar. E para quê? Por que a família do governante está se agarrando a isso como se não houvesse amanhã? Por que estão praticando assassinato em escala industrial?
Pela fé deles? Pelo ideal sírio? Não existe ideal sírio. Francamente, não existe mais Síria. E mesmo assim as mortes acontecem por um motivo, e apenas um motivo.
— Dinheiro — falou Gabriel.
Navot assentiu lentamente.
— Você parece ter uma visão especial sobre a situação da Síria, Uzi.
— Por acaso sou casado com uma conceituada especialista sobre a Síria e o movimento baathista. — Ele parou, então acrescentou: — Mas você já sabia isso.
Navot levantou, caminhou até o aparador e serviu uma xícara de café da garrafa térmica. Gabriel notou a ausência de creme ou biscoitos amanteigados, duas coisas
que Navot não conseguia resistir. Ele bebia seu café preto agora, sem nenhum acompanhamento a não ser uma pastilha de adoçante branco, que colocou em sua xícara
de um recipiente plástico.
— Desde quando você coloca cianeto no seu café, Uzi?
— Bella quer que eu perca o vício em açúcar. Em seguida, será a cafeína.
— Não consigo imaginar esse trabalho sem cafeína.
— Logo vai descobrir.
Navot sorriu mesmo sem vontade e voltou para sua cadeira. Gabriel estava olhando os monitores de vídeo. O corpo de uma criança — menino ou menina, era impossível
dizer — estava sendo retirado do meio dos escombros. Uma mulher estava em prantos. Um homem barbudo clamava por vingança.
— Quanto há? — perguntou ele.
— Dinheiro?
Gabriel assentiu.
— Dez bilhões é o número que aparece na imprensa — respondeu Navot —, mas achamos que o número real é muito maior. E é todo controlado por Kemel al-Farouk. — Navot
olhou de canto de olho para Gabriel e perguntou: — Conhece o nome?
— A Síria não é minha área de especialização, Uzi.
— Logo será. — Navot deu outro sorriso apagado antes de continuar. — Kemel não é um membro da família dirigente, mas esteve trabalhando nos negócios da família por
toda sua vida. Começou como guarda-costas do pai do dirigente. Kemel recebeu uma bala pelo velho no final dos anos setenta e o pai do dirigente nunca esqueceu isso.
Deu a Kemel um bom trabalho na Mukhabarat, onde ele ganhou uma reputação como interrogador terrível de prisioneiros políticos. Costumava pregar membros da Irmandade
Muçulmana na parede por diversão.
— Onde ele está agora?
— Seu título oficial é vice-ministro de Estado para Relações Exteriores, mas em muitos aspectos é quem está dirigindo o país e a guerra. O dirigente nunca toma decisões
sem falar primeiro com Kemel. E, talvez mais importante, Kemel é quem está cuidando do dinheiro. Ele colocou uma parte da fortuna em Moscou e Teerã, mas de jeito
nenhum confiaria totalmente nos russos e nos iranianos. Achamos que ele tem alguém trabalhando na Europa Ocidental escondendo os bens. O que não sabemos — falou
Navot —, é quem é essa pessoa ou onde está escondendo o dinheiro.
— Graças a Jack Bradshaw, agora sabemos que parte dele está na LXR Investments. E podemos usar a LXR como janela para ver o resto do dinheiro da família.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio. Navot assistia a outro corpo sendo retirado dos escombros em Damasco.
— É duro para os israelenses verem cenas como essa — falou depois de um momento. — Nos deixa incomodados. Traz más recordações. Nosso instinto natural é matar o
monstro antes que o monstro possa fazer mais danos. Mas o Escritório e a IDF concluíram que é melhor deixar o monstro no lugar, pelo menos por enquanto, porque a
alternativa poderia ser pior. E os norte-americanos e os europeus chegaram à mesma conclusão, apesar de todas as conversações otimistas sobre a negociação de um
acordo. Ninguém quer que a Síria caia nas mãos da al-Qaeda, mas isso é o que vai acontecer se a família governante cair.
— Boa parte da Síria já é controlada pela al-Qaeda.
— Verdade — concordou Navot. — E o contágio está se espalhando. Há algumas semanas, uma delegação de chefes de inteligência europeu foi a Damasco com uma lista de
seus cidadãos muçulmanos que vieram à Síria se unir à jihad. Eu poderia ter dado a eles mais alguns nomes, mas não fui convidado para a festa.
— Que surpresa.
— Provavelmente foi melhor não ter ido. Na última vez que estive em Damasco, viajei sob um nome falso.
— Quem?
— Vincent Laffont.
— O escritor de guias de viagem.
Navot assentiu.
— Sempre foi um dos meus favoritos — disse Gabriel.
— Meu também. — Navot colocou sua xícara de café na mesa. — O Escritório nunca evitou se comprometer com crimes estranhos a serviço de uma operação moral e justa.
Mas se atropelarmos o sistema bancário internacional, as repercussões podem ser desastrosas.
— A família governante síria não teve acesso a esses bens honestamente, Uzi. Já estão saqueando a economia por duas gerações.
— Isso não significa que podemos roubá-las.
— Não — falou Gabriel com um remorso fingido. — Isso seria errado.
— Então, o que está sugerindo?
— Congelarmos os bens.
— Como?
Gabriel sorriu e falou:
— Ao estilo do Escritório.
— Que tal nossos amigos em Langley? — perguntou Navot quando Gabriel tinha terminado de explicar.
— O que tem?
— Não podemos lançar uma operação como essa sem o apoio da Agência.
— Se contarmos à Agência, eles vão contar à Casa Branca. E isso vai terminar na primeira página do The New York Times.
Navot sorriu.
— Tudo que precisamos é da aprovação do primeiro-ministro e do dinheiro para realizar a operação.
— Já temos dinheiro, Uzi. Muito dinheiro.
— Os 25 milhões que você ganhou com a venda do Van Gogh falso?
Gabriel assentiu.
— É a beleza dessa operação — falou ele. — Ela se autofinancia.
— Onde está o dinheiro agora?
— Pode estar no porta-malas do carro de Christopher Keller.
— Na Córsega.
— Infelizmente.
— Vou mandar um bodel para pegá-lo.
— O grande dom Orsati não lida com mensageiros, Uzi. Ele acharia isso um insulto muito grande.
— O que está sugerindo?
— Vou resgatar o dinheiro assim que tivermos uma operação em funcionamento, apesar de que seja possível que tenha de deixar um pequeno pagamento de tributo ao Dom.
— Pequeno? Quanto?
— Dois milhões devem deixá-lo feliz.
— Isso é muito dinheiro.
— Uma mão lava a outra, e as duas mãos lavam o rosto.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente, Uzi.
O que faltava era pensar na composição da equipe operacional de Gabriel. Rimona Stern e Mikhail Abramov eram indispensáveis, ele falou. Assim como Dina Sarid, Yossi
Gavish e Yaakov Rossman.
— Não é possível ter Yaakov num momento como esse — objetou Navot.
— Por que não?
— Porque Yaakov é quem está rastreando todos os mísseis e outros artigos mortais que estão indo dos sírios para os amigos deles no Hezbollah.
— Yaakov pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
— Quem mais?
— Preciso de Eli Lavon.
— Ele ainda está escavando embaixo do Muro das Lamentações.
— Amanhã à tarde, ele já estará escavando em outro lugar.
— Só isso?
— Não — falou Gabriel. — Tem outra pessoa que preciso para uma operação como essa.
— Quem?
— A maior especialista do país em Síria e no movimento baathista.
Navot sorriu.
— Talvez você devesse levar uns guarda-costas, por segurança.
28
PETAH TIKVA, ISRAEL
OS NAVOTS VIVIAM NO lado oriental de Petah Tikva, em uma rua calma onde as casas ficavam escondidas atrás de muros de concreto e arbustos. Havia uma campainha perto
do portão de metal, que tocou em silêncio quando Gabriel apertou. Olhou diretamente para as lentes da câmera de segurança e apertou de novo. Dessa vez, o intercomunicador
emitiu o som da voz de uma mulher.
— Quem é?
— Sou eu, Bella. Abra o portão.
Outro silêncio, 15 segundos, talvez mais, antes que o trinco fosse liberado com uma pancada. Conforme o portão abria, surgia a casa, uma estrutura cubista com grandes
janelas reforçadas e uma antena de comunicações seguras aparecendo no teto. Bella estava à sombra do pórtico, os braços cruzados na defensiva. Ela usava calça de
seda branca e blusa amarela com um cinto na cintura esbelta. Seu cabelo escuro parecia recém-pintado e penteado. De acordo com a usina de rumores do Escritório,
ela tinha uma hora marcada toda manhã em um dos salões mais exclusivos de Tel Aviv.
— Você tem muita coragem de vir a essa casa, Gabriel.
— Para com isso, Bella. Vamos tentar ser civilizados.
Ela ficou parada um momento antes de se virar e, com um movimento indiferente da mão, convidá-lo a entrar. Tinha decorado os cômodos da casa como a seu marido: cinza,
brilhante, moderno. Gabriel a seguiu pela muito brilhante cozinha cromada e de granito negro polido, indo até o terraço do fundo onde estava servido um almoço leve
israelense. A mesa estava na sombra, mas o sol brilhava forte no jardim. Havia pequenas piscinas e fontes murmurantes. Gabriel se lembrou de repente que Bella sempre
tinha adorado o Japão.
— Adoro o que você fez com esse lugar, Bella.
— Sente-se — foi tudo que ela respondeu.
Gabriel se sentou em uma cadeira de jardim com almofada. Bella serviu um copo alto de suco de laranja e colocou bem na frente dele.
— Já pensou onde você e Chiara vão morar quando se tornar chefe? — perguntou ela.
Ele não sabia dizer se a pergunta dela sincera ou maliciosa. Decidiu responder honestamente.
— Chiara acha que precisamos viver perto do Boulevard Rei Saul — falou ele —, mas eu preferia ficar em Jerusalém.
— É muito longe.
— Não vou dirigir o carro.
O rosto dela ficou tenso.
— Desculpe, Bella. Não foi isso que quis dizer.
Ela não respondeu diretamente.
— Nunca gostei muito de Jerusalém. Perto demais de Deus para meu gosto. Gosto daqui, o meu pequeno subúrbio secular.
Um silêncio se abateu entre eles. Os dois sabiam a verdadeira razão pela qual Gabriel preferia Jerusalém a Tel Aviv.
— Desculpe por nunca ter enviado a você e Chiara os parabéns pela gravidez. — Ela deu um breve sorriso. — Deus sabe como os dois merecem alguma felicidade depois
de tudo que aconteceu.
Gabriel assentiu e murmurou algo apropriado. Bella nunca tinha dado os parabéns, ele pensou, porque sua raiva não tinha permitido. Ela tinha um comportamento vingativo.
Era uma de suas características mais duradouras.
— Acho que deveríamos conversar, Bella.
— Achei que estávamos conversando.
— Conversar de verdade — falou ele.
— Seria melhor se nos comportássemos como personagens em um daqueles programas de suspense que passam na BBC. Ou posso falar algo que me arrependa depois.
— Há uma razão pela qual esses programas nunca têm Israel como cenário. Não falamos daquela forma.
— Talvez devêssemos.
Ela pegou um prato e começou a servir Gabriel.
— Não estou com fome, Bella.
Ela colocou o prato na mesa.
— Estou brava com você, droga.
— Achei que sim.
— Por que está roubando o cargo do Uzi?
— Não estou.
— Como descreveria isso?
— Não tive escolha.
— Poderia ter dito não a eles.
— Eu tentei. Não funcionou.
— Deveria ter tentado mais.
— Não foi culpa minha, Bella.
— Eu sei, Gabriel! Nada nunca é culpa sua.
Ela olhou para as fontes no jardim. Isso pareceu acalmá-la momentaneamente.
— Nunca vou esquecer a primeira vez que vi você — falou, finalmente. — Estava andando sozinho por um corredor dentro do Boulevard Rei Saul, pouco depois de Túnis.
Você estava exatamente como está agora, os mesmos olhos verdes, as mesmas têmporas grisalhas. Era como um anjo, o anjo da vingança de Israel. Todo mundo adorava
você. Uzi idolatrava você.
— Não vamos exagerar, Bella.
Ela agiu como se não tivesse ouvido.
— E então aconteceu Viena — retomou ela depois de um momento. — Foi um cataclisma, um desastre de proporções bíblicas.
— Todos perdemos entes queridos, Bella. Todos ficamos de luto.
— É verdade, Gabriel. Mas Viena foi diferente. Você nunca mais foi o mesmo depois de Viena. Nenhum de nós foi. — Ela fez uma pausa e acrescentou: — Especialmente
Shamron.
Gabriel seguiu o olhar de Bella até o jardim, mas por um momento ele foi transportado para o pátio iluminado pelo sol da Academia Bezalel de Arte e Design em Jerusalém.
Era setembro de 1972, alguns dias depois do assassinato de 11 atletas e técnicos israelenses nas Olimpíadas de Munique. Do nada apareceu um homem que parecia uma
pequena barra de ferro, com óculos negros horríveis e dentes como uma armadilha de aço. O homem não falou seu nome, pois não era necessário. Era o homem sobre o
qual falavam somente em sussurros. Era quem tinha roubado os segredos que levaram Israel à vitória rápida na Guerra dos Seis Dias. O que tinha sequestrado Adolf
Eichmann, diretor-gerente do Holocausto, em uma esquina argentina.
Shamron...
— Ari se culpou pelo que aconteceu com você em Viena — dizia Bella. — E ele nunca se perdoou, também. Tratou você como um filho depois daquilo. Ele o deixava fazer
o que quisesse. Mas nunca desistiu da esperança de que um dia você viria e assumiria o controle do Escritório que ele amava tanto.
— Sabe quantas vezes eu recusei o cargo?
— Tantas que Shamron acabou entregando a Uzi. Ele ganhou o cargo como um prêmio de consolação.
— Na verdade, fui eu que sugeri que Uzi se tornasse o novo chefe.
— Como se o cargo fosse seu pra poder atribuir. — Ela sorriu, amarga. — Uzi já contou que eu o aconselhei a não aceitar o cargo?
— Não, Bella. Ele nunca mencionou isso.
— Sempre soube que terminaria assim. Você deveria ter deixado o palco sem fazer alarde e ficado na Europa. Mas o que fez? Inseriu um carregamento de centrífugas
sabotadas na cadeia de suprimentos nucleares iraniana e destruiu quatro instalações de enriquecimento secretas.
— Essa operação ocorreu sob a supervisão do Uzi.
— Mas foi sua operação. Todo mundo no Boulevard Rei Saul sabe que foi sua, assim como todo mundo na rua Kaplan.
A rua Kaplan era a localização do escritório do primeiro-ministro. Sem dúvidas, Bella era uma visitante bastante frequente. Gabriel sempre suspeitou que a influência
dela no Boulevard Rei Saul ia muito além da decoração do escritório de seu marido.
— Uzi tem sido um bom chefe — falou ela. — Um excelente chefe. Ele só tem um defeito. Não é você, Gabriel. Ele nunca vai ser você. E por isso, está sendo descartado.
— Não se eu puder evitar.
— Já não fez o suficiente?
Dentro da casa tocou um telefone. Bella não mostrou nenhum interesse em atender.
— Por que está aqui? — perguntou ela.
— Quero conversar sobre o futuro do Uzi.
— Graças a você, ele já não tem nenhum.
— Bella...
Ela se recusava a se acalmar, não tão cedo.
— Se você tem algo a falar sobre o futuro do Uzi, deveria conversar com ele.
— Achei que seria mais produtivo se passasse por cima dele.
— Não tente me lisonjear, Gabriel.
— Nem sonharia em fazer isso.
Ela bateu a unha de seu dedo indicador na mesa. Tinha sido recentemente pintada.
— Ele me contou sobre a conversa que tiveram em Londres quando estavam procurando aquela garota sequestrada. Não é preciso dizer que não pensei muito na sua proposta.
— Por que não?
— Porque não há precedentes para isso. Quando termina o período de um chefe, ele gentilmente desaparece na noite, nunca mais se ouve falar dele.
— Diga isso ao Shamron.
— Shamron é diferente.
— Eu também.
— O que você está propondo exatamente?
— Dirigirmos juntos o Escritório. Eu serei o chefe e Uzi será meu vice.
— Nunca vai funcionar.
— Por que não?
— Porque vai deixar a impressão de que você não está totalmente preparado para o cargo.
— Ninguém pensa isso.
— A aparência é importante.
— Você está me confundindo com outra pessoa, Bella.
— Com quem?
— Com alguém que se preocupa com as aparências.
— E se ele concordar?
— Terá um escritório ao lado do meu. Vai estar envolvido em toda decisão central, toda operação importante.
— E o salário dele?
— Vai ter o mesmo salário, sem mencionar o carro e a segurança.
— Por quê? — perguntou ela. — Por que está fazendo isso?
— Porque preciso dele, Bella. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — De você, também.
— De mim?
— Quero que volte ao Escritório.
— Quando?
— Amanhã de manhã, às dez horas. Uzi e eu vamos organizar uma operação contra os sírios. Precisamos da sua ajuda.
— Que tipo de operação?
Quando Gabriel contou, ela sorriu, triste.
— Pena que Uzi não pensou nisso — falou ela. — Ele ainda poderia ser o chefe.
Passaram a hora seguinte no jardim de Bella negociando os termos da volta dela ao Boulevard Rei Saul. Depois disso, acompanhou-o até o carro oficial.
— Você fica bem assim — falou ela pela porta aberta.
— Como, Bella?
Ela sorriu e falou:
— Nos vemos amanhã, Gabriel. — Então se virou e desapareceu. Um guarda-costas fechou a porta do carro; outro subiu no banco do passageiro. Gabriel percebeu de repente
que não estava armado. Ficou sentado ali por um momento pensando aonde iria em seguida. Em seguida, olhou para o motorista pelo espelho retrovisor e deu um endereço
em Jerusalém Ocidental. Ele tinha mais um negócio desagradável para resolver antes de ir para casa. Tinha de contar a um fantasma que seria pai de novo.
29
JERUSALÉM
O PEQUENO PASSEIO CIRCULAR DO Hospital Psiquiátrico Monte Herzl vibrou sob o peso da caravana de três carros de Gabriel. Ele saiu do banco traseiro de sua limusine
e, depois de uma troca curta de palavras com o chefe de sua segurança, entrou sozinho no hospital. Esperando na recepção estava um médico barbudo, com jeito de rabino,
chegando aos sessenta anos. Estava sorrindo, apesar do fato de que, como sempre, tinha sido avisado com pouca antecedência da chegada de Gabriel. Estendeu a mão
e ficou olhando a comoção na entrada, normalmente tranquila, da instalação mais privada de Israel para pacientes com problemas mentais.
— Parece que sua vida está a ponto de mudar de novo — falou o médico.
— Em mais de um sentido — respondeu Gabriel.
— Para melhor, espero.
Gabriel assentiu e depois contou ao médico sobre a gravidez. O médico sorriu, mas só por um momento. Ele tinha testemunhado a longa luta de Gabriel para decidir
se devia voltar a se casar. Ser pai, ele sabia, levaria a sentimentos complicados.
— E gêmeos, ainda por cima. Bem — acrescentou o médico, lembrando-se de sorrir de novo —, você certamente...
— Preciso contar a ela — falou Gabriel, interrompendo o médico. — Já adiei isso por tempo demais.
— Não é necessário.
— É.
— Ela não vai entender, não totalmente.
— Eu sei.
O médico sabia que não devia insistir.
— Poderia ser melhor se eu ficasse com você — falou ele. — Para bem dos dois.
— Obrigado — respondeu Gabriel —, mas preciso fazer isso sozinho.
O médico se afastou sem uma palavra e deixou Gabriel seguir por um corredor feito de calcário de Jerusalém até uma sala comum onde alguns pacientes estavam olhando
para uma televisão com o olhar perdido. Um par de grandes janelas dava para um jardim com muro. Do lado de fora, uma mulher estava sentada sozinha na sombra de um
pinheiro-manso, imóvel como uma lápide.
— Como ela está? — perguntou Gabriel.
— Sente sua falta. Já faz tempo que você não vem vê-la.
— É difícil.
— Eu entendo.
Eles ficaram parados por um momento na janela, sem falar e sem se mover.
— Há algo que você deveria saber — falou o médico finalmente. — Ela nunca deixou de amá-lo, mesmo depois do divórcio.
— Isso deveria me fazer sentir melhor?
— Não — disse o médico. — Mas você merece saber a verdade.
— Ela também.
Outro silêncio.
— Gêmeos, hein?
— Gêmeos.
— Menino ou menina?
— Um de cada.
— Talvez pudesse deixar que ela passasse um tempo com eles.
— Uma coisa de cada vez, doutor.
— Claro — falou o médico quando Gabriel entrou no jardim sozinho. — Uma coisa de cada vez.
Ela estava sentada em sua cadeira de rodas com o que sobrava de suas mãos retorcidas descansando no colo. O cabelo, antes comprido e escuro como o de Chiara, agora
estava curto e grisalho. Gabriel beijou a pele fria e firme da cicatriz de seu rosto antes de se sentar no banco ao seu lado. Ela olhou perdida para o jardim, sem
perceber a presença dele. Estava ficando mais velha, ele pensou. Todos estavam ficando mais velhos.
— Olhe para a neve, Gabriel — falou ela de repente. — Não é linda?
Ele olhou para o sol queimando no céu sem nuvens.
— É, Leah — falou ele distraído. — É linda.
— A neve absolve Viena de seus pecados — falou ela depois de um momento. — A neve cai sobre Viena enquanto os mísseis caem sobre Tel Aviv.
Tinham sido algumas das últimas palavras que Leah tinha falado para ele na noite do atentado em Viena. Ela sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão
psicótica e desordem de estresse pós-traumático. Às vezes, ela experimentava momentos de lucidez, mas na maior parte do tempo permanecia prisioneira do passado.
Viena passava incessantemente em sua cabeça como um loop de videoteipe que era incapaz de parar: a última refeição que comeram juntos, o último beijo, o fogo que
matou o único filho deles e queimou a pele do corpo de Leah. Sua vida tinha se reduzido a cinco minutos; e ela passava revivendo-os, várias vezes, por mais de vinte
anos.
— Achei que tinha se esquecido de mim, Gabriel.
Sua cabeça se virou lentamente e por um momento houve um lampejo de reconhecimento em seus olhos. Sua voz, quando falou de novo, parecia estranhamente com a voz
que ele tinha ouvido pela primeira vez há muitos anos, chamando-o de um estúdio em Bezalel.
— Quando foi a última vez que veio aqui?
— Vim para seu aniversário.
— Não me lembro.
— Fizemos uma festa, Leah. Todos os outros pacientes vieram. Foi muito legal.
— Estou sozinha aqui, Gabriel.
— Eu sei, Leah.
— Não tenho ninguém. Ninguém a não ser você, meu amor.
Ele sentiu que tinha perdido a capacidade de encher seus pulmões de ar. Leah colocou a mão sobre a dele.
— Você não tem tinta nos seus dedos — falou ela.
— Não trabalhei nos últimos dias.
— Por que não?
— É uma longa história.
— Tenho tempo — falou ela. — É só o que tenho.
Desviou o olhar dele e olhou para o jardim. A luz estava se apagando dos seus olhos.
— Não se vá, Leah. Tenho algo para lhe contar.
Ela se virou de novo para ele.
— Está restaurando um quadro agora? — perguntou ela.
— Veronese — respondeu ele.
— Qual?
Ele contou.
— Então está morando em Veneza de novo?
— Por mais alguns meses.
Ela sorriu.
— Lembra-se quando moramos juntos em Veneza, Gabriel? Foi quando você era aprendiz de Umberto Conti.
— Eu lembro, Leah.
— Nosso apartamento era tão pequeno.
— Porque era só um quarto.
— Foram dias maravilhosos, não foram, Gabriel? Dias de arte e vinho. Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes se você não
tivesse voltado ao Escritório.
Gabriel não respondeu. Não era capaz de falar.
— Sua esposa é de Veneza, não é?
— É sim, Leah.
— Ela é bonita?
— É, Leah, é muito bonita.
— Gostaria de conhecê-la algum dia.
— Já a conheceu, Leah. Ela veio visitá-la várias vezes.
— Não me lembro dela. Talvez seja melhor assim. — Ela se afastou dele. — Quero falar com a minha mãe — disse. — Quero ouvir o som da voz da minha mãe.
— Vamos ligar para ela, Leah.
— Não deixe de ver se o Dani está bem preso na sua cadeirinha. As ruas estão escorregadias.
— Ele está bem, Leah.
Ela virou o rosto para ele de novo. Então, depois de um momento, perguntou:
— Você tem filhos?
Ele não estava seguro se ela estava no presente ou no passado.
— Não entendi — falou ele.
— Com Chiara.
— Não — respondeu ele. — Não temos filhos.
— Talvez um dia.
— É — ele falou, mas não continuou.
— Me faça uma promessa, Gabriel.
— Qualquer coisa, meu amor.
— Se tiver outro filho, não deve se esquecer do Dani.
— Penso nele todo dia.
— Não penso em nada mais.
Ele sentiu como se os ossos de sua caixa torácica estivessem se quebrando debaixo do peso da pedra que Deus tinha colocado sobre seu coração.
— E quando você sair de Veneza? — perguntou Leah depois de um momento. — O que vai fazer?
— Vou voltar para casa.
— De vez?
— De vez, Leah.
— O que vai fazer? Não há pinturas aqui em Israel.
— Vou ser o chefe do Escritório.
— Achei que Ari era o chefe.
— Isso foi há muito tempo.
— Onde vai viver?
— Aqui em Jerusalém para ficar perto de você.
— Naquele pequeno apartamento?
— Sempre gostei dele.
— Não é grande o suficiente para crianças.
— Vamos encontrar espaço.
— Ainda virá me visitar depois que tiver filhos, Gabriel?
— Sempre que eu puder.
Ela levantou o rosto para o céu sem nuvens.
— Olhe para a neve, Gabriel.
— É — falou ele, chorando baixinho. — Não é linda?
O médico estava esperando por Gabriel na sala comum. Não falou nada até terem voltado à recepção.
— Tem algo que você gostaria de me contar? — perguntou ele.
— Foi tão bem quanto se poderia esperar.
— Para ela ou para você?
Gabriel não falou nada.
— Está tudo bem, sabe — disse o médico depois de um momento.
— O quê?
— Você deve ser feliz.
— Não tenho certeza se sei como.
— Tente — disse o médico. — E se você precisar de alguém para conversar, sabe onde me encontrar.
— Cuide bem dela.
— Sempre cuidarei.
Com isso, Gabriel se entregou ao cuidado de seus seguranças e subiu no banco traseiro da limusine. Era estranho, ele pensou, mas ele não sentia mais vontade de chorar.
Supôs que era isso que significava ser chefe.
30
RUA NARKISS, JERUSALÉM
CHIARA TINHA CHEGADO A Jerusalém apenas uma hora antes de Gabriel e, mesmo assim, o apartamento deles na rua Narkiss já parecia uma fotografia numa dessas revistas
de decoração de casas que ela sempre estava lendo. Havia flores frescas nos vasos e tigelas de aperitivos nas mesinhas, e a taça de vinho que ela colocou na mão
dele estava perfeitamente fria. Os lábios dela, quando o beijou, estavam quentes do sol de Jerusalém.
— Esperava que você chegasse mais cedo — falou ela.
— Tinha umas coisas para fazer.
— Onde você estava?
— No inferno — respondeu ele sério.
Ela franziu a testa.
— Vai ter que me contar sobre isso mais tarde.
— Por que mais tarde?
— Porque temos visitas chegando, querido.
— Preciso perguntar quem é?
— Provavelmente não.
— Como ele soube que tínhamos voltado?
— Ele mencionou algo sobre um arbusto queimando.
— Não pode ser outra noite?
— É muito tarde para cancelar agora. Ele e Gilah já saíram de Tiberíades.
— Suponho que esteja mandando atualizações de sua localização.
— Ele já ligou duas vezes. Está muito animado para vê-lo.
— Eu imagino por quê.
Ele beijou Chiara de novo e levou a taça de vinho para o quarto. As paredes estavam cheias de quadros. Havia quadros de Gabriel, quadros de sua talentosa mãe e vários
quadros de seu avô, o famoso expressionista alemão Viktor Franekel, que foi assassinado em Auschwitz no letal inverno de 1942. Havia também um retrato médio, sem
assinatura, de um jovem homem desolado que parecia assombrado pela sombra da morte. Leah tinha pintado alguns dias depois que Gabriel havia retornado a Israel com
o sangue de seis terroristas do Setembro Negro nas mãos. Foi a primeira e última vez que ele tinha concordado em posar para ela.
“Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes...”
Ele tirou sua roupa debaixo do olhar impiedoso do retrato e ficou parado debaixo do chuveiro até que os últimos traços do toque de Leah tivessem saído de sua pele.
Então colocou roupas limpas e voltou à sala de estar, bem quando Gilah e Ari Shamron estavam entrando pela porta da frente. Gilah trazia um prato de sua famosa berinjela
com condimentos marroquinos; seu famoso marido trazia apenas uma bengala feita de madeira de oliveira. Ele estava vestido, como sempre, com calças cáqui bem passadas,
uma camisa de algodão branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Era óbvio que ele não estava bem, mas seu sorriso expressava contentamento. Shamron
tinha passado anos tentando convencer Gabriel a voltar à Israel para assumir seu lugar no escritório executivo no Boulevard Rei Saul. Agora, tanto tempo depois,
a tarefa estava completa. Seu sucessor estava no lugar. A linhagem estava assegurada.
Ele encostou sua bengala na parede da entrada e, seguido de Gabriel, foi até a pequena varanda onde havia duas cadeiras de ferro debaixo da copa de um eucalipto.
A rua Narkiss estava silenciosa e vazia debaixo deles, mas à distância vinha o barulho do trânsito noturno na King George. Shamron sentou-se com dificuldade em uma
das cadeiras e fez um movimento para que Gabriel se sentasse na outra. Então pegou o maço de cigarros turcos e, com enorme concentração, tirou um. Gabriel olhou
para as mãos de Shamron, as mãos que quase tinham tirado a vida de Adolf Eichmann em uma esquina no norte de Buenos Aires. Foi uma das razões pelas quais Shamron
tinha recebido a missão: o tamanho e força incomuns de suas mãos. Agora elas estavam cheias de manchas dos problemas de fígado e de machucados que não tinham se
curado. Gabriel desviou o olhar enquanto elas lutavam com o velho isqueiro.
— Você não devia fumar, Ari.
— Que diferença faz agora?
Depois que apagou o isqueiro, o cheiro de fumaça turca se misturou ao forte odor do eucalipto. Gabriel foi subitamente inundado por lembranças. Ele tentou mantê-las
à distância, mas não conseguiu; Leah tinha destruído o que restava de suas defesas. Estava dirigindo por um mar de arbustos movidos pelo vento na Cornualha com Shamron
ao seu lado. Era o início de um novo milênio, os dias de ataques suicidas e ilusão. Shamron tinha sido retirado recentemente de sua aposentadoria para reformar o
Escritório depois de uma série de desastres operacionais e queria a ajuda de Gabriel nesse empreendimento. A isca que usou foi Tariq al-Hourani, o mestre terrorista
palestino que tinha plantado a bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena.
“Talvez se você me ajudar a acabar com Tariq, finalmente vai superar o que aconteceu com Leah e continuar com sua vida...”
Gabriel ouviu o som da risada de Chiara na sala e a lembrança se dissolveu.
— O que foi agora? — perguntou ele gentilmente a Shamron.
— A lista dos meus problemas físicos é quase tão longa quanto a lista de desafios que Israel está enfrentando. Mas não se preocupe — acrescentou ele rapidamente.
— Ainda não vou a lugar nenhum. Tenho toda a intenção de estar por aqui para testemunhar o nascimento dos meus netos.
Gabriel resistiu ao impulso de lembrar Shamron de que eles não eram realmente pai e filho.
— Esperamos que esteja lá, Ari.
Shamron sorriu.
— Decidiram onde vão viver depois que eles nascerem?
— Curioso — respondeu Gabriel —, mas Bella me perguntou a mesma coisa.
— Ouvi dizer que foi uma conversa interessante.
— Como sabe que fui vê-la?
— Uzi me contou.
— Achei que ele não estava atendendo suas ligações.
— Parece que começou o grande degelo. É uma das poucas vantagens de ter problemas de saúde — acrescentou ele. — Todas as pequenas queixas e promessas quebradas parecem
desaparecer quando chegamos perto do fim.
Os galhos do eucalipto se moveram com a primeira brisa noturna. O ar estava esfriando a cada minuto. Gabriel sempre adorou a forma como esfriava à noite em Jerusalém,
mesmo no verão. Ele desejou ter o poder de congelar esse momento por um pouco mais de tempo. Olhou para Shamron, que estava batendo seu cigarro pensativo na borda
do cinzeiro.
— Foi preciso muita coragem de sua parte para se sentar e conversar com Bella. E perspicácia, também. Prova que eu estava certo sobre uma coisa o tempo todo.
— O quê, Ari?
— Que você tem tudo para ser um grande chefe.
— Às vezes, eu me pergunto se estou prestes a cometer meu primeiro erro.
— O de manter Uzi com algum poder?
Gabriel assentiu lentamente.
— É arriscado — concordou Shamron. — Mas se há alguém que pode encarar isso, é você.
— Nenhum conselho?
— Já não preciso mais dar conselhos, meu filho. Sou o pior que um homem pode ser, velho e obsoleto. Sou um espectador. Uma vergonha. — Shamron olhou para Gabriel
e franziu a testa. — Sinta-se livre para discordar de mim quando quiser.
Gabriel sorriu, mas não disse nada.
— Uzi me contou que as coisas ficaram um pouco acaloradas entre você e Bella — disse Shamron.
— Lembrou-me o interrogatório que tive que enfrentar aquela noite no Empty Quarter.
— A pior noite da minha vida. — Shamron pensou nisso por um momento. — Na verdade — falou —, foi a segunda pior.
Ele não precisava falar qual tinha sido a primeira. Estava falando de Viena.
— Acho que Bella está mais chateada com tudo isso do que Uzi — continuou ele. — Infelizmente, ela se acostumou demais às armadilhas do poder.
— O que lhe dá essa impressão?
— A forma como se aferra a elas. Ela me culpa por tudo, claro. Acha que planejei isso desde o início.
— E é verdade.
Shamron fez uma cara que ficava em algum ponto entre um sorriso e uma careta.
— Não vai negar? — perguntou Gabriel.
— Nada — respondeu Shamron. — Tive minha cota de triunfos, mas no final, a sua será a carreira usada para medir a de todos os outros. É verdade que tive preferências,
especialmente depois de Viena. Mas minha fé em você foi recompensada com uma série de operações que estavam muito além dos talentos de alguém como Uzi. Certamente
até Bella percebe isso.
Gabriel não falou nada. Estava olhando um menino de dez ou onze anos andando de bicicleta na rua tranquila.
— E agora — falou Shamron — parece que você pode ter encontrado uma forma de atacar as finanças do açougueiro de Damasco. Com um pouco de sorte, será o primeiro
grande triunfo da era de Gabriel Allon.
— Achei que não acreditava em sorte.
— Não acredito. — Shamron acendeu outro cigarro, então, com um movimento do pulso, fechou o isqueiro com um golpe rápido. — O açougueiro tem a crueldade do pai,
mas não possui a mesma inteligência, o que o torna ainda mais perigoso. Nesse ponto, só o dinheiro importa. É o que mantém o clã unido. É por isso que os leais permanecem
leais. É por isso que as crianças estão morrendo aos milhares. Mas se você puder realmente controlar o dinheiro... — Ele sorriu. — As possibilidades serão infinitas.
— Realmente não tem nenhum conselho para mim?
— Mantenha o açougueiro no poder pelo tempo que ele continuar sendo palatável, mesmo remotamente. De outra forma, os próximos anos serão muito interessantes para
você e seus amigos em Washington e Londres.
— Então é assim que termina a Grande Primavera Árabe? — perguntou Gabriel. — Apoiamos um assassino em massa porque ele é o único que pode salvar a Síria da al-Qaeda?
— Longe de mim dizer que avisei, mas previ que a Primavera Árabe iria terminar em desastre e foi o que aconteceu. Os árabes ainda não estão prontos para a verdadeira
democracia, não no momento em que o islamismo radical está em ascensão. O melhor que podemos esperar são regimes autoritários decentes em lugares como Síria e Egito.
— Shamron parou, depois acrescentou: — Quem sabe, Gabriel? Talvez você possa encontrar alguma forma de convencer o dirigente a educar seu povo de forma apropriada
e tratá-los com a dignidade que merecem. Talvez possa obrigá-lo a parar de matar crianças com gás.
— Tem uma coisa que quero dele.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Primeiro encontre o dinheiro — falou Shamron, apagando o cigarro. — E depois o quadro.
Gabriel não falou mais nada. Estava olhando o menino na bicicleta aparecendo e desaparecendo debaixo das sombras no final da rua. Quando o menino sumiu, ele levantou
o rosto para o céu de Jerusalém. “Olhe para a neve”, ele pensou. “Não é linda?”
31
JERUSALÉM
O TOQUE DOS SINOS DA IGREJA acordou Gabriel de um sono sem sonhos. Ele ficou imóvel por um momento, incerto de onde estava. Então viu o retrato taciturno olhando
para ele da parede e percebeu que estava em seu próprio quarto na rua Narkiss. Saiu de debaixo dos lençóis, sem fazer barulho, para não acordar Chiara e foi até
a cozinha. A única prova do jantar da noite anterior era o forte cheiro doce de flores subindo dos vasos. Na pia limpa havia uma cafeteira francesa e uma lata de
Lavazza. Gabriel colocou a chaleira no fogão e ficou esperando a água ferver.
Tomou seu café no terraço e leu os jornais da manhã em seu BlackBerry. Então entrou no banheiro para fazer a barba e tomar banho. Quando saiu, Chiara ainda estava
dormindo profundamente. Ele abriu o guarda-roupa e ficou parado ali por um momento, pensando no que usaria. Um terno, decidiu, era impróprio; poderia enviar a mensagem
às tropas de que ele já estava no comando. No final, decidiu usar a roupa de sempre: um jeans desbotado, um pulôver de algodão e uma jaqueta de couro. Shamron tinha
seu uniforme, pensou, e ele também.
Alguns minutos depois das oito, ouviu o comboio de carros perturbando o silêncio da rua Narkiss. Beijou Chiara suavemente e depois desceu para encontrar a limusine
que o aguardava. Esta o levou para o leste, cruzando Jerusalém até a Porta do Esterco, a entrada principal do Bairro Judeu da Cidade Velha. Ele passou pelos detectores
de metal e, junto com seus guarda-costas, cruzou a praça aberta em direção ao Muro das Lamentações, a tão disputada reminiscência da antiga barreira de retenção
que já tinha cercado o grande Templo de Jerusalém. Em cima do Muro, brilhando com o sol do começo da manhã, estava a dourada Cúpula da Rocha, o terceiro lugar mais
sagrado do islamismo. Havia muitos aspectos no conflito árabe-israelense, mas Gabriel tinha concluído que tudo se resumia a isso — duas fés presas em uma luta mortal
pela mesma parcela de uma terra sagrada. Poderia haver períodos de calma, meses ou até anos sem bombas ou sangue; mas Gabriel temia que nunca haveria paz.
A porção do Muro das Lamentações visível da praça tinha 57 metros de largura e 19 metros de altura. O verdadeiro muro ao redor da colina do Monte do Templo, no entanto,
era muito mais longo, descendo uns 13 metros depois da praça e se estendendo mais uns quatrocentos metros até o Bairro Muçulmano, onde estava escondido por trás
de estruturas residenciais. Depois de anos de escavações arqueológicas cheias de problemas políticos e religiosos, agora era possível caminhar por quase toda a extensão
do muro através do Túnel do Muro das Lamentações, uma passagem subterrânea que ia da praça até a Via Dolorosa.
A entrada do túnel estava do lado esquerdo da praça, não muito longe do Arco de Wilson. Gabriel passou pela moderna porta de vidro e, seguido por seus guarda-costas,
desceu uma escada de alumínio até o porão. Um caminho recentemente pavimentado seguia a base do muro. Ele o seguiu passando pelas enormes pedras do tempo de Herodes
até chegar a uma seção do túnel que estava escondida por uma cortina de plástico opaco. Além da cortina havia uma cova de escavação retangular onde uma figura solitária,
um homem pequeno de meia idade, mexia no solo sob um cone de suave luz branca. Ele pareceu não ter percebido a presença de Gabriel, mas foi só impressão. Seria mais
fácil surpreender um esquilo do que Eli Lavon.
Outro momento se passou antes de Lavon levantar a cabeça e sorrir. Ele tinha o cabelo ralo e desgrenhado, um rosto quase sem traços que mesmo o artista mais talentoso
teria dificuldades para capturar na tela. Eli Lavon era um fantasma, um camaleão que facilmente passava despercebido e logo era esquecido. Shamron já tinha dito
que ele poderia desaparecer enquanto apertava sua mão. Não estava muito longe da verdade.
Gabriel tinha trabalhado com Lavon pela primeira vez na Ira de Deus, a operação secreta da inteligência israelense para caçar e matar os autores do massacre das
Olimpíadas de Munique. No léxico da equipe, baseado no hebreu, Lavon tinha sido um ayin, um rastreador e artista da vigilância. Durante três anos ele tinha seguido
os terroristas do Setembro Negro por toda a Europa e Oriente Médio, geralmente com uma proximidade perigosa. O trabalho o deixou com várias desordens por estresse,
incluindo um famoso estômago instável que o incomodava até hoje.
Quando a unidade foi dissolvida em 1975, Lavon se estabeleceu em Viena, onde abriu uma pequena unidade investigativa chamada Alegações e Investigações da Época da
Guerra. Operando com um orçamento baixíssimo, ele conseguiu encontrar bens saqueados no Holocausto valendo milhões de dólares e teve um papel importante num acordo
multibilionário com os bancos suíços. O trabalho fez com que ganhasse poucos admiradores em Viena e, em 2003, uma bomba explodiu em seu escritório, matando duas
jovens funcionárias. Abalado, ele voltou a Israel para seguir sua primeira paixão, que era a arqueologia. Ele agora era professor adjunto na Universidade Hebraica
e participava regularmente em escavações por todo o país. Tinha passado a maior parte dos dois últimos anos remexendo o solo do Túnel do Muro das Lamentações.
— Quem são seus amiguinhos? — perguntou ele, olhando para os guarda-costas parados nas pontas da cova.
— Eu encontrei os dois perdidos na praça.
— Não vão estragar nada, vão?
— Não ousariam.
Lavon olhou para o chão e recomeçou a trabalhar.
— O que você tem aí? — perguntou Gabriel.
— Umas moedas perdidas.
— Quem deixou cair?
— Alguém muito bravo pelo fato de que os persas estavam a ponto de conquistar Jerusalém. É óbvio que estava com pressa.
Lavon esticou o braço e ajustou o ângulo de sua lâmpada de trabalho. O fundo da vala brilhou com os dourados pedacinhos encrustados.
— O que são? — perguntou Gabriel.
— Trinta e seis moedas de ouro da era bizantina e um grande medalhão com um menorá. Provam que os judeus viviam aqui antes da conquista muçulmana de Jerusalém em
638. Para a maioria dos arqueólogos bíblicos, isso seria a descoberta de toda uma vida. Mas não para mim. — Lavon olhou para Gabriel e acrescentou: — Nem para você.
Gabriel olhou sobre o ombro dele para as pedras do Muro. Um ano antes, numa câmara secreta de cinquenta metros debaixo da superfície do Monte do Templo, ele e Lavon
tinham descoberto 22 pilares do Templo de Jerusalém de Salomão, provando assim, sem nenhuma dúvida, que o antigo santuário judeu, descrito no Livro dos Reis e nas
Crônicas, tinha realmente existido. Eles também tinham descoberto uma enorme bomba que, se tivesse detonado, teria destruído todo o sagrado planalto. Os pilares
agora estavam em uma exibição de alta segurança no Museu de Israel. Um deles teve de ser especialmente limpo antes de ser posto em exposição porque estava manchado
com o sangue de Lavon.
— Recebi uma ligação do Uzi na noite passada — falou Lavon depois de um momento. — Ele me contou que você poderia dar uma passada.
— Falou o motivo?
— Mencionou algo sobre um Caravaggio perdido e uma empresa chamada LXR Investments. Falou que você estava interessado em adquiri-la, junto com o resto da Mal S.A.
— Pode ser feito?
— Não dá para fazer muita coisa de fora. No final, você vai precisar da ajuda de alguém que possa entregar as chaves do reino.
— Então nós vamos encontrar essa pessoa.
— Nós? — Quando Gabriel não respondeu, Lavon se inclinou e começou a mexer no solo ao redor de uma das moedas antigas. — O que precisa que eu faça?
— Exatamente o que você está fazendo agora — respondeu Gabriel. — Mas quero que use um computador e um balanço financeiro em vez de uma espátula e um pincel.
— Hoje em dia, prefiro uma espátula e um pincel.
— Eu sei, Eli, mas não vou conseguir fazer isso sem você.
— Não vai ser nada difícil, vai?
— Não, Eli, claro que não.
— Você sempre fala isso, Gabriel.
— E?
— Sempre é.
Gabriel se abaixou e desconectou a lâmpada de sua fonte de energia. Lavon trabalhou na escuridão por mais um momento. Então se levantou, limpou as mãos nas calças
e saiu da cova.
Um solteirão, Lavon mantinha um pequeno apartamento no distrito Talpiot de Jerusalém, na estrada para Hebron. Eles pararam ali tempo suficiente para que vestisse
roupas limpas e depois seguiram pela Bab al-Wad até o Boulevard Rei Saul. Depois de entrarem no edifício “preto”, eles subiram três lances de escadas e caminharam
por um corredor sem janelas até uma porta com a inscrição 456C. A sala do outro lado já tinha sido um depósito para computadores obsoletos e móveis velhos, geralmente
usados pela equipe noturna como um ponto de encontro clandestino para relações românticas. Agora era conhecido por todos no Boulevard Rei Saul apenas como o Covil
de Gabriel.
O código para a fechadura era a versão numérica da data de aniversário de Gabriel, que tinha a reputação de ser o segredo mais bem guardado do Escritório. Com Lavon
olhando por cima do ombro, ele digitou o código e abriu a porta. Lá dentro estava Dina Sarid, uma mulher pequena, de cabelos escuros com um ar de viúva precoce.
Um banco de dados humano, ela era capaz de recitar a hora, lugar, perpetradores e números de baixas de todo ato de terrorismo cometido contra alvos israelenses e
ocidentais. Dina já tinha dito a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles mesmos. E Gabriel acreditava nela.
— Onde estão os outros? — perguntou ele.
— Presos em Recursos Humanos.
— Qual é o problema?
— Aparentemente, os chefes de divisão estão revoltados. — Dina parou, então acrescentou: — Isso é o que acontece com um serviço de inteligência quando se espalha
que o chefe não vai durar.
— Talvez eu deva subir e conversar com os chefes de divisão.
— Espere alguns minutos.
— Tem sido tão ruim assim?
— Criei uma lista de agentes da al-Qaeda que se estabeleceram ao lado na Síria — jihadistas globais sérios que precisam ser tirados de circulação permanentemente.
E adivinha o que acontece sempre que proponho uma operação?
— Nada.
Dina assentiu lentamente.
— Estamos congelados no tempo — falou ela. — Estamos marcando passo justamente no momento que menos podemos.
— Isso vai acabar, Dina.
Bem nesse momento a porta se abriu e Rimona Stern entrou na sala. Mikhail Abramov apareceu logo depois, seguido alguns minutos mais tarde por Yaakov Rossman, que
parecia não dormir há um mês. Em seguida, apareceu um par de agentes de campo chamados Mordecai e Oded, seguidos por Yossi Gavish, um homem alto e careca vestido
com cotelê e tweed. Yossi era um alto funcionário de Pesquisa, que é como o Escritório chamava sua divisão analítica. Nascido na região Golders Green de Londres,
ele tinha estudado em Oxford e ainda falava hebraico com um forte sotaque inglês.
Dentro dos corredores e salas de conferência do Boulevard Rei Saul, os oito homens e mulheres reunidos na sala subterrânea eram conhecidos pelo codinome Barak, a
palavra em hebreu para raio, por sua habilidade incomum de se reunir e atacar rapidamente. Eram um serviço dentro do serviço, uma equipe de agentes sem igual e sem
medo de nada. Durante sua existência, tinha às vezes sido necessário admitir gente de fora no meio deles — um jornalista investigativo britânico, um bilionário russo,
a filha de um homem que tinham matado —, mas nunca antes tinham permitido que outro agente do Escritório se juntasse à sua fraternidade. Portanto, ficaram surpresos
quando, assim que o relógio marcou dez horas, Bella Navot apareceu na porta. Estava vestida para a reunião com uma calça cinza e trazia uma pasta de arquivos ao
peito. Ficou parada na porta por um momento, como se esperasse um convite para entrar, antes de se sentar, sem falar nada, perto de Yossi em uma das mesas de trabalho
comuns.
Se a equipe achou estranha a presença de Bella, não deu nenhum sinal disso quando Gabriel se levantou e caminhou até o último quadro-negro existente em todo o Boulevard
Rei Saul. Nele estavam escritas três palavras: SANGUE NUNCA DORME. Apagou-as com um único movimento da mão e no lugar escrever as letras LXR. Então contou à equipe
a incrível série de eventos que tinham levado àquela reunião, começando com o assassinato de um espião britânico transformado em ladrão de arte chamado Jack Bradshaw
e terminando com o bilhete que Bradshaw tinha deixado para Gabriel em seu cofre no Freeport de Genebra. Na morte, Bradshaw tinha tentado corrigir seus pecados ao
dar a Gabriel a identidade do homem que estava comprando quadros roubados a rodo: o criminoso dirigente da Síria. Também tinha fornecido a Gabriel o nome da empresa
de fachada que o dirigente tinha usado para essas compras: LXR Investments of Luxembourg. Certamente, a LXR era apenas uma pequena estrela numa galáxia de riqueza
global, sendo que boa parte dela estava cuidadosamente escondida por baixo de camadas de armações e empresas de fachada. Mas uma rede de riqueza, assim como uma
de rede de terroristas, precisava ter uma cabeça operativa habilidosa para funcionar. O dirigente tinha confiado o dinheiro de sua família a Kemel al-Farouk, o guarda-costas
do pai do dirigente, o assistente que torturava e matava sob o comando do regime. Mas Kemel não podia administrar o dinheiro ele mesmo, não com a NSA e seus sócios
monitorando cada movimento seu. Em algum lugar, havia um homem de confiança — um advogado, um banqueiro, um parente — que tinha o poder de mover esses bens como
quisesse. Usariam a LXR como uma forma de encontrá-lo. E Bella Navot iria guiá-los em todos os passos.


CONTINUA

22
ÎLE SAINT-LOUIS, PARIS
– EU GOSTARIA DE COMEÇAR ESSA Conversa, sr. Bartholomew, dando-lhe meus parabéns. Foi uma transação impressionante que você e seus homens realizaram em Amsterdã.
— Quem disse que não fiz isso sozinho?
— Não é o tipo de coisa que alguém faz sozinho. Certamente teve ajuda — acrescentou Sam. — Como seu amigo que estava no telefone comigo. Ele fala francês muito bem,
mas não é francês, é?
— Que diferença isso faz?
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios.
— Isso não é a Harrods, querido.
Sam olhou a rua com a calma de um turista que tinha visitado muitos museus em pouco tempo.
— Ele está aí fora em algum lugar, não está?
— Não saberia dizer.
— E há outros?
— Vários.
— E mesmo assim exigiram que eu viesse sozinho.
— É o vendedor quem manda.
— Foi o que ouvi.
Sam retomou sua inspeção da rua. Ainda estava de chapéu e óculos escuros, o que deixava apenas a parte inferior do seu rosto visível. Estava com a barba bem feita.
As bochechas eram altas e proeminentes, o queixo forte, os dentes brancos e perfeitos. Suas mãos não tinham cicatrizes ou tatuagens. Não usava anéis nos dedos ou
braceletes nos pulsos, só um grande Rolex dourado para indicar que era um homem de posses. Tinha os maneirismos refinados de um árabe bem nascido, mas um tanto grosseiro.
— Ouvimos outras coisas também — continuou Sam depois de um momento. — Aqueles que viram a mercadoria dizem que você conseguiu tirá-la de Amsterdã com danos mínimos.
— Nenhum, na verdade.
— Também ouvimos que há Polaroids.
— Onde ouviu isso?
Sam deu um sorriso desagradável.
— Isso vai demorar muito mais do que o necessário se você insistir nesses jogos, sr. Bartholomew.
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios — disse Keller, enfático.
— Está pedindo informações sobre o homem que represento, sr. Bartholomew?
— Nem sonharia em fazer isso.
Houve um silêncio.
— Meu cliente é um empresário — falou Sam finalmente. — Bastante bem-sucedido, bastante rico. Também ama as artes. Coleciona muito, mas como muitos colecionadores
sérios, foi ficando frustrado com o fato de que não há mais bons quadros à venda. Ele quer há muitos anos adquirir um Van Gogh. Você agora tem um muito bom. Meu
cliente gostaria de tê-lo.
— Assim como muitas outras pessoas.
Sam pareceu não se perturbar com isso.
— E você? — perguntou depois de um momento. — Por que não me fala um pouco sobre você?
— Roubo coisas para viver.
— É inglês?
— Infelizmente.
— Sempre gostei dos ingleses.
— Não vou usar isso contra você.
Apareceu um garçom que entregou o menu. Sam pediu uma garrafa de água mineral; Keller, uma taça de vinho que não tinha intenção de beber.
— Quero deixar uma coisa clara desde o começo — falou quando ficaram novamente sozinhos. — Não estou interessado em drogas, armas ou garotas, nem em um condomínio
em Boca Raton, na Flórida. Só aceito dinheiro.
— De quanto dinheiro estamos falando, sr. Bartholomew?
— Tenho uma oferta de vinte milhões na mesa.
— Que sabor?
— Euros.
— É uma oferta firme?
— Deixei a venda em espera para me encontrar com você.
— Que lisonjeiro. Por que faria algo assim?
— Porque ouvi falar que seu cliente, quem quer que seja, é um homem com bolsos bem grandes.
— Bem grandes. — Outro sorriso, só um pouco mais agradável que o primeiro. — Então como quer continuar, sr. Bartholomew?
— Preciso saber se está interessado em aumentar a oferta que está na mesa.
— Estou.
— Quanto mais?
— Acho que poderia oferecer algo trivial, como um adicional de quinhentos mil, mas meu cliente não gosta de leilões. — Fez uma pausa, então perguntou: — Será que
25 milhões seriam suficientes para tirar o quadro da mesa?
— Seriam, Sam.
— Excelente — falou. — Agora seria um bom momento para você me mostrar as Polaroids.
As Polaroids estavam no porta-luvas de uma Mercedes alugada estacionada em uma rua calma atrás de Notre Dame. Keller e Sam caminharam até lá juntos e entraram, Keller
atrás do volante, Sam no banco do passageiro. Keller submeteu-o a uma rápida e completa inspeção antes de abrir o porta-luvas e pegar as fotos. Eram quatro ao todo
— uma da obra inteira, três mostrando os detalhes. Sam olhou para elas cético.
— Parece o Van Gogh que está pendurado em cima da cama no meu hotel.
— Não é.
Fez uma careta para indicar que não estava convencido.
— A pintura nessa fotografia poderia ser uma cópia. E você poderia ser um trapaceiro inteligente que está querendo ganhar em cima do roubo em Amsterdã.
— Tire seus óculos escuros e dê uma olhada melhor, Sam.
— É o que pretendo. — Entregou as fotos de volta a Keller. — Preciso ver o quadro real, não fotografias.
— Não tenho um museu, Sam.
— O que quer dizer?
— Não posso mostrar o Van Gogh a qualquer um que queira vê-lo. Preciso saber se você está falando sério.
— Ofereci 25 milhões de euros em dinheiro por ele.
— É fácil oferecer 25 milhões, Sam. Entregar é outra coisa.
— Meu cliente é um homem de riqueza extraordinária.
— Então tenho certeza de que ele não lhe enviou a Paris de mãos vazias. — Keller devolveu as fotos ao porta-luvas e o trancou.
— É dessa forma que seu golpe funciona? Exige ver o dinheiro antes de mostrar o quadro e depois rouba?
— Se fosse um golpe, você e seu cliente já saberiam disso.
Não tinha respostas para aquilo.
— Não consigo mais de dez mil em dinheiro em tão pouco tempo.
— Quero ver um milhão.
Ele bufou, como se dissesse que um milhão era impossível.
— Se você quiser ver um Van Gogh por menos de um milhão — falou Keller — pode ir ao Louvre ou ao Musée d’Orsay. Mas se quiser ver o meu Van Gogh, vai ter que me
mostrar o dinheiro.
— Não é seguro andar pelas ruas de Paris com essa quantidade de dinheiro.
— Algo me diz que você sabe se cuidar muito bem.
Sam deu um suspiro capitulador.
— Onde e quando?
— Saint-Germain-des-Prés, duas da tarde. Sem amigos. Sem armas.
Sam saiu do carro sem falar nada e foi embora.
Ele cruzou o Sena para a margem direita e caminhou pela rue de Rivoli, passando a ala norte do Louvre, até o Jardin des Tuileries. Passou boa parte desse tempo no
telefone e duas vezes realizou um movimento elementar de espiões para ver se estava sendo seguido. Mesmo assim, não pareceu notar Gabriel caminhando cinquenta metros
atrás dele.
Antes de chegar a Jeu de Paume, cortou para a rue Saint-Honoré e entrou em uma loja exclusiva que vendia caros produtos de couro para homens. Saiu dez minutos depois
com uma mala nova, que carregou até uma filial do HSBC Private Bank no boulevard Haussmann. Ficou ali precisamente 22 minutos, e quando saiu, a mala parecia mais
pesada que quando tinha entrado. Ele a levou com cuidado até a Place de la Concorde e depois através da grande entrada do hôtel de Crillon. Vendo de longe, Gabriel
sorriu. Só o melhor para o representante do sr. Grandão. Enquanto se afastava, ligou para Keller e contou as novidades. O jogo tinha começado, falou. Definitivamente
o jogo tinha começado.
23
BOULEVARD SAINT-GERMAIN, PARIS
ELE ESTAVA PARADO DO LADO DE FORA DA porta vermelha da igreja às duas da tarde seguinte, com seu chapéu e óculos escuros firmemente no lugar e a nova maleta segura
na mão direita. Gabriel esperou cinco minutos antes de ligar.
— Você de novo — falou Sam desanimado.
— Infelizmente.
— E agora?
— Vamos dar outra volta.
— Para onde agora?
— Siga a rue Bonaparte até a place Saint-Sulpice. Mesmas regras da última vez. Não faça nenhuma parada e não olhe para trás. Sem ligações também.
— Até onde você pretende me levar dessa vez?
Gabriel desligou sem falar nada. Do outro lado da praça lotada, Sam começou a caminhar. Gabriel contou lentamente até vinte e o seguiu.
Deixou Sam caminhar até os Jardins de Luxemburgo antes de ligar de novo. Dali, foram para o sudoeste pela rue de Vaugirard, depois para o norte no boulevard Raspail
até a entrada do hôtel Lutetia. Keller estava sentado na mesa do bar, lendo o Telegraph. Sam se uniu a ele, como tinha sido instruído.
— Como ele foi dessa vez? — perguntou Keller.
— Tão meticuloso como sempre.
— Posso pedir algo para você beber?
— Não bebo.
— Que pena. — Keller dobrou seu jornal. — É melhor tirar esses óculos escuros, Sam. Do contrário, a gerência vai ter a impressão errada sobre você.
Ele fez o que Keller sugeriu. Seus olhos eram castanhos claros e grandes. Com o rosto exposto, era uma figura muito menos ameaçadora.
— Agora o chapéu — falou Keller. — Um cavalheiro não usa um chapéu no bar do Lutetia.
Ele tirou o chapéu, revelando uma cabeça com muito cabelo, marrom, não negro, com toques grisalhos ao redor das orelhas. Se era árabe, não era da península ou do
golfo. Keller olhou para a maleta.
— Trouxe o dinheiro?
— Um milhão, como você pediu.
— Deixe-me dar uma olhada. Mas com cuidado — acrescentou Keller. — Há uma câmera de segurança em cima do seu ombro direito.
Sam colocou a maleta na mesa, abriu os trincos e levantou a tampa dois centímetros, o suficiente para Keller dar uma olhada nas fileiras bem organizadas de notas
de cem euros.
— Pode fechar — falou Keller, em voz baixa.
Sam fechou e travou a maleta.
— Satisfeito? — perguntou ele.
— Ainda não. — Keller se levantou.
— Para onde agora?
— Meu quarto.
— Vai ter mais alguém?
— Seremos apenas nós dois, Sam. Muito romântico.
Sam se levantou e pegou a maleta.
— Acho que é importante deixar algo claro antes de subirmos.
— O que é, Sam?
— Se algo acontecer comigo ou com o dinheiro do meu cliente, você e seu amigo vão sofrer muito. — Ele colocou os óculos escuros e sorriu. — Só para nos entendermos,
querido.
No hall de entrada do quarto, longe dos olhos das câmeras de vigilância do hotel, Keller revistou Sam à procura de armas ou aparelhos de gravação. Sem encontrar
nada importante, colocou a maleta na beira da cama e abriu os trincos. Então, tirou três pacotes de dinheiro e, de cada um, uma nota. Inspecionou cada nota com lentes
de aumento profissionais; depois, no banheiro escuro, submeteu-as à lâmpada ultravioleta de Gabriel. As fitas de segurança brilharam verde limão; as notas eram genuínas.
Ele devolveu as notas a seus pacotes e estes à maleta. Então fechou os trincos e, com um aceno de cabeça, indicou que estavam prontos para passar ao próximo passo.
— Quando? — perguntou Sam.
— Amanhã à noite.
— Tenho uma ideia melhor — falou ele. — Vamos hoje à noite. Ou então, não tem acordo.
Maurice Durand tinha dito para esperarem algo assim — uma pequena jogada tática, uma rebeldia simbólica, que permitiria a Sam sentir que era ele, e não Keller, que
estava controlando o processo de negociação. Keller recusou gentilmente, mas Sam bateu o pé. Queria estar na frente do Van Gogh antes da meia-noite; se não estivesse,
ele e seus 25 milhões de euros desapareceriam. O que não deixou a Keller outra opção a não ser aceitar os desejos de seu oponente. Fez isso com um sorriso de concessão,
como se a mudança de planos fosse pouco mais que uma inconveniência. Então rapidamente estabeleceu as regras para mostrá-lo essa noite. Sam poderia tocar o quadro,
cheirar o quadro ou fazer amor com o quadro. Mas sob nenhuma circunstância poderia fotografá-lo.
— Onde e quando? — perguntou Sam.
— Vamos ligar às nove e dizer como proceder.
— Tudo bem.
— Onde você está hospedado?
— O senhor sabe exatamente onde estou hospedado, sr. Bartholomew. Vou estar no lobby do Crillon às nove da noite, sem amigos, sem armas. E diga para seu amigo não
me deixar esperando dessa vez.
Ele saiu do hotel dez minutos depois, com seu chapéu e óculos escuros, e caminhou até o HSBC Private Bank no boulevard Haussmann, onde, supostamente, devolveu o
um milhão de euros ao cofre do seu cliente. Depois, caminhou a pé até o Musée d’Orsay e passou as duas horas seguintes estudando os quadros de um tal Vincent van
Gogh. Quando saiu do museu, eram quase seis. Comeu um jantar leve em um bistrô no Champs-Élysées e depois voltou ao seu quarto no Crillon. Como prometido, estava
no lobby às nove horas em ponto, vestido com calça cinza, um pulôver negro e uma jaqueta de couro. Gabriel sabia disso porque estava sentado a poucos passos, no
bar. Esperou dois minutos depois das nove antes de ligar para o número de Sam.
— Sabe usar o metrô de Paris?
— Claro.
— Caminhe até a estação Concorde e pegue o número 12 até Marx Dormoy. O sr. Bartholomew estará esperando por você.
Sam saiu do lobby. Gabriel ficou no bar por outros cinco minutos. Então pegou seu carro com o manobrista e foi até a casa de campo na Picardia.
A estação Marx Dormoy estava localizada no oitavo Arrondissement, na rue de la Chapelle. Keller estava estacionado do outro lado da rua fumando um cigarro quando
Sam subiu a escada. Caminhou até o carro e entrou no lado do passageiro sem uma palavra.
— Onde está seu celular? — perguntou Keller.
Sam tirou do bolso do casaco e mostrou a Keller.
— Desligue e tire o chip.
Sam obedeceu. Keller pôs o carro em movimento e avançou pelo trânsito noturno.
Ele permitiu que Sam ficasse no banco do passageiro até chegarem aos subúrbios do norte. Então, parou perto de algumas árvores antes da cidade de Ézanville e mandou
que ele entrasse no porta-malas. Pegou o caminho mais longo até a Picardia, acrescentando pelo menos uma hora à viagem. Como resultado, era quase meia-noite quando
ele chegou à casa de campo. Quando Sam saiu do porta-malas, viu a silhueta de um homem parado sob a luz da lua na entrada da propriedade.
— Imagino que seja seu sócio.
Keller não respondeu. Em vez disso, levou-o até a porta traseira da propriedade e desceu um lance de escada até a adega. Encostado em uma parede, iluminado por uma
lâmpada pendurada de um fio, estava Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Vincent van Gogh. Sam ficou parado na frente dele por um longo momento
sem falar. Keller permaneceu ao seu lado.
— Então? — perguntou ele finalmente.
— Num minuto, sr. Bartholomew. Num minuto.
Finalmente, deu um passo, pegou o quadro pelas laterais e virou para examinar as marcas do museu na parte de trás da tela. Então olhou para as pontas do quadro e
fez uma careta.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Vincent era famoso por ser descuidado na forma como tratava seus quadros. Olha aqui — acrescentou ele, virando as pontas do quadro para Keller. — Ele deixou suas
digitais por todo lado.
Sam sorriu, segurou o quadro perto da luz e passou vários minutos examinando cuidadosamente as pinceladas. Em seguida, colocou-o em sua posição original e deu um
passo para trás, a fim de observar à distância. Dessa vez, Keller não interrompeu seu silêncio.
— Espetacular — falou depois de um momento.
— E real — acrescentou Keller.
— Poderia ser. Ou poderia ser o trabalho de um falsificador muito talentoso.
— Não é.
— Vou precisar realizar um teste simples para ter certeza, uma análise de lasca de tinta. Se o quadro for genuíno, fechamos negócio. Se não for, você nunca mais
vai ouvir falar de mim, deixando-o livre para empurrá-lo a um comprador menos sofisticado.
— Quanto tempo vai levar?
— Setenta e duas horas.
— Você tem 48.
— Não vai me apressar, sr. Batholomew. Nem meu cliente.
Keller hesitou antes de assentir uma vez. Usando um bisturi cirúrgico, Sam removeu com cuidado dois pequenos pedaços de tinta da tela — um da parte inferior direita,
a outra da parte inferior esquerda — e colocou-as em um frasco de vidro. Então enfiou o frasco no bolso do casaco e, seguido por Keller, subiu as escadas. Do lado
de fora, a figura em silhueta ainda estava parada na porta da casa.
— Vou conhecer seu sócio? — perguntou Sam.
— Não aconselho — respondeu Keller.
— Por que não?
— Porque seria o último rosto que você veria.
Sam franziu a testa e entrou no porta-malas da Mercedes. Keller fechou o trinco e voltou a Paris.
Eram todas operações conhecidas, cada uma de natureza específica, mas eles mais tarde diriam que os três dias seguintes passaram com a velocidade de um rio congelado.
O conhecido autodomínio de Gabriel o abandonou. Ele tinha organizado o roubo de um dos quadros mais famosos do mundo como parte de um golpe para encontrar outro;
e mesmo assim tudo poderia não dar em nada se o homem chamado Sam desistisse do negócio. Só Maurice Durand, talvez o especialista mais conhecido no comércio ilícito
de arte, continuava confiante. Em sua experiência, colecionadores sujos como o sr. Grandão raramente desistiam da chance de comprar um Van Gogh. Claro, ele falou,
a isca do Doze Girassóis numa Jarra era muito forte para resistir. A menos que Gabriel tivesse mostrado a Sam a falsificação por erro, o que não tinha, a análise
da tinta seria positiva e o negócio continuaria.
Eles tinham outra opção caso Sam desistisse; poderiam segui-lo e tentar determinar a identidade de seu cliente, o homem de grande riqueza que estava disposto a pagar
25 milhões de euros por uma obra de arte roubada. Era só uma das razões pelas quais Gabriel e Keller, dois dos homens mais experientes em vigilância do mundo, monitoraram
cada movimento de Sam durante os três dias de espera. Vigiavam de manhã enquanto ele caminhava pelos passeios de Tuileries, à tarde enquanto visitava as atrações
turísticas para manter seu disfarce e à noite quando jantava, sempre sozinho, na Champs-Élysées. A impressão que dava era de disciplina. Em algum momento de sua
vida, Keller e Gabriel concordaram, Sam tinha sido membro da irmandade secreta de espiões. Ou talvez, pensaram, ainda seja.
Na manhã do terceiro dia, ele deu um susto nos dois quando não apareceu para sua caminhada usual. Ficaram mais preocupados às quatro da tarde quando viram como ele
saía do Crillon com duas grandes malas e subia em uma limusine. Mas a preocupação rapidamente desapareceu quando o carro o levou até o HSBC Private Bank no boulevard
Haussmann. Trinta minutos depois, ele estava de volta ao seu quarto. Havia somente duas possibilidades, falou Keller. Ou Sam tinha realizado o mais silencioso roubo
de banco da história ou tinha acabado de retirar uma grande soma em dinheiro de um cofre. Keller suspeitava que fosse a segunda opção. Assim como Gabriel. Portanto,
o suspense era pouco quando chegou a hora de Sam finalmente ligar com uma resposta. Keller fez as honras. Quando a ligação terminou, ele olhou para Gabriel e sorriu.
— Podemos nunca encontrar o Caravaggio — disse ele —, mas acabamos de tirar 25 milhões de euros do sr. Grandão.
24
CHELLES, FRANÇA
MAS HAVIA UMA CONDIÇÃO: Sam se reservava o direito de escolher a hora e o lugar da troca de dinheiro e mercadoria. A hora, ele falou, seria onze e meia da noite
seguinte. O lugar seria um depósito em Chelles, uma comuna apagada no leste de Paris. Keller dirigiu até lá na manhã seguinte enquanto o resto do norte da França
estava viajando para o centro da cidade. O depósito estava onde Sam tinha dito que estaria, na avenida François Miterrand, bem em frente a uma concessionária Renault.
Havia uma placa apagada onde se lia EUROTRANZ, apesar de que não havia nenhuma indicação do tipo de serviços que a empresa realizava. Pombas entravam e saíam das
janelas quebradas; havia muitos arbustos crescendo por trás das barras do portão de ferro. Keller desceu do carro e inspecionou o portão automático. Há muito tempo
ninguém o abria.
Ele passou uma hora fazendo um reconhecimento de rotina nas ruas ao redor do depósito e depois seguiu para o norte até a casa de campo em Andeville. Quando chegou,
encontrou Gabriel e Chiara descansando no jardim ensolarado. Os dois Van Gogh estavam encostados na parede na sala.
— Ainda não sei como você consegue diferenciar um do outro — falou Keller.
— É bastante óbvio, não acha?
— Não.
Gabriel inclinou a cabeça para o quadro da direita.
— Tem certeza?
— Estas são minhas digitais nas laterais da tela, não as de Vincent. E tem isso.
Gabriel ligou seu BlackBerry do Escritório e o segurou perto do canto superior direito da tela. A tela piscou vermelha, indicando a presença de um transmissor escondido.
— Tem certeza da distância? — perguntou Keller.
— Testei de novo essa manhã. Funciona perfeitamente a dez quilômetros.
Keller olhou para o Van Gogh genuíno.
— Pena que ninguém pensou em colocar um rastreador nesse.
— É — falou Gabriel, distante.
— Quanto tempo você pensa ficar com ele?
— Nem um dia a mais do que o necessário.
— Quem vai guardá-lo enquanto seguimos a falsificação?
— Estava querendo deixá-lo na embaixada em Paris — falou Gabriel —, mas o chefe de estação não quer nem saber. Então tive que organizar outra coisa.
— Que coisa?
Quando Gabriel respondeu, Keller balançou a cabeça.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller sorriu.
— Nem me fale.
Eles deixaram a exótica casa de campo pela última vez às oito da noite. A cópia do Doze Girassóis numa Jarra estava no porta-malas da Mercedes de Keller; o Van Gogh
autêntico estava no de Gabriel. Ele o entregou a Maurice Durand em sua loja na rue de Miromesnil. Então deixou Chiara no apartamento seguro com vista para Pont Marie
e partiu para a comuna de Chelles.
Chegou alguns minutos antes das onze e foi até o depósito na avenida François Mitterrand. Era uma parte da cidade onde havia pouca vida nas ruas quando escurecia.
Ele circulou duas vezes a propriedade, procurando evidências de vigilância ou algo que sugeria que Keller estava a ponto de cair em uma armadilha. Sem encontrar
nada fora do comum, procurou um bom ponto de observação onde um homem sentado sozinho não atrairia a atenção da polícia. A única opção era um parque onde uns skatistas
estavam bebendo cerveja. De um lado do parque havia uma fileira de bancos iluminados por lâmpadas amareladas. Gabriel estacionou o carro na rua e se sentou no banco
mais perto da entrada da Eurotranz. Os skatistas olharam para ele estranhando por um momento antes de voltarem a discutir as questões do dia. Gabriel olhou para
seu relógio. Eram 11h05. Aí consultou seu BlackBerry. O sinal ainda não estava dentro do alcance.
Erguendo a cabeça, viu os faróis de um carro na avenida. Um pequeno Citröen vermelho passou pela entrada da Eurotranz e seguiu pela beira do parque, deixando a vibração
do hip-hop francês no ar. Atrás vinha outro carro, uma BMW preta tão limpa que parecia ter sido recentemente lavada para a ocasião. Parou no portão e o motorista
desceu. No escuro era impossível ver seu rosto, mas pela constituição e movimento era um sósia de Sam.
Ele apertou o teclado algumas vezes com a confiança de um homem que conhece a combinação há muito tempo. Então voltou a subir no carro, esperou o portão abrir, e
entrou. Parou enquanto o portão se fechava e depois foi até a entrada do depósito. Novamente, desceu do carro e apertou o teclado de segurança com uma velocidade
que sugeria familiaridade. Quando a porta se abriu, ele entrou com o carro e desapareceu de vista.
No pequeno parque escuro, a chegada de um carro de luxo em um depósito abandonado na avenida François Mitterand passou despercebida por todo mundo, exceto pelo homem
de meia idade sentado sozinho. O homem olhou para seu relógio e viu que eram 23h08. Aí consultou seu BlackBerry. A luz vermelha estava piscando e vindo em sua direção.
Keller chegou exatamente às onze e meia da noite. Ligou para o celular de Sam e o portão se abriu. Um caminho de asfalto com buracos se abria na frente dele, vazio,
escuro. Ele avançou lentamente e, seguindo as instruções de Sam, embicou o carro no depósito. Do lado oposto de um espaço do tamanho de um campo de futebol brilhavam
os faróis baixos de uma BMW. Keller podia ver a figura de um homem inclinado sobre o capô, com um telefone ao ouvido e duas grandes malas aos pés. Não havia mais
ninguém visível.
— Pare aí — falou Sam.
Keller pisou no freio.
— Desligue o motor e apague os faróis.
Keller fez como instruído.
— Saia do carro e fique onde eu possa vê-lo.
Keller saiu devagar e ficou parado na frente do carro. Sam enfiou a mão dentro da BMW e acendeu os faróis.
— Tire seu casaco.
— Isso é realmente necessário?
— Quer o dinheiro ou não?
Keller tirou seu casaco e o jogou sobre o capô do carro.
— Vire-se e fique de frente para o carro.
Keller hesitou, depois se virou de costas para Sam.
— Muito bom.
Keller se virou devagar e encarou Sam de novo.
— Onde está o quadro?
— No porta-malas.
— Pegue-o e coloque no chão alguns metros na frente do carro.
Keller abriu o porta-malas e tirou o quadro. Estava envolvido com uma camada protetora de papel vegetal e escondido dentro de um saco de lixo comum. Colocou no chão
de concreto do depósito a uns cinco metros na frente da Mercedes e esperou pela próxima instrução de Sam.
— Volte para seu carro — veio a voz do lado oposto do depósito.
— De jeito nenhum — respondeu Keller para o brilho dos faróis de Sam.
Ocorreu um breve impasse. Então Sam se aproximou. Parou a poucos metros de Keller, olhou para o chão e franziu a testa.
— Preciso vê-lo mais uma vez.
— Então sugiro que remova o envoltório de plástico. Mas eu seria cuidadoso, Sam. Se algo acontecer com esse quadro, você será o responsável.
Sam se agachou e removeu o quadro de dentro do saco. Então virou a imagem na direção dos faróis de seu carro e observou as pinceladas e a assinatura.
— Então? — perguntou Keller.
Sam olhou para as digitais na lateral da moldura, depois para as marcas do museu na parte de trás.
— Um minuto — falou baixinho. — Um minuto.
O carro de Keller saiu do depósito às 23h40. O portão estava aberto quando ele chegou. Virou para a direita e passou rápido pelo banco onde Gabriel estava sentado.
Gabriel o ignorou; estava olhando os faróis traseiros de uma BMW que se movia pela avenida François Mitterand. Olhou para o BlackBerry e sorriu. Tinha funcionado,
ele pensou. Tinha realmente funcionado.
A luz vermelha piscava com a regularidade de uma pulsação. Flutuou pelos subúrbios de Paris e depois correu para o leste pela A4 até Reims. Gabriel seguia um quilômetro
atrás e Keller um quilômetro atrás de Gabriel. Eles falaram por telefone só uma vez, uma breve conversa durante a qual Keller confirmou que o negócio tinha sido
concretizado. Sam tinha o quadro; Keller tinha o dinheiro de Sam. Estava escondido no porta-malas do carro, dentro do saco de lixo que Gabriel tinha colocado ao
redor da cópia do Doze Girassóis numa Jarra. Tudo exceto por um único pacote de notas de cem euros, que estava no bolso do casaco de Keller.
— Por que isso está no seu bolso? — perguntou Gabriel.
— Dinheiro para a gasolina — respondeu Keller.
Cento e vinte quilômetros separavam os subúrbios do leste de Paris de Reims, uma distância que Sam cobriu em menos de uma hora. Pouco depois da cidade, a luz vermelha
parou de repente na A4. Gabriel rapidamente o alcançou e viu Sam enchendo o tanque do carro em um posto da estrada. Imediatamente ligou para Keller e mandou que
encostasse; depois esperou até Sam voltar à estrada. Em poucos minutos, os três carros tinham retomado a formação original. Sam na frente, Gabriel seguindo um quilômetro
atrás de Sam e Keller seguindo um quilômetro atrás de Gabriel.
Depois de Reims, eles continuaram para o leste, passando por Verdun e Metz. Então a A4 virou para o sul levando todos até Estrasburgo, a capital da região da Alsácia
da França e sede do Parlamento Europeu. Na beira da cidade fluíam as águas verde-escuras do Reno. Alguns minutos depois do nascer do sol, 25 milhões de euros em
dinheiro e uma cópia de uma obra-prima roubada de Vincent van Gogh cruzaram para a Alemanha sem serem detectados.
A primeira cidade do lado alemão da fronteira era Kehl e depois de Kehl estava a autobahn A5. Sam seguiu até Karlsruhe; então entrou na A8 e se dirigiu a Stuttgart.
Quando chegou aos subúrbios do sul, o rush da manhã estava no auge. Ele cruzou lentamente a cidade pela Hauptstätterstrasse e abriu caminho por Stuttgart-Mitte,
um agradável distrito de escritórios e lojas no coração da metrópole. Gabriel sentiu que Sam estava perto de seu destino final, e se aproximou alguns metros. E então
aconteceu a coisa que ele menos esperava.
A luz vermelha piscante desapareceu de sua tela.
De acordo com o BlackBerry de Gabriel, a luzinha brilhou pela última vez no número oito da Böheimstrasse. O endereço correspondia a um hotel de estuque cinza que
parecia ter sido importado de Berlim Oriental durante os piores dias da Guerra Fria. Nos fundos do hotel, que davam a um beco, havia um estacionamento público. A
BMW estava no último nível, em um canto onde a lâmpada havia sido quebrada. Sam estava caído sobre o volante, os olhos bem abertos, sangue e pedaços do cérebro espalhados
por dentro do vidro. E Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon, tinha desaparecido.
25
GENEBRA
ELES FORAM EMBORA DE Stuttgart PELA mesma rota que tinham entrado e cruzaram de volta para a França em Estrasburgo. Keller foi para a Córsega; Gabriel, para Genebra.
Ele chegou no meio da tarde e imediatamente ligou para Christoph Bittel de um telefone público perto do lago. O membro da polícia secreta não pareceu gostar de ouvir
sua voz tão cedo. Ficou ainda menos feliz quando Gabriel explicou por que tinha voltado à cidade.
— De jeito nenhum — falou ele.
— Então acho que terei de contar ao mundo sobre todos esses quadros roubados que encontrei naquele cofre.
— Lá se foi o novo Gabriel Allon.
— A que horas nos encontramos, Bittel?
— Vou ver o que posso fazer.
Bittel demorou uma hora para limpar sua mesa na sede da NDB e outras duas horas para dirigir de Berna a Genebra. Gabriel estava esperando por ele em uma esquina
cheia de gente na rue du Rhône. Passava um pouco das seis. Pequenos bancários suíços estavam saindo dos bonitos edifícios de escritórios; lindas garotas e estrangeiros
astutos estavam entrando nos cafés animados. Tudo muito organizado. Até assassinos em massa se comportavam direito quando estavam em Genebra.
— Você ia me dizer por que devo abrir aquele cofre para você — falou Bittel enquanto voltava a enfrentar o trânsito com seu usual excesso de cuidado.
— Porque a operação em que estou envolvido está com um problema.
— Que tipo de problema?
— Um cadáver.
— Onde?
Gabriel hesitou.
— Onde? — perguntou Bittel de novo.
— Stuttgart — respondeu Gabriel.
— O árabe que levou um tiro na cabeça essa manhã no centro da cidade?
— Quem falou que era um árabe?
— O BfV.
O BfV era o serviço de segurança interno da Alemanha. Mantinha relações próximas com seu irmão germanófilo em Berna.
— Quanto sabem sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Quase nada e foi por isso que entraram em contato conosco. Parece que os assassinos levaram sua carteira depois de atirarem.
— Não foi tudo que levaram.
— Você é responsável pela morte dele?
— Não tenho certeza.
— Deixe-me perguntar de outra forma, Allon. Você colocou uma arma na cabeça dele e puxou o gatilho?
— Não seja ridículo.
— Não é uma pergunta absurda. Afinal, você tem um histórico quando se trata de cadáveres em solo europeu.
Gabriel não falou nada.
— Sabe o nome do homem que estava dentro do carro?
— Ele se chamava Sam, mas tenho a sensação de que seu nome verdadeiro era Samir.
— Sobrenome?
— Nunca me falou.
— Passaporte?
— Ele falava francês muito bem. Se tivesse que adivinhar, acho que era do Levante.
— Líbano?
— Talvez. Ou talvez Síria.
— Por que ele foi morto?
— Não tenho certeza.
— Pode fazer melhor que isso, Allon.
— É possível que estivesse de posse de um quadro que se parecia muito com o Doze Girassóis numa Jarra, de Vincent van Gogh.
— O que foi roubado de Amsterdã?
— Emprestado — falou Gabriel.
— Quem pintou a falsificação?
— Eu.
— Por que Sam estava com ele?
— Eu o vendi por 25 milhões de euros.
Bittel respirou fundo.
— Você me perguntou, Bittel.
— Onde está o quadro?
— Qual quadro?
— O Van Gogh verdadeiro — respondeu Bittel.
— Em mãos seguras.
— E o dinheiro?
— Em mãos ainda mais seguras.
— Por que você roubou um Van Gogh e vendeu uma cópia a um árabe chamado Sam?
— Porque estou procurando um Caravaggio.
— Para quem?
— Os italianos.
— Por que um agente da inteligência israelense está procurando um quadro para os italianos?
— Porque ele acha difícil dizer não às pessoas.
— E se eu puder colocá-lo naquele cofre? O que você espera encontrar?
— Para ser honesto com você, Bittel, não tenho ideia.
Bittel respirou fundo e pegou seu telefone.
Fez duas ligações, uma atrás da outra. A primeira foi para sua linda amiga no Freeport. A segunda foi para um arrombador que ocasionalmente fazia favores para a
NDB na área de Genebra. A mulher estava esperando no portão quando eles chegaram; o arrombador apareceu uma hora mais tarde. Seu nome era Zimmer. Tinha um rosto
redondo e suave, junto com o olhar assustado de um animal empalhado. Sua mão era tão fina e macia que Gabriel a soltou rapidamente, com medo de machucá-lo.
Tinha em seu poder uma mala retangular pesada de couro escuro, que agarrava firme enquanto seguia Bittel e Gabriel pela porta externa do depósito de Jack Bradshaw.
Se notou os quadros, não deu nenhum sinal disso; tinha olhos somente para o pequeno cofre perto da mesa. Havia sido construído por um fabricante alemão de Colônia.
Zimmer franziu a testa, como se esperasse algo mais desafiador.
O arrombador, como o restaurador de arte, não gostava que as pessoas ficassem olhando enquanto ele trabalhava. Por isso, Gabriel e Bittel foram forçados a se confinar
na sala interior do depósito que Yves Morel tinha usado como estúdio clandestino. Eles se sentaram no chão, encostados na parede e com as pernas esticadas. Era óbvio
pelos sons que vinham da porta aberta que Zimmer estava usando uma técnica conhecida como perfuração do ponto fraco. O ar tinha cheiro de metal quente. Lembrava
a Gabriel o cheiro de uma arma recentemente usada. Olhou para seu relógio e franziu a testa.
— Quanto tempo isso vai demorar? — perguntou ele.
— Alguns cofres são mais fáceis que outros.
— É por isso que sempre preferi uma carga bem colocada de explosivo plástico. Semtex é um grande equalizador.
Bittel tirou seu celular e foi repassando sua caixa de e-mails; Gabriel ficou mexendo na paleta de tintas de Yves Morel: ocre, dourado, vermelho... Finalmente, uma
hora depois que Zimmer começou a trabalhar, ouviu um forte barulho metálico na sala ao lado. O arrombador apareceu na porta, segurando sua mala de couro negro, e
acenou uma vez para Bittel.
— Acho que sei como ir embora — falou. E desapareceu.
Gabriel e Bittel ficaram de pé e foram até a sala ao lado. A porta do cofre estava um pouco aberta, um dedo, nada mais. Gabriel se aproximou, mas Bittel o impediu.
— Eu faço isso — disse ele.
Mandou Gabriel dar um passo para trás. Então abriu a porta do cofre e deu uma olhada no interior. Estava vazio, exceto por um envelope branco. Bittel o pegou e leu
o nome escrito na frente.
— O que é isso? — perguntou Gabriel.
— Parece ser uma carta.
— Para quem?
Bittel entregou a Gabriel e falou:
— Para você.
Parecia mais um memorando do que uma carta, um relatório pós-ação em campo escrito por um espião caído com problemas de consciência por sua traição. Gabriel leu
duas vezes, a primeira enquanto estava no depósito de Jack Bradshaw, e uma segunda vez enquanto estava sentado no salão de embarque do Aeroporto Internacional de
Genebra. Seu voo foi anunciado alguns minutos depois das nove, primeiro em francês, depois em inglês e, finalmente, em hebraico. O som de seu idioma nativo acelerou
sua pulsação. Ele enfiou a carta em sua mala de mão, levantou-se e embarcou no avião.
PARTE TRÊS
A JANELA ABERTA
26
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
O EDIFÍCIO COMERCIAL QUE FICAVA numa ponta do Boulevard Rei Saul era opaco, sem nenhuma característica e, melhor de tudo, anônimo. Não havia nenhum emblema pendurado
na entrada, nenhuma placa que mostrasse a identidade de seu ocupante. Na verdade, não havia nada para sugerir que era a sede de um dos serviços de inteligência mais
temidos e respeitados do mundo. Uma inspeção mais de perto da estrutura, no entanto, teria revelado a existência de um prédio dentro do prédio, com seu próprio fornecimento
de energia, suas próprias linhas de água e esgoto, e seu próprio sistema de comunicações seguras. Os funcionários carregavam duas chaves. Uma abria uma porta sem
nenhuma marca no lobby, a outra operava o elevador. Aqueles que cometiam o imperdoável pecado de perder uma ou as duas chaves eram banidos para o deserto da Judeia,
e nunca mais eram vistos ou citados.
Havia alguns funcionários que eram muito importantes ou cujo trabalho era muito confidencial para aparecer no lobby. Eles entravam no prédio “preto” através do estacionamento
no subsolo, como Gabriel fez trinta minutos depois que seu avião de Genebra aterrissou no aeroporto Ben-Gurion. Sua caravana incluía um veículo cheio de uma equipe
de segurança fortemente armada. Ele pensou que era um sinal do que estava por vir.
Dois dos agentes de segurança o seguiram até o elevador, que o levou até o andar mais alto do prédio. Do lobby, ele atravessou uma porta protegida até uma antessala
onde uma mulher com quase quarenta anos estava sentada atrás de uma mesa moderna com uma superfície negra brilhante. A mesa só tinha um abajur e um telefone multilinhas
seguro; a mulher tinha longas pernas queimadas de sol. Dentro do Boulevard Rei Saul ela era conhecida como a Cúpula de Ferro por sua habilidade imbatível de evitar
pedidos indesejados por uma palavra com o chefe. Seu nome verdadeiro era Orit.
— Está em uma reunião — falou ela, olhando para a luz vermelha brilhando em cima da impressionante porta dupla do chefe. — Sente-se. Não vai demorar.
— Ele sabe que estou no prédio?
— Sabe.
Gabriel se sentou no que era possivelmente o sofá mais desconfortável de todo Israel e olhou para a luz vermelha brilhando sobre a porta. Então olhou para Orit,
que sorriu, desconfortável.
— Posso servir algo? — perguntou ela.
— Um aríete — respondeu Gabriel.
Finalmente, a luz mudou de vermelho para verde. Gabriel se levantou rapidamente e entrou no escritório enquanto os participantes da reunião agora adiada saíam por
uma segunda porta. Reconheceu dois deles. Uma era Rimona Stern, a chefe do programa nuclear do Irã do Escritório. O outro era Mikhail Abramov, um agente de campo
e atirador que tinha trabalhado com Gabriel em várias operações de extrema importância. O terno que estava usando sugeria uma promoção recente.
Quando a porta se fechou, Gabriel se virou lentamente para encarar o único outro ocupante da sala. Estava parado perto de uma grande mesa de vidro escuro, uma pasta
aberta nas mãos. Usava um terno cinza que parecia um número menor e uma camisa branca com um colarinho alto que deixava a impressão de que sua cabeça estava parafusada
em seus fortes ombros. Seus óculos eram pequenos e sem aro, do tipo usado por executivos alemães que queriam parecer jovens e na moda. Seu cabelo, ou o que sobrara
dele, era espetado e grisalho.
— Desde quando Mikhail participa de reuniões na sala do chefe? — perguntou Gabriel.
— Desde que dei uma promoção a ele — respondeu Uzi Navot.
— A quê?
— Vice-chefe de Operações Especiais. — Navot colocou a pasta na mesa e sorriu, sem sinceridade. — Tudo bem se fizer movimentos de pessoal, Gabriel? Afinal, ainda
sou o chefe por mais um ano.
— Tinha planos para ele.
— Que tipo de planos?
— Na verdade, ia colocá-lo como responsável de Operações Especiais.
— Mikhail? Ele não está pronto, ainda falta muito.
— Ele vai ficar bem, desde que tenha um planejador operacional experiente olhando sobre o seu ombro.
— Alguém como você?
Gabriel ficou em silêncio.
— E eu? — perguntou Navot. — Já decidiu o que vai fazer?
— Isso depende totalmente de você.
— É óbvio que não.
Navot largou a pasta na mesa e apertou um botão do seu painel de controle que fez descer as venezianas lentamente sobre as janelas à prova de bala que iam do chão
ao teto. Ficou ali por um momento em silêncio, como se estivesse preso pelas barras de sombras. Gabriel vislumbrou um retrato desagradável de seu próprio futuro,
um homem cinzento em uma jaula cinzenta.
— Preciso admitir — falou Navot —, tenho muita inveja de você. O Egito está à beira da guerra civil, a al-Qaeda está controlado uma faixa de terra que vai de Faluja
ao Mediterrâneo, e um dos conflitos mais sangrentos da história moderna está acontecendo na nossa fronteira norte. E mesmo assim você tem tempo para ficar procurando
uma obra roubada para o governo italiano.
— Não foi ideia minha, Uzi.
— Poderia ter, pelo menos, mostrado a cortesia de pedir minha aprovação quando os carabinieri o procuraram.
— Teria dado?
— Claro que não.
Navot caminhou lentamente por sua longa mesa de reuniões executivas até a área de estar, mais confortável. As redes de televisão do mundo apareciam silenciosamente
em sua parede de vídeos; os jornais do mundo estavam organizados na mesa de café.
— A polícia europeia esteve bem ocupada ultimamente — falou ele. — Um expatriado britânico assassinado em lago Como, uma obra roubada de Van Gogh, e agora isso.
— Ele pegou uma cópia do Die Welt e entregou para que Gabriel visse. — Um árabe morto no meio de Stuttgart. Três eventos aparentemente desconectados com uma coisa
em comum. — Navot deixou o jornal cair sobre a mesa. — Gabriel Allon, o futuro chefe do serviço de inteligência de Israel.
— Duas coisas, na verdade.
— Qual é a segunda?
— LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— O pior homem do mundo.
— Ele está na folha de pagamento do Escritório?
— Não, Uzi — falou Gabriel, sorrindo. — Ainda não.
Navot conhecia em linhas gerais a busca de Gabriel pelo Caravaggio perdido, pois tinha acompanhado à distância: reservas de viagens aéreas, gastos de cartão de crédito,
passagens de fronteira, pedidos de propriedades seguras, notícias de uma obra desaparecida. Agora, sentado na sala que logo seria dele, Gabriel completou a narrativa,
começando com as reuniões com o general Ferrari em Veneza e terminando com a morte de um homem chamado Sam em Stuttgart — um homem que tinha acabado de pagar 25
milhões de euros por Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon. Então, ele entregou as três páginas da carta que Jack Bradshaw tinha
deixado para ele no Freeport de Genebra.
— O nome verdadeiro de Sam era Samir Basara. Bradshaw o conheceu quando estava trabalhando em Beirute. Samir era um clássico vigarista. Drogas, armas, garotas, todas
as coisas que faziam a vida mais interessante em um lugar como Beirute nos anos 1980. Mas na verdade, Samir não era libanês. Samir era da Síria, e estava trabalhando
para a inteligência síria.
— Estava trabalhando para eles quando foi morto?
— Com certeza — respondeu Gabriel.
— Fazendo o quê?
— Comprando arte roubada.
— De Jack Bradshaw?
Gabriel assentiu.
— Samir e Bradshaw renovaram seu relacionamento há 14 meses em um almoço em Milão. Samir tinha uma proposta de negócios. Disse que tinha um cliente, um empresário
rico do Oriente Médio que estava interessado em adquirir quadros. Em poucas semanas, Bradshaw usou seus contatos no submundo da arte para assegurar um Rembrandt
e um Monet, sendo que os dois tinham sido roubados. Isso não incomodava Samir. Na verdade, ele gostava disso. Deu a Bradshaw cinco milhões de dólares e o mandou
encontrar mais.
— Como ele pagava pelos quadros?
— Enviava o dinheiro para a empresa de Bradshaw através de algo chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— Vou chegar lá — falou Gabriel.
— Por que Sam queria quadros roubados?
— Também vou chegar lá. — Gabriel olhou para a carta. — Nesse ponto, Jack Bradshaw começou a comprar loucamente para seu novo cliente cheio de dinheiro. Uns Renoir,
um Matisse, um Corot que foi roubado do Museu de Belas Artes de Montreal, em 1972. Ele também adquiriu vários quadros italianos importantes que não deveriam deixar
o país. Samir ainda não estava satisfeito. Disse que seu cliente queria algo grande. Foi quando Bradshaw sugeriu o Santo Graal dos quadros desaparecidos.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Onde estava?
— Ainda na Sicília, nas mãos da Cosa Nostra. Bradshaw foi a Palermo e negociou o acordo. Depois de todos esses anos, os mafiosos realmente ficaram felizes por se
livrar dele. Bradshaw o levou à Suíça em um carregamento de tapetes. Não é preciso dizer que o retábulo não estava em boas condições quando chegou. Ele aceitou cinco
milhões de euros como adiantamento de Samir e contratou um falsificador francês para tornar a Natividade apresentável de novo. Mas algo aconteceu antes que pudesse
completar a venda.
— O quê?
— Ele descobriu quem estava comprando os quadros.
— Quem era?
Antes de responder, Gabriel voltou a uma pergunta que Navot tinha feito alguns minutos antes: por que o cliente rico de Samir Basara estava no mercado de quadros
roubados? Para responder isso, Gabriel primeiro explicou as quatro categorias básicas de ladrões de arte: o amante de arte sem dinheiro, o perdedor incompetente,
o profissional e o membro do crime organizado. O membro do crime organizado, ele falou, era responsável pelos grandes roubos. Às vezes ele tinha um comprador à espera,
mas geralmente os quadros roubados terminavam sendo usados como uma forma de dinheiro no submundo, um traveler check para a classe criminosa. Um Monet, por exemplo,
poderia ser usado como pagamento colateral para um envio de armas russas; um Picasso, por heroína turca. Eventualmente, alguém na rede de posse decidiria obter lucro,
normalmente com a ajuda de um intermediário especialista como Jack Bradshaw. Um quadro que vale duzentos milhões de dólares no mercado legítimo valeria vinte milhões
no mercado negro. Vinte milhões que nunca seriam rastreados, acrescentou Gabriel. Vinte milhões que nunca seriam congelados pelos governos dos Estados Unidos e da
União Europeia.
— Vê onde estou chegando com isso, Uzi?
— Quem é? — perguntou Navot de novo.
— É um homem que está por trás de uma terrível guerra civil, um homem que está acostumado a torturar sistematicamente, a criar barragens de artilharia indiscriminada
e ataques de armas químicas contra seu próprio povo. Viu Hosni Mubarak ser colocado em uma jaula e Muammar Gaddafi ser linchado por uma multidão louca por sangue.
Como resultado, está preocupado com o que poderia acontecer se caísse, e é por isso que pediu a Samir Basara para preparar um pequeno ninho para ele e sua família.
— Está dizendo que Jack Bradshaw estava vendendo quadros roubados para o presidente da Síria?
Gabriel levantou o rosto para as imagens piscando na parede de vídeos de Navot. O regime tinha acabado de atacar um bairro dominado por rebeldes em Damasco. O número
de mortos era incalculável.
— O dirigente sírio e seu clã valem bilhões — falou Navot.
— É verdade — respondeu Gabriel. — Mas os norte-americanos e a UE estão congelando seus bens e os de seus ajudantes mais próximos onde conseguem encontrá-los. Até
a Suíça congelou centenas de milhões de bens sírios.
— Mas grande parte da fortuna ainda está aí, em algum lugar.
— Por enquanto — falou Gabriel.
— Por que não barras de ouro ou cofres cheios de dinheiro? Por que quadros?
— Imagino que ele tenha ouro e dinheiro, também. Afinal, como qualquer assessor de investimentos diria, a diversidade é a chave para o sucesso a longo prazo. Mas
se fosse eu assessorando o presidente sírio — acrescentou Gabriel —, diria para investir em bens que são fáceis de esconder e transportar.
— Quadros? — perguntou Navot.
Gabriel assentiu.
— Se ele compra um quadro por cinco milhões no mercado negro, pode vender por quase o mesmo preço, menos comissões para o intermediário, claro. É um preço menor
a pagar para ter dezenas de milhões em dinheiro não rastreável.
— Engenhoso.
— Ninguém os acusou de serem estúpidos, só cruéis e brutais.
— Quem matou Samir Basara?
— Se eu tivesse que adivinhar, foi alguém que o conhecia. — Gabriel parou, depois acrescentou: — Alguém que estava sentado no banco de trás do carro quando puxou
o gatilho.
— Alguém da inteligência síria?
— É normalmente assim que funciona.
— Por que o mataram?
— Talvez soubesse muito. Ou talvez tenham ficado bravos com ele.
— Por quê?
— Por deixar que Jack Bradshaw descobrisse sobre as finanças pessoais da família dirigente.
— Quanto ele sabia?
Gabriel pegou a carta e falou:
— Bastante, Uzi.
27
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
– O QUE VOCÊ ACHA QUE BRADSHAW fez com o Caravaggio?
— Ele deve ter levado de volta a sua villa no lago Como — respondeu Gabriel. — Então, pediu a Oliver Dimbleby vir à Itália para dar uma olhada em sua coleção. Foi
uma falcatrua, uma operação inteligente concebida por um ex-espião britânico. O que ele realmente queria era que Oliver entregasse uma mensagem a Julian Isherwood
que, por sua vez, a entregaria a mim. Não saiu como planejado. Oliver enviou Julian a Como em seu lugar. E quando chegou, Bradshaw estava morto.
— E o Caravaggio desapareceu?
Gabriel assentiu.
— Por que Bradshaw queria contar a você sobre a conexão com o presidente sírio?
— Suponho que ele pensou que eu iria lidar com o assunto com discrição.
— E o que isso quer dizer?
— Eu não diria à polícia britânica ou italiana que ele era um ladrão e um intermediário — respondeu Gabriel. — Estava esperando encontrar-se comigo. Mas também tomou
a precaução de colocar tudo que sabia por escrito dentro do cofre no Freeport.
— Junto com alguns quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— Por que a súbita mudança de ideia? Por que não pegar o dinheiro sujo de sangue do dirigente e ir rindo até o banco?
— Nicole Devereaux.
Navot apertou os olhos, pensativo.
— Por que esse nome me é familiar?
— Ela era a fotógrafa da AFP que foi sequestrada e morta em Beirute nos anos 1980 — falou Gabriel. Então contou a Navot o resto da história: o caso amoroso, o recrutamento
pela KGB, meio milhão em uma conta de banco suíço. — Bradshaw nunca se perdoou pela morte de Nicole — acrescentou ele. — E certamente nunca perdoou o regime sírio
por matá-la.
Navot ficou em silêncio por um momento.
— Seu amigo Jack Bradshaw fez várias besteiras durante sua vida — falou finalmente. — Mas a coisa mais idiota que já fez foi aceitar cinco milhões de euros da família
governante da Síria por um quadro que não conseguiu entregar. Só há uma coisa que a família odeia mais do que deslealdade: pessoas que tentam roubá-los.
Navot assistia às imagens que passavam na parede de vídeo.
— Na minha opinião — falou ele —, é disso que se trata esse exercício inteiro de depravação humana. Cento e cinquenta mil mortos e milhões de pessoas sem lugar para
morar. E para quê? Por que a família do governante está se agarrando a isso como se não houvesse amanhã? Por que estão praticando assassinato em escala industrial?
Pela fé deles? Pelo ideal sírio? Não existe ideal sírio. Francamente, não existe mais Síria. E mesmo assim as mortes acontecem por um motivo, e apenas um motivo.
— Dinheiro — falou Gabriel.
Navot assentiu lentamente.
— Você parece ter uma visão especial sobre a situação da Síria, Uzi.
— Por acaso sou casado com uma conceituada especialista sobre a Síria e o movimento baathista. — Ele parou, então acrescentou: — Mas você já sabia isso.
Navot levantou, caminhou até o aparador e serviu uma xícara de café da garrafa térmica. Gabriel notou a ausência de creme ou biscoitos amanteigados, duas coisas
que Navot não conseguia resistir. Ele bebia seu café preto agora, sem nenhum acompanhamento a não ser uma pastilha de adoçante branco, que colocou em sua xícara
de um recipiente plástico.
— Desde quando você coloca cianeto no seu café, Uzi?
— Bella quer que eu perca o vício em açúcar. Em seguida, será a cafeína.
— Não consigo imaginar esse trabalho sem cafeína.
— Logo vai descobrir.
Navot sorriu mesmo sem vontade e voltou para sua cadeira. Gabriel estava olhando os monitores de vídeo. O corpo de uma criança — menino ou menina, era impossível
dizer — estava sendo retirado do meio dos escombros. Uma mulher estava em prantos. Um homem barbudo clamava por vingança.
— Quanto há? — perguntou ele.
— Dinheiro?
Gabriel assentiu.
— Dez bilhões é o número que aparece na imprensa — respondeu Navot —, mas achamos que o número real é muito maior. E é todo controlado por Kemel al-Farouk. — Navot
olhou de canto de olho para Gabriel e perguntou: — Conhece o nome?
— A Síria não é minha área de especialização, Uzi.
— Logo será. — Navot deu outro sorriso apagado antes de continuar. — Kemel não é um membro da família dirigente, mas esteve trabalhando nos negócios da família por
toda sua vida. Começou como guarda-costas do pai do dirigente. Kemel recebeu uma bala pelo velho no final dos anos setenta e o pai do dirigente nunca esqueceu isso.
Deu a Kemel um bom trabalho na Mukhabarat, onde ele ganhou uma reputação como interrogador terrível de prisioneiros políticos. Costumava pregar membros da Irmandade
Muçulmana na parede por diversão.
— Onde ele está agora?
— Seu título oficial é vice-ministro de Estado para Relações Exteriores, mas em muitos aspectos é quem está dirigindo o país e a guerra. O dirigente nunca toma decisões
sem falar primeiro com Kemel. E, talvez mais importante, Kemel é quem está cuidando do dinheiro. Ele colocou uma parte da fortuna em Moscou e Teerã, mas de jeito
nenhum confiaria totalmente nos russos e nos iranianos. Achamos que ele tem alguém trabalhando na Europa Ocidental escondendo os bens. O que não sabemos — falou
Navot —, é quem é essa pessoa ou onde está escondendo o dinheiro.
— Graças a Jack Bradshaw, agora sabemos que parte dele está na LXR Investments. E podemos usar a LXR como janela para ver o resto do dinheiro da família.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio. Navot assistia a outro corpo sendo retirado dos escombros em Damasco.
— É duro para os israelenses verem cenas como essa — falou depois de um momento. — Nos deixa incomodados. Traz más recordações. Nosso instinto natural é matar o
monstro antes que o monstro possa fazer mais danos. Mas o Escritório e a IDF concluíram que é melhor deixar o monstro no lugar, pelo menos por enquanto, porque a
alternativa poderia ser pior. E os norte-americanos e os europeus chegaram à mesma conclusão, apesar de todas as conversações otimistas sobre a negociação de um
acordo. Ninguém quer que a Síria caia nas mãos da al-Qaeda, mas isso é o que vai acontecer se a família governante cair.
— Boa parte da Síria já é controlada pela al-Qaeda.
— Verdade — concordou Navot. — E o contágio está se espalhando. Há algumas semanas, uma delegação de chefes de inteligência europeu foi a Damasco com uma lista de
seus cidadãos muçulmanos que vieram à Síria se unir à jihad. Eu poderia ter dado a eles mais alguns nomes, mas não fui convidado para a festa.
— Que surpresa.
— Provavelmente foi melhor não ter ido. Na última vez que estive em Damasco, viajei sob um nome falso.
— Quem?
— Vincent Laffont.
— O escritor de guias de viagem.
Navot assentiu.
— Sempre foi um dos meus favoritos — disse Gabriel.
— Meu também. — Navot colocou sua xícara de café na mesa. — O Escritório nunca evitou se comprometer com crimes estranhos a serviço de uma operação moral e justa.
Mas se atropelarmos o sistema bancário internacional, as repercussões podem ser desastrosas.
— A família governante síria não teve acesso a esses bens honestamente, Uzi. Já estão saqueando a economia por duas gerações.
— Isso não significa que podemos roubá-las.
— Não — falou Gabriel com um remorso fingido. — Isso seria errado.
— Então, o que está sugerindo?
— Congelarmos os bens.
— Como?
Gabriel sorriu e falou:
— Ao estilo do Escritório.
— Que tal nossos amigos em Langley? — perguntou Navot quando Gabriel tinha terminado de explicar.
— O que tem?
— Não podemos lançar uma operação como essa sem o apoio da Agência.
— Se contarmos à Agência, eles vão contar à Casa Branca. E isso vai terminar na primeira página do The New York Times.
Navot sorriu.
— Tudo que precisamos é da aprovação do primeiro-ministro e do dinheiro para realizar a operação.
— Já temos dinheiro, Uzi. Muito dinheiro.
— Os 25 milhões que você ganhou com a venda do Van Gogh falso?
Gabriel assentiu.
— É a beleza dessa operação — falou ele. — Ela se autofinancia.
— Onde está o dinheiro agora?
— Pode estar no porta-malas do carro de Christopher Keller.
— Na Córsega.
— Infelizmente.
— Vou mandar um bodel para pegá-lo.
— O grande dom Orsati não lida com mensageiros, Uzi. Ele acharia isso um insulto muito grande.
— O que está sugerindo?
— Vou resgatar o dinheiro assim que tivermos uma operação em funcionamento, apesar de que seja possível que tenha de deixar um pequeno pagamento de tributo ao Dom.
— Pequeno? Quanto?
— Dois milhões devem deixá-lo feliz.
— Isso é muito dinheiro.
— Uma mão lava a outra, e as duas mãos lavam o rosto.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente, Uzi.
O que faltava era pensar na composição da equipe operacional de Gabriel. Rimona Stern e Mikhail Abramov eram indispensáveis, ele falou. Assim como Dina Sarid, Yossi
Gavish e Yaakov Rossman.
— Não é possível ter Yaakov num momento como esse — objetou Navot.
— Por que não?
— Porque Yaakov é quem está rastreando todos os mísseis e outros artigos mortais que estão indo dos sírios para os amigos deles no Hezbollah.
— Yaakov pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
— Quem mais?
— Preciso de Eli Lavon.
— Ele ainda está escavando embaixo do Muro das Lamentações.
— Amanhã à tarde, ele já estará escavando em outro lugar.
— Só isso?
— Não — falou Gabriel. — Tem outra pessoa que preciso para uma operação como essa.
— Quem?
— A maior especialista do país em Síria e no movimento baathista.
Navot sorriu.
— Talvez você devesse levar uns guarda-costas, por segurança.
28
PETAH TIKVA, ISRAEL
OS NAVOTS VIVIAM NO lado oriental de Petah Tikva, em uma rua calma onde as casas ficavam escondidas atrás de muros de concreto e arbustos. Havia uma campainha perto
do portão de metal, que tocou em silêncio quando Gabriel apertou. Olhou diretamente para as lentes da câmera de segurança e apertou de novo. Dessa vez, o intercomunicador
emitiu o som da voz de uma mulher.
— Quem é?
— Sou eu, Bella. Abra o portão.
Outro silêncio, 15 segundos, talvez mais, antes que o trinco fosse liberado com uma pancada. Conforme o portão abria, surgia a casa, uma estrutura cubista com grandes
janelas reforçadas e uma antena de comunicações seguras aparecendo no teto. Bella estava à sombra do pórtico, os braços cruzados na defensiva. Ela usava calça de
seda branca e blusa amarela com um cinto na cintura esbelta. Seu cabelo escuro parecia recém-pintado e penteado. De acordo com a usina de rumores do Escritório,
ela tinha uma hora marcada toda manhã em um dos salões mais exclusivos de Tel Aviv.
— Você tem muita coragem de vir a essa casa, Gabriel.
— Para com isso, Bella. Vamos tentar ser civilizados.
Ela ficou parada um momento antes de se virar e, com um movimento indiferente da mão, convidá-lo a entrar. Tinha decorado os cômodos da casa como a seu marido: cinza,
brilhante, moderno. Gabriel a seguiu pela muito brilhante cozinha cromada e de granito negro polido, indo até o terraço do fundo onde estava servido um almoço leve
israelense. A mesa estava na sombra, mas o sol brilhava forte no jardim. Havia pequenas piscinas e fontes murmurantes. Gabriel se lembrou de repente que Bella sempre
tinha adorado o Japão.
— Adoro o que você fez com esse lugar, Bella.
— Sente-se — foi tudo que ela respondeu.
Gabriel se sentou em uma cadeira de jardim com almofada. Bella serviu um copo alto de suco de laranja e colocou bem na frente dele.
— Já pensou onde você e Chiara vão morar quando se tornar chefe? — perguntou ela.
Ele não sabia dizer se a pergunta dela sincera ou maliciosa. Decidiu responder honestamente.
— Chiara acha que precisamos viver perto do Boulevard Rei Saul — falou ele —, mas eu preferia ficar em Jerusalém.
— É muito longe.
— Não vou dirigir o carro.
O rosto dela ficou tenso.
— Desculpe, Bella. Não foi isso que quis dizer.
Ela não respondeu diretamente.
— Nunca gostei muito de Jerusalém. Perto demais de Deus para meu gosto. Gosto daqui, o meu pequeno subúrbio secular.
Um silêncio se abateu entre eles. Os dois sabiam a verdadeira razão pela qual Gabriel preferia Jerusalém a Tel Aviv.
— Desculpe por nunca ter enviado a você e Chiara os parabéns pela gravidez. — Ela deu um breve sorriso. — Deus sabe como os dois merecem alguma felicidade depois
de tudo que aconteceu.
Gabriel assentiu e murmurou algo apropriado. Bella nunca tinha dado os parabéns, ele pensou, porque sua raiva não tinha permitido. Ela tinha um comportamento vingativo.
Era uma de suas características mais duradouras.
— Acho que deveríamos conversar, Bella.
— Achei que estávamos conversando.
— Conversar de verdade — falou ele.
— Seria melhor se nos comportássemos como personagens em um daqueles programas de suspense que passam na BBC. Ou posso falar algo que me arrependa depois.
— Há uma razão pela qual esses programas nunca têm Israel como cenário. Não falamos daquela forma.
— Talvez devêssemos.
Ela pegou um prato e começou a servir Gabriel.
— Não estou com fome, Bella.
Ela colocou o prato na mesa.
— Estou brava com você, droga.
— Achei que sim.
— Por que está roubando o cargo do Uzi?
— Não estou.
— Como descreveria isso?
— Não tive escolha.
— Poderia ter dito não a eles.
— Eu tentei. Não funcionou.
— Deveria ter tentado mais.
— Não foi culpa minha, Bella.
— Eu sei, Gabriel! Nada nunca é culpa sua.
Ela olhou para as fontes no jardim. Isso pareceu acalmá-la momentaneamente.
— Nunca vou esquecer a primeira vez que vi você — falou, finalmente. — Estava andando sozinho por um corredor dentro do Boulevard Rei Saul, pouco depois de Túnis.
Você estava exatamente como está agora, os mesmos olhos verdes, as mesmas têmporas grisalhas. Era como um anjo, o anjo da vingança de Israel. Todo mundo adorava
você. Uzi idolatrava você.
— Não vamos exagerar, Bella.
Ela agiu como se não tivesse ouvido.
— E então aconteceu Viena — retomou ela depois de um momento. — Foi um cataclisma, um desastre de proporções bíblicas.
— Todos perdemos entes queridos, Bella. Todos ficamos de luto.
— É verdade, Gabriel. Mas Viena foi diferente. Você nunca mais foi o mesmo depois de Viena. Nenhum de nós foi. — Ela fez uma pausa e acrescentou: — Especialmente
Shamron.
Gabriel seguiu o olhar de Bella até o jardim, mas por um momento ele foi transportado para o pátio iluminado pelo sol da Academia Bezalel de Arte e Design em Jerusalém.
Era setembro de 1972, alguns dias depois do assassinato de 11 atletas e técnicos israelenses nas Olimpíadas de Munique. Do nada apareceu um homem que parecia uma
pequena barra de ferro, com óculos negros horríveis e dentes como uma armadilha de aço. O homem não falou seu nome, pois não era necessário. Era o homem sobre o
qual falavam somente em sussurros. Era quem tinha roubado os segredos que levaram Israel à vitória rápida na Guerra dos Seis Dias. O que tinha sequestrado Adolf
Eichmann, diretor-gerente do Holocausto, em uma esquina argentina.
Shamron...
— Ari se culpou pelo que aconteceu com você em Viena — dizia Bella. — E ele nunca se perdoou, também. Tratou você como um filho depois daquilo. Ele o deixava fazer
o que quisesse. Mas nunca desistiu da esperança de que um dia você viria e assumiria o controle do Escritório que ele amava tanto.
— Sabe quantas vezes eu recusei o cargo?
— Tantas que Shamron acabou entregando a Uzi. Ele ganhou o cargo como um prêmio de consolação.
— Na verdade, fui eu que sugeri que Uzi se tornasse o novo chefe.
— Como se o cargo fosse seu pra poder atribuir. — Ela sorriu, amarga. — Uzi já contou que eu o aconselhei a não aceitar o cargo?
— Não, Bella. Ele nunca mencionou isso.
— Sempre soube que terminaria assim. Você deveria ter deixado o palco sem fazer alarde e ficado na Europa. Mas o que fez? Inseriu um carregamento de centrífugas
sabotadas na cadeia de suprimentos nucleares iraniana e destruiu quatro instalações de enriquecimento secretas.
— Essa operação ocorreu sob a supervisão do Uzi.
— Mas foi sua operação. Todo mundo no Boulevard Rei Saul sabe que foi sua, assim como todo mundo na rua Kaplan.
A rua Kaplan era a localização do escritório do primeiro-ministro. Sem dúvidas, Bella era uma visitante bastante frequente. Gabriel sempre suspeitou que a influência
dela no Boulevard Rei Saul ia muito além da decoração do escritório de seu marido.
— Uzi tem sido um bom chefe — falou ela. — Um excelente chefe. Ele só tem um defeito. Não é você, Gabriel. Ele nunca vai ser você. E por isso, está sendo descartado.
— Não se eu puder evitar.
— Já não fez o suficiente?
Dentro da casa tocou um telefone. Bella não mostrou nenhum interesse em atender.
— Por que está aqui? — perguntou ela.
— Quero conversar sobre o futuro do Uzi.
— Graças a você, ele já não tem nenhum.
— Bella...
Ela se recusava a se acalmar, não tão cedo.
— Se você tem algo a falar sobre o futuro do Uzi, deveria conversar com ele.
— Achei que seria mais produtivo se passasse por cima dele.
— Não tente me lisonjear, Gabriel.
— Nem sonharia em fazer isso.
Ela bateu a unha de seu dedo indicador na mesa. Tinha sido recentemente pintada.
— Ele me contou sobre a conversa que tiveram em Londres quando estavam procurando aquela garota sequestrada. Não é preciso dizer que não pensei muito na sua proposta.
— Por que não?
— Porque não há precedentes para isso. Quando termina o período de um chefe, ele gentilmente desaparece na noite, nunca mais se ouve falar dele.
— Diga isso ao Shamron.
— Shamron é diferente.
— Eu também.
— O que você está propondo exatamente?
— Dirigirmos juntos o Escritório. Eu serei o chefe e Uzi será meu vice.
— Nunca vai funcionar.
— Por que não?
— Porque vai deixar a impressão de que você não está totalmente preparado para o cargo.
— Ninguém pensa isso.
— A aparência é importante.
— Você está me confundindo com outra pessoa, Bella.
— Com quem?
— Com alguém que se preocupa com as aparências.
— E se ele concordar?
— Terá um escritório ao lado do meu. Vai estar envolvido em toda decisão central, toda operação importante.
— E o salário dele?
— Vai ter o mesmo salário, sem mencionar o carro e a segurança.
— Por quê? — perguntou ela. — Por que está fazendo isso?
— Porque preciso dele, Bella. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — De você, também.
— De mim?
— Quero que volte ao Escritório.
— Quando?
— Amanhã de manhã, às dez horas. Uzi e eu vamos organizar uma operação contra os sírios. Precisamos da sua ajuda.
— Que tipo de operação?
Quando Gabriel contou, ela sorriu, triste.
— Pena que Uzi não pensou nisso — falou ela. — Ele ainda poderia ser o chefe.
Passaram a hora seguinte no jardim de Bella negociando os termos da volta dela ao Boulevard Rei Saul. Depois disso, acompanhou-o até o carro oficial.
— Você fica bem assim — falou ela pela porta aberta.
— Como, Bella?
Ela sorriu e falou:
— Nos vemos amanhã, Gabriel. — Então se virou e desapareceu. Um guarda-costas fechou a porta do carro; outro subiu no banco do passageiro. Gabriel percebeu de repente
que não estava armado. Ficou sentado ali por um momento pensando aonde iria em seguida. Em seguida, olhou para o motorista pelo espelho retrovisor e deu um endereço
em Jerusalém Ocidental. Ele tinha mais um negócio desagradável para resolver antes de ir para casa. Tinha de contar a um fantasma que seria pai de novo.
29
JERUSALÉM
O PEQUENO PASSEIO CIRCULAR DO Hospital Psiquiátrico Monte Herzl vibrou sob o peso da caravana de três carros de Gabriel. Ele saiu do banco traseiro de sua limusine
e, depois de uma troca curta de palavras com o chefe de sua segurança, entrou sozinho no hospital. Esperando na recepção estava um médico barbudo, com jeito de rabino,
chegando aos sessenta anos. Estava sorrindo, apesar do fato de que, como sempre, tinha sido avisado com pouca antecedência da chegada de Gabriel. Estendeu a mão
e ficou olhando a comoção na entrada, normalmente tranquila, da instalação mais privada de Israel para pacientes com problemas mentais.
— Parece que sua vida está a ponto de mudar de novo — falou o médico.
— Em mais de um sentido — respondeu Gabriel.
— Para melhor, espero.
Gabriel assentiu e depois contou ao médico sobre a gravidez. O médico sorriu, mas só por um momento. Ele tinha testemunhado a longa luta de Gabriel para decidir
se devia voltar a se casar. Ser pai, ele sabia, levaria a sentimentos complicados.
— E gêmeos, ainda por cima. Bem — acrescentou o médico, lembrando-se de sorrir de novo —, você certamente...
— Preciso contar a ela — falou Gabriel, interrompendo o médico. — Já adiei isso por tempo demais.
— Não é necessário.
— É.
— Ela não vai entender, não totalmente.
— Eu sei.
O médico sabia que não devia insistir.
— Poderia ser melhor se eu ficasse com você — falou ele. — Para bem dos dois.
— Obrigado — respondeu Gabriel —, mas preciso fazer isso sozinho.
O médico se afastou sem uma palavra e deixou Gabriel seguir por um corredor feito de calcário de Jerusalém até uma sala comum onde alguns pacientes estavam olhando
para uma televisão com o olhar perdido. Um par de grandes janelas dava para um jardim com muro. Do lado de fora, uma mulher estava sentada sozinha na sombra de um
pinheiro-manso, imóvel como uma lápide.
— Como ela está? — perguntou Gabriel.
— Sente sua falta. Já faz tempo que você não vem vê-la.
— É difícil.
— Eu entendo.
Eles ficaram parados por um momento na janela, sem falar e sem se mover.
— Há algo que você deveria saber — falou o médico finalmente. — Ela nunca deixou de amá-lo, mesmo depois do divórcio.
— Isso deveria me fazer sentir melhor?
— Não — disse o médico. — Mas você merece saber a verdade.
— Ela também.
Outro silêncio.
— Gêmeos, hein?
— Gêmeos.
— Menino ou menina?
— Um de cada.
— Talvez pudesse deixar que ela passasse um tempo com eles.
— Uma coisa de cada vez, doutor.
— Claro — falou o médico quando Gabriel entrou no jardim sozinho. — Uma coisa de cada vez.
Ela estava sentada em sua cadeira de rodas com o que sobrava de suas mãos retorcidas descansando no colo. O cabelo, antes comprido e escuro como o de Chiara, agora
estava curto e grisalho. Gabriel beijou a pele fria e firme da cicatriz de seu rosto antes de se sentar no banco ao seu lado. Ela olhou perdida para o jardim, sem
perceber a presença dele. Estava ficando mais velha, ele pensou. Todos estavam ficando mais velhos.
— Olhe para a neve, Gabriel — falou ela de repente. — Não é linda?
Ele olhou para o sol queimando no céu sem nuvens.
— É, Leah — falou ele distraído. — É linda.
— A neve absolve Viena de seus pecados — falou ela depois de um momento. — A neve cai sobre Viena enquanto os mísseis caem sobre Tel Aviv.
Tinham sido algumas das últimas palavras que Leah tinha falado para ele na noite do atentado em Viena. Ela sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão
psicótica e desordem de estresse pós-traumático. Às vezes, ela experimentava momentos de lucidez, mas na maior parte do tempo permanecia prisioneira do passado.
Viena passava incessantemente em sua cabeça como um loop de videoteipe que era incapaz de parar: a última refeição que comeram juntos, o último beijo, o fogo que
matou o único filho deles e queimou a pele do corpo de Leah. Sua vida tinha se reduzido a cinco minutos; e ela passava revivendo-os, várias vezes, por mais de vinte
anos.
— Achei que tinha se esquecido de mim, Gabriel.
Sua cabeça se virou lentamente e por um momento houve um lampejo de reconhecimento em seus olhos. Sua voz, quando falou de novo, parecia estranhamente com a voz
que ele tinha ouvido pela primeira vez há muitos anos, chamando-o de um estúdio em Bezalel.
— Quando foi a última vez que veio aqui?
— Vim para seu aniversário.
— Não me lembro.
— Fizemos uma festa, Leah. Todos os outros pacientes vieram. Foi muito legal.
— Estou sozinha aqui, Gabriel.
— Eu sei, Leah.
— Não tenho ninguém. Ninguém a não ser você, meu amor.
Ele sentiu que tinha perdido a capacidade de encher seus pulmões de ar. Leah colocou a mão sobre a dele.
— Você não tem tinta nos seus dedos — falou ela.
— Não trabalhei nos últimos dias.
— Por que não?
— É uma longa história.
— Tenho tempo — falou ela. — É só o que tenho.
Desviou o olhar dele e olhou para o jardim. A luz estava se apagando dos seus olhos.
— Não se vá, Leah. Tenho algo para lhe contar.
Ela se virou de novo para ele.
— Está restaurando um quadro agora? — perguntou ela.
— Veronese — respondeu ele.
— Qual?
Ele contou.
— Então está morando em Veneza de novo?
— Por mais alguns meses.
Ela sorriu.
— Lembra-se quando moramos juntos em Veneza, Gabriel? Foi quando você era aprendiz de Umberto Conti.
— Eu lembro, Leah.
— Nosso apartamento era tão pequeno.
— Porque era só um quarto.
— Foram dias maravilhosos, não foram, Gabriel? Dias de arte e vinho. Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes se você não
tivesse voltado ao Escritório.
Gabriel não respondeu. Não era capaz de falar.
— Sua esposa é de Veneza, não é?
— É sim, Leah.
— Ela é bonita?
— É, Leah, é muito bonita.
— Gostaria de conhecê-la algum dia.
— Já a conheceu, Leah. Ela veio visitá-la várias vezes.
— Não me lembro dela. Talvez seja melhor assim. — Ela se afastou dele. — Quero falar com a minha mãe — disse. — Quero ouvir o som da voz da minha mãe.
— Vamos ligar para ela, Leah.
— Não deixe de ver se o Dani está bem preso na sua cadeirinha. As ruas estão escorregadias.
— Ele está bem, Leah.
Ela virou o rosto para ele de novo. Então, depois de um momento, perguntou:
— Você tem filhos?
Ele não estava seguro se ela estava no presente ou no passado.
— Não entendi — falou ele.
— Com Chiara.
— Não — respondeu ele. — Não temos filhos.
— Talvez um dia.
— É — ele falou, mas não continuou.
— Me faça uma promessa, Gabriel.
— Qualquer coisa, meu amor.
— Se tiver outro filho, não deve se esquecer do Dani.
— Penso nele todo dia.
— Não penso em nada mais.
Ele sentiu como se os ossos de sua caixa torácica estivessem se quebrando debaixo do peso da pedra que Deus tinha colocado sobre seu coração.
— E quando você sair de Veneza? — perguntou Leah depois de um momento. — O que vai fazer?
— Vou voltar para casa.
— De vez?
— De vez, Leah.
— O que vai fazer? Não há pinturas aqui em Israel.
— Vou ser o chefe do Escritório.
— Achei que Ari era o chefe.
— Isso foi há muito tempo.
— Onde vai viver?
— Aqui em Jerusalém para ficar perto de você.
— Naquele pequeno apartamento?
— Sempre gostei dele.
— Não é grande o suficiente para crianças.
— Vamos encontrar espaço.
— Ainda virá me visitar depois que tiver filhos, Gabriel?
— Sempre que eu puder.
Ela levantou o rosto para o céu sem nuvens.
— Olhe para a neve, Gabriel.
— É — falou ele, chorando baixinho. — Não é linda?
O médico estava esperando por Gabriel na sala comum. Não falou nada até terem voltado à recepção.
— Tem algo que você gostaria de me contar? — perguntou ele.
— Foi tão bem quanto se poderia esperar.
— Para ela ou para você?
Gabriel não falou nada.
— Está tudo bem, sabe — disse o médico depois de um momento.
— O quê?
— Você deve ser feliz.
— Não tenho certeza se sei como.
— Tente — disse o médico. — E se você precisar de alguém para conversar, sabe onde me encontrar.
— Cuide bem dela.
— Sempre cuidarei.
Com isso, Gabriel se entregou ao cuidado de seus seguranças e subiu no banco traseiro da limusine. Era estranho, ele pensou, mas ele não sentia mais vontade de chorar.
Supôs que era isso que significava ser chefe.
30
RUA NARKISS, JERUSALÉM
CHIARA TINHA CHEGADO A Jerusalém apenas uma hora antes de Gabriel e, mesmo assim, o apartamento deles na rua Narkiss já parecia uma fotografia numa dessas revistas
de decoração de casas que ela sempre estava lendo. Havia flores frescas nos vasos e tigelas de aperitivos nas mesinhas, e a taça de vinho que ela colocou na mão
dele estava perfeitamente fria. Os lábios dela, quando o beijou, estavam quentes do sol de Jerusalém.
— Esperava que você chegasse mais cedo — falou ela.
— Tinha umas coisas para fazer.
— Onde você estava?
— No inferno — respondeu ele sério.
Ela franziu a testa.
— Vai ter que me contar sobre isso mais tarde.
— Por que mais tarde?
— Porque temos visitas chegando, querido.
— Preciso perguntar quem é?
— Provavelmente não.
— Como ele soube que tínhamos voltado?
— Ele mencionou algo sobre um arbusto queimando.
— Não pode ser outra noite?
— É muito tarde para cancelar agora. Ele e Gilah já saíram de Tiberíades.
— Suponho que esteja mandando atualizações de sua localização.
— Ele já ligou duas vezes. Está muito animado para vê-lo.
— Eu imagino por quê.
Ele beijou Chiara de novo e levou a taça de vinho para o quarto. As paredes estavam cheias de quadros. Havia quadros de Gabriel, quadros de sua talentosa mãe e vários
quadros de seu avô, o famoso expressionista alemão Viktor Franekel, que foi assassinado em Auschwitz no letal inverno de 1942. Havia também um retrato médio, sem
assinatura, de um jovem homem desolado que parecia assombrado pela sombra da morte. Leah tinha pintado alguns dias depois que Gabriel havia retornado a Israel com
o sangue de seis terroristas do Setembro Negro nas mãos. Foi a primeira e última vez que ele tinha concordado em posar para ela.
“Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes...”
Ele tirou sua roupa debaixo do olhar impiedoso do retrato e ficou parado debaixo do chuveiro até que os últimos traços do toque de Leah tivessem saído de sua pele.
Então colocou roupas limpas e voltou à sala de estar, bem quando Gilah e Ari Shamron estavam entrando pela porta da frente. Gilah trazia um prato de sua famosa berinjela
com condimentos marroquinos; seu famoso marido trazia apenas uma bengala feita de madeira de oliveira. Ele estava vestido, como sempre, com calças cáqui bem passadas,
uma camisa de algodão branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Era óbvio que ele não estava bem, mas seu sorriso expressava contentamento. Shamron
tinha passado anos tentando convencer Gabriel a voltar à Israel para assumir seu lugar no escritório executivo no Boulevard Rei Saul. Agora, tanto tempo depois,
a tarefa estava completa. Seu sucessor estava no lugar. A linhagem estava assegurada.
Ele encostou sua bengala na parede da entrada e, seguido de Gabriel, foi até a pequena varanda onde havia duas cadeiras de ferro debaixo da copa de um eucalipto.
A rua Narkiss estava silenciosa e vazia debaixo deles, mas à distância vinha o barulho do trânsito noturno na King George. Shamron sentou-se com dificuldade em uma
das cadeiras e fez um movimento para que Gabriel se sentasse na outra. Então pegou o maço de cigarros turcos e, com enorme concentração, tirou um. Gabriel olhou
para as mãos de Shamron, as mãos que quase tinham tirado a vida de Adolf Eichmann em uma esquina no norte de Buenos Aires. Foi uma das razões pelas quais Shamron
tinha recebido a missão: o tamanho e força incomuns de suas mãos. Agora elas estavam cheias de manchas dos problemas de fígado e de machucados que não tinham se
curado. Gabriel desviou o olhar enquanto elas lutavam com o velho isqueiro.
— Você não devia fumar, Ari.
— Que diferença faz agora?
Depois que apagou o isqueiro, o cheiro de fumaça turca se misturou ao forte odor do eucalipto. Gabriel foi subitamente inundado por lembranças. Ele tentou mantê-las
à distância, mas não conseguiu; Leah tinha destruído o que restava de suas defesas. Estava dirigindo por um mar de arbustos movidos pelo vento na Cornualha com Shamron
ao seu lado. Era o início de um novo milênio, os dias de ataques suicidas e ilusão. Shamron tinha sido retirado recentemente de sua aposentadoria para reformar o
Escritório depois de uma série de desastres operacionais e queria a ajuda de Gabriel nesse empreendimento. A isca que usou foi Tariq al-Hourani, o mestre terrorista
palestino que tinha plantado a bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena.
“Talvez se você me ajudar a acabar com Tariq, finalmente vai superar o que aconteceu com Leah e continuar com sua vida...”
Gabriel ouviu o som da risada de Chiara na sala e a lembrança se dissolveu.
— O que foi agora? — perguntou ele gentilmente a Shamron.
— A lista dos meus problemas físicos é quase tão longa quanto a lista de desafios que Israel está enfrentando. Mas não se preocupe — acrescentou ele rapidamente.
— Ainda não vou a lugar nenhum. Tenho toda a intenção de estar por aqui para testemunhar o nascimento dos meus netos.
Gabriel resistiu ao impulso de lembrar Shamron de que eles não eram realmente pai e filho.
— Esperamos que esteja lá, Ari.
Shamron sorriu.
— Decidiram onde vão viver depois que eles nascerem?
— Curioso — respondeu Gabriel —, mas Bella me perguntou a mesma coisa.
— Ouvi dizer que foi uma conversa interessante.
— Como sabe que fui vê-la?
— Uzi me contou.
— Achei que ele não estava atendendo suas ligações.
— Parece que começou o grande degelo. É uma das poucas vantagens de ter problemas de saúde — acrescentou ele. — Todas as pequenas queixas e promessas quebradas parecem
desaparecer quando chegamos perto do fim.
Os galhos do eucalipto se moveram com a primeira brisa noturna. O ar estava esfriando a cada minuto. Gabriel sempre adorou a forma como esfriava à noite em Jerusalém,
mesmo no verão. Ele desejou ter o poder de congelar esse momento por um pouco mais de tempo. Olhou para Shamron, que estava batendo seu cigarro pensativo na borda
do cinzeiro.
— Foi preciso muita coragem de sua parte para se sentar e conversar com Bella. E perspicácia, também. Prova que eu estava certo sobre uma coisa o tempo todo.
— O quê, Ari?
— Que você tem tudo para ser um grande chefe.
— Às vezes, eu me pergunto se estou prestes a cometer meu primeiro erro.
— O de manter Uzi com algum poder?
Gabriel assentiu lentamente.
— É arriscado — concordou Shamron. — Mas se há alguém que pode encarar isso, é você.
— Nenhum conselho?
— Já não preciso mais dar conselhos, meu filho. Sou o pior que um homem pode ser, velho e obsoleto. Sou um espectador. Uma vergonha. — Shamron olhou para Gabriel
e franziu a testa. — Sinta-se livre para discordar de mim quando quiser.
Gabriel sorriu, mas não disse nada.
— Uzi me contou que as coisas ficaram um pouco acaloradas entre você e Bella — disse Shamron.
— Lembrou-me o interrogatório que tive que enfrentar aquela noite no Empty Quarter.
— A pior noite da minha vida. — Shamron pensou nisso por um momento. — Na verdade — falou —, foi a segunda pior.
Ele não precisava falar qual tinha sido a primeira. Estava falando de Viena.
— Acho que Bella está mais chateada com tudo isso do que Uzi — continuou ele. — Infelizmente, ela se acostumou demais às armadilhas do poder.
— O que lhe dá essa impressão?
— A forma como se aferra a elas. Ela me culpa por tudo, claro. Acha que planejei isso desde o início.
— E é verdade.
Shamron fez uma cara que ficava em algum ponto entre um sorriso e uma careta.
— Não vai negar? — perguntou Gabriel.
— Nada — respondeu Shamron. — Tive minha cota de triunfos, mas no final, a sua será a carreira usada para medir a de todos os outros. É verdade que tive preferências,
especialmente depois de Viena. Mas minha fé em você foi recompensada com uma série de operações que estavam muito além dos talentos de alguém como Uzi. Certamente
até Bella percebe isso.
Gabriel não falou nada. Estava olhando um menino de dez ou onze anos andando de bicicleta na rua tranquila.
— E agora — falou Shamron — parece que você pode ter encontrado uma forma de atacar as finanças do açougueiro de Damasco. Com um pouco de sorte, será o primeiro
grande triunfo da era de Gabriel Allon.
— Achei que não acreditava em sorte.
— Não acredito. — Shamron acendeu outro cigarro, então, com um movimento do pulso, fechou o isqueiro com um golpe rápido. — O açougueiro tem a crueldade do pai,
mas não possui a mesma inteligência, o que o torna ainda mais perigoso. Nesse ponto, só o dinheiro importa. É o que mantém o clã unido. É por isso que os leais permanecem
leais. É por isso que as crianças estão morrendo aos milhares. Mas se você puder realmente controlar o dinheiro... — Ele sorriu. — As possibilidades serão infinitas.
— Realmente não tem nenhum conselho para mim?
— Mantenha o açougueiro no poder pelo tempo que ele continuar sendo palatável, mesmo remotamente. De outra forma, os próximos anos serão muito interessantes para
você e seus amigos em Washington e Londres.
— Então é assim que termina a Grande Primavera Árabe? — perguntou Gabriel. — Apoiamos um assassino em massa porque ele é o único que pode salvar a Síria da al-Qaeda?
— Longe de mim dizer que avisei, mas previ que a Primavera Árabe iria terminar em desastre e foi o que aconteceu. Os árabes ainda não estão prontos para a verdadeira
democracia, não no momento em que o islamismo radical está em ascensão. O melhor que podemos esperar são regimes autoritários decentes em lugares como Síria e Egito.
— Shamron parou, depois acrescentou: — Quem sabe, Gabriel? Talvez você possa encontrar alguma forma de convencer o dirigente a educar seu povo de forma apropriada
e tratá-los com a dignidade que merecem. Talvez possa obrigá-lo a parar de matar crianças com gás.
— Tem uma coisa que quero dele.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Primeiro encontre o dinheiro — falou Shamron, apagando o cigarro. — E depois o quadro.
Gabriel não falou mais nada. Estava olhando o menino na bicicleta aparecendo e desaparecendo debaixo das sombras no final da rua. Quando o menino sumiu, ele levantou
o rosto para o céu de Jerusalém. “Olhe para a neve”, ele pensou. “Não é linda?”
31
JERUSALÉM
O TOQUE DOS SINOS DA IGREJA acordou Gabriel de um sono sem sonhos. Ele ficou imóvel por um momento, incerto de onde estava. Então viu o retrato taciturno olhando
para ele da parede e percebeu que estava em seu próprio quarto na rua Narkiss. Saiu de debaixo dos lençóis, sem fazer barulho, para não acordar Chiara e foi até
a cozinha. A única prova do jantar da noite anterior era o forte cheiro doce de flores subindo dos vasos. Na pia limpa havia uma cafeteira francesa e uma lata de
Lavazza. Gabriel colocou a chaleira no fogão e ficou esperando a água ferver.
Tomou seu café no terraço e leu os jornais da manhã em seu BlackBerry. Então entrou no banheiro para fazer a barba e tomar banho. Quando saiu, Chiara ainda estava
dormindo profundamente. Ele abriu o guarda-roupa e ficou parado ali por um momento, pensando no que usaria. Um terno, decidiu, era impróprio; poderia enviar a mensagem
às tropas de que ele já estava no comando. No final, decidiu usar a roupa de sempre: um jeans desbotado, um pulôver de algodão e uma jaqueta de couro. Shamron tinha
seu uniforme, pensou, e ele também.
Alguns minutos depois das oito, ouviu o comboio de carros perturbando o silêncio da rua Narkiss. Beijou Chiara suavemente e depois desceu para encontrar a limusine
que o aguardava. Esta o levou para o leste, cruzando Jerusalém até a Porta do Esterco, a entrada principal do Bairro Judeu da Cidade Velha. Ele passou pelos detectores
de metal e, junto com seus guarda-costas, cruzou a praça aberta em direção ao Muro das Lamentações, a tão disputada reminiscência da antiga barreira de retenção
que já tinha cercado o grande Templo de Jerusalém. Em cima do Muro, brilhando com o sol do começo da manhã, estava a dourada Cúpula da Rocha, o terceiro lugar mais
sagrado do islamismo. Havia muitos aspectos no conflito árabe-israelense, mas Gabriel tinha concluído que tudo se resumia a isso — duas fés presas em uma luta mortal
pela mesma parcela de uma terra sagrada. Poderia haver períodos de calma, meses ou até anos sem bombas ou sangue; mas Gabriel temia que nunca haveria paz.
A porção do Muro das Lamentações visível da praça tinha 57 metros de largura e 19 metros de altura. O verdadeiro muro ao redor da colina do Monte do Templo, no entanto,
era muito mais longo, descendo uns 13 metros depois da praça e se estendendo mais uns quatrocentos metros até o Bairro Muçulmano, onde estava escondido por trás
de estruturas residenciais. Depois de anos de escavações arqueológicas cheias de problemas políticos e religiosos, agora era possível caminhar por quase toda a extensão
do muro através do Túnel do Muro das Lamentações, uma passagem subterrânea que ia da praça até a Via Dolorosa.
A entrada do túnel estava do lado esquerdo da praça, não muito longe do Arco de Wilson. Gabriel passou pela moderna porta de vidro e, seguido por seus guarda-costas,
desceu uma escada de alumínio até o porão. Um caminho recentemente pavimentado seguia a base do muro. Ele o seguiu passando pelas enormes pedras do tempo de Herodes
até chegar a uma seção do túnel que estava escondida por uma cortina de plástico opaco. Além da cortina havia uma cova de escavação retangular onde uma figura solitária,
um homem pequeno de meia idade, mexia no solo sob um cone de suave luz branca. Ele pareceu não ter percebido a presença de Gabriel, mas foi só impressão. Seria mais
fácil surpreender um esquilo do que Eli Lavon.
Outro momento se passou antes de Lavon levantar a cabeça e sorrir. Ele tinha o cabelo ralo e desgrenhado, um rosto quase sem traços que mesmo o artista mais talentoso
teria dificuldades para capturar na tela. Eli Lavon era um fantasma, um camaleão que facilmente passava despercebido e logo era esquecido. Shamron já tinha dito
que ele poderia desaparecer enquanto apertava sua mão. Não estava muito longe da verdade.
Gabriel tinha trabalhado com Lavon pela primeira vez na Ira de Deus, a operação secreta da inteligência israelense para caçar e matar os autores do massacre das
Olimpíadas de Munique. No léxico da equipe, baseado no hebreu, Lavon tinha sido um ayin, um rastreador e artista da vigilância. Durante três anos ele tinha seguido
os terroristas do Setembro Negro por toda a Europa e Oriente Médio, geralmente com uma proximidade perigosa. O trabalho o deixou com várias desordens por estresse,
incluindo um famoso estômago instável que o incomodava até hoje.
Quando a unidade foi dissolvida em 1975, Lavon se estabeleceu em Viena, onde abriu uma pequena unidade investigativa chamada Alegações e Investigações da Época da
Guerra. Operando com um orçamento baixíssimo, ele conseguiu encontrar bens saqueados no Holocausto valendo milhões de dólares e teve um papel importante num acordo
multibilionário com os bancos suíços. O trabalho fez com que ganhasse poucos admiradores em Viena e, em 2003, uma bomba explodiu em seu escritório, matando duas
jovens funcionárias. Abalado, ele voltou a Israel para seguir sua primeira paixão, que era a arqueologia. Ele agora era professor adjunto na Universidade Hebraica
e participava regularmente em escavações por todo o país. Tinha passado a maior parte dos dois últimos anos remexendo o solo do Túnel do Muro das Lamentações.
— Quem são seus amiguinhos? — perguntou ele, olhando para os guarda-costas parados nas pontas da cova.
— Eu encontrei os dois perdidos na praça.
— Não vão estragar nada, vão?
— Não ousariam.
Lavon olhou para o chão e recomeçou a trabalhar.
— O que você tem aí? — perguntou Gabriel.
— Umas moedas perdidas.
— Quem deixou cair?
— Alguém muito bravo pelo fato de que os persas estavam a ponto de conquistar Jerusalém. É óbvio que estava com pressa.
Lavon esticou o braço e ajustou o ângulo de sua lâmpada de trabalho. O fundo da vala brilhou com os dourados pedacinhos encrustados.
— O que são? — perguntou Gabriel.
— Trinta e seis moedas de ouro da era bizantina e um grande medalhão com um menorá. Provam que os judeus viviam aqui antes da conquista muçulmana de Jerusalém em
638. Para a maioria dos arqueólogos bíblicos, isso seria a descoberta de toda uma vida. Mas não para mim. — Lavon olhou para Gabriel e acrescentou: — Nem para você.
Gabriel olhou sobre o ombro dele para as pedras do Muro. Um ano antes, numa câmara secreta de cinquenta metros debaixo da superfície do Monte do Templo, ele e Lavon
tinham descoberto 22 pilares do Templo de Jerusalém de Salomão, provando assim, sem nenhuma dúvida, que o antigo santuário judeu, descrito no Livro dos Reis e nas
Crônicas, tinha realmente existido. Eles também tinham descoberto uma enorme bomba que, se tivesse detonado, teria destruído todo o sagrado planalto. Os pilares
agora estavam em uma exibição de alta segurança no Museu de Israel. Um deles teve de ser especialmente limpo antes de ser posto em exposição porque estava manchado
com o sangue de Lavon.
— Recebi uma ligação do Uzi na noite passada — falou Lavon depois de um momento. — Ele me contou que você poderia dar uma passada.
— Falou o motivo?
— Mencionou algo sobre um Caravaggio perdido e uma empresa chamada LXR Investments. Falou que você estava interessado em adquiri-la, junto com o resto da Mal S.A.
— Pode ser feito?
— Não dá para fazer muita coisa de fora. No final, você vai precisar da ajuda de alguém que possa entregar as chaves do reino.
— Então nós vamos encontrar essa pessoa.
— Nós? — Quando Gabriel não respondeu, Lavon se inclinou e começou a mexer no solo ao redor de uma das moedas antigas. — O que precisa que eu faça?
— Exatamente o que você está fazendo agora — respondeu Gabriel. — Mas quero que use um computador e um balanço financeiro em vez de uma espátula e um pincel.
— Hoje em dia, prefiro uma espátula e um pincel.
— Eu sei, Eli, mas não vou conseguir fazer isso sem você.
— Não vai ser nada difícil, vai?
— Não, Eli, claro que não.
— Você sempre fala isso, Gabriel.
— E?
— Sempre é.
Gabriel se abaixou e desconectou a lâmpada de sua fonte de energia. Lavon trabalhou na escuridão por mais um momento. Então se levantou, limpou as mãos nas calças
e saiu da cova.
Um solteirão, Lavon mantinha um pequeno apartamento no distrito Talpiot de Jerusalém, na estrada para Hebron. Eles pararam ali tempo suficiente para que vestisse
roupas limpas e depois seguiram pela Bab al-Wad até o Boulevard Rei Saul. Depois de entrarem no edifício “preto”, eles subiram três lances de escadas e caminharam
por um corredor sem janelas até uma porta com a inscrição 456C. A sala do outro lado já tinha sido um depósito para computadores obsoletos e móveis velhos, geralmente
usados pela equipe noturna como um ponto de encontro clandestino para relações românticas. Agora era conhecido por todos no Boulevard Rei Saul apenas como o Covil
de Gabriel.
O código para a fechadura era a versão numérica da data de aniversário de Gabriel, que tinha a reputação de ser o segredo mais bem guardado do Escritório. Com Lavon
olhando por cima do ombro, ele digitou o código e abriu a porta. Lá dentro estava Dina Sarid, uma mulher pequena, de cabelos escuros com um ar de viúva precoce.
Um banco de dados humano, ela era capaz de recitar a hora, lugar, perpetradores e números de baixas de todo ato de terrorismo cometido contra alvos israelenses e
ocidentais. Dina já tinha dito a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles mesmos. E Gabriel acreditava nela.
— Onde estão os outros? — perguntou ele.
— Presos em Recursos Humanos.
— Qual é o problema?
— Aparentemente, os chefes de divisão estão revoltados. — Dina parou, então acrescentou: — Isso é o que acontece com um serviço de inteligência quando se espalha
que o chefe não vai durar.
— Talvez eu deva subir e conversar com os chefes de divisão.
— Espere alguns minutos.
— Tem sido tão ruim assim?
— Criei uma lista de agentes da al-Qaeda que se estabeleceram ao lado na Síria — jihadistas globais sérios que precisam ser tirados de circulação permanentemente.
E adivinha o que acontece sempre que proponho uma operação?
— Nada.
Dina assentiu lentamente.
— Estamos congelados no tempo — falou ela. — Estamos marcando passo justamente no momento que menos podemos.
— Isso vai acabar, Dina.
Bem nesse momento a porta se abriu e Rimona Stern entrou na sala. Mikhail Abramov apareceu logo depois, seguido alguns minutos mais tarde por Yaakov Rossman, que
parecia não dormir há um mês. Em seguida, apareceu um par de agentes de campo chamados Mordecai e Oded, seguidos por Yossi Gavish, um homem alto e careca vestido
com cotelê e tweed. Yossi era um alto funcionário de Pesquisa, que é como o Escritório chamava sua divisão analítica. Nascido na região Golders Green de Londres,
ele tinha estudado em Oxford e ainda falava hebraico com um forte sotaque inglês.
Dentro dos corredores e salas de conferência do Boulevard Rei Saul, os oito homens e mulheres reunidos na sala subterrânea eram conhecidos pelo codinome Barak, a
palavra em hebreu para raio, por sua habilidade incomum de se reunir e atacar rapidamente. Eram um serviço dentro do serviço, uma equipe de agentes sem igual e sem
medo de nada. Durante sua existência, tinha às vezes sido necessário admitir gente de fora no meio deles — um jornalista investigativo britânico, um bilionário russo,
a filha de um homem que tinham matado —, mas nunca antes tinham permitido que outro agente do Escritório se juntasse à sua fraternidade. Portanto, ficaram surpresos
quando, assim que o relógio marcou dez horas, Bella Navot apareceu na porta. Estava vestida para a reunião com uma calça cinza e trazia uma pasta de arquivos ao
peito. Ficou parada na porta por um momento, como se esperasse um convite para entrar, antes de se sentar, sem falar nada, perto de Yossi em uma das mesas de trabalho
comuns.
Se a equipe achou estranha a presença de Bella, não deu nenhum sinal disso quando Gabriel se levantou e caminhou até o último quadro-negro existente em todo o Boulevard
Rei Saul. Nele estavam escritas três palavras: SANGUE NUNCA DORME. Apagou-as com um único movimento da mão e no lugar escrever as letras LXR. Então contou à equipe
a incrível série de eventos que tinham levado àquela reunião, começando com o assassinato de um espião britânico transformado em ladrão de arte chamado Jack Bradshaw
e terminando com o bilhete que Bradshaw tinha deixado para Gabriel em seu cofre no Freeport de Genebra. Na morte, Bradshaw tinha tentado corrigir seus pecados ao
dar a Gabriel a identidade do homem que estava comprando quadros roubados a rodo: o criminoso dirigente da Síria. Também tinha fornecido a Gabriel o nome da empresa
de fachada que o dirigente tinha usado para essas compras: LXR Investments of Luxembourg. Certamente, a LXR era apenas uma pequena estrela numa galáxia de riqueza
global, sendo que boa parte dela estava cuidadosamente escondida por baixo de camadas de armações e empresas de fachada. Mas uma rede de riqueza, assim como uma
de rede de terroristas, precisava ter uma cabeça operativa habilidosa para funcionar. O dirigente tinha confiado o dinheiro de sua família a Kemel al-Farouk, o guarda-costas
do pai do dirigente, o assistente que torturava e matava sob o comando do regime. Mas Kemel não podia administrar o dinheiro ele mesmo, não com a NSA e seus sócios
monitorando cada movimento seu. Em algum lugar, havia um homem de confiança — um advogado, um banqueiro, um parente — que tinha o poder de mover esses bens como
quisesse. Usariam a LXR como uma forma de encontrá-lo. E Bella Navot iria guiá-los em todos os passos.


CONTINUA

22
ÎLE SAINT-LOUIS, PARIS
– EU GOSTARIA DE COMEÇAR ESSA Conversa, sr. Bartholomew, dando-lhe meus parabéns. Foi uma transação impressionante que você e seus homens realizaram em Amsterdã.
— Quem disse que não fiz isso sozinho?
— Não é o tipo de coisa que alguém faz sozinho. Certamente teve ajuda — acrescentou Sam. — Como seu amigo que estava no telefone comigo. Ele fala francês muito bem,
mas não é francês, é?
— Que diferença isso faz?
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios.
— Isso não é a Harrods, querido.
Sam olhou a rua com a calma de um turista que tinha visitado muitos museus em pouco tempo.
— Ele está aí fora em algum lugar, não está?
— Não saberia dizer.
— E há outros?
— Vários.
— E mesmo assim exigiram que eu viesse sozinho.
— É o vendedor quem manda.
— Foi o que ouvi.
Sam retomou sua inspeção da rua. Ainda estava de chapéu e óculos escuros, o que deixava apenas a parte inferior do seu rosto visível. Estava com a barba bem feita.
As bochechas eram altas e proeminentes, o queixo forte, os dentes brancos e perfeitos. Suas mãos não tinham cicatrizes ou tatuagens. Não usava anéis nos dedos ou
braceletes nos pulsos, só um grande Rolex dourado para indicar que era um homem de posses. Tinha os maneirismos refinados de um árabe bem nascido, mas um tanto grosseiro.
— Ouvimos outras coisas também — continuou Sam depois de um momento. — Aqueles que viram a mercadoria dizem que você conseguiu tirá-la de Amsterdã com danos mínimos.
— Nenhum, na verdade.
— Também ouvimos que há Polaroids.
— Onde ouviu isso?
Sam deu um sorriso desagradável.
— Isso vai demorar muito mais do que o necessário se você insistir nesses jogos, sr. Bartholomew.
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios — disse Keller, enfático.
— Está pedindo informações sobre o homem que represento, sr. Bartholomew?
— Nem sonharia em fazer isso.
Houve um silêncio.
— Meu cliente é um empresário — falou Sam finalmente. — Bastante bem-sucedido, bastante rico. Também ama as artes. Coleciona muito, mas como muitos colecionadores
sérios, foi ficando frustrado com o fato de que não há mais bons quadros à venda. Ele quer há muitos anos adquirir um Van Gogh. Você agora tem um muito bom. Meu
cliente gostaria de tê-lo.
— Assim como muitas outras pessoas.
Sam pareceu não se perturbar com isso.
— E você? — perguntou depois de um momento. — Por que não me fala um pouco sobre você?
— Roubo coisas para viver.
— É inglês?
— Infelizmente.
— Sempre gostei dos ingleses.
— Não vou usar isso contra você.
Apareceu um garçom que entregou o menu. Sam pediu uma garrafa de água mineral; Keller, uma taça de vinho que não tinha intenção de beber.
— Quero deixar uma coisa clara desde o começo — falou quando ficaram novamente sozinhos. — Não estou interessado em drogas, armas ou garotas, nem em um condomínio
em Boca Raton, na Flórida. Só aceito dinheiro.
— De quanto dinheiro estamos falando, sr. Bartholomew?
— Tenho uma oferta de vinte milhões na mesa.
— Que sabor?
— Euros.
— É uma oferta firme?
— Deixei a venda em espera para me encontrar com você.
— Que lisonjeiro. Por que faria algo assim?
— Porque ouvi falar que seu cliente, quem quer que seja, é um homem com bolsos bem grandes.
— Bem grandes. — Outro sorriso, só um pouco mais agradável que o primeiro. — Então como quer continuar, sr. Bartholomew?
— Preciso saber se está interessado em aumentar a oferta que está na mesa.
— Estou.
— Quanto mais?
— Acho que poderia oferecer algo trivial, como um adicional de quinhentos mil, mas meu cliente não gosta de leilões. — Fez uma pausa, então perguntou: — Será que
25 milhões seriam suficientes para tirar o quadro da mesa?
— Seriam, Sam.
— Excelente — falou. — Agora seria um bom momento para você me mostrar as Polaroids.
As Polaroids estavam no porta-luvas de uma Mercedes alugada estacionada em uma rua calma atrás de Notre Dame. Keller e Sam caminharam até lá juntos e entraram, Keller
atrás do volante, Sam no banco do passageiro. Keller submeteu-o a uma rápida e completa inspeção antes de abrir o porta-luvas e pegar as fotos. Eram quatro ao todo
— uma da obra inteira, três mostrando os detalhes. Sam olhou para elas cético.
— Parece o Van Gogh que está pendurado em cima da cama no meu hotel.
— Não é.
Fez uma careta para indicar que não estava convencido.
— A pintura nessa fotografia poderia ser uma cópia. E você poderia ser um trapaceiro inteligente que está querendo ganhar em cima do roubo em Amsterdã.
— Tire seus óculos escuros e dê uma olhada melhor, Sam.
— É o que pretendo. — Entregou as fotos de volta a Keller. — Preciso ver o quadro real, não fotografias.
— Não tenho um museu, Sam.
— O que quer dizer?
— Não posso mostrar o Van Gogh a qualquer um que queira vê-lo. Preciso saber se você está falando sério.
— Ofereci 25 milhões de euros em dinheiro por ele.
— É fácil oferecer 25 milhões, Sam. Entregar é outra coisa.
— Meu cliente é um homem de riqueza extraordinária.
— Então tenho certeza de que ele não lhe enviou a Paris de mãos vazias. — Keller devolveu as fotos ao porta-luvas e o trancou.
— É dessa forma que seu golpe funciona? Exige ver o dinheiro antes de mostrar o quadro e depois rouba?
— Se fosse um golpe, você e seu cliente já saberiam disso.
Não tinha respostas para aquilo.
— Não consigo mais de dez mil em dinheiro em tão pouco tempo.
— Quero ver um milhão.
Ele bufou, como se dissesse que um milhão era impossível.
— Se você quiser ver um Van Gogh por menos de um milhão — falou Keller — pode ir ao Louvre ou ao Musée d’Orsay. Mas se quiser ver o meu Van Gogh, vai ter que me
mostrar o dinheiro.
— Não é seguro andar pelas ruas de Paris com essa quantidade de dinheiro.
— Algo me diz que você sabe se cuidar muito bem.
Sam deu um suspiro capitulador.
— Onde e quando?
— Saint-Germain-des-Prés, duas da tarde. Sem amigos. Sem armas.
Sam saiu do carro sem falar nada e foi embora.
Ele cruzou o Sena para a margem direita e caminhou pela rue de Rivoli, passando a ala norte do Louvre, até o Jardin des Tuileries. Passou boa parte desse tempo no
telefone e duas vezes realizou um movimento elementar de espiões para ver se estava sendo seguido. Mesmo assim, não pareceu notar Gabriel caminhando cinquenta metros
atrás dele.
Antes de chegar a Jeu de Paume, cortou para a rue Saint-Honoré e entrou em uma loja exclusiva que vendia caros produtos de couro para homens. Saiu dez minutos depois
com uma mala nova, que carregou até uma filial do HSBC Private Bank no boulevard Haussmann. Ficou ali precisamente 22 minutos, e quando saiu, a mala parecia mais
pesada que quando tinha entrado. Ele a levou com cuidado até a Place de la Concorde e depois através da grande entrada do hôtel de Crillon. Vendo de longe, Gabriel
sorriu. Só o melhor para o representante do sr. Grandão. Enquanto se afastava, ligou para Keller e contou as novidades. O jogo tinha começado, falou. Definitivamente
o jogo tinha começado.
23
BOULEVARD SAINT-GERMAIN, PARIS
ELE ESTAVA PARADO DO LADO DE FORA DA porta vermelha da igreja às duas da tarde seguinte, com seu chapéu e óculos escuros firmemente no lugar e a nova maleta segura
na mão direita. Gabriel esperou cinco minutos antes de ligar.
— Você de novo — falou Sam desanimado.
— Infelizmente.
— E agora?
— Vamos dar outra volta.
— Para onde agora?
— Siga a rue Bonaparte até a place Saint-Sulpice. Mesmas regras da última vez. Não faça nenhuma parada e não olhe para trás. Sem ligações também.
— Até onde você pretende me levar dessa vez?
Gabriel desligou sem falar nada. Do outro lado da praça lotada, Sam começou a caminhar. Gabriel contou lentamente até vinte e o seguiu.
Deixou Sam caminhar até os Jardins de Luxemburgo antes de ligar de novo. Dali, foram para o sudoeste pela rue de Vaugirard, depois para o norte no boulevard Raspail
até a entrada do hôtel Lutetia. Keller estava sentado na mesa do bar, lendo o Telegraph. Sam se uniu a ele, como tinha sido instruído.
— Como ele foi dessa vez? — perguntou Keller.
— Tão meticuloso como sempre.
— Posso pedir algo para você beber?
— Não bebo.
— Que pena. — Keller dobrou seu jornal. — É melhor tirar esses óculos escuros, Sam. Do contrário, a gerência vai ter a impressão errada sobre você.
Ele fez o que Keller sugeriu. Seus olhos eram castanhos claros e grandes. Com o rosto exposto, era uma figura muito menos ameaçadora.
— Agora o chapéu — falou Keller. — Um cavalheiro não usa um chapéu no bar do Lutetia.
Ele tirou o chapéu, revelando uma cabeça com muito cabelo, marrom, não negro, com toques grisalhos ao redor das orelhas. Se era árabe, não era da península ou do
golfo. Keller olhou para a maleta.
— Trouxe o dinheiro?
— Um milhão, como você pediu.
— Deixe-me dar uma olhada. Mas com cuidado — acrescentou Keller. — Há uma câmera de segurança em cima do seu ombro direito.
Sam colocou a maleta na mesa, abriu os trincos e levantou a tampa dois centímetros, o suficiente para Keller dar uma olhada nas fileiras bem organizadas de notas
de cem euros.
— Pode fechar — falou Keller, em voz baixa.
Sam fechou e travou a maleta.
— Satisfeito? — perguntou ele.
— Ainda não. — Keller se levantou.
— Para onde agora?
— Meu quarto.
— Vai ter mais alguém?
— Seremos apenas nós dois, Sam. Muito romântico.
Sam se levantou e pegou a maleta.
— Acho que é importante deixar algo claro antes de subirmos.
— O que é, Sam?
— Se algo acontecer comigo ou com o dinheiro do meu cliente, você e seu amigo vão sofrer muito. — Ele colocou os óculos escuros e sorriu. — Só para nos entendermos,
querido.
No hall de entrada do quarto, longe dos olhos das câmeras de vigilância do hotel, Keller revistou Sam à procura de armas ou aparelhos de gravação. Sem encontrar
nada importante, colocou a maleta na beira da cama e abriu os trincos. Então, tirou três pacotes de dinheiro e, de cada um, uma nota. Inspecionou cada nota com lentes
de aumento profissionais; depois, no banheiro escuro, submeteu-as à lâmpada ultravioleta de Gabriel. As fitas de segurança brilharam verde limão; as notas eram genuínas.
Ele devolveu as notas a seus pacotes e estes à maleta. Então fechou os trincos e, com um aceno de cabeça, indicou que estavam prontos para passar ao próximo passo.
— Quando? — perguntou Sam.
— Amanhã à noite.
— Tenho uma ideia melhor — falou ele. — Vamos hoje à noite. Ou então, não tem acordo.
Maurice Durand tinha dito para esperarem algo assim — uma pequena jogada tática, uma rebeldia simbólica, que permitiria a Sam sentir que era ele, e não Keller, que
estava controlando o processo de negociação. Keller recusou gentilmente, mas Sam bateu o pé. Queria estar na frente do Van Gogh antes da meia-noite; se não estivesse,
ele e seus 25 milhões de euros desapareceriam. O que não deixou a Keller outra opção a não ser aceitar os desejos de seu oponente. Fez isso com um sorriso de concessão,
como se a mudança de planos fosse pouco mais que uma inconveniência. Então rapidamente estabeleceu as regras para mostrá-lo essa noite. Sam poderia tocar o quadro,
cheirar o quadro ou fazer amor com o quadro. Mas sob nenhuma circunstância poderia fotografá-lo.
— Onde e quando? — perguntou Sam.
— Vamos ligar às nove e dizer como proceder.
— Tudo bem.
— Onde você está hospedado?
— O senhor sabe exatamente onde estou hospedado, sr. Bartholomew. Vou estar no lobby do Crillon às nove da noite, sem amigos, sem armas. E diga para seu amigo não
me deixar esperando dessa vez.
Ele saiu do hotel dez minutos depois, com seu chapéu e óculos escuros, e caminhou até o HSBC Private Bank no boulevard Haussmann, onde, supostamente, devolveu o
um milhão de euros ao cofre do seu cliente. Depois, caminhou a pé até o Musée d’Orsay e passou as duas horas seguintes estudando os quadros de um tal Vincent van
Gogh. Quando saiu do museu, eram quase seis. Comeu um jantar leve em um bistrô no Champs-Élysées e depois voltou ao seu quarto no Crillon. Como prometido, estava
no lobby às nove horas em ponto, vestido com calça cinza, um pulôver negro e uma jaqueta de couro. Gabriel sabia disso porque estava sentado a poucos passos, no
bar. Esperou dois minutos depois das nove antes de ligar para o número de Sam.
— Sabe usar o metrô de Paris?
— Claro.
— Caminhe até a estação Concorde e pegue o número 12 até Marx Dormoy. O sr. Bartholomew estará esperando por você.
Sam saiu do lobby. Gabriel ficou no bar por outros cinco minutos. Então pegou seu carro com o manobrista e foi até a casa de campo na Picardia.
A estação Marx Dormoy estava localizada no oitavo Arrondissement, na rue de la Chapelle. Keller estava estacionado do outro lado da rua fumando um cigarro quando
Sam subiu a escada. Caminhou até o carro e entrou no lado do passageiro sem uma palavra.
— Onde está seu celular? — perguntou Keller.
Sam tirou do bolso do casaco e mostrou a Keller.
— Desligue e tire o chip.
Sam obedeceu. Keller pôs o carro em movimento e avançou pelo trânsito noturno.
Ele permitiu que Sam ficasse no banco do passageiro até chegarem aos subúrbios do norte. Então, parou perto de algumas árvores antes da cidade de Ézanville e mandou
que ele entrasse no porta-malas. Pegou o caminho mais longo até a Picardia, acrescentando pelo menos uma hora à viagem. Como resultado, era quase meia-noite quando
ele chegou à casa de campo. Quando Sam saiu do porta-malas, viu a silhueta de um homem parado sob a luz da lua na entrada da propriedade.
— Imagino que seja seu sócio.
Keller não respondeu. Em vez disso, levou-o até a porta traseira da propriedade e desceu um lance de escada até a adega. Encostado em uma parede, iluminado por uma
lâmpada pendurada de um fio, estava Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Vincent van Gogh. Sam ficou parado na frente dele por um longo momento
sem falar. Keller permaneceu ao seu lado.
— Então? — perguntou ele finalmente.
— Num minuto, sr. Bartholomew. Num minuto.
Finalmente, deu um passo, pegou o quadro pelas laterais e virou para examinar as marcas do museu na parte de trás da tela. Então olhou para as pontas do quadro e
fez uma careta.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Vincent era famoso por ser descuidado na forma como tratava seus quadros. Olha aqui — acrescentou ele, virando as pontas do quadro para Keller. — Ele deixou suas
digitais por todo lado.
Sam sorriu, segurou o quadro perto da luz e passou vários minutos examinando cuidadosamente as pinceladas. Em seguida, colocou-o em sua posição original e deu um
passo para trás, a fim de observar à distância. Dessa vez, Keller não interrompeu seu silêncio.
— Espetacular — falou depois de um momento.
— E real — acrescentou Keller.
— Poderia ser. Ou poderia ser o trabalho de um falsificador muito talentoso.
— Não é.
— Vou precisar realizar um teste simples para ter certeza, uma análise de lasca de tinta. Se o quadro for genuíno, fechamos negócio. Se não for, você nunca mais
vai ouvir falar de mim, deixando-o livre para empurrá-lo a um comprador menos sofisticado.
— Quanto tempo vai levar?
— Setenta e duas horas.
— Você tem 48.
— Não vai me apressar, sr. Batholomew. Nem meu cliente.
Keller hesitou antes de assentir uma vez. Usando um bisturi cirúrgico, Sam removeu com cuidado dois pequenos pedaços de tinta da tela — um da parte inferior direita,
a outra da parte inferior esquerda — e colocou-as em um frasco de vidro. Então enfiou o frasco no bolso do casaco e, seguido por Keller, subiu as escadas. Do lado
de fora, a figura em silhueta ainda estava parada na porta da casa.
— Vou conhecer seu sócio? — perguntou Sam.
— Não aconselho — respondeu Keller.
— Por que não?
— Porque seria o último rosto que você veria.
Sam franziu a testa e entrou no porta-malas da Mercedes. Keller fechou o trinco e voltou a Paris.
Eram todas operações conhecidas, cada uma de natureza específica, mas eles mais tarde diriam que os três dias seguintes passaram com a velocidade de um rio congelado.
O conhecido autodomínio de Gabriel o abandonou. Ele tinha organizado o roubo de um dos quadros mais famosos do mundo como parte de um golpe para encontrar outro;
e mesmo assim tudo poderia não dar em nada se o homem chamado Sam desistisse do negócio. Só Maurice Durand, talvez o especialista mais conhecido no comércio ilícito
de arte, continuava confiante. Em sua experiência, colecionadores sujos como o sr. Grandão raramente desistiam da chance de comprar um Van Gogh. Claro, ele falou,
a isca do Doze Girassóis numa Jarra era muito forte para resistir. A menos que Gabriel tivesse mostrado a Sam a falsificação por erro, o que não tinha, a análise
da tinta seria positiva e o negócio continuaria.
Eles tinham outra opção caso Sam desistisse; poderiam segui-lo e tentar determinar a identidade de seu cliente, o homem de grande riqueza que estava disposto a pagar
25 milhões de euros por uma obra de arte roubada. Era só uma das razões pelas quais Gabriel e Keller, dois dos homens mais experientes em vigilância do mundo, monitoraram
cada movimento de Sam durante os três dias de espera. Vigiavam de manhã enquanto ele caminhava pelos passeios de Tuileries, à tarde enquanto visitava as atrações
turísticas para manter seu disfarce e à noite quando jantava, sempre sozinho, na Champs-Élysées. A impressão que dava era de disciplina. Em algum momento de sua
vida, Keller e Gabriel concordaram, Sam tinha sido membro da irmandade secreta de espiões. Ou talvez, pensaram, ainda seja.
Na manhã do terceiro dia, ele deu um susto nos dois quando não apareceu para sua caminhada usual. Ficaram mais preocupados às quatro da tarde quando viram como ele
saía do Crillon com duas grandes malas e subia em uma limusine. Mas a preocupação rapidamente desapareceu quando o carro o levou até o HSBC Private Bank no boulevard
Haussmann. Trinta minutos depois, ele estava de volta ao seu quarto. Havia somente duas possibilidades, falou Keller. Ou Sam tinha realizado o mais silencioso roubo
de banco da história ou tinha acabado de retirar uma grande soma em dinheiro de um cofre. Keller suspeitava que fosse a segunda opção. Assim como Gabriel. Portanto,
o suspense era pouco quando chegou a hora de Sam finalmente ligar com uma resposta. Keller fez as honras. Quando a ligação terminou, ele olhou para Gabriel e sorriu.
— Podemos nunca encontrar o Caravaggio — disse ele —, mas acabamos de tirar 25 milhões de euros do sr. Grandão.
24
CHELLES, FRANÇA
MAS HAVIA UMA CONDIÇÃO: Sam se reservava o direito de escolher a hora e o lugar da troca de dinheiro e mercadoria. A hora, ele falou, seria onze e meia da noite
seguinte. O lugar seria um depósito em Chelles, uma comuna apagada no leste de Paris. Keller dirigiu até lá na manhã seguinte enquanto o resto do norte da França
estava viajando para o centro da cidade. O depósito estava onde Sam tinha dito que estaria, na avenida François Miterrand, bem em frente a uma concessionária Renault.
Havia uma placa apagada onde se lia EUROTRANZ, apesar de que não havia nenhuma indicação do tipo de serviços que a empresa realizava. Pombas entravam e saíam das
janelas quebradas; havia muitos arbustos crescendo por trás das barras do portão de ferro. Keller desceu do carro e inspecionou o portão automático. Há muito tempo
ninguém o abria.
Ele passou uma hora fazendo um reconhecimento de rotina nas ruas ao redor do depósito e depois seguiu para o norte até a casa de campo em Andeville. Quando chegou,
encontrou Gabriel e Chiara descansando no jardim ensolarado. Os dois Van Gogh estavam encostados na parede na sala.
— Ainda não sei como você consegue diferenciar um do outro — falou Keller.
— É bastante óbvio, não acha?
— Não.
Gabriel inclinou a cabeça para o quadro da direita.
— Tem certeza?
— Estas são minhas digitais nas laterais da tela, não as de Vincent. E tem isso.
Gabriel ligou seu BlackBerry do Escritório e o segurou perto do canto superior direito da tela. A tela piscou vermelha, indicando a presença de um transmissor escondido.
— Tem certeza da distância? — perguntou Keller.
— Testei de novo essa manhã. Funciona perfeitamente a dez quilômetros.
Keller olhou para o Van Gogh genuíno.
— Pena que ninguém pensou em colocar um rastreador nesse.
— É — falou Gabriel, distante.
— Quanto tempo você pensa ficar com ele?
— Nem um dia a mais do que o necessário.
— Quem vai guardá-lo enquanto seguimos a falsificação?
— Estava querendo deixá-lo na embaixada em Paris — falou Gabriel —, mas o chefe de estação não quer nem saber. Então tive que organizar outra coisa.
— Que coisa?
Quando Gabriel respondeu, Keller balançou a cabeça.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller sorriu.
— Nem me fale.
Eles deixaram a exótica casa de campo pela última vez às oito da noite. A cópia do Doze Girassóis numa Jarra estava no porta-malas da Mercedes de Keller; o Van Gogh
autêntico estava no de Gabriel. Ele o entregou a Maurice Durand em sua loja na rue de Miromesnil. Então deixou Chiara no apartamento seguro com vista para Pont Marie
e partiu para a comuna de Chelles.
Chegou alguns minutos antes das onze e foi até o depósito na avenida François Mitterrand. Era uma parte da cidade onde havia pouca vida nas ruas quando escurecia.
Ele circulou duas vezes a propriedade, procurando evidências de vigilância ou algo que sugeria que Keller estava a ponto de cair em uma armadilha. Sem encontrar
nada fora do comum, procurou um bom ponto de observação onde um homem sentado sozinho não atrairia a atenção da polícia. A única opção era um parque onde uns skatistas
estavam bebendo cerveja. De um lado do parque havia uma fileira de bancos iluminados por lâmpadas amareladas. Gabriel estacionou o carro na rua e se sentou no banco
mais perto da entrada da Eurotranz. Os skatistas olharam para ele estranhando por um momento antes de voltarem a discutir as questões do dia. Gabriel olhou para
seu relógio. Eram 11h05. Aí consultou seu BlackBerry. O sinal ainda não estava dentro do alcance.
Erguendo a cabeça, viu os faróis de um carro na avenida. Um pequeno Citröen vermelho passou pela entrada da Eurotranz e seguiu pela beira do parque, deixando a vibração
do hip-hop francês no ar. Atrás vinha outro carro, uma BMW preta tão limpa que parecia ter sido recentemente lavada para a ocasião. Parou no portão e o motorista
desceu. No escuro era impossível ver seu rosto, mas pela constituição e movimento era um sósia de Sam.
Ele apertou o teclado algumas vezes com a confiança de um homem que conhece a combinação há muito tempo. Então voltou a subir no carro, esperou o portão abrir, e
entrou. Parou enquanto o portão se fechava e depois foi até a entrada do depósito. Novamente, desceu do carro e apertou o teclado de segurança com uma velocidade
que sugeria familiaridade. Quando a porta se abriu, ele entrou com o carro e desapareceu de vista.
No pequeno parque escuro, a chegada de um carro de luxo em um depósito abandonado na avenida François Mitterand passou despercebida por todo mundo, exceto pelo homem
de meia idade sentado sozinho. O homem olhou para seu relógio e viu que eram 23h08. Aí consultou seu BlackBerry. A luz vermelha estava piscando e vindo em sua direção.
Keller chegou exatamente às onze e meia da noite. Ligou para o celular de Sam e o portão se abriu. Um caminho de asfalto com buracos se abria na frente dele, vazio,
escuro. Ele avançou lentamente e, seguindo as instruções de Sam, embicou o carro no depósito. Do lado oposto de um espaço do tamanho de um campo de futebol brilhavam
os faróis baixos de uma BMW. Keller podia ver a figura de um homem inclinado sobre o capô, com um telefone ao ouvido e duas grandes malas aos pés. Não havia mais
ninguém visível.
— Pare aí — falou Sam.
Keller pisou no freio.
— Desligue o motor e apague os faróis.
Keller fez como instruído.
— Saia do carro e fique onde eu possa vê-lo.
Keller saiu devagar e ficou parado na frente do carro. Sam enfiou a mão dentro da BMW e acendeu os faróis.
— Tire seu casaco.
— Isso é realmente necessário?
— Quer o dinheiro ou não?
Keller tirou seu casaco e o jogou sobre o capô do carro.
— Vire-se e fique de frente para o carro.
Keller hesitou, depois se virou de costas para Sam.
— Muito bom.
Keller se virou devagar e encarou Sam de novo.
— Onde está o quadro?
— No porta-malas.
— Pegue-o e coloque no chão alguns metros na frente do carro.
Keller abriu o porta-malas e tirou o quadro. Estava envolvido com uma camada protetora de papel vegetal e escondido dentro de um saco de lixo comum. Colocou no chão
de concreto do depósito a uns cinco metros na frente da Mercedes e esperou pela próxima instrução de Sam.
— Volte para seu carro — veio a voz do lado oposto do depósito.
— De jeito nenhum — respondeu Keller para o brilho dos faróis de Sam.
Ocorreu um breve impasse. Então Sam se aproximou. Parou a poucos metros de Keller, olhou para o chão e franziu a testa.
— Preciso vê-lo mais uma vez.
— Então sugiro que remova o envoltório de plástico. Mas eu seria cuidadoso, Sam. Se algo acontecer com esse quadro, você será o responsável.
Sam se agachou e removeu o quadro de dentro do saco. Então virou a imagem na direção dos faróis de seu carro e observou as pinceladas e a assinatura.
— Então? — perguntou Keller.
Sam olhou para as digitais na lateral da moldura, depois para as marcas do museu na parte de trás.
— Um minuto — falou baixinho. — Um minuto.
O carro de Keller saiu do depósito às 23h40. O portão estava aberto quando ele chegou. Virou para a direita e passou rápido pelo banco onde Gabriel estava sentado.
Gabriel o ignorou; estava olhando os faróis traseiros de uma BMW que se movia pela avenida François Mitterand. Olhou para o BlackBerry e sorriu. Tinha funcionado,
ele pensou. Tinha realmente funcionado.
A luz vermelha piscava com a regularidade de uma pulsação. Flutuou pelos subúrbios de Paris e depois correu para o leste pela A4 até Reims. Gabriel seguia um quilômetro
atrás e Keller um quilômetro atrás de Gabriel. Eles falaram por telefone só uma vez, uma breve conversa durante a qual Keller confirmou que o negócio tinha sido
concretizado. Sam tinha o quadro; Keller tinha o dinheiro de Sam. Estava escondido no porta-malas do carro, dentro do saco de lixo que Gabriel tinha colocado ao
redor da cópia do Doze Girassóis numa Jarra. Tudo exceto por um único pacote de notas de cem euros, que estava no bolso do casaco de Keller.
— Por que isso está no seu bolso? — perguntou Gabriel.
— Dinheiro para a gasolina — respondeu Keller.
Cento e vinte quilômetros separavam os subúrbios do leste de Paris de Reims, uma distância que Sam cobriu em menos de uma hora. Pouco depois da cidade, a luz vermelha
parou de repente na A4. Gabriel rapidamente o alcançou e viu Sam enchendo o tanque do carro em um posto da estrada. Imediatamente ligou para Keller e mandou que
encostasse; depois esperou até Sam voltar à estrada. Em poucos minutos, os três carros tinham retomado a formação original. Sam na frente, Gabriel seguindo um quilômetro
atrás de Sam e Keller seguindo um quilômetro atrás de Gabriel.
Depois de Reims, eles continuaram para o leste, passando por Verdun e Metz. Então a A4 virou para o sul levando todos até Estrasburgo, a capital da região da Alsácia
da França e sede do Parlamento Europeu. Na beira da cidade fluíam as águas verde-escuras do Reno. Alguns minutos depois do nascer do sol, 25 milhões de euros em
dinheiro e uma cópia de uma obra-prima roubada de Vincent van Gogh cruzaram para a Alemanha sem serem detectados.
A primeira cidade do lado alemão da fronteira era Kehl e depois de Kehl estava a autobahn A5. Sam seguiu até Karlsruhe; então entrou na A8 e se dirigiu a Stuttgart.
Quando chegou aos subúrbios do sul, o rush da manhã estava no auge. Ele cruzou lentamente a cidade pela Hauptstätterstrasse e abriu caminho por Stuttgart-Mitte,
um agradável distrito de escritórios e lojas no coração da metrópole. Gabriel sentiu que Sam estava perto de seu destino final, e se aproximou alguns metros. E então
aconteceu a coisa que ele menos esperava.
A luz vermelha piscante desapareceu de sua tela.
De acordo com o BlackBerry de Gabriel, a luzinha brilhou pela última vez no número oito da Böheimstrasse. O endereço correspondia a um hotel de estuque cinza que
parecia ter sido importado de Berlim Oriental durante os piores dias da Guerra Fria. Nos fundos do hotel, que davam a um beco, havia um estacionamento público. A
BMW estava no último nível, em um canto onde a lâmpada havia sido quebrada. Sam estava caído sobre o volante, os olhos bem abertos, sangue e pedaços do cérebro espalhados
por dentro do vidro. E Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon, tinha desaparecido.
25
GENEBRA
ELES FORAM EMBORA DE Stuttgart PELA mesma rota que tinham entrado e cruzaram de volta para a França em Estrasburgo. Keller foi para a Córsega; Gabriel, para Genebra.
Ele chegou no meio da tarde e imediatamente ligou para Christoph Bittel de um telefone público perto do lago. O membro da polícia secreta não pareceu gostar de ouvir
sua voz tão cedo. Ficou ainda menos feliz quando Gabriel explicou por que tinha voltado à cidade.
— De jeito nenhum — falou ele.
— Então acho que terei de contar ao mundo sobre todos esses quadros roubados que encontrei naquele cofre.
— Lá se foi o novo Gabriel Allon.
— A que horas nos encontramos, Bittel?
— Vou ver o que posso fazer.
Bittel demorou uma hora para limpar sua mesa na sede da NDB e outras duas horas para dirigir de Berna a Genebra. Gabriel estava esperando por ele em uma esquina
cheia de gente na rue du Rhône. Passava um pouco das seis. Pequenos bancários suíços estavam saindo dos bonitos edifícios de escritórios; lindas garotas e estrangeiros
astutos estavam entrando nos cafés animados. Tudo muito organizado. Até assassinos em massa se comportavam direito quando estavam em Genebra.
— Você ia me dizer por que devo abrir aquele cofre para você — falou Bittel enquanto voltava a enfrentar o trânsito com seu usual excesso de cuidado.
— Porque a operação em que estou envolvido está com um problema.
— Que tipo de problema?
— Um cadáver.
— Onde?
Gabriel hesitou.
— Onde? — perguntou Bittel de novo.
— Stuttgart — respondeu Gabriel.
— O árabe que levou um tiro na cabeça essa manhã no centro da cidade?
— Quem falou que era um árabe?
— O BfV.
O BfV era o serviço de segurança interno da Alemanha. Mantinha relações próximas com seu irmão germanófilo em Berna.
— Quanto sabem sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Quase nada e foi por isso que entraram em contato conosco. Parece que os assassinos levaram sua carteira depois de atirarem.
— Não foi tudo que levaram.
— Você é responsável pela morte dele?
— Não tenho certeza.
— Deixe-me perguntar de outra forma, Allon. Você colocou uma arma na cabeça dele e puxou o gatilho?
— Não seja ridículo.
— Não é uma pergunta absurda. Afinal, você tem um histórico quando se trata de cadáveres em solo europeu.
Gabriel não falou nada.
— Sabe o nome do homem que estava dentro do carro?
— Ele se chamava Sam, mas tenho a sensação de que seu nome verdadeiro era Samir.
— Sobrenome?
— Nunca me falou.
— Passaporte?
— Ele falava francês muito bem. Se tivesse que adivinhar, acho que era do Levante.
— Líbano?
— Talvez. Ou talvez Síria.
— Por que ele foi morto?
— Não tenho certeza.
— Pode fazer melhor que isso, Allon.
— É possível que estivesse de posse de um quadro que se parecia muito com o Doze Girassóis numa Jarra, de Vincent van Gogh.
— O que foi roubado de Amsterdã?
— Emprestado — falou Gabriel.
— Quem pintou a falsificação?
— Eu.
— Por que Sam estava com ele?
— Eu o vendi por 25 milhões de euros.
Bittel respirou fundo.
— Você me perguntou, Bittel.
— Onde está o quadro?
— Qual quadro?
— O Van Gogh verdadeiro — respondeu Bittel.
— Em mãos seguras.
— E o dinheiro?
— Em mãos ainda mais seguras.
— Por que você roubou um Van Gogh e vendeu uma cópia a um árabe chamado Sam?
— Porque estou procurando um Caravaggio.
— Para quem?
— Os italianos.
— Por que um agente da inteligência israelense está procurando um quadro para os italianos?
— Porque ele acha difícil dizer não às pessoas.
— E se eu puder colocá-lo naquele cofre? O que você espera encontrar?
— Para ser honesto com você, Bittel, não tenho ideia.
Bittel respirou fundo e pegou seu telefone.
Fez duas ligações, uma atrás da outra. A primeira foi para sua linda amiga no Freeport. A segunda foi para um arrombador que ocasionalmente fazia favores para a
NDB na área de Genebra. A mulher estava esperando no portão quando eles chegaram; o arrombador apareceu uma hora mais tarde. Seu nome era Zimmer. Tinha um rosto
redondo e suave, junto com o olhar assustado de um animal empalhado. Sua mão era tão fina e macia que Gabriel a soltou rapidamente, com medo de machucá-lo.
Tinha em seu poder uma mala retangular pesada de couro escuro, que agarrava firme enquanto seguia Bittel e Gabriel pela porta externa do depósito de Jack Bradshaw.
Se notou os quadros, não deu nenhum sinal disso; tinha olhos somente para o pequeno cofre perto da mesa. Havia sido construído por um fabricante alemão de Colônia.
Zimmer franziu a testa, como se esperasse algo mais desafiador.
O arrombador, como o restaurador de arte, não gostava que as pessoas ficassem olhando enquanto ele trabalhava. Por isso, Gabriel e Bittel foram forçados a se confinar
na sala interior do depósito que Yves Morel tinha usado como estúdio clandestino. Eles se sentaram no chão, encostados na parede e com as pernas esticadas. Era óbvio
pelos sons que vinham da porta aberta que Zimmer estava usando uma técnica conhecida como perfuração do ponto fraco. O ar tinha cheiro de metal quente. Lembrava
a Gabriel o cheiro de uma arma recentemente usada. Olhou para seu relógio e franziu a testa.
— Quanto tempo isso vai demorar? — perguntou ele.
— Alguns cofres são mais fáceis que outros.
— É por isso que sempre preferi uma carga bem colocada de explosivo plástico. Semtex é um grande equalizador.
Bittel tirou seu celular e foi repassando sua caixa de e-mails; Gabriel ficou mexendo na paleta de tintas de Yves Morel: ocre, dourado, vermelho... Finalmente, uma
hora depois que Zimmer começou a trabalhar, ouviu um forte barulho metálico na sala ao lado. O arrombador apareceu na porta, segurando sua mala de couro negro, e
acenou uma vez para Bittel.
— Acho que sei como ir embora — falou. E desapareceu.
Gabriel e Bittel ficaram de pé e foram até a sala ao lado. A porta do cofre estava um pouco aberta, um dedo, nada mais. Gabriel se aproximou, mas Bittel o impediu.
— Eu faço isso — disse ele.
Mandou Gabriel dar um passo para trás. Então abriu a porta do cofre e deu uma olhada no interior. Estava vazio, exceto por um envelope branco. Bittel o pegou e leu
o nome escrito na frente.
— O que é isso? — perguntou Gabriel.
— Parece ser uma carta.
— Para quem?
Bittel entregou a Gabriel e falou:
— Para você.
Parecia mais um memorando do que uma carta, um relatório pós-ação em campo escrito por um espião caído com problemas de consciência por sua traição. Gabriel leu
duas vezes, a primeira enquanto estava no depósito de Jack Bradshaw, e uma segunda vez enquanto estava sentado no salão de embarque do Aeroporto Internacional de
Genebra. Seu voo foi anunciado alguns minutos depois das nove, primeiro em francês, depois em inglês e, finalmente, em hebraico. O som de seu idioma nativo acelerou
sua pulsação. Ele enfiou a carta em sua mala de mão, levantou-se e embarcou no avião.
PARTE TRÊS
A JANELA ABERTA
26
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
O EDIFÍCIO COMERCIAL QUE FICAVA numa ponta do Boulevard Rei Saul era opaco, sem nenhuma característica e, melhor de tudo, anônimo. Não havia nenhum emblema pendurado
na entrada, nenhuma placa que mostrasse a identidade de seu ocupante. Na verdade, não havia nada para sugerir que era a sede de um dos serviços de inteligência mais
temidos e respeitados do mundo. Uma inspeção mais de perto da estrutura, no entanto, teria revelado a existência de um prédio dentro do prédio, com seu próprio fornecimento
de energia, suas próprias linhas de água e esgoto, e seu próprio sistema de comunicações seguras. Os funcionários carregavam duas chaves. Uma abria uma porta sem
nenhuma marca no lobby, a outra operava o elevador. Aqueles que cometiam o imperdoável pecado de perder uma ou as duas chaves eram banidos para o deserto da Judeia,
e nunca mais eram vistos ou citados.
Havia alguns funcionários que eram muito importantes ou cujo trabalho era muito confidencial para aparecer no lobby. Eles entravam no prédio “preto” através do estacionamento
no subsolo, como Gabriel fez trinta minutos depois que seu avião de Genebra aterrissou no aeroporto Ben-Gurion. Sua caravana incluía um veículo cheio de uma equipe
de segurança fortemente armada. Ele pensou que era um sinal do que estava por vir.
Dois dos agentes de segurança o seguiram até o elevador, que o levou até o andar mais alto do prédio. Do lobby, ele atravessou uma porta protegida até uma antessala
onde uma mulher com quase quarenta anos estava sentada atrás de uma mesa moderna com uma superfície negra brilhante. A mesa só tinha um abajur e um telefone multilinhas
seguro; a mulher tinha longas pernas queimadas de sol. Dentro do Boulevard Rei Saul ela era conhecida como a Cúpula de Ferro por sua habilidade imbatível de evitar
pedidos indesejados por uma palavra com o chefe. Seu nome verdadeiro era Orit.
— Está em uma reunião — falou ela, olhando para a luz vermelha brilhando em cima da impressionante porta dupla do chefe. — Sente-se. Não vai demorar.
— Ele sabe que estou no prédio?
— Sabe.
Gabriel se sentou no que era possivelmente o sofá mais desconfortável de todo Israel e olhou para a luz vermelha brilhando sobre a porta. Então olhou para Orit,
que sorriu, desconfortável.
— Posso servir algo? — perguntou ela.
— Um aríete — respondeu Gabriel.
Finalmente, a luz mudou de vermelho para verde. Gabriel se levantou rapidamente e entrou no escritório enquanto os participantes da reunião agora adiada saíam por
uma segunda porta. Reconheceu dois deles. Uma era Rimona Stern, a chefe do programa nuclear do Irã do Escritório. O outro era Mikhail Abramov, um agente de campo
e atirador que tinha trabalhado com Gabriel em várias operações de extrema importância. O terno que estava usando sugeria uma promoção recente.
Quando a porta se fechou, Gabriel se virou lentamente para encarar o único outro ocupante da sala. Estava parado perto de uma grande mesa de vidro escuro, uma pasta
aberta nas mãos. Usava um terno cinza que parecia um número menor e uma camisa branca com um colarinho alto que deixava a impressão de que sua cabeça estava parafusada
em seus fortes ombros. Seus óculos eram pequenos e sem aro, do tipo usado por executivos alemães que queriam parecer jovens e na moda. Seu cabelo, ou o que sobrara
dele, era espetado e grisalho.
— Desde quando Mikhail participa de reuniões na sala do chefe? — perguntou Gabriel.
— Desde que dei uma promoção a ele — respondeu Uzi Navot.
— A quê?
— Vice-chefe de Operações Especiais. — Navot colocou a pasta na mesa e sorriu, sem sinceridade. — Tudo bem se fizer movimentos de pessoal, Gabriel? Afinal, ainda
sou o chefe por mais um ano.
— Tinha planos para ele.
— Que tipo de planos?
— Na verdade, ia colocá-lo como responsável de Operações Especiais.
— Mikhail? Ele não está pronto, ainda falta muito.
— Ele vai ficar bem, desde que tenha um planejador operacional experiente olhando sobre o seu ombro.
— Alguém como você?
Gabriel ficou em silêncio.
— E eu? — perguntou Navot. — Já decidiu o que vai fazer?
— Isso depende totalmente de você.
— É óbvio que não.
Navot largou a pasta na mesa e apertou um botão do seu painel de controle que fez descer as venezianas lentamente sobre as janelas à prova de bala que iam do chão
ao teto. Ficou ali por um momento em silêncio, como se estivesse preso pelas barras de sombras. Gabriel vislumbrou um retrato desagradável de seu próprio futuro,
um homem cinzento em uma jaula cinzenta.
— Preciso admitir — falou Navot —, tenho muita inveja de você. O Egito está à beira da guerra civil, a al-Qaeda está controlado uma faixa de terra que vai de Faluja
ao Mediterrâneo, e um dos conflitos mais sangrentos da história moderna está acontecendo na nossa fronteira norte. E mesmo assim você tem tempo para ficar procurando
uma obra roubada para o governo italiano.
— Não foi ideia minha, Uzi.
— Poderia ter, pelo menos, mostrado a cortesia de pedir minha aprovação quando os carabinieri o procuraram.
— Teria dado?
— Claro que não.
Navot caminhou lentamente por sua longa mesa de reuniões executivas até a área de estar, mais confortável. As redes de televisão do mundo apareciam silenciosamente
em sua parede de vídeos; os jornais do mundo estavam organizados na mesa de café.
— A polícia europeia esteve bem ocupada ultimamente — falou ele. — Um expatriado britânico assassinado em lago Como, uma obra roubada de Van Gogh, e agora isso.
— Ele pegou uma cópia do Die Welt e entregou para que Gabriel visse. — Um árabe morto no meio de Stuttgart. Três eventos aparentemente desconectados com uma coisa
em comum. — Navot deixou o jornal cair sobre a mesa. — Gabriel Allon, o futuro chefe do serviço de inteligência de Israel.
— Duas coisas, na verdade.
— Qual é a segunda?
— LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— O pior homem do mundo.
— Ele está na folha de pagamento do Escritório?
— Não, Uzi — falou Gabriel, sorrindo. — Ainda não.
Navot conhecia em linhas gerais a busca de Gabriel pelo Caravaggio perdido, pois tinha acompanhado à distância: reservas de viagens aéreas, gastos de cartão de crédito,
passagens de fronteira, pedidos de propriedades seguras, notícias de uma obra desaparecida. Agora, sentado na sala que logo seria dele, Gabriel completou a narrativa,
começando com as reuniões com o general Ferrari em Veneza e terminando com a morte de um homem chamado Sam em Stuttgart — um homem que tinha acabado de pagar 25
milhões de euros por Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon. Então, ele entregou as três páginas da carta que Jack Bradshaw tinha
deixado para ele no Freeport de Genebra.
— O nome verdadeiro de Sam era Samir Basara. Bradshaw o conheceu quando estava trabalhando em Beirute. Samir era um clássico vigarista. Drogas, armas, garotas, todas
as coisas que faziam a vida mais interessante em um lugar como Beirute nos anos 1980. Mas na verdade, Samir não era libanês. Samir era da Síria, e estava trabalhando
para a inteligência síria.
— Estava trabalhando para eles quando foi morto?
— Com certeza — respondeu Gabriel.
— Fazendo o quê?
— Comprando arte roubada.
— De Jack Bradshaw?
Gabriel assentiu.
— Samir e Bradshaw renovaram seu relacionamento há 14 meses em um almoço em Milão. Samir tinha uma proposta de negócios. Disse que tinha um cliente, um empresário
rico do Oriente Médio que estava interessado em adquirir quadros. Em poucas semanas, Bradshaw usou seus contatos no submundo da arte para assegurar um Rembrandt
e um Monet, sendo que os dois tinham sido roubados. Isso não incomodava Samir. Na verdade, ele gostava disso. Deu a Bradshaw cinco milhões de dólares e o mandou
encontrar mais.
— Como ele pagava pelos quadros?
— Enviava o dinheiro para a empresa de Bradshaw através de algo chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— Vou chegar lá — falou Gabriel.
— Por que Sam queria quadros roubados?
— Também vou chegar lá. — Gabriel olhou para a carta. — Nesse ponto, Jack Bradshaw começou a comprar loucamente para seu novo cliente cheio de dinheiro. Uns Renoir,
um Matisse, um Corot que foi roubado do Museu de Belas Artes de Montreal, em 1972. Ele também adquiriu vários quadros italianos importantes que não deveriam deixar
o país. Samir ainda não estava satisfeito. Disse que seu cliente queria algo grande. Foi quando Bradshaw sugeriu o Santo Graal dos quadros desaparecidos.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Onde estava?
— Ainda na Sicília, nas mãos da Cosa Nostra. Bradshaw foi a Palermo e negociou o acordo. Depois de todos esses anos, os mafiosos realmente ficaram felizes por se
livrar dele. Bradshaw o levou à Suíça em um carregamento de tapetes. Não é preciso dizer que o retábulo não estava em boas condições quando chegou. Ele aceitou cinco
milhões de euros como adiantamento de Samir e contratou um falsificador francês para tornar a Natividade apresentável de novo. Mas algo aconteceu antes que pudesse
completar a venda.
— O quê?
— Ele descobriu quem estava comprando os quadros.
— Quem era?
Antes de responder, Gabriel voltou a uma pergunta que Navot tinha feito alguns minutos antes: por que o cliente rico de Samir Basara estava no mercado de quadros
roubados? Para responder isso, Gabriel primeiro explicou as quatro categorias básicas de ladrões de arte: o amante de arte sem dinheiro, o perdedor incompetente,
o profissional e o membro do crime organizado. O membro do crime organizado, ele falou, era responsável pelos grandes roubos. Às vezes ele tinha um comprador à espera,
mas geralmente os quadros roubados terminavam sendo usados como uma forma de dinheiro no submundo, um traveler check para a classe criminosa. Um Monet, por exemplo,
poderia ser usado como pagamento colateral para um envio de armas russas; um Picasso, por heroína turca. Eventualmente, alguém na rede de posse decidiria obter lucro,
normalmente com a ajuda de um intermediário especialista como Jack Bradshaw. Um quadro que vale duzentos milhões de dólares no mercado legítimo valeria vinte milhões
no mercado negro. Vinte milhões que nunca seriam rastreados, acrescentou Gabriel. Vinte milhões que nunca seriam congelados pelos governos dos Estados Unidos e da
União Europeia.
— Vê onde estou chegando com isso, Uzi?
— Quem é? — perguntou Navot de novo.
— É um homem que está por trás de uma terrível guerra civil, um homem que está acostumado a torturar sistematicamente, a criar barragens de artilharia indiscriminada
e ataques de armas químicas contra seu próprio povo. Viu Hosni Mubarak ser colocado em uma jaula e Muammar Gaddafi ser linchado por uma multidão louca por sangue.
Como resultado, está preocupado com o que poderia acontecer se caísse, e é por isso que pediu a Samir Basara para preparar um pequeno ninho para ele e sua família.
— Está dizendo que Jack Bradshaw estava vendendo quadros roubados para o presidente da Síria?
Gabriel levantou o rosto para as imagens piscando na parede de vídeos de Navot. O regime tinha acabado de atacar um bairro dominado por rebeldes em Damasco. O número
de mortos era incalculável.
— O dirigente sírio e seu clã valem bilhões — falou Navot.
— É verdade — respondeu Gabriel. — Mas os norte-americanos e a UE estão congelando seus bens e os de seus ajudantes mais próximos onde conseguem encontrá-los. Até
a Suíça congelou centenas de milhões de bens sírios.
— Mas grande parte da fortuna ainda está aí, em algum lugar.
— Por enquanto — falou Gabriel.
— Por que não barras de ouro ou cofres cheios de dinheiro? Por que quadros?
— Imagino que ele tenha ouro e dinheiro, também. Afinal, como qualquer assessor de investimentos diria, a diversidade é a chave para o sucesso a longo prazo. Mas
se fosse eu assessorando o presidente sírio — acrescentou Gabriel —, diria para investir em bens que são fáceis de esconder e transportar.
— Quadros? — perguntou Navot.
Gabriel assentiu.
— Se ele compra um quadro por cinco milhões no mercado negro, pode vender por quase o mesmo preço, menos comissões para o intermediário, claro. É um preço menor
a pagar para ter dezenas de milhões em dinheiro não rastreável.
— Engenhoso.
— Ninguém os acusou de serem estúpidos, só cruéis e brutais.
— Quem matou Samir Basara?
— Se eu tivesse que adivinhar, foi alguém que o conhecia. — Gabriel parou, depois acrescentou: — Alguém que estava sentado no banco de trás do carro quando puxou
o gatilho.
— Alguém da inteligência síria?
— É normalmente assim que funciona.
— Por que o mataram?
— Talvez soubesse muito. Ou talvez tenham ficado bravos com ele.
— Por quê?
— Por deixar que Jack Bradshaw descobrisse sobre as finanças pessoais da família dirigente.
— Quanto ele sabia?
Gabriel pegou a carta e falou:
— Bastante, Uzi.
27
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
– O QUE VOCÊ ACHA QUE BRADSHAW fez com o Caravaggio?
— Ele deve ter levado de volta a sua villa no lago Como — respondeu Gabriel. — Então, pediu a Oliver Dimbleby vir à Itália para dar uma olhada em sua coleção. Foi
uma falcatrua, uma operação inteligente concebida por um ex-espião britânico. O que ele realmente queria era que Oliver entregasse uma mensagem a Julian Isherwood
que, por sua vez, a entregaria a mim. Não saiu como planejado. Oliver enviou Julian a Como em seu lugar. E quando chegou, Bradshaw estava morto.
— E o Caravaggio desapareceu?
Gabriel assentiu.
— Por que Bradshaw queria contar a você sobre a conexão com o presidente sírio?
— Suponho que ele pensou que eu iria lidar com o assunto com discrição.
— E o que isso quer dizer?
— Eu não diria à polícia britânica ou italiana que ele era um ladrão e um intermediário — respondeu Gabriel. — Estava esperando encontrar-se comigo. Mas também tomou
a precaução de colocar tudo que sabia por escrito dentro do cofre no Freeport.
— Junto com alguns quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— Por que a súbita mudança de ideia? Por que não pegar o dinheiro sujo de sangue do dirigente e ir rindo até o banco?
— Nicole Devereaux.
Navot apertou os olhos, pensativo.
— Por que esse nome me é familiar?
— Ela era a fotógrafa da AFP que foi sequestrada e morta em Beirute nos anos 1980 — falou Gabriel. Então contou a Navot o resto da história: o caso amoroso, o recrutamento
pela KGB, meio milhão em uma conta de banco suíço. — Bradshaw nunca se perdoou pela morte de Nicole — acrescentou ele. — E certamente nunca perdoou o regime sírio
por matá-la.
Navot ficou em silêncio por um momento.
— Seu amigo Jack Bradshaw fez várias besteiras durante sua vida — falou finalmente. — Mas a coisa mais idiota que já fez foi aceitar cinco milhões de euros da família
governante da Síria por um quadro que não conseguiu entregar. Só há uma coisa que a família odeia mais do que deslealdade: pessoas que tentam roubá-los.
Navot assistia às imagens que passavam na parede de vídeo.
— Na minha opinião — falou ele —, é disso que se trata esse exercício inteiro de depravação humana. Cento e cinquenta mil mortos e milhões de pessoas sem lugar para
morar. E para quê? Por que a família do governante está se agarrando a isso como se não houvesse amanhã? Por que estão praticando assassinato em escala industrial?
Pela fé deles? Pelo ideal sírio? Não existe ideal sírio. Francamente, não existe mais Síria. E mesmo assim as mortes acontecem por um motivo, e apenas um motivo.
— Dinheiro — falou Gabriel.
Navot assentiu lentamente.
— Você parece ter uma visão especial sobre a situação da Síria, Uzi.
— Por acaso sou casado com uma conceituada especialista sobre a Síria e o movimento baathista. — Ele parou, então acrescentou: — Mas você já sabia isso.
Navot levantou, caminhou até o aparador e serviu uma xícara de café da garrafa térmica. Gabriel notou a ausência de creme ou biscoitos amanteigados, duas coisas
que Navot não conseguia resistir. Ele bebia seu café preto agora, sem nenhum acompanhamento a não ser uma pastilha de adoçante branco, que colocou em sua xícara
de um recipiente plástico.
— Desde quando você coloca cianeto no seu café, Uzi?
— Bella quer que eu perca o vício em açúcar. Em seguida, será a cafeína.
— Não consigo imaginar esse trabalho sem cafeína.
— Logo vai descobrir.
Navot sorriu mesmo sem vontade e voltou para sua cadeira. Gabriel estava olhando os monitores de vídeo. O corpo de uma criança — menino ou menina, era impossível
dizer — estava sendo retirado do meio dos escombros. Uma mulher estava em prantos. Um homem barbudo clamava por vingança.
— Quanto há? — perguntou ele.
— Dinheiro?
Gabriel assentiu.
— Dez bilhões é o número que aparece na imprensa — respondeu Navot —, mas achamos que o número real é muito maior. E é todo controlado por Kemel al-Farouk. — Navot
olhou de canto de olho para Gabriel e perguntou: — Conhece o nome?
— A Síria não é minha área de especialização, Uzi.
— Logo será. — Navot deu outro sorriso apagado antes de continuar. — Kemel não é um membro da família dirigente, mas esteve trabalhando nos negócios da família por
toda sua vida. Começou como guarda-costas do pai do dirigente. Kemel recebeu uma bala pelo velho no final dos anos setenta e o pai do dirigente nunca esqueceu isso.
Deu a Kemel um bom trabalho na Mukhabarat, onde ele ganhou uma reputação como interrogador terrível de prisioneiros políticos. Costumava pregar membros da Irmandade
Muçulmana na parede por diversão.
— Onde ele está agora?
— Seu título oficial é vice-ministro de Estado para Relações Exteriores, mas em muitos aspectos é quem está dirigindo o país e a guerra. O dirigente nunca toma decisões
sem falar primeiro com Kemel. E, talvez mais importante, Kemel é quem está cuidando do dinheiro. Ele colocou uma parte da fortuna em Moscou e Teerã, mas de jeito
nenhum confiaria totalmente nos russos e nos iranianos. Achamos que ele tem alguém trabalhando na Europa Ocidental escondendo os bens. O que não sabemos — falou
Navot —, é quem é essa pessoa ou onde está escondendo o dinheiro.
— Graças a Jack Bradshaw, agora sabemos que parte dele está na LXR Investments. E podemos usar a LXR como janela para ver o resto do dinheiro da família.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio. Navot assistia a outro corpo sendo retirado dos escombros em Damasco.
— É duro para os israelenses verem cenas como essa — falou depois de um momento. — Nos deixa incomodados. Traz más recordações. Nosso instinto natural é matar o
monstro antes que o monstro possa fazer mais danos. Mas o Escritório e a IDF concluíram que é melhor deixar o monstro no lugar, pelo menos por enquanto, porque a
alternativa poderia ser pior. E os norte-americanos e os europeus chegaram à mesma conclusão, apesar de todas as conversações otimistas sobre a negociação de um
acordo. Ninguém quer que a Síria caia nas mãos da al-Qaeda, mas isso é o que vai acontecer se a família governante cair.
— Boa parte da Síria já é controlada pela al-Qaeda.
— Verdade — concordou Navot. — E o contágio está se espalhando. Há algumas semanas, uma delegação de chefes de inteligência europeu foi a Damasco com uma lista de
seus cidadãos muçulmanos que vieram à Síria se unir à jihad. Eu poderia ter dado a eles mais alguns nomes, mas não fui convidado para a festa.
— Que surpresa.
— Provavelmente foi melhor não ter ido. Na última vez que estive em Damasco, viajei sob um nome falso.
— Quem?
— Vincent Laffont.
— O escritor de guias de viagem.
Navot assentiu.
— Sempre foi um dos meus favoritos — disse Gabriel.
— Meu também. — Navot colocou sua xícara de café na mesa. — O Escritório nunca evitou se comprometer com crimes estranhos a serviço de uma operação moral e justa.
Mas se atropelarmos o sistema bancário internacional, as repercussões podem ser desastrosas.
— A família governante síria não teve acesso a esses bens honestamente, Uzi. Já estão saqueando a economia por duas gerações.
— Isso não significa que podemos roubá-las.
— Não — falou Gabriel com um remorso fingido. — Isso seria errado.
— Então, o que está sugerindo?
— Congelarmos os bens.
— Como?
Gabriel sorriu e falou:
— Ao estilo do Escritório.
— Que tal nossos amigos em Langley? — perguntou Navot quando Gabriel tinha terminado de explicar.
— O que tem?
— Não podemos lançar uma operação como essa sem o apoio da Agência.
— Se contarmos à Agência, eles vão contar à Casa Branca. E isso vai terminar na primeira página do The New York Times.
Navot sorriu.
— Tudo que precisamos é da aprovação do primeiro-ministro e do dinheiro para realizar a operação.
— Já temos dinheiro, Uzi. Muito dinheiro.
— Os 25 milhões que você ganhou com a venda do Van Gogh falso?
Gabriel assentiu.
— É a beleza dessa operação — falou ele. — Ela se autofinancia.
— Onde está o dinheiro agora?
— Pode estar no porta-malas do carro de Christopher Keller.
— Na Córsega.
— Infelizmente.
— Vou mandar um bodel para pegá-lo.
— O grande dom Orsati não lida com mensageiros, Uzi. Ele acharia isso um insulto muito grande.
— O que está sugerindo?
— Vou resgatar o dinheiro assim que tivermos uma operação em funcionamento, apesar de que seja possível que tenha de deixar um pequeno pagamento de tributo ao Dom.
— Pequeno? Quanto?
— Dois milhões devem deixá-lo feliz.
— Isso é muito dinheiro.
— Uma mão lava a outra, e as duas mãos lavam o rosto.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente, Uzi.
O que faltava era pensar na composição da equipe operacional de Gabriel. Rimona Stern e Mikhail Abramov eram indispensáveis, ele falou. Assim como Dina Sarid, Yossi
Gavish e Yaakov Rossman.
— Não é possível ter Yaakov num momento como esse — objetou Navot.
— Por que não?
— Porque Yaakov é quem está rastreando todos os mísseis e outros artigos mortais que estão indo dos sírios para os amigos deles no Hezbollah.
— Yaakov pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
— Quem mais?
— Preciso de Eli Lavon.
— Ele ainda está escavando embaixo do Muro das Lamentações.
— Amanhã à tarde, ele já estará escavando em outro lugar.
— Só isso?
— Não — falou Gabriel. — Tem outra pessoa que preciso para uma operação como essa.
— Quem?
— A maior especialista do país em Síria e no movimento baathista.
Navot sorriu.
— Talvez você devesse levar uns guarda-costas, por segurança.
28
PETAH TIKVA, ISRAEL
OS NAVOTS VIVIAM NO lado oriental de Petah Tikva, em uma rua calma onde as casas ficavam escondidas atrás de muros de concreto e arbustos. Havia uma campainha perto
do portão de metal, que tocou em silêncio quando Gabriel apertou. Olhou diretamente para as lentes da câmera de segurança e apertou de novo. Dessa vez, o intercomunicador
emitiu o som da voz de uma mulher.
— Quem é?
— Sou eu, Bella. Abra o portão.
Outro silêncio, 15 segundos, talvez mais, antes que o trinco fosse liberado com uma pancada. Conforme o portão abria, surgia a casa, uma estrutura cubista com grandes
janelas reforçadas e uma antena de comunicações seguras aparecendo no teto. Bella estava à sombra do pórtico, os braços cruzados na defensiva. Ela usava calça de
seda branca e blusa amarela com um cinto na cintura esbelta. Seu cabelo escuro parecia recém-pintado e penteado. De acordo com a usina de rumores do Escritório,
ela tinha uma hora marcada toda manhã em um dos salões mais exclusivos de Tel Aviv.
— Você tem muita coragem de vir a essa casa, Gabriel.
— Para com isso, Bella. Vamos tentar ser civilizados.
Ela ficou parada um momento antes de se virar e, com um movimento indiferente da mão, convidá-lo a entrar. Tinha decorado os cômodos da casa como a seu marido: cinza,
brilhante, moderno. Gabriel a seguiu pela muito brilhante cozinha cromada e de granito negro polido, indo até o terraço do fundo onde estava servido um almoço leve
israelense. A mesa estava na sombra, mas o sol brilhava forte no jardim. Havia pequenas piscinas e fontes murmurantes. Gabriel se lembrou de repente que Bella sempre
tinha adorado o Japão.
— Adoro o que você fez com esse lugar, Bella.
— Sente-se — foi tudo que ela respondeu.
Gabriel se sentou em uma cadeira de jardim com almofada. Bella serviu um copo alto de suco de laranja e colocou bem na frente dele.
— Já pensou onde você e Chiara vão morar quando se tornar chefe? — perguntou ela.
Ele não sabia dizer se a pergunta dela sincera ou maliciosa. Decidiu responder honestamente.
— Chiara acha que precisamos viver perto do Boulevard Rei Saul — falou ele —, mas eu preferia ficar em Jerusalém.
— É muito longe.
— Não vou dirigir o carro.
O rosto dela ficou tenso.
— Desculpe, Bella. Não foi isso que quis dizer.
Ela não respondeu diretamente.
— Nunca gostei muito de Jerusalém. Perto demais de Deus para meu gosto. Gosto daqui, o meu pequeno subúrbio secular.
Um silêncio se abateu entre eles. Os dois sabiam a verdadeira razão pela qual Gabriel preferia Jerusalém a Tel Aviv.
— Desculpe por nunca ter enviado a você e Chiara os parabéns pela gravidez. — Ela deu um breve sorriso. — Deus sabe como os dois merecem alguma felicidade depois
de tudo que aconteceu.
Gabriel assentiu e murmurou algo apropriado. Bella nunca tinha dado os parabéns, ele pensou, porque sua raiva não tinha permitido. Ela tinha um comportamento vingativo.
Era uma de suas características mais duradouras.
— Acho que deveríamos conversar, Bella.
— Achei que estávamos conversando.
— Conversar de verdade — falou ele.
— Seria melhor se nos comportássemos como personagens em um daqueles programas de suspense que passam na BBC. Ou posso falar algo que me arrependa depois.
— Há uma razão pela qual esses programas nunca têm Israel como cenário. Não falamos daquela forma.
— Talvez devêssemos.
Ela pegou um prato e começou a servir Gabriel.
— Não estou com fome, Bella.
Ela colocou o prato na mesa.
— Estou brava com você, droga.
— Achei que sim.
— Por que está roubando o cargo do Uzi?
— Não estou.
— Como descreveria isso?
— Não tive escolha.
— Poderia ter dito não a eles.
— Eu tentei. Não funcionou.
— Deveria ter tentado mais.
— Não foi culpa minha, Bella.
— Eu sei, Gabriel! Nada nunca é culpa sua.
Ela olhou para as fontes no jardim. Isso pareceu acalmá-la momentaneamente.
— Nunca vou esquecer a primeira vez que vi você — falou, finalmente. — Estava andando sozinho por um corredor dentro do Boulevard Rei Saul, pouco depois de Túnis.
Você estava exatamente como está agora, os mesmos olhos verdes, as mesmas têmporas grisalhas. Era como um anjo, o anjo da vingança de Israel. Todo mundo adorava
você. Uzi idolatrava você.
— Não vamos exagerar, Bella.
Ela agiu como se não tivesse ouvido.
— E então aconteceu Viena — retomou ela depois de um momento. — Foi um cataclisma, um desastre de proporções bíblicas.
— Todos perdemos entes queridos, Bella. Todos ficamos de luto.
— É verdade, Gabriel. Mas Viena foi diferente. Você nunca mais foi o mesmo depois de Viena. Nenhum de nós foi. — Ela fez uma pausa e acrescentou: — Especialmente
Shamron.
Gabriel seguiu o olhar de Bella até o jardim, mas por um momento ele foi transportado para o pátio iluminado pelo sol da Academia Bezalel de Arte e Design em Jerusalém.
Era setembro de 1972, alguns dias depois do assassinato de 11 atletas e técnicos israelenses nas Olimpíadas de Munique. Do nada apareceu um homem que parecia uma
pequena barra de ferro, com óculos negros horríveis e dentes como uma armadilha de aço. O homem não falou seu nome, pois não era necessário. Era o homem sobre o
qual falavam somente em sussurros. Era quem tinha roubado os segredos que levaram Israel à vitória rápida na Guerra dos Seis Dias. O que tinha sequestrado Adolf
Eichmann, diretor-gerente do Holocausto, em uma esquina argentina.
Shamron...
— Ari se culpou pelo que aconteceu com você em Viena — dizia Bella. — E ele nunca se perdoou, também. Tratou você como um filho depois daquilo. Ele o deixava fazer
o que quisesse. Mas nunca desistiu da esperança de que um dia você viria e assumiria o controle do Escritório que ele amava tanto.
— Sabe quantas vezes eu recusei o cargo?
— Tantas que Shamron acabou entregando a Uzi. Ele ganhou o cargo como um prêmio de consolação.
— Na verdade, fui eu que sugeri que Uzi se tornasse o novo chefe.
— Como se o cargo fosse seu pra poder atribuir. — Ela sorriu, amarga. — Uzi já contou que eu o aconselhei a não aceitar o cargo?
— Não, Bella. Ele nunca mencionou isso.
— Sempre soube que terminaria assim. Você deveria ter deixado o palco sem fazer alarde e ficado na Europa. Mas o que fez? Inseriu um carregamento de centrífugas
sabotadas na cadeia de suprimentos nucleares iraniana e destruiu quatro instalações de enriquecimento secretas.
— Essa operação ocorreu sob a supervisão do Uzi.
— Mas foi sua operação. Todo mundo no Boulevard Rei Saul sabe que foi sua, assim como todo mundo na rua Kaplan.
A rua Kaplan era a localização do escritório do primeiro-ministro. Sem dúvidas, Bella era uma visitante bastante frequente. Gabriel sempre suspeitou que a influência
dela no Boulevard Rei Saul ia muito além da decoração do escritório de seu marido.
— Uzi tem sido um bom chefe — falou ela. — Um excelente chefe. Ele só tem um defeito. Não é você, Gabriel. Ele nunca vai ser você. E por isso, está sendo descartado.
— Não se eu puder evitar.
— Já não fez o suficiente?
Dentro da casa tocou um telefone. Bella não mostrou nenhum interesse em atender.
— Por que está aqui? — perguntou ela.
— Quero conversar sobre o futuro do Uzi.
— Graças a você, ele já não tem nenhum.
— Bella...
Ela se recusava a se acalmar, não tão cedo.
— Se você tem algo a falar sobre o futuro do Uzi, deveria conversar com ele.
— Achei que seria mais produtivo se passasse por cima dele.
— Não tente me lisonjear, Gabriel.
— Nem sonharia em fazer isso.
Ela bateu a unha de seu dedo indicador na mesa. Tinha sido recentemente pintada.
— Ele me contou sobre a conversa que tiveram em Londres quando estavam procurando aquela garota sequestrada. Não é preciso dizer que não pensei muito na sua proposta.
— Por que não?
— Porque não há precedentes para isso. Quando termina o período de um chefe, ele gentilmente desaparece na noite, nunca mais se ouve falar dele.
— Diga isso ao Shamron.
— Shamron é diferente.
— Eu também.
— O que você está propondo exatamente?
— Dirigirmos juntos o Escritório. Eu serei o chefe e Uzi será meu vice.
— Nunca vai funcionar.
— Por que não?
— Porque vai deixar a impressão de que você não está totalmente preparado para o cargo.
— Ninguém pensa isso.
— A aparência é importante.
— Você está me confundindo com outra pessoa, Bella.
— Com quem?
— Com alguém que se preocupa com as aparências.
— E se ele concordar?
— Terá um escritório ao lado do meu. Vai estar envolvido em toda decisão central, toda operação importante.
— E o salário dele?
— Vai ter o mesmo salário, sem mencionar o carro e a segurança.
— Por quê? — perguntou ela. — Por que está fazendo isso?
— Porque preciso dele, Bella. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — De você, também.
— De mim?
— Quero que volte ao Escritório.
— Quando?
— Amanhã de manhã, às dez horas. Uzi e eu vamos organizar uma operação contra os sírios. Precisamos da sua ajuda.
— Que tipo de operação?
Quando Gabriel contou, ela sorriu, triste.
— Pena que Uzi não pensou nisso — falou ela. — Ele ainda poderia ser o chefe.
Passaram a hora seguinte no jardim de Bella negociando os termos da volta dela ao Boulevard Rei Saul. Depois disso, acompanhou-o até o carro oficial.
— Você fica bem assim — falou ela pela porta aberta.
— Como, Bella?
Ela sorriu e falou:
— Nos vemos amanhã, Gabriel. — Então se virou e desapareceu. Um guarda-costas fechou a porta do carro; outro subiu no banco do passageiro. Gabriel percebeu de repente
que não estava armado. Ficou sentado ali por um momento pensando aonde iria em seguida. Em seguida, olhou para o motorista pelo espelho retrovisor e deu um endereço
em Jerusalém Ocidental. Ele tinha mais um negócio desagradável para resolver antes de ir para casa. Tinha de contar a um fantasma que seria pai de novo.
29
JERUSALÉM
O PEQUENO PASSEIO CIRCULAR DO Hospital Psiquiátrico Monte Herzl vibrou sob o peso da caravana de três carros de Gabriel. Ele saiu do banco traseiro de sua limusine
e, depois de uma troca curta de palavras com o chefe de sua segurança, entrou sozinho no hospital. Esperando na recepção estava um médico barbudo, com jeito de rabino,
chegando aos sessenta anos. Estava sorrindo, apesar do fato de que, como sempre, tinha sido avisado com pouca antecedência da chegada de Gabriel. Estendeu a mão
e ficou olhando a comoção na entrada, normalmente tranquila, da instalação mais privada de Israel para pacientes com problemas mentais.
— Parece que sua vida está a ponto de mudar de novo — falou o médico.
— Em mais de um sentido — respondeu Gabriel.
— Para melhor, espero.
Gabriel assentiu e depois contou ao médico sobre a gravidez. O médico sorriu, mas só por um momento. Ele tinha testemunhado a longa luta de Gabriel para decidir
se devia voltar a se casar. Ser pai, ele sabia, levaria a sentimentos complicados.
— E gêmeos, ainda por cima. Bem — acrescentou o médico, lembrando-se de sorrir de novo —, você certamente...
— Preciso contar a ela — falou Gabriel, interrompendo o médico. — Já adiei isso por tempo demais.
— Não é necessário.
— É.
— Ela não vai entender, não totalmente.
— Eu sei.
O médico sabia que não devia insistir.
— Poderia ser melhor se eu ficasse com você — falou ele. — Para bem dos dois.
— Obrigado — respondeu Gabriel —, mas preciso fazer isso sozinho.
O médico se afastou sem uma palavra e deixou Gabriel seguir por um corredor feito de calcário de Jerusalém até uma sala comum onde alguns pacientes estavam olhando
para uma televisão com o olhar perdido. Um par de grandes janelas dava para um jardim com muro. Do lado de fora, uma mulher estava sentada sozinha na sombra de um
pinheiro-manso, imóvel como uma lápide.
— Como ela está? — perguntou Gabriel.
— Sente sua falta. Já faz tempo que você não vem vê-la.
— É difícil.
— Eu entendo.
Eles ficaram parados por um momento na janela, sem falar e sem se mover.
— Há algo que você deveria saber — falou o médico finalmente. — Ela nunca deixou de amá-lo, mesmo depois do divórcio.
— Isso deveria me fazer sentir melhor?
— Não — disse o médico. — Mas você merece saber a verdade.
— Ela também.
Outro silêncio.
— Gêmeos, hein?
— Gêmeos.
— Menino ou menina?
— Um de cada.
— Talvez pudesse deixar que ela passasse um tempo com eles.
— Uma coisa de cada vez, doutor.
— Claro — falou o médico quando Gabriel entrou no jardim sozinho. — Uma coisa de cada vez.
Ela estava sentada em sua cadeira de rodas com o que sobrava de suas mãos retorcidas descansando no colo. O cabelo, antes comprido e escuro como o de Chiara, agora
estava curto e grisalho. Gabriel beijou a pele fria e firme da cicatriz de seu rosto antes de se sentar no banco ao seu lado. Ela olhou perdida para o jardim, sem
perceber a presença dele. Estava ficando mais velha, ele pensou. Todos estavam ficando mais velhos.
— Olhe para a neve, Gabriel — falou ela de repente. — Não é linda?
Ele olhou para o sol queimando no céu sem nuvens.
— É, Leah — falou ele distraído. — É linda.
— A neve absolve Viena de seus pecados — falou ela depois de um momento. — A neve cai sobre Viena enquanto os mísseis caem sobre Tel Aviv.
Tinham sido algumas das últimas palavras que Leah tinha falado para ele na noite do atentado em Viena. Ela sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão
psicótica e desordem de estresse pós-traumático. Às vezes, ela experimentava momentos de lucidez, mas na maior parte do tempo permanecia prisioneira do passado.
Viena passava incessantemente em sua cabeça como um loop de videoteipe que era incapaz de parar: a última refeição que comeram juntos, o último beijo, o fogo que
matou o único filho deles e queimou a pele do corpo de Leah. Sua vida tinha se reduzido a cinco minutos; e ela passava revivendo-os, várias vezes, por mais de vinte
anos.
— Achei que tinha se esquecido de mim, Gabriel.
Sua cabeça se virou lentamente e por um momento houve um lampejo de reconhecimento em seus olhos. Sua voz, quando falou de novo, parecia estranhamente com a voz
que ele tinha ouvido pela primeira vez há muitos anos, chamando-o de um estúdio em Bezalel.
— Quando foi a última vez que veio aqui?
— Vim para seu aniversário.
— Não me lembro.
— Fizemos uma festa, Leah. Todos os outros pacientes vieram. Foi muito legal.
— Estou sozinha aqui, Gabriel.
— Eu sei, Leah.
— Não tenho ninguém. Ninguém a não ser você, meu amor.
Ele sentiu que tinha perdido a capacidade de encher seus pulmões de ar. Leah colocou a mão sobre a dele.
— Você não tem tinta nos seus dedos — falou ela.
— Não trabalhei nos últimos dias.
— Por que não?
— É uma longa história.
— Tenho tempo — falou ela. — É só o que tenho.
Desviou o olhar dele e olhou para o jardim. A luz estava se apagando dos seus olhos.
— Não se vá, Leah. Tenho algo para lhe contar.
Ela se virou de novo para ele.
— Está restaurando um quadro agora? — perguntou ela.
— Veronese — respondeu ele.
— Qual?
Ele contou.
— Então está morando em Veneza de novo?
— Por mais alguns meses.
Ela sorriu.
— Lembra-se quando moramos juntos em Veneza, Gabriel? Foi quando você era aprendiz de Umberto Conti.
— Eu lembro, Leah.
— Nosso apartamento era tão pequeno.
— Porque era só um quarto.
— Foram dias maravilhosos, não foram, Gabriel? Dias de arte e vinho. Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes se você não
tivesse voltado ao Escritório.
Gabriel não respondeu. Não era capaz de falar.
— Sua esposa é de Veneza, não é?
— É sim, Leah.
— Ela é bonita?
— É, Leah, é muito bonita.
— Gostaria de conhecê-la algum dia.
— Já a conheceu, Leah. Ela veio visitá-la várias vezes.
— Não me lembro dela. Talvez seja melhor assim. — Ela se afastou dele. — Quero falar com a minha mãe — disse. — Quero ouvir o som da voz da minha mãe.
— Vamos ligar para ela, Leah.
— Não deixe de ver se o Dani está bem preso na sua cadeirinha. As ruas estão escorregadias.
— Ele está bem, Leah.
Ela virou o rosto para ele de novo. Então, depois de um momento, perguntou:
— Você tem filhos?
Ele não estava seguro se ela estava no presente ou no passado.
— Não entendi — falou ele.
— Com Chiara.
— Não — respondeu ele. — Não temos filhos.
— Talvez um dia.
— É — ele falou, mas não continuou.
— Me faça uma promessa, Gabriel.
— Qualquer coisa, meu amor.
— Se tiver outro filho, não deve se esquecer do Dani.
— Penso nele todo dia.
— Não penso em nada mais.
Ele sentiu como se os ossos de sua caixa torácica estivessem se quebrando debaixo do peso da pedra que Deus tinha colocado sobre seu coração.
— E quando você sair de Veneza? — perguntou Leah depois de um momento. — O que vai fazer?
— Vou voltar para casa.
— De vez?
— De vez, Leah.
— O que vai fazer? Não há pinturas aqui em Israel.
— Vou ser o chefe do Escritório.
— Achei que Ari era o chefe.
— Isso foi há muito tempo.
— Onde vai viver?
— Aqui em Jerusalém para ficar perto de você.
— Naquele pequeno apartamento?
— Sempre gostei dele.
— Não é grande o suficiente para crianças.
— Vamos encontrar espaço.
— Ainda virá me visitar depois que tiver filhos, Gabriel?
— Sempre que eu puder.
Ela levantou o rosto para o céu sem nuvens.
— Olhe para a neve, Gabriel.
— É — falou ele, chorando baixinho. — Não é linda?
O médico estava esperando por Gabriel na sala comum. Não falou nada até terem voltado à recepção.
— Tem algo que você gostaria de me contar? — perguntou ele.
— Foi tão bem quanto se poderia esperar.
— Para ela ou para você?
Gabriel não falou nada.
— Está tudo bem, sabe — disse o médico depois de um momento.
— O quê?
— Você deve ser feliz.
— Não tenho certeza se sei como.
— Tente — disse o médico. — E se você precisar de alguém para conversar, sabe onde me encontrar.
— Cuide bem dela.
— Sempre cuidarei.
Com isso, Gabriel se entregou ao cuidado de seus seguranças e subiu no banco traseiro da limusine. Era estranho, ele pensou, mas ele não sentia mais vontade de chorar.
Supôs que era isso que significava ser chefe.
30
RUA NARKISS, JERUSALÉM
CHIARA TINHA CHEGADO A Jerusalém apenas uma hora antes de Gabriel e, mesmo assim, o apartamento deles na rua Narkiss já parecia uma fotografia numa dessas revistas
de decoração de casas que ela sempre estava lendo. Havia flores frescas nos vasos e tigelas de aperitivos nas mesinhas, e a taça de vinho que ela colocou na mão
dele estava perfeitamente fria. Os lábios dela, quando o beijou, estavam quentes do sol de Jerusalém.
— Esperava que você chegasse mais cedo — falou ela.
— Tinha umas coisas para fazer.
— Onde você estava?
— No inferno — respondeu ele sério.
Ela franziu a testa.
— Vai ter que me contar sobre isso mais tarde.
— Por que mais tarde?
— Porque temos visitas chegando, querido.
— Preciso perguntar quem é?
— Provavelmente não.
— Como ele soube que tínhamos voltado?
— Ele mencionou algo sobre um arbusto queimando.
— Não pode ser outra noite?
— É muito tarde para cancelar agora. Ele e Gilah já saíram de Tiberíades.
— Suponho que esteja mandando atualizações de sua localização.
— Ele já ligou duas vezes. Está muito animado para vê-lo.
— Eu imagino por quê.
Ele beijou Chiara de novo e levou a taça de vinho para o quarto. As paredes estavam cheias de quadros. Havia quadros de Gabriel, quadros de sua talentosa mãe e vários
quadros de seu avô, o famoso expressionista alemão Viktor Franekel, que foi assassinado em Auschwitz no letal inverno de 1942. Havia também um retrato médio, sem
assinatura, de um jovem homem desolado que parecia assombrado pela sombra da morte. Leah tinha pintado alguns dias depois que Gabriel havia retornado a Israel com
o sangue de seis terroristas do Setembro Negro nas mãos. Foi a primeira e última vez que ele tinha concordado em posar para ela.
“Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes...”
Ele tirou sua roupa debaixo do olhar impiedoso do retrato e ficou parado debaixo do chuveiro até que os últimos traços do toque de Leah tivessem saído de sua pele.
Então colocou roupas limpas e voltou à sala de estar, bem quando Gilah e Ari Shamron estavam entrando pela porta da frente. Gilah trazia um prato de sua famosa berinjela
com condimentos marroquinos; seu famoso marido trazia apenas uma bengala feita de madeira de oliveira. Ele estava vestido, como sempre, com calças cáqui bem passadas,
uma camisa de algodão branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Era óbvio que ele não estava bem, mas seu sorriso expressava contentamento. Shamron
tinha passado anos tentando convencer Gabriel a voltar à Israel para assumir seu lugar no escritório executivo no Boulevard Rei Saul. Agora, tanto tempo depois,
a tarefa estava completa. Seu sucessor estava no lugar. A linhagem estava assegurada.
Ele encostou sua bengala na parede da entrada e, seguido de Gabriel, foi até a pequena varanda onde havia duas cadeiras de ferro debaixo da copa de um eucalipto.
A rua Narkiss estava silenciosa e vazia debaixo deles, mas à distância vinha o barulho do trânsito noturno na King George. Shamron sentou-se com dificuldade em uma
das cadeiras e fez um movimento para que Gabriel se sentasse na outra. Então pegou o maço de cigarros turcos e, com enorme concentração, tirou um. Gabriel olhou
para as mãos de Shamron, as mãos que quase tinham tirado a vida de Adolf Eichmann em uma esquina no norte de Buenos Aires. Foi uma das razões pelas quais Shamron
tinha recebido a missão: o tamanho e força incomuns de suas mãos. Agora elas estavam cheias de manchas dos problemas de fígado e de machucados que não tinham se
curado. Gabriel desviou o olhar enquanto elas lutavam com o velho isqueiro.
— Você não devia fumar, Ari.
— Que diferença faz agora?
Depois que apagou o isqueiro, o cheiro de fumaça turca se misturou ao forte odor do eucalipto. Gabriel foi subitamente inundado por lembranças. Ele tentou mantê-las
à distância, mas não conseguiu; Leah tinha destruído o que restava de suas defesas. Estava dirigindo por um mar de arbustos movidos pelo vento na Cornualha com Shamron
ao seu lado. Era o início de um novo milênio, os dias de ataques suicidas e ilusão. Shamron tinha sido retirado recentemente de sua aposentadoria para reformar o
Escritório depois de uma série de desastres operacionais e queria a ajuda de Gabriel nesse empreendimento. A isca que usou foi Tariq al-Hourani, o mestre terrorista
palestino que tinha plantado a bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena.
“Talvez se você me ajudar a acabar com Tariq, finalmente vai superar o que aconteceu com Leah e continuar com sua vida...”
Gabriel ouviu o som da risada de Chiara na sala e a lembrança se dissolveu.
— O que foi agora? — perguntou ele gentilmente a Shamron.
— A lista dos meus problemas físicos é quase tão longa quanto a lista de desafios que Israel está enfrentando. Mas não se preocupe — acrescentou ele rapidamente.
— Ainda não vou a lugar nenhum. Tenho toda a intenção de estar por aqui para testemunhar o nascimento dos meus netos.
Gabriel resistiu ao impulso de lembrar Shamron de que eles não eram realmente pai e filho.
— Esperamos que esteja lá, Ari.
Shamron sorriu.
— Decidiram onde vão viver depois que eles nascerem?
— Curioso — respondeu Gabriel —, mas Bella me perguntou a mesma coisa.
— Ouvi dizer que foi uma conversa interessante.
— Como sabe que fui vê-la?
— Uzi me contou.
— Achei que ele não estava atendendo suas ligações.
— Parece que começou o grande degelo. É uma das poucas vantagens de ter problemas de saúde — acrescentou ele. — Todas as pequenas queixas e promessas quebradas parecem
desaparecer quando chegamos perto do fim.
Os galhos do eucalipto se moveram com a primeira brisa noturna. O ar estava esfriando a cada minuto. Gabriel sempre adorou a forma como esfriava à noite em Jerusalém,
mesmo no verão. Ele desejou ter o poder de congelar esse momento por um pouco mais de tempo. Olhou para Shamron, que estava batendo seu cigarro pensativo na borda
do cinzeiro.
— Foi preciso muita coragem de sua parte para se sentar e conversar com Bella. E perspicácia, também. Prova que eu estava certo sobre uma coisa o tempo todo.
— O quê, Ari?
— Que você tem tudo para ser um grande chefe.
— Às vezes, eu me pergunto se estou prestes a cometer meu primeiro erro.
— O de manter Uzi com algum poder?
Gabriel assentiu lentamente.
— É arriscado — concordou Shamron. — Mas se há alguém que pode encarar isso, é você.
— Nenhum conselho?
— Já não preciso mais dar conselhos, meu filho. Sou o pior que um homem pode ser, velho e obsoleto. Sou um espectador. Uma vergonha. — Shamron olhou para Gabriel
e franziu a testa. — Sinta-se livre para discordar de mim quando quiser.
Gabriel sorriu, mas não disse nada.
— Uzi me contou que as coisas ficaram um pouco acaloradas entre você e Bella — disse Shamron.
— Lembrou-me o interrogatório que tive que enfrentar aquela noite no Empty Quarter.
— A pior noite da minha vida. — Shamron pensou nisso por um momento. — Na verdade — falou —, foi a segunda pior.
Ele não precisava falar qual tinha sido a primeira. Estava falando de Viena.
— Acho que Bella está mais chateada com tudo isso do que Uzi — continuou ele. — Infelizmente, ela se acostumou demais às armadilhas do poder.
— O que lhe dá essa impressão?
— A forma como se aferra a elas. Ela me culpa por tudo, claro. Acha que planejei isso desde o início.
— E é verdade.
Shamron fez uma cara que ficava em algum ponto entre um sorriso e uma careta.
— Não vai negar? — perguntou Gabriel.
— Nada — respondeu Shamron. — Tive minha cota de triunfos, mas no final, a sua será a carreira usada para medir a de todos os outros. É verdade que tive preferências,
especialmente depois de Viena. Mas minha fé em você foi recompensada com uma série de operações que estavam muito além dos talentos de alguém como Uzi. Certamente
até Bella percebe isso.
Gabriel não falou nada. Estava olhando um menino de dez ou onze anos andando de bicicleta na rua tranquila.
— E agora — falou Shamron — parece que você pode ter encontrado uma forma de atacar as finanças do açougueiro de Damasco. Com um pouco de sorte, será o primeiro
grande triunfo da era de Gabriel Allon.
— Achei que não acreditava em sorte.
— Não acredito. — Shamron acendeu outro cigarro, então, com um movimento do pulso, fechou o isqueiro com um golpe rápido. — O açougueiro tem a crueldade do pai,
mas não possui a mesma inteligência, o que o torna ainda mais perigoso. Nesse ponto, só o dinheiro importa. É o que mantém o clã unido. É por isso que os leais permanecem
leais. É por isso que as crianças estão morrendo aos milhares. Mas se você puder realmente controlar o dinheiro... — Ele sorriu. — As possibilidades serão infinitas.
— Realmente não tem nenhum conselho para mim?
— Mantenha o açougueiro no poder pelo tempo que ele continuar sendo palatável, mesmo remotamente. De outra forma, os próximos anos serão muito interessantes para
você e seus amigos em Washington e Londres.
— Então é assim que termina a Grande Primavera Árabe? — perguntou Gabriel. — Apoiamos um assassino em massa porque ele é o único que pode salvar a Síria da al-Qaeda?
— Longe de mim dizer que avisei, mas previ que a Primavera Árabe iria terminar em desastre e foi o que aconteceu. Os árabes ainda não estão prontos para a verdadeira
democracia, não no momento em que o islamismo radical está em ascensão. O melhor que podemos esperar são regimes autoritários decentes em lugares como Síria e Egito.
— Shamron parou, depois acrescentou: — Quem sabe, Gabriel? Talvez você possa encontrar alguma forma de convencer o dirigente a educar seu povo de forma apropriada
e tratá-los com a dignidade que merecem. Talvez possa obrigá-lo a parar de matar crianças com gás.
— Tem uma coisa que quero dele.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Primeiro encontre o dinheiro — falou Shamron, apagando o cigarro. — E depois o quadro.
Gabriel não falou mais nada. Estava olhando o menino na bicicleta aparecendo e desaparecendo debaixo das sombras no final da rua. Quando o menino sumiu, ele levantou
o rosto para o céu de Jerusalém. “Olhe para a neve”, ele pensou. “Não é linda?”
31
JERUSALÉM
O TOQUE DOS SINOS DA IGREJA acordou Gabriel de um sono sem sonhos. Ele ficou imóvel por um momento, incerto de onde estava. Então viu o retrato taciturno olhando
para ele da parede e percebeu que estava em seu próprio quarto na rua Narkiss. Saiu de debaixo dos lençóis, sem fazer barulho, para não acordar Chiara e foi até
a cozinha. A única prova do jantar da noite anterior era o forte cheiro doce de flores subindo dos vasos. Na pia limpa havia uma cafeteira francesa e uma lata de
Lavazza. Gabriel colocou a chaleira no fogão e ficou esperando a água ferver.
Tomou seu café no terraço e leu os jornais da manhã em seu BlackBerry. Então entrou no banheiro para fazer a barba e tomar banho. Quando saiu, Chiara ainda estava
dormindo profundamente. Ele abriu o guarda-roupa e ficou parado ali por um momento, pensando no que usaria. Um terno, decidiu, era impróprio; poderia enviar a mensagem
às tropas de que ele já estava no comando. No final, decidiu usar a roupa de sempre: um jeans desbotado, um pulôver de algodão e uma jaqueta de couro. Shamron tinha
seu uniforme, pensou, e ele também.
Alguns minutos depois das oito, ouviu o comboio de carros perturbando o silêncio da rua Narkiss. Beijou Chiara suavemente e depois desceu para encontrar a limusine
que o aguardava. Esta o levou para o leste, cruzando Jerusalém até a Porta do Esterco, a entrada principal do Bairro Judeu da Cidade Velha. Ele passou pelos detectores
de metal e, junto com seus guarda-costas, cruzou a praça aberta em direção ao Muro das Lamentações, a tão disputada reminiscência da antiga barreira de retenção
que já tinha cercado o grande Templo de Jerusalém. Em cima do Muro, brilhando com o sol do começo da manhã, estava a dourada Cúpula da Rocha, o terceiro lugar mais
sagrado do islamismo. Havia muitos aspectos no conflito árabe-israelense, mas Gabriel tinha concluído que tudo se resumia a isso — duas fés presas em uma luta mortal
pela mesma parcela de uma terra sagrada. Poderia haver períodos de calma, meses ou até anos sem bombas ou sangue; mas Gabriel temia que nunca haveria paz.
A porção do Muro das Lamentações visível da praça tinha 57 metros de largura e 19 metros de altura. O verdadeiro muro ao redor da colina do Monte do Templo, no entanto,
era muito mais longo, descendo uns 13 metros depois da praça e se estendendo mais uns quatrocentos metros até o Bairro Muçulmano, onde estava escondido por trás
de estruturas residenciais. Depois de anos de escavações arqueológicas cheias de problemas políticos e religiosos, agora era possível caminhar por quase toda a extensão
do muro através do Túnel do Muro das Lamentações, uma passagem subterrânea que ia da praça até a Via Dolorosa.
A entrada do túnel estava do lado esquerdo da praça, não muito longe do Arco de Wilson. Gabriel passou pela moderna porta de vidro e, seguido por seus guarda-costas,
desceu uma escada de alumínio até o porão. Um caminho recentemente pavimentado seguia a base do muro. Ele o seguiu passando pelas enormes pedras do tempo de Herodes
até chegar a uma seção do túnel que estava escondida por uma cortina de plástico opaco. Além da cortina havia uma cova de escavação retangular onde uma figura solitária,
um homem pequeno de meia idade, mexia no solo sob um cone de suave luz branca. Ele pareceu não ter percebido a presença de Gabriel, mas foi só impressão. Seria mais
fácil surpreender um esquilo do que Eli Lavon.
Outro momento se passou antes de Lavon levantar a cabeça e sorrir. Ele tinha o cabelo ralo e desgrenhado, um rosto quase sem traços que mesmo o artista mais talentoso
teria dificuldades para capturar na tela. Eli Lavon era um fantasma, um camaleão que facilmente passava despercebido e logo era esquecido. Shamron já tinha dito
que ele poderia desaparecer enquanto apertava sua mão. Não estava muito longe da verdade.
Gabriel tinha trabalhado com Lavon pela primeira vez na Ira de Deus, a operação secreta da inteligência israelense para caçar e matar os autores do massacre das
Olimpíadas de Munique. No léxico da equipe, baseado no hebreu, Lavon tinha sido um ayin, um rastreador e artista da vigilância. Durante três anos ele tinha seguido
os terroristas do Setembro Negro por toda a Europa e Oriente Médio, geralmente com uma proximidade perigosa. O trabalho o deixou com várias desordens por estresse,
incluindo um famoso estômago instável que o incomodava até hoje.
Quando a unidade foi dissolvida em 1975, Lavon se estabeleceu em Viena, onde abriu uma pequena unidade investigativa chamada Alegações e Investigações da Época da
Guerra. Operando com um orçamento baixíssimo, ele conseguiu encontrar bens saqueados no Holocausto valendo milhões de dólares e teve um papel importante num acordo
multibilionário com os bancos suíços. O trabalho fez com que ganhasse poucos admiradores em Viena e, em 2003, uma bomba explodiu em seu escritório, matando duas
jovens funcionárias. Abalado, ele voltou a Israel para seguir sua primeira paixão, que era a arqueologia. Ele agora era professor adjunto na Universidade Hebraica
e participava regularmente em escavações por todo o país. Tinha passado a maior parte dos dois últimos anos remexendo o solo do Túnel do Muro das Lamentações.
— Quem são seus amiguinhos? — perguntou ele, olhando para os guarda-costas parados nas pontas da cova.
— Eu encontrei os dois perdidos na praça.
— Não vão estragar nada, vão?
— Não ousariam.
Lavon olhou para o chão e recomeçou a trabalhar.
— O que você tem aí? — perguntou Gabriel.
— Umas moedas perdidas.
— Quem deixou cair?
— Alguém muito bravo pelo fato de que os persas estavam a ponto de conquistar Jerusalém. É óbvio que estava com pressa.
Lavon esticou o braço e ajustou o ângulo de sua lâmpada de trabalho. O fundo da vala brilhou com os dourados pedacinhos encrustados.
— O que são? — perguntou Gabriel.
— Trinta e seis moedas de ouro da era bizantina e um grande medalhão com um menorá. Provam que os judeus viviam aqui antes da conquista muçulmana de Jerusalém em
638. Para a maioria dos arqueólogos bíblicos, isso seria a descoberta de toda uma vida. Mas não para mim. — Lavon olhou para Gabriel e acrescentou: — Nem para você.
Gabriel olhou sobre o ombro dele para as pedras do Muro. Um ano antes, numa câmara secreta de cinquenta metros debaixo da superfície do Monte do Templo, ele e Lavon
tinham descoberto 22 pilares do Templo de Jerusalém de Salomão, provando assim, sem nenhuma dúvida, que o antigo santuário judeu, descrito no Livro dos Reis e nas
Crônicas, tinha realmente existido. Eles também tinham descoberto uma enorme bomba que, se tivesse detonado, teria destruído todo o sagrado planalto. Os pilares
agora estavam em uma exibição de alta segurança no Museu de Israel. Um deles teve de ser especialmente limpo antes de ser posto em exposição porque estava manchado
com o sangue de Lavon.
— Recebi uma ligação do Uzi na noite passada — falou Lavon depois de um momento. — Ele me contou que você poderia dar uma passada.
— Falou o motivo?
— Mencionou algo sobre um Caravaggio perdido e uma empresa chamada LXR Investments. Falou que você estava interessado em adquiri-la, junto com o resto da Mal S.A.
— Pode ser feito?
— Não dá para fazer muita coisa de fora. No final, você vai precisar da ajuda de alguém que possa entregar as chaves do reino.
— Então nós vamos encontrar essa pessoa.
— Nós? — Quando Gabriel não respondeu, Lavon se inclinou e começou a mexer no solo ao redor de uma das moedas antigas. — O que precisa que eu faça?
— Exatamente o que você está fazendo agora — respondeu Gabriel. — Mas quero que use um computador e um balanço financeiro em vez de uma espátula e um pincel.
— Hoje em dia, prefiro uma espátula e um pincel.
— Eu sei, Eli, mas não vou conseguir fazer isso sem você.
— Não vai ser nada difícil, vai?
— Não, Eli, claro que não.
— Você sempre fala isso, Gabriel.
— E?
— Sempre é.
Gabriel se abaixou e desconectou a lâmpada de sua fonte de energia. Lavon trabalhou na escuridão por mais um momento. Então se levantou, limpou as mãos nas calças
e saiu da cova.
Um solteirão, Lavon mantinha um pequeno apartamento no distrito Talpiot de Jerusalém, na estrada para Hebron. Eles pararam ali tempo suficiente para que vestisse
roupas limpas e depois seguiram pela Bab al-Wad até o Boulevard Rei Saul. Depois de entrarem no edifício “preto”, eles subiram três lances de escadas e caminharam
por um corredor sem janelas até uma porta com a inscrição 456C. A sala do outro lado já tinha sido um depósito para computadores obsoletos e móveis velhos, geralmente
usados pela equipe noturna como um ponto de encontro clandestino para relações românticas. Agora era conhecido por todos no Boulevard Rei Saul apenas como o Covil
de Gabriel.
O código para a fechadura era a versão numérica da data de aniversário de Gabriel, que tinha a reputação de ser o segredo mais bem guardado do Escritório. Com Lavon
olhando por cima do ombro, ele digitou o código e abriu a porta. Lá dentro estava Dina Sarid, uma mulher pequena, de cabelos escuros com um ar de viúva precoce.
Um banco de dados humano, ela era capaz de recitar a hora, lugar, perpetradores e números de baixas de todo ato de terrorismo cometido contra alvos israelenses e
ocidentais. Dina já tinha dito a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles mesmos. E Gabriel acreditava nela.
— Onde estão os outros? — perguntou ele.
— Presos em Recursos Humanos.
— Qual é o problema?
— Aparentemente, os chefes de divisão estão revoltados. — Dina parou, então acrescentou: — Isso é o que acontece com um serviço de inteligência quando se espalha
que o chefe não vai durar.
— Talvez eu deva subir e conversar com os chefes de divisão.
— Espere alguns minutos.
— Tem sido tão ruim assim?
— Criei uma lista de agentes da al-Qaeda que se estabeleceram ao lado na Síria — jihadistas globais sérios que precisam ser tirados de circulação permanentemente.
E adivinha o que acontece sempre que proponho uma operação?
— Nada.
Dina assentiu lentamente.
— Estamos congelados no tempo — falou ela. — Estamos marcando passo justamente no momento que menos podemos.
— Isso vai acabar, Dina.
Bem nesse momento a porta se abriu e Rimona Stern entrou na sala. Mikhail Abramov apareceu logo depois, seguido alguns minutos mais tarde por Yaakov Rossman, que
parecia não dormir há um mês. Em seguida, apareceu um par de agentes de campo chamados Mordecai e Oded, seguidos por Yossi Gavish, um homem alto e careca vestido
com cotelê e tweed. Yossi era um alto funcionário de Pesquisa, que é como o Escritório chamava sua divisão analítica. Nascido na região Golders Green de Londres,
ele tinha estudado em Oxford e ainda falava hebraico com um forte sotaque inglês.
Dentro dos corredores e salas de conferência do Boulevard Rei Saul, os oito homens e mulheres reunidos na sala subterrânea eram conhecidos pelo codinome Barak, a
palavra em hebreu para raio, por sua habilidade incomum de se reunir e atacar rapidamente. Eram um serviço dentro do serviço, uma equipe de agentes sem igual e sem
medo de nada. Durante sua existência, tinha às vezes sido necessário admitir gente de fora no meio deles — um jornalista investigativo britânico, um bilionário russo,
a filha de um homem que tinham matado —, mas nunca antes tinham permitido que outro agente do Escritório se juntasse à sua fraternidade. Portanto, ficaram surpresos
quando, assim que o relógio marcou dez horas, Bella Navot apareceu na porta. Estava vestida para a reunião com uma calça cinza e trazia uma pasta de arquivos ao
peito. Ficou parada na porta por um momento, como se esperasse um convite para entrar, antes de se sentar, sem falar nada, perto de Yossi em uma das mesas de trabalho
comuns.
Se a equipe achou estranha a presença de Bella, não deu nenhum sinal disso quando Gabriel se levantou e caminhou até o último quadro-negro existente em todo o Boulevard
Rei Saul. Nele estavam escritas três palavras: SANGUE NUNCA DORME. Apagou-as com um único movimento da mão e no lugar escrever as letras LXR. Então contou à equipe
a incrível série de eventos que tinham levado àquela reunião, começando com o assassinato de um espião britânico transformado em ladrão de arte chamado Jack Bradshaw
e terminando com o bilhete que Bradshaw tinha deixado para Gabriel em seu cofre no Freeport de Genebra. Na morte, Bradshaw tinha tentado corrigir seus pecados ao
dar a Gabriel a identidade do homem que estava comprando quadros roubados a rodo: o criminoso dirigente da Síria. Também tinha fornecido a Gabriel o nome da empresa
de fachada que o dirigente tinha usado para essas compras: LXR Investments of Luxembourg. Certamente, a LXR era apenas uma pequena estrela numa galáxia de riqueza
global, sendo que boa parte dela estava cuidadosamente escondida por baixo de camadas de armações e empresas de fachada. Mas uma rede de riqueza, assim como uma
de rede de terroristas, precisava ter uma cabeça operativa habilidosa para funcionar. O dirigente tinha confiado o dinheiro de sua família a Kemel al-Farouk, o guarda-costas
do pai do dirigente, o assistente que torturava e matava sob o comando do regime. Mas Kemel não podia administrar o dinheiro ele mesmo, não com a NSA e seus sócios
monitorando cada movimento seu. Em algum lugar, havia um homem de confiança — um advogado, um banqueiro, um parente — que tinha o poder de mover esses bens como
quisesse. Usariam a LXR como uma forma de encontrá-lo. E Bella Navot iria guiá-los em todos os passos.


CONTINUA

22
ÎLE SAINT-LOUIS, PARIS
– EU GOSTARIA DE COMEÇAR ESSA Conversa, sr. Bartholomew, dando-lhe meus parabéns. Foi uma transação impressionante que você e seus homens realizaram em Amsterdã.
— Quem disse que não fiz isso sozinho?
— Não é o tipo de coisa que alguém faz sozinho. Certamente teve ajuda — acrescentou Sam. — Como seu amigo que estava no telefone comigo. Ele fala francês muito bem,
mas não é francês, é?
— Que diferença isso faz?
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios.
— Isso não é a Harrods, querido.
Sam olhou a rua com a calma de um turista que tinha visitado muitos museus em pouco tempo.
— Ele está aí fora em algum lugar, não está?
— Não saberia dizer.
— E há outros?
— Vários.
— E mesmo assim exigiram que eu viesse sozinho.
— É o vendedor quem manda.
— Foi o que ouvi.
Sam retomou sua inspeção da rua. Ainda estava de chapéu e óculos escuros, o que deixava apenas a parte inferior do seu rosto visível. Estava com a barba bem feita.
As bochechas eram altas e proeminentes, o queixo forte, os dentes brancos e perfeitos. Suas mãos não tinham cicatrizes ou tatuagens. Não usava anéis nos dedos ou
braceletes nos pulsos, só um grande Rolex dourado para indicar que era um homem de posses. Tinha os maneirismos refinados de um árabe bem nascido, mas um tanto grosseiro.
— Ouvimos outras coisas também — continuou Sam depois de um momento. — Aqueles que viram a mercadoria dizem que você conseguiu tirá-la de Amsterdã com danos mínimos.
— Nenhum, na verdade.
— Também ouvimos que há Polaroids.
— Onde ouviu isso?
Sam deu um sorriso desagradável.
— Isso vai demorar muito mais do que o necessário se você insistir nesses jogos, sr. Bartholomew.
— Gosto de saber com quem estou fazendo negócios — disse Keller, enfático.
— Está pedindo informações sobre o homem que represento, sr. Bartholomew?
— Nem sonharia em fazer isso.
Houve um silêncio.
— Meu cliente é um empresário — falou Sam finalmente. — Bastante bem-sucedido, bastante rico. Também ama as artes. Coleciona muito, mas como muitos colecionadores
sérios, foi ficando frustrado com o fato de que não há mais bons quadros à venda. Ele quer há muitos anos adquirir um Van Gogh. Você agora tem um muito bom. Meu
cliente gostaria de tê-lo.
— Assim como muitas outras pessoas.
Sam pareceu não se perturbar com isso.
— E você? — perguntou depois de um momento. — Por que não me fala um pouco sobre você?
— Roubo coisas para viver.
— É inglês?
— Infelizmente.
— Sempre gostei dos ingleses.
— Não vou usar isso contra você.
Apareceu um garçom que entregou o menu. Sam pediu uma garrafa de água mineral; Keller, uma taça de vinho que não tinha intenção de beber.
— Quero deixar uma coisa clara desde o começo — falou quando ficaram novamente sozinhos. — Não estou interessado em drogas, armas ou garotas, nem em um condomínio
em Boca Raton, na Flórida. Só aceito dinheiro.
— De quanto dinheiro estamos falando, sr. Bartholomew?
— Tenho uma oferta de vinte milhões na mesa.
— Que sabor?
— Euros.
— É uma oferta firme?
— Deixei a venda em espera para me encontrar com você.
— Que lisonjeiro. Por que faria algo assim?
— Porque ouvi falar que seu cliente, quem quer que seja, é um homem com bolsos bem grandes.
— Bem grandes. — Outro sorriso, só um pouco mais agradável que o primeiro. — Então como quer continuar, sr. Bartholomew?
— Preciso saber se está interessado em aumentar a oferta que está na mesa.
— Estou.
— Quanto mais?
— Acho que poderia oferecer algo trivial, como um adicional de quinhentos mil, mas meu cliente não gosta de leilões. — Fez uma pausa, então perguntou: — Será que
25 milhões seriam suficientes para tirar o quadro da mesa?
— Seriam, Sam.
— Excelente — falou. — Agora seria um bom momento para você me mostrar as Polaroids.
As Polaroids estavam no porta-luvas de uma Mercedes alugada estacionada em uma rua calma atrás de Notre Dame. Keller e Sam caminharam até lá juntos e entraram, Keller
atrás do volante, Sam no banco do passageiro. Keller submeteu-o a uma rápida e completa inspeção antes de abrir o porta-luvas e pegar as fotos. Eram quatro ao todo
— uma da obra inteira, três mostrando os detalhes. Sam olhou para elas cético.
— Parece o Van Gogh que está pendurado em cima da cama no meu hotel.
— Não é.
Fez uma careta para indicar que não estava convencido.
— A pintura nessa fotografia poderia ser uma cópia. E você poderia ser um trapaceiro inteligente que está querendo ganhar em cima do roubo em Amsterdã.
— Tire seus óculos escuros e dê uma olhada melhor, Sam.
— É o que pretendo. — Entregou as fotos de volta a Keller. — Preciso ver o quadro real, não fotografias.
— Não tenho um museu, Sam.
— O que quer dizer?
— Não posso mostrar o Van Gogh a qualquer um que queira vê-lo. Preciso saber se você está falando sério.
— Ofereci 25 milhões de euros em dinheiro por ele.
— É fácil oferecer 25 milhões, Sam. Entregar é outra coisa.
— Meu cliente é um homem de riqueza extraordinária.
— Então tenho certeza de que ele não lhe enviou a Paris de mãos vazias. — Keller devolveu as fotos ao porta-luvas e o trancou.
— É dessa forma que seu golpe funciona? Exige ver o dinheiro antes de mostrar o quadro e depois rouba?
— Se fosse um golpe, você e seu cliente já saberiam disso.
Não tinha respostas para aquilo.
— Não consigo mais de dez mil em dinheiro em tão pouco tempo.
— Quero ver um milhão.
Ele bufou, como se dissesse que um milhão era impossível.
— Se você quiser ver um Van Gogh por menos de um milhão — falou Keller — pode ir ao Louvre ou ao Musée d’Orsay. Mas se quiser ver o meu Van Gogh, vai ter que me
mostrar o dinheiro.
— Não é seguro andar pelas ruas de Paris com essa quantidade de dinheiro.
— Algo me diz que você sabe se cuidar muito bem.
Sam deu um suspiro capitulador.
— Onde e quando?
— Saint-Germain-des-Prés, duas da tarde. Sem amigos. Sem armas.
Sam saiu do carro sem falar nada e foi embora.
Ele cruzou o Sena para a margem direita e caminhou pela rue de Rivoli, passando a ala norte do Louvre, até o Jardin des Tuileries. Passou boa parte desse tempo no
telefone e duas vezes realizou um movimento elementar de espiões para ver se estava sendo seguido. Mesmo assim, não pareceu notar Gabriel caminhando cinquenta metros
atrás dele.
Antes de chegar a Jeu de Paume, cortou para a rue Saint-Honoré e entrou em uma loja exclusiva que vendia caros produtos de couro para homens. Saiu dez minutos depois
com uma mala nova, que carregou até uma filial do HSBC Private Bank no boulevard Haussmann. Ficou ali precisamente 22 minutos, e quando saiu, a mala parecia mais
pesada que quando tinha entrado. Ele a levou com cuidado até a Place de la Concorde e depois através da grande entrada do hôtel de Crillon. Vendo de longe, Gabriel
sorriu. Só o melhor para o representante do sr. Grandão. Enquanto se afastava, ligou para Keller e contou as novidades. O jogo tinha começado, falou. Definitivamente
o jogo tinha começado.
23
BOULEVARD SAINT-GERMAIN, PARIS
ELE ESTAVA PARADO DO LADO DE FORA DA porta vermelha da igreja às duas da tarde seguinte, com seu chapéu e óculos escuros firmemente no lugar e a nova maleta segura
na mão direita. Gabriel esperou cinco minutos antes de ligar.
— Você de novo — falou Sam desanimado.
— Infelizmente.
— E agora?
— Vamos dar outra volta.
— Para onde agora?
— Siga a rue Bonaparte até a place Saint-Sulpice. Mesmas regras da última vez. Não faça nenhuma parada e não olhe para trás. Sem ligações também.
— Até onde você pretende me levar dessa vez?
Gabriel desligou sem falar nada. Do outro lado da praça lotada, Sam começou a caminhar. Gabriel contou lentamente até vinte e o seguiu.
Deixou Sam caminhar até os Jardins de Luxemburgo antes de ligar de novo. Dali, foram para o sudoeste pela rue de Vaugirard, depois para o norte no boulevard Raspail
até a entrada do hôtel Lutetia. Keller estava sentado na mesa do bar, lendo o Telegraph. Sam se uniu a ele, como tinha sido instruído.
— Como ele foi dessa vez? — perguntou Keller.
— Tão meticuloso como sempre.
— Posso pedir algo para você beber?
— Não bebo.
— Que pena. — Keller dobrou seu jornal. — É melhor tirar esses óculos escuros, Sam. Do contrário, a gerência vai ter a impressão errada sobre você.
Ele fez o que Keller sugeriu. Seus olhos eram castanhos claros e grandes. Com o rosto exposto, era uma figura muito menos ameaçadora.
— Agora o chapéu — falou Keller. — Um cavalheiro não usa um chapéu no bar do Lutetia.
Ele tirou o chapéu, revelando uma cabeça com muito cabelo, marrom, não negro, com toques grisalhos ao redor das orelhas. Se era árabe, não era da península ou do
golfo. Keller olhou para a maleta.
— Trouxe o dinheiro?
— Um milhão, como você pediu.
— Deixe-me dar uma olhada. Mas com cuidado — acrescentou Keller. — Há uma câmera de segurança em cima do seu ombro direito.
Sam colocou a maleta na mesa, abriu os trincos e levantou a tampa dois centímetros, o suficiente para Keller dar uma olhada nas fileiras bem organizadas de notas
de cem euros.
— Pode fechar — falou Keller, em voz baixa.
Sam fechou e travou a maleta.
— Satisfeito? — perguntou ele.
— Ainda não. — Keller se levantou.
— Para onde agora?
— Meu quarto.
— Vai ter mais alguém?
— Seremos apenas nós dois, Sam. Muito romântico.
Sam se levantou e pegou a maleta.
— Acho que é importante deixar algo claro antes de subirmos.
— O que é, Sam?
— Se algo acontecer comigo ou com o dinheiro do meu cliente, você e seu amigo vão sofrer muito. — Ele colocou os óculos escuros e sorriu. — Só para nos entendermos,
querido.
No hall de entrada do quarto, longe dos olhos das câmeras de vigilância do hotel, Keller revistou Sam à procura de armas ou aparelhos de gravação. Sem encontrar
nada importante, colocou a maleta na beira da cama e abriu os trincos. Então, tirou três pacotes de dinheiro e, de cada um, uma nota. Inspecionou cada nota com lentes
de aumento profissionais; depois, no banheiro escuro, submeteu-as à lâmpada ultravioleta de Gabriel. As fitas de segurança brilharam verde limão; as notas eram genuínas.
Ele devolveu as notas a seus pacotes e estes à maleta. Então fechou os trincos e, com um aceno de cabeça, indicou que estavam prontos para passar ao próximo passo.
— Quando? — perguntou Sam.
— Amanhã à noite.
— Tenho uma ideia melhor — falou ele. — Vamos hoje à noite. Ou então, não tem acordo.
Maurice Durand tinha dito para esperarem algo assim — uma pequena jogada tática, uma rebeldia simbólica, que permitiria a Sam sentir que era ele, e não Keller, que
estava controlando o processo de negociação. Keller recusou gentilmente, mas Sam bateu o pé. Queria estar na frente do Van Gogh antes da meia-noite; se não estivesse,
ele e seus 25 milhões de euros desapareceriam. O que não deixou a Keller outra opção a não ser aceitar os desejos de seu oponente. Fez isso com um sorriso de concessão,
como se a mudança de planos fosse pouco mais que uma inconveniência. Então rapidamente estabeleceu as regras para mostrá-lo essa noite. Sam poderia tocar o quadro,
cheirar o quadro ou fazer amor com o quadro. Mas sob nenhuma circunstância poderia fotografá-lo.
— Onde e quando? — perguntou Sam.
— Vamos ligar às nove e dizer como proceder.
— Tudo bem.
— Onde você está hospedado?
— O senhor sabe exatamente onde estou hospedado, sr. Bartholomew. Vou estar no lobby do Crillon às nove da noite, sem amigos, sem armas. E diga para seu amigo não
me deixar esperando dessa vez.
Ele saiu do hotel dez minutos depois, com seu chapéu e óculos escuros, e caminhou até o HSBC Private Bank no boulevard Haussmann, onde, supostamente, devolveu o
um milhão de euros ao cofre do seu cliente. Depois, caminhou a pé até o Musée d’Orsay e passou as duas horas seguintes estudando os quadros de um tal Vincent van
Gogh. Quando saiu do museu, eram quase seis. Comeu um jantar leve em um bistrô no Champs-Élysées e depois voltou ao seu quarto no Crillon. Como prometido, estava
no lobby às nove horas em ponto, vestido com calça cinza, um pulôver negro e uma jaqueta de couro. Gabriel sabia disso porque estava sentado a poucos passos, no
bar. Esperou dois minutos depois das nove antes de ligar para o número de Sam.
— Sabe usar o metrô de Paris?
— Claro.
— Caminhe até a estação Concorde e pegue o número 12 até Marx Dormoy. O sr. Bartholomew estará esperando por você.
Sam saiu do lobby. Gabriel ficou no bar por outros cinco minutos. Então pegou seu carro com o manobrista e foi até a casa de campo na Picardia.
A estação Marx Dormoy estava localizada no oitavo Arrondissement, na rue de la Chapelle. Keller estava estacionado do outro lado da rua fumando um cigarro quando
Sam subiu a escada. Caminhou até o carro e entrou no lado do passageiro sem uma palavra.
— Onde está seu celular? — perguntou Keller.
Sam tirou do bolso do casaco e mostrou a Keller.
— Desligue e tire o chip.
Sam obedeceu. Keller pôs o carro em movimento e avançou pelo trânsito noturno.
Ele permitiu que Sam ficasse no banco do passageiro até chegarem aos subúrbios do norte. Então, parou perto de algumas árvores antes da cidade de Ézanville e mandou
que ele entrasse no porta-malas. Pegou o caminho mais longo até a Picardia, acrescentando pelo menos uma hora à viagem. Como resultado, era quase meia-noite quando
ele chegou à casa de campo. Quando Sam saiu do porta-malas, viu a silhueta de um homem parado sob a luz da lua na entrada da propriedade.
— Imagino que seja seu sócio.
Keller não respondeu. Em vez disso, levou-o até a porta traseira da propriedade e desceu um lance de escada até a adega. Encostado em uma parede, iluminado por uma
lâmpada pendurada de um fio, estava Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Vincent van Gogh. Sam ficou parado na frente dele por um longo momento
sem falar. Keller permaneceu ao seu lado.
— Então? — perguntou ele finalmente.
— Num minuto, sr. Bartholomew. Num minuto.
Finalmente, deu um passo, pegou o quadro pelas laterais e virou para examinar as marcas do museu na parte de trás da tela. Então olhou para as pontas do quadro e
fez uma careta.
— Algo errado? — perguntou Keller.
— Vincent era famoso por ser descuidado na forma como tratava seus quadros. Olha aqui — acrescentou ele, virando as pontas do quadro para Keller. — Ele deixou suas
digitais por todo lado.
Sam sorriu, segurou o quadro perto da luz e passou vários minutos examinando cuidadosamente as pinceladas. Em seguida, colocou-o em sua posição original e deu um
passo para trás, a fim de observar à distância. Dessa vez, Keller não interrompeu seu silêncio.
— Espetacular — falou depois de um momento.
— E real — acrescentou Keller.
— Poderia ser. Ou poderia ser o trabalho de um falsificador muito talentoso.
— Não é.
— Vou precisar realizar um teste simples para ter certeza, uma análise de lasca de tinta. Se o quadro for genuíno, fechamos negócio. Se não for, você nunca mais
vai ouvir falar de mim, deixando-o livre para empurrá-lo a um comprador menos sofisticado.
— Quanto tempo vai levar?
— Setenta e duas horas.
— Você tem 48.
— Não vai me apressar, sr. Batholomew. Nem meu cliente.
Keller hesitou antes de assentir uma vez. Usando um bisturi cirúrgico, Sam removeu com cuidado dois pequenos pedaços de tinta da tela — um da parte inferior direita,
a outra da parte inferior esquerda — e colocou-as em um frasco de vidro. Então enfiou o frasco no bolso do casaco e, seguido por Keller, subiu as escadas. Do lado
de fora, a figura em silhueta ainda estava parada na porta da casa.
— Vou conhecer seu sócio? — perguntou Sam.
— Não aconselho — respondeu Keller.
— Por que não?
— Porque seria o último rosto que você veria.
Sam franziu a testa e entrou no porta-malas da Mercedes. Keller fechou o trinco e voltou a Paris.
Eram todas operações conhecidas, cada uma de natureza específica, mas eles mais tarde diriam que os três dias seguintes passaram com a velocidade de um rio congelado.
O conhecido autodomínio de Gabriel o abandonou. Ele tinha organizado o roubo de um dos quadros mais famosos do mundo como parte de um golpe para encontrar outro;
e mesmo assim tudo poderia não dar em nada se o homem chamado Sam desistisse do negócio. Só Maurice Durand, talvez o especialista mais conhecido no comércio ilícito
de arte, continuava confiante. Em sua experiência, colecionadores sujos como o sr. Grandão raramente desistiam da chance de comprar um Van Gogh. Claro, ele falou,
a isca do Doze Girassóis numa Jarra era muito forte para resistir. A menos que Gabriel tivesse mostrado a Sam a falsificação por erro, o que não tinha, a análise
da tinta seria positiva e o negócio continuaria.
Eles tinham outra opção caso Sam desistisse; poderiam segui-lo e tentar determinar a identidade de seu cliente, o homem de grande riqueza que estava disposto a pagar
25 milhões de euros por uma obra de arte roubada. Era só uma das razões pelas quais Gabriel e Keller, dois dos homens mais experientes em vigilância do mundo, monitoraram
cada movimento de Sam durante os três dias de espera. Vigiavam de manhã enquanto ele caminhava pelos passeios de Tuileries, à tarde enquanto visitava as atrações
turísticas para manter seu disfarce e à noite quando jantava, sempre sozinho, na Champs-Élysées. A impressão que dava era de disciplina. Em algum momento de sua
vida, Keller e Gabriel concordaram, Sam tinha sido membro da irmandade secreta de espiões. Ou talvez, pensaram, ainda seja.
Na manhã do terceiro dia, ele deu um susto nos dois quando não apareceu para sua caminhada usual. Ficaram mais preocupados às quatro da tarde quando viram como ele
saía do Crillon com duas grandes malas e subia em uma limusine. Mas a preocupação rapidamente desapareceu quando o carro o levou até o HSBC Private Bank no boulevard
Haussmann. Trinta minutos depois, ele estava de volta ao seu quarto. Havia somente duas possibilidades, falou Keller. Ou Sam tinha realizado o mais silencioso roubo
de banco da história ou tinha acabado de retirar uma grande soma em dinheiro de um cofre. Keller suspeitava que fosse a segunda opção. Assim como Gabriel. Portanto,
o suspense era pouco quando chegou a hora de Sam finalmente ligar com uma resposta. Keller fez as honras. Quando a ligação terminou, ele olhou para Gabriel e sorriu.
— Podemos nunca encontrar o Caravaggio — disse ele —, mas acabamos de tirar 25 milhões de euros do sr. Grandão.
24
CHELLES, FRANÇA
MAS HAVIA UMA CONDIÇÃO: Sam se reservava o direito de escolher a hora e o lugar da troca de dinheiro e mercadoria. A hora, ele falou, seria onze e meia da noite
seguinte. O lugar seria um depósito em Chelles, uma comuna apagada no leste de Paris. Keller dirigiu até lá na manhã seguinte enquanto o resto do norte da França
estava viajando para o centro da cidade. O depósito estava onde Sam tinha dito que estaria, na avenida François Miterrand, bem em frente a uma concessionária Renault.
Havia uma placa apagada onde se lia EUROTRANZ, apesar de que não havia nenhuma indicação do tipo de serviços que a empresa realizava. Pombas entravam e saíam das
janelas quebradas; havia muitos arbustos crescendo por trás das barras do portão de ferro. Keller desceu do carro e inspecionou o portão automático. Há muito tempo
ninguém o abria.
Ele passou uma hora fazendo um reconhecimento de rotina nas ruas ao redor do depósito e depois seguiu para o norte até a casa de campo em Andeville. Quando chegou,
encontrou Gabriel e Chiara descansando no jardim ensolarado. Os dois Van Gogh estavam encostados na parede na sala.
— Ainda não sei como você consegue diferenciar um do outro — falou Keller.
— É bastante óbvio, não acha?
— Não.
Gabriel inclinou a cabeça para o quadro da direita.
— Tem certeza?
— Estas são minhas digitais nas laterais da tela, não as de Vincent. E tem isso.
Gabriel ligou seu BlackBerry do Escritório e o segurou perto do canto superior direito da tela. A tela piscou vermelha, indicando a presença de um transmissor escondido.
— Tem certeza da distância? — perguntou Keller.
— Testei de novo essa manhã. Funciona perfeitamente a dez quilômetros.
Keller olhou para o Van Gogh genuíno.
— Pena que ninguém pensou em colocar um rastreador nesse.
— É — falou Gabriel, distante.
— Quanto tempo você pensa ficar com ele?
— Nem um dia a mais do que o necessário.
— Quem vai guardá-lo enquanto seguimos a falsificação?
— Estava querendo deixá-lo na embaixada em Paris — falou Gabriel —, mas o chefe de estação não quer nem saber. Então tive que organizar outra coisa.
— Que coisa?
Quando Gabriel respondeu, Keller balançou a cabeça.
— É um pouco estranho, não acha?
— A vida é complicada, Christopher.
Keller sorriu.
— Nem me fale.
Eles deixaram a exótica casa de campo pela última vez às oito da noite. A cópia do Doze Girassóis numa Jarra estava no porta-malas da Mercedes de Keller; o Van Gogh
autêntico estava no de Gabriel. Ele o entregou a Maurice Durand em sua loja na rue de Miromesnil. Então deixou Chiara no apartamento seguro com vista para Pont Marie
e partiu para a comuna de Chelles.
Chegou alguns minutos antes das onze e foi até o depósito na avenida François Mitterrand. Era uma parte da cidade onde havia pouca vida nas ruas quando escurecia.
Ele circulou duas vezes a propriedade, procurando evidências de vigilância ou algo que sugeria que Keller estava a ponto de cair em uma armadilha. Sem encontrar
nada fora do comum, procurou um bom ponto de observação onde um homem sentado sozinho não atrairia a atenção da polícia. A única opção era um parque onde uns skatistas
estavam bebendo cerveja. De um lado do parque havia uma fileira de bancos iluminados por lâmpadas amareladas. Gabriel estacionou o carro na rua e se sentou no banco
mais perto da entrada da Eurotranz. Os skatistas olharam para ele estranhando por um momento antes de voltarem a discutir as questões do dia. Gabriel olhou para
seu relógio. Eram 11h05. Aí consultou seu BlackBerry. O sinal ainda não estava dentro do alcance.
Erguendo a cabeça, viu os faróis de um carro na avenida. Um pequeno Citröen vermelho passou pela entrada da Eurotranz e seguiu pela beira do parque, deixando a vibração
do hip-hop francês no ar. Atrás vinha outro carro, uma BMW preta tão limpa que parecia ter sido recentemente lavada para a ocasião. Parou no portão e o motorista
desceu. No escuro era impossível ver seu rosto, mas pela constituição e movimento era um sósia de Sam.
Ele apertou o teclado algumas vezes com a confiança de um homem que conhece a combinação há muito tempo. Então voltou a subir no carro, esperou o portão abrir, e
entrou. Parou enquanto o portão se fechava e depois foi até a entrada do depósito. Novamente, desceu do carro e apertou o teclado de segurança com uma velocidade
que sugeria familiaridade. Quando a porta se abriu, ele entrou com o carro e desapareceu de vista.
No pequeno parque escuro, a chegada de um carro de luxo em um depósito abandonado na avenida François Mitterand passou despercebida por todo mundo, exceto pelo homem
de meia idade sentado sozinho. O homem olhou para seu relógio e viu que eram 23h08. Aí consultou seu BlackBerry. A luz vermelha estava piscando e vindo em sua direção.
Keller chegou exatamente às onze e meia da noite. Ligou para o celular de Sam e o portão se abriu. Um caminho de asfalto com buracos se abria na frente dele, vazio,
escuro. Ele avançou lentamente e, seguindo as instruções de Sam, embicou o carro no depósito. Do lado oposto de um espaço do tamanho de um campo de futebol brilhavam
os faróis baixos de uma BMW. Keller podia ver a figura de um homem inclinado sobre o capô, com um telefone ao ouvido e duas grandes malas aos pés. Não havia mais
ninguém visível.
— Pare aí — falou Sam.
Keller pisou no freio.
— Desligue o motor e apague os faróis.
Keller fez como instruído.
— Saia do carro e fique onde eu possa vê-lo.
Keller saiu devagar e ficou parado na frente do carro. Sam enfiou a mão dentro da BMW e acendeu os faróis.
— Tire seu casaco.
— Isso é realmente necessário?
— Quer o dinheiro ou não?
Keller tirou seu casaco e o jogou sobre o capô do carro.
— Vire-se e fique de frente para o carro.
Keller hesitou, depois se virou de costas para Sam.
— Muito bom.
Keller se virou devagar e encarou Sam de novo.
— Onde está o quadro?
— No porta-malas.
— Pegue-o e coloque no chão alguns metros na frente do carro.
Keller abriu o porta-malas e tirou o quadro. Estava envolvido com uma camada protetora de papel vegetal e escondido dentro de um saco de lixo comum. Colocou no chão
de concreto do depósito a uns cinco metros na frente da Mercedes e esperou pela próxima instrução de Sam.
— Volte para seu carro — veio a voz do lado oposto do depósito.
— De jeito nenhum — respondeu Keller para o brilho dos faróis de Sam.
Ocorreu um breve impasse. Então Sam se aproximou. Parou a poucos metros de Keller, olhou para o chão e franziu a testa.
— Preciso vê-lo mais uma vez.
— Então sugiro que remova o envoltório de plástico. Mas eu seria cuidadoso, Sam. Se algo acontecer com esse quadro, você será o responsável.
Sam se agachou e removeu o quadro de dentro do saco. Então virou a imagem na direção dos faróis de seu carro e observou as pinceladas e a assinatura.
— Então? — perguntou Keller.
Sam olhou para as digitais na lateral da moldura, depois para as marcas do museu na parte de trás.
— Um minuto — falou baixinho. — Um minuto.
O carro de Keller saiu do depósito às 23h40. O portão estava aberto quando ele chegou. Virou para a direita e passou rápido pelo banco onde Gabriel estava sentado.
Gabriel o ignorou; estava olhando os faróis traseiros de uma BMW que se movia pela avenida François Mitterand. Olhou para o BlackBerry e sorriu. Tinha funcionado,
ele pensou. Tinha realmente funcionado.
A luz vermelha piscava com a regularidade de uma pulsação. Flutuou pelos subúrbios de Paris e depois correu para o leste pela A4 até Reims. Gabriel seguia um quilômetro
atrás e Keller um quilômetro atrás de Gabriel. Eles falaram por telefone só uma vez, uma breve conversa durante a qual Keller confirmou que o negócio tinha sido
concretizado. Sam tinha o quadro; Keller tinha o dinheiro de Sam. Estava escondido no porta-malas do carro, dentro do saco de lixo que Gabriel tinha colocado ao
redor da cópia do Doze Girassóis numa Jarra. Tudo exceto por um único pacote de notas de cem euros, que estava no bolso do casaco de Keller.
— Por que isso está no seu bolso? — perguntou Gabriel.
— Dinheiro para a gasolina — respondeu Keller.
Cento e vinte quilômetros separavam os subúrbios do leste de Paris de Reims, uma distância que Sam cobriu em menos de uma hora. Pouco depois da cidade, a luz vermelha
parou de repente na A4. Gabriel rapidamente o alcançou e viu Sam enchendo o tanque do carro em um posto da estrada. Imediatamente ligou para Keller e mandou que
encostasse; depois esperou até Sam voltar à estrada. Em poucos minutos, os três carros tinham retomado a formação original. Sam na frente, Gabriel seguindo um quilômetro
atrás de Sam e Keller seguindo um quilômetro atrás de Gabriel.
Depois de Reims, eles continuaram para o leste, passando por Verdun e Metz. Então a A4 virou para o sul levando todos até Estrasburgo, a capital da região da Alsácia
da França e sede do Parlamento Europeu. Na beira da cidade fluíam as águas verde-escuras do Reno. Alguns minutos depois do nascer do sol, 25 milhões de euros em
dinheiro e uma cópia de uma obra-prima roubada de Vincent van Gogh cruzaram para a Alemanha sem serem detectados.
A primeira cidade do lado alemão da fronteira era Kehl e depois de Kehl estava a autobahn A5. Sam seguiu até Karlsruhe; então entrou na A8 e se dirigiu a Stuttgart.
Quando chegou aos subúrbios do sul, o rush da manhã estava no auge. Ele cruzou lentamente a cidade pela Hauptstätterstrasse e abriu caminho por Stuttgart-Mitte,
um agradável distrito de escritórios e lojas no coração da metrópole. Gabriel sentiu que Sam estava perto de seu destino final, e se aproximou alguns metros. E então
aconteceu a coisa que ele menos esperava.
A luz vermelha piscante desapareceu de sua tela.
De acordo com o BlackBerry de Gabriel, a luzinha brilhou pela última vez no número oito da Böheimstrasse. O endereço correspondia a um hotel de estuque cinza que
parecia ter sido importado de Berlim Oriental durante os piores dias da Guerra Fria. Nos fundos do hotel, que davam a um beco, havia um estacionamento público. A
BMW estava no último nível, em um canto onde a lâmpada havia sido quebrada. Sam estava caído sobre o volante, os olhos bem abertos, sangue e pedaços do cérebro espalhados
por dentro do vidro. E Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon, tinha desaparecido.
25
GENEBRA
ELES FORAM EMBORA DE Stuttgart PELA mesma rota que tinham entrado e cruzaram de volta para a França em Estrasburgo. Keller foi para a Córsega; Gabriel, para Genebra.
Ele chegou no meio da tarde e imediatamente ligou para Christoph Bittel de um telefone público perto do lago. O membro da polícia secreta não pareceu gostar de ouvir
sua voz tão cedo. Ficou ainda menos feliz quando Gabriel explicou por que tinha voltado à cidade.
— De jeito nenhum — falou ele.
— Então acho que terei de contar ao mundo sobre todos esses quadros roubados que encontrei naquele cofre.
— Lá se foi o novo Gabriel Allon.
— A que horas nos encontramos, Bittel?
— Vou ver o que posso fazer.
Bittel demorou uma hora para limpar sua mesa na sede da NDB e outras duas horas para dirigir de Berna a Genebra. Gabriel estava esperando por ele em uma esquina
cheia de gente na rue du Rhône. Passava um pouco das seis. Pequenos bancários suíços estavam saindo dos bonitos edifícios de escritórios; lindas garotas e estrangeiros
astutos estavam entrando nos cafés animados. Tudo muito organizado. Até assassinos em massa se comportavam direito quando estavam em Genebra.
— Você ia me dizer por que devo abrir aquele cofre para você — falou Bittel enquanto voltava a enfrentar o trânsito com seu usual excesso de cuidado.
— Porque a operação em que estou envolvido está com um problema.
— Que tipo de problema?
— Um cadáver.
— Onde?
Gabriel hesitou.
— Onde? — perguntou Bittel de novo.
— Stuttgart — respondeu Gabriel.
— O árabe que levou um tiro na cabeça essa manhã no centro da cidade?
— Quem falou que era um árabe?
— O BfV.
O BfV era o serviço de segurança interno da Alemanha. Mantinha relações próximas com seu irmão germanófilo em Berna.
— Quanto sabem sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Quase nada e foi por isso que entraram em contato conosco. Parece que os assassinos levaram sua carteira depois de atirarem.
— Não foi tudo que levaram.
— Você é responsável pela morte dele?
— Não tenho certeza.
— Deixe-me perguntar de outra forma, Allon. Você colocou uma arma na cabeça dele e puxou o gatilho?
— Não seja ridículo.
— Não é uma pergunta absurda. Afinal, você tem um histórico quando se trata de cadáveres em solo europeu.
Gabriel não falou nada.
— Sabe o nome do homem que estava dentro do carro?
— Ele se chamava Sam, mas tenho a sensação de que seu nome verdadeiro era Samir.
— Sobrenome?
— Nunca me falou.
— Passaporte?
— Ele falava francês muito bem. Se tivesse que adivinhar, acho que era do Levante.
— Líbano?
— Talvez. Ou talvez Síria.
— Por que ele foi morto?
— Não tenho certeza.
— Pode fazer melhor que isso, Allon.
— É possível que estivesse de posse de um quadro que se parecia muito com o Doze Girassóis numa Jarra, de Vincent van Gogh.
— O que foi roubado de Amsterdã?
— Emprestado — falou Gabriel.
— Quem pintou a falsificação?
— Eu.
— Por que Sam estava com ele?
— Eu o vendi por 25 milhões de euros.
Bittel respirou fundo.
— Você me perguntou, Bittel.
— Onde está o quadro?
— Qual quadro?
— O Van Gogh verdadeiro — respondeu Bittel.
— Em mãos seguras.
— E o dinheiro?
— Em mãos ainda mais seguras.
— Por que você roubou um Van Gogh e vendeu uma cópia a um árabe chamado Sam?
— Porque estou procurando um Caravaggio.
— Para quem?
— Os italianos.
— Por que um agente da inteligência israelense está procurando um quadro para os italianos?
— Porque ele acha difícil dizer não às pessoas.
— E se eu puder colocá-lo naquele cofre? O que você espera encontrar?
— Para ser honesto com você, Bittel, não tenho ideia.
Bittel respirou fundo e pegou seu telefone.
Fez duas ligações, uma atrás da outra. A primeira foi para sua linda amiga no Freeport. A segunda foi para um arrombador que ocasionalmente fazia favores para a
NDB na área de Genebra. A mulher estava esperando no portão quando eles chegaram; o arrombador apareceu uma hora mais tarde. Seu nome era Zimmer. Tinha um rosto
redondo e suave, junto com o olhar assustado de um animal empalhado. Sua mão era tão fina e macia que Gabriel a soltou rapidamente, com medo de machucá-lo.
Tinha em seu poder uma mala retangular pesada de couro escuro, que agarrava firme enquanto seguia Bittel e Gabriel pela porta externa do depósito de Jack Bradshaw.
Se notou os quadros, não deu nenhum sinal disso; tinha olhos somente para o pequeno cofre perto da mesa. Havia sido construído por um fabricante alemão de Colônia.
Zimmer franziu a testa, como se esperasse algo mais desafiador.
O arrombador, como o restaurador de arte, não gostava que as pessoas ficassem olhando enquanto ele trabalhava. Por isso, Gabriel e Bittel foram forçados a se confinar
na sala interior do depósito que Yves Morel tinha usado como estúdio clandestino. Eles se sentaram no chão, encostados na parede e com as pernas esticadas. Era óbvio
pelos sons que vinham da porta aberta que Zimmer estava usando uma técnica conhecida como perfuração do ponto fraco. O ar tinha cheiro de metal quente. Lembrava
a Gabriel o cheiro de uma arma recentemente usada. Olhou para seu relógio e franziu a testa.
— Quanto tempo isso vai demorar? — perguntou ele.
— Alguns cofres são mais fáceis que outros.
— É por isso que sempre preferi uma carga bem colocada de explosivo plástico. Semtex é um grande equalizador.
Bittel tirou seu celular e foi repassando sua caixa de e-mails; Gabriel ficou mexendo na paleta de tintas de Yves Morel: ocre, dourado, vermelho... Finalmente, uma
hora depois que Zimmer começou a trabalhar, ouviu um forte barulho metálico na sala ao lado. O arrombador apareceu na porta, segurando sua mala de couro negro, e
acenou uma vez para Bittel.
— Acho que sei como ir embora — falou. E desapareceu.
Gabriel e Bittel ficaram de pé e foram até a sala ao lado. A porta do cofre estava um pouco aberta, um dedo, nada mais. Gabriel se aproximou, mas Bittel o impediu.
— Eu faço isso — disse ele.
Mandou Gabriel dar um passo para trás. Então abriu a porta do cofre e deu uma olhada no interior. Estava vazio, exceto por um envelope branco. Bittel o pegou e leu
o nome escrito na frente.
— O que é isso? — perguntou Gabriel.
— Parece ser uma carta.
— Para quem?
Bittel entregou a Gabriel e falou:
— Para você.
Parecia mais um memorando do que uma carta, um relatório pós-ação em campo escrito por um espião caído com problemas de consciência por sua traição. Gabriel leu
duas vezes, a primeira enquanto estava no depósito de Jack Bradshaw, e uma segunda vez enquanto estava sentado no salão de embarque do Aeroporto Internacional de
Genebra. Seu voo foi anunciado alguns minutos depois das nove, primeiro em francês, depois em inglês e, finalmente, em hebraico. O som de seu idioma nativo acelerou
sua pulsação. Ele enfiou a carta em sua mala de mão, levantou-se e embarcou no avião.
PARTE TRÊS
A JANELA ABERTA
26
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
O EDIFÍCIO COMERCIAL QUE FICAVA numa ponta do Boulevard Rei Saul era opaco, sem nenhuma característica e, melhor de tudo, anônimo. Não havia nenhum emblema pendurado
na entrada, nenhuma placa que mostrasse a identidade de seu ocupante. Na verdade, não havia nada para sugerir que era a sede de um dos serviços de inteligência mais
temidos e respeitados do mundo. Uma inspeção mais de perto da estrutura, no entanto, teria revelado a existência de um prédio dentro do prédio, com seu próprio fornecimento
de energia, suas próprias linhas de água e esgoto, e seu próprio sistema de comunicações seguras. Os funcionários carregavam duas chaves. Uma abria uma porta sem
nenhuma marca no lobby, a outra operava o elevador. Aqueles que cometiam o imperdoável pecado de perder uma ou as duas chaves eram banidos para o deserto da Judeia,
e nunca mais eram vistos ou citados.
Havia alguns funcionários que eram muito importantes ou cujo trabalho era muito confidencial para aparecer no lobby. Eles entravam no prédio “preto” através do estacionamento
no subsolo, como Gabriel fez trinta minutos depois que seu avião de Genebra aterrissou no aeroporto Ben-Gurion. Sua caravana incluía um veículo cheio de uma equipe
de segurança fortemente armada. Ele pensou que era um sinal do que estava por vir.
Dois dos agentes de segurança o seguiram até o elevador, que o levou até o andar mais alto do prédio. Do lobby, ele atravessou uma porta protegida até uma antessala
onde uma mulher com quase quarenta anos estava sentada atrás de uma mesa moderna com uma superfície negra brilhante. A mesa só tinha um abajur e um telefone multilinhas
seguro; a mulher tinha longas pernas queimadas de sol. Dentro do Boulevard Rei Saul ela era conhecida como a Cúpula de Ferro por sua habilidade imbatível de evitar
pedidos indesejados por uma palavra com o chefe. Seu nome verdadeiro era Orit.
— Está em uma reunião — falou ela, olhando para a luz vermelha brilhando em cima da impressionante porta dupla do chefe. — Sente-se. Não vai demorar.
— Ele sabe que estou no prédio?
— Sabe.
Gabriel se sentou no que era possivelmente o sofá mais desconfortável de todo Israel e olhou para a luz vermelha brilhando sobre a porta. Então olhou para Orit,
que sorriu, desconfortável.
— Posso servir algo? — perguntou ela.
— Um aríete — respondeu Gabriel.
Finalmente, a luz mudou de vermelho para verde. Gabriel se levantou rapidamente e entrou no escritório enquanto os participantes da reunião agora adiada saíam por
uma segunda porta. Reconheceu dois deles. Uma era Rimona Stern, a chefe do programa nuclear do Irã do Escritório. O outro era Mikhail Abramov, um agente de campo
e atirador que tinha trabalhado com Gabriel em várias operações de extrema importância. O terno que estava usando sugeria uma promoção recente.
Quando a porta se fechou, Gabriel se virou lentamente para encarar o único outro ocupante da sala. Estava parado perto de uma grande mesa de vidro escuro, uma pasta
aberta nas mãos. Usava um terno cinza que parecia um número menor e uma camisa branca com um colarinho alto que deixava a impressão de que sua cabeça estava parafusada
em seus fortes ombros. Seus óculos eram pequenos e sem aro, do tipo usado por executivos alemães que queriam parecer jovens e na moda. Seu cabelo, ou o que sobrara
dele, era espetado e grisalho.
— Desde quando Mikhail participa de reuniões na sala do chefe? — perguntou Gabriel.
— Desde que dei uma promoção a ele — respondeu Uzi Navot.
— A quê?
— Vice-chefe de Operações Especiais. — Navot colocou a pasta na mesa e sorriu, sem sinceridade. — Tudo bem se fizer movimentos de pessoal, Gabriel? Afinal, ainda
sou o chefe por mais um ano.
— Tinha planos para ele.
— Que tipo de planos?
— Na verdade, ia colocá-lo como responsável de Operações Especiais.
— Mikhail? Ele não está pronto, ainda falta muito.
— Ele vai ficar bem, desde que tenha um planejador operacional experiente olhando sobre o seu ombro.
— Alguém como você?
Gabriel ficou em silêncio.
— E eu? — perguntou Navot. — Já decidiu o que vai fazer?
— Isso depende totalmente de você.
— É óbvio que não.
Navot largou a pasta na mesa e apertou um botão do seu painel de controle que fez descer as venezianas lentamente sobre as janelas à prova de bala que iam do chão
ao teto. Ficou ali por um momento em silêncio, como se estivesse preso pelas barras de sombras. Gabriel vislumbrou um retrato desagradável de seu próprio futuro,
um homem cinzento em uma jaula cinzenta.
— Preciso admitir — falou Navot —, tenho muita inveja de você. O Egito está à beira da guerra civil, a al-Qaeda está controlado uma faixa de terra que vai de Faluja
ao Mediterrâneo, e um dos conflitos mais sangrentos da história moderna está acontecendo na nossa fronteira norte. E mesmo assim você tem tempo para ficar procurando
uma obra roubada para o governo italiano.
— Não foi ideia minha, Uzi.
— Poderia ter, pelo menos, mostrado a cortesia de pedir minha aprovação quando os carabinieri o procuraram.
— Teria dado?
— Claro que não.
Navot caminhou lentamente por sua longa mesa de reuniões executivas até a área de estar, mais confortável. As redes de televisão do mundo apareciam silenciosamente
em sua parede de vídeos; os jornais do mundo estavam organizados na mesa de café.
— A polícia europeia esteve bem ocupada ultimamente — falou ele. — Um expatriado britânico assassinado em lago Como, uma obra roubada de Van Gogh, e agora isso.
— Ele pegou uma cópia do Die Welt e entregou para que Gabriel visse. — Um árabe morto no meio de Stuttgart. Três eventos aparentemente desconectados com uma coisa
em comum. — Navot deixou o jornal cair sobre a mesa. — Gabriel Allon, o futuro chefe do serviço de inteligência de Israel.
— Duas coisas, na verdade.
— Qual é a segunda?
— LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— O pior homem do mundo.
— Ele está na folha de pagamento do Escritório?
— Não, Uzi — falou Gabriel, sorrindo. — Ainda não.
Navot conhecia em linhas gerais a busca de Gabriel pelo Caravaggio perdido, pois tinha acompanhado à distância: reservas de viagens aéreas, gastos de cartão de crédito,
passagens de fronteira, pedidos de propriedades seguras, notícias de uma obra desaparecida. Agora, sentado na sala que logo seria dele, Gabriel completou a narrativa,
começando com as reuniões com o general Ferrari em Veneza e terminando com a morte de um homem chamado Sam em Stuttgart — um homem que tinha acabado de pagar 25
milhões de euros por Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, de Gabriel Allon. Então, ele entregou as três páginas da carta que Jack Bradshaw tinha
deixado para ele no Freeport de Genebra.
— O nome verdadeiro de Sam era Samir Basara. Bradshaw o conheceu quando estava trabalhando em Beirute. Samir era um clássico vigarista. Drogas, armas, garotas, todas
as coisas que faziam a vida mais interessante em um lugar como Beirute nos anos 1980. Mas na verdade, Samir não era libanês. Samir era da Síria, e estava trabalhando
para a inteligência síria.
— Estava trabalhando para eles quando foi morto?
— Com certeza — respondeu Gabriel.
— Fazendo o quê?
— Comprando arte roubada.
— De Jack Bradshaw?
Gabriel assentiu.
— Samir e Bradshaw renovaram seu relacionamento há 14 meses em um almoço em Milão. Samir tinha uma proposta de negócios. Disse que tinha um cliente, um empresário
rico do Oriente Médio que estava interessado em adquirir quadros. Em poucas semanas, Bradshaw usou seus contatos no submundo da arte para assegurar um Rembrandt
e um Monet, sendo que os dois tinham sido roubados. Isso não incomodava Samir. Na verdade, ele gostava disso. Deu a Bradshaw cinco milhões de dólares e o mandou
encontrar mais.
— Como ele pagava pelos quadros?
— Enviava o dinheiro para a empresa de Bradshaw através de algo chamado LXR Investments of Luxembourg.
— Quem é o dono da LXR?
— Vou chegar lá — falou Gabriel.
— Por que Sam queria quadros roubados?
— Também vou chegar lá. — Gabriel olhou para a carta. — Nesse ponto, Jack Bradshaw começou a comprar loucamente para seu novo cliente cheio de dinheiro. Uns Renoir,
um Matisse, um Corot que foi roubado do Museu de Belas Artes de Montreal, em 1972. Ele também adquiriu vários quadros italianos importantes que não deveriam deixar
o país. Samir ainda não estava satisfeito. Disse que seu cliente queria algo grande. Foi quando Bradshaw sugeriu o Santo Graal dos quadros desaparecidos.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Onde estava?
— Ainda na Sicília, nas mãos da Cosa Nostra. Bradshaw foi a Palermo e negociou o acordo. Depois de todos esses anos, os mafiosos realmente ficaram felizes por se
livrar dele. Bradshaw o levou à Suíça em um carregamento de tapetes. Não é preciso dizer que o retábulo não estava em boas condições quando chegou. Ele aceitou cinco
milhões de euros como adiantamento de Samir e contratou um falsificador francês para tornar a Natividade apresentável de novo. Mas algo aconteceu antes que pudesse
completar a venda.
— O quê?
— Ele descobriu quem estava comprando os quadros.
— Quem era?
Antes de responder, Gabriel voltou a uma pergunta que Navot tinha feito alguns minutos antes: por que o cliente rico de Samir Basara estava no mercado de quadros
roubados? Para responder isso, Gabriel primeiro explicou as quatro categorias básicas de ladrões de arte: o amante de arte sem dinheiro, o perdedor incompetente,
o profissional e o membro do crime organizado. O membro do crime organizado, ele falou, era responsável pelos grandes roubos. Às vezes ele tinha um comprador à espera,
mas geralmente os quadros roubados terminavam sendo usados como uma forma de dinheiro no submundo, um traveler check para a classe criminosa. Um Monet, por exemplo,
poderia ser usado como pagamento colateral para um envio de armas russas; um Picasso, por heroína turca. Eventualmente, alguém na rede de posse decidiria obter lucro,
normalmente com a ajuda de um intermediário especialista como Jack Bradshaw. Um quadro que vale duzentos milhões de dólares no mercado legítimo valeria vinte milhões
no mercado negro. Vinte milhões que nunca seriam rastreados, acrescentou Gabriel. Vinte milhões que nunca seriam congelados pelos governos dos Estados Unidos e da
União Europeia.
— Vê onde estou chegando com isso, Uzi?
— Quem é? — perguntou Navot de novo.
— É um homem que está por trás de uma terrível guerra civil, um homem que está acostumado a torturar sistematicamente, a criar barragens de artilharia indiscriminada
e ataques de armas químicas contra seu próprio povo. Viu Hosni Mubarak ser colocado em uma jaula e Muammar Gaddafi ser linchado por uma multidão louca por sangue.
Como resultado, está preocupado com o que poderia acontecer se caísse, e é por isso que pediu a Samir Basara para preparar um pequeno ninho para ele e sua família.
— Está dizendo que Jack Bradshaw estava vendendo quadros roubados para o presidente da Síria?
Gabriel levantou o rosto para as imagens piscando na parede de vídeos de Navot. O regime tinha acabado de atacar um bairro dominado por rebeldes em Damasco. O número
de mortos era incalculável.
— O dirigente sírio e seu clã valem bilhões — falou Navot.
— É verdade — respondeu Gabriel. — Mas os norte-americanos e a UE estão congelando seus bens e os de seus ajudantes mais próximos onde conseguem encontrá-los. Até
a Suíça congelou centenas de milhões de bens sírios.
— Mas grande parte da fortuna ainda está aí, em algum lugar.
— Por enquanto — falou Gabriel.
— Por que não barras de ouro ou cofres cheios de dinheiro? Por que quadros?
— Imagino que ele tenha ouro e dinheiro, também. Afinal, como qualquer assessor de investimentos diria, a diversidade é a chave para o sucesso a longo prazo. Mas
se fosse eu assessorando o presidente sírio — acrescentou Gabriel —, diria para investir em bens que são fáceis de esconder e transportar.
— Quadros? — perguntou Navot.
Gabriel assentiu.
— Se ele compra um quadro por cinco milhões no mercado negro, pode vender por quase o mesmo preço, menos comissões para o intermediário, claro. É um preço menor
a pagar para ter dezenas de milhões em dinheiro não rastreável.
— Engenhoso.
— Ninguém os acusou de serem estúpidos, só cruéis e brutais.
— Quem matou Samir Basara?
— Se eu tivesse que adivinhar, foi alguém que o conhecia. — Gabriel parou, depois acrescentou: — Alguém que estava sentado no banco de trás do carro quando puxou
o gatilho.
— Alguém da inteligência síria?
— É normalmente assim que funciona.
— Por que o mataram?
— Talvez soubesse muito. Ou talvez tenham ficado bravos com ele.
— Por quê?
— Por deixar que Jack Bradshaw descobrisse sobre as finanças pessoais da família dirigente.
— Quanto ele sabia?
Gabriel pegou a carta e falou:
— Bastante, Uzi.
27
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
– O QUE VOCÊ ACHA QUE BRADSHAW fez com o Caravaggio?
— Ele deve ter levado de volta a sua villa no lago Como — respondeu Gabriel. — Então, pediu a Oliver Dimbleby vir à Itália para dar uma olhada em sua coleção. Foi
uma falcatrua, uma operação inteligente concebida por um ex-espião britânico. O que ele realmente queria era que Oliver entregasse uma mensagem a Julian Isherwood
que, por sua vez, a entregaria a mim. Não saiu como planejado. Oliver enviou Julian a Como em seu lugar. E quando chegou, Bradshaw estava morto.
— E o Caravaggio desapareceu?
Gabriel assentiu.
— Por que Bradshaw queria contar a você sobre a conexão com o presidente sírio?
— Suponho que ele pensou que eu iria lidar com o assunto com discrição.
— E o que isso quer dizer?
— Eu não diria à polícia britânica ou italiana que ele era um ladrão e um intermediário — respondeu Gabriel. — Estava esperando encontrar-se comigo. Mas também tomou
a precaução de colocar tudo que sabia por escrito dentro do cofre no Freeport.
— Junto com alguns quadros roubados?
Gabriel assentiu.
— Por que a súbita mudança de ideia? Por que não pegar o dinheiro sujo de sangue do dirigente e ir rindo até o banco?
— Nicole Devereaux.
Navot apertou os olhos, pensativo.
— Por que esse nome me é familiar?
— Ela era a fotógrafa da AFP que foi sequestrada e morta em Beirute nos anos 1980 — falou Gabriel. Então contou a Navot o resto da história: o caso amoroso, o recrutamento
pela KGB, meio milhão em uma conta de banco suíço. — Bradshaw nunca se perdoou pela morte de Nicole — acrescentou ele. — E certamente nunca perdoou o regime sírio
por matá-la.
Navot ficou em silêncio por um momento.
— Seu amigo Jack Bradshaw fez várias besteiras durante sua vida — falou finalmente. — Mas a coisa mais idiota que já fez foi aceitar cinco milhões de euros da família
governante da Síria por um quadro que não conseguiu entregar. Só há uma coisa que a família odeia mais do que deslealdade: pessoas que tentam roubá-los.
Navot assistia às imagens que passavam na parede de vídeo.
— Na minha opinião — falou ele —, é disso que se trata esse exercício inteiro de depravação humana. Cento e cinquenta mil mortos e milhões de pessoas sem lugar para
morar. E para quê? Por que a família do governante está se agarrando a isso como se não houvesse amanhã? Por que estão praticando assassinato em escala industrial?
Pela fé deles? Pelo ideal sírio? Não existe ideal sírio. Francamente, não existe mais Síria. E mesmo assim as mortes acontecem por um motivo, e apenas um motivo.
— Dinheiro — falou Gabriel.
Navot assentiu lentamente.
— Você parece ter uma visão especial sobre a situação da Síria, Uzi.
— Por acaso sou casado com uma conceituada especialista sobre a Síria e o movimento baathista. — Ele parou, então acrescentou: — Mas você já sabia isso.
Navot levantou, caminhou até o aparador e serviu uma xícara de café da garrafa térmica. Gabriel notou a ausência de creme ou biscoitos amanteigados, duas coisas
que Navot não conseguia resistir. Ele bebia seu café preto agora, sem nenhum acompanhamento a não ser uma pastilha de adoçante branco, que colocou em sua xícara
de um recipiente plástico.
— Desde quando você coloca cianeto no seu café, Uzi?
— Bella quer que eu perca o vício em açúcar. Em seguida, será a cafeína.
— Não consigo imaginar esse trabalho sem cafeína.
— Logo vai descobrir.
Navot sorriu mesmo sem vontade e voltou para sua cadeira. Gabriel estava olhando os monitores de vídeo. O corpo de uma criança — menino ou menina, era impossível
dizer — estava sendo retirado do meio dos escombros. Uma mulher estava em prantos. Um homem barbudo clamava por vingança.
— Quanto há? — perguntou ele.
— Dinheiro?
Gabriel assentiu.
— Dez bilhões é o número que aparece na imprensa — respondeu Navot —, mas achamos que o número real é muito maior. E é todo controlado por Kemel al-Farouk. — Navot
olhou de canto de olho para Gabriel e perguntou: — Conhece o nome?
— A Síria não é minha área de especialização, Uzi.
— Logo será. — Navot deu outro sorriso apagado antes de continuar. — Kemel não é um membro da família dirigente, mas esteve trabalhando nos negócios da família por
toda sua vida. Começou como guarda-costas do pai do dirigente. Kemel recebeu uma bala pelo velho no final dos anos setenta e o pai do dirigente nunca esqueceu isso.
Deu a Kemel um bom trabalho na Mukhabarat, onde ele ganhou uma reputação como interrogador terrível de prisioneiros políticos. Costumava pregar membros da Irmandade
Muçulmana na parede por diversão.
— Onde ele está agora?
— Seu título oficial é vice-ministro de Estado para Relações Exteriores, mas em muitos aspectos é quem está dirigindo o país e a guerra. O dirigente nunca toma decisões
sem falar primeiro com Kemel. E, talvez mais importante, Kemel é quem está cuidando do dinheiro. Ele colocou uma parte da fortuna em Moscou e Teerã, mas de jeito
nenhum confiaria totalmente nos russos e nos iranianos. Achamos que ele tem alguém trabalhando na Europa Ocidental escondendo os bens. O que não sabemos — falou
Navot —, é quem é essa pessoa ou onde está escondendo o dinheiro.
— Graças a Jack Bradshaw, agora sabemos que parte dele está na LXR Investments. E podemos usar a LXR como janela para ver o resto do dinheiro da família.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio. Navot assistia a outro corpo sendo retirado dos escombros em Damasco.
— É duro para os israelenses verem cenas como essa — falou depois de um momento. — Nos deixa incomodados. Traz más recordações. Nosso instinto natural é matar o
monstro antes que o monstro possa fazer mais danos. Mas o Escritório e a IDF concluíram que é melhor deixar o monstro no lugar, pelo menos por enquanto, porque a
alternativa poderia ser pior. E os norte-americanos e os europeus chegaram à mesma conclusão, apesar de todas as conversações otimistas sobre a negociação de um
acordo. Ninguém quer que a Síria caia nas mãos da al-Qaeda, mas isso é o que vai acontecer se a família governante cair.
— Boa parte da Síria já é controlada pela al-Qaeda.
— Verdade — concordou Navot. — E o contágio está se espalhando. Há algumas semanas, uma delegação de chefes de inteligência europeu foi a Damasco com uma lista de
seus cidadãos muçulmanos que vieram à Síria se unir à jihad. Eu poderia ter dado a eles mais alguns nomes, mas não fui convidado para a festa.
— Que surpresa.
— Provavelmente foi melhor não ter ido. Na última vez que estive em Damasco, viajei sob um nome falso.
— Quem?
— Vincent Laffont.
— O escritor de guias de viagem.
Navot assentiu.
— Sempre foi um dos meus favoritos — disse Gabriel.
— Meu também. — Navot colocou sua xícara de café na mesa. — O Escritório nunca evitou se comprometer com crimes estranhos a serviço de uma operação moral e justa.
Mas se atropelarmos o sistema bancário internacional, as repercussões podem ser desastrosas.
— A família governante síria não teve acesso a esses bens honestamente, Uzi. Já estão saqueando a economia por duas gerações.
— Isso não significa que podemos roubá-las.
— Não — falou Gabriel com um remorso fingido. — Isso seria errado.
— Então, o que está sugerindo?
— Congelarmos os bens.
— Como?
Gabriel sorriu e falou:
— Ao estilo do Escritório.
— Que tal nossos amigos em Langley? — perguntou Navot quando Gabriel tinha terminado de explicar.
— O que tem?
— Não podemos lançar uma operação como essa sem o apoio da Agência.
— Se contarmos à Agência, eles vão contar à Casa Branca. E isso vai terminar na primeira página do The New York Times.
Navot sorriu.
— Tudo que precisamos é da aprovação do primeiro-ministro e do dinheiro para realizar a operação.
— Já temos dinheiro, Uzi. Muito dinheiro.
— Os 25 milhões que você ganhou com a venda do Van Gogh falso?
Gabriel assentiu.
— É a beleza dessa operação — falou ele. — Ela se autofinancia.
— Onde está o dinheiro agora?
— Pode estar no porta-malas do carro de Christopher Keller.
— Na Córsega.
— Infelizmente.
— Vou mandar um bodel para pegá-lo.
— O grande dom Orsati não lida com mensageiros, Uzi. Ele acharia isso um insulto muito grande.
— O que está sugerindo?
— Vou resgatar o dinheiro assim que tivermos uma operação em funcionamento, apesar de que seja possível que tenha de deixar um pequeno pagamento de tributo ao Dom.
— Pequeno? Quanto?
— Dois milhões devem deixá-lo feliz.
— Isso é muito dinheiro.
— Uma mão lava a outra, e as duas mãos lavam o rosto.
— Isso é um provérbio judeu?
— Provavelmente, Uzi.
O que faltava era pensar na composição da equipe operacional de Gabriel. Rimona Stern e Mikhail Abramov eram indispensáveis, ele falou. Assim como Dina Sarid, Yossi
Gavish e Yaakov Rossman.
— Não é possível ter Yaakov num momento como esse — objetou Navot.
— Por que não?
— Porque Yaakov é quem está rastreando todos os mísseis e outros artigos mortais que estão indo dos sírios para os amigos deles no Hezbollah.
— Yaakov pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
— Quem mais?
— Preciso de Eli Lavon.
— Ele ainda está escavando embaixo do Muro das Lamentações.
— Amanhã à tarde, ele já estará escavando em outro lugar.
— Só isso?
— Não — falou Gabriel. — Tem outra pessoa que preciso para uma operação como essa.
— Quem?
— A maior especialista do país em Síria e no movimento baathista.
Navot sorriu.
— Talvez você devesse levar uns guarda-costas, por segurança.
28
PETAH TIKVA, ISRAEL
OS NAVOTS VIVIAM NO lado oriental de Petah Tikva, em uma rua calma onde as casas ficavam escondidas atrás de muros de concreto e arbustos. Havia uma campainha perto
do portão de metal, que tocou em silêncio quando Gabriel apertou. Olhou diretamente para as lentes da câmera de segurança e apertou de novo. Dessa vez, o intercomunicador
emitiu o som da voz de uma mulher.
— Quem é?
— Sou eu, Bella. Abra o portão.
Outro silêncio, 15 segundos, talvez mais, antes que o trinco fosse liberado com uma pancada. Conforme o portão abria, surgia a casa, uma estrutura cubista com grandes
janelas reforçadas e uma antena de comunicações seguras aparecendo no teto. Bella estava à sombra do pórtico, os braços cruzados na defensiva. Ela usava calça de
seda branca e blusa amarela com um cinto na cintura esbelta. Seu cabelo escuro parecia recém-pintado e penteado. De acordo com a usina de rumores do Escritório,
ela tinha uma hora marcada toda manhã em um dos salões mais exclusivos de Tel Aviv.
— Você tem muita coragem de vir a essa casa, Gabriel.
— Para com isso, Bella. Vamos tentar ser civilizados.
Ela ficou parada um momento antes de se virar e, com um movimento indiferente da mão, convidá-lo a entrar. Tinha decorado os cômodos da casa como a seu marido: cinza,
brilhante, moderno. Gabriel a seguiu pela muito brilhante cozinha cromada e de granito negro polido, indo até o terraço do fundo onde estava servido um almoço leve
israelense. A mesa estava na sombra, mas o sol brilhava forte no jardim. Havia pequenas piscinas e fontes murmurantes. Gabriel se lembrou de repente que Bella sempre
tinha adorado o Japão.
— Adoro o que você fez com esse lugar, Bella.
— Sente-se — foi tudo que ela respondeu.
Gabriel se sentou em uma cadeira de jardim com almofada. Bella serviu um copo alto de suco de laranja e colocou bem na frente dele.
— Já pensou onde você e Chiara vão morar quando se tornar chefe? — perguntou ela.
Ele não sabia dizer se a pergunta dela sincera ou maliciosa. Decidiu responder honestamente.
— Chiara acha que precisamos viver perto do Boulevard Rei Saul — falou ele —, mas eu preferia ficar em Jerusalém.
— É muito longe.
— Não vou dirigir o carro.
O rosto dela ficou tenso.
— Desculpe, Bella. Não foi isso que quis dizer.
Ela não respondeu diretamente.
— Nunca gostei muito de Jerusalém. Perto demais de Deus para meu gosto. Gosto daqui, o meu pequeno subúrbio secular.
Um silêncio se abateu entre eles. Os dois sabiam a verdadeira razão pela qual Gabriel preferia Jerusalém a Tel Aviv.
— Desculpe por nunca ter enviado a você e Chiara os parabéns pela gravidez. — Ela deu um breve sorriso. — Deus sabe como os dois merecem alguma felicidade depois
de tudo que aconteceu.
Gabriel assentiu e murmurou algo apropriado. Bella nunca tinha dado os parabéns, ele pensou, porque sua raiva não tinha permitido. Ela tinha um comportamento vingativo.
Era uma de suas características mais duradouras.
— Acho que deveríamos conversar, Bella.
— Achei que estávamos conversando.
— Conversar de verdade — falou ele.
— Seria melhor se nos comportássemos como personagens em um daqueles programas de suspense que passam na BBC. Ou posso falar algo que me arrependa depois.
— Há uma razão pela qual esses programas nunca têm Israel como cenário. Não falamos daquela forma.
— Talvez devêssemos.
Ela pegou um prato e começou a servir Gabriel.
— Não estou com fome, Bella.
Ela colocou o prato na mesa.
— Estou brava com você, droga.
— Achei que sim.
— Por que está roubando o cargo do Uzi?
— Não estou.
— Como descreveria isso?
— Não tive escolha.
— Poderia ter dito não a eles.
— Eu tentei. Não funcionou.
— Deveria ter tentado mais.
— Não foi culpa minha, Bella.
— Eu sei, Gabriel! Nada nunca é culpa sua.
Ela olhou para as fontes no jardim. Isso pareceu acalmá-la momentaneamente.
— Nunca vou esquecer a primeira vez que vi você — falou, finalmente. — Estava andando sozinho por um corredor dentro do Boulevard Rei Saul, pouco depois de Túnis.
Você estava exatamente como está agora, os mesmos olhos verdes, as mesmas têmporas grisalhas. Era como um anjo, o anjo da vingança de Israel. Todo mundo adorava
você. Uzi idolatrava você.
— Não vamos exagerar, Bella.
Ela agiu como se não tivesse ouvido.
— E então aconteceu Viena — retomou ela depois de um momento. — Foi um cataclisma, um desastre de proporções bíblicas.
— Todos perdemos entes queridos, Bella. Todos ficamos de luto.
— É verdade, Gabriel. Mas Viena foi diferente. Você nunca mais foi o mesmo depois de Viena. Nenhum de nós foi. — Ela fez uma pausa e acrescentou: — Especialmente
Shamron.
Gabriel seguiu o olhar de Bella até o jardim, mas por um momento ele foi transportado para o pátio iluminado pelo sol da Academia Bezalel de Arte e Design em Jerusalém.
Era setembro de 1972, alguns dias depois do assassinato de 11 atletas e técnicos israelenses nas Olimpíadas de Munique. Do nada apareceu um homem que parecia uma
pequena barra de ferro, com óculos negros horríveis e dentes como uma armadilha de aço. O homem não falou seu nome, pois não era necessário. Era o homem sobre o
qual falavam somente em sussurros. Era quem tinha roubado os segredos que levaram Israel à vitória rápida na Guerra dos Seis Dias. O que tinha sequestrado Adolf
Eichmann, diretor-gerente do Holocausto, em uma esquina argentina.
Shamron...
— Ari se culpou pelo que aconteceu com você em Viena — dizia Bella. — E ele nunca se perdoou, também. Tratou você como um filho depois daquilo. Ele o deixava fazer
o que quisesse. Mas nunca desistiu da esperança de que um dia você viria e assumiria o controle do Escritório que ele amava tanto.
— Sabe quantas vezes eu recusei o cargo?
— Tantas que Shamron acabou entregando a Uzi. Ele ganhou o cargo como um prêmio de consolação.
— Na verdade, fui eu que sugeri que Uzi se tornasse o novo chefe.
— Como se o cargo fosse seu pra poder atribuir. — Ela sorriu, amarga. — Uzi já contou que eu o aconselhei a não aceitar o cargo?
— Não, Bella. Ele nunca mencionou isso.
— Sempre soube que terminaria assim. Você deveria ter deixado o palco sem fazer alarde e ficado na Europa. Mas o que fez? Inseriu um carregamento de centrífugas
sabotadas na cadeia de suprimentos nucleares iraniana e destruiu quatro instalações de enriquecimento secretas.
— Essa operação ocorreu sob a supervisão do Uzi.
— Mas foi sua operação. Todo mundo no Boulevard Rei Saul sabe que foi sua, assim como todo mundo na rua Kaplan.
A rua Kaplan era a localização do escritório do primeiro-ministro. Sem dúvidas, Bella era uma visitante bastante frequente. Gabriel sempre suspeitou que a influência
dela no Boulevard Rei Saul ia muito além da decoração do escritório de seu marido.
— Uzi tem sido um bom chefe — falou ela. — Um excelente chefe. Ele só tem um defeito. Não é você, Gabriel. Ele nunca vai ser você. E por isso, está sendo descartado.
— Não se eu puder evitar.
— Já não fez o suficiente?
Dentro da casa tocou um telefone. Bella não mostrou nenhum interesse em atender.
— Por que está aqui? — perguntou ela.
— Quero conversar sobre o futuro do Uzi.
— Graças a você, ele já não tem nenhum.
— Bella...
Ela se recusava a se acalmar, não tão cedo.
— Se você tem algo a falar sobre o futuro do Uzi, deveria conversar com ele.
— Achei que seria mais produtivo se passasse por cima dele.
— Não tente me lisonjear, Gabriel.
— Nem sonharia em fazer isso.
Ela bateu a unha de seu dedo indicador na mesa. Tinha sido recentemente pintada.
— Ele me contou sobre a conversa que tiveram em Londres quando estavam procurando aquela garota sequestrada. Não é preciso dizer que não pensei muito na sua proposta.
— Por que não?
— Porque não há precedentes para isso. Quando termina o período de um chefe, ele gentilmente desaparece na noite, nunca mais se ouve falar dele.
— Diga isso ao Shamron.
— Shamron é diferente.
— Eu também.
— O que você está propondo exatamente?
— Dirigirmos juntos o Escritório. Eu serei o chefe e Uzi será meu vice.
— Nunca vai funcionar.
— Por que não?
— Porque vai deixar a impressão de que você não está totalmente preparado para o cargo.
— Ninguém pensa isso.
— A aparência é importante.
— Você está me confundindo com outra pessoa, Bella.
— Com quem?
— Com alguém que se preocupa com as aparências.
— E se ele concordar?
— Terá um escritório ao lado do meu. Vai estar envolvido em toda decisão central, toda operação importante.
— E o salário dele?
— Vai ter o mesmo salário, sem mencionar o carro e a segurança.
— Por quê? — perguntou ela. — Por que está fazendo isso?
— Porque preciso dele, Bella. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — De você, também.
— De mim?
— Quero que volte ao Escritório.
— Quando?
— Amanhã de manhã, às dez horas. Uzi e eu vamos organizar uma operação contra os sírios. Precisamos da sua ajuda.
— Que tipo de operação?
Quando Gabriel contou, ela sorriu, triste.
— Pena que Uzi não pensou nisso — falou ela. — Ele ainda poderia ser o chefe.
Passaram a hora seguinte no jardim de Bella negociando os termos da volta dela ao Boulevard Rei Saul. Depois disso, acompanhou-o até o carro oficial.
— Você fica bem assim — falou ela pela porta aberta.
— Como, Bella?
Ela sorriu e falou:
— Nos vemos amanhã, Gabriel. — Então se virou e desapareceu. Um guarda-costas fechou a porta do carro; outro subiu no banco do passageiro. Gabriel percebeu de repente
que não estava armado. Ficou sentado ali por um momento pensando aonde iria em seguida. Em seguida, olhou para o motorista pelo espelho retrovisor e deu um endereço
em Jerusalém Ocidental. Ele tinha mais um negócio desagradável para resolver antes de ir para casa. Tinha de contar a um fantasma que seria pai de novo.
29
JERUSALÉM
O PEQUENO PASSEIO CIRCULAR DO Hospital Psiquiátrico Monte Herzl vibrou sob o peso da caravana de três carros de Gabriel. Ele saiu do banco traseiro de sua limusine
e, depois de uma troca curta de palavras com o chefe de sua segurança, entrou sozinho no hospital. Esperando na recepção estava um médico barbudo, com jeito de rabino,
chegando aos sessenta anos. Estava sorrindo, apesar do fato de que, como sempre, tinha sido avisado com pouca antecedência da chegada de Gabriel. Estendeu a mão
e ficou olhando a comoção na entrada, normalmente tranquila, da instalação mais privada de Israel para pacientes com problemas mentais.
— Parece que sua vida está a ponto de mudar de novo — falou o médico.
— Em mais de um sentido — respondeu Gabriel.
— Para melhor, espero.
Gabriel assentiu e depois contou ao médico sobre a gravidez. O médico sorriu, mas só por um momento. Ele tinha testemunhado a longa luta de Gabriel para decidir
se devia voltar a se casar. Ser pai, ele sabia, levaria a sentimentos complicados.
— E gêmeos, ainda por cima. Bem — acrescentou o médico, lembrando-se de sorrir de novo —, você certamente...
— Preciso contar a ela — falou Gabriel, interrompendo o médico. — Já adiei isso por tempo demais.
— Não é necessário.
— É.
— Ela não vai entender, não totalmente.
— Eu sei.
O médico sabia que não devia insistir.
— Poderia ser melhor se eu ficasse com você — falou ele. — Para bem dos dois.
— Obrigado — respondeu Gabriel —, mas preciso fazer isso sozinho.
O médico se afastou sem uma palavra e deixou Gabriel seguir por um corredor feito de calcário de Jerusalém até uma sala comum onde alguns pacientes estavam olhando
para uma televisão com o olhar perdido. Um par de grandes janelas dava para um jardim com muro. Do lado de fora, uma mulher estava sentada sozinha na sombra de um
pinheiro-manso, imóvel como uma lápide.
— Como ela está? — perguntou Gabriel.
— Sente sua falta. Já faz tempo que você não vem vê-la.
— É difícil.
— Eu entendo.
Eles ficaram parados por um momento na janela, sem falar e sem se mover.
— Há algo que você deveria saber — falou o médico finalmente. — Ela nunca deixou de amá-lo, mesmo depois do divórcio.
— Isso deveria me fazer sentir melhor?
— Não — disse o médico. — Mas você merece saber a verdade.
— Ela também.
Outro silêncio.
— Gêmeos, hein?
— Gêmeos.
— Menino ou menina?
— Um de cada.
— Talvez pudesse deixar que ela passasse um tempo com eles.
— Uma coisa de cada vez, doutor.
— Claro — falou o médico quando Gabriel entrou no jardim sozinho. — Uma coisa de cada vez.
Ela estava sentada em sua cadeira de rodas com o que sobrava de suas mãos retorcidas descansando no colo. O cabelo, antes comprido e escuro como o de Chiara, agora
estava curto e grisalho. Gabriel beijou a pele fria e firme da cicatriz de seu rosto antes de se sentar no banco ao seu lado. Ela olhou perdida para o jardim, sem
perceber a presença dele. Estava ficando mais velha, ele pensou. Todos estavam ficando mais velhos.
— Olhe para a neve, Gabriel — falou ela de repente. — Não é linda?
Ele olhou para o sol queimando no céu sem nuvens.
— É, Leah — falou ele distraído. — É linda.
— A neve absolve Viena de seus pecados — falou ela depois de um momento. — A neve cai sobre Viena enquanto os mísseis caem sobre Tel Aviv.
Tinham sido algumas das últimas palavras que Leah tinha falado para ele na noite do atentado em Viena. Ela sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão
psicótica e desordem de estresse pós-traumático. Às vezes, ela experimentava momentos de lucidez, mas na maior parte do tempo permanecia prisioneira do passado.
Viena passava incessantemente em sua cabeça como um loop de videoteipe que era incapaz de parar: a última refeição que comeram juntos, o último beijo, o fogo que
matou o único filho deles e queimou a pele do corpo de Leah. Sua vida tinha se reduzido a cinco minutos; e ela passava revivendo-os, várias vezes, por mais de vinte
anos.
— Achei que tinha se esquecido de mim, Gabriel.
Sua cabeça se virou lentamente e por um momento houve um lampejo de reconhecimento em seus olhos. Sua voz, quando falou de novo, parecia estranhamente com a voz
que ele tinha ouvido pela primeira vez há muitos anos, chamando-o de um estúdio em Bezalel.
— Quando foi a última vez que veio aqui?
— Vim para seu aniversário.
— Não me lembro.
— Fizemos uma festa, Leah. Todos os outros pacientes vieram. Foi muito legal.
— Estou sozinha aqui, Gabriel.
— Eu sei, Leah.
— Não tenho ninguém. Ninguém a não ser você, meu amor.
Ele sentiu que tinha perdido a capacidade de encher seus pulmões de ar. Leah colocou a mão sobre a dele.
— Você não tem tinta nos seus dedos — falou ela.
— Não trabalhei nos últimos dias.
— Por que não?
— É uma longa história.
— Tenho tempo — falou ela. — É só o que tenho.
Desviou o olhar dele e olhou para o jardim. A luz estava se apagando dos seus olhos.
— Não se vá, Leah. Tenho algo para lhe contar.
Ela se virou de novo para ele.
— Está restaurando um quadro agora? — perguntou ela.
— Veronese — respondeu ele.
— Qual?
Ele contou.
— Então está morando em Veneza de novo?
— Por mais alguns meses.
Ela sorriu.
— Lembra-se quando moramos juntos em Veneza, Gabriel? Foi quando você era aprendiz de Umberto Conti.
— Eu lembro, Leah.
— Nosso apartamento era tão pequeno.
— Porque era só um quarto.
— Foram dias maravilhosos, não foram, Gabriel? Dias de arte e vinho. Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes se você não
tivesse voltado ao Escritório.
Gabriel não respondeu. Não era capaz de falar.
— Sua esposa é de Veneza, não é?
— É sim, Leah.
— Ela é bonita?
— É, Leah, é muito bonita.
— Gostaria de conhecê-la algum dia.
— Já a conheceu, Leah. Ela veio visitá-la várias vezes.
— Não me lembro dela. Talvez seja melhor assim. — Ela se afastou dele. — Quero falar com a minha mãe — disse. — Quero ouvir o som da voz da minha mãe.
— Vamos ligar para ela, Leah.
— Não deixe de ver se o Dani está bem preso na sua cadeirinha. As ruas estão escorregadias.
— Ele está bem, Leah.
Ela virou o rosto para ele de novo. Então, depois de um momento, perguntou:
— Você tem filhos?
Ele não estava seguro se ela estava no presente ou no passado.
— Não entendi — falou ele.
— Com Chiara.
— Não — respondeu ele. — Não temos filhos.
— Talvez um dia.
— É — ele falou, mas não continuou.
— Me faça uma promessa, Gabriel.
— Qualquer coisa, meu amor.
— Se tiver outro filho, não deve se esquecer do Dani.
— Penso nele todo dia.
— Não penso em nada mais.
Ele sentiu como se os ossos de sua caixa torácica estivessem se quebrando debaixo do peso da pedra que Deus tinha colocado sobre seu coração.
— E quando você sair de Veneza? — perguntou Leah depois de um momento. — O que vai fazer?
— Vou voltar para casa.
— De vez?
— De vez, Leah.
— O que vai fazer? Não há pinturas aqui em Israel.
— Vou ser o chefe do Escritório.
— Achei que Ari era o chefe.
— Isso foi há muito tempo.
— Onde vai viver?
— Aqui em Jerusalém para ficar perto de você.
— Naquele pequeno apartamento?
— Sempre gostei dele.
— Não é grande o suficiente para crianças.
— Vamos encontrar espaço.
— Ainda virá me visitar depois que tiver filhos, Gabriel?
— Sempre que eu puder.
Ela levantou o rosto para o céu sem nuvens.
— Olhe para a neve, Gabriel.
— É — falou ele, chorando baixinho. — Não é linda?
O médico estava esperando por Gabriel na sala comum. Não falou nada até terem voltado à recepção.
— Tem algo que você gostaria de me contar? — perguntou ele.
— Foi tão bem quanto se poderia esperar.
— Para ela ou para você?
Gabriel não falou nada.
— Está tudo bem, sabe — disse o médico depois de um momento.
— O quê?
— Você deve ser feliz.
— Não tenho certeza se sei como.
— Tente — disse o médico. — E se você precisar de alguém para conversar, sabe onde me encontrar.
— Cuide bem dela.
— Sempre cuidarei.
Com isso, Gabriel se entregou ao cuidado de seus seguranças e subiu no banco traseiro da limusine. Era estranho, ele pensou, mas ele não sentia mais vontade de chorar.
Supôs que era isso que significava ser chefe.
30
RUA NARKISS, JERUSALÉM
CHIARA TINHA CHEGADO A Jerusalém apenas uma hora antes de Gabriel e, mesmo assim, o apartamento deles na rua Narkiss já parecia uma fotografia numa dessas revistas
de decoração de casas que ela sempre estava lendo. Havia flores frescas nos vasos e tigelas de aperitivos nas mesinhas, e a taça de vinho que ela colocou na mão
dele estava perfeitamente fria. Os lábios dela, quando o beijou, estavam quentes do sol de Jerusalém.
— Esperava que você chegasse mais cedo — falou ela.
— Tinha umas coisas para fazer.
— Onde você estava?
— No inferno — respondeu ele sério.
Ela franziu a testa.
— Vai ter que me contar sobre isso mais tarde.
— Por que mais tarde?
— Porque temos visitas chegando, querido.
— Preciso perguntar quem é?
— Provavelmente não.
— Como ele soube que tínhamos voltado?
— Ele mencionou algo sobre um arbusto queimando.
— Não pode ser outra noite?
— É muito tarde para cancelar agora. Ele e Gilah já saíram de Tiberíades.
— Suponho que esteja mandando atualizações de sua localização.
— Ele já ligou duas vezes. Está muito animado para vê-lo.
— Eu imagino por quê.
Ele beijou Chiara de novo e levou a taça de vinho para o quarto. As paredes estavam cheias de quadros. Havia quadros de Gabriel, quadros de sua talentosa mãe e vários
quadros de seu avô, o famoso expressionista alemão Viktor Franekel, que foi assassinado em Auschwitz no letal inverno de 1942. Havia também um retrato médio, sem
assinatura, de um jovem homem desolado que parecia assombrado pela sombra da morte. Leah tinha pintado alguns dias depois que Gabriel havia retornado a Israel com
o sangue de seis terroristas do Setembro Negro nas mãos. Foi a primeira e última vez que ele tinha concordado em posar para ela.
“Deveríamos ter ficado em Veneza juntos, meu amor. As coisas teriam sido diferentes...”
Ele tirou sua roupa debaixo do olhar impiedoso do retrato e ficou parado debaixo do chuveiro até que os últimos traços do toque de Leah tivessem saído de sua pele.
Então colocou roupas limpas e voltou à sala de estar, bem quando Gilah e Ari Shamron estavam entrando pela porta da frente. Gilah trazia um prato de sua famosa berinjela
com condimentos marroquinos; seu famoso marido trazia apenas uma bengala feita de madeira de oliveira. Ele estava vestido, como sempre, com calças cáqui bem passadas,
uma camisa de algodão branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Era óbvio que ele não estava bem, mas seu sorriso expressava contentamento. Shamron
tinha passado anos tentando convencer Gabriel a voltar à Israel para assumir seu lugar no escritório executivo no Boulevard Rei Saul. Agora, tanto tempo depois,
a tarefa estava completa. Seu sucessor estava no lugar. A linhagem estava assegurada.
Ele encostou sua bengala na parede da entrada e, seguido de Gabriel, foi até a pequena varanda onde havia duas cadeiras de ferro debaixo da copa de um eucalipto.
A rua Narkiss estava silenciosa e vazia debaixo deles, mas à distância vinha o barulho do trânsito noturno na King George. Shamron sentou-se com dificuldade em uma
das cadeiras e fez um movimento para que Gabriel se sentasse na outra. Então pegou o maço de cigarros turcos e, com enorme concentração, tirou um. Gabriel olhou
para as mãos de Shamron, as mãos que quase tinham tirado a vida de Adolf Eichmann em uma esquina no norte de Buenos Aires. Foi uma das razões pelas quais Shamron
tinha recebido a missão: o tamanho e força incomuns de suas mãos. Agora elas estavam cheias de manchas dos problemas de fígado e de machucados que não tinham se
curado. Gabriel desviou o olhar enquanto elas lutavam com o velho isqueiro.
— Você não devia fumar, Ari.
— Que diferença faz agora?
Depois que apagou o isqueiro, o cheiro de fumaça turca se misturou ao forte odor do eucalipto. Gabriel foi subitamente inundado por lembranças. Ele tentou mantê-las
à distância, mas não conseguiu; Leah tinha destruído o que restava de suas defesas. Estava dirigindo por um mar de arbustos movidos pelo vento na Cornualha com Shamron
ao seu lado. Era o início de um novo milênio, os dias de ataques suicidas e ilusão. Shamron tinha sido retirado recentemente de sua aposentadoria para reformar o
Escritório depois de uma série de desastres operacionais e queria a ajuda de Gabriel nesse empreendimento. A isca que usou foi Tariq al-Hourani, o mestre terrorista
palestino que tinha plantado a bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena.
“Talvez se você me ajudar a acabar com Tariq, finalmente vai superar o que aconteceu com Leah e continuar com sua vida...”
Gabriel ouviu o som da risada de Chiara na sala e a lembrança se dissolveu.
— O que foi agora? — perguntou ele gentilmente a Shamron.
— A lista dos meus problemas físicos é quase tão longa quanto a lista de desafios que Israel está enfrentando. Mas não se preocupe — acrescentou ele rapidamente.
— Ainda não vou a lugar nenhum. Tenho toda a intenção de estar por aqui para testemunhar o nascimento dos meus netos.
Gabriel resistiu ao impulso de lembrar Shamron de que eles não eram realmente pai e filho.
— Esperamos que esteja lá, Ari.
Shamron sorriu.
— Decidiram onde vão viver depois que eles nascerem?
— Curioso — respondeu Gabriel —, mas Bella me perguntou a mesma coisa.
— Ouvi dizer que foi uma conversa interessante.
— Como sabe que fui vê-la?
— Uzi me contou.
— Achei que ele não estava atendendo suas ligações.
— Parece que começou o grande degelo. É uma das poucas vantagens de ter problemas de saúde — acrescentou ele. — Todas as pequenas queixas e promessas quebradas parecem
desaparecer quando chegamos perto do fim.
Os galhos do eucalipto se moveram com a primeira brisa noturna. O ar estava esfriando a cada minuto. Gabriel sempre adorou a forma como esfriava à noite em Jerusalém,
mesmo no verão. Ele desejou ter o poder de congelar esse momento por um pouco mais de tempo. Olhou para Shamron, que estava batendo seu cigarro pensativo na borda
do cinzeiro.
— Foi preciso muita coragem de sua parte para se sentar e conversar com Bella. E perspicácia, também. Prova que eu estava certo sobre uma coisa o tempo todo.
— O quê, Ari?
— Que você tem tudo para ser um grande chefe.
— Às vezes, eu me pergunto se estou prestes a cometer meu primeiro erro.
— O de manter Uzi com algum poder?
Gabriel assentiu lentamente.
— É arriscado — concordou Shamron. — Mas se há alguém que pode encarar isso, é você.
— Nenhum conselho?
— Já não preciso mais dar conselhos, meu filho. Sou o pior que um homem pode ser, velho e obsoleto. Sou um espectador. Uma vergonha. — Shamron olhou para Gabriel
e franziu a testa. — Sinta-se livre para discordar de mim quando quiser.
Gabriel sorriu, mas não disse nada.
— Uzi me contou que as coisas ficaram um pouco acaloradas entre você e Bella — disse Shamron.
— Lembrou-me o interrogatório que tive que enfrentar aquela noite no Empty Quarter.
— A pior noite da minha vida. — Shamron pensou nisso por um momento. — Na verdade — falou —, foi a segunda pior.
Ele não precisava falar qual tinha sido a primeira. Estava falando de Viena.
— Acho que Bella está mais chateada com tudo isso do que Uzi — continuou ele. — Infelizmente, ela se acostumou demais às armadilhas do poder.
— O que lhe dá essa impressão?
— A forma como se aferra a elas. Ela me culpa por tudo, claro. Acha que planejei isso desde o início.
— E é verdade.
Shamron fez uma cara que ficava em algum ponto entre um sorriso e uma careta.
— Não vai negar? — perguntou Gabriel.
— Nada — respondeu Shamron. — Tive minha cota de triunfos, mas no final, a sua será a carreira usada para medir a de todos os outros. É verdade que tive preferências,
especialmente depois de Viena. Mas minha fé em você foi recompensada com uma série de operações que estavam muito além dos talentos de alguém como Uzi. Certamente
até Bella percebe isso.
Gabriel não falou nada. Estava olhando um menino de dez ou onze anos andando de bicicleta na rua tranquila.
— E agora — falou Shamron — parece que você pode ter encontrado uma forma de atacar as finanças do açougueiro de Damasco. Com um pouco de sorte, será o primeiro
grande triunfo da era de Gabriel Allon.
— Achei que não acreditava em sorte.
— Não acredito. — Shamron acendeu outro cigarro, então, com um movimento do pulso, fechou o isqueiro com um golpe rápido. — O açougueiro tem a crueldade do pai,
mas não possui a mesma inteligência, o que o torna ainda mais perigoso. Nesse ponto, só o dinheiro importa. É o que mantém o clã unido. É por isso que os leais permanecem
leais. É por isso que as crianças estão morrendo aos milhares. Mas se você puder realmente controlar o dinheiro... — Ele sorriu. — As possibilidades serão infinitas.
— Realmente não tem nenhum conselho para mim?
— Mantenha o açougueiro no poder pelo tempo que ele continuar sendo palatável, mesmo remotamente. De outra forma, os próximos anos serão muito interessantes para
você e seus amigos em Washington e Londres.
— Então é assim que termina a Grande Primavera Árabe? — perguntou Gabriel. — Apoiamos um assassino em massa porque ele é o único que pode salvar a Síria da al-Qaeda?
— Longe de mim dizer que avisei, mas previ que a Primavera Árabe iria terminar em desastre e foi o que aconteceu. Os árabes ainda não estão prontos para a verdadeira
democracia, não no momento em que o islamismo radical está em ascensão. O melhor que podemos esperar são regimes autoritários decentes em lugares como Síria e Egito.
— Shamron parou, depois acrescentou: — Quem sabe, Gabriel? Talvez você possa encontrar alguma forma de convencer o dirigente a educar seu povo de forma apropriada
e tratá-los com a dignidade que merecem. Talvez possa obrigá-lo a parar de matar crianças com gás.
— Tem uma coisa que quero dele.
— O Caravaggio?
Gabriel assentiu.
— Primeiro encontre o dinheiro — falou Shamron, apagando o cigarro. — E depois o quadro.
Gabriel não falou mais nada. Estava olhando o menino na bicicleta aparecendo e desaparecendo debaixo das sombras no final da rua. Quando o menino sumiu, ele levantou
o rosto para o céu de Jerusalém. “Olhe para a neve”, ele pensou. “Não é linda?”
31
JERUSALÉM
O TOQUE DOS SINOS DA IGREJA acordou Gabriel de um sono sem sonhos. Ele ficou imóvel por um momento, incerto de onde estava. Então viu o retrato taciturno olhando
para ele da parede e percebeu que estava em seu próprio quarto na rua Narkiss. Saiu de debaixo dos lençóis, sem fazer barulho, para não acordar Chiara e foi até
a cozinha. A única prova do jantar da noite anterior era o forte cheiro doce de flores subindo dos vasos. Na pia limpa havia uma cafeteira francesa e uma lata de
Lavazza. Gabriel colocou a chaleira no fogão e ficou esperando a água ferver.
Tomou seu café no terraço e leu os jornais da manhã em seu BlackBerry. Então entrou no banheiro para fazer a barba e tomar banho. Quando saiu, Chiara ainda estava
dormindo profundamente. Ele abriu o guarda-roupa e ficou parado ali por um momento, pensando no que usaria. Um terno, decidiu, era impróprio; poderia enviar a mensagem
às tropas de que ele já estava no comando. No final, decidiu usar a roupa de sempre: um jeans desbotado, um pulôver de algodão e uma jaqueta de couro. Shamron tinha
seu uniforme, pensou, e ele também.
Alguns minutos depois das oito, ouviu o comboio de carros perturbando o silêncio da rua Narkiss. Beijou Chiara suavemente e depois desceu para encontrar a limusine
que o aguardava. Esta o levou para o leste, cruzando Jerusalém até a Porta do Esterco, a entrada principal do Bairro Judeu da Cidade Velha. Ele passou pelos detectores
de metal e, junto com seus guarda-costas, cruzou a praça aberta em direção ao Muro das Lamentações, a tão disputada reminiscência da antiga barreira de retenção
que já tinha cercado o grande Templo de Jerusalém. Em cima do Muro, brilhando com o sol do começo da manhã, estava a dourada Cúpula da Rocha, o terceiro lugar mais
sagrado do islamismo. Havia muitos aspectos no conflito árabe-israelense, mas Gabriel tinha concluído que tudo se resumia a isso — duas fés presas em uma luta mortal
pela mesma parcela de uma terra sagrada. Poderia haver períodos de calma, meses ou até anos sem bombas ou sangue; mas Gabriel temia que nunca haveria paz.
A porção do Muro das Lamentações visível da praça tinha 57 metros de largura e 19 metros de altura. O verdadeiro muro ao redor da colina do Monte do Templo, no entanto,
era muito mais longo, descendo uns 13 metros depois da praça e se estendendo mais uns quatrocentos metros até o Bairro Muçulmano, onde estava escondido por trás
de estruturas residenciais. Depois de anos de escavações arqueológicas cheias de problemas políticos e religiosos, agora era possível caminhar por quase toda a extensão
do muro através do Túnel do Muro das Lamentações, uma passagem subterrânea que ia da praça até a Via Dolorosa.
A entrada do túnel estava do lado esquerdo da praça, não muito longe do Arco de Wilson. Gabriel passou pela moderna porta de vidro e, seguido por seus guarda-costas,
desceu uma escada de alumínio até o porão. Um caminho recentemente pavimentado seguia a base do muro. Ele o seguiu passando pelas enormes pedras do tempo de Herodes
até chegar a uma seção do túnel que estava escondida por uma cortina de plástico opaco. Além da cortina havia uma cova de escavação retangular onde uma figura solitária,
um homem pequeno de meia idade, mexia no solo sob um cone de suave luz branca. Ele pareceu não ter percebido a presença de Gabriel, mas foi só impressão. Seria mais
fácil surpreender um esquilo do que Eli Lavon.
Outro momento se passou antes de Lavon levantar a cabeça e sorrir. Ele tinha o cabelo ralo e desgrenhado, um rosto quase sem traços que mesmo o artista mais talentoso
teria dificuldades para capturar na tela. Eli Lavon era um fantasma, um camaleão que facilmente passava despercebido e logo era esquecido. Shamron já tinha dito
que ele poderia desaparecer enquanto apertava sua mão. Não estava muito longe da verdade.
Gabriel tinha trabalhado com Lavon pela primeira vez na Ira de Deus, a operação secreta da inteligência israelense para caçar e matar os autores do massacre das
Olimpíadas de Munique. No léxico da equipe, baseado no hebreu, Lavon tinha sido um ayin, um rastreador e artista da vigilância. Durante três anos ele tinha seguido
os terroristas do Setembro Negro por toda a Europa e Oriente Médio, geralmente com uma proximidade perigosa. O trabalho o deixou com várias desordens por estresse,
incluindo um famoso estômago instável que o incomodava até hoje.
Quando a unidade foi dissolvida em 1975, Lavon se estabeleceu em Viena, onde abriu uma pequena unidade investigativa chamada Alegações e Investigações da Época da
Guerra. Operando com um orçamento baixíssimo, ele conseguiu encontrar bens saqueados no Holocausto valendo milhões de dólares e teve um papel importante num acordo
multibilionário com os bancos suíços. O trabalho fez com que ganhasse poucos admiradores em Viena e, em 2003, uma bomba explodiu em seu escritório, matando duas
jovens funcionárias. Abalado, ele voltou a Israel para seguir sua primeira paixão, que era a arqueologia. Ele agora era professor adjunto na Universidade Hebraica
e participava regularmente em escavações por todo o país. Tinha passado a maior parte dos dois últimos anos remexendo o solo do Túnel do Muro das Lamentações.
— Quem são seus amiguinhos? — perguntou ele, olhando para os guarda-costas parados nas pontas da cova.
— Eu encontrei os dois perdidos na praça.
— Não vão estragar nada, vão?
— Não ousariam.
Lavon olhou para o chão e recomeçou a trabalhar.
— O que você tem aí? — perguntou Gabriel.
— Umas moedas perdidas.
— Quem deixou cair?
— Alguém muito bravo pelo fato de que os persas estavam a ponto de conquistar Jerusalém. É óbvio que estava com pressa.
Lavon esticou o braço e ajustou o ângulo de sua lâmpada de trabalho. O fundo da vala brilhou com os dourados pedacinhos encrustados.
— O que são? — perguntou Gabriel.
— Trinta e seis moedas de ouro da era bizantina e um grande medalhão com um menorá. Provam que os judeus viviam aqui antes da conquista muçulmana de Jerusalém em
638. Para a maioria dos arqueólogos bíblicos, isso seria a descoberta de toda uma vida. Mas não para mim. — Lavon olhou para Gabriel e acrescentou: — Nem para você.
Gabriel olhou sobre o ombro dele para as pedras do Muro. Um ano antes, numa câmara secreta de cinquenta metros debaixo da superfície do Monte do Templo, ele e Lavon
tinham descoberto 22 pilares do Templo de Jerusalém de Salomão, provando assim, sem nenhuma dúvida, que o antigo santuário judeu, descrito no Livro dos Reis e nas
Crônicas, tinha realmente existido. Eles também tinham descoberto uma enorme bomba que, se tivesse detonado, teria destruído todo o sagrado planalto. Os pilares
agora estavam em uma exibição de alta segurança no Museu de Israel. Um deles teve de ser especialmente limpo antes de ser posto em exposição porque estava manchado
com o sangue de Lavon.
— Recebi uma ligação do Uzi na noite passada — falou Lavon depois de um momento. — Ele me contou que você poderia dar uma passada.
— Falou o motivo?
— Mencionou algo sobre um Caravaggio perdido e uma empresa chamada LXR Investments. Falou que você estava interessado em adquiri-la, junto com o resto da Mal S.A.
— Pode ser feito?
— Não dá para fazer muita coisa de fora. No final, você vai precisar da ajuda de alguém que possa entregar as chaves do reino.
— Então nós vamos encontrar essa pessoa.
— Nós? — Quando Gabriel não respondeu, Lavon se inclinou e começou a mexer no solo ao redor de uma das moedas antigas. — O que precisa que eu faça?
— Exatamente o que você está fazendo agora — respondeu Gabriel. — Mas quero que use um computador e um balanço financeiro em vez de uma espátula e um pincel.
— Hoje em dia, prefiro uma espátula e um pincel.
— Eu sei, Eli, mas não vou conseguir fazer isso sem você.
— Não vai ser nada difícil, vai?
— Não, Eli, claro que não.
— Você sempre fala isso, Gabriel.
— E?
— Sempre é.
Gabriel se abaixou e desconectou a lâmpada de sua fonte de energia. Lavon trabalhou na escuridão por mais um momento. Então se levantou, limpou as mãos nas calças
e saiu da cova.
Um solteirão, Lavon mantinha um pequeno apartamento no distrito Talpiot de Jerusalém, na estrada para Hebron. Eles pararam ali tempo suficiente para que vestisse
roupas limpas e depois seguiram pela Bab al-Wad até o Boulevard Rei Saul. Depois de entrarem no edifício “preto”, eles subiram três lances de escadas e caminharam
por um corredor sem janelas até uma porta com a inscrição 456C. A sala do outro lado já tinha sido um depósito para computadores obsoletos e móveis velhos, geralmente
usados pela equipe noturna como um ponto de encontro clandestino para relações românticas. Agora era conhecido por todos no Boulevard Rei Saul apenas como o Covil
de Gabriel.
O código para a fechadura era a versão numérica da data de aniversário de Gabriel, que tinha a reputação de ser o segredo mais bem guardado do Escritório. Com Lavon
olhando por cima do ombro, ele digitou o código e abriu a porta. Lá dentro estava Dina Sarid, uma mulher pequena, de cabelos escuros com um ar de viúva precoce.
Um banco de dados humano, ela era capaz de recitar a hora, lugar, perpetradores e números de baixas de todo ato de terrorismo cometido contra alvos israelenses e
ocidentais. Dina já tinha dito a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles mesmos. E Gabriel acreditava nela.
— Onde estão os outros? — perguntou ele.
— Presos em Recursos Humanos.
— Qual é o problema?
— Aparentemente, os chefes de divisão estão revoltados. — Dina parou, então acrescentou: — Isso é o que acontece com um serviço de inteligência quando se espalha
que o chefe não vai durar.
— Talvez eu deva subir e conversar com os chefes de divisão.
— Espere alguns minutos.
— Tem sido tão ruim assim?
— Criei uma lista de agentes da al-Qaeda que se estabeleceram ao lado na Síria — jihadistas globais sérios que precisam ser tirados de circulação permanentemente.
E adivinha o que acontece sempre que proponho uma operação?
— Nada.
Dina assentiu lentamente.
— Estamos congelados no tempo — falou ela. — Estamos marcando passo justamente no momento que menos podemos.
— Isso vai acabar, Dina.
Bem nesse momento a porta se abriu e Rimona Stern entrou na sala. Mikhail Abramov apareceu logo depois, seguido alguns minutos mais tarde por Yaakov Rossman, que
parecia não dormir há um mês. Em seguida, apareceu um par de agentes de campo chamados Mordecai e Oded, seguidos por Yossi Gavish, um homem alto e careca vestido
com cotelê e tweed. Yossi era um alto funcionário de Pesquisa, que é como o Escritório chamava sua divisão analítica. Nascido na região Golders Green de Londres,
ele tinha estudado em Oxford e ainda falava hebraico com um forte sotaque inglês.
Dentro dos corredores e salas de conferência do Boulevard Rei Saul, os oito homens e mulheres reunidos na sala subterrânea eram conhecidos pelo codinome Barak, a
palavra em hebreu para raio, por sua habilidade incomum de se reunir e atacar rapidamente. Eram um serviço dentro do serviço, uma equipe de agentes sem igual e sem
medo de nada. Durante sua existência, tinha às vezes sido necessário admitir gente de fora no meio deles — um jornalista investigativo britânico, um bilionário russo,
a filha de um homem que tinham matado —, mas nunca antes tinham permitido que outro agente do Escritório se juntasse à sua fraternidade. Portanto, ficaram surpresos
quando, assim que o relógio marcou dez horas, Bella Navot apareceu na porta. Estava vestida para a reunião com uma calça cinza e trazia uma pasta de arquivos ao
peito. Ficou parada na porta por um momento, como se esperasse um convite para entrar, antes de se sentar, sem falar nada, perto de Yossi em uma das mesas de trabalho
comuns.
Se a equipe achou estranha a presença de Bella, não deu nenhum sinal disso quando Gabriel se levantou e caminhou até o último quadro-negro existente em todo o Boulevard
Rei Saul. Nele estavam escritas três palavras: SANGUE NUNCA DORME. Apagou-as com um único movimento da mão e no lugar escrever as letras LXR. Então contou à equipe
a incrível série de eventos que tinham levado àquela reunião, começando com o assassinato de um espião britânico transformado em ladrão de arte chamado Jack Bradshaw
e terminando com o bilhete que Bradshaw tinha deixado para Gabriel em seu cofre no Freeport de Genebra. Na morte, Bradshaw tinha tentado corrigir seus pecados ao
dar a Gabriel a identidade do homem que estava comprando quadros roubados a rodo: o criminoso dirigente da Síria. Também tinha fornecido a Gabriel o nome da empresa
de fachada que o dirigente tinha usado para essas compras: LXR Investments of Luxembourg. Certamente, a LXR era apenas uma pequena estrela numa galáxia de riqueza
global, sendo que boa parte dela estava cuidadosamente escondida por baixo de camadas de armações e empresas de fachada. Mas uma rede de riqueza, assim como uma
de rede de terroristas, precisava ter uma cabeça operativa habilidosa para funcionar. O dirigente tinha confiado o dinheiro de sua família a Kemel al-Farouk, o guarda-costas
do pai do dirigente, o assistente que torturava e matava sob o comando do regime. Mas Kemel não podia administrar o dinheiro ele mesmo, não com a NSA e seus sócios
monitorando cada movimento seu. Em algum lugar, havia um homem de confiança — um advogado, um banqueiro, um parente — que tinha o poder de mover esses bens como
quisesse. Usariam a LXR como uma forma de encontrá-lo. E Bella Navot iria guiá-los em todos os passos.

 

 

 


CONTINUA