Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASTELO / Franz Kafka
O CASTELO / Franz Kafka

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

ERA TARDE DA NOITE quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio. Depois caminhou à procura de um lugar para passar a noite; no albergue as pessoas ainda estavam acordadas, o dono não tinha quarto para alugar mas, extremamente surpreso e perturbado com o hóspede retardatário, propôs deixálo dormir sobre um saco de palha na sala e K. concordou. Alguns camponeses ainda estavam sentados tomando cerveja mas ele não queria conversar com ninguém, pegou pessoalmente o saco de palha no sótão e deitou-se perto da estufa. Estava quente ali, os camponeses quietos, ele os examinou ainda um pouco com os olhos cansados e em seguida adormeceu. Mas pouco tempo depois já foi despertado. Um jovem, em trajes de cidade, rosto de ator, olhos estreitos, sobrancelhas fortes, encontrava-se ao seu lado com o dono do albergue. Os camponeses também ainda estavam lá, alguns tinham voltado suas cadeiras para ver e ouvir melhor.

.
.
.

.
.
.

O jovem desculpou-se muito cortesmente por ter acordado K., apresentou-se como filho do castelão e depois disse: — Esta aldeia é propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no castelo. Ninguém pode fazer isso sem permissão do conde. Mas o senhor não tem essa permissão, ou pelo menos não a apresentou. K. tinha erguido a metade do corpo, alisado os cabelos para trás com os dedos; olhou os dois de baixo para cima e disse: — Em que aldeia eu me perdi? Então existe um castelo aqui? — Certamente — disse o jovem devagar, enquanto aqui e ali alguém balançava a cabeça em relação a K. — O castelo do senhor conde Westwest. — E é preciso ter permissão para pernoitar? — perguntou K. como se quisesse se convencer de que não tinha por acaso sonhado com as recentes informações. — É preciso ter a permissão — foi a resposta e havia um desdém grosseiro por K. quando o jovem, com o braço esticado, perguntou ao dono do albergue e aos fregueses: — Ou será que não é preciso ter permissão? — Então tenho de ir buscar uma permissão — disse K. bocejando e empurrou a coberta como se quisesse levantar-se.
— Sim, mas de quem? — perguntou o jovem. — Do senhor conde — disse K. — Não resta outra coisa a fazer. — Agora, à meia-noite, buscar a permissão do senhor conde? — exclamou o jovem e recuou um passo. — Isso não é possível? — perguntou K. impassível. — Por que então me acordou? Mas dessa vez o jovem ficou fora de si. — Isso são maneiras de vagabundo! — bradou ele. — Exijo respeito pela autoridade do conde. Eu o acordei para comunicar-lhe que o senhor deve abandonar imediatamente o condado. — Chega de comédia — disse K. em voz ostensivamente baixa, deitou-se e puxou a coberta. — O senhor está indo um pouco longe demais, jovem, e amanhã eu ainda volto a falar do seu comportamento. O dono do albergue e aqueles senhores são testemunhas, se é que preciso de testemunhas. Mas de resto deixe-me dizer-lhe que sou o agrimensor que o conde mandou chamar. Meus ajudantes chegam amanhã na carruagem com os aparelhos. Eu não quis perder a oportunidade de fazer uma caminhada pela neve, mas infelizmente me desviei algumas vezes do caminho e por isso cheguei tão tarde. Eu sabia por conta própria, ainda antes que o senhor me ensinasse, que era tarde demais para me apresentar agora no castelo. Por isso também me contentei com este pouso noturno que o senhor — dito com suavidade — teve a indelicadeza de perturbar. Com isso estão encerradas minhas explicações. Boa noite, senhores. E K. voltou-se para o lado da estufa. — Agrimensor? — ouviu ainda perguntarem com hesitação às suas costas, depois o silêncio foi geral. Mas o jovem recompôs-se logo e disse ao dono do albergue num tom suficientemente abafado para soar como consideração pelo sono de K. e alto o suficiente para ser entendido por ele: — Vou pedir informações pelo telefone. Como, havia também um telefone neste albergue de aldeia? Estavam providos de excelentes instalações. Surpreendido no caso particular, no geral K. certamente o esperava. Evidenciou-se que o telefone estava colocado quase sobre sua cabeça, na sua sonolência ele não o tinha visto. Se o jovem precisava telefonar, então não podia nem com a melhor das boas vontades poupar o sono de K.; tratava-se apenas de saber se K. o deixaria telefonar e ele decidiu que sim. Mas também não tinha sentido algum fazer o papel de quem dormia e por isso ele voltou a ficar deitado de costas. Viu os camponeses se reunirem timidamente e confabularem, a chegada de um agrimensor não era pouca coisa. A porta da cozinha se abrira, lá estava, ocupando todo o espaço, a poderosa figura da dona do albergue; na ponta dos pés o dono se aproximou dela para informá-la. E então começou a conversa telefônica. O castelão estava dormindo, mas um subcastelão, um dos subcastelões, um senhor Fritz, atendeu. O jovem, que se apresentou como Schwarzer, contou de que modo havia encontrado K., um homem dos seus trinta anos, bastante esfarrapado, dormindo tranqüilamente sobre um saco de palha, tendo por travesseiro uma minúscula mochila e ao alcance da mão um cajado cheio de nós. Naturalmente ele lhe parecera suspeito e, uma vez que o dono do albergue tinha claramente negligenciado o dever, fora dever dele, Schwarzer, ir ao fundo da questão. Ser acordado, ouvir o interrogatório e a ameaça — no caso, de rigor, de expulsão do território do conde — tudo isso K. recebeu de má vontade, aliás, como no final se evidenciou, talvez com razão, pois afirma ser um agrimensor requisitado pelo senhor conde. Naturalmente é no mínimo dever formal averiguar essa afirmação e por isso Schwarzer pede ao senhor Fritz que se informe na chancelaria central se realmente um agrimensor assim é esperado e dê logo resposta pelo telefone. Depois houve silêncio, do outro lado Fritz se informava e aqui se esperava a resposta, K. ficou na mesma posição, não se virou uma só vez, não parecia nem um pouco curioso, continuou olhando o vazio à sua frente. O relato de Schwarzer, na sua mistura de maldade e prudência, deu-lhe uma idéia da formação de certo modo diplomática de que no castelo mesmo gente miúda como Schwarzer dispunha com facilidade. E lá também não faltava zelo — a chancelaria central tinha um serviço noturno. E manifestamente respondia bem rápido, pois logo Fritz estava tocando. Este informe entretanto pareceu muito breve, pois imediatamente Schwarzer bateu o fone com fúria. — Bem que eu disse — gritou. — Nem sinal de agrimensor, um reles e mentiroso vagabundo, provavelmente algo pior. Por um instante K. pensou que todos, Schwarzer, camponeses, dono e dona do albergue, iriam se atirar sobre ele; para se desviar pelo menos do primeiro assalto deslizou inteiro por baixo da coberta, aí — esticou devagar, outra vez para fora, a cabeça —, aí o telefone soou novamente e, conforme pareceu a K., com uma força especial. Embora fosse improvável que de novo dissesse respeito a K., ficaram todos paralisados e Schwarzer voltou ao aparelho. Ali ouviu até o fim uma explicação mais longa e depois disse em voz baixa: — Um engano, então? Isso é bastante desagradável para mim. O próprio chefe do escritório telefonou? Estranho, estranho. Mas como devo agora explicar ao senhor agrimensor? K. ficou escutando atentamente. Então o castelo o havia designado agrimensor. Por um lado isso era desfavorável a ele, pois indicava que no castelo se sabia tudo o que era preciso a seu respeito, as relações de força tinham sido pesadas e aceitavam a luta sorrindo. Mas por outro lado isso também era propício, pois a seu ver provava que o subestimavam e que ele teria mais liberdade do que de início podia esperar. E se acreditavam com esse seu reconhecimento como agrimensor — do ponto de vista moral, sem dúvida superior — conservá-lo num estado de medo contínuo, então eles se enganavam: isso lhe dava um leve tremor, mas era tudo. Com um sinal K. despachou Schwarzer, que se aproximava timidamente, recusou-se a passar para o quarto do dono do albergue, para o qual o pressionavam, só aceitou dele uma bebida para dormir, da dona do albergue uma bacia com sabão e toalha e nem precisou exigir que a sala fosse esvaziada, pois todos foram juntos para fora com os rostos virados, provavelmente para não serem reconhecidos no dia seguinte; a lâmpada foi apagada e finalmente ele ficou em paz. Dormiu profundamente até de manhã, quase sem ser perturbado uma ou duas vezes pelos ratos que passavam fugidios por ele. Depois do café-da-manhã, que segundo informações do dono do albergue devia ser pago pelo castelo, como aliás todas as despesas de K., ele quis ir logo à aldeia. Mas como o dono do albergue — com quem até então tinha falado apenas o estritamente necessário, por conservar na memória o seu comportamento de ontem — não parava de circular em torno dele com uma súplica muda, ficou penalizado e mandou-o sentar-se um instante à sua mesa. — Ainda não conheço o conde — disse K. — É verdade que ele paga bem um bom trabalho? Quando alguém como eu viaja para tão longe da mulher e do filho, quer levar para casa alguma coisa. — Com isso o senhor não precisa se preocupar, não se ouve queixa de mau pagamento. — Bem — disse K. —, não me incluo entre os tímidos e posso dizer o que penso até para um conde, mas naturalmente é bem melhor entender-se em paz com os senhores. O dono do albergue estava sentado diante de K. na beira do banco da janela, não ousava sentar-se mais comodamente e fitava K. o tempo todo com grandes olhos castanhos e medrosos. Primeiro ele tinha querido impor sua presença a K. e agora a impressão era de que preferia fugir dali. Temia ser indagado sobre o conde? Temia a falta de confiabilidade do “senhor” por quem ele tomava K.? K. tinha que distrair sua atenção. Olhou para o relógio e disse: — Logo chegam meus ajudantes, pode abrigá-los aqui? — Sem dúvida — disse ele. — Mas eles não vão morar com o senhor no castelo? Renunciava tão fácil e de bom grado aos hóspedes e em particular a K., a quem despachava sem mais para o castelo?
— Isso ainda não é certo — disse K. — Primeiro preciso saber que trabalho eles têm para mim. Se por exemplo eu tiver de trabalhar aqui embaixo, será mais sensato também morar aqui embaixo. Temo também que não me agrade a vida lá em cima no castelo. Quero estar sempre livre. — Você não conhece o castelo — disse em voz baixa o dono do albergue. — Sem dúvida — disse K. — Não se deve julgar prematuramente. Por enquanto a única coisa que sei do castelo é que lá eles são capazes de procurar o agrimensor certo. Talvez ainda haja outros méritos lá. E levantou-se para se livrar do dono do albergue, que mordia inquieto os lábios. Não era fácil conquistar a confiança desse homem. À saída chamou a atenção de K. um retrato escuro, numa moldura escura, pendurado na parede. Já do seu pouso ele o havia notado, mas da distância não tinha distinguido os pormenores e acreditava que o retrato propriamente dito fora removido da moldura e só se podia ver a tampa preta da parte de trás. Mas era de fato um retrato, como agora se evidenciava — o busto de um homem de cerca de cinqüenta anos. Mantinha a cabeça tão afundada sobre o peito que mal se via alguma coisa dos olhos; a testa alta e pesada e o forte nariz adunco pareciam decisivos para essa inclinação. A barba cheia, esmagada no queixo em conseqüência da postura do crânio, reerguia-se embaixo. A mão esquerda estava espalmada sobre os pêlos cerrados, mas não conseguia mais suspender a cabeça. — Quem é? — perguntou K. — O conde? K., em pé diante do retrato, não se virou para dirigir o olhar ao dono do albergue. — Não, o castelão. — Eles têm um belo castelão no castelo, não há dúvida — disse K. — Pena que o filho tenha se desviado tanto. — Não — disse o dono do albergue, puxou K. um pouco para si e sussurrou-lhe no ouvido: — Schwarzer ontem exagerou, o pai dele é apenas um subcastelão, e até mesmo um dos últimos. Nesse instante, o dono do albergue pareceu a K. uma criança. — O patife! — disse K. rindo, mas o dono do albergue não riu com ele e disse: — O pai dele também é poderoso. — Ora, ora — disse K. — Você considera todo o mundo poderoso. A mim também, talvez? — Você — disse ele, tímido mas sério —, você eu não considero poderoso. — Então sabe observar bem as coisas — disse K. — Digo em confiança que de fato não sou poderoso. Conseqüentemente é provável que diante dos poderosos eu não tenha menos respeito que você, só que não sou tão honesto como você e não é sempre que quero admitir isso.
E para consolar o dono do albergue e fazer-se mais simpático deu-lhe um tapinha na face. Ele então sorriu um pouco. Era realmente jovem, com o rosto macio e quase sem barba. Como tinha chegado àquela mulher encorpada e envelhecida que se via ali ao lado, atrás de uma janelinha, com os cotovelos distantes do corpo, lidando na cozinha? Mas agora K. não queria insistir mais fundo com ele, nem afugentar o sorriso afinal conquistado, por isso fez-lhe mais um sinal para que abrisse a porta e saiu para a bela manhã de inverno. Agora via lá em cima o castelo nitidamente recortado no ar claro, mais nítido por causa da neve que, amoldando-se a todas as formas, se estendia numa camada fina depositada por toda parte. No alto da encosta, aliás, parecia haver muito menos neve do que aqui na aldeia, onde K. avançava com esforço não menor que o de ontem na estrada. Ali a neve chegava às janelas das choupanas e pouco acima pesava sobre o telhado baixo, mas na altura da encosta tudo se alçava livre e leve para cima, ou ao menos assim parecia visto de cá. No conjunto o castelo, tal como se mostrava da distância, correspondia às expectativas de K. Não era nem um burgo feudal nem uma residência nova e suntuosa, mas uma extensa construção que consistia de poucos edifícios de dois andares e de muitos outros mais baixos estreitamente unidos entre si; se não se soubesse que era um castelo seria possível considerá-lo uma cidadezinha. K. viu apenas uma torre mas não era possível discernir se pertencia a uma habitação ou a uma igreja. Bandos de gralhas circulavam ao seu redor. Com os olhos voltados para o castelo, K. continuou andando, nada além disso o preocupava. Mas, ao se aproximar, o castelo o decepcionou, na verdade era só uma cidadezinha miserável, um aglomerado de casas de vila, que se distinguiam por serem todas talvez de pedra, mas a pintura tinha caído havia muito tempo e a pedra parecia se esboroar. K. lembrou-se fugazmente da sua pequena cidade natal; em comparação com aquele suposto castelo ela dificilmente ficava atrás, se K. tivesse vindo só para visitá-lo teria sido uma pena a longa peregrinação — ele teria agido mais sensatamente revendo o berço antigo, aonde não ia fazia tanto tempo. E comparou mentalmente a torre da igreja da terra natal com a torre lá em cima. Aquela se estreitando definida, sem hesitação, reta para o alto e acabando num telhado largo de telhas vermelhas, uma construção terrena — o que mais podemos construir? — mas com um alvo mais elevado que o amontoado de casas e uma expressão mais clara que a do turvo dia de trabalho. A torre aqui em cima — a única visível —, torre de uma moradia, como agora se via, talvez do corpo principal do castelo, era uma construção redonda e uniforme, em parte piedosamente coberta de hera, com janelas pequenas que agora cintilavam ao sol — havia nisso algo alucinado — e terminando numa espécie de terraço cujas ameias denteavam o céu azul, inseguras, irregulares, quebradiças como se desenhadas pela mão medrosa ou negligente de uma criança. Era como se algum morador deprimido, que por justa razão devesse permanecer preso no cômodo mais remoto da casa, tivesse rompido o telhado e se levantado para mostrar-se ao mundo. K. estacou de novo, como se imóvel tivesse mais força de julgamento. Mais foi perturbado. Atrás da igreja da aldeia, ao lado da qual havia parado — na verdade era apenas uma capela, ampliada à maneira de um celeiro, para poder acolher a comunidade —, estava a escola. Um prédio baixo e comprido, unindo curiosamente o caráter do provisório e do muito antigo, ficava atrás de um jardim cercado de grades, agora um campo de neve. Naquele momento as crianças saíam com o professor. Elas o rodeavam num denso aglomerado, todos os olhares dirigiam-se a ele, palravam sem parar de todos os lados, K. absolutamente não entendia sua fala rápida. O professor, um homem moço, pequeno, de ombros estreitos, mas — sem que isso fosse ridículo — muito aprumado, já havia captado K. com o olho, a distância; de qualquer modo, excetuando-se o seu grupo, K. era a única pessoa à vista. Por ser estrangeiro, K. cumprimentou primeiro, principalmente diante de um homenzinho tão autoritário. — Bom dia, professor — disse ele. De um só golpe as crianças emudeceram; na certa esse silêncio súbito devia agradar ao professor como introdução às suas palavras. — Está olhando o castelo? — perguntou, mais brando do que K. havia esperado, mas num tom de quem não aprovava o que K. estava fazendo. — Sim — disse K. — Sou de fora, estou aqui só desde ontem à noite. — Não gosta do castelo? — perguntou rápido o professor. — Como? — replicou K. um pouco desconcertado e repetiu a pergunta numa forma mais suave: — Se gosto do castelo? Por que acha que não gosto? — Nenhum forasteiro gosta — disse o professor. Para não falar nada inoportuno, K. desviou a conversa e perguntou: — O senhor decerto conhece o conde. — Não — disse o professor e fez menção de ir embora. Mas K. não cedeu e perguntou mais uma vez: — Como, o senhor não conhece o conde? — Como iria conhecê-lo? — disse o professor em voz baixa e acrescentou alto em francês: — Leve em consideração a presença de crianças inocentes. K. sentiu-se então no direito de perguntar: — Poderia visitá-lo, senhor professor? Vou ficar mais tempo aqui e já agora me sinto um pouco abandonado, não tenho relação com os camponeses nem pertenço ao castelo.
— Não há diferença entre os camponeses e o castelo — disse o professor. — Pode ser — disse K. — Isso não muda em nada minha situação. Poderia fazer-lhe uma visita? — Moro na rua do Cisne, na casa do açougueiro. Na realidade isso era mais uma informação de endereço do que um convite; no entanto K. disse: — Muito bem, eu irei. O professor fez um aceno de cabeça e continuou a andar com o bando de crianças, que logo começaram a gritar outra vez. Logo em seguida desapareceram numa ruazinha que descia abruptamente. Mas K. estava distraído e irritado com a conversa. Pela primeira vez desde a chegada ele sentiu um cansaço real. O longo caminho até ali parecia a princípio não tê-lo afetado — como havia vagueado tranqüilo aqueles dias, passo a passo! — mas agora mostravam-se as conseqüências do esforço desmedido, sem dúvida na hora errada. Mostrava-se irresistivelmente impelido a buscar novos contatos, mas cada conhecimento novo acentuava a fadiga. Se no estado em que se encontrava ele se obrigasse a esticar o passeio pelo menos até a entrada do castelo teria feito mais que o suficiente. Assim, seguiu em frente, mas era um extenso caminho. Pois a rua em que estava, a principal da aldeia, não levava à encosta do castelo, apenas para perto dela, e depois, como que de propósito, fazia uma curva e, embora não se afastasse do castelo, também não se aproximava dele. K. estava sempre esperando que ela afinal tomasse o rumo do castelo e só porque o esperava é que continuava a andar; evidentemente por causa do cansaço ele hesitava em abandonar a rua; espantavase também com a extensão da aldeia, que não tinha fim, sem parar as casinhas, os vidros das janelas cobertos de gelo, a neve, o vazio de gente — finalmente ele escapou dessa rua paralisante, uma viela estreita o acolheu, neve mais profunda ainda, era uma tarefa árdua erguer os pés que afundavam, o suor brotava, de repente ele parou e não pôde mais continuar. Bem, não estava isolado, à direita e à esquerda havia cabanas de camponeses, fez uma bola de neve e atirou-a contra uma janela. Imediatamente abriu-se a porta — a primeira que se abria em todo o trajeto da aldeia — e lá estava um velho camponês de gibão de pele marrom, a cabeça inclinada para o lado, amistoso e frágil. — Posso entrar um pouco na sua casa? — disse K. — Estou muito cansado. Não ouviu absolutamente o que o velho disse, aceitou agradecido quando foi empurrada ao seu encontro uma tábua que logo o salvou da neve e com alguns passos estava dentro da casa. Um grande cômodo na penumbra. Quem vinha de fora a princípio não via nada. K. cambaleou contra uma tina, a mão de uma mulher o segurou. De um canto chegavam muitos gritos de criança. De outro saíam rolos de fumaça e transformavam a meia-luz em escuridão: K. parecia estar em pé no meio das nuvens. — Ele está bêbado — disse alguém. — Quem é o senhor? — bradou uma voz imperiosa e, sem dúvida dirigida para o velho, disse: — Por que você o deixou entrar? Pode-se deixar entrar tudo o que fica rondando pelas ruas? — Sou o agrimensor do conde — disse K., procurando desse modo justificar-se diante da pessoa que continuava invisível. — Ah, é o agrimensor — disse uma voz de mulher e depois seguiu-se um silêncio total. — Então me conhecem? — perguntou K. — Certamente — disse a mesma voz, ainda lacônica. O fato de que se conhecia K. parecia não recomendá-lo. Por fim a fumaça se dissipou um pouco e K. pôde lentamente orientar-se. Parecia ser um dia de limpeza geral. Perto da porta lavava-se roupa. A fumaça porém vinha do canto esquerdo, onde, numa tina de madeira de um tamanho que K. ainda nunca tinha visto — mais ou menos o de duas camas —, dois homens se banhavam na água que soltava vapor. Mas mais surpreendente ainda, sem que se soubesse exatamente no que consistia a surpresa, era o canto da direita. De uma grande fresta, a única na parede dos fundos, chegava, provavelmente do pátio, uma pálida luz de neve, que dava um brilho como se fosse de seda ao vestido de uma mulher bem no canto, quase deitada de cansaço numa poltrona de espaldar alto. Ela segurava ao seio um bebê. À sua volta brincavam algumas crianças, filhos de camponeses, como se podia ver, mas ela não parecia pertencer ao seu meio — certamente a enfermidade e o cansaço refinam até os camponeses. — Sente-se — disse um dos homens, de barba cheia e além disso um bigode sob o qual ele, ofegante, conservava a boca sempre aberta; apontou, o que era cômico de se ver, com a mão sobre a borda da tina para uma arca e nesse ato respingou de água quente o rosto todo de K. Sobre a arca já estava sentado, olhando sonolentamente para a frente, o velho que tinha admitido K. na casa. K. estava grato por finalmente poder sentar-se. Agora ninguém mais se preocupava com ele. A mulher que lavava roupa na tina, loira, de uma opulência juvenil, cantava em voz baixa enquanto trabalhava, os homens no banho batiam com os pés e giravam o corpo, as crianças queriam se aproximar deles, mas eram constantemente rechaçadas pelos possantes espirros de água que também não poupavam K., a mulher na poltrona continuava como se estivesse inanimada, não baixava o olhar nem mesmo para a criança ao seio, mas dirigia-o para um alvo indefinido no alto. K. contemplou-a longamente, uma imagem bela e triste que não se alterava, mas depois deve ter adormecido, pois quando, chamado por uma voz alta, se sobressaltou, sua cabeça se apoiava no ombro do velho ao lado. Os homens haviam terminado o banho — na banheira agora agitavam-se as crianças vigiadas pela mulher loira — e estavam vestidos diante de K. Via-se que o barbudo vociferante era o menos importante dos dois. O outro, não mais alto que ele, mas com muito menos barba, era um homem quieto, de pensamento lento, uma figura larga, o rosto também largo, e conservava a cabeça baixa. — Senhor agrimensor — disse ele —, o senhor não pode ficar aqui. Perdoe a indelicadeza. — Eu não queria ficar — disse K. — Só queria descansar um pouco. Já descansei e agora vou embora. — O senhor provavelmente está admirado com a pouca hospitalidade — disse o homem —, mas a hospitalidade não é costume entre nós, não precisamos de hóspedes. Um pouco recomposto do sono, o ouvido mais aguçado que antes, K. alegrouse com as palavras francas. Movia-se mais livremente, apoiando ora aqui, ora ali, seu cajado, aproximou-se da mulher na poltrona, era aliás o maior fisicamente no recinto. — Sem dúvida — disse K. —, que necessidade têm de hóspedes? Mas de vez em quando precisa-se de um, por exemplo de mim, o agrimensor. — Isso eu não sei — disse o homem com lentidão. — Se chamaram, então provavelmente precisam do senhor, com certeza é uma exceção, mas nós, os pequenos, respeitamos as regras, o senhor não pode nos levar a mal por isso. — Não, não — disse K. —, só posso agradecer, ao senhor e a todos aqui. E sem que ninguém esperasse K. virou-se literalmente num salto e ficou em pé diante da mulher. Com olhos cansados e azuis ela fitou K., um lenço de seda transparente descia-lhe até o meio da testa, o bebê dormia no seu seio. — Quem é você? — perguntou K. Com menosprezo — não estava claro se o desdém cabia a K. ou às suas próprias palavras — ela disse: — Uma moça do castelo. Tudo isso tinha durado só um instante, à direita e à esquerda de K. já se postavam os dois homens; ele foi puxado para a porta em silêncio mas com toda a força, como se não existisse outro meio de entendimento. Alguma coisa nisso alegrou o velho e ele bateu palmas. Também a lavadeira riu entre as crianças que de repente começaram a fazer barulho como loucas. Mas logo K. estava na rua, os homens o vigiavam da soleira da porta, a neve caía outra vez, no entanto parecia estar um pouco mais claro. O homem de barba cheia gritou impaciente: — Aonde quer ir? Este lado dá para o castelo, este para a aldeia. K. não lhe respondeu, mas para o outro, que apesar da superioridade parecia o mais acessível, ele disse: — Quem são vocês? A quem devo agradecer a minha estada? — Sou o mestre-de-curtume Lasemann — foi a resposta. — Mas o senhor não tem de agradecer a ninguém. — Está bem — disse K. — Talvez ainda nos encontremos. — Não creio — disse o homem. Nesse momento o barbudo bradou com a mão erguida: — Bom dia, Artur, bom dia, Jeremias! K. voltou-se: então nesta aldeia ainda havia gente na rua! Da direção do castelo vinham dois jovens de estatura média, ambos muito esbeltos, as roupas justas, os rostos também muito semelhantes, a pele moreno-escura, mas nela se destacava o cavanhaque com sua especial cor negra. Andavam com espantosa rapidez para as condições da rua e moviam em compasso as pernas delgadas. — O que vão fazer? — gritou o barbudo. Só gritando era possível comunicar-se com eles, de tão depressa e sem parar que iam. — Negócios — responderam rindo. — Onde? — No albergue. — Vou indo para lá também — gritou K. mais alto que os outros. Tinha um grande desejo de ser levado pelos dois; não parecia que conhecê-los oferecesse grande vantagem, mas evidentemente eram uma companhia boa e estimulante. Eles ouviram as palavras de K., porém só acenaram com a cabeça e logo se foram. K. ainda estava no meio da neve, tinha pouca vontade de erguer o pé para afundá-lo outra vez um pouquinho adiante; o mestre-de-curtume e seu companheiro, satisfeitos por terem finalmente despachado K., recuaram para dentro de casa, devagar, através da porta apenas entreaberta, sempre olhando para trás na direção de K., que ficou sozinho na neve que o envolvia. — Ocasião para um pequeno desespero — ocorreu-lhe — se estivesse aqui por acaso e não intencionalmente. Abriu-se então na choupana à sua esquerda uma janela minúscula — fechada ela parecera de um azul profundo, talvez no reflexo da neve; era tão minúscula que, agora que estava aberta, não se podia ver o rosto todo de quem olhava para fora, só os olhos velhos e castanhos.
— Lá está ele — ouviu uma trêmula voz feminina dizer. — É o agrimensor — disse uma voz de homem. Aí o homem foi à janela e perguntou, num tom que não era hostil, mas certamente interessado em que na rua estivesse tudo em ordem diante da sua casa: — Quem está esperando? — Um trenó que me leve embora — disse K. — Aqui não passa trenó — disse o homem. — Não há tráfego aqui. — Mas este é o caminho que dá para o castelo. — Não importa, não importa — disse o homem com uma certa implacabilidade. — Aqui não há tráfego. Depois ambos silenciaram. Mas o homem evidentemente pensava em alguma coisa, pois continuou mantendo aberta a janela de onde fluía fumaça. — Um caminho ruim — disse K. para ajudá-lo. Mas ele disse apenas: — Sem dúvida. Um pouco depois, porém, ele falou: — Se quiser posso levá-lo no meu trenó. — Faça-me esse favor — disse K. muito satisfeito. — Quanto quer por isso? — Nada — disse o homem. K. ficou muito admirado. — O senhor é o agrimensor — explicou o homem — e pertence ao castelo. Aonde quer ir? — Ao castelo — respondeu K. rápido. — Então eu não vou — disse o homem imediatamente. — Mas eu pertenço ao castelo — disse K. repetindo as próprias palavras do homem. — Pode ser — disse o homem num tom de recusa. — Então me leve até o albergue — disse K. — Está bem — disse o homem. — Saio já com o trenó. Nada disso dava a impressão de uma amabilidade especial, mas antes de algum tipo de empenho muito egoísta, ansioso e quase obsessivo em tirar K. de frente da casa. O portão se abriu e por ele saiu um pequeno trenó para carga leve, inteiramente plano e sem nenhum assento, puxado por um cavalinho frágil, atrás o homem, que não era velho mas fraco, curvado, mancando, o rosto magro, vermelho e resfriado que parecia particularmente pequeno por causa de um xale de lã enrolado firme em torno do pescoço. O homem estava visivelmente doente e tinha saído só para transportar K. dali. K. mencionou algo nesse sentido, mas ele encerrou o assunto com um aceno. Ficou sabendo apenas que era o carroceiro Gerstäcker, e que tinha apanhado aquele trenó incômodo porque ele estava pronto e teria levado muito tempo para tirar outro para fora. — Sente-se — disse e apontou com o chicote para a parte de trás do trenó. — Vou me sentar ao seu lado — disse K. — Eu vou a pé — disse Gerstäcker. — Mas por quê? — perguntou K. — Vou a pé — repetiu Gerstäcker e teve um acesso de tosse que o sacudiu tanto que ele precisou fincar as pernas na neve e segurar com as mãos a borda do trenó. K. não falou mais nada, sentou-se na parte de trás do trenó, a tosse se acalmou aos poucos e eles partiram. O castelo lá em cima, já curiosamente escuro, que K. havia esperado alcançar ainda naquele dia, distanciava-se outra vez. Mas, como se ainda fosse preciso dar um sinal para a despedida provisória, ali soou um toque de sino alado e alegre, que pelo menos por um momento fez seu coração estremecer, como se o ameaçasse — pois o toque era também doloroso — a realidade daquilo a que incertamente aspirava. Logo, porém, esse grande sino emudeceu e foi substituído por um sininho fraco e monótono, talvez ainda lá em cima, mas talvez já na aldeia. Esse tilintar evidentemente se adaptava melhor à viagem vagarosa e ao carroceiro digno de pena, mas implacável. — Escute — bradou K. de repente. Eles já estavam na proximidade da igreja, o caminho para o albergue já não era muito longo, K. podia arriscar alguma coisa. — Muito me admira que você ouse me levar de um lado para outro sob sua própria responsabilidade. Tem o direito de fazer isso? Gerstäcker não se importou e continuou caminhando tranqüilamente ao lado do cavalinho. — Ei — gritou K., juntou um pouco de neve no trenó e com uma bola acertou em cheio o ouvido de Gerstäcker. Este então parou e se voltou; mas quando K. o viu de tão perto — o trenó tinha avançado mais um pouco —, essa figura curvada, por assim dizer maltratada, o rosto vermelho, cansado e estreito, com as maçãs de algum modo diferentes, uma plana, a outra encovada, a boca aberta e atenta na qual havia só alguns dentes isolados, K. teve de repetir por compaixão o que antes havia dito por maldade, se Gerstäcker não podia ser punido pelo fato de transportá-lo. — O que está querendo? — perguntou Gerstäcker sem compreender; mas também sem esperar explicação instigou o cavalinho e seguiram em frente. Quando estavam quase no albergue — K. reconheceu isso numa curva do caminho —, para seu espanto já havia escurecido completamente. Tinha saído fazia tanto tempo? Segundo seus cálculos fazia apenas uma ou duas horas. Partira de manhã. E não tivera nenhuma necessidade de comer. Até havia pouco a luz do dia tinha sido regular, só agora aquela escuridão. — Dias curtos, dias curtos — disse a si mesmo, escorregou do trenó e se dirigiu ao albergue. No alto da pequena escada externa da casa estava o dono do albergue, muito bem-vindo, que iluminava o caminho com a lanterna erguida. Lembrando-se por um instante do carroceiro, K. parou em algum lugar no escuro e ouviu-se uma tosse: era ele. Bem, em breve iria vê-lo outra vez. Só quando estava em cima, com o dono do albergue que o cumprimentava humildemente, é que percebeu dois homens, um de cada lado da porta. Pegou a lanterna da mão do dono do albergue e iluminou os dois; eram os homens que já havia encontrado e que tinham sido chamados de Artur e Jeremias. Agora eles o saudavam com uma continência. Recordando-se do seu tempo de serviço militar, aqueles tempos felizes, ele riu. — Quem são vocês? — perguntou, olhando de um para outro. — Seus ajudantes — responderam. — São os ajudantes — confirmou em voz baixa o dono do albergue. — Como? — perguntou K. — São vocês os antigos ajudantes que mandei me seguirem e que eu estava esperando? Eles responderam afirmativamente. — Isso é bom — disse K. depois de um curto intervalo. — É bom que tenham chegado. Depois de mais uma pausa falou: — Aliás vocês se atrasaram muito. São muito negligentes. — Era um longo caminho — disse um deles. — Longo caminho — repetiu K. — Mas eu os encontrei quando vinham do castelo. — Sim — disseram sem mais explicações. — Onde estão os aparelhos? — perguntou K. — Não temos nenhum aparelho — disseram eles. — Os aparelhos que eu confiei a vocês — disse K. — Não temos nenhum — repetiram os dois. — Ah, que gente! — exclamou K. — Entendem alguma coisa de agrimensura? — Não — disseram eles. — Mas se são meus antigos ajudantes teriam de entender — disse K. Eles silenciaram. — Venham então — disse K. e empurrou-os à frente para dentro da casa.
 
OS TRÊS ENTÃO FICARAM SENTADOS relativamente em silêncio no salão do albergue, bebendo cerveja numa pequena mesa, K. no meio, à direita e à esquerda os ajudantes. Além desta, só uma mesa estava ocupada por camponeses, de maneira semelhante à noite anterior. — Com vocês não é fácil — disse K., comparando os seus rostos, como já o tinha feito várias vezes. — Como é que posso distinguir um do outro? Vocês são diferentes apenas no nome, no mais são parecidos como — estacou e depois prosseguiu involuntariamente — no mais vocês são parecidos como cobras. Eles sorriram. — Outras pessoas nos distinguem bem — disseram como justificativa. — Acredito — disse K. — Eu mesmo fui testemunha disso, mas só posso ver com os meus olhos, e com eles não consigo distinguir um do outro. Por isso vou tratá-los como sendo um único homem e chamar os dois de Artur, não é assim que um de vocês se chama... você, por acaso? — perguntou K. a um deles. — Não — disse este. — Eu me chamo Jeremias. — Bem, dá no mesmo — disse K. — Vou chamar a ambos de Artur. Se eu mandar Artur para alguma parte, vão os dois; se eu der uma tarefa a Artur, vocês dois a fazem; para mim isso tem a grande desvantagem de que não posso usá-los para trabalhos isolados, mas tem também a vantagem de que os dois assumem juntos a responsabilidade de tudo aquilo de que eu os incumbir. Para mim é indiferente de que modo vocês dividem entre si o trabalho, a única coisa que não podem é se desculpar um por causa do outro, para mim vocês são um único homem. Eles refletiram e disseram: — Isso seria bem desagradável para nós. — Como poderia deixar de ser? — atalhou K. — Naturalmente que deve ser desagradável, mas é assim que vai ficar. Já por algum tempo K. estava vendo um dos camponeses esgueirar-se em volta da mesa; finalmente ele se decidiu, aproximou-se de um dos ajudantes e quis cochichar-lhe alguma coisa. — Desculpem-me — disse K., batendo com a mão na mesa e se levantando. — Estes são meus ajudantes e estamos agora discutindo algumas questões. Ninguém tem o direito de nos interromper.
— Perdão, perdão — disse o camponês, receoso, enquanto voltava de costas à mesa dos seus companheiros. — Esta é uma coisa que vocês precisam levar em conta acima de tudo — disse K. sentando-se outra vez. — Vocês não podem falar com ninguém sem a minha permissão. Eu sou um estranho aqui e se vocês são os meus antigos ajudantes, então são estranhos também. Por isso nós três, estranhos, temos de permanecer unidos; estendam-me suas mãos. Eles as estenderam com demasiada presteza. — Podem baixar as patas — disse. — Mas minha ordem continua valendo. Agora eu vou dormir e aconselho-os a fazer o mesmo. Hoje nós perdemos um dia de trabalho, amanhã temos de começar muito cedo. Vocês precisam arrumar um trenó para a ida ao castelo e estar prontos com ele às seis horas aqui em frente da casa. — Está bem — disse um deles. Mas o outro interveio: — Você diz “está bem”, mas sabe que não é possível. — Quietos — disse K. — Vocês já estão querendo se distinguir um do outro. Mas aí também o primeiro disse: — Ele tem razão, é impossível; sem permissão nenhum estranho pode ir ao castelo. — Onde é preciso pedir permissão? — Não sei, talvez com o administrador do castelo. — Então vamos fazer o pedido por telefone, telefonem já para o administrador, os dois. Eles correram para o aparelho, pediram a ligação — como os dois se empurravam! Vistos de fora eram obedientes de uma maneira ridícula — e perguntaram se K. podia ir com eles amanhã ao castelo. O “não” da resposta K. ouviu da sua mesa, mas a resposta era ainda mais detalhada, ela dizia: “nem amanhã nem em qualquer outra ocasião”. — Vou telefonar pessoalmente — disse K. levantando-se. Visto que até então K. e seus ajudantes, à exceção do incidente com um dos camponeses, tinham sido pouco notados, a última fala de K. despertou atenção geral. Todos se ergueram ao mesmo tempo que K. e, embora o dono do albergue tentasse fazê-los retroceder, eles se agrupavam junto ao telefone, formando em torno de K. um estreito semicírculo. Prevalecia entre eles a opinião de que K. não receberia resposta alguma. Teve de pedir-lhes que fizessem silêncio, não estava pedindo para ouvir suas opiniões. Do fone de ouvido saiu um zumbido que K. nunca antes tinha escutado ao telefonar. Era como se fosse o zumbido de inúmeras vozes infantis — mas não era também um zumbido e sim o canto de vozes distantes, extremamente distantes —, como se desse zumbido se formasse, de um modo completamente impossível, uma única voz, alta e forte, que batesse no ouvido de tal modo que exigisse entrar mais fundo do que apenas no pobre ouvido. K. escutou sem falar ao fone, tinha colocado o braço esquerdo no anteparo do telefone e foi assim que ficou ouvindo. Ele não sabia por quanto tempo estivera escutando, até que o dono do albergue puxou-o pelo casaco: tinha chegado um mensageiro para ele. — Fora daqui! — gritou descontrolado, talvez dentro do fone, pois alguém então entrou na linha. Desenrolou-se a seguinte conversa: — Aqui é Oswald, quem está falando? — bradou uma voz severa e altiva, com um pequeno erro de pronúncia, que pareceu a K. como o de alguém que tentasse compensá-lo com um acréscimo suplementar de severidade. K. hesitou em dizer seu nome, diante do telefone ele estava desarmado, o outro podia vituperá-lo, podia depor o fone de ouvido e com isso K. teria obstruído um canal que talvez não fosse sem importância. A hesitação de K. deixava o homem impaciente. — Quem está falando? — repetiu ele, acrescentando: — Gostaria muito que não telefonassem tanto daí, faz apenas um instante fizeram um chamado. K. ignorou a observação e anunciou com uma decisão repentina: — Aqui é o ajudante do senhor agrimensor. — Que ajudante? Que senhor? Que agrimensor? Ocorreu a K. a conversa telefônica do dia anterior: — Pergunte a Fritz — disse laconicamente. Para seu próprio espanto, isso ajudou. Mas, mais ainda que o fato de ter ajudado, espantou-o a coordenação do serviço lá em cima. A resposta foi: — Já sei. O eterno agrimensor. Sim, sim. O que mais? Que ajudante? — Josef — disse K. Perturbava-o um pouco o murmúrio dos camponeses às suas costas, evidentemente não concordavam com o fato de ele não ter se anunciado corretamente. Mas K. não tinha tempo para se ocupar dos camponeses, aquela conversa exigia muito dele. — Josef? — perguntaram de volta. — Os ajudantes se chamam — uma pequena pausa, obviamente perguntava os nomes a alguém mais — Artur e Jeremias. — Esses são os novos ajudantes — disse K. — Não, são os antigos. — São os novos, mas eu sou o antigo, que hoje se juntou ao senhor agrimensor. — Não! — gritou então a voz. — Quem sou eu, então? — perguntou K., calmo como até aquele momento.
Depois de uma pausa a mesma voz disse com o mesmo erro de pronúncia, embora parecesse outra, mais profunda e mais digna de atenção: — Você é o antigo ajudante. Concentrado no tom da voz, K. quase não ouviu a pergunta: — O que você quer? De preferência ele já teria posto o fone no gancho. Não esperava nada mais daquela conversa. Foi forçado que ainda perguntou rapidamente: — Quando o meu chefe pode ir ao castelo? — Nunca — foi a resposta. — Está bem — disse K. e pendurou o fone no gancho. Atrás dele os camponeses já haviam avançado para bem perto. Os ajudantes estavam ocupados em afastá-los por causa dos freqüentes olhares de viés para ele. Mas parecia ser apenas uma comédia; os camponeses, satisfeitos com o resultado da conversa ao telefone, estavam retrocedendo lentamente. O grupo foi então apartado por trás com as passadas rápidas de um homem que se inclinou diante de K. e entregou-lhe uma carta. K. conservou a carta na mão enquanto fitava o homem, que naquele momento lhe parecia mais importante. Havia uma grande semelhança entre ele e os ajudantes, era tão esbelto quanto eles, estava igualmente vestido com trajes justos, era flexível e desembaraçado como eles, mas apesar disso totalmente diferente. K. o teria preferido muito mais como ajudante! Ele lembrava um pouco a mulher com o bebê ao colo que tinha visto na casa do mestre-de-curtume. Sua roupa era quase branca, certamente não era de seda, era um traje de inverno como todos os outros, mas tinha a delicadeza e a solenidade de uma roupa de seda. Seu rosto era claro e aberto, os olhos extremamente grandes. O sorriso tinha alguma coisa incomumente encorajadora; ele passava a mão pelo rosto como se quisesse afugentar esse sorriso, mas não o conseguia. — Quem é você? — perguntou K. — Meu nome é Barnabás — respondeu. — Sou mensageiro. Quando ele falava, os lábios se abriam e fechavam de uma maneira viril e no entanto suave. — Você gosta daqui? — perguntou K. e apontou os camponeses, pelos quais ele ainda não havia perdido o interesse e que, com seus rostos literalmente torturados — os crânios pareciam ter sido achatados em cima e os traços da face formados na dor da pancada —, os lábios protuberantes e as bocas abertas, olhavam, mas de novo pareciam não estar olhando, pois muitas vezes esse olhar se desviava e antes de voltar ficava preso num objeto qualquer; K. aí indicou também os ajudantes, que se mantinham abraçados, inclinando-se de faces coladas e sorrindo, não se sabia se por humildade ou zombaria; apontou para todos eles como se apresentasse uma comitiva que lhe tivesse sido imposta por circunstâncias especiais, esperando que Barnabás — havia nisso familiaridade e era o que importava a K. —, que Barnabás distinguisse com sensatez entre ele e os outros. Mas Barnabás — evidentemente em toda a inocência, isso era reconhecível — não levou a questão em conta, deixando-a passar como um criado bem treinado deixa passar uma palavra que o senhor só na aparência dirige a ele, e olhou em volta, atento apenas ao espírito da questão; com acenos de mão cumprimentou conhecidos entre os camponeses, trocando duas palavras com os ajudantes, tudo isso de um modo livre e independente, sem se misturar com eles. K. voltou-se — repelido, mas não envergonhado — para a carta que estava em sua mão e abriu-a. Seu teor era o seguinte:
 
Prezado senhor: como sabe, o senhor foi admitido nos serviços administrativos do conde. Seu superior imediato é o prefeito da aldeia, que lhe comunicará todos os detalhes sobre o trabalho e as condições de pagamento e a quem o senhor também prestará contas. Mas não obstante isso eu também não o perderei de vista. Barnabás, o portador desta carta, perguntará de tempos em tempos pelo senhor para ficar sabendo dos seus desejos e comunicá-los a mim. O senhor me encontrará, sempre que possível, pronto a ser-lhe solícito. Interessa-me ter trabalhadores satisfeitos.
 
A assinatura não era legível, mas sob ela estava impresso: Chefe da repartição X. — Espere — disse K. a Barnabás, que já se inclinava. Chamou em seguida o dono do albergue, pedindo que ele lhe mostrasse seu quarto: queria ficar algum tempo sozinho com a carta. Lembrou-se então de que, apesar de toda a simpatia que tinha por Barnabás, ele não era senão um mensageiro e mandou que lhe dessem uma cerveja. Observou como iria aceitá-la, ele aceitou-a com evidente satisfação e começou imediatamente a beber. Depois K. foi com o dono do albergue. Naquela casa minúscula não tinham conseguido arranjar mais que uma pequena mansarda para K. e até mesmo isso havia esbarrado em dificuldades, pois tiveram de alojar em outra parte duas criadas que até então dormiam ali. Na verdade não tinham feito nada a não ser pôr para fora as criadas; de resto o quarto permanecia no mesmo estado da noite anterior, nenhum lençol na única cama, apenas alguns travesseiros e um cobertor de cavalo, na parede imagens de santos e fotografias de soldados; nem mesmo o ambiente tinha sido arejado, obviamente haviam esperado que o novo hóspede não ficasse muito tempo e não tinham feito nada para retê-lo. Mas K. estava de acordo com tudo, enrolou-se no cobertor, sentou-se à mesa e à luz de uma vela começou a ler outra vez a carta. Ela não era uniforme, havia trechos em que falava dele como de um homem livre, cuja vontade própria se reconhece; assim era o cabeçalho, assim a passagem que dizia respeito aos seus desejos. Mas havia também trechos em que ele era tratado, aberta ou veladamente, como um pequeno trabalhador que mal se discernia do lugar onde estava o chefe, a chefia tinha de se esforçar para “não perdê-lo de vista”, seu superior era apenas o prefeito da aldeia, a quem ele até precisava prestar contas, seu único colega talvez fosse o policial da aldeia. Eram contradições indubitáveis, tão visíveis que tinham de ser intencionais. A idéia amalucada, diante de uma tal autoridade, de que aqui tinha intervindo a indecisão, mal passou pela cabeça de K. Em vez disso ele viu ali uma escolha que lhe era oferecida abertamente, deixavam que fizesse o que queria das determinações da carta: se queria ser somente um trabalhador da aldeia com uma ligação de qualquer forma distinta, embora só aparente, com o castelo, ou então um trabalhador aparente da aldeia, que na realidade admitia que toda a sua relação de trabalho fosse definida pelas notícias trazidas por Barnabás. K. não hesitou, não teria hesitado mesmo sem as experiências que já havia feito. Só como trabalhador da aldeia, o mais distante possível dos senhores do castelo, ele era capaz de conseguir alguma coisa lá; estes habitantes da aldeia, que ainda eram tão desconfiados em relação a ele, começariam a falar uma vez que, apesar de não ser amigo de nenhum, havia se tornado seu concidadão e sendo assim não se distinguia de Gerstäcker ou de Lasemann, por exemplo — tudo dependia de que isso acontecesse muito rápido —, então iam abrir-se de um só golpe, sem dúvida, todos os caminhos que, apenas na dependência dos senhores lá em cima ou do seu favor, teriam permanecido não só fechados para sempre, mas também invisíveis. Certamente havia um perigo e ele estava bem acentuado na carta, apresentado com uma certa alegria, como se fosse inelutável. Era o fato de ser um trabalhador. Serviço, superior, trabalho, condições de pagamento, prestação de contas, trabalhador — disso a carta fervilhava e, mesmo que não estivesse dito outra coisa mais pessoal, ela era afirmada daquele ponto de vista. Se K. queria ser trabalhador, podia fazê-lo, mas tão-somente com a mais completa seriedade, sem qualquer outra perspectiva. K. sabia que não se ameaçava com uma coerção real, essa ele não temia e aqui muito menos, mas a força do ambiente desencorajador, o hábito das decepções, a força das influências imperceptíveis de cada instante — tudo isso ele de qualquer modo temia, porém com esse perigo era preciso ousar lutar. A carta também não silenciava que, se as coisas chegassem às vias de fato, K. tivera a temeridade de começar, isso era dito com finura e só uma consciência intranqüila — intranqüila, e não culpada — podia notá-lo: eram as palavras “como o senhor sabe”, relativas à sua admissão no serviço. K. havia se anunciado e desde então sabia, como expressava a carta, que fora admitido. Tirou um quadro da parede e pendurou a carta no prego; ele iria morar naquele quarto e a carta deveria ficar pendurada ali. Depois desceu até a sala; Barnabás estava sentado a uma mesinha com os ajudantes. — Ah, aí está você — disse K. sem motivo, só porque estava contente por ver Barnabás. Este saltou logo em pé. Mal K. havia entrado, os camponeses se ergueram para se aproximar dele; já tinha se tornado um costume eles andarem sempre atrás. — O que vocês sempre estão querendo de mim? — bradou K. Eles não levaram a mal e voltaram devagar para os seus lugares. Ao se afastar, um deles disse ao acaso, com um sorriso impenetrável que alguns outros assumiram: — Sempre se ouve alguma novidade — e lambeu os lábios como se a novidade fosse alguma coisa para comer. K. não disse nada conciliador, era bom que eles mantivessem um pouco de respeito diante dele, mas assim que se viu sentado com Barnabás sentiu na nuca o hálito de um camponês; como ele dizia, tinha vindo apanhar o saleiro, mas K. bateu o pé no chão com raiva e aí o camponês correu de volta sem o saleiro. Era realmente fácil incomodar K., só se precisava, por exemplo, açular os camponeses contra ele; seu interesse obstinado parecia-lhe pior do que a reserva dos outros, além do que também era reserva, pois se K. tivesse se sentado à sua mesa eles certamente não teriam permanecido sentados lá. Só a presença de Barnabás o impedia de fazer barulho. Mas se ele se voltava ameaçador para eles, eles também estavam voltados para K. Como, porém, ele os via sentados ali, cada qual no seu lugar, sem falar um com o outro, sem nenhuma relação visível entre si, só ligados um com o outro pelo fato de estarem olhando para ele, parecia-lhe que não era maldade o que os faria persegui-lo, talvez quisessem de fato alguma coisa determinada e só não pudessem dizê-lo — e, se não fosse isso, então talvez fosse apenas puerilidade; puerilidade que aqui parecia estar em casa; mas não era infantil o dono do albergue que, segurando com as duas mãos um copo de cerveja que devia levar a algum freguês, estacou, olhou para K. e ignorou um chamado da dona do albergue, que havia se reclinado no parapeito da cozinha. Mais calmo K. virou-se para Barnabás — teria gostado de afastar os ajudantes, mas não achou um pretexto, aliás eles ainda olhavam quietos para sua cerveja. — Li a carta — começou K. — Você conhece o conteúdo? — Não — disse Barnabás. Seu olhar parecia dizer mais do que suas palavras. Talvez aqui K. estivesse enganado por bem, como o estivera por mal com os camponeses, mas o bem-estar da sua presença se mantinha. — Falam também de você na carta, você deve de vez em quando passar informações entre mim e o chefe da administração, por isso pensei que você conhecesse o conteúdo. — Eu só recebi a incumbência de entregar a carta — disse Barnabás — e de esperar até que ela fosse lida e levar de volta, se isso lhe parecesse necessário, uma resposta oral ou escrita. — Muito bem — disse K. — Não é necessário nada escrito, diga ao senhor chefe... como ele se chama? Não pude ler a assinatura. — Klamm — disse Barnabás. — Apresente então ao senhor Klamm os meus agradecimentos tanto pela acolhida como também por sua especial gentileza, que sei valorizar como alguém que ainda não se afirmou aqui. Vou comportar-me inteiramente de acordo com as suas intenções. Hoje também não tenho nenhum desejo em particular. Barnabás, que havia prestado toda a atenção, pediu para repetir diante de K. a mensagem; K. o permitiu, Barnabás repetiu tudo literalmente. Depois levantouse para se despedir. Durante o tempo inteiro K. tinha examinado seu rosto, agora ele o fazia pela última vez. Barnabás tinha mais ou menos o tamanho de K., seu olhar no entanto parecia baixar até K., embora isso acontecesse de forma quase humilde, era impossível que esse homem causasse embaraço a alguém. Sem dúvida ele era só um mensageiro, não tinha conhecimento do conteúdo das cartas que devia entregar, mas seu olhar, seu sorriso, seu andar pareciam também uma mensagem, mesmo que não soubesse nada acerca dela. E K. estendeu-lhe a mão, o que claramente o surpreendeu, pois ele tinha pretendido apenas se inclinar. Logo que Barnabás se foi — diante da abertura da porta ele ainda havia reclinado um pouco o ombro ao encontro dela, com um sorriso que não se dirigia mais a ninguém em particular, abrangendo toda a sala — K. disse aos ajudantes: — Vou apanhar no quarto minhas anotações, depois conversaremos sobre o próximo trabalho. Eles queriam ir junto. — Fiquem aqui — disse K. K. precisou repetir a ordem com mais severidade. Barnabás já não estava mais no corredor. Mas tinha com certeza ido embora naquele instante. No entanto, mesmo diante da casa — caía neve outra vez — K. não o viu. Bradou: — Barnabás! Nenhuma resposta. Será que ele ainda estava na casa? Parecia não haver outra possibilidade. Apesar disso K. gritou com toda a força o nome e o nome ressoou pela noite. Da distância chegou uma fraca resposta, portanto Barnabás já estava àquela distância. K. chamou-o de volta e ao mesmo tempo foi ao seu encontro; no lugar em que eles se encontraram não podiam mais ser vistos do albergue. — Barnabás — disse K. sem poder controlar um estremecimento da voz —, eu ainda queria dizer-lhe uma coisa. Notei agora como está mal estabelecido o fato de que dependo única e exclusivamente da sua vinda eventual, para o caso de eu precisar de alguma coisa do castelo. Se neste momento eu não o tivesse alcançado casualmente — como você voa, pensei que ainda estava no albergue! —, quem sabe quanto tempo eu teria de esperar pela sua próxima aparição? — É possível — disse Barnabás — pedir ao chefe da administração que eu sempre venha em tempos marcados por você. — Isso também não seria suficiente — disse K. — Talvez eu não queira dizer absolutamente nada durante um ano todo, mas tenha algo inadiável para comunicar um quarto de hora depois de sua partida. — Devo então anunciar ao chefe — disse Barnabás — que entre ele e você deve ser estabelecida outra ligação que não seja a minha? — Não, não — disse K. — Absolutamente não, só menciono isso de passagem, desta vez ainda tive a sorte de alcançá-lo. — Vamos voltar ao albergue — disse Barnabás — para que possa me dar lá a nova instrução? Ele já havia dado um passo a mais em direção ao albergue. — Barnabás — disse K. —, não é necessário, vou andar com você um pequeno trecho do caminho. — Por que não quer ir ao albergue? — perguntou Barnabás. — As pessoas lá me importunam — disse K. — Você mesmo viu a intromissão dos camponeses. — Podemos ir ao seu quarto — disse Barnabás. — É o quarto das criadas — disse K. — Sujo e abafado; para não ter de ficar lá eu queria andar um pouco com você. Você só precisa — acrescentou, para superar sua hesitação — deixar que eu enganche meu braço no seu, pois você anda com mais segurança. E K. pendurou-se no braço de Barnabás. Estava completamente escuro, K. não via seu rosto, ele só distinguia sua figura sem nitidez, o braço ele já havia tentado apalpar um pouco antes. Barnabás cedeu, ambos se distanciaram da estalagem. K. sentia sem dúvida que, apesar do maior esforço, não conseguia manter o mesmo passo de Barnabás, que ele tolhia sua liberdade de movimento e que em circunstâncias normais tudo deveria dar errado já nesses aspectos secundários, quanto mais em travessas como aquela em que, à tarde, tinha afundado na neve e da qual só poderia sair arrastado por Barnabás. Mas agora ele conservava longe de si essas preocupações, o fato de Barnabás ficar em silêncio também o consolava; se andassem sem falar nada, até para Barnabás o mero ato de continuarem caminhando podia ser o objetivo de estarem juntos. Eles andavam, mas K. não sabia para onde, não era capaz de reconhecer nada, nem mesmo sabia se já tinham passado pela igreja. Por causa do esforço que o simples andar lhe causava, acontecia não estar em condições de controlar seus pensamentos. Em lugar de permanecerem fixados no objetivo, eles se confundiam. A imagem do lar emergia continuamente e as lembranças dele o preenchiam. Também lá erguia-se na praça principal uma igreja, cercada em parte por um velho cemitério e este por um muro alto. Só alguns poucos meninos tinham escalado aquele muro, K. também não o havia conseguido. Não era curiosidade o que os movia, o cemitério não tinha mais nenhum segredo para eles, já haviam entrado várias vezes pela pequena porta gradeada, o que queriam era somente conquistar o muro alto e liso. Uma tarde — a praça quieta e vazia estava inundada de luz; quando K. a vira assim, antes ou depois? — ele o conseguiu de uma maneira surpreendentemente fácil; num lugar onde já fora vencido com freqüência, ele escalou o muro na primeira tentativa, com uma pequena bandeira entre os dentes. O cascalho ainda rolava debaixo dele quando já estava em cima. Fincou a bandeira, o vento esticou o tecido, ele olhou para baixo e à sua volta, pelo alto dos ombros, em direção à cruz que afundava na terra, ninguém agora era maior do que ele ali. Por acaso então passou o professor, forçou-o a descer com um olhar irado, na descida K. feriu o joelho, só chegou em casa com esforço, mas ele tinha estado com certeza em cima do muro, o sentimento dessa vitória parecia-lhe na época o suporte para uma longa vida, o que não fora completamente tolo, pois agora, tantos anos depois, vinha ajudá-lo na noite de neve no braço de Barnabás. Segurou-se mais firme, Barnabás quase o arrastava, o silêncio não foi interrompido; do caminho, K. sabia apenas que, a julgar pelo estado da rua, ainda não tinham entrado em nenhuma travessa. Jurou não se deixar deter, por nenhuma dificuldade do caminho ou pela preocupação com a volta, na continuação da caminhada: afinal, para poder ser arrastado em frente, suas energias sem dúvida bastariam. Pois o caminho podia não ter fim? Durante o dia o castelo se apresentava diante dele como um alvo fácil, e o mensageiro certamente conhecia a rota mais curta. Foi então que Barnabás parou. Onde eles estavam? Era ali o fim do caminho? Será que Barnabás ia se despedir? Ele não o conseguiria. K. agarrou firme o braço de Barnabás a tal ponto que ele próprio sentiu dor. Ou será que o impossível tinha acontecido e eles já estavam no castelo ou diante dos seus portões? Mas, até onde sabia, eles não tinham subido. Ou será que Barnabás o levara por um caminho que ascendia de modo tão imperceptível? — Onde estamos? — perguntou K. em voz baixa, mais a si mesmo do que para ele. — Em casa — disse Barnabás, igualmente baixo. — Em casa? — Agora tenha cuidado, senhor, para não escorregar. Aqui é uma descida. Descida? — São alguns passos apenas — acrescentou, já batendo a uma porta. Uma jovem abriu, eles estavam na soleira de uma grande peça quase às escuras, pois só uma minúscula lâmpada a óleo pendia sobre uma mesa à esquerda, no fundo. — Quem está com você, Barnabás? — perguntou a moça. — O agrimensor — disse ele. — O agrimensor — repetiu a jovem mais alto em direção à mesa. Nesse momento levantaram-se lá duas pessoas velhas, um homem e uma mulher, e além deles mais uma moça. Cumprimentaram K. Barnabás apresentoulhe todos, eram seus pais e suas irmãs Olga e Amália. Mas mal as tinha visto, tiraram-lhe o casaco molhado para secá-lo junto ao aquecedor e K. não se opôs. Ou seja, não eram os dois que estavam em casa, só Barnabás. Mas por que estavam ali? K. puxou Barnabás de lado e disse: — Por que você veio para casa? Ou será que você mora dentro dos limites do castelo? — Nos limites do castelo? — repetiu Barnabás, como se não estivesse entendendo K. — Barnabás — disse K. —, você queria sair do albergue para ir ao castelo. — Não, senhor — disse Barnabás. — Eu queria vir para casa, só vou cedo para o castelo, nunca durmo lá. — Entendo — disse K. — Você não queria ir para o castelo, só queria vir para cá. O sorriso de Barnabás parecia-lhe mais fraco, ele próprio menos vistoso. — Por que não me disse isso? — O senhor não me perguntou — disse Barnabás. — Queria apenas me dar mais uma instrução, mas não no albergue nem no seu quarto, então eu pensei que poderia fazer isso sem ser perturbado aqui na casa de meus pais; todos eles se afastam imediatamente se o senhor mandar. Se o senhor preferisse ficar conosco, poderia passar a noite aqui. Não agi corretamente? K. não era capaz de responder. Tinha sido então um mal-entendido, um malentendido comum e mesquinho, e K. havia se rendido completamente a ele.
Tinha deixado de se encantar pela justa jaqueta de Barnabás, que brilhava como seda e que agora ele desabotoava e sob a qual aparecia uma camisa de tecido grosseiro cinzenta de suja, toda costurada, sobre o peito forte e anguloso de um criado. E tudo em torno não só correspondia a isso, mas até o superava: o velho pai que sofria de gota e avançava mais com a ajuda das mãos tateantes do que das pernas enrijecidas que se deslocavam lentas, a mãe com as mãos enlaçadas sobre o peito, que por causa de sua corpulência só podia dar os mínimos passos — ambos, pai e mãe, desde que K. havia entrado, caminhavam do seu canto em direção a ele e ainda não o tinham alcançado. As irmãs, muito loiras e parecidas tanto uma como a outra com Barnabás, embora seus traços fossem mais duros do que os deste, moças grandes e fortes, cercavam o recém-chegado e esperavam de K. alguma palavra de saudação, mas ele não conseguia dizer nada, havia acreditado que ali na aldeia qualquer um tinha importância para ele, e assim o era, só que justamente essas pessoas não o preocupavam nem um pouco. Se estivesse em condições de dominar sozinho o caminho para a estalagem, teria ido logo embora. A possibilidade de ir cedo com Barnabás ao castelo não o atraía de forma alguma. Ele tinha querido penetrar no castelo agora à noite, sem ser notado, guiado por Barnabás; mas por aquele Barnabás que até então lhe havia surgido, um homem que estava mais próximo dele do que todos os que vira até então e sobre o qual ao mesmo tempo acreditara que, muito acima do seu plano visível, estava estreitamente ligado ao castelo. Mas com o filho desta família, à qual ele pertencia completamente, e com o qual já estivera sentado à mesa, com um homem que significativamente nem mesmo podia dormir no castelo — ir ao castelo à luz do dia de braços com esse homem era impossível, era uma tentativa ridiculamente sem esperança. K. sentou-se sobre um banco de janela, decidido a passar a noite ali e a não exigir mais nenhum trabalho da família. As pessoas da aldeia, que o repeliam ou tinham medo dele, pareciam-lhe menos perigosas, pois no fundo rejeitavam apenas em nome dele próprio, ajudavam-no a manter coesas suas forças, mas essas pessoas, que pareciam auxiliá-lo e que, em vez de o levarem ao castelo, o conduziam para sua família graças a uma pequena mascarada, desviando-o, quisessem ou não —, essas pessoas estavam trabalhando para a destruição das suas energias. Não levou absolutamente em conta um chamado vindo da mesa da família convidando-o; com a cabeça baixa permaneceu no seu banco. Então Olga, a mais suave das irmãs, levantou-se; ela também mostrava um traço de embaraço juvenil, aproximou-se de K. e pediu-lhe que fosse à mesa, havia ali à disposição pão e presunto, ela ainda ia buscar cerveja. — De onde? — perguntou K. — Do albergue — disse ela.
K. ouviu essa notícia com muito gosto, pediu-lhe que não fosse buscar cerveja mas o acompanhasse até o albergue, trabalhos importantes ainda o esperavam lá. Mas verificou-se então que ela não queria ir tão longe, não queria ir até a estalagem dele, mas a uma outra, muito mais próxima, a Hospedaria dos Senhores. Apesar disso K. pediu permissão para acompanhá-la, talvez — pensou — encontrasse lá um lugar para dormir; como quer que fosse, ele o teria preferido à melhor cama ali naquela casa. Olga não respondeu logo, voltou o olhar para a mesa. O irmão havia se levantado, meneou prontamente a cabeça e disse: — Se é isso o que o senhor deseja... Essa aprovação quase teria levado K. a retirar seu pedido, Barnabás só podia concordar com coisas sem valor. Mas quando depois se discutiu se iriam admitir K. na hospedaria e todos duvidaram disso, ele ainda insistiu com urgência para ir junto com Olga, mas sem se dar ao trabalho de inventar um motivo inteligível para o seu pedido; essa família tinha de aceitá-lo como ele era, de certo modo não tinha nenhum sentimento de vergonha diante dela. A única coisa que o confundia um pouco era Amália, com o seu olhar sério, direto, imperturbável, talvez também algo embotado. Na curta caminhada até a hospedaria — K. havia se enganchado em Olga, sendo quase arrastado como antes pelo irmão, o que não podia evitar — ficou sabendo que essa hospedaria se destinava na verdade apenas aos senhores do castelo que, quando tinham alguma coisa para fazer na aldeia, comiam e às vezes até pernoitavam ali. Olga dirigia-se a K. em voz baixa, como se fosse com familiaridade; era agradável andar com ela quase tanto como com o irmão; K. defendia-se contra esse bem-estar, mas ele persistia. A hospedaria era exteriormente muito parecida com o albergue em que K. estava hospedado; na aldeia não havia nenhuma grande diferença externa, mas podiam-se notar as pequenas: a escada da frente tinha um corrimão, sobre a porta estava fixada uma bela lanterna, quando eles entraram esvoaçou um tecido sobre suas cabeças, era uma bandeira com as cores do conde. No corredor o hospedeiro veio logo ao seu encontro, fazia claramente uma ronda de inspeção; com olhos pequenos, perscrutadores ou sonolentos, ele olhou para K. ao passar e disse: — O senhor agrimensor só pode ir até o balcão. — Sem dúvida — disse Olga, que prontamente assumiu a causa de K. — Ele está apenas me acompanhando. Mas K. livrou-se ingratamente de Olga, levou o hospedeiro para o lado, enquanto ela esperava pacientemente no fim do corredor. — Eu gostaria de pernoitar aqui — disse K. — Infelizmente isso é impossível — disse o hospedeiro. — O senhor parece não saber ainda que esta casa se destina exclusivamente aos senhores do castelo. — Pode ser uma prescrição — disse K. — Mas certamente é possível me deixar dormir em algum canto. — Gostaria muitíssimo de atendê-lo — disse o hospedei-o —, mas além da severidade da prescrição, sobre a qual o senhor fala como um estrangeiro, também é inviável porque os senhores são extremamente sensíveis; estou convencido de que não são capazes, pelo menos sem preparação, de suportar a visão de um estranho; se eu, portanto, o deixasse pernoitar aqui e por um acaso — e os acasos estão sempre a favor dos senhores — o senhor fosse descoberto, não só eu estaria perdido, como também o senhor. Soa ridículo, mas é a verdade. Aquele senhor alto, solidamente abotoado, que descansava uma mão na parede e a outra nos quadris, as pernas cruzadas, um pouco inclinado para K., falava familiarmente com ele e mal parecia fazer parte da aldeia, embora seu traje escuro só parecesse solene para um camponês. — Acredito plenamente no senhor — disse K. — e também não subestimo de modo algum o sentido da prescrição, embora tenha me expressado desajeitadamente. Só quero chamar-lhe a atenção para uma coisa: tenho ligações valiosas no castelo e vou ter outras mais valiosas ainda, elas o garantem contra qualquer perigo que poderia surgir com o meu pernoite aqui e são para o senhor uma caução de que estou em condições de agradecer de forma adequada por um pequeno favor. — Eu sei — disse o hospedeiro, repetindo outra vez: — Eu sei. Agora K. poderia apresentar seu pedido com mais ênfase, mas justamente essa resposta do hospedeiro o distraiu, por isso ele só perguntou: — Estão pernoitando hoje aqui muitos senhores do castelo? — Nesse aspecto hoje é um dia vantajoso — disse o hospedeiro, de certa maneira sedutor. — Só ficou aqui um senhor. K. continuava sem poder insistir, embora ainda tivesse esperança de já estar quase aceito, por isso perguntou pelo nome do senhor. — Klamm — disse o hospedeiro distraidamente, enquanto se voltava para sua mulher, que se aproximava com um rumor de roupas estranhamente usadas e fora de moda, sobrecarregada de retalhos e pregas, mas finas e urbanas. Ela vinha buscar o hospedeiro, o senhor chefe da administração queria alguma coisa. Mas, antes de ir, o hospedeiro ainda se voltou para K., como se não fosse mais ele e sim K. que tivesse de decidir sobre o pernoite. K., porém, não conseguia dizer nada; sobretudo a circunstância de que exatamente seu superior estava lá o deixava perplexo; sem que pudesse explicá-lo completamente a si mesmo, não se sentia tão livre diante de Klamm como diante do resto do castelo: ser descoberto por ele não seria para K., na verdade, nenhum horror no sentido dado pelo hospedeiro, mas certamente uma inconveniência penosa, algo como se causasse levianamente uma dor a alguém a quem devesse gratidão, embora o oprimisse de maneira pesada ver que nesse escrúpulo já se manifestassem com evidência as conseqüências temíveis da subordinação, do fato de ser um trabalhador e de que nem mesmo ali, onde elas se mostravam tão nítidas, ele era capaz de as aniquilar. Assim é que ficou ali em pé, mordendo os lábios, e não disse nada. Mais uma vez, antes de desaparecer por uma porta, o hospedeiro voltou o olhar para K., este o seguiu com os olhos sem sair do lugar, até que Olga chegou e o levou embora. — O que você queria dele? — perguntou Olga. — Queria passar a noite aqui — disse K. — Mas você vai passar a noite conosco — disse Olga admirada. — Sim, sem dúvida — disse K., deixando que ela interpretasse como quisesse as suas palavras.
 
NA SALA ONDE FICAVA o balcão de bebidas, um aposento grande, completamente vazio no centro, estavam sentados junto às paredes, ao lado de barris ou em cima deles, alguns camponeses, mas seu aspecto diferia do das pessoas no albergue de K. Suas roupas eram de tecido grosseiro cinza-amarelado, mais asseadas e uniformes, as jaquetas folgadas e as calças justas. Eram homens pequenos, à primeira vista muito parecidos uns com os outros, de rostos chatos, ossudos e no entanto de bochechas redondas. Todos eles eram quietos e mal se moviam, seguiam só com o olhar os que entravam, porém lentamente e com indiferença. Apesar disso exerciam sobre K. algum efeito, por serem tantos e por estarem tão silenciosos. Ele segurou outra vez o braço de Olga, para dessa forma esclarecer às pessoas por que estava ali. Num canto ergueu-se um homem, um conhecido de Olga, querendo aproximar-se dela, mas K. virou-a para outra direção com o braço enganchado, ninguém além dela pôde notá-lo e ela consentiu com um olhar sorridente de soslaio. A cerveja foi servida por uma jovem que se chamava Frieda — uma moça que não atraía a atenção, pequena e loira, de traços tristes e maçãs magras, mas que surpreendia pelo olhar, um olhar de especial superioridade. Quando o olhar incidiu sobre K., pareceu-lhe que já havia resolvido questões relativas a K. de cuja existência ele próprio ainda não tinha nenhum conhecimento; era esse olhar, porém, que o convencia de que elas existiam. K. não parou de fitar Frieda de viés nem quando ela já falava com Olga. As duas não pareciam ser amigas, apenas trocavam poucas palavras frias. K. quis ajudar e por isso perguntou abruptamente: — Conhece o senhor Klamm? Olga riu. — Por que você está rindo? — perguntou K. irritado. — Não estou rindo — disse ela, mas continuou a rir. — Olga ainda é uma moça bem infantil — disse K. inclinando-se bastante sobre o balcão para atrair outra vez com firmeza o olhar de Frieda. Mas ela o manteve baixo e disse em voz suave: — Quer ver o senhor Klamm? K. respondeu que sim. Ela apontou para uma porta logo à esquerda dela. — Ali há um pequeno orifício, pode espiar por ele. — E as pessoas que estão aqui? — perguntou K.
Ela projetou para a frente o lábio inferior e puxou K. até a porta com uma mão incomumente macia. Através do orifício, que evidentemente tinha sido perfurado para fins de observação, ele abrangeu com a vista quase todo o cômodo contíguo. Sentado a uma escrivaninha no meio do aposento, numa confortável poltrona de espaldar redondo, iluminado cruamente por uma lâmpada elétrica que baixava até ele, estava o senhor Klamm. Um homem de estatura média, gordo e pesado. O rosto ainda era liso, mas as maçãs do rosto já desciam um pouco com o peso da idade. O bigode preto era comprido. Um pincenê colocado obliquamente tapava os olhos. Se o senhor Klamm estivesse inteiramente sentado à mesa, K. só poderia ver seu perfil, mas uma vez que Klamm estava bastante virado em sua direção, ele o enxergava bem de frente. Klamm pousava o cotovelo esquerdo na mesa; a mão direita, na qual segurava um charuto, descansava no joelho. Sobre a mesa estava um copo de cerveja; mas como ela tinha uma borda alta, K. não podia ver direito se nela havia alguns documentos, mas a aparência era de que estava vazia. Para ter certeza, pediu a Frieda que olhasse pelo orifício, a fim de que ela o informasse a esse respeito. Mas, uma vez que havia estado fazia pouco tempo no aposento, ela pôde confirmar logo para K. que ali não existiam papéis escritos. K. perguntou a Frieda se ele já precisava ir embora, mas ela disse que ele poderia ficar olhando quanto tempo desejasse. K. estava agora sozinho com Frieda, Olga tinha ido ao encontro do seu conhecido — como ele verificou de passagem, estava sentada em cima de um barril e mexia com as pernas. — Frieda — disse K. num sussurro —, você conhece bem o senhor Klamm? — Ah, sim — disse ela. — Muito bem. Ela inclinou-se para K. e arrumou de leve a blusa cor de creme, que, como só agora ele percebia, tinha um recorte ligeiro e decotado e assentava como alguma coisa estranha no seu pobre corpo. Depois ela disse: — Não está lembrado do riso de Olga? — Sim, aquela mal-educada — disse K. — Bem — disse ela em tom conciliador. — Havia motivo para rir, você perguntou se eu conhecia Klamm e na verdade eu sou — neste momento ela endireitou o corpo um pouco, involuntariamente, e outra vez seu olhar vitorioso, sem relação alguma com o que tinha sido falado, passou por cima de K. —, eu sou de fato sua amante. — Amante de Klamm — disse K. Ela acenou com a cabeça. — Então você é — disse K. sorrindo, para não deixar muita seriedade surgir entre eles — uma pessoa muito respeitável para mim. — Não só para você — disse Frieda amistosamente, mas sem levar em conta seu sorriso.
K. dispunha de um meio contra o orgulho dela e o empregou, perguntando: — Já esteve no castelo? Não funcionou, pois ela respondeu: — Não, mas não basta que eu esteja aqui neste balcão? Sua ambição era visivelmente tola e ela queria, pelas aparências, satisfazê-la nele. — Sem dúvida — disse K. — aqui no balcão você faz o serviço de hospedeiro — Certo — disse ela. — E comecei como criada de estrebaria no Albergue da Ponte. — Com essas mãos delicadas — disse K., com uma meia pergunta e sem saber ele próprio se só a lisonjeava ou se realmente estava cativado pela jovem. Suas mãos eram, com efeito, pequenas e delicadas, mas poderiam igualmente ser descritas como frágeis e insignificantes. — Antes ninguém prestou atenção nelas — disse ela — e mesmo agora... K. olhou-a interrogativamente, ela sacudiu a cabeça e não quis mais continuar conversando. — Naturalmente — disse K. — tem os seus segredos e não quer falar deles com ninguém que conhece faz meia hora e que ainda não teve a oportunidade de lhe contar como realmente se passam as coisas com ele. Mas como então se notou, era uma observação inadequada; parecia que ele tinha despertado Frieda de uma sonolência que lhe era vantajosa; ela tirou da bolsa de couro que pendia do seu cinto uma tabuinha, tapou com ela o orifício, e disse a K., esforçando-se claramente para não deixar transparecer nada da mudança no seu estado de ânimo: — No que lhe diz respeito, sei de tudo: é o agrimensor. Depois acrescentou: — Mas agora eu preciso trabalhar. E foi para o seu lugar atrás do balcão, enquanto aqui e ali uma das pessoas se levantava para pedir que ela enchesse seu copo. K. quis falar mais uma vez com ela de maneira discreta; por isso retirou um copo vazio de uma prateleira e dirigiu-se a ela: — Só mais uma coisa, senhorita Frieda — disse ele. — É necessária uma força extraordinária e escolhida a dedo para chegar de criada de estrebaria a uma moça de balcão, mas será que com isso essa pessoa alcançou o alvo definitivo? Pergunta sem sentido, esta. Os seus olhos, senhorita Frieda, não zombe de mim, não falam tanto da luta passada, mas da futura. As resistências do mundo, porém, são grandes, serão maiores com os objetivos maiores, e não é nenhuma vergonha garantir a ajuda até de um pequeno homem sem influência mas igualmente lutador. Talvez possamos ainda falar um com o outro em tranqüilidade, sem tanta gente olhando. — Não sei o que quer — disse ela, e dessa vez pareciam soar no seu tom de voz, contra a sua vontade, não o triunfo de sua vida, mas as infindáveis desilusões dela. — Quer por acaso me tirar de Klamm? Ó céus! — e bateu as palmas das mãos. — Adivinhou — disse K., como que acometido de cansaço por tanta desconfiança. — Era essa exatamente minha intenção mais secreta. Você deveria abandonar Klamm e tornar-se minha amante. Agora eu tenho de ir. Olga! — bradou K. — Vamos para casa. Olga escorregou obedientemente do barril, mas não se livrou logo dos amigos que a rodeavam. Frieda disse então em voz baixa, fitando K. ameaçadoramente: — Quando posso falar com você? — Posso passar a noite aqui? — perguntou K. — Sim — disse Frieda. — Posso ficar já aqui? — Vá com Olga, para que eu consiga me livrar das pessoas aqui. Pode voltar dentro de pouco tempo. — Está bem — disse K., esperando Olga com impaciência. Mas os camponeses não a deixavam, tinham inventado uma dança cujo centro era Olga, eles dançavam em círculo ao seu redor e quando todos gritavam um se apresentava a Olga, agarrava-a firme com a mão em torno dos quadris e rodopiava com ela algumas vezes, a ciranda ficava cada vez mais rápida, os gritos, como que roncando de fome, tornavam-se aos poucos um único; Olga, que antes queria romper o círculo sorrindo, agora cambaleava de um para outro com o cabelo desfeito. — São essas as pessoas que me mandam para cá — disse Frieda mordendo de raiva os lábios finos. — Quem são? — perguntou K. — A criadagem de Klamm — disse Frieda. — Ele sempre traz essa gente, cuja presença me aniquila. Quase não sei o que falei hoje com o senhor agrimensor, se foi alguma coisa ruim me perdoe, a culpa é a presença dessas pessoas, são o que há de mais desprezível e repulsivo que conheço e é a eles que preciso encher os copos de cerveja. Quantas vezes já pedi a Klamm que os deixasse em casa, já tenho de suportar a criadagem de outros senhores, ele poderia ter consideração por mim, mas qualquer pedido é inútil, uma hora antes da chegada dele eles já invadem tudo como se fossem gado na estrebaria. Mas eles deviam ficar realmente na estrebaria a que pertencem. Se você não estivesse aí eu iria escancarar esta porta e o próprio Klamm teria de pô-los para fora. — Ele não os ouve, então? — perguntou K. — Não — disse Frieda. — Ele está dormindo.
— Como? — bradou K. — Ele está dormindo? Quando olhei para dentro do aposento ele ainda estava acordado e sentado à mesa. — Ele sempre fica sentado assim — disse Frieda. — Também quando você o viu ele já estava dormindo — se não fosse isso eu o teria deixado olhar dentro? Era a sua posição de dormir, os senhores dormem muito, mal se pode entender isso. Aliás, se ele não dormisse tanto, como poderia suportar essa gente? Mas agora eu mesma vou expulsá-los. Ela pegou um chicote que estava num canto e saltou com um único pulo, alto, não muito seguro, assim como salta um carneirinho, em direção aos que dançavam. A princípio eles se voltaram para ela como se tivesse chegado uma nova dançarina e efetivamente assim pareceu durante um momento, como se Frieda quisesse deixar o chicote cair, mas depois ela o ergueu outra vez. — Em nome de Klamm — exclamou —, para a estrebaria, todos para a estrebaria. Agora eles viam que era sério, com um medo incompreensível para K. começaram a se apinhar no fundo; sob o impacto do primeiro abriu-se uma porta, o ar da noite entrou, todos desapareceram com Frieda, que certamente os conduziu pelo pátio até a estrebaria. Mas no silêncio que se fez de repente K. ouviu passos vindos do corredor. Para se proteger de algum modo, ele saltou para trás do balcão, a única possibilidade de se esconder — na verdade não lhe estava proibido ficar no balcão, mas, uma vez que queria passar a noite ali, ele tinha agora, ainda, de evitar ser visto. Por isso, quando a porta de fato foi aberta, deslizou para debaixo do balcão. Ser descoberto ali certamente não era uma coisa sem risco, de qualquer forma não era implausível a desculpa de que havia se escondido dos camponeses que tinham se tornado selvagens. Foi o hospedeiro que gritou “Frieda”, andando algumas vezes pela sala de um lado para outro; felizmente Frieda veio logo e não fez menção a K., só se queixou dos camponeses e caminhou com o objetivo de encontrar K. atrás do balcão e lá K. pôde tocar o pé dela, sentindo-se daí por diante seguro. Já que Frieda não mencionou K., foi o hospedeiro que afinal teve de fazê-lo. — E onde está o agrimensor? — perguntou. Ele era um homem polido, finamente treinado pelo convívio constante e relativamente livre com funcionários muito superiores, mas com Frieda ele conversava de uma maneira particularmente atenciosa, isso chamava a atenção sobretudo porque, apesar de estar falando com uma empregada, nunca deixava de ser o empregador diante dela — naquele caso, além disso, de uma empregada bastante atrevida. — Esqueci completamente o agrimensor — disse Frieda e colocou seu pequeno pé sobre o peito de K. — Certamente ele já foi embora faz muito tempo.
— Eu não o vi — disse o hospedeiro. — E estive quase todo o tempo no corredor. — Mas aqui ele não está — disse Frieda friamente. — Talvez tenha se escondido — disse o hospedeiro. — Pela impressão que tive dele, muita coisa pode ser-lhe atribuída. — Essa esperteza ele decerto não tem — disse Frieda e apertou mais o pé sobre K. Havia algo alegre e livre no ser dela, coisa que K. não havia notado antes e veio à tona de um modo completamente imprevisto quando ela de repente disse rindo as palavras: — Talvez ele esteja escondido aqui embaixo. Nesse ato abaixou-se até K., beijou-o de leve e voltando de um salto à posição anterior disse com tristeza: — Não, ele não está aqui. Mas o hospedeiro também causou espanto quando disse depois: — É muito desagradável que eu não saiba com precisão se ele foi embora. Trata-se não apenas do senhor Klamm, trata-se da prescrição. Mas ela vale tanto para a senhorita Frieda como para mim. A responsabilidade pelo balcão é sua, o resto da casa eu ainda vou vasculhar. Boa noite! Bom descanso! Ele ainda não havia saído completamente da sala e Frieda já tinha desligado a luz elétrica e estava junto de K. sob o balcão. — Querido, meu querido! — ela sussurrou, mas não tocou K.; como que desmaiada de amor, ela ficou deitada de costas e estendeu os braços, sem dúvida o tempo era infindável diante do seu amor feliz, ela suspirava — mais do que cantava — alguma pequena canção. Depois, como K. permanecesse em silêncio com os seus pensamentos, ela se assustou e começou a puxá-lo como a uma criança: — Venha, aqui embaixo nós sufocamos. Eles se abraçaram, o pequeno corpo ardia nas mãos de K., eles rolaram, num estado de esquecimento do qual K. tentava contínua mas inutilmente se livrar; alguns passos à frente, bateram surdamente na porta de Klamm e depois ficaram deitados nas pequenas poças de cerveja e outras sujeiras que cobriam o chão. Ali passaram-se as horas, horas de respiração confundida, de batidas comuns do coração, horas nas quais K. tinha sem parar o sentimento de que se perdia ou estivesse numa terra estranha como ninguém antes dele, uma terra estranha na qual até o ar não tinha nada de familiar e em cujas tentações sem sentido não era possível fazer nada senão ir em frente e continuar se perdendo. Assim, para ele, pelo menos no início, não foi um susto, mas um chegar consolador à consciência quando, do aposento de Klamm, Frieda foi chamada por uma voz profunda, que ao mesmo tempo ordenava e era indiferente: — Frieda — disse K. no ouvido de Frieda, transmitindo assim o chamado. Com uma obediência literalmente inata, Frieda quis saltar em pé, mas depois lembrou-se de onde estava, espreguiçou-se, riu em silêncio e disse: — Não pense que eu vou, nunca mais irei para ele. K. quis contradizê-la, queria forçá-la a ir para Klamm, começou a recolher os restos da sua blusa, mas não conseguia dizer nada, estava extremamente feliz em conservar Frieda consigo, bastante receoso e feliz ao mesmo tempo, pois parecialhe que, se Frieda o deixasse, tudo o que ele tinha o abandonaria. E como se Frieda estivesse fortalecida com a aprovação de K., cerrou o punho, bateu com ele na porta e bradou: — Eu estou com o agrimensor! Eu estou com o agrimensor! Klamm no entanto ficou em silêncio. Mas K. levantou-se, ajoelhou-se ao lado de Frieda e olhou em torno na turva luz da antemanhã. O que tinha acontecido? Onde estavam suas esperanças? O que poderia esperar de Frieda agora, quando tudo estava revelado? Em vez de avançar com o maior cuidado, proporcionalmente ao tamanho do inimigo e do objetivo, ele havia rolado ali a noite inteira nas poças de cerveja, cujo cheiro agora era atordoante. — O que você fez? — disse ele para si mesmo. — Estamos ambos perdidos. — Não — disse Frieda. — Só eu estou perdida, mas conquistei você. Fique tranqüilo. Mas veja como os dois estão rindo. — Quem? — perguntou K. virando-se. Em cima do balcão estavam sentados os seus dois ajudantes, um pouco tresnoitados porém contentes, era a alegria do verdadeiro dever cumprido. — O que vocês estão querendo aqui? — gritou K. como se eles fossem culpados por tudo, e procurou em volta o chicote que Frieda tinha usado a noite anterior. — Tivemos de procurá-lo — disseram os ajudantes. — Já que não desceu ao nosso encontro na sala do albergue, fomos procurá-lo na casa de Barnabás e finalmente o encontramos aqui; ficamos sentados a noite toda aqui. Não é um serviço fácil, este. — Eu preciso de vocês durante o dia, não à noite — disse K. — Fora daqui! — Já é dia agora — eles disseram sem se mover. De fato era dia, a porta da hospedaria foi aberta, os camponeses, junto com Olga, que K. tinha esquecido completamente, entraram aos bandos. Olga estava esperta como a noite passada, por pior que fosse o estado das suas roupas e do seu cabelo, já na porta seus olhos procuraram K. — Por que não foi comigo para casa? — disse quase em lágrimas. — Por causa de uma mulherzinha como essa! — disse depois, repetindo algumas vezes a mesma coisa.
Frieda, que tinha desaparecido por um instante, voltou com uma pequena trouxa de roupa branca; Olga desviou-se de lado, triste. — Agora podemos ir — disse Frieda, ela se referia claramente ao Albergue da Ponte, para o qual deviam ir. K. junto com Frieda, atrás deles os ajudantes — essa era a comitiva, os camponeses mostravam muito desprezo por Frieda, era compreensível porque ela até então havia se comportado com tanta severidade, um deles chegou a pegar um bastão e agiu como se não quisesse deixá-la ir antes que ela saltasse sobre o cajado, mas o olhar dela bastou para repeli-lo. Fora na neve K. respirou um pouco, a felicidade de estar ao ar livre era tão grande que dessa vez tornou a dificuldade do caminho suportável; se K. estivesse sozinho andaria melhor ainda. No albergue foi logo para o quarto e deitou-se na cama, Frieda instalou-se num leito ao lado, no chão, os ajudantes haviam se enfiado ali, foram expulsos, mas voltaram de novo pela janela. K. estava cansado demais para expulsá-los outra vez. A dona do albergue subiu especialmente para cumprimentar Frieda, foi chamada de mãezinha por ela, houve uma troca de saudações incompreensivelmente calorosa com beijos e longos abraços. No quartinho havia pouca tranqüilidade, volta e meia entravam também as criadas, fazendo barulho com as suas botas de homem, para trazer ou pegar algo. Se precisavam de alguma coisa entre as várias que entupiam a cama, puxavam-na sem nenhuma consideração por baixo de K. Cumprimentavam Frieda como se ela fosse uma igual. Apesar dessa falta de sossego, K. ficou na cama o dia inteiro e a noite toda. Frieda fazia-lhe pequenos serviços. Quando na manhã seguinte finalmente se levantou, muito revigorado, já era o quarto dia da sua permanência na aldeia.
 
 
ELE TERIA GOSTADO DE FALAR confidencialmente com Frieda, mas os ajudantes, com os quais, por sinal, ele de tempos em tempos também brincava e ria, o impediam de fazê-lo em virtude de sua mera presença inoportuna. Na verdade eles não eram exigentes, haviam se instalado no chão sobre dois velhos casacos de mulher; como freqüentemente argumentavam com Frieda, sua ambição era não perturbar o senhor agrimensor e precisar de espaço o menos possível; fizeram nesse sentido várias tentativas, sem dúvida sempre entre cicios e risadinhas, cruzaram os braços e as pernas, acocoraram-se juntos, e à luz do crepúsculo via-se no seu canto apenas um grande novelo. Mas infelizmente se sabia, pelas experiências feitas à luz do dia, que eram observadores muito atentos, fitando sempre K., seja quando, numa brincadeira aparentemente infantil, usassem suas mãos como telescópios, seja quando só piscassem em direção a K. e parecessem ocupados principalmente com o cuidado de suas barbas, às quais davam grande importância e cujo comprimento e cuja espessura eles comparavam inúmeras vezes e deixavam que Frieda julgasse. Muitas vezes K. olhava da sua cama, com total indiferença, as travessuras dos três. Quando então se sentiu suficientemente forte para deixar a cama, todos acorreram para servi-lo. Ele ainda não tinha energia bastante para se defender contra todos os seus serviços; notou que desse modo ficava numa certa dependência deles, que podia ter más conseqüências, mas ele tinha de deixar que isso acontecesse. Também não era de maneira alguma muito desagradável beber à mesa o bom café que Frieda havia trazido, aquecer-se junto ao fogão que ela tinha deixado aceso, mandar os ajudantes, com o zelo e a falta de jeito deles, descerem e subirem dez vezes a escada para trazerem água para o banho, sabão, pente e um espelho e, finalmente, por ter expressado um desejo que podia ser levemente interpretado nesse sentido, um pequeno copo de rum. No meio de todo esse vaivém de dar ordens e ser servido, K. disse mais por humor bonachão do que pela esperança de ter êxito: — Agora vão embora, vocês dois; no momento não preciso de mais nada e quero falar a sós com a senhorita Frieda. Quando não viu no rosto deles nenhuma resistência, disse ainda para recompensá-los:
— Depois nós três vamos até o prefeito; esperem-me no salão lá embaixo. Curiosamente eles obedeceram, só que antes de ir embora ainda disseram: — Nós poderíamos também esperar aqui. K. respondeu: — Eu sei, mas não é o que eu quero. K. no entanto sentiu como uma coisa irritante e em certo sentido bem-vinda o fato de Frieda — que logo depois da ida dos ajudantes se sentou no seu colo — dizer: — O que você tem contra os ajudantes, querido? Diante deles não precisamos fazer segredos. Eles são leais. — Ah, sim, leais! — disse K. — Eles ficam à minha espreita o tempo todo, isso é inútil mas repulsivo. — Creio que o compreendo — disse ela pendurando-se no seu pescoço. Quis dizer mais alguma coisa, mas não pôde continuar falando porque a cadeira estava bem ao lado da cama, eles oscilaram e caíram em cima dela. Lá ficaram, mas não tão entregues como durante a noite. Ela buscava algo e ele buscava algo, ambos furiosos, fazendo caretas; enterrando a cabeça um no peito do outro eles se buscavam e seus abraços e seus corpos arqueados não os faziam esquecer, mas lembrar-se da obrigação de continuar buscando; como os cães raspam desesperadamente o chão, eles raspavam os seus corpos e, desamparados e decepcionados, para alcançar ainda uma última felicidade, eles às vezes passavam a larga língua sobre o rosto do outro. Só o cansaço os acalmava e os tornava mutuamente gratos. Depois as criadas subiram e uma delas disse: — Veja como eles estão deitados. E por compaixão atirou uma toalha sobre eles. Quando, mais tarde, K. se livrou da toalha e olhou em volta, os ajudantes — isso não o espantou — estavam de novo no canto deles, exortavam um ao outro à seriedade com o dedo apontado para K. e batiam continência; mas além disso a dona do albergue estava sentada junto à cama, costurando uma meia, trabalho pequeno que combinava pouco com sua figura gigantesca, que quase escurecia o quarto. — Já estou esperando faz tempo — disse ela e ergueu o rosto largo, vincado por muitas rugas da idade, mas em grande parte ainda liso e que talvez um dia tivesse sido belo. As palavras soavam como uma censura, que não cabia, pois K. não tinha pedido que ela viesse. Por isso confirmou, só com um aceno de cabeça, as palavras dela, e sentou-se na cama; Frieda também levantou-se, mas deixou K. e reclinou-se sobre a cadeira da dona do albergue. — Será que a senhora não podia — disse K. distraído — adiar o que quer me dizer até que eu volte do prefeito? Tenho um encontro importante com ele. — Este é mais importante, acredite em mim, senhor agrimensor — disse a dona do albergue. — Lá se trata provavelmente só de um trabalho, mas aqui se trata de uma pessoa, de Frieda, minha querida criada. — Ah, bom — disse K. — Então sem dúvida; só que eu não sei por que esse assunto não é deixado para nós dois resolvermos. — Por amor, por preocupação — disse a dona do albergue, puxando para si a cabeça de Frieda, que em pé chegava só até o ombro da dona do albergue sentada. — Já que Frieda tem uma tal confiança na senhora — disse K. —, não posso agir de outra maneira. E ainda há pouco Frieda chamou meus ajudantes de leais, então todos nós estamos entre amigos. Nesse caso, senhora, posso dizer-lhe que acharia melhor que Frieda e eu nos casássemos, na verdade muito em breve. Infelizmente, infelizmente, não posso compensar Frieda pelo que ela perdeu por minha causa, o lugar na Hospedaria dos Senhores e a amizade de Klamm. Frieda levantou o rosto, seus olhos estavam cheios de lágrimas, não havia neles o menor sinal de vitória: — Por que eu? Por que justamente eu fui a escolhida para isso? — Como? — perguntaram ao mesmo tempo K. e a dona do albergue. — Ela está confusa, a pobre criança — disse a dona do albergue. — Confusa pelo encontro de demasiada felicidade e infelicidade. E como que para confirmar essas palavras Frieda lançou-se sobre K., beijandoo furiosamente, como se não houvesse mais ninguém no quarto, e depois caiu de joelhos diante dele, aos prantos, mas ainda abraçando-o. Enquanto acariciava o cabelo de Frieda com as duas mãos, K. perguntou à dona do albergue: — A senhora parece me dar razão? — O senhor é um homem honrado — disse a dona do albergue. Ela também tinha lágrimas na voz, estava com o aspecto um pouco baqueado e respirava com dificuldade; apesar disso ainda encontrou força para dizer: — Agora só precisam ser pensadas certas garantias que deve dar a Frieda, pois, por maior que seja minha consideração, o senhor é certamente um estranho, não tem referências, sua vida privada é desconhecida aqui, portanto são necessárias garantias, o senhor há de compreender, caro agrimensor; o senhor mesmo salientou o quanto, apesar de tudo, Frieda perde com a ligação com o senhor. — Sem dúvida, garantias, naturalmente — disse K. — O melhor será que elas sejam dadas diante do tabelião, mas talvez ainda se envolvam outras autoridades do conde. Aliás, antes do casamento também tenho de resolver sem falta uma coisa. Preciso falar com Klamm. — É impossível — disse Frieda levantando-se um pouco e pressionando o corpo contra K. — Que idéia!
— É necessário — disse K. — Se eu não o conseguir, você precisa fazê-lo. — Não posso, não posso — disse Frieda. — Klamm nunca irá falar com você. Como pode simplesmente acreditar que ele vá falar com você! — E com você ele falaria? — perguntou K. — Também não — disse Frieda. — Nem com você, nem comigo; são coisas simplesmente impossíveis. Voltou-se para a dona do albergue com os braços abertos: — Veja a senhora o que ele está pedindo! — O senhor é uma pessoa singular, senhor agrimensor — disse a dona do albergue. Era assustador como ela estava sentada agora, mais ereta, as pernas apartadas uma da outra, os joelhos possantes apontando por baixo da saia fina. — O senhor pede algo impossível. — Por que impossível? — perguntou K. — Vou explicar-lhe — disse a dona do albergue num tom de voz que sugeria ser essa explicação não talvez um último favor, mas já a primeira punição que ela aplicava. — Vou explicá-lo com prazer ao senhor. Na verdade, não faço parte do castelo; sou apenas uma mulher e somente uma dona de albergue numa estalagem de última categoria — não é de última categoria, mas não está longe disso —, e sendo assim pode ser que o senhor não dê muita importância à minha explicação, mas conservei na vida os olhos abertos, cruzei com muita gente e carreguei todo o peso do albergue sozinha, pois meu marido é de fato um bom rapaz mas não um dono de albergue e nunca irá compreender o que é responsabilidade. O senhor, por exemplo, deve só à negligência dele — naquela noite eu já estava cansada a ponto de desmoronar — o fato de estar aqui na aldeia, sentado nessa cama em paz e conforto. — Como? — perguntou K. despertando de uma certa distração, alvoroçado mais pela curiosidade do que pelo aborrecimento. — É só à negligência dele que o senhor deve isso — bradou outra vez a dona do albergue com o dedo esticado para K. Frieda tentou acalmá-la. — O que você está querendo? — disse a dona do albergue voltando rapidamente o corpo inteiro. — O senhor agrimensor me perguntou e eu tenho de responder. Como é que ele vai entender de outro modo aquilo que é óbvio para nós: que o senhor Klamm nunca irá falar com ele? O que estou dizendo? “Irá”... Ele não pode jamais falar com ele. Ouça, senhor agrimensor. O senhor Klamm é um senhor do castelo, por si só isso já significa uma posição muito elevada, independentemente do posto que ele possa ocupar. Mas o que é o senhor, que nos solicita aqui com tanta humildade permissão para se casar? O senhor não é do castelo, o senhor não é da aldeia, o senhor não é nada. Infelizmente porém o senhor é alguma coisa, ou seja, um estranho, alguém que está sobrando e fica no meio do caminho, alguém que sempre causa aborrecimento, por cuja culpa é preciso desalojar as criadas, alguém cujas intenções são desconhecidas, que seduziu nossa querida Frieda e a quem infelizmente é preciso dá-la como mulher. Por tudo isso eu no fundo não lhe faço censuras; o senhor é o que é; já vi em minha vida coisas demais para que não deva suportar mais essa visão. Mas agora imagine o que o senhor em verdade está exigindo. Um homem como Klamm deve falar com o senhor. Foi com sofrimento que ouvi dizer que Frieda o deixou olhar pelo buraco da porta; quando ela fez isso já estava seduzida pelo senhor. Diga-me como é que pôde suportar a visão de Klamm. Não precisa me responder, sei que a suportou muito bem. O senhor não é capaz de ver realmente Klamm, não é arrogância da minha parte, pois eu mesma não sou capaz. Klamm deve falar com o senhor, mas ele não fala nem com pessoas da aldeia, nunca até agora ele falou com alguém da aldeia. A grande distinção de Frieda, uma distinção que será o meu orgulho até o fim, é o fato de que ele costumava pelo menos chamar o nome de Frieda e ela podia conversar com ele à vontade, tendo recebido a permissão de usar o buraco da porta; mas falar ele também não falou com ela. E o fato de que às vezes ele chamava Frieda não deve ter o significado que se gosta de atribuir a isso, ele simplesmente chamava o nome de Frieda — quem conhece suas intenções? Que Frieda naturalmente fosse correndo, era problema dela; que ela fosse admitida sem protesto, era bondade de Klamm; mas que ele a tivesse por acaso chamado, isso não se pode afirmar. Agora, certamente, tudo aquilo que foi acabou para sempre. Talvez Klamm ainda venha a chamar o nome de Frieda, isso é possível, mas admitida por ele, ela não o será mais, isso é certo — uma jovem que foi se arranjar com o senhor. Só uma coisa, só uma coisa eu não consigo entender com a minha pobre cabeça: como é que uma moça, de quem se disse que era amante de Klamm — considero isso, aliás, uma denominação muito exagerada —, tinha simplesmente permitido que o senhor a tocasse. — Com efeito, isso é curioso — disse K., pegando Frieda no colo, onde ela logo se ajeitou, embora de cabeça baixa. — Mas prova, acredito, que nem tudo se comporta como a senhora julga. Assim, por exemplo, a senhora sem dúvida tem razão quando diz que eu sou um nada diante de Klamm, e se agora ainda peço para falar com Klamm e não sou dissuadido nem por suas explicações, isso ainda não quer dizer que eu não seja capaz de suportar sequer a visão de Klamm sem a porta no meio e que não saia correndo do quarto à mera aparição dele. Mas um temor desses, embora justificado, ainda não é para mim motivo para não ousá-lo. Se eu porém conseguir suportá-lo, então não é de modo algum necessário que ele fale comigo, basta-me ver a impressão que minhas palavras fazem nele e se elas não fizerem nenhuma impressão ou se ele não as ouvir, em absoluto, eu ainda terei o benefício de ter falado livremente perante um poderoso. A senhora, no entanto, com o seu grande conhecimento da vida dos homens, e Frieda, que ainda ontem era amante de Klamm — não vejo razão para desistir dessa palavra —, podem sem dúvida facilmente me proporcionar a oportunidade de falar com Klamm; se não é possível de nenhum outro modo, que seja então na Hospedaria dos Senhores, talvez ele ainda esteja lá hoje. — É impossível — disse a dona do albergue. — Vejo que lhe falta a capacidade de compreender. Mas diga: sobre o que quer falar com Klamm? — Sobre Frieda, naturalmente — disse K. — Sobre Frieda? — perguntou a dona do albergue, perplexa, voltando-se para Frieda. — Você está ouvindo, Frieda? É sobre você que ele, ele, quer falar com Klamm, com Klamm. — Ah, madame — disse K. — A senhora é uma mulher tão inteligente e que inspira respeito, no entanto qualquer coisinha a assusta. Ora, eu quero falar sobre Frieda com ele, isso não é tão monstruoso assim, pelo contrário, é natural. Pois a senhora decerto também se engana quando julga que, a partir do momento em que eu apareci, Frieda perdeu a importância para Klamm. A senhora o subestima se acredita nisso. Sinto perfeitamente que é presunçoso de minha parte querer ensiná-la a esse respeito, mas apesar disso tenho de fazê-lo. A relação de Klamm com Frieda não pode ter sido alterada em nada por minha causa. Ou não existia nenhuma relação consistente — na realidade dizem isso aqueles que tiram de Frieda o título de amante — e nesse caso ela não existe hoje também, ou então ela existe e, assim sendo, como poderia, por minha causa, como a senhora bem diz, que sou um nada aos olhos de Klamm, como poderia ela ser perturbada por mim? Acredita-se em coisas desse tipo no primeiro momento do susto, mas a menor reflexão já as põe no lugar. Aliás, deixemos que Frieda diga aqui a sua opinião. Com o olhar vagando na distância, a maçã do rosto no peito de K., Frieda disse: — É sem dúvida como a mãe diz: Klamm não quer saber mais nada de mim. Não certamente porque você, querido, apareceu, nada dessa ordem poderia tê-lo abalado. Mas eu acredito que é obra dele o fato de nos termos encontrado debaixo do balcão — bendita, e não amaldiçoada, seja essa hora! — Se é assim — disse K. devagar, pois doces eram as palavras de Frieda; fechou os olhos por alguns segundos, para se deixar impregnar pelas palavras. — Se é assim, há menos razão ainda para ter medo de uma conversa com Klamm. — Para dizer a verdade — disse a dona do albergue, olhando K. de cima para baixo —, o senhor às vezes me lembra o meu marido: ele é tão teimoso e pueril como o senhor. Está neste lugar há alguns dias e já quer saber tudo melhor do que os que nasceram aqui, melhor do que eu, uma velha senhora, e melhor do que Frieda, que viu e ouviu tanta coisa na Hospedaria dos Senhores. Não nego que também seja possível, uma vez ou outra, conseguir algo totalmente contrário às prescrições e contra a tradição, nunca experimentei nada desse tipo, mas existem, ao que se supõe, exemplos nesse sentido; pode ser, mas então isso não acontece com certeza da maneira como o senhor fez, dizendo não sem parar, fazendo só o que lhe dá na cabeça e não ouvindo os conselhos mais bem-intencionados. Será que acredita ser o senhor a minha preocupação? Fiquei preocupada com o senhor enquanto estava sozinho? Embora tivesse sido bom e muita coisa tivesse sido evitada? A única coisa que eu disse então ao meu marido sobre o senhor foi: “Mantenha distância dele”. Isso teria valido até hoje para mim mesma, se Frieda não tivesse sido envolvida no seu destino. É a ela que o senhor deve — goste ou não disso — o meu cuidado e até mesmo a minha consideração. E o senhor não pode simplesmente me afastar, porque tem uma grave responsabilidade perante mim, a única pessoa que vigia a pequena Frieda com solicitude materna. É possível que Frieda tenha razão e que tudo o que aconteceu seja a vontade de Klamm, mas dele eu agora não sei nada, nunca irei falar com ele, ele me é inteiramente inacessível, mas o senhor fica sentado aqui, com a minha Frieda nas suas mãos e — por que devo silenciar isso? — retido nas minhas. Sim, retido, pois tente, jovem, caso eu o mande embora desta casa, encontrar em alguma parte da aldeia um alojamento, mesmo que seja numa casa de cachorro. — Obrigado — disse K. — São palavras francas e eu acredito inteiramente na senhora. Minha posição, portanto, é bem insegura e com isso a de Frieda também. — Não! — interrompeu furiosamente a dona do albergue. — A posição de Frieda neste particular não tem absolutamente nada a ver com a sua. Frieda pertence à minha casa e ninguém tem o direito de chamar de inseguro o seu lugar aqui. — Muito bem, muito bem — disse K. — Também nisso dou-lhe razão, especialmente porque Frieda, por motivos que me são desconhecidos, parece ter medo demais da senhora para intervir. Portanto, fiquemos no momento apenas com o meu caso. Meu lugar é altamente inseguro, isso a senhora não nega, pelo contrário esforça-se para prová-lo. Como em tudo o que diz, isso também só é verdadeiro na maior parte, mas não completamente. Por exemplo, eu sei de um lugar muito bom para pousar que está à minha disposição. — Onde? Onde? — bradaram Frieda e a dona do albergue, as duas ao mesmo tempo e tão ávidas como se tivessem as mesmas razões para a pergunta. — Na casa de Barnabás — disse K.
— Esses patifes! — exclamou a dona do albergue. — Esses consumados patifes! Na casa de Barnabás! Escutem — e voltou para o canto dos ajudantes, mas estes já haviam se aproximado fazia muito tempo e estavam de braços dados atrás da dona do albergue, que então agarrou a mão de um deles como se precisasse de um ponto de apoio. — Vocês estão ouvindo onde este senhor tem andado, na família de Barnabás! Não há dúvida de que lá ele ganha um pouso para dormir. Ah, seria melhor se ele tivesse ficado lá e não na Hospedaria dos Senhores. Mas onde vocês estavam? — Minha senhora — disse K. antes que os ajudantes respondessem. — Eles são meus ajudantes, mas a senhora os trata como se fossem ajudantes seus e meus vigias. Em tudo o mais estou disposto pelo menos a discutir, com a maior polidez, as suas opiniões, não porém a respeito dos meus ajudantes, pois aqui a questão é bastante clara. Peço-lhe portanto que não fale com os meus ajudantes e, se meu pedido não for suficiente, proíbo meus ajudantes de responderem à senhora. — Quer dizer que não posso falar com vocês — disse a dona da estalagem, e os três riram, a dona do albergue com zombaria mas muito mais branda do que K. havia esperado, os ajudantes no seu modo costumeiro, significando muito e nada ao mesmo tempo e recusando qualquer responsabilidade. — Não fique bravo — disse Frieda. — Você tem de entender direito nossa excitação. Se quiser, nós devemos apenas a Barnabás o fato de que agora pertencemos um ao outro. Quando eu o vi pela primeira vez no balcão de bebidas — você estava entrando, enlaçado em Olga — eu já sabia, na verdade, alguma coisa sobre você, mas no geral você me era totalmente indiferente. Não era só você que me era indiferente, quase tudo, quase tudo me era indiferente. Naquela ocasião eu também estava insatisfeita com muita coisa e muita coisa me irritava — mas que insatisfação e que irritação! Se por exemplo um dos fregueses me molestava no balcão — eles estavam sempre atrás de mim, você viu os rapazes lá, mas vinham outros muito piores ainda, a criadagem de Klamm não era a pior de todas —, se então alguém me insultava, o que isso significava para mim? Era como se isso tivesse acontecido fazia muitos anos, ou como se não tivesse me acontecido, ou como se eu tivesse ouvido contar, ou como se eu mesma já houvesse esquecido. Mas não posso descrevê-lo, não posso nem mesmo imaginálo mais, tudo mudou desde que Klamm me abandonou. E Frieda interrompeu sua narrativa, baixando a cabeça e conservando as mãos cruzadas no colo. — Veja — exclamou a dona do albergue, não como se ela mesma falasse, mas só emprestasse sua voz a Frieda; ela se aproximou mais e ficou sentada bem ao lado de Frieda. — Veja, senhor agrimensor, as conseqüências dos seus atos; também os seus ajudantes, com os quais aliás eu não posso falar, podem ficar olhando para aprender a lição. O senhor tirou Frieda do estado mais feliz que tinha sido destinado a ela e conseguiu isso sobretudo porque Frieda, na sua compaixão pueril e exagerada, não pôde suportar que o senhor estivesse de braços dados com Olga, parecendo desse modo entregue à família de Barnabás. Assim ela o salvou e nesse ato se sacrificou. E agora que isso aconteceu e Frieda trocou tudo o que tinha pela felicidade de estar sentada no seu joelho, o senhor vem e lança como o seu grande trunfo a possibilidade que teve de poder pernoitar na casa de Barnabás. Com isso o senhor decerto quer provar que é independente de mim. Sem dúvida: se tivesse realmente passado a noite em casa de Barnabás o senhor seria tão independente de mim que teria de deixar imediatamente a minha casa, e o mais rápido possível. — Não conheço os pecados da família de Barnabás — disse K. enquanto erguia com cuidado Frieda, que parecia sem vida, punha-a devagar na cama, levantandose a seguir. — Talvez a senhora tenha razão, mas está fora de dúvida que eu tinha o direto de lhe pedir que deixasse que apenas Frieda e eu cuidássemos dos nossos assuntos. A senhora mencionou na ocasião alguma coisa sobre amor e cuidado, mas desde então não notei nada disso; pelo contrário, tenho ouvido falar mais em ódio, escárnio e expulsão de casa. Se a senhora estava empenhada em afastar Frieda de mim ou a mim dela, então isso foi levado a efeito com bastante jeito, mas acredito que não conseguirá o que queria e, caso consiga, a senhora — permita-me também fazer uma ameaça sombria — vai se arrepender amargamente. Quanto ao alojamento que a senhora me concede — com isso só pode estar se referindo a este buraco repulsivo —, não é absolutamente certo que o faça de livre e espontânea vontade; parece-me ao contrário que existe aí uma determinação da autoridade do conde. Vou então anunciar lá que fui despejado daqui e, se me indicarem um outro alojamento, a senhora vai com certeza respirar aliviada e eu mais ainda. E agora vou tratar desta e de outras questões com o prefeito. Por favor, cuide ao menos de Frieda, a quem a senhora causou bastante mal com os seus discursos por assim dizer maternais. Voltou-se então para os ajudantes. — Venham — disse ele, tirando a carta de Klamm do prego na parede e fazendo menção de ir embora. A dona do albergue acompanhava-o em silêncio com o olhar e só quando K. estava com a mão na maçaneta, ela disse: — Senhor agrimensor, antes que vá embora ainda tenho uma coisa para dizer, pois seja qual for o discurso que pretende fazer e a maneira como queira me insultar, a mim, uma velha senhora, o senhor é o futuro marido de Frieda. Só por causa disso eu digo que o senhor é pavorosamente ignorante sobre como são as coisas aqui, a cabeça fica zunindo quando se escuta o que o senhor fala e quando se compara mentalmente aquilo que afirma e pensa com a situação real. Essa ignorância não pode ser corrigida de uma só vez, talvez isso nem seja possível, mas muita coisa pode melhorar se o senhor acreditar só um pouco em mim e tiver sempre presente essa ignorância. Vai se tornar, então, por exemplo, imediatamente mais justo em relação a mim e começará a ter uma idéia dos sustos pelos quais passei — as conseqüências desses sustos ainda se mantêm — quando reconheci que minha querida pequena de certo modo abandonou a águia para se ligar a uma lesma, mas a relação real é muito pior ainda e eu preciso incessantemente procurar me esquecer dela, pois caso contrário não poderia trocar nenhuma palavra tranqüila com o senhor. Ah, o senhor ficou bravo outra vez. Não, não vá ainda, ouça apenas mais este pedido: para onde quer que se dirija, fique consciente de que o senhor é o que menos sabe neste lugar e tenha cuidado; aqui, entre nós, a presença de Frieda o protege de qualquer dano, por mais que abra livremente o coração; aqui por exemplo o senhor pode mostrar como pretende mais tarde falar com Klamm, mas na realidade, na realidade, por favor, por favor, não o faça. Ela se levantou, foi até K. vacilando um pouco de emoção, agarrou sua mão e olhou implorando para ele. — Senhora dona do albergue — disse K. —, não entendo por que, em virtude de uma coisa dessas, se rebaixa a me fazer um pedido. Se como diz é impossível que eu fale com Klamm, então é óbvio que não vou conseguir, peça-me ou não. Mas se for possível, por que então não devo fazê-lo, principalmente tendo em vista que, caindo sua principal objeção, todos os outros temores seus se tornam muito duvidosos? Certamente sou ignorante, a verdade permanece de qualquer forma e isso é muito triste para mim, mas existe também a vantagem de que o ignorante ousa mais e por esse motivo quero, com prazer, carregar mais um pouco a ignorância e suas más conseqüências — enquanto as energias para tanto forem suficientes. Mas no essencial essas conseqüências só afetam a mim e é sobretudo por isso que não entendo seu pedido. A senhora vai cuidar sempre de Frieda, com toda a certeza, e se eu desaparecesse completamente da vista dela isso só poderia significar uma felicidade, do seu ponto de vista. O que está temendo, então? Será que a senhora na verdade não teme que, para quem não sabe de nada, tudo parece possível? K. já estava abrindo a porta quando disse: — Será que a senhora não teme, na verdade, por Klamm? A dona do albergue acompanhou-o em silêncio com o olhar enquanto ele descia a escada e os ajudantes o seguiam.
 
QUASE PARA SUA PRÓPRIA SURPRESA, a entrevista com o prefeito causava pouca preocupação a K. Tentou explicá-lo a si mesmo pelo fato de que, a julgar pelas experiências anteriores, o trato oficial com as autoridades do conde tinha sido muito simples. Por um lado, isso se devia a que, em relação ao tratamento dado aos seus assuntos, haviam adotado claramente — e de uma vez por todas — um princípio que, visto de fora, era muito favorável a ele e por outro lado à coesão admirável dos serviços administrativos, que se pressentia como particularmente perfeita, logo onde ela parecia não existir. Quando às vezes só pensava nisso, K. não ficava longe de achar sua situação satisfatória, muito embora sempre dissesse rapidamente a si mesmo, depois desses acessos de bem-estar, que o perigo estava exatamente aí. A relação direta com as autoridades não era, na verdade, difícil demais, pois as autoridades, por mais bem organizadas que fossem, sempre tinham de defender coisas remotas e invisíveis em nome de senhores remotos e invisíveis, ao passo que K. lutava o mais vivamente possível por coisas próximas, ou seja, por ele mesmo e, além disso, ao menos nos primeiros tempos, por vontade própria, uma vez que ele era o agressor, sem ser apenas ele que lutava por si, mas também, ao que parece, outras forças que não conhecia, mas nas quais podia crer a partir das medidas tomadas pelas autoridades. Mas por se mostrarem amplamente receptivas, em caráter prévio e em coisas menos essenciais — até agora não se tratara de nada mais que isso —, as autoridades o privavam da possibilidade de pequenas e fáceis vitórias e, com essa possibilidade, também da satisfação correspondente e da segurança bem fundada, que dela derivava, para outras lutas maiores. Em vez disso deixavam K. deslizar por toda parte que quisesse, se bem que apenas no interior da aldeia, minando-o e enfraquecendo-o com isso: aqui elas eliminavam qualquer luta que houvesse e desse modo o deslocavam para a vida extraadministrativa, totalmente sem transparência, turva, estranha. Sendo assim, podia bem acontecer, caso ele não estivesse sempre alerta, que um dia, a despeito de toda a amabilidade das autoridades e da realização plena de todas as obrigações oficiais tão exageradamente fáceis, iludido pelo favor aparente que lhe era dispensado, conduzisse sua outra vida de forma tão descuidada que, nesse ponto, ele desmoronasse e as autoridades, sempre brandas e amigáveis, tivessem de vir, como se fosse contra a vontade, mas em nome de alguma ordem pública que desconhecia, para tirá-lo do caminho. E o que era ali, na realidade, aquela outra vida? Em lugar nenhum K. tinha visto antes, como ali, as funções administrativas e a vida tão entrelaçadas — de tal maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham trocado de lugar. O que significava, por exemplo, o poder até agora apenas formal que Klamm exercia sobre o ofício de K., comparado com o poder que Klamm tinha em toda a sua efetividade no quarto de dormir de K.? Acontecia assim que, ali, um procedimento um pouco mais ligeiro, uma certa distensão, só cabiam na relação direta com as autoridades, ao passo que no mais era sempre necessário um grande cuidado, um olhar em volta para todos os lados antes de cada passo. A concepção que tinha das autoridades locais K. viu inicialmente bem confirmada junto ao prefeito. Este, um homem amável, gordo, escanhoado, estava doente, com um forte ataque de gota, e recebeu K. na cama. — Então é este o nosso senhor agrimensor! — disse ele, querendo levantar-se, mas sem conseguir fazê-lo. Lançou-se de volta outra vez aos travesseiros, desculpando-se e apontando para as pernas. Uma mulher silenciosa, quase uma sombra na luz crepuscular do quarto de janelas pequenas, mais escurecido ainda pelas cortinas, trouxe uma cadeira, colocando-a ao lado da cama. — Sente-se, sente-se, senhor agrimensor — disse o prefeito. — Diga-me o que deseja. K. leu em voz alta a carta de Klamm, acrescentando algumas observações. Mais uma vez teve o sentimento da extraordinária facilidade no trato com as autoridades. Elas carregavam literalmente todo o peso, era possível pôr-lhes tudo nos ombros, conservando-se incólume e livre. Como se também sentisse isso à sua maneira, o prefeito virou-se incomodado na cama. Finalmente disse: — Como já deve ter notado, senhor agrimensor, estou ciente de tudo. O fato de não ter feito nada ainda tem sua razão, primeiro, na minha doença, e depois na sua demora para vir; eu já estava pensando que o senhor tinha posto o assunto de lado. Mas já que teve a bondade de me procurar pessoalmente, preciso de qualquer modo dizer-lhe toda a desagradável verdade. O senhor foi aceito como agrimensor, como diz, mas infelizmente nós não precisamos de agrimensor. Não haveria o menor trabalho para um, aqui. As fronteiras das nossas pequenas propriedades agrícolas estão traçadas, está tudo registrado e em ordem, trocas de títulos quase não ocorrem e os pequenos litígios de fronteira nós mesmos resolvemos. Portanto, por que teríamos necessidade de um agrimensor? No íntimo K. estava convencido, sem haver pensado nisso antes, de ter esperado uma comunicação semelhante. Por esse motivo mesmo foi capaz de dizer logo: — Isso me surpreende muito. Atira por terra todos os meus cálculos. Só posso esperar que haja algum equívoco. — Infelizmente não — disse o prefeito. — É como estou dizendo. — Mas como isso é possível? — exclamou K. — Certamente não fiz esta viagem interminável para agora ser mandado de volta. — Isso é uma outra questão — disse o prefeito. — Não tenho de resolvê-la, mas seja como for posso explicar-lhe como esse equívoco foi possível. Numa administração tão grande como a do conde, pode acontecer às vezes que uma repartição determine isto, a outra aquilo, nenhuma sabe da outra; na verdade o controle superior é extremamente preciso, mas pela sua própria natureza chega tarde demais e sendo assim pode surgir uma pequena confusão. Evidentemente são sempre particularidades minúsculas, como por exemplo o seu caso; em coisas grandes nenhum erro chegou ao meu conhecimento, mas as ninharias também são com freqüência suficientemente penosas. No que diz respeito ao seu caso, não quero manter segredos de ofício — para tanto não sou funcionário de verdade, sou camponês e fico nisso — e vou contar francamente o que aconteceu. Há muito tempo, na época eu era prefeito fazia só alguns meses, chegou uma ordem, não sei mais de que repartição, na qual se comunicava, da maneira peculiar e categórica dos senhores de lá, que devia ser convocado um agrimensor, encarregando-se a comunidade de conservar prontos para os trabalhos dele todos os planos e anotações necessários. Naturalmente essa ordem não dizia respeito ao senhor, pois isso foi há muitos anos e eu não teria me lembrado se não estivesse agora doente e dispusesse de tempo suficiente, na cama, para pensar nas coisas mais ridículas. Interrompendo de repente o seu relato, ele disse à esposa, que continuava a ir e vir sem ruído pelo quarto, numa atividade incompreensível: — Mizzi, por favor procure no armário, talvez você encontre a ordem. Dirigindo-se a K., esclareceu: — É que ela era dos meus primeiros tempos, naquela época eu ainda guardava tudo. A mulher abriu logo o armário, K. e o prefeito ficaram observando. O armário estava abarrotado de papéis; ao ser aberto, dois maços de processos rolaram para fora, amarrados como se costuma atar lenha para o fogo; a mulher pulou assustada para o lado. — Embaixo, deveria estar embaixo — disse o prefeito, dirigindo da cama a operação. Obediente, juntando os processos nos braços, a mulher tirou tudo do armário para chegar aos papéis de baixo. Os papéis já cobriam a metade do quarto. — Muito trabalho foi feito — disse o prefeito com um aceno de cabeça. — E isso é só uma pequena parte. A massa principal eu guardei no celeiro e a maior parte naturalmente se perdeu. Quem é que pode conservar tudo? Mas no celeiro ainda tem muita coisa. Voltou-se então outra vez para a esposa: — Vai conseguir encontrar a ordem? Você precisa procurar um auto no qual a palavra “agrimensor” está grifada em azul. — Está muito escuro aqui — disse a mulher. — Vou buscar uma vela. E saiu do quarto passando por cima dos papéis. — Minha mulher é um grande apoio neste pesado labor administrativo, que na verdade precisa ser feito além do resto — disse o prefeito. — Para os trabalhos escritos tenho mais um auxiliar, o professor, mas mesmo assim é impossível fazer tudo, sempre sobra alguma coisa que não foi terminada, que está reunida naquele armário ali — e apontou para um outro armário. — E agora que estou doente, então, as coisas se acumulam. Disse isso e voltou a se deitar, cansado mas também orgulhoso. — Será que eu não poderia — disse K., quando a mulher tinha voltado com a vela e procurava o documento ajoelhada diante do armário —, será que eu não poderia ajudar sua esposa a procurar? O prefeito riu sacudindo a cabeça. — Como já disse, não tenho segredos de ofício perante o senhor, mas deixá-lo procurar no meio dos processos — até aí eu certamente não posso ir. Fez-se então silêncio no quarto, só se ouvia o sussurro dos papéis, talvez o prefeito até cochilasse um pouco. Uma leve batida à porta fez K. voltar-se. Naturalmente eram os ajudantes. Fosse como fosse eles já estavam um pouco educados, não se precipitaram logo dentro do quarto, mas primeiro cochicharam pela porta um pouco aberta: — Estamos com frio aqui fora. — Quem é? — perguntou o prefeito, sobressaltando-se. — São só os meus ajudantes — disse K. — Não sei onde devo fazê-los me esperar, lá fora está frio demais e aqui dentro eles incomodam. — A mim eles não perturbam — disse o prefeito amavelmente. — Mande-os entrar. Aliás, eu os conheço. Velhos conhecidos. — Mas a mim eles incomodam — disse K., com franqueza, deixando o olhar ir dos ajudantes para o prefeito e de volta aos primeiros, achando o sorriso dos três indistinguíveis uns dos outros. — Já que estão aqui, porém — disse K. ensaiando —, fiquem e ajudem a senhora do prefeito a procurar um processo no qual a palavra agrimensor está assinalada em azul. O prefeito não levantou nenhuma objeção; o que K. não podia fazer os ajudantes podiam, eles se lançaram imediatamente sobre os papéis, mas mais reviravam os montes do que procuravam e quando um estava soletrando um texto
o outro o arrancava sempre de sua mão. A mulher, pelo contrário, se ajoelhava diante do armário vazio, não parecia mais nem um pouco estar procurando, de qualquer forma a vela estava muito distante dela. — Os ajudantes — disse o prefeito com um sorriso cheio de si, como se tudo dependesse das suas determinações mas ninguém fosse nem mesmo capaz de suspeitar disso —, os ajudantes então o incomodam. Mas eles são seus próprios ajudantes. — Não — disse K. friamente. — Eles só vieram correndo para mim aqui. — Como assim, vieram correndo? — disse ele. — Eles foram confiados ao senhor, é o que com certeza está querendo dizer. — Está bem, eles me foram confiados — disse K. — Mas poderiam igualmente ter caído com a neve, tão irrefletida foi essa atribuição. — Nada aqui acontece sem reflexão — disse o prefeito, esquecendo a dor nos pés e endireitando-se na cama. — Nada? — disse K. — E o que dizer da minha nomeação? — Também ela foi pensada — disse o prefeito. — Só que circunstâncias secundárias intervieram para confundir, vou provar isso ao senhor com o processo na mão. — Os autos não serão encontrados — disse K. — Não serão encontrados? — exclamou o prefeito. — Mizzi, por favor procure um pouco mais depressa! Mas eu posso contar-lhe primeiro a história sem o dossiê. Aquela ordem, sobre a qual já falei, nós a respondemos com o agradecimento de que não precisávamos de nenhum agrimensor. Ao que parece, porém, essa resposta não chegou à repartição original, vou chamá-la A, mas por engano à repartição B. A repartição A, portanto, ficou sem resposta, mas infelizmente também a B não recebeu nossa resposta completa, seja porque os conteúdos do processo permaneceram conosco, seja porque se perderam no caminho — na própria repartição não, isso eu posso garantir —; seja como for, à repartição B só chegou também um envelope dos autos, sobre o qual não estava anotado nada além do fato de que o processo incluso — mas que na realidade estava faltando — tratava da designação de um agrimensor. A repartição A esperou, nesse ínterim, a nossa resposta, na verdade ela tinha os dados sobre o assunto, mas como acontece com uma freqüência compreensível, tendo em vista a precisão de todos os trâmites, o funcionário encarregado confiou que nós iríamos responder e que ele então ou convocaria o agrimensor ou continuaria se correspondendo conosco sobre o assunto conforme a necessidade. Em conseqüência disso ele negligenciou os dados que estavam em sua posse e tudo caiu no esquecimento. Na repartição B, entretanto, o envelope do processo chegou às mãos de um funcionário famoso por sua consciência profissional, ele se chama Sordini, um italiano; até para mim, que sou um iniciado, é incompreensível por que um homem da sua capacidade é deixado num posto praticamente dos mais subalternos. Esse Sordini naturalmente nos mandou de volta o envelope vazio do processo para que ele fosse completado. Mas desde aquela primeira circular da repartição A já haviam se passado muitos meses, se não anos, uma coisa compreensível, pois se um processo segue o caminho certo, como é a regra, ele chega à repartição correspondente o mais tardar em um dia, sendo despachado nesse mesmo dia ainda; se porém erra o caminho, tem de procurar o caminho errado com bastante zelo, dada a excelência da organização, caso contrário não o acha e então é evidente que demora muito tempo. Quando daí recebemos o memorando de Sordini, só conseguíamos ainda nos lembrar muito vagamente do assunto, na época éramos apenas dois para o trabalho, Mizzi e eu, o professor ainda não tinha sido confiado a mim, só conservávamos as cópias nas questões mais importantes — em suma, somente pudemos responder, de maneira muito vaga, que não sabíamos nada daquela nomeação e que não havia, entre nós, necessidade de um agrimensor. Aqui o prefeito se interrompeu, como se tivesse ido longe demais no zelo da narração ou como se fosse pelo menos possível que tivesse ido longe demais e depois disse: — Mas esta história não o aborrece? — Não — disse K. — Ela me entretém. Ao que o prefeito replicou: — Eu a conto ao senhor só para entretê-lo. — Ela me entretém apenas pelo fato — disse K. — de que me oferece uma percepção da ridícula embrulhada que, conforme as circunstâncias, decide sobre a existência de uma pessoa. — O senhor ainda não obteve nenhuma percepção — disse o prefeito, sério. — E posso continuar contando. Naturalmente um Sordini não podia ficar satisfeito com a nossa resposta. Eu admiro esse homem, embora seja um tormento para mim. Com efeito, ele desconfia de todos; mesmo quando, por exemplo, ficou conhecendo alguém, em inúmeras oportunidades, como a pessoa mais digna de confiança, ele desconfia dela na próxima ocasião, como se não a conhecesse em absoluto, ou melhor: como se a conhecesse como um velhaco. Eu considero isso certo, um funcionário tem de agir assim, infelizmente não consigo, pela minha natureza, seguir esse princípio, o senhor está vendo como exponho tudo ao senhor, um estrangeiro, tudo abertamente, não posso fazê-lo de outra forma. Sordini, pelo contrário, ficou imediatamente desconfiado de nossa resposta. Seguiu-se então uma grande correspondência. Sordini perguntou por que havia me ocorrido de repente que nenhum agrimensor devia ser chamado; respondi com a ajuda da excelente memória de Mizzi que de fato a primeira sugestão tinha vindo da própria repartição (que se tratava de uma outra repartição nós já tínhamos naturalmente esquecido fazia muito tempo); Sordini replicou — por que só agora eu mencionava esse despacho oficial; eu de volta: porque só agora eu me lembrei dele; Sordini — é muito estranho; eu — não é nada estranho num assunto que se arrasta por tanto tempo; Sordini — é sem dúvida estranho, pois o despacho, do qual eu me lembrara, não existe; eu — naturalmente que não existe, porque o processo inteiro se perdeu; Sordini — mas precisava existir um memorando referente àquele primeiro despacho; ele porém não existe. Aí eu hesitei, pois não ousava afirmar nem acreditar que havia ocorrido um erro na repartição de Sordini. Talvez o senhor mentalmente censure Sordini pelo fato de, movido ao menos por consideração em relação às minhas afirmações, não ter procurado se informar sobre o assunto em outras repartições. Mas justamente isso teria sido errôneo: não quero que permaneça uma mancha sobre esse homem, nem que seja no pensamento do senhor. É um princípio de trabalho da administração que não se levem absolutamente em conta as possibilidades de erro. Esse princípio é justificado pela excelente organização do todo, sendo necessário para que se atinja a velocidade extrema de execução. Sordini, portanto, não tinha de forma alguma o direito de se informar junto às outras repartições, aliás elas não teriam nem mesmo respondido, porque teriam notado desde logo que se tratava da investigação de uma possibilidade de erro. — Permita-me, senhor prefeito, que eu o interrompa com uma pergunta — disse K. — O senhor não fez menção, antes, a uma autoridade de controle? A administração, da maneira como o senhor descreve, é de uma natureza tal, que a pessoa se sente mal só de pensar que esse controle possa estar ausente. — O senhor é muito severo — disse o prefeito. — Mas pode multiplicar por mil sua severidade que ela não será nada em comparação com a severidade que a administração emprega em relação a si mesma. Só uma pessoa completamente estranha pode fazer uma pergunta como a sua. Se existem autoridades de controle? Existem apenas autoridades de controle. Evidentemente elas não se destinam a descobrir erros no sentido grosseiro da palavra, pois não ocorrem erros, e mesmo que aconteça um, como no seu caso, quem tem o direito de dizer de forma definitiva que é um erro? — Isso seria uma novidade completa! — exclamou K. — Para mim é uma coisa muito antiga — disse o prefeito. — Eu mesmo estou convencido, de um modo não muito diferente do seu, de que houve um erro e de que, por causa do desespero com isso, Sordini adoeceu gravemente; as primeiras instâncias de controle, às quais devemos a descoberta da origem do erro, aqui também o reconhecem. Mas quem pode afirmar que a segunda instância julga da mesma maneira e a terceira também e assim por diante todas as demais? — Pode ser — disse K. — Prefiro não me intrometer nessas considerações, além disso é a primeira vez que ouço falar dessas instâncias de controle e naturalmente ainda não sou capaz de entendê-las. Acredito apenas que aqui se devem distinguir duas coisas: primeiro, aquilo que acontece dentro da administração das instâncias e o que, por sua vez, pode ser concebido administrativamente, de uma maneira ou outra; e segundo, minha pessoa real, eu, que estou fora da administração e a quem ameaça um prejuízo tão insensato por parte delas, que ainda não consigo acreditar na seriedade do perigo. Para o primeiro ponto provavelmente vale o que o senhor, prefeito, narra com um conhecimento de causa espantoso, extraordinário, mas agora eu gostaria de ouvir também uma palavra a meu respeito. — Chego também a isso — disse o prefeito. — Mas o senhor não poderia entender se eu não antecipasse ainda alguma coisa. Já o fato de eu mencionar neste momento as instâncias de controle foi prematuro. Volto portanto às divergências com Sordini. Como dizia, aos poucos baixei a guarda. Mas se Sordini tem nas mãos a mínima vantagem sobre alguém, ele já venceu, pois aí se intensificam sua atenção, sua energia, sua presença de espírito, e para a pessoa atacada é uma visão terrível e para os inimigos dela uma visão estupenda. Só posso falar dele assim como estou fazendo porque em outros casos também experimentei isso. Aliás, até agora nunca consegui vê-lo com meus próprios olhos, ele não pode vir aqui para baixo, está muito sobrecarregado de trabalho, sua sala, conforme me descreveram, tem todas as paredes cobertas por colunas de processos volumosos empilhados uns sobre os outros, são apenas aqueles nos quais Sordini está trabalhando no momento, e uma vez que das pilhas são constantemente retirados processos e juntados novos documentos, tudo na maior pressa, as pilhas desmoronam e é justamente esse estrondo que se repete sem cessar que se tornou característico do escritório de Sordini. Sim, Sordini é um grande trabalhador e dedica o mesmo cuidado tanto ao menor como ao maior dos casos. — Senhor prefeito — disse K. —, o senhor continua dizendo que o meu caso é um dos menores e no entanto ele já ocupou bastante muitos funcionários e, mesmo que no início tenha sido bem pequeno, tornou-se um grande caso graças ao zelo de funcionários do tipo do senhor Sordini. Infelizmente, e muito contra a minha vontade, pois minha ambição não é fazer com que cresçam e desabem pilhas de autos que me dizem respeito, mas trabalhar tranqüilamente como pequeno agrimensor numa pequena escrivaninha. — Não — disse o prefeito. — Não é um grande caso, nesse sentido o senhor não tem motivo algum para se queixar, é um dos menores entre os pequenos casos. O volume de trabalho não determina a importância do caso, o senhor ainda está muito longe de entender a autoridade, se acredita nisso. Mas mesmo que dependesse da quantidade de trabalho, o seu seria um dos casos menos importantes; os mais comuns, ou seja, aqueles sem os assim chamados erros, dão muito mais trabalho ainda e certamente um trabalho bem mais frutífero. O senhor, aliás, ainda não sabe absolutamente nada do verdadeiro trabalho que seu caso provocou, e é disso que eu agora quero falar. Num primeiro momento, então, Sordini me pôs de lado, mas todos os dias chegavam à Hospedaria dos Senhores os seus funcionários e lá se realizavam inquéritos protocolares de membros notáveis da comunidade. A maioria ficou do meu lado, só alguns hesitavam, a questão do agrimensor toca de perto o camponês, eles farejavam algum acordo secreto, alguma injustiça, além disso encontraram um chefe e das suas declarações Sordini tinha de chegar à convicção de que, se eu tivesse apresentado o assunto ao conselho, nem todos teriam sido contrários à nomeação de um agrimensor. Assim é que uma coisa óbvia — ou seja, que não é preciso nenhum agrimensor — se tornou de qualquer forma no mínimo duvidosa. Nessa ocasião destacou-se especialmente um certo Brunswick, o senhor com certeza não o conhece, talvez ele não seja mau, mas estúpido e fantasioso, é cunhado de Lasemann. — Do mestre-de-curtume? — perguntou K., e descreveu o homem barbudo que tinha visto na casa de Lasemann. — Sim, é ele — disse o prefeito. — Conheço também sua mulher — disse K. um pouco aleatoriamente. — É possível — disse o prefeito e calou-se. — Ela é bonita — disse K. —, mas um pouco pálida e doentia. Certamente é originária do castelo? Isso foi dito metade como pergunta, metade como afirmação. O prefeito olhou para o relógio, derramou remédio numa colher e engoliu-o apressadamente. — Do castelo o senhor decerto só conhece os escritórios — disse K. com grosseria. — Sim — disse o prefeito com um sorriso irônico e no entanto agradecido. — Eles são a coisa mais importante. E, quanto a Brunswick, se tivéssemos sido capazes de excluí-lo da comunidade, quase todos nós estaríamos felizes e Lasemann não seria o último. Mas naquela época Brunswick tinha conquistado uma certa influência, na verdade ele não é um orador, mas alguém que grita e para alguns isso já basta. Foi assim que me vi forçado a apresentar o caso ao conselho municipal, e foi esse, aliás, num primeiro momento, o único êxito de Brunswick, pois naturalmente o conselho manifestou por grande maioria que não queria saber de um agrimensor. Também isso aconteceu faz anos, mas durante todo esse tempo a coisa não chegou ao ponto de repouso, em parte por causa da escrupulosidade de Sordini, que procurava investigar com os levantamentos mais minuciosos os motivos tanto da maioria quanto da oposição, em parte por causa da estupidez e da ambição de Brunswick, que tem várias ligações pessoais com as autoridades, as quais ele punha em movimento com invenções sempre novas da sua fantasia. Sordini no entanto não se deixou enganar por Brunswick — como é que Brunswick poderia enganar Sordini? —, mas mesmo para não se deixar enganar eram necessários novos levantamentos e antes ainda que eles estivessem terminados Brunswick já havia imaginado mais uma vez outra novidade; ele é muito versátil, isso faz parte da sua estupidez. Chego agora a uma característica especial do nosso aparelho administrativo. Correspondendo à sua precisão ele é extremamente sensível. Quando um assunto foi ponderado durante longo tempo, pode acontecer — mesmo que as ponderações ainda não estejam concluídas — que de repente, rápida como um raio, surja uma solução num ponto imprevisível e mais tarde não mais encontrável, que encerra a questão de maneira o mais das vezes muito justa, embora certamente arbitrária. É como se o aparelho administrativo não suportasse mais a tensão, a excitação derivada durante anos da mesma questão, talvez em si própria insignificante, e tivesse tomado a decisão por espontânea vontade, sem a colaboração dos funcionários. Naturalmente não aconteceu nenhum milagre e sem dúvida algum funcionário escreveu a resolução ou encontrou uma decisão não escrita, mas de qualquer modo, pelo menos de nossa parte, daqui onde estamos, ninguém, nem mesmo da administração competente, pode estabelecer que funcionário decidiu nesse caso e por quais motivos. Só os serviços de controle são capazes de estabelecê-lo muito mais tarde, mas nós não ficamos sabendo de mais nada, aliás é difícil que depois alguém ainda se interesse. Como foi dito, porém, justamente essas decisões são na maioria das vezes ótimas, o único inconveniente delas é que só vêm a ser conhecidas tarde demais, conforme acontece em geral com essas coisas, e portanto se continua, nesse ínterim, a deliberar apaixonadamente sobre questões há muito tempo decididas. Não sei se no seu caso se chegou a uma decisão assim — algumas coisas dizem que sim, outras que não; mas, se isso aconteceu, a nomeação teria sido enviada ao senhor e o senhor teria feito a longa viagem até aqui; aí muito tempo teria passado e nesse lance Sordini teria continuado a trabalhar na mesma causa até a exaustão, Brunswick feito intrigas e eu teria sido atormentado pelos dois. Só faço menção a essa possibilidade; de maneira definida, porém, só sei o seguinte: uma seção de controle descobriu, nesse meio-tempo, que da repartição A foi enviada, faz muitos anos, uma consulta à municipalidade a respeito de um agrimensor, sem que até agora tenha chegado uma resposta. Recentemente perguntaram outra vez a mim e nesse momento a coisa toda foi obviamente esclarecida, a repartição A deu-se por satisfeita com a minha resposta no sentido de que não era necessário um agrimensor, e Sordini teve de reconhecer que não era competente neste caso e, certamente sem culpa, tinha produzido todo aquele trabalho inútil e enervante. Se não tivessem aparecido novos trabalhos de todos os lados como sempre e se o seu caso não tivesse sido apenas um caso pequeno —, pode-se quase dizer: o menor entre os pequenos —, teríamos então, todos, sem dúvida, respirado aliviados, acredito que até o próprio Sordini; só Brunswick ficou rancoroso, o que, porém, era apenas ridículo. Agora imagine, senhor agrimensor, minha decepção quando, após o término feliz de toda essa questão — e a partir de então já decorreu, de novo, muito tempo —, o senhor se apresenta de repente e tudo assume o aspecto de que o caso vai começar outra vez do início. O senhor sem dúvida entende que estou firmemente decidido a não admitir isso de maneira alguma, no que depende de mim. — Certamente — disse K. — Mas entendo, mais ainda, que aqui se comete um abuso atroz contra mim, talvez até contra as leis. Quanto à minha pessoa, saberei me defender. — Como quer fazer isso? — perguntou o prefeito. — Não posso revelá-lo — disse K. — Não quero me impor — disse o prefeito —, só quero que o senhor reflita no fato de que tem em mim, não digo um amigo, pois somos totalmente estranhos um ao outro, mas de certo modo um sócio. Só não permito que o senhor seja admitido como agrimensor, fora isso, porém, o senhor pode sempre se dirigir a mim, claro que dentro dos limites do meu poder, que não é grande. — O senhor sempre diz que não devo ser admitido como agrimensor — disse K. —, mas de fato eu já fui admitido, aqui está a carta de Klamm. — A carta de Klamm — disse o prefeito — é valiosa e digna de respeito por causa de sua assinatura, que parece ser autêntica, mas, no mais... não, não ouso me pronunciar sozinho sobre isso. Mizzi! — bradou e depois disse: — Mas o que é que estão fazendo? Mizzi e os ajudantes, que não eram observados fazia tempo, evidentemente não haviam encontrado o processo que procuravam e querendo trancar tudo outra vez no armário não o tinham conseguido por causa do acúmulo desordenado dos autos. Foram por certo os ajudantes que chegaram a essa idéia, que eles agora executavam. Tinham deitado o armário no chão, enfiado todos os autos dentro, depois haviam se sentado junto com Mizzi sobre as portas do armário, tentando nesse instante pressioná-las aos poucos para baixo. — O processo não foi encontrado — disse o prefeito. — É uma pena, mas a história o senhor já conhece, na verdade não precisamos mais dos autos, aliás eles ainda vão ser encontrados com certeza, provavelmente estão com o professor, com quem ainda se encontram muitos outros. Mas venha aqui com a vela, Mizzi, e leia comigo esta carta. Mizzi se aproximou, parecendo agora mais cinzenta e insignificante ainda do que quando estava sentada à beira da cama e se comprimia contra esse homem forte e cheio de vida que a mantinha abraçada. Só então é que o seu rosto pequeno sobressaiu à luz da vela, com traços claros, severos, abrandados apenas pelas linhas atenuantes do declínio da idade. Mal olhou para a carta, juntou as mãos e disse — “de Klamm”. Aí leram juntos a carta, cochicharam um pouco entre si e finalmente, justo quando os ajudantes bradavam “hurra!”, pois tinham afinal fechado as portas do armário e Mizzi dirigia a eles um olhar silencioso e grato, o prefeito disse: — Mizzi é totalmente da minha opinião, que agora posso muito bem exprimir. Esta carta não é de forma alguma um escrito oficial, mas uma carta particular. Já se pode reconhecer isso claramente pelo sobrescrito “Muito estimado senhor”. Além do mais, não se diz nela nenhuma palavra de que o senhor foi aceito como agrimensor, fala-se antes em termos gerais sobre serviços de ordem senhorial e também isso não é afirmado à maneira de um compromisso, mas que o senhor é aceito apenas “como já sabe”, isto é, o ônus da prova de que foi aceito cabe ao senhor. Por fim, do ponto de vista administrativo, o senhor está sendo remetido exclusivamente a mim, prefeito, como seu superior imediato, que deve lhe comunicar todos os pormenores, o que aliás já ocorreu em sua maior parte. Para alguém que sabe ler documentos oficiais e em conseqüência disso lê melhor ainda cartas não oficiais, está tudo muito claro; o fato de que o senhor, um estrangeiro, não o reconheça, não me causa espanto. Mas no conjunto a carta não significa outra coisa senão que Klamm pretende se ocupar pessoalmente do senhor para a eventualidade de que seja admitido a serviço do senhor conde. — Senhor prefeito — disse K., o senhor interpreta tão bem a carta que afinal não resta nada a não ser a assinatura numa folha de papel vazia. Não se dá conta de que, fazendo isso, rebaixa o nome de Klamm, que pretende respeitar? — Isso é um equívoco — disse o prefeito. — Eu não desconheço o significado da carta, não a deprecio pela minha interpretação, pelo contrário. Uma carta particular de Klamm naturalmente tem muito mais importância que um escrito oficial, só que ela não tem a importância que o senhor atribui a ela. — O senhor conhece Schwarzer? — perguntou K. — Não — disse o prefeito. — Talvez você, Mizzi? Também não. Não, não o conhecemos. — É curioso — disse K. — Ele é filho de um subcastelão. — Caro senhor agrimensor — disse o prefeito —, como posso conhecer todos os filhos de todos os subcastelães? — Muito bem — disse K. — Então tem que acreditar na minha palavra. Logo no dia da minha chegada tive com ele um incidente desagradável. Ele então se informou pelo telefone com um subcastelão chamado Fritz e recebeu a notícia de que eu tinha sido aceito como agrimensor. Como é que o senhor explica isso, senhor prefeito? — Muito simples — disse o prefeito. — O senhor na verdade nunca manteve contato real com nossas autoridades. Todos esses contatos são apenas aparentes, mas o senhor, por ignorar as circunstâncias, toma-os por reais. E no que diz respeito ao telefonema, o senhor está vendo, no meu caso, que de fato tenho muita coisa a ver com as autoridades — não existe telefone. Em albergues e similares o telefone pode prestar bons serviços, do mesmo modo que um aparelho de música automático, mas mais que isso não há nada. O senhor por acaso já telefonou aqui? Bem, então o senhor talvez me entenda. No castelo é óbvio que o telefone funciona de forma perfeita; como me contaram, lá se telefona ininterruptamente, o que naturalmente acelera muito o trabalho. Esses telefonemas incessantes nós ouvimos nos telefones daqui como rumor e canto, sem dúvida o senhor também ouviu isso. Mas esse rumor e esse canto são a única coisa certa e confiável que os telefones daqui transmitem, tudo o mais é enganoso. Não existe nenhuma linha telefônica definida com o castelo, nenhuma central telefônica que encaminhe nossos chamados; quando daqui se chama alguém no castelo, tocam lá todos os aparelhos das seções mais subalternas, ou melhor, todos tocariam se a campainha não estivesse desligada em quase todos eles, como sei com certeza. Mas de vez em quando um funcionário extenuado tem a necessidade de se distrair um pouco — principalmente ao anoitecer ou durante a noite — e liga a campainha, aí então nós recebemos uma resposta, resposta no entanto que não é senão uma brincadeira. Também isso é muito compreensível. Quem pode pretender, em nome de suas pequenas preocupações particulares, se imiscuir, à custa de toques de campainha telefônica, nesses trabalhos importantíssimos que evoluem sempre em ritmo vertiginoso? Não entendo também como é que alguém, ainda que seja um estrangeiro, pode acreditar que, quando chama Sordini pelo telefone, é realmente Sordini quem responde. É mais provável que seja um pequeno arquivista de uma seção completamente diferente. Seja como for, pode acontecer, em alguma hora fora do comum que, quando alguém chame o pequeno arquivista, seja o próprio Sordini quem dê a resposta. Nesse caso, sem dúvida, é melhor sair correndo do telefone antes que se ouça o primeiro toque. — De qualquer modo não vi as coisas assim — disse K. — Não podia conhecer esses detalhes, mas não tinha muita confiança nessas conversas telefônicas e sempre estive consciente de que só tem real importância aquilo que se fica sabendo no castelo, ou que se vem a saber vindo de lá. — Não — disse o prefeito atendo-se a uma palavra. — Essas respostas por telefone têm importância real, como é que não? Como é que uma informação dada por um funcionário do castelo pode ser desimportante? Já disse isso a propósito da carta de Klamm. Todas essas manifestações não têm nenhuma importância oficial; o senhor incorre em erro quando atribui a elas importância oficial; por outro lado, sua importância privada, como sinal de amizade ou de hostilidade, é muito grande, em geral muito maior do que jamais poderia ser a importância oficial. — Muito bem — disse K. — Admitindo que tudo é assim, então eu teria muitos bons amigos no castelo; vista mais de perto, já a idéia daquela seção, faz muitos anos, de mandar vir um agrimensor, poderia ser um gesto de amizade para comigo, e na seqüência um gesto foi se sucedendo a outro até que fui seduzido para um final ruim e ameaçado de expulsão. — Existe uma certa verdade na sua maneira de ver as coisas — disse o prefeito. — O senhor tem razão no sentido de que não se deve acolher ao pé da letra as manifestações do castelo. Mas o cuidado é necessário em toda parte, não só aqui, e tão mais necessário quanto mais importante é a manifestação de que se trata. Porém o que o senhor me diz de sedução é incompreensível para mim. Se o senhor tivesse seguido melhor minhas explanações, precisaria saber, sem dúvida, que a questão do seu chamado para cá é difícil demais para que pudéssemos respondê-la aqui no curso de uma pequena conversa. — Resta como resultado, então — disse K. —, que tudo é obscuro e insolúvel, a não ser a minha expulsão. — Quem ousaria expulsá-lo, senhor agrimensor? — disse o prefeito. — Mesmo a falta de clareza das questões preliminares lhe assegura o tratamento mais cordial, só que o senhor, ao que parece, é muito suscetível. Ninguém o retém aqui, mas isso não significa expulsão. — Oh, senhor prefeito — disse K. — Agora é o senhor que vê as coisas claras demais. Vou enumerar-lhe algumas das que me retêm aqui: o sacrifício que fiz para me distanciar de casa, a longa viagem, as esperanças fundadas que alimentei em nome de minha aceitação neste lugar, minha total falta de recursos, a impossibilidade de encontrar, agora, na minha terra, um trabalho equivalente e finalmente, o que não é menos relevante, minha noiva, que é daqui. — Ah, Frieda! — disse o prefeito sem mostrar qualquer surpresa. — Eu sei. Mas Frieda o seguiria para qualquer parte. No que diz respeito ao resto são necessárias, de fato, certas ponderações e vou informar o castelo a esse respeito. Se se chegar a uma decisão, ou se for preciso interrogá-lo mais uma vez antes disso, vou mandar chamá-lo. O senhor está de acordo?
— Não, de maneira alguma — disse K. — Não quero favores do castelo, mas aquilo que é o meu direito. — Mizzi — disse o prefeito à sua mulher, que ainda estava sentada e colada a ele e brincava perdida em sonhos com a carta de Klamm, com a qual tinha feito um naviozinho. Assustado, K. arrancou-a das mãos dela. — Mizzi — continuou o prefeito —, minha perna está começando outra vez a doer muito, precisamos fazer outra compressa. K. levantou-se e disse: — Vou me despedir então. — Sim — disse Mizzi, já preparando o ungüento. — Está fazendo uma corrente de ar forte, aqui. K. voltou-se, os ajudantes, na sua presteza sempre inadequada para servir, haviam aberto ambas as folhas da porta, logo em seguida às palavras de K. Para proteger o quarto do doente do forte frio que entrava, K. só pôde inclinar-se ligeiramente diante do prefeito. Depois saiu às pressas do quarto, arrastando consigo os ajudantes, e fechou rapidamente a porta.
 
 
DIANTE DO ALBERGUE o dono da casa o esperava. Sem ser interpelado ele não teria ousado falar, por isso K. perguntou o que ele queria. — Já tem outro lugar para ficar? — perguntou de volta o dono do albergue, olhando para o chão. — Você está fazendo a pergunta por conta de sua mulher — disse K. — Depende dela a esse ponto? — Não — disse o dono do albergue. — Não estou perguntando em nome dela. Mas ela está muito agitada e infeliz por sua causa, não pode trabalhar, fica deitada na cama, suspirando e se lamentando sem parar. — Devo ir falar com ela? — perguntou K. — Peço por favor que vá — disse o dono do albergue. — Eu já quis ir buscá-lo na casa do prefeito, fiquei escutando à porta, mas como estavam conversando não quis perturbar, além disso eu estava preocupado com minha mulher, corri de volta para cá, ela porém não me deixou entrar no quarto e assim não me restou outra coisa senão esperá-lo. — Então vamos rápido — disse K. — Vou tranqüilizá-la logo. — Espero que consiga — disse o dono do albergue. Atravessaram a cozinha clara, onde três ou quatro criadas, cada uma distante da outra, cuidando dos seus respectivos trabalhos, ficaram literalmente paralisadas à vista de K. Já da cozinha se ouviam os suspiros da dona do albergue. Ela estava deitada num cubículo sem janela separado da cozinha por um leve tabique de madeira. Só havia espaço para um grande leito de casal e um armário. A cama estava colocada de tal modo que dela se podia ver toda a cozinha e vigiar o trabalho. Da cozinha, porém, não se podia ver quase nada do quartinho, lá estava completamente escuro, só a coberta branca e vermelha cintilava um pouco. Quando se havia entrado e os olhos se habituado à escuridão é que se podiam distinguir os detalhes. — Finalmente o senhor veio — disse a dona do albergue com voz fraca. Ela estava deitada de costas, era evidente que tinha dificuldade para respirar, havia atirado a coberta de plumas para os pés da cama. Parecia muito mais jovem no leito do que vestida, mas uma touquinha de dormir de renda delicada, que tinha na cabeça, embora fosse pequena demais e oscilasse sobre os cabelos, fazia a decadência do seu rosto causar pena.
— Como é que poderia ter vindo? — disse K. com brandura. — A senhora não mandou me chamar. — O senhor não deveria ter-me feito esperar tanto — disse a dona do albergue com a obstinação dos doentes. — Sente-se — disse apontando para a beira da cama. — Os outros, porém, vão embora. Além dos ajudantes haviam entrado no quarto, nesse meio-tempo, também as criadas. — Devo também ir embora, Gardena? — disse o dono do albergue. K. ouvia pela primeira vez o nome da mulher. — Naturalmente — disse ela devagar. Como se estivesse entretida com outros pensamentos, acrescentou: — Por que justamente você deveria ficar? Quando todos haviam se retirado para a cozinha — dessa vez os ajudantes também seguiram, embora estivessem atrás de uma criada —, Gardena teve presença de espírito suficiente para perceber que se podia escutar da cozinha tudo o que ali se falava, pois o tabique não tinha porta. Ordenou por isso que todos deixassem também a cozinha, o que se fez imediatamente. — Por favor, senhor agrimensor — disse então Gardena —, no armário bem em frente está pendurado um xale, pegue-o para mim, quero me cobrir com ele, não suporto o cobertor de penas, respiro com tanta dificuldade. E quando K. lhe trouxe o xale ela disse: — Como o senhor vê, é um belo xale, não é verdade? Para K. parecia ser uma peça comum de lã, ele a apalpou mais uma vez por gentileza, mas não disse nada. — Sim, é um belo xale — disse Gardena cobrindo-se com ele. Ela agora estava deitada ali tranqüilamente, parecia que toda dor a tinha deixado, ocorreu-lhe até que seus cabelos haviam ficado em desalinho pelo fato de estar deitada; sentou-se por um instante na cama e arrumou um pouco o penteado em volta da pequena touca. Sua cabeleira era abundante. K. ficou impaciente e disse: — A senhora mandou perguntar se eu já tinha outro lugar para morar. — Mandei perguntar? — disse a dona do albergue. — Não, é um engano. — Seu marido acaba de me perguntar isso. — Acredito — disse a dona do albergue. — É uma rixa entre nós. Quando eu não queria o senhor aqui, ele o reteve; agora que estou feliz com o fato de o senhor estar morando aqui, ele o manda embora. Ele sempre faz coisas assim. — A senhora então — disse K. — mudou tanto sua opinião a meu respeito? Em uma, duas horas? — Não mudei de opinião — disse a dona do albergue outra vez com a voz fraca. — Estenda-me a sua mão. Assim. E agora me prometa ser completamente honesto, eu também vou fazer o mesmo com o senhor. — Está bem — disse K. — Mas quem vai começar? — Eu — disse a dona do albergue, sem deixar a impressão de que desse modo quisesse ser gentil com K., mas de que estava ansiosa por ser a primeira a falar. Tirou uma fotografia de sob o travesseiro e estendeu a K. — Olhe esta fotografia — disse num tom de súplica. Para enxergar melhor, K. deu um passo para dentro da cozinha, mas lá também não era fácil reconhecer alguma coisa na foto, pois ela estava empalidecida pelo tempo, rachada em vários lugares, amassada e cheia de manchas. — Ela não está em muito bom estado — disse K. — Infelizmente, infelizmente — disse a dona do albergue. Quando alguém a leva sempre consigo, de cá para lá, durante anos, ela fica assim. Mas se o senhor olhar direito, vai reconhecer tudo, com toda a certeza. Posso, aliás, ajudá-lo: diga-me o que está vendo, alegra-me muito ouvir falar da fotografia. E então, o que vê? — Um jovem — disse K. — Certo — disse a dona do albergue. — E o que ele está fazendo? — Creio que está deitado numa tábua, esticando o corpo e bocejando. A dona do albergue riu. — Completamente errado — disse ela. — Mas aqui está a tábua e aqui está ele deitado — insistiu K. no seu ponto de vista. — Olhe com mais atenção — disse a dona do albergue irritada. — Ele está realmente deitado? — Não — disse então K. — Ele não está deitado, está suspenso no ar e agora eu vejo que não é uma tábua, mas provavelmente um fio, e o jovem está dando um salto. — Eis aí — disse satisfeita a dona do albergue. — Ele está saltando, é assim que se exercitam os mensageiros oficiais, eu sabia que o senhor iria perceber. Vê também o rosto dele? — Do rosto só vejo muito pouco — disse K. — É evidente que está fazendo esforço, a boca está aberta, os olhos apertados e o cabelo esvoaça. — Muito bem — disse a dona do albergue com aprovação. — Mais que isso alguém que não viu pessoalmente não consegue perceber. Mas era um bonito jovem, eu só o vi fugazmente uma vez e nunca vou esquecê-lo. — Quem era ele, então? — perguntou K. — Era o mensageiro pelo qual Klamm me chamou pela primeira vez — disse a dona do albergue.
K. não pôde escutar direito, sua atenção tinha sido desviada por um retinir de vidro. Descobriu logo a causa da perturbação. Os ajudantes estavam no pátio de fora, pulando na neve ora com um pé, ora com outro. Agiam como se estivessem felizes por ver K. outra vez, de felicidade apontavam um para o outro e davam contínuas batidinhas na vidraça da cozinha. A um movimento ameaçador de K. deixaram imediatamente de fazer isso, procurando empurrar um ao outro para trás, mas logo um escapulia do outro e lá estavam os dois outra vez junto à janela. K. foi correndo para dentro do tabique, onde os ajudantes não podiam vê-lo de fora, do mesmo modo que ele não podia vê-los. Mas o tinir da vidraça, leve e suplicante, continuou a persegui-lo ali também por muito tempo. — Outra vez os ajudantes — disse ele à dona do albergue para se desculpar, apontando para fora. Ela porém não prestou atenção, tirou dele a fotografia, olhou-a, alisou-a e colocou-a de novo sob o travesseiro. Seus movimentos haviam se tornado mais vagarosos, não por cansaço, mas por causa do peso da recordação. Ela quisera contar a K. e o havia esquecido por causa da história. Ficou brincando com as franjas do xale. Só um instante depois é que levantou o olhar, passou a mão sobre os olhos e disse: — Este xale também é de Klamm. A touca também. A fotografia, o xale e a touca são as três lembranças que tenho dele. Não sou tão jovem como Frieda, não sou tão ambiciosa quanto ela, nem tão sensível, ela é muito sensível, em suma, eu sei como me adaptar à vida, mas uma coisa preciso admitir: sem estas três coisas não teria suportado ficar aqui tanto tempo, com toda probabilidade não teria suportado um dia aqui. Talvez estas três recordações pareçam pouca coisa ao senhor, mas veja: Frieda, que conviveu com Klamm tanto tempo, não possui absolutamente nenhuma lembrança, eu perguntei a ela, ela é entusiasmada demais e além disso exigente demais; eu, pelo contrário, que estive com Klamm só três vezes — depois disso ele não me mandou mais chamar, não sei por quê —, trouxe comigo estas recordações, sem dúvida pressentindo que meu tempo seria breve. Certamente é preciso se preocupar com isso, espontaneamente Klamm não dá nada, mas quando a pessoa vê ali alguma coisa adequada, pode obtê-la pedindo. K. sentiu-se desconfortável diante dessas histórias, por mais que elas também dissessem respeito a ele. — Há quanto tempo foi tudo isso? — perguntou suspirando. — Há mais de vinte anos — disse a dona do albergue. — Bem mais de vinte anos. — Esse é portanto o tempo que se mantém a fidelidade a Klamm — disse K. — Mas a senhora está consciente também de que com essas confissões me causa graves preocupações quando penso no meu futuro casamento?
A dona do albergue achou incorreto que K. quisesse se intrometer nos seus assuntos pessoais e olhou-o de lado, irada. — Não fique tão zangada, minha senhora — disse K. — Não estou dizendo uma palavra contra Klamm, mas por força dos acontecimentos entrei em determinadas relações com Klamm; isso nem o maior admirador de Klamm pode negar. Pois bem. Em virtude disso, a menção a Klamm sempre me força a pensar em mim, não há o que fazer. Aliás, senhora — e aqui K. agarrou sua mão hesitante —, pense em como nossa última conversa acabou mal e no fato de que desta vez queremos nos separar em paz. — O senhor tem razão — disse a dona do albergue inclinando a cabeça. — Mas por favor me poupe. Não sou mais suscetível que os outros, pelo contrário, cada qual tem pontos vulneráveis e eu só tenho este. — Infelizmente ele também é ao mesmo tempo o meu — disse K. — Mas certamente vou me dominar; explique-me no entanto, minha senhora, como devo suportar no casamento essa horrível fidelidade a Klamm, uma vez que nisso Frieda também é parecida com a senhora. — Horrível fidelidade? — repetiu com rancor a dona do albergue. — Então isso é fidelidade? Sou fiel ao meu marido, mas em relação a Klamm o que sou? Klamm tornou-me uma vez sua amante, será que posso um dia perder esse nível? E como o senhor deve suportar isso com Frieda? Ah, senhor agrimensor, quem é o senhor para ousar perguntar isso? — Senhora dona do albergue! — disse K. em tom de advertência. — Eu sei — disse a dona do albergue cedendo. — Mas nem meu marido fez essas perguntas. Não sei quem deve ser considerada mais infeliz, eu naquela época ou Frieda agora. Frieda, que deixou voluntariamente Klamm, ou eu, que ele não mandou mais chamar. Talvez seja Frieda, embora ela ainda não pareça sabê-lo em toda a sua dimensão. Mas outrora meus pensamentos eram dominados exclusivamente por minha desgraça, pois eu precisava me perguntar continuamente e no fundo ainda hoje não paro de perguntar o seguinte: por que isso aconteceu? Klamm mandou me chamar três vezes e na quarta não me chamou mais, na quarta vez nunca, nunca mais! O que então me ocupava além disso? Sobre o que então eu podia conversar com o meu marido, com quem logo depois me casei? Durante o dia não tínhamos tempo, assumimos este albergue num estado miserável e tínhamos de colocá-lo em pé, mas e à noite? Anos e anos nossas conversas noturnas só giravam sobre Klamm e as razões que o levaram a mudar de intenção. E quando meu marido adormecia durante essas conversas, eu o acordava e continuávamos falando disso. — Agora, se me permite — disse K. —, vou fazer-lhe uma pergunta muito grosseira.
A dona do albergue silenciou. — A senhora portanto não me autoriza a fazê-la — disse K. — Isso também me basta. — Certamente — disse a dona do albergue. — Também isso lhe basta e sobretudo isso. O senhor interpreta tudo erradamente, até o silêncio. Mas não pode agir de outro modo. Permito que me faça a pergunta. — Se interpreto tudo errado — disse K. —, talvez faça o mesmo até com a minha pergunta, talvez ela não seja tão grosseira. Eu queria apenas saber como a senhora conheceu o seu marido e como chegaram à posse deste albergue. A dona do albergue franziu a testa mas disse com serenidade: — Essa história é simples. Meu pai era ferreiro, e Hans, meu atual marido, cavalariço de um grande proprietário rural, vinha ver meu pai com freqüência. Isso foi depois do último encontro com Klamm, eu estava muito infeliz e na verdade não devia estar, pois tudo havia evoluído corretamente e o fato de não poder mais me encontrar com Klamm tinha sido uma decisão de Klamm, portanto era correta, apenas os motivos eram obscuros, eu podia pesquisá-los, mas não devia ter ficado infeliz, mas a verdade é que estava, não conseguia trabalhar e ficava o dia todo sentada no nosso jardinzinho da frente. Foi ali que Hans me viu, sentou-se algumas vezes ao meu lado, com ele eu não me queixava; mas ele sabia do que se tratava e porque é um jovem bondoso acontecia que chorava comigo. Quando o proprietário do albergue naquela ocasião, que havia perdido a mulher e por isso obrigado a renunciar à atividade — além do mais já era um homem idoso —, passou pelo nosso jardinzinho e nos viu ali sentados, parou e, sem mais, nos ofereceu o albergue para que o arrendássemos; não queria nenhuma antecipação em dinheiro porque confiava em nós e pediu um preço bem baixo pelo arrendamento. Eu só não queria ser um peso para o meu pai; o resto me era indiferente e assim, pensando no albergue e no novo trabalho, que talvez trouxesse algum esquecimento, concedi minha mão a Hans. Essa é a história. Houve um momento de silêncio, depois K. disse: — O modo de agir do dono do albergue naquela época foi um belo gesto, apesar de imprudente, ou ele tinha motivos particulares para confiar nos dois? — Ele conhecia Hans — disse a dona do albergue. — Era tio de Hans. — Com certeza então a família de Hans tinha o maior interesse na união dele com a senhora — disse K. — Talvez — disse a dona do albergue. — Não sei, não me preocupei com isso. — Mas deve ter sido assim, sem dúvida — disse K. — Se a família estava disposta a fazer esse sacrifício e entregar o albergue nas suas mãos, simplesmente sem garantia.
— Não foi imprudente, como se viu mais tarde — disse a dona do albergue. — Lancei-me ao trabalho, eu era forte, filha do ferreiro, não precisava de criada ou criado, estava em toda parte, na sala do albergue, na cozinha, no estábulo, no pátio, cozinhava tão bem que tirava clientes até da Hospedaria dos Senhores; o senhor não estava no albergue na hora do almoço, não conhece nossos clientes do almoço, antes eram mais numerosos ainda, depois é que muitos foram se dispersando. E o resultado foi que não só pudemos pagar em dia o arrendamento, mas também compramos tudo depois de alguns anos e o albergue hoje está quase isento de dívidas. O outro resultado certamente foi que me destruí com isso, fiquei doente do coração e agora sou uma mulher velha. Talvez o senhor creia que sou muito mais velha do que Hans, mas na realidade ele é apenas dois ou três anos mais novo e com certeza nunca vai envelhecer, pois com o trabalho que faz — fumar cachimbo, ficar escutando os fregueses, depois esvaziar o cachimbo e de vez em quando ir buscar uma cerveja —, com esse tipo de trabalho não se envelhece. — O que a senhora fez é admirável — disse K. — Quanto a isso não há dúvida, mas estávamos falando do tempo anterior ao seu casamento e naquela época deve ter sido estranho que a família de Hans pressionasse no sentido do casamento, com sacrifício financeiro ou pelo menos assumindo um risco tão grande, como era o arrendamento do albergue, não tendo no caso nenhuma outra esperança a não ser a força de trabalho da senhora — que ainda não se conhecia — e a força de trabalho de Hans, cuja inexistência já se deveria conhecer. — Muito bem — disse a dona do albergue cansada. — Sei aonde quer chegar e também o quanto se engana. Em tudo isso não havia o menor rastro de Klamm. Por que ele deveria ter se preocupado comigo, ou melhor: como poderia ter de alguma forma se preocupado? Ele já não sabia mais nada de mim. O fato de não ter mais mandado me chamar era um sinal de que havia me esquecido. Quem ele não manda mais chamar é quem ele esquece por completo. Não quis falar sobre isso na frente de Frieda. Mas não é apenas esquecimento, é mais do que isso. Aquele de quem se esqueceu pode-se conhecer de novo. Com Klamm isso não é possível. Quem ele não manda mais chamar não só foi esquecido completamente em relação ao passado, mas também para o futuro todo — literalmente. Quando me esforço muito posso penetrar nos seus pensamentos, senhor agrimensor, pensamentos que aqui não fazem sentido, mas que talvez sejam válidos no país estrangeiro do qual o senhor vem. Possivelmente o senhor se atreva à loucura de pensar que Klamm me deu Hans como marido para que eu não encontrasse muito obstáculo para ir até ele caso no futuro me mandasse chamar. Bem, mais longe que isso nem a loucura pode ir. Mas que marido poderia me impedir de correr para Klamm se Klamm me fizesse um sinal? Absurdo, completo absurdo, quando alguém brinca com um absurdo assim, confunde a si mesmo. — Não — disse K. — Não vamos nos confundir, eu ainda não tinha ido tão longe nos meus pensamentos como a senhora supõe, embora, para dizer a verdade, estivesse a caminho. No momento, porém, me surpreendia apenas com o fato de que os parentes esperassem tanto do casamento e de que essas esperanças efetivamente se realizassem, se bem que à custa do seu coração e da sua saúde. A idéia de uma ligação entre esses fatos e Klamm certamente se impunha aos meus pensamentos, mas não — ou ainda não — na forma grosseira como a senhora apresentou, evidentemente com o único propósito de me descompor mais uma vez porque isso lhe dá prazer. Tenha então esse prazer! Mas o que eu estava pensando era o seguinte: primeiro de tudo, Klamm é claramente a causa do casamento. Sem Klamm a senhora não teria sido infeliz, não teria ficado sentada sem fazer nada no jardinzinho da frente, sem Klamm não teria visto Hans ali, sem a tristeza da senhora o tímido Hans não teria nunca ousado lhe falar, sem Klamm nunca teria se encontrado com Hans nas lágrimas, sem Klamm o velho e bom tio dono do albergue nunca teria visto Hans e a senhora tranqüilamente sentados juntos ali, sem Klamm a senhora não teria ficado indiferente diante da vida e portanto não teria se casado com Hans. Bem, eu devia achar que em tudo isso já havia Klamm suficiente, na minha opinião. Mas ainda continua. Se a senhora não tivesse procurado se esquecer, certamente não teria trabalhado com tamanha falta de consideração por si mesma, nem melhorado tanto o albergue. Aqui também entra Klamm. Mas, à parte isso, Klamm também é a causa da sua doença, pois o coração da senhora já estava esgotado antes do casamento em virtude da paixão infeliz. Resta só perguntar o que atraía tanto os parentes de Hans nesse casamento. A senhora mesmo mencionou uma vez que ser amante de Klamm significa uma elevação de nível que não se perde; logo, pode ser que isso os tenha atraído. Além do que, acredito, a esperança de que a boa estrela que a conduziu a Klamm — supondo que era uma boa estrela, mas é a senhora que o afirma — lhe pertencesse, ou seja, tivesse de permanecer com a senhora sem abandoná-la tão rápida e repentinamente como Klamm o fez. — O senhor está pensando tudo isso a sério? — perguntou a dona do albergue. — A sério — disse K. depressa. — Julgo apenas que os parentes de Hans não estavam nem inteiramente certos nem inteiramente errados nas suas esperanças e creio também reconhecer o erro que a senhora cometeu. Exteriormente tudo parece bem-sucedido, Hans está em boas mãos, tem uma excelente mulher, é respeitado, o albergue está isento de dívidas. Mas na verdade nem tudo deu certo; com uma mulher simples de quem tivesse sido o primeiro grande amor, ele teria sido sem dúvida muito mais feliz; se, como a senhora o censura, ele às vezes parece perdido no albergue, isso acontece porque ele se sente realmente perdido — sem ser infeliz com isso, com certeza, até onde eu já o conheço —, mas é igualmente certo que esse jovem bonito e compreensivo teria sido mais feliz com outra mulher, com o que quero dizer ao mesmo tempo: mais independente, mais ativo, mais viril. E sem dúvida também a senhora não é feliz e, como me dizia, sem as três lembranças não queria continuar vivendo — além do que é doente do coração. Os parentes, portanto, estavam errados alimentando aquelas esperanças? Não acredito. A bênção estava sobre a senhora, mas não souberam fazê-la baixar. — O que então deixaram de fazer? — perguntou a dona do albergue. Ela agora estava estendida de costas e olhava para o teto. — De perguntar a Klamm — disse K. — Estaríamos então de volta ao senhor — disse a dona do albergue. — Ou à senhora — disse K. — Nossos assuntos tocam um no outro. — O que o senhor está então querendo de Klamm? — disse a dona do albergue. Ela havia se erguido para ficar sentada na cama, sacudido os travesseiros para poder se recostar e olhava K. bem nos olhos: — Eu contei meu caso francamente ao senhor para que pudesse aprender alguma coisa com ele. Diga-me com igual franqueza o que então o senhor quer perguntar a Klamm. Foi só com esforço que convenci Frieda a subir ao seu quarto e ficar lá, eu temia que na presença dela o senhor não iria falar com franqueza suficiente. — Não tenho nada a esconder — disse K. — Mas primeiro quero chamar sua atenção para uma coisa. Klamm esquece logo, disse a senhora. Ora, isso me parece, em primeiro lugar, muito improvável, mas em segundo não pode ser provado; é claro que não passa de uma lenda, elucubrada pela mente daquelas meninas que estavam justamente nas graças de Klamm. Admiro-me de que acredite numa invenção tão rasa. — Não é uma lenda — disse a dona do albergue. — Pelo contrário, é fruto da experiência comum. — Ou seja, pode ser refutada por uma nova experiência — disse K. — Existe então mais uma diferença entre o seu caso e o de Frieda. De certo modo não sucedeu que Klamm não tivesse mais chamado Frieda, ao contrário ele a chamou, mas ela não atendeu. É até possível que ele ainda a espere. A dona do albergue silenciou e deixou apenas seu olhar ficar observando K. de alto a baixo. Depois disse: — Quero ouvir calmamente tudo o que o senhor tem a dizer. É melhor falar abertamente do que me poupar. Só tenho um pedido. Não use o nome de Klamm. Chame-o de “ele” ou qualquer outra coisa, mas não pelo nome. — Com prazer — disse K. — Mas o que eu quero dele é difícil de dizer. Primeiro quero vê-lo de perto, depois ouvir sua voz, em seguida quero saber dele o que pensa do nosso casamento; o que talvez eu ainda queira pedir depende do curso da entrevista. Muita coisa pode vir à fala, mas o principal, para mim, é ficar diante dele. Na verdade até agora não conversei diretamente com nenhum funcionário real. Isso parece ser mais difícil de alcançar do que eu acreditava. Agora no entanto tenho o dever de falar com ele como um particular e na minha opinião isso é muito mais fácil de conseguir; como funcionário só posso falar em seu escritório, talvez inacessível, no castelo ou, o que já é duvidoso, na Hospedaria dos Senhores; mas como particular posso falar em qualquer parte, em casa, na rua, onde consiga encontrá-lo. Que nesse caso então eu também tenha diante de mim o funcionário é algo que vou aceitar com prazer, mas não é o meu objetivo principal. — Bem — disse a dona do albergue afundando o rosto no travesseiro como se dissesse alguma coisa indecente. — Se por meio das minhas ligações eu conseguir dar seguimento ao seu pedido de entrevista, o senhor me promete, até a resposta descer, não empreender nada por conta própria? — Isso eu não posso prometer — disse K. — Por mais que queira atender ao seu pedido ou ao seu capricho. O fato é que a coisa urge, principalmente depois do resultado desfavorável da minha conversa com o prefeito. — Essa objeção não é válida — disse a dona do albergue. — O prefeito é uma pessoa completamente sem importância. O senhor não notou isso? Ele não poderia ficar um dia no seu posto se não fosse sua mulher, que dirige tudo. — Mizzi? — disse K. A dona do albergue fez um aceno com a cabeça. — Ela estava lá — disse K. — Ela manifestou sua opinião? — disse a dona do albergue. — Não — disse K. — Também não tive a impressão de que ela pudesse fazer isso. — Ah, sim — disse a dona do albergue. — O senhor tem uma visão errada de tudo, aqui. Seja como for, o que o prefeito dispôs sobre o senhor não tem nenhuma importância e com a mulher eventualmente falo eu. E se ainda por cima lhe prometer que a resposta de Klamm vai chegar no máximo em uma semana, o senhor certamente não tem mais nenhum motivo para não ceder. — Nada disso decide — disse K. — Minha resolução é firme e eu tentaria executá-la mesmo que viesse uma resposta negativa. Mas, se tenho desde já essa intenção, não posso mandar pedir antes uma entrevista. O que sem o pedido talvez fosse uma tentativa temerária, embora de boa-fé, seria aberta rebeldia depois de uma resposta negativa. Sem dúvida isso seria muito pior. — Pior? — disse a dona do albergue. — Em qualquer caso é rebeldia. E agora faça como quiser. Passe-me o vestido.
Sem levar K. em conta ela pôs o vestido e foi às pressas para a cozinha. Fazia muito tempo que do salão chegavam sinais de impaciência. Tinham batido na janelinha. Os ajudantes haviam-na aberto uma vez e gritado para dentro que estavam com fome. Depois outros rostos tinham aparecido ali. Ouviu-se até um canto baixo mas de várias vozes. Com certeza a conversa de K. com a dona do albergue havia atrasado muito o preparo do almoço; ele ainda não havia ficado pronto, mas os fregueses estavam reunidos, de qualquer modo ninguém tinha ousado entrar na cozinha desrespeitando a proibição da dona do albergue. Mas assim que os que observavam da janelinha anunciaram que a dona do albergue já estava vindo, as criadas correram logo para a cozinha e quando K. entrou no salão do albergue as pessoas, espantosamente numerosas, mais de vinte, homens e mulheres, vestidos à moda da província, mas não como camponeses, saíram em massa da janelinha, onde tinham estado reunidos, em direção às mesas, para garantir seus lugares. Só numa pequena mesa situada num canto já estava sentado um casal com algumas crianças; o marido, um homem simpático de olhos azuis, cabelo e barba grisalhos e desalinhados, estava em pé inclinado sobre as crianças e marcava com uma faca o compasso do seu canto, que ele se empenhava sem parar em manter baixo. Talvez ele quisesse fazer esquecer a fome com o canto. A dona do albergue desculpou-se diante das pessoas com algumas palavras ditas com indiferença, ninguém lhe fez censuras. Ela procurou com o olhar o dono do albergue, que no entanto, perante a dificuldade da situação, já havia escapulido fazia muito tempo. Depois foi devagar para a cozinha; a K., que se apressou a ir para o quarto de Frieda, ela não concedeu mais nenhum olhar.
 
EM CIMA K. ENCONTROU o professor. Felizmente o quarto estava quase irreconhecível, a tal ponto Frieda havia trabalhado. Estava bem arejado, a estufa regiamente nutrida, o chão lavado, a cama arrumada; as coisas das criadas, essa odiosa imundície, haviam desaparecido, inclusive os quadros; a mesa, que antes, para onde quer que a pessoa se voltasse, literalmente a perseguia com sua tampa incrustada de sujeira, estava coberta por uma branca toalha de tricô. Agora já era possível receber hóspedes, uma vez que a pequena provisão de roupas de baixo de K., que Frieda certamente tinha lavado de manhã cedo, importunava pouco. O professor e Frieda estavam sentados à mesa, levantaram-se quando K. entrou, Frieda saudou K. com um beijo e o professor fez uma pequena inclinação. Distraído e ainda inquieto por causa da conversa com a dona do albergue, K. começou a se desculpar por até agora não ter feito a visita ao professor; era como se estivesse supondo que o professor, impaciente com a ausência de K., tivesse ele próprio tomado essa iniciativa. Mas o professor, com o seu modo de ser comedido, parecia só agora se lembrar, aos poucos, de que ele e K. tinham marcado uma espécie de visita. — Ah, sim, senhor agrimensor — disse ele devagar. — O senhor é o estrangeiro com quem falei faz alguns dias na praça da igreja. — Exato — disse K. secamente. O que antes havia tolerado em desamparo ele não precisava admitir aqui no seu quarto. Voltou-se para Frieda e se aconselhou com ela sobre uma importante visita que tinha de fazer imediatamente e para a qual era preciso que estivesse o mais bem vestido possível. Frieda chamou no mesmo instante os ajudantes, sem fazer mais perguntas a K.; eles estavam ocupados em examinar a nova toalha de mesa e ela ordenou que eles escovassem cuidadosamente no pátio as roupas e as botas de K., que ele logo começou a despir. Ela mesma tirou uma camisa do varal e correu até a cozinha para passá-la a ferro. Agora K. estava a sós com o professor, que continuava sentado em silêncio à mesa; fê-lo esperar um pouco, despiu a camisa e começou a lavar-se na bacia. Só então, de costas voltadas para o professor, perguntou-lhe o motivo de sua vinda. — Venho por incumbência do senhor prefeito — disse ele. K. estava pronto para escutar do que se tratava. Mas uma vez que suas palavras eram difíceis de entender em virtude do barulho da água, o professor teve de se aproximar, encostando-se na parede ao lado de K. K. pediu desculpas por estar se lavando e por estar inquieto com a urgência da visita que planejava fazer. O professor fez como se não tivesse ouvido e disse: — O senhor foi descortês com o senhor prefeito, esse velho respeitável, experiente e digno. — Não sabia que tinha sido descortês — disse K. enquanto se enxugava. — Mas é verdade que estava pensando em outras coisas além das boas maneiras, pois se tratava de minha existência, que está ameaçada por um sistema administrativo ultrajante, cujos pormenores não preciso expor ao senhor, já que o senhor mesmo é um elo ativo dessa autoridade. O prefeito se queixou de mim? — Para quem ele deveria se queixar? — perguntou o professor. — E mesmo que tivesse alguém para quem se queixar, será que iria alguma vez fazê-lo? Eu apenas redigi uma pequena minuta daquilo que ele ditou sobre a conversa que ambos tiveram e a partir daí constatei, o suficiente, a bondade do senhor prefeito e o tipo das respostas dadas pelo senhor. Enquanto procurava o pente, que Frieda devia ter colocado em alguma parte, K. disse: — Como? Minuta? Redigida mais tarde, na minha ausência, por alguém que nem sequer esteve presente à conversa? Nada mau. E por que uma minuta? Era por acaso um ato oficial? — Não — disse o professor. — Semi-oficial, a minuta também é só semioficial, foi feita apenas porque aqui é necessária uma ordem rigorosa em tudo. Seja como for, a minuta existe e não o honra. K., que finalmente encontrara o pente que havia deslizado para a cama, disse com mais calma: — Que exista, então. O senhor veio para me comunicar isso? — Não — disse o professor. — Mas não sou um autômato e tive de dizer ao senhor minha opinião. Meu encargo, por outro lado, é mais uma prova da bondade do senhor prefeito; saliento que essa bondade é incompreensível para mim e que realizo esta incumbência só porque meu posto o impõe e pela veneração que tenho pelo senhor prefeito. K., lavado e penteado, estava agora sentado à mesa, esperando a camisa e as roupas; tinha pouca curiosidade em relação ao que o professor lhe trazia, além de estar influenciado pela pouca estima que a dona do albergue mostrara pelo prefeito. — Já passou de meio-dia, não é? — perguntou pensando no caminho que tinha de percorrer, mas depois se corrigiu e disse: — O senhor queria me dizer alguma coisa da parte do prefeito. — Bem, vou dizer — replicou o professor sacudindo os ombros como se estivesse sacudindo de si mesmo qualquer responsabilidade pessoal. — O senhor prefeito teme que o senhor faça algo irrefletido, por conta própria, se a decisão sobre o seu caso demorar demais. Da minha parte não sei por que ele teme isso; no meu modo de ver, é melhor o senhor fazer o que quiser. Não somos seus anjos da guarda e não temos nenhuma obrigação de ficar correndo atrás dos seus passos. Muito bem. O senhor prefeito tem outra opinião. A decisão propriamente dita, que é assunto da autoridade do conde, ele sem dúvida não pode apressar. Mas quer com certeza chegar a uma decisão provisória, verdadeiramente generosa, dentro da sua esfera de influência; só depende do senhor aceitá-la; no momento ele lhe oferece o cargo de servente de escola. A princípio K. mal prestou atenção naquilo que lhe era oferecido, mas o fato de que alguma coisa lhe era oferecida não lhe pareceu sem importância. Indicava que, do ponto de vista do prefeito, ele era capaz, para se defender, de realizar coisas das quais a própria prefeitura justificava certas despesas como defesa. E como levaram o assunto a sério! O professor, que já havia esperado ali um bom tempo, e antes disso ainda tinha redigido a minuta, devia ter sido despachado pelo prefeito a toda pressa. Quando o professor viu que tinha, apesar de tudo, feito K. se tornar pensativo, prosseguiu: — Levantei minhas objeções. Assinalei que até agora não havia sido necessário nenhum servente na escola, a mulher do sacristão fazia de tempos em tempos a limpeza e a senhorita Gisa, a professora, supervisionava esse serviço; tenho atribulações suficientes com as crianças, não quero me aborrecer ainda por cima com um servente. O senhor prefeito replicou que apesar disso há muita sujeira na escola. Rebati, conforme a verdade, que não era tão grave assim. E acrescentei: será melhor se admitirmos aquele homem como servente? Certamente que não. Sem dizer que ele não entende nada de serviços dessa natureza, o prédio da escola só tem duas salas de aula grandes, sem dependências anexas, o servente precisa, portanto, morar com sua família numa das salas de aula, dormir, talvez cozinhar nela, o que naturalmente não deve aumentar a limpeza. Mas o senhor prefeito apontou que esse cargo era para o senhor a salvação num momento difícil e que por isso o senhor irá se empenhar com todas as energias e cumprir bem suas tarefas; o senhor prefeito argumentou mais, que ganhamos com o senhor, também, o concurso de sua mulher e dos ajudantes, de tal modo que não só a escola mas também o jardim da escola poderão ser conservados numa ordem exemplar. Refutei tudo isso com facilidade. Finalmente o senhor prefeito não pôde alegar mais nada em favor do senhor, riu e disse apenas que, sendo o senhor um agrimensor, será capaz de traçar os canteiros do jardim de uma maneira particularmente bela. Bem, contra brincadeiras não é possível objetar e por esse motivo vim até aqui com a proposta. — Não se preocupe à toa, senhor professor — disse K. — Não me ocorre aceitar o posto. — Excelente — disse o professor. — Excelente, o senhor recusa a oferta sem reserva. Pegou o chapéu, inclinou-se e foi embora. Logo em seguida Frieda apareceu, com o rosto contorcido; trazia a camisa sem passar e não respondia às perguntas; para distraí-la K. contou-lhe sobre o professor e a oferta; mal ela havia escutado, atirou a camisa em cima da cama e saiu outra vez correndo. Voltou logo, mas com o professor, que tinha uma aparência aborrecida e nem sequer cumprimentou ao entrar. Frieda pediu-lhe um pouco de paciência — pelo visto já tinha feito isso algumas vezes no caminho —, depois levou K. por uma porta lateral, cuja existência ele ignorava, até o sótão contíguo e ali contou-lhe, afinal, excitada, sem fôlego, o que lhe havia acontecido. A dona do albergue, indignada por ter se rebaixado diante dele com confidências e, o que era pior ainda, transigido em relação a uma entrevista com Klamm e com isso não tivesse conseguido nada senão, conforme disse, uma recusa fria e além disso insincera, estava decidida a não tolerar mais K. em sua casa; se ele tinha vínculos com o castelo, então que os aproveitasse agora com a maior rapidez, pois ainda hoje, agora mesmo, tinha de deixar a casa e ela só voltaria a aceitá-lo de novo obedecendo a uma ordem direta da administração; mas esperava que não se chegasse a tanto, pois ela também tinha vínculos com o castelo e saberia fazê-los valer. Aliás ele só estava no albergue por causa da negligência do dono e de resto não se encontrava absolutamente numa situação aflitiva, uma vez que ainda hoje de manhã havia se jactado da existência de um outro alojamento à sua disposição para passar a noite. Naturalmente Frieda devia permanecer; caso Frieda se mudasse com ele, ela, dona do albergue, ficaria profundamente infeliz; já hoje, lá embaixo na cozinha, tinha caído em lágrimas, ao lado do fogão, só de pensar nisso, a pobre mulher que sofria do coração; mas como poderia se comportar de outra maneira, agora que, pelo menos na sua imaginação, estava em jogo a honra das lembranças de Klamm. Assim portanto estavam as coisas com a dona do albergue. Sem dúvida Frieda o seguirá, a ele, K., para onde ele quiser, na neve e no gelo, acerca disso naturalmente não era preciso perder mais nenhuma palavra, mas de qualquer modo a situação dos dois era muito ruim, por isso ela acolhia com grande satisfação a oferta do prefeito; embora não fosse um posto adequado para K., era apenas provisório, isso tinha sido expressamente acentuado, ganhavase tempo e com facilidade vão ser encontradas outras possibilidades, mesmo que a decisão definitiva seja desfavorável. — Em caso de necessidade — bradou afinal Frieda com os braços já no pescoço de K. —, nós emigramos, o que nos prende aqui na aldeia? Mas por enquanto, não é verdade, meu querido?, nós aceitamos a oferta, eu trouxe o professor de volta, você diz a ele “aceito”, mais nada, e nos transferimos para a escola. — Isso é grave — disse K., mas sem levá-lo muito a sério, pois o alojamento o preocupava pouco: ali no sótão, sem parede e janela de dois lados, atravessado por uma corrente de ar frio e cortante, ele também passava muito frio, vestido só com as roupas de baixo. — Agora que você acaba de arrumar tão bem o quarto é que nós devemos nos mudar! É a contragosto, a contragosto, que eu aceitaria esse posto, já a humilhação, mesmo momentânea, diante desse pequeno professor é penosa para mim e agora ele vai se tornar meu superior. Se fosse possível permanecer aqui mais um pouco talvez minha situação ficasse diferente ainda hoje à tarde. Se pelo menos você permanecesse aqui seria possível esperar e dar ao professor somente uma resposta vaga. Para mim eu posso sempre encontrar um pouso para a noite, ainda que fosse de fato na casa de Bar... Frieda tapou-lhe a boca com a mão. — Isso não — disse ela com medo. — Por favor, não diga isso outra vez. Mas em tudo o mais eu lhe obedeço. Se você quiser, fico sozinha aqui, por mais triste que seja. Se você quiser, nós rejeitamos a proposta, por mais incorreto que fosse na minha opinião. Pois veja, se você encontra uma outra possibilidade, mais ainda: se você a encontra ainda hoje à tarde, é natural que renunciemos imediatamente ao emprego na escola, ninguém irá nos impedir. E no que diz respeito à humilhação diante do professor, deixe que eu cuide disso e você vai ver que ela não acontece, eu mesma vou falar com ele, você fica ali sem dizer nada, mais tarde a situação também não muda, se você quiser nunca terá de conversar pessoalmente com ele, na realidade vou ser a única subordinada dele e nem mesmo isso eu serei, pois conheço suas fraquezas. Sendo assim, nada estará perdido se aceitamos o posto, mas muita coisa o estará se nós o recusarmos; acima de tudo, você realmente não encontrará, nem que seja só para você, em parte alguma da aldeia, um lugar para dormir, a menos que consiga ainda hoje alguma coisa no castelo — falo aqui de um lugar de que eu, como sua futura mulher, não tenha de me envergonhar. E se você não arrumar nenhum alojamento para passar a noite, então é possível que exija de mim que eu durma aqui, num quarto quente, sabendo que você anda lá fora sem rumo, de um lado para outro, na noite e no frio. K., que o tempo todo, com os braços cruzados sobre o peito, batia com as mãos nas costas, para se aquecer um pouco, disse: — Então não resta outra coisa senão aceitar. Venha! Na sala do albergue ele correu logo para a estufa sem se importar com o professor. Este estava sentado à mesa, puxou o relógio e disse:
— Ficou tarde. — Mas em compensação agora estamos plenamente de acordo, senhor professor — disse Frieda. — Aceitamos o posto de servente. — Bem — disse o professor. — Mas o lugar foi oferecido ao senhor agrimensor, é ele que tem de se manifestar. Frieda interveio para ajudar K. — Certamente — disse ela. — Ele aceita o posto, não é verdade, K.? Desse modo K. podia reduzir seu pronunciamento a um simples “sim”, que nem mesmo era dirigido ao professor, mas a Frieda. — Então — disse o professor — não me resta outra coisa senão indicar-lhe seus deveres de ofício, para que nesse ponto fiquemos de acordo de uma vez por todas: o senhor agrimensor tem que limpar e aquecer diariamente as duas salas de aula, providenciar pessoalmente pequenos consertos na casa, bem como no material escolar e nos aparelhos de ginástica, manter a trilha pelo jardim livre da neve, levar mensagens para mim e para a senhorita professora e cuidar de todo o serviço de jardinagem na época mais quente do ano. Em troca o senhor tem o direito de morar à sua escolha numa das salas de aula. Precisa, obviamente, quando não houver aula ao mesmo tempo nas duas salas e o senhor estiver instalado justamente na sala em que está havendo aula, mudar-se para a outra sala. Não tem permissão para cozinhar na escola; em compensação o senhor e os seus serão alimentados aqui no albergue à custa da prefeitura. Que o senhor tem de se comportar de acordo com a dignidade da escola e que particularmente as crianças não devem ser nunca testemunhas, durante a aula, de cenas familiares desagradáveis, é coisa que só menciono de passagem, pois como homem instruído o senhor deve saber disso. A esse propósito observo ainda que nós temos de insistir em que o senhor legitime o mais breve possível suas relações com a senhorita Frieda. Sobre tudo isso e mais algumas coisas miúdas será formulado um contrato de ofício que o senhor terá de assinar logo que se mudar para a escola. Para K. parecia tudo sem importância, como se não lhe dissesse respeito ou ao menos não o obrigasse de fato, só a grandiloqüência do professor o exasperava, por isso disse sem pensar muito: — Claro, são as obrigações costumeiras. Para mitigar um pouco essa observação, Frieda perguntou pelo salário. — Se será pago um salário — disse o professor —, só será levado em conta depois de um mês de serviço probatório. — Mas isso é duro para nós — disse Frieda. — Devemos nos casar quase sem dinheiro, arrancar do nada nossa economia doméstica. Não poderíamos, senhor professor, pedir um pequeno e imediato emolumento à prefeitura? Qual seria o seu conselho nesse sentido? — Não fazê-lo — disse o professor, que sempre dirigia suas palavras a K. — Uma solicitação como essa só seria respondida se eu a recomendasse, e eu não o faria. A concessão do posto é apenas um favor dirigido ao senhor, e favores, quando se toma consciência de sua responsabilidade pública, não são levados tão longe. Mas aí K. interveio quase contra sua vontade. — Quanto ao favor, senhor professor — disse K. —, julgo que se engana. Talvez esse favor seja antes da minha parte. — Não — disse o professor sorrindo, pois agora havia forçado K. a falar. — Sobre isso estou informado com precisão. Precisamos do servente de escola com tanta urgência como talvez do agrimensor. Servente de escola, do mesmo modo que agrimensor, é um peso nas nossas costas. Ainda vai me custar muita reflexão a maneira de fundamentar as despesas diante da prefeitura; o melhor e o mais próximo da verdade seria lançar na mesa a solicitação e não fundamentar nada. — É o que eu também acho — disse K. — Contra sua vontade o senhor tem de me aceitar; apesar das graves meditações que isso lhe causa, o senhor tem de me aceitar. Ora, quando alguém é forçado a aceitar um outro e este se deixa aceitar, é o segundo que se mostra complacente. — Estranho — disse o professor. — O que nos força a aceitá-lo é o coração bondoso, bondoso demais, do senhor prefeito. Veja bem, senhor agrimensor, que terá de desistir de várias fantasias antes de se tornar um servente de escola aproveitável. E essas observações naturalmente tornam pouco propício o clima para a concessão de um salário eventual. Noto também, infelizmente, que o comportamento do senhor ainda vai me dar muito trabalho, o tempo todo o senhor fica negociando comigo — não paro de ver isso e quase não acredito — de camisa e roupa de baixo. — Sim — exclamou K. rindo e batendo as mãos. — Os horríveis ajudantes, onde estão eles? Frieda correu até a porta; o professor, notando que K. já não estava acessível à sua palavra, perguntou a Frieda quando ela ia se mudar para a escola. — Hoje — disse Frieda. — Então passo amanhã cedo para fazer a vistoria — disse o professor, cumprimentou com um aceno de mão, quis cruzar a porta, que Frieda havia aberto para ele, para sair, mas bateu de encontro com as empregadas, que já vinham com suas coisas para se instalar outra vez no quarto; teve de deslizar entre elas, que não teriam recuado diante de ninguém, e Frieda o seguiu. — Vocês estão com pressa — disse K., que dessa vez estava muito satisfeito com elas. — Nós ainda estamos aqui e vocês já precisavam se instalar?
Elas não responderam, apenas girando embaraçadas suas trouxas, das quais K. via penderem os trapos sujos que conhecia bem. — Vocês com certeza nunca lavaram suas coisas — disse K., não com maldade, mas com uma certa simpatia. Elas o notaram, abriram ao mesmo tempo suas duras bocas, mostrando os belos e fortes dentes de animal e riram silenciosamente. — Venham, então — disse K. — Acomodem-se, é mesmo seu quarto. Mas, uma vez que ainda hesitavam — o quarto delas lhes parecia obviamente mudado demais —, K. pegou uma pelo braço para fazê-las avançar. Mas largou-a logo, tão espantado estava o olhar das duas: depois de um curto entendimento mútuo, elas não o desviaram mais de K. — Agora porém vocês já me fitaram o tempo suficiente — disse K., defendendo-se de algum sentimento desagradável; pegou as roupas e as botas que Frieda havia trazido, seguida timidamente pelos ajudantes, e vestiu-se. Sempre e agora de novo a paciência que Frieda tinha com os ajudantes lhe parecia incompreensível. Depois de uma busca prolongada, ela os havia encontrado almoçando tranqüilamente na sala de baixo, com as roupas, que eles deviam ter limpado no pátio, ainda sujas, amassadas no colo; então ela mesma teve de limpar tudo e não os repreendeu em absoluto — aquela mulher que sabia dominar tão bem pessoas ordinárias; além disso falou, na presença deles, sobre sua grosseira negligência, como se fosse uma pequena travessura, dando ainda um leve tapa na maçã do rosto de um deles, à maneira de uma lisonja. K. queria censurá-la mais tarde por isso. Mas agora urgia ir embora. — Os ajudantes ficam aqui para ajudá-la a fazer a mudança — disse K. Eles no entanto não estavam de acordo; saciados e contentes como estavam, gostariam de fazer um pouco de movimento. Só se sujeitaram quando Frieda disse: — Não há dúvida, vocês dois ficam aqui. — Você sabe para onde vou? — perguntou K. — Sim — respondeu Frieda. — E você não me retém mais então? — perguntou K. — Você vai encontrar tantos obstáculos — disse ela — que uma palavra minha não significaria nada. Deu um beijo de despedida em K. e entregou-lhe um pacotinho com pão e salsicha, uma vez que ele não tinha almoçado; ela o havia trazido lá de baixo e lembrou-lhe que ele não devia mais voltar para o albergue e sim ir diretamente para a escola. Com a mão no ombro dele ainda o acompanhou até a porta.
 
DE INÍCIO K. SENTIU-SE CONTENTE por ter escapado à aglomeração de criadas e ajudantes naquele quarto quente. Sentiu também um pouco de frio, a neve estava mais firme, o ato de andar mais fácil. Só que começava a escurecer e ele acelerou o passo. O castelo, cujos contornos já principiavam a se desvanecer, permanecia silencioso como sempre, nunca ainda K. tinha visto o menor sinal de vida nele, talvez não fosse possível reconhecer alguma coisa daquela distância e no entanto os olhos exigiam isso e não queriam suportar a quietude. Quando K. fitava o castelo, às vezes era como se observasse alguém que estivesse calmamente sentado ali e dirigisse o olhar para a frente, não porventura perdido nos próprios pensamentos e com isso fechado a tudo, mas sim livre e despreocupado: como se estivesse sozinho e ninguém o observasse. Tinha no entanto de notar que era observado, sem que isso afetasse o mínimo que fosse sua tranqüilidade; na realidade — não se sabia se era a causa ou a conseqüência — os olhares do observador não podiam se fixar e se desviavam. Essa impressão estava hoje mais reforçada pela escuridão prematura: quanto mais ele fitava tanto menos reconhecia, tanto mais fundo tudo mergulhava no crepúsculo. Justamente quando K. chegou à Hospedaria dos Senhores ainda não iluminada abriu-se uma janela no primeiro andar, um senhor jovem, gordo e de rosto escanhoado, vestindo um casaco de pele, inclinou-se para fora e depois ficou na janela; não pareceu responder nem com o mais leve aceno de cabeça ao cumprimento de K. Nem no corredor nem no balcão de bebidas K. encontrou alguém, o cheiro de cerveja choca no balcão estava ainda pior que na vez anterior, uma coisa assim decerto não acontecia no Albergue da Ponte. K. se dirigiu imediatamente à porta através da qual havia observado Klamm da última vez, baixou cautelosamente a maçaneta, mas a porta estava trancada; tentou em seguida apalpar o lugar onde havia a abertura, mas ela provavelmente estava tão bem selada que ele não conseguiu descobri-la desse modo; por isso acendeu um fósforo. Nesse momento ouviu um grito que o assustou. No canto entre a porta e o aparador, perto da estufa, estava enrodilhada sobre si mesma uma jovem que olhava para ele à luz do fósforo com olhos ébrios de sono que se mantinham abertos a custo. Evidentemente era a sucessora de Frieda. Ela se recompôs logo, acendeu a luz elétrica, a expressão do seu rosto ainda era brava, aí ela reconheceu K.
— Ah, o senhor agrimensor — disse sorrindo, estendeu-lhe a mão e se apresentou. — Eu me chamo Pepi. Ela era pequena, vermelha, saudável, o abundante cabelo de um loiroavermelhado estava enrolado numa trança forte, além de se encaracolar em torno do rosto; ela trajava um vestido que descia liso e lhe assentava muito pouco, feito de um tecido cinza-brilhante amarrado na bainha de uma maneira infantil e desajeitada por uma fita de seda que terminava num laço e tolhia seus movimentos. Ela se informou sobre Frieda e perguntou se esta não voltaria logo. Era uma pergunta que chegava ao limite da maldade. — Fui chamada com urgência logo depois da ida de Frieda porque aqui não pode ser empregada qualquer uma, de modo algum; até agora eu era criada de quarto, mas não fiz uma boa troca. Aqui há muito trabalho no fim da tarde e à noite, é muito cansativo, mal posso agüentar, não me admira que Frieda o tenha abandonado. — Frieda estava muito satisfeita aqui — disse K. para afinal chamar a atenção de Pepi para a diferença que existia entre ela e Frieda e que ela tinha negligenciado. — Não acredite nela — disse Pepi. — Frieda consegue se controlar como ninguém o faz facilmente. O que ela não quer admitir ela não admite, e nesse lance não se nota nem um pouco que teria de admitir alguma coisa. Agora estou trabalhando aqui com ela faz alguns anos, sempre dormimos juntas na mesma cama, mas não tenho familiaridade com ela, certamente hoje ela já não pensa mais em mim. Talvez sua única amiga seja a velha dona do Albergue da Ponte e isso também é sem dúvida significativo. — Frieda é minha noiva — disse K. procurando no gesto a abertura de vigia na porta. — Eu sei — disse Pepi. — É por isso que estou contando isso. Se não fosse assim não teria nenhum sentido para o senhor. — Compreendo — disse K. — Você quer dizer que posso ficar orgulhoso por ter conseguido uma jovem tão reservada. — Sim — disse ela rindo satisfeita como se tivesse conquistado a concordância de K. para um segredo a respeito de Frieda. Mas não eram propriamente as palavras dela que preocupavam K. e o desviavam um pouco da sua busca, mas o fato de Pepi ter aparecido e de estar naquele lugar. Ela era com certeza muito mais jovem que Frieda, quase infantil ainda e suas roupas eram ridículas: obviamente havia se trajado de acordo com as idéias exageradas que tinha da importância de uma moça que servia no balcão. E essas idéias ela tinha à sua maneira com razão, pois o emprego ao qual ainda não se adaptava tinha sido atribuído a ela de modo inesperado, imerecido e apenas provisoriamente: nem mesmo a pequena bolsa de couro que Frieda sempre trazia no cinto lhe fora confiada. E sua suposta insatisfação com o lugar não era outra coisa senão arrogância. E no entanto, apesar de sua insensatez infantil, ela também mantinha, provavelmente, ligações com o castelo; se não havia mentido, tinha sido criada de quarto e sem se dar conta passava os dias ali, ociosamente. Mas um abraço desse pequeno corpo gordo, de costas um pouco curvas, não podia arrancá-la, na verdade, dessa posse, mas sim roçar por ela e estimulá-la a trilhar o duro caminho. Talvez não fosse diferente com Frieda? Oh, sim, era outra coisa. Era preciso apenas pensar no olhar de Frieda para entendê-lo. Nunca K. teria tocado em Pepi. Mas agora tinha de cobrir os olhos um instante, de tão ávido era o olhar que ela dirigia a ele. — Não é preciso que a luz fique acesa — disse Pepi e desligou-a outra vez. — Eu só a acendi porque o senhor me assustou tanto. O que quer aqui, afinal? Frieda esqueceu alguma coisa? — Sim — disse K. e apontou para a porta. — Aqui na sala ao lado, uma toalha de mesa branca, bordada. — Ah, sim, a toalha de mesa dela — disse Pepi. — Eu me lembro, um trabalho bonito, ajudei-a nele também, mas dificilmente ela está aí. — Frieda acredita que sim. Quem então está morando nesse lugar? — perguntou K. — Ninguém — disse Pepi. — É a sala da senhoria, aqui bebem e comem os senhores, isto é, a peça se destina a essa finalidade, mas a maior parte dos senhores fica nos quartos lá em cima. — Se eu soubesse que não haveria ninguém agora aqui ao lado — disse K. —, gostaria muito de entrar e procurar a toalha. Mas isso é incerto; Klamm, por exemplo, muitas vezes costuma ficar sentado ali. — Klamm com certeza agora não está lá — disse Pepi. — Vai partir logo, o trenó já está esperando no pátio. Imediatamente, sem uma palavra de explicação, K. deixou o balcão; no corredor dirigiu-se não para a saída, mas para o interior da casa e, em poucas passadas, chegou ao pátio. Como era silencioso e belo ali! Um pátio quadrangular, limitado em três lados pela casa e, na direção da rua — uma rua lateral, que K. não conhecia —, por um muro alto e branco com um grande e pesado portão que agora estava aberto. Ali do lado do pátio a casa parecia mais alta do que vista de frente, pelo menos o primeiro andar estava totalmente terminado e tinha uma aparência mais imponente, pois era rodeada por uma galeria de madeira, com a única exceção de uma fenda na altura dos olhos. Diante de K., embora obliquamente, ainda no corpo central do edifício, mas já no ângulo que a ala lateral formava, havia uma entrada para a casa, aberta, sem porta.
Diante dela estava um trenó escuro, fechado, puxado por dois cavalos. Além do cocheiro, que a distância K. agora no crepúsculo mais adivinhava do que reconhecia, não se via ninguém. Com as mãos nos bolsos, olhando cautelosamente em torno, K. percorreu dois lados do pátio andando perto do muro até chegar junto ao trenó. O cocheiro, um dos camponeses que estivera da última vez no balcão de bebidas, mergulhado na sua manta de pele, o havia visto se aproximar, indiferente como alguém que segue o percurso de um gato. Mesmo quando K. já estava próximo dele e o cumprimentou, até os cavalos ficaram um pouco inquietos por causa do homem que surgia da escuridão, mas o cocheiro permaneceu absolutamente imperturbável. Para K. isso veio a calhar. Encostado no muro, desembrulhou sua comida, pensou com gratidão em Frieda, que o havia provido tão bem, e nesse momento espiou para dentro da casa. Uma escada que quebrava em ângulos retos descia até cruzar com um corredor baixo mas aparentemente comprido; estava tudo limpo, caiado, delimitado com nitidez e precisão. A espera durou mais tempo do que K. havia pensado. Ele já tinha acabado de comer havia algum tempo, o frio se fazia sentir, o crepúsculo já se tornara completa escuridão e Klamm não chegava. — Ainda pode demorar muito tempo — disse de repente uma voz rouca, tão perto de K. que ele se sobressaltou. Era o cocheiro, que, como se tivesse despertado, se espreguiçava e bocejava alto. — O que pode demorar tanto assim? — perguntou K., não sem uma certa gratidão pela intromissão, pois o silêncio ininterrupto e a tensão já tinham se tornado incômodos. — Até que o senhor vá embora — disse o cocheiro. K. não o entendeu, mas não fez mais perguntas; acreditava que desse modo fosse melhor levar o homem arrogante a falar. Ali, naquela escuridão, não responder era quase uma provocação. E de fato o cocheiro perguntou depois de alguns instantes: — O senhor quer conhaque? — Sim — disse K. sem refletir, seduzido demais pela oferta, pois tremia de frio. — Então abra o trenó — disse o cocheiro. — Na bolsa lateral estão algumas garrafas, pegue uma delas, beba e depois a passe para mim. Por causa da pele é difícil descer daqui. K. se aborreceu por ter de fazer esses serviços de criado, mas, uma vez que já havia entrado em conversações com o cocheiro, obedeceu, mesmo correndo o perigo de ser surpreendido por Klamm no trenó. Abriu a larga porta e teria podido tirar logo a garrafa que estava colocada na parte interna dela; quando, porém, a porta já estava aberta, sentiu-se tão atraído para entrar no trenó que não conseguiu resistir: queria ficar sentado lá apenas por um instante. Deslizou para dentro. No trenó fazia um calor extraordinário e continuou assim, embora a porta, que K. não ousava fechar, permanecesse escancarada. Não era possível saber em absoluto se a pessoa estava sentada num banco, tantas eram as cobertas, almofadas e peles; podia-se virar e se esticar para todos os lados que sempre se mergulhava no macio e no tépido. Os braços estendidos, a cabeça apoiada em almofadas que estavam sempre à mão, K. dirigiu o olhar do trenó para o edifício escuro. Por que demorava tanto tempo para Klamm descer? Como se estivesse anestesiado pelo calor depois de ficar longamente em pé na neve, K. desejou que Klamm finalmente chegasse. O pensamento de que não devia ser visto por Klamm na posição em que agora estava veio-lhe à consciência só indistintamente, como uma leve perturbação. Via-se apoiado nesse estado de ausência pelo comportamento do cocheiro, que devia sem dúvida saber que ele estava no trenó e o deixava lá, até sem exigir dele o conhaque. Era um gesto de consideração, mas na verdade K. queria servi-lo. Pesadamente, sem mudar de posição, estendeu a mão para a bolsa lateral do trenó, não a da porta aberta, que estava distante demais, mas da que se encontrava atrás dele, fechada; de qualquer forma dava no mesmo, também nesta última havia garrafas. Puxou uma delas para fora, desatarraxou a tampa e cheirou; teve de rir involuntariamente porque o cheiro era tão doce, tão acariciante, como quando alguém ouve elogios e belas palavras de uma pessoa a quem se quer muito bem e não sabe exatamente do que se trata, nem quer saber, mas está feliz com o conhecimento de que é essa pessoa que fala desse modo. — Será conhaque? — perguntou K. a si mesmo, duvidando, e por curiosidade tomou um trago. Por sinal era conhaque mesmo; que ardia e esquentava. Ao beber, algo que era apenas portador de um doce perfume se transformava numa bebida própria de um cocheiro. — Será que é possível? — perguntou-se K., como que fazendo uma censura a si mesmo e tomou outro gole. Então — K. estava às voltas com um gole prolongado — ficou tudo claro, a luz elétrica brilhou dentro, na escada, no corredor, e fora na entrada. Ouviram-se passos descendo, a garrafa escapou da mão de K., o conhaque derramou sobre uma pele, K. saltou do trenó, conseguiu bater a porta, o que produziu um barulho estrondoso, quando logo depois um senhor saiu devagar da casa. O único consolo parecia ser: não era Klamm ou era logo isso que tinha de ser lamentado? Era o homem que K. já tinha visto na janela do primeiro andar. Um jovem extremamente bem-parecido, em branco e vermelho, mas muito sério. K. também o olhou de uma maneira sombria, mas dirigia esse olhar para si mesmo.
Teria sido preferível chamar os seus ajudantes; para comportar-se como ele havia se comportado, até eles teriam sido capazes. Diante dele o senhor ainda estava em silêncio, como se não tivesse, no seu peito extremamente largo, fôlego bastante para falar. — Isto é um horror! — disse depois empurrando um pouco o chapéu para livrar a testa. Como? Aquele senhor provavelmente não sabia nada da permanência de K. no trenó e já considerava alguma coisa horrível? Por acaso, que K. tivesse penetrado até o pátio? — Como é que o senhor chegou aqui? — perguntou o senhor, agora em voz mais baixa e deixando escapar o ar dos pulmões, resignando-se com o inevitável. Que perguntas? Que respostas? Será que K. devia ainda confirmar expressamente àquele senhor que o seu caminho, iniciado com tantas esperanças, tinha sido inútil? Em vez de responder, K. voltou-se para o trenó, abriu-o e pegou seu boné, que ele havia esquecido lá dentro. Com mal-estar notou que o conhaque estava pingando sobre o estribo. Voltou-se em seguida outra vez para o senhor: já não pensava mais em mostrar a ele que estivera no trenó, nem isso era o pior; se fosse perguntado, só então, com certeza, não queria silenciar que o próprio cocheiro o havia levado pelo menos a abrir a porta do trenó. Propriamente ruim, porém, era o fato de que o senhor o havia surpreendido, que não houvera tempo suficiente para se esconder dele e então poder esperar por Klamm sem perturbação; ou que ele não tivera presença de espírito suficiente para permanecer no trenó, fechar a porta e esperar lá dentro, sobre as peles, a chegada de Klamm; ou ainda ficar lá pelo menos enquanto aquele senhor estava perto. Certamente não teria podido saber se talvez não fosse o próprio Klamm em pessoa que chegava, para recebê-lo fora do trenó, o que naturalmente teria sido muito melhor. Sim, havia muitas coisas a considerar, mas agora não mais, pois estava no fim. — Venha comigo — disse o senhor, não propriamente em voz de comando; a ordem, porém, não estava nas palavras, mas num breve aceno de mão, que as acompanhava e tinha uma intenção de indiferença. — Estou aqui esperando alguém — disse K. já sem esperança de êxito, mas por uma questão de princípio. — Venha — disse outra vez o senhor, imperturbável, como se quisesse mostrar que não havia nunca duvidado de que K. esperava alguém. — Mas assim eu não vou ver a pessoa a quem estou esperando — disse K. com um estremecimento do corpo. Apesar de tudo o que tinha acontecido ele sentia que o que até agora havia alcançado era uma espécie de posse que na verdade só detinha na aparência, mas que não precisava entregar obedecendo a uma ordem qualquer.
— O senhor não vai vê-lo de todo modo, ficando ou indo embora — disse o senhor, manifestando bruscamente a sua opinião, mas com evidente tolerância pelo raciocínio de K. — Prefiro então não vê-lo ficando aqui — disse K., obstinado. Por meio das meras palavras daquele jovem senhor ele certamente não se deixaria expulsar dali. Diante disso o senhor fechou um pouco os olhos, com uma expressão superior refletida no rosto virado para trás, como se quisesse voltar da insensatez de K. novamente para a própria sensatez; passou a ponta da língua nos lábios da boca um tanto aberta e depois disse ao cocheiro: — Desatrele os cavalos! O cocheiro, submisso ao senhor, mas com um malévolo olhar de viés para K., teve então de descer envolvido na pele e, com muita hesitação, como se esperasse não uma contra-ordem do senhor, mas uma reconsideração de K., começou a afastar os cavalos com o trenó para perto da ala lateral, na qual estava evidentemente instalado, atrás de um grande portão, o estábulo com a cocheira. K. viu-se deixado sozinho, de um lado distanciava-se o trenó, do outro — no caminho que K. havia percorrido — o jovem senhor, ambos no entanto muito vagarosos, como se quisessem mostrar a K. que ainda estava no seu poder alcançálos. Talvez ele dispusesse desse poder, mas não teria podido usá-lo, pois pegar de volta o trenó significava expulsar a si mesmo. Assim sendo permaneceu parado, como o único que dominava o lugar, mas não era uma vitória que causasse alegria. Ele acompanhava com o olhar ora o senhor, ora o cocheiro. O senhor já tinha alcançado a porta, através da qual K. havia entrado antes no pátio, e olhado uma vez para trás: K. acreditou vê-lo balançar a cabeça em relação a tanta relutância, depois voltou-se com um movimento decidido, breve e definitivo e penetrou no corredor no qual logo desapareceu. O cocheiro ficou mais tempo no pátio, tinha muito trabalho com o trenó, precisava abrir o pesado portão do estábulo, levar o trenó recuando até o seu lugar, desatrelar os cavalos, conduzi-los à manjedoura; fez tudo isso seriamente, voltado para si mesmo, já sem nenhuma esperança de uma viagem próxima; esse trabalho silencioso, sem qualquer olhar de soslaio a K., pareceu a este uma censura muito mais severa do que o comportamento do jovem senhor. Depois de terminar a tarefa do estábulo, o cocheiro atravessou o pátio, com o seu andar lento e balançado, fechou o grande portão e depois retornou, tudo devagar e literalmente contemplando suas próprias pegadas na neve; em seguida se fechou no estábulo e apagou todas as luzes — para quem elas deveriam ficar acesas? Na parte de cima ficou iluminada apenas a fenda na galeria de madeira, capturando um pouco o olhar errante, uma vez que parecia a K. que agora todas as ligações com ele tivessem sido rompidas e estivesse sem dúvida mais livre que nunca e pudesse ali esperar no local antes proibido para ele quanto tempo quisesse e tivesse lutado por essa liberdade como quase nenhum outro e ninguém tivesse permissão para tocá-lo ou mandá-lo embora, nem mesmo interpelá-lo. No entanto essa convicção era no mínimo igualmente forte, como se, ao mesmo tempo, não existisse nada mais sem sentido, nada mais desesperado do que essa liberdade, essa espera, essa invulnerabilidade.
 
ELE SE DESGRUDOU DAQUELE LUGAR e voltou para a hospedaria, dessa vez não ao longo do muro, mas pelo meio da neve; encontrou na estrada o dono, que o saudou sem palavras e apontou para a porta do balcão de bebidas; ele seguiu o aceno porque estava congelado e porque queria ver pessoas, mas ficou decepcionado quando viu sentado lá — numa mesinha que com certeza tinha sido posta ali especialmente, pois caso contrário a pessoa se contentaria com os barris — o jovem senhor e diante dele, em pé, uma visão deprimente para K., a dona do Albergue da Ponte. Pepi, orgulhosa, com a cabeça atirada para trás, o eterno sorriso nos lábios, consciente de sua dignidade irrefutável, balançando as tranças a cada movimento, corria de lá para cá, trazendo cerveja e depois tinta e caneta, pois o senhor havia espalhado papéis diante de si, cotejava dados que encontrava num papel ora neste, ora no outro lado da mesa e se preparava para escrever. A dona do albergue, silenciosa, com os lábios um pouco protuberantes, como se relaxasse, olhava de cima o senhor e os papéis — à maneira de quem já tivesse dito tudo o que era necessário e isso houvesse sido bem acolhido. — O senhor agrimensor, finalmente — disse o senhor à entrada de K. com um breve alçar de olhos, depois voltou a se aprofundar nos seus papéis. A dona da hospedaria dirigiu também um olhar indiferente e sem surpresa a K. Mas Pepi parecia ter notado K. só quando ele se aproximou do banco do balcão e pediu um conhaque. K. inclinou-se sobre o balcão, esfregou a mão nos olhos sem se preocupar com mais nada. Depois bebericou do conhaque e empurrou-o de volta, porque ele era intragável. — Todos os senhores o bebem — disse Pepi laconicamente, jogou fora o resto, lavou o pequeno copo e colocou-o na prateleira. — Os senhores também têm um melhor — disse K. — É possível — disse Pepi —, mas eu não. Com isso despachou K. e voltou a servir ao jovem senhor, que no entanto não precisava de nada, e ela não fazia outra coisa senão descrever sem parar círculos atrás dele, lançando de vez em quando, com tentativas respeitosas, um olhar sobre os papéis; mas era apenas uma vã curiosidade e jactância, que até a dona do albergue desaprovava com o cenho franzido. De repente porém a dona do albergue aguçou o ouvido e totalmente entregue à escuta ficou fitando o vazio. K. virou o corpo, não ouviu nada de especial, os demais também pareciam não escutar nada, mas a dona do albergue correu na ponta dos pés, em largas passadas, até a porta do fundo que dava para o pátio, espiou pelo buraco da fechadura, depois se voltou para os outros com olhos arregalados, rosto afogueado, fez-lhes sinais com o dedo para que se aproximassem; todos eles olharam, cada um por sua vez, na verdade a maior participação era da dona do albergue, mas Pepi também foi contemplada, o jovem senhor era o que se conservava relativamente mais indiferente. Pepi e o senhor na verdade voltaram logo, só a dona do albergue continuava a olhar com empenho, muito agachada, quase de joelhos; a impressão era de que agora ela conjurava até o buraco da fechadura a deixá-la passar, uma vez que certamente fazia já muito tempo que não existia mais nada para ser visto. Quando ela finalmente se levantou, passando as mãos sobre o rosto e arrumando os cabelos, respirou fundo, seus olhos pareciam ter necessidade de se acostumar outra vez com a sala e as pessoas, o que fez a contragosto. K. então — não para que lhe confirmassem o que já sabia, mas para prevenir um ataque que quase temia, tão vulnerável estava agora — disse: — Klamm já partiu, portanto? A dona do albergue passou muda por ele, mas o jovem senhor disse da sua mesinha: — Sem dúvida. Uma vez que o senhor renunciou ao seu posto de vigia, Klamm pôde ir embora. Mas é extraordinário como ele é sensível! Observou, senhora dona do albergue, a inquietação com que Klamm olhava em volta? A dona do albergue parecia não ter notado nada, mas o senhor prosseguiu: — Bem, felizmente não havia mais nada para ver, o cocheiro varreu até as pegadas na neve. — A senhora dona do albergue não notou nada — disse K. Mas não o disse esperando alguma coisa, apenas porque estava irritado com a afirmação do jovem senhor, que queria soar tão definitiva e inapelável. — Talvez justamente nesse momento eu não estivesse olhando pelo buraco da fechadura — disse a princípio a dona do albergue em defesa do senhor. Mas depois também quis dar razão a Klamm e acrescentou: — Seja como for, não acredito numa sensibilidade tão grande de Klamm. Certamente todos nós tememos por ele e procuramos protegê-lo, por isso partimos da suposição de uma extrema sensibilidade de Klamm. Isso é bom e sem dúvida de acordo com a vontade de Klamm. Mas como se passa na realidade nós não sabemos. Com certeza Klamm nunca vai falar com alguém com quem não queira falar, nunca, por mais que esse alguém se esforce e por mais intoleráveis que sejam seus avanços; mas só esse fato — o de que Klamm nunca irá falar com ele, nunca o deixará aparecer diante dele — já é suficiente: por que, na realidade, não poderia suportar a visão de alguém? Ao menos não é possível prová-lo, uma vez que isso nunca chegará a ser testado. O jovem senhor assentiu fervorosamente: — Naturalmente essa também é no fundo a minha opinião — disse ele. — Se me expressei de maneira um pouco diferente, era para que se tornasse compreensível ao senhor agrimensor. É certo, no entanto, que Klamm olhou em volta várias vezes quando estava no pátio. — Talvez ele estivesse me procurando — disse K. — É possível — disse o senhor. — Isso não me havia ocorrido. Todos riram; Pepi, que mal entendia do que estavam falando, foi a que riu mais alto. — Já que agora estamos reunidos tão alegremente — disse então o jovem senhor —, pediria encarecidamente ao senhor agrimensor que completasse com alguns dados os meus autos. — Muita coisa se escreve aqui — disse K. e olhou a distância para o arquivo. — É verdade, um mau hábito — disse o senhor e riu de novo. — Mas talvez o senhor ainda não saiba bem quem eu sou. Sou Momus, o secretário de Klamm para a aldeia. Depois dessas palavras todos na sala ficaram sérios. Embora a dona do albergue e Pepi naturalmente conhecessem bem o senhor, ambas se mostraram profundamente afetadas, quando foi mencionado o nome dele e seu alto cargo. Até mesmo o senhor, como se tivesse dito alguma coisa demais para sua própria capacidade intelectual, e como se quisesse pelo menos escapulir de qualquer solenidade adicional inerente às suas palavras, mergulhou nos papéis que trazia consigo e começou a escrever, de tal forma que não se ouvia na sala nada senão o rumor da pena. — O que quer dizer isso: secretário da aldeia? — perguntou K. um momento depois. Falando por Momus, que agora, depois de ter se apresentado, não considerava mais adequado dar ele próprio tais explicações, disse a dona do albergue: — O senhor Momus é secretário de Klamm como qualquer outro secretário de Klamm, mas sua sede oficial e se não me engano também sua jurisdição... Momus, ainda escrevendo, balançou vivamente a cabeça, e a dona do albergue se corrigiu: — Ou seja, só a sua sede oficial e não sua jurisdição se restringe à aldeia. O senhor Momus cuida dos trabalhos escritos que se fazem necessários na aldeia e recebe em primeiro lugar todas as solicitações dirigidas a Klamm. Quando K., ainda pouco emocionado com essas coisas, dirigiu um olhar vazio para a dona do albergue, ela acrescentou meio embaraçada:
— Essa é a regra, todos os senhores do castelo têm seus secretários de aldeia. Momus, que tinha escutado com muito mais atenção que K., disse à dona do albergue a fim de completar suas informações: — A maioria dos secretários de aldeia trabalha só para um senhor, mas eu trabalho para dois, Klamm e Vallabene. — Sim — disse a dona do albergue, que agora também se lembrava disso, voltando-se para K. — O senhor Momus trabalha para dois senhores, Klamm e Vallabene, ele é portanto duas vezes secretário de aldeia. — Duas vezes, não é? — disse K. e acenou com a cabeça para Momus, que agora erguia os olhos para ele, quase vergado para a frente como alguém que balança a cabeça para uma criança cujo elogio acabou de ouvir. Se havia nisso um certo menosprezo, ou ele não foi notado ou então de fato foi exigido. Exatamente diante de K., que não era nem mesmo digno de ser casualmente visto por Klamm, é que foram apresentados em minúcia os méritos de um homem do círculo imediato de Klamm, com a intenção declarada de provocar o reconhecimento e o louvor de K. No entanto K. não tinha uma percepção correta disso; ele, que se esforçava com todas as energias para captar um olhar de Klamm, não dava um valor muito alto, por exemplo, para a posição de um Momus, que podia viver sob os olhos de Klamm; estava longe de sentir admiração, para não dizer inveja, pois para ele não era a proximidade de Klamm o almejável, mas que ele, K., só ele, nenhum outro, chegasse até Klamm com os seus desejos, os dele e os de mais ninguém, não para pousar perto dele, mas sim para passar por ele, ir em frente rumo ao castelo. Olhou para o seu relógio e disse: — Bem, agora preciso ir para casa. Imediatamente a relação mudou em favor de Momus. — Sim, sem dúvida — disse este. — Os deveres do servente de escola o chamam. Mas o senhor ainda precisa me conceder mais um momento. Apenas algumas perguntas breves. — Não tenho vontade — disse K. e quis se dirigir para a porta. Momus bateu com um dossiê na mesa e se levantou: — Em nome de Klamm eu exijo que o senhor responda às minhas perguntas. — Em nome de Klamm? — repetiu K. — Meus assuntos, portanto, o preocupam? — Sobre isso — disse Momus — não tenho juízo formado e o senhor muito menos ainda; vamos portanto, ambos, deixar isso sob a responsabilidade dele. Mas na minha posição, atribuída por Klamm, exijo que o senhor fique e responda. — Senhor agrimensor — intrometeu-se a dona do albergue —, poupo-me de aconselhá-lo outra vez, já fui repelida pelo senhor, de uma forma inaudita, com os meus conselhos até agora, os mais bem-intencionados que podem existir, e vim aqui à presença do senhor secretário — não tenho nada a esconder —, vim apenas para informar devidamente a administração sobre o seu comportamento e as suas intenções e para me proteger para todo o sempre diante da possibilidade de que o senhor se aloje outra vez em minha casa; é assim que estamos um com o outro e certamente nisso nada mais será mudado; portanto se agora digo minha opinião não é, acaso, para ajudá-lo, mas para aliviar um pouco a pesada tarefa que significa para o senhor secretário tratar com um homem como o senhor. Mas em vista da minha completa franqueza, o senhor pode — não consigo tratá-lo a não ser de maneira franca e assim mesmo o faço a contragosto —, o senhor pode tirar vantagem das minhas palavras, se o quiser. Neste caso só chamo sua atenção para o fato de que o único caminho que o leva a Klamm passa pelos protocolos do senhor secretário. Mas não quero exagerar, talvez o caminho não leve até Klamm, talvez cesse bem antes dele — sobre isso decide o parecer do senhor secretário. Seja como for, no entanto, é o único caminho que, pelo menos para o senhor, leva em direção a Klamm. E é a esse único caminho que quer renunciar, por nenhum outro motivo, exceto a obstinação? — Ah, senhora dona do albergue — disse K. —, não é nem o único caminho, nem vale mais que os outros. E o senhor, secretário, decide se aquilo que eu diria aqui pode chegar a Klamm ou não. — Sem dúvida — disse Momus baixando o olhar orgulhosamente à direta e à esquerda, onde não havia nada para enxergar. — Para que então eu seria secretário? — Veja, senhora dona do albergue — disse K. —, não é para Klamm que preciso de um caminho, mas em primeiro lugar para o senhor secretário. — É esse o caminho que eu queria abrir para o senhor — disse a dona do albergue. — Não lhe ofereci de manhã para encaminhar seus pedidos a Klamm? Isso aconteceria por intermédio do senhor secretário. Mas o senhor o recusou e agora não lhe resta mais nada senão este caminho, particularmente depois daquela sua representação hoje, da sua tentativa de surpreender Klamm — com menos perspectiva de sucesso ainda. Mas esta última e evanescente esperança, na verdade inexistente, é a única que o senhor tem. — Como se explica, senhora dona do albergue — disse K. —, que no início tentou me impedir com tanto empenho de avançar até Klamm e agora parece levar tão a sério meus pedidos que me considera de certo modo perdido se meus planos vierem a fracassar? Se alguém pôde, naquele momento, sinceramente e de todo coração, me dissuadir de qualquer jeito de lutar para chegar a Klamm, como é possível que agora, com uma sinceridade na aparência idêntica, me empurre para a frente, no caminho de Klamm, embora este — convenhamos — possa não levar absolutamente a ele? — Sou eu que o incito a seguir em frente? — disse a dona do albergue. — Quando digo que suas tentativas não têm esperança, isso significa incitá-lo a ir adiante? Seria verdadeiramente o cúmulo da ousadia se dessa forma o senhor quisesse descarregar em cima de mim a responsabilidade por si mesmo. Não será talvez a presença do senhor secretário que lhe dá vontade de fazer isso? Não, senhor agrimensor, eu não o estou incitando a fazer absolutamente nada. Só uma coisa posso confessar: que quando o vi pela primeira vez talvez o tenha supervalorizado um pouco. Seu rápido triunfo sobre Frieda me assustou, eu não sabia do que o senhor ainda seria capaz, queria evitar outros infortúnios e acreditava não poder consegui-lo senão tentando desestabilizá-lo com pedidos e ameaças. Nesse meio-tempo aprendi a pensar a respeito de tudo isso de uma maneira mais calma. O senhor pode fazer o que quiser. Os seus atos talvez deixem vestígios profundos na neve do pátio lá fora, mas não mais do que isso. — A contradição não me parece totalmente esclarecida — disse K. — Mas me dou por satisfeito em ter chamado sua atenção sobre ela. Agora porém solicito ao senhor secretário que me diga se a opinião da senhora dona do albergue está certa, ou seja, se o protocolo que de fato o senhor deseja formular com base nas minhas declarações poderia, em suas últimas conseqüências, levar à conclusão de que posso me apresentar diante de Klamm. Se for este o caso, estou disposto a responder imediatamente a todas as perguntas. Nesse sentido estou absolutamente pronto a tudo. — Não — disse Momus. — Não existem essas correlações. Para mim trata-se apenas de obter uma descrição exata da tarde de hoje para o arquivo de Klamm relativo à aldeia. Essa descrição já está feita, o senhor ainda deve preencher duas ou três lacunas, por uma questão de ordem; não existe outro objetivo, nem ele pode ser alcançado. K. olhou em silêncio para a dona do albergue. — Por que está olhando para mim? — perguntou a dona do albergue. — Por acaso eu disse alguma coisa diferente? Ele é sempre assim, senhor secretário, é sempre assim. Deturpa as informações que lhe são dadas e depois afirma ter recebido informações falsas. Digo a ele desde sempre, hoje e em qualquer situação, que não tem a mínima chance de ser recebido por Klamm; se ela portanto não existe, ele também não vai consegui-la por meio desse protocolo. Alguma coisa pode ser mais clara? Digo mais: esse protocolo é o único laço oficial real que ele pode ter com Klamm — isso também é suficientemente claro e indubitável. Mas se ele não acredita em mim, se constantemente — não sei por quê nem para quê — tem a esperança de chegar até Klamm, então, para ficar no seu tipo de raciocínio, o único vínculo oficial efetivo que ele tem com Klamm só pode ser esse protocolo. Eu disse apenas isso e quem afirma outra coisa distorce maliciosamente minhas palavras. — Se é assim, senhora dona do albergue — disse K. —, peço-lhe desculpas, pois a entendi mal, acreditando erroneamente, como agora se evidencia, ter depreendido de suas palavras anteriores que para mim não existe qualquer esperança, por mínima que seja. — Sem dúvida — disse a dona do albergue. — De qualquer forma essa é a minha opinião, o senhor distorce outra vez minhas palavras, só que desta feita em direção contrária. Uma esperança dessa natureza existe para o senhor, na minha opinião, e se baseia, seja como for, apenas nesse protocolo. Mas isso não significa que o senhor pode simplesmente assaltar o senhor secretário com a pergunta “Vou poder chegar a Klamm se responder às questões?”. Quando uma criança faz uma pergunta dessas, as pessoas riem; se é um adulto que a faz, é uma injúria à autoridade, o senhor secretário ocultou isso benevolamente com a finura de sua resposta. Mas a esperança a que me refiro consiste precisamente no fato de que o senhor talvez tenha uma espécie de ligação com Klamm por meio do protocolo. Não é uma esperança suficiente? Se alguém perguntasse ao senhor quais são os méritos que o tornam digno da dádiva de uma esperança assim, será que poderia apresentar o mínimo que fosse? Sobre essa esperança certamente não se pode dizer nada de mais preciso e principalmente o senhor secretário não fará nunca a menor menção possível a esse respeito na sua qualidade oficial. Para ele se trata, como afirmou, apenas de uma descrição da tarde de hoje, por questão de ordem; mais ele não vai dizer, ainda que agora mesmo o senhor o indague em relação às minhas palavras. — Senhor secretário — perguntou K. —, Klamm vai ler o protocolo? — Não — disse Momus. — Por que haveria de fazê-lo? Klamm não pode ler todos os protocolos, na verdade não lê absolutamente nenhum. “Tire de perto de mim esses seus protocolos!”, ele costuma dizer. — Senhor agrimensor — queixou-se a dona do albergue —, o senhor me esgota com essas perguntas. É necessário ou pelo menos desejável que Klamm leia o protocolo e tenha literalmente consciência das futilidades da sua vida? Não seria melhor para o senhor pedir com a maior humildade que se esconda o protocolo de Klamm — um pedido, aliás, que seria tão insensato quanto o anterior, pois quem pode esconder alguma coisa de Klamm, ainda que com certeza revelasse um caráter mais simpático? E será que isso é necessário para aquilo que o senhor chama de esperança sua? O senhor mesmo não declarou que ficaria satisfeito se tivesse apenas a possibilidade de falar a Klamm, mesmo que ele não o fitasse nem ouvisse? E com esse protocolo o senhor não consegue ao menos isso — talvez muito mais?
— Muito mais? — perguntou K. — De que maneira? — Simplesmente não querendo que tudo fosse logo oferecido em forma mastigável, como a uma criança — bradou a dona do albergue. — Quem é que pode responder a tais perguntas? O protocolo vai para o arquivo de Klamm sobre a aldeia, isso o senhor já ouviu, a respeito disso não se pode dizer mais nada com exatidão. Mas será que o senhor já não conhece todo o significado do protocolo, do senhor secretário, do arquivo sobre a aldeia? O senhor sabe o que significa ser interrogado pelo senhor secretário? É provável que talvez nem ele próprio saiba. Fica sentado tranqüilamente ali e cumpre o seu dever, em função da ordem, como diz. Mas tenha em mente que Klamm o nomeou, que ele trabalha em nome de Klamm, que o que faz — mesmo que nunca chegue até Klamm — tem desde o início a aprovação de Klamm. E como pode alguma coisa ter a aprovação de Klamm que não esteja plena do seu espírito? Longe de mim querer com isso, por acaso, lisonjear de uma maneira rude o senhor secretário, ele próprio o proibiria com veemência, mas não estou falando de sua personalidade individual, mas daquilo que ele é quando conta com a aprovação de Klamm, como é o caso agora. Pois ele é um instrumento sobre o qual repousam as mãos de Klamm — e ai daquele que não se submete. As ameaças da dona do albergue não amedrontavam K., ele estava cansado das esperanças com as quais ela tentava capturá-lo. Klamm estava distante, certa vez a dona do albergue havia comparado Klamm com uma águia e isso parecera ridículo para K., mas agora não mais; pensava na distância de Klamm, em sua morada inexpugnável, naquela mudez interrompida talvez só por gritos como K. ainda nunca tinha ouvido, no seu olhar penetrante que vinha de cima, que não se deixava jamais comprovar, jamais refutar, nos seus círculos indestrutíveis a partir das profundezas em que K. se achava, círculos que Klamm traçava no alto segundo leis incompreensíveis — tudo isso era comum a Klamm e à águia. Mas com certeza o protocolo não tinha nada a ver com isso — protocolo justamente sobre o qual agora Momus quebrava uma rosca de sal que ele degustava com cerveja e com a qual esparramava sal e cominho sobre todos os papéis. — Boa noite — disse K. — Tenho aversão a todo tipo de interrogatório. E realmente dirigiu-se até a porta. — Ele vai mesmo embora — disse Momus, quase com ansiedade, à dona do albergue. — Ele não ousará — disse ela. K. não ouviu mais nada, já estava no corredor. Fazia frio e soprava um vento forte. De uma porta em frente veio o gerente da hospedaria, parecia manter sob observação o corredor através de um orifício. Tinha de conservar as abas do casaco coladas ao corpo, de tanto que o vento, mesmo no corredor, batia nelas.
— O senhor agrimensor já vai? — disse. — O senhor se admira com isso? — perguntou K. — Sim — disse o gerente da hospedaria. — O senhor então não está sendo interrogado? — Não — disse K. — Não permito que me interroguem. — Por que não? — perguntou o gerente. — Não saberia dizer por que devia deixar que me interroguem — disse K. — Por que devia me submeter a uma brincadeira ou a um capricho administrativo? Talvez numa outra ocasião eu o tivesse feito, igualmente por brincadeira ou capricho, mas hoje não. — Claro, claro — disse o gerente, mas era apenas um assentimento cortês, sem convicção. — Devo agora deixar a clientela entrar na sala do balcão — disse depois. — Faz muito tempo que já chegou a hora. Só não queria atrapalhar o interrogatório. — O senhor o considera tão importante assim? — perguntou K. — Oh, sim — disse o gerente. — Então eu não devia tê-lo recusado? — perguntou K. — Não — disse o gerente. — O senhor não devia ter feito isso. Uma vez que K. não dizia uma palavra, ele acrescentou, seja para consolar K., seja para ir embora mais rápido: — Bem, bem, não é por isso que logo vai chover enxofre do céu. — Não — disse K. — Não se pode deduzir isso do tempo que está fazendo. E os dois se separaram rindo.
 
K. SAIU PELA ESCADA VARRIDA selvagemente pelo vento e olhou para a escuridão. Um tempo mau, muito mau. Em relação a isso ocorreu-lhe, de algum modo, como a dona do albergue havia se empenhado em submetê-lo ao protocolo, mas como ele tinha resistido. Certamente não fora um empenho aberto; ao mesmo tempo, sub-repticiamente, ela o arrastara para longe do protocolo e no fim não se sabia se havia resistido ou cedido. Uma pessoa de natureza intrigante, que aparentemente trabalhava sem sentido, como o vento, obedecendo a incumbências remotas e estranhas, que nunca se abriam à recepção. Mal tinha dado alguns passos na estrada quando viu a distância duas luzes vacilantes; esse sinal de vida o alegrou e ele correu em direção a elas, que também vinham ao seu encontro, pairando no ar. Não sabia por que ficara tão decepcionado quando reconheceu os ajudantes, eles vieram sem dúvida encontrálo, provavelmente enviados por Frieda, e as lanternas, que o livraram da escuridão que o assaltava ruidosamente por todos os lados, eram decerto propriedade dele; apesar disso estava decepcionado, havia esperado estranhos, não esses velhos conhecidos, que eram um fardo para ele. Mas não foram apenas os ajudantes que apareceram; da escuridão entre eles emergiu Barnabás. — Barnabás! — exclamou K. e estendeu-lhe a mão. — Você está à minha procura? A surpresa do reencontro fez, a princípio, K. esquecer toda a irritação que Barnabás lhe causara antes. — À sua procura — disse Barnabás inalteravelmente amável como antes — com uma carta de Klamm. — Uma carta de Klamm! — disse K. atirando a cabeça para trás e pegando-a apressadamente da mão de Barnabás. — Iluminem aqui — disse aos ajudantes, que se apertaram contra ele à direita e à esquerda levantando as lanternas. K. precisou dobrar em tamanho pequeno, para ler, a grande folha de papel, protegendo-a do vento. Depois leu o seguinte:
Ao agrimensor no Albergue da Ponte. Os trabalhos de agrimensor que o senhor realizou até agora gozam do meu reconhecimento. Os trabalhos dos ajudantes também são louváveis; o senhor sabe induzi-los bem ao serviço. Não ceda no seu zelo! Leve os trabalhos a um bom termo. Uma interrupção me deixaria contrariado. De resto confie em que a questão dos honorários será decidida muito em breve. Eu não o perco de vista.
 
K. só levantou os olhos da carta quando os ajudantes, que liam muito mais devagar, gritaram três vezes “hurra!” para comemorar as boas notícias e balançaram as lanternas. — Fiquem quietos — disse K. aos ajudantes. E depois a Barnabás: — É um equívoco. Barnabás não o entendeu. — É um equívoco — repetiu K. O cansaço da tarde voltou outra vez, o caminho para a escola parecia tão longo, atrás de Barnabás estava a família inteira e os ajudantes continuavam se apertando contra ele, tanto que ele os rechaçou com o cotovelo. Como é que Frieda tinha podido mandá-los ao seu encontro, já que ele havia ordenado que os dois deviam ficar com ela? Teria encontrado o caminho para casa sozinho e com mais facilidade só do que em semelhante companhia. Além disso um deles tinha enrolado um cachecol no pescoço, cujas pontas esvoaçavam ao vento e às vezes batiam no rosto de K.; embora o outro afastasse a cada vez, depressa, o cachecol do rosto de K. com seus dedos compridos, pontiagudos e sempre em movimento, a coisa ainda assim não melhorava. Os dois até pareciam se divertir com o vaivém e em geral o vento e a intranqüilidade da noite os entusiasmavam. — Em frente! — gritou K. — Já que vieram ao meu encontro, por que não trouxeram meu cajado? Com o que então posso empurrá-los para casa? Eles se agacharam atrás de Barnabás, mas não estavam com tanto medo que os impedisse de colocar suas lanternas, à esquerda e à direita, sobre os ombros do seu protetor, que evidentemente logo as sacudiu dali. — Barnabás — disse K. Pesava-lhe no coração que Barnabás visivelmente não o entendia: em tempos de calma sua jaqueta brilhava bonita, mas quando as coisas ficavam sérias não se encontrava nele nenhuma ajuda, somente uma resistência muda, uma resistência contra a qual não se podia lutar, pois ele próprio era indefeso, apenas seu sorriso se iluminava, mas servia tão pouco como as estrelas no alto diante da tempestade de vento aqui embaixo. — Veja o que me escreve esse senhor — disse K. e colocou a carta de Klamm diante do rosto de Barnabás. — O senhor Klamm está mal informado. Não estou fazendo nenhum trabalho de agrimensura e você mesmo vê o que valem os ajudantes. E o trabalho que não faço evidentemente não posso interromper, não posso nem mesmo provocar a contrariedade do senhor Klamm, como poderia merecer seu reconhecimento? E confiar é uma coisa que não posso fazer nunca. — Transmitirei a mensagem — disse Barnabás, que durante todo esse tempo havia desviado o olhar da carta, que de qualquer forma também não teria podido ler, pois estava com ela muito próxima do rosto. — Ah! — exclamou K. — Você está me prometendo transmitir o recado, mas como posso realmente acreditar em você? E preciso tanto de um mensageiro digno de confiança, agora mais que nunca! K. mordeu o lábio de impaciência. — Senhor — disse Barnabás inclinando molemente o pescoço. Por pouco K. não teria se deixado seduzir de novo e acreditado em Barnabás. — Sem dúvida vou transmitir a mensagem — disse ele. — Também aquilo que me encarregou a última vez de dizer eu vou sem dúvida transmitir. — Como? — bradou K. — Você ainda não passou a mensagem? Não esteve, portanto, no dia seguinte no castelo? — Não — disse Barnabás. — Meu bom pai é velho, o senhor o viu, e precisamente havia muito trabalho, precisava ajudá-lo. Mas logo vou retornar ao castelo. — Mas o que você está fazendo, criatura incompreensível? — gritou K. batendo na testa. — Então os assuntos de Klamm não têm precedência sobre tudo o mais? Você tem o alto cargo de um mensageiro e o administra tão miseravelmente assim? O que importa o trabalho do seu pai? Klamm está esperando as notícias, e você, em vez de se dobrar na corrida, prefere tirar o estrume do estábulo? — Meu pai é sapateiro — disse Barnabás imperturbável. — Tem encomendas de Brunswick e eu sou o oficial de meu pai. — Sapateiro, encomendas, Brunswick! — exclamou K. com raiva, como se estivesse inutilizando para sempre cada uma dessas palavras. — E quem precisa de botas nesses caminhos eternamente vazios? E que me importa todo esse negócio de sapatos? Confiei a você uma mensagem, não para que você a esquecesse em cima do balcão de sapateiro e nele misturasse tudo, mas para que a levasse logo ao senhor Klamm. Neste instante K. se acalmou um pouco quando lhe ocorreu que Klamm provavelmente não tinha estado todo aquele tempo no castelo, mas na Hospedaria dos Senhores; mas Barnabás o irritou outra vez ao começar a recitar a primeira mensagem de K. como prova de que a havia memorizado bem. — Basta, não quero saber nada — disse K. — Não fique bravo comigo, senhor — disse Barnabás.
Como se quisesse punir inconscientemente K., desviou o olhar dele e baixou os olhos, mas sem dúvida isso se devia ao fato de estar atônito com os gritos de K. — Não estou bravo com você — disse K., e sua intranqüilidade se voltou então contra ele próprio. — Com você não, mas é muito ruim para mim ter só um mensageiro assim para coisas importantes. — Veja — disse Barnabás, e parecia que, ao falar isso, estava defendendo sua honra de mensageiro mais do que era lícito. — Klamm não espera nenhuma notícia, ele fica até irritado quando chego, “outra vez novas notícias”, disse ele uma vez, e na maioria dos casos se levanta ao me ver a distância, vai até a sala vizinha e não me recebe. Tampouco está previsto que eu deva chegar logo com qualquer mensagem; se estivesse, naturalmente viria logo, mas não há nada definido a esse respeito, e se não chegasse nunca, não seria admoestado por isso. Quando levo uma mensagem, faço-o espontaneamente. — Bem — disse K. observando Barnabás e desviando propositadamente os olhos dos ajudantes, que emergiam devagar, alternadamente, por trás dos ombros de K., como se saíssem de um alçapão e desaparecessem outra vez depressa, com um leve assobio que imitava o vento, aparentando susto diante da visão de K.; desapareceram de novo e assim se divertiram por muito tempo —, como se passam as coisas com Klamm eu não sei; mas que você possa saber exatamente como elas são lá, disso eu duvido e, mesmo que você fosse capaz disso, não poderíamos melhorá-las. Mas levar uma mensagem é uma coisa que você pode e é isso que eu lhe peço. Uma mensagem brevíssima. Você pode levá-la logo amanhã e amanhã ainda me comunicar rápido a resposta ou pelo menos reportar como foi recebido? É capaz de fazer isso e quer fazê-lo? Seria muito valioso para mim. E talvez eu ainda tenha oportunidade de agradecer-lhe devidamente, ou talvez você já tenha agora algum desejo que eu possa realizar. — Com certeza vou executar a tarefa — disse Barnabás. — Você vai se empenhar em executá-la da melhor maneira possível, entregar a mensagem ao próprio Klamm, receber dele próprio a resposta, rápido, tudo rápido, amanhã, ainda na parte da manhã, vai fazer isso? — Vou fazer o melhor que puder — disse Barnabás. — Mas isso eu faço sempre. — Não vamos mais discutir agora a esse respeito — disse K. — A mensagem é esta: “O agrimensor K. solicita ao senhor chefe permissão para falar-lhe pessoalmente, acatando de antemão qualquer condição que possa estar vinculada a essa permissão. Está forçado a fazer esse pedido porque até agora todos os intermediários falharam completamente na sua incumbência; como prova disso alega que até agora não realizou o menor trabalho de agrimensura e segundo as informações do prefeito não as executará nunca. Por isso leu com desesperada vergonha a última carta do senhor chefe: neste caso, só a conversação pessoal pode ajudar. O agrimensor sabe o quanto está solicitando, mas irá se esforçar, no que estiver a seu alcance, para tornar o incômodo o menor possível; submete-se a qualquer restrição de tempo, mesmo a uma fixação, porventura considerada necessária, das palavras que tem permissão para usar durante a entrevista; acredita que dez palavras lhe bastam. Com profundo respeito e extrema impaciência aguarda a decisão”. K. havia falado como se estivesse esquecido de si mesmo — como se estivesse diante da porta de Klamm e falasse com o porteiro. — Está muito mais longo do que eu pensava — disse depois. — Mas você precisa transmitir a mensagem oralmente, não quero escrever uma carta, ela iria outra vez passar pelo caminho infindável dos autos. Assim, rabiscou essas palavras para Barnabás num pedaço de papel apoiado nas costas de um dos ajudantes, enquanto o outro iluminava com a lanterna; mas K. já podia escrever acompanhando o ditado de Barnabás, que havia memorizado tudo e recitava com uma precisão escolar, sem se preocupar com as intervenções erradas dos ajudantes. — Sua memória é extraordinária — disse K. e entregou-lhe o papel. — Mas por favor mostre-se excepcional também no resto. E os desejos? Você não tem nenhum? Digo francamente que se você tivesse algum ficaria um pouco mais tranqüilo quanto ao destino da minha mensagem. A princípio Barnabás permaneceu quieto, depois disse: — Minhas irmãs mandam cumprimentá-lo. — Suas irmãs — disse K. — Ah, sim, as moças grandes e fortes. — As duas mandam cumprimentá-lo, principalmente Amália — disse Barnabás. — Ela me trouxe ainda hoje esta carta do castelo para o senhor. Aferrando-se sobretudo a essa notícia, K. perguntou: — Será que ela não poderia também levar minha mensagem ao castelo? Ou será que vocês dois não poderiam ir juntos e cada um tentar a sorte? — Amália não tem permissão para entrar nas chancelarias — disse Barnabás. — Se não fosse isso ela certamente teria prazer em fazê-lo. — Talvez eu vá amanhã à casa de vocês — disse K. — Primeiro volte com a resposta. Eu o espero na escola. Cumprimente suas irmãs em meu nome. A promessa de K. pareceu ter deixado Barnabás muito feliz; depois do aperto de mãos da despedida ele ainda tocou de leve no ombro de K. Como se agora tudo fosse outra vez como antes, quando Barnabás entrou com o seu esplendor por entre os camponeses que estavam na sala do albergue, K. recebeu esse toque, é verdade que sorrindo, como uma distinção. De mais bom humor deixou, no caminho de volta, os ajudantes fazerem o que queriam.
 
CHEGOU EM CASA completamente enregelado, por toda parte estava escuro, as velas das lanternas consumidas; guiado pelos ajudantes, que ali já conheciam o caminho, ele foi tateando através de uma sala de aula. — A primeira coisa louvável que vocês fizeram — disse lembrando-se da carta de Klamm. Ainda meio dormindo Frieda gritou de algum canto: — Deixem K. dormir! Não o perturbem! K. ocupava os pensamentos dela, portanto, mesmo quando, vencida pelo sono, não tinha podido esperá-lo. A luz então foi acesa, mas de qualquer modo não era possível subir muito a mecha da lâmpada, pois havia muito pouco querosene. A recente instalação do casal ainda tinha muitas lacunas. Na verdade o ambiente estava aquecido, mas o cômodo, que era grande e também utilizado para ginástica — os aparelhos estavam espalhados pelo chão ou pendiam do teto —, já havia consumido toda a provisão de madeira; conforme asseguraram a K. ela tinha se conservado agradavelmente aquecida, mas infelizmente havia esfriado outra vez por completo. Havia na realidade uma grande reserva de madeira num galpão, mas ele estava trancado e a chave ficava com o professor, que só permitia a retirada de madeira durante as horas de aula. Isso teria sido suportável se houvesse camas para se refugiar. Mas nesse sentido não existia ali nada senão um único saco de palha, coberto, com um capricho digno de reconhecimento, por uma manta de lã de Frieda, mas sem acolchoado e com apenas dois cobertores rústicos e duros que quase não esquentavam. Mesmo esse pobre saco de palha os ajudantes ficaram olhando com cobiça, mas naturalmente não tinham esperança de poder jamais dormir nele. Frieda olhou com ansiedade para K.; no Albergue da Ponte ela tinha provado que sabia tornar habitável a peça mais miserável, mas ali ela não havia conseguido fazer mais nada, uma vez que estava completamente desprovida de meios. — Nosso único ornamento de quarto são os aparelhos de ginástica — disse ela rindo com dificuldade, entre lágrimas. Mas em relação às faltas mais sérias — as camas e o aquecimento —, prometeu com firmeza arranjar tudo já no dia seguinte e pediu a K. que tivesse paciência até então. Nenhuma palavra, nenhuma alusão, nenhuma expressão do rosto permitiam concluir que ela abrigava no coração a mínima amargura em relação a K., embora ele a tivesse arrancado — como tinha de reconhecer — tanto da Hospedaria dos Senhores como agora também do Albergue da Ponte. Por isso K. se esforçou para achar tudo suportável, o que para ele também não era tão difícil, porque em pensamento acompanhava a caminhada de Barnabás e repetia palavra por palavra sua mensagem, não porém como ele a havia transmitido a Barnabás, e sim como acreditava que ela ia soar diante de Klamm. Ao mesmo tempo, no entanto, também se alegrava sinceramente com o café que Frieda havia preparado para ele numa espiriteira e, inclinado sobre a estufa que esfriava, seguia os gestos ágeis, muito experientes, com os quais ela estendia sobre a escrivaninha do professor a inevitável toalha branca e colocava uma xícara de café pintada de flores ao lado do pão, do toucinho e até mesmo de uma lata de sardinha. Agora estava tudo pronto, Frieda também não tinha comido ainda, mas esperado K. Havia duas cadeiras, K. e Frieda estavam sentados nelas à mesa, os ajudantes a seus pés em cima do estrado, mas não ficavam quietos nunca, até comendo eles perturbavam: embora tivessem sido servidos abundantemente de tudo e ainda estivessem longe de terminar, de tempos em tempos eles se levantavam para verificar se ainda havia bastante comida na mesa e se podiam ainda esperar por alguma coisa. K. não se preocupava com os dois, só o riso de Frieda o fez prestar atenção neles. Pousou sua mão como uma carícia na dela sobre a mesa e perguntou em voz baixa por que era tão indulgente com eles a ponto de acatar com amabilidade até suas malcriações. Desse modo nunca se livrariam dos dois, ao passo que com um tratamento de certa maneira enérgico, que correspondesse de fato à sua conduta, poderiam conseguir domá-los ou, o que seria ainda mais provável e melhor, tornar o lugar tão intolerável para eles que finalmente sairiam correndo dali. Com efeito, não prometia ser ali na escola uma estada muito agradável, nem duraria muito também; mas ninguém repararia muito em tudo o que faltava se os ajudantes tivessem ido embora e eles dois estivessem sozinhos na casa silenciosa. Por acaso ela não reparava que os ajudantes se tornavam dia a dia mais insolentes, como se na realidade a presença de Frieda os estimulasse, e a esperança de que, diante dela, K. não interviesse tão rigorosamente como faria de outro modo? Aliás, talvez houvesse meios muito simples de livrar-se deles imediatamente, sem qualquer rodeio; talvez até Frieda os conhecesse, de tão familiarizada com o que se passava. Aos próprios ajudantes provavelmente só se faria um favor se de algum modo os enxotassem, pois não era das melhores, ali, a boa vida que levavam e mesmo a ociosidade, de que até então haviam aproveitado, iria acabar pelo menos em parte, pois teriam de trabalhar, uma vez que Frieda, depois das excitações dos últimos dias, precisava se poupar, e ele, K., estaria ocupado em encontrar uma saída para a sua situação de emergência. Ele, no entanto, se os ajudantes fossem embora, se sentiria tão aliviado que poderia executar facilmente os trabalhos de servente da escola, além de todos os demais. Frieda, que havia escutado atentamente, acariciou lentamente o braço de K. e disse que a opinião dela a respeito de tudo aquilo era a mesma, mas que ele talvez superestimasse a falta de modos dos ajudantes: eles eram rapazes jovens, engraçados e um pouco simplórios, pela primeira vez a serviço de um estrangeiro, libertos da severa disciplina do castelo e por isso sempre um pouco excitados e espantados e nesse estado de espírito faziam às vezes idiotices, sobre as quais na verdade era natural ficar zangado, e mais razoável rir. Às vezes ela não conseguia conter o riso. Apesar disso estava inteiramente de acordo com K. no sentido de que o melhor era mandá-los embora e ela e K. viverem a sós. Ela se aproximou de K. e escondeu o rosto no seu ombro. E ali disse — numa voz dificilmente inteligível, de tal modo que K. precisou se inclinar até ela — que não conhecia nenhum recurso contra os ajudantes e temia que tudo aquilo que K. havia proposto fosse malograr. Até onde sabia, o próprio K. os exigira e agora os tinha e precisava mantê-los. O melhor era levá-los com leveza como o povo simplório que eles também eram; seria o melhor modo de suportá-los. K. não ficou satisfeito com a resposta; meio brincando, meio a sério, disse que ela parecia combinada com eles ou pelo menos ter uma grande queda pelos dois: eles eram rapazes bonitos, mas não existia ninguém de quem não se pudesse livrar com alguma boa vontade e ele ia provar isso a ela no caso dos ajudantes. Frieda disse que ficaria muito grata a ele se o conseguisse. Aliás, de agora em diante não ia rir mais deles nem falar nenhuma palavra desnecessária com os dois. Também não via nada mais neles para rir, realmente não era pouca coisa ser constantemente observada por dois homens — tinha aprendido a ver os dois com os seus próprios olhos. E de fato ela estremeceu um pouco quando os dois ajudantes se levantaram outra vez, em parte para conferir as reservas de comida, em parte para examinar a fundo aquele cochicho contínuo. K. aproveitou a ocasião para indispor Frieda com os ajudantes, atraiu-a para si e terminaram a refeição bem juntos um do outro. Agora deveriam ir dormir e todos estavam muito cansados, um dos ajudantes tinha até adormecido enquanto comia, isso entreteve bastante o outro e ele procurou fazer com que K. e Frieda olhassem a cara idiota do que estava dormindo, mas não conseguiu; eles estavam sentados lá em cima, com o ar severo. No frio que se tornava insuportável eles também hesitavam em ir dormir; finalmente K. esclareceu que era preciso aquecer o ambiente, caso contrário não seria possível dormir. Ele procurou algum machado, os ajudantes sabiam onde havia um, e aí eles foram até o galpão de madeira. Depois de algum tempo a leve porta foi arrombada; com um entusiasmo de quem nunca havia presenciado até então algo tão belo, perseguindo-se e chocando-se um contra o outro, os ajudantes começaram a levar a madeira para a sala de aula; logo havia ali um monte volumoso, acenderam o aquecedor, todos se puseram em torno dele, os ajudantes receberam um cobertor para se embrulhar; isso lhes bastava perfeitamente, pois tinha sido combinado que um deles sempre ficaria vigiando e mantendo o fogo aceso; em breve estava tão quente perto do aquecedor que já não se precisava mais dos cobertores; a lâmpada foi apagada e felizes com o calor e o silêncio K. e Frieda se esticaram para dormir. Quando K. acordou no meio da noite por causa de algum ruído e no primeiro e ainda incerto movimento de sono tateou procurando Frieda, notou que, em vez dela, estava deitado ao seu lado um ajudante. Provavelmente em conseqüência da irritabilidade que o despertar repentino acarretava, esse foi o maior susto que até então havia levado na aldeia. Com um grito, levantou-se pela metade e sem noção do que fazia deu um soco tão forte no ajudante que este começou a chorar. Aliás, tudo se esclareceu logo. Frieda tinha sido despertada porque — ao menos assim lhe parecia — algum animal grande, provavelmente um gato, havia lhe saltado sobre o peito e escapado em seguida. Ela se levantou e ficou procurando o animal com uma vela pelo quarto inteiro. Um dos ajudantes se aproveitou disso para gozar por um instante o prazer do saco de palha, coisa que agora estava pagando amargamente. Frieda porém não conseguiu encontrar nada, talvez tivesse sido apenas um engano; voltou para junto de K. e no caminho, como se tivesse esquecido a conversa da noite, passou, num gesto de consolo, a mão sobre o cabelo do ajudante, que estava agachado e gemia. K. não disse nada, ordenou apenas que o ajudante parasse de alimentar o fogo do aquecedor, pois com o consumo de quase toda a lenha acumulada o calor já havia se tornado excessivo. De manhã todos só acordaram quando os primeiros alunos já estavam lá e rodeavam com curiosidade o acampamento. Foi desagradável porque em conseqüência do forte calor, que pela manhã, no entanto, havia outra vez cedido a um sensível frescor, todos haviam se despido até a camisa e, justamente quando começavam a se vestir, apareceu na porta Gisa, a professora, uma jovem loira, grande e bonita, só que um pouco rígida. Ela estava visivelmente preparada para o novo servente da escola e com certeza também havia recebido do professor prescrições de conduta, pois já da soleira da porta disse: — Não posso tolerar isso. Que belo estado de coisas! Vocês têm permissão para dormir na sala de aula, mas eu não tenho obrigação de lecionar no dormitório de vocês. Uma família de serventes que fica se espreguiçando na cama até altas horas da manhã. Que asco! “Bem, haveria muito o que dizer, principalmente a respeito da família e das camas” — pensou K., enquanto ele e Frieda — com os ajudantes não podiam contar, pois estavam deitados no chão e olhando assustados para a professora e as crianças — afastavam o mais rápido possível as barras paralelas e o cavalo, cobriam as peças com os cobertores e desse modo formavam um pequeno recinto no qual, protegidos contra os olhares das crianças, podiam pelo menos se vestir. Naturalmente não houve um instante de sossego: primeiro, a professora ralhou porque não havia água fresca no lavabo; K. tinha cogitado em levá-la para Frieda e ele naquele momento; a princípio renunciou à idéia para não irritar demais a professora, mas a desistência não ajudou em nada, pois logo depois houve um grande alvoroço, infelizmente haviam esquecido de limpar o resto do jantar da mesa do professor, a professora afastou tudo com a régua e tudo voou para o chão; o fato de que o óleo de sardinha e os restos de café se esparramaram e a cafeteira se fez em pedaços não tinha por que preocupar a professora — os serventes iriam logo pôr tudo em ordem. Sem terem acabado de se vestir, K. e Frieda, apoiados nas barras paralelas, contemplaram a destruição de sua pequena propriedade; os ajudantes, que evidentemente não pensavam em se vestir, espiavam por entre as cobertas, para grande satisfação das crianças. O que mais doía a Frieda, naturalmente, era a perda da cafeteira; só quando K., para consolála, assegurou-lhe que iria imediatamente ao prefeito para exigir e receber uma peça de substituição, é que ela se recompôs a ponto de, apenas de camisa e combinação, sair correndo do cercado para pegar ao menos a coberta para preservá-la de novas manchas. Conseguiu fazer isso embora a professora, para afugentá-la, martelasse a mesa com a régua de um modo que irritava os nervos. Quando K. e Frieda haviam se vestido, tiveram de forçar os ajudantes — que pareciam tomados pelos acontecimentos — a se vestir, não só sob ordens e empurrões, mas também, em parte, vesti-los pessoalmente. Depois, quando tudo estava pronto, K. distribuiu os próximos trabalhos: os ajudantes deviam ir buscar madeira e fazer o aquecimento, mas em primeiro lugar na outra sala de aula, de onde partiam como ameaças perigos ainda maiores, pois provavelmente o professor já estava lá; Frieda tinha de limpar o assoalho, e K. iria buscar água ou dar outras ordens; no café-da-manhã não era preciso pensar no momento. Mas para se informar em geral sobre o estado de ânimo da professora, K. queria sair primeiro e os demais só deveriam seguir quando ele os chamasse. Tomou essas precauções, por um lado, porque não pretendia deixar de antemão que a situação piorasse com as tolices dos ajudantes e, por outro, porque desejava poupar Frieda o mais possível, uma vez que ela tinha ambições, e ele não, ela era suscetível, ele não, ela só pensava nas pequenas abjeções do presente, ele, porém, em Barnabás e no futuro. Frieda obedeceu fielmente às suas ordens, quase não tirava os olhos dele. Mal ele havia entrado, a professora bradou debaixo de uma gargalhada das crianças, que daí em diante não parou mais: — Então, dormiu bem? E quando K. não prestou atenção porque não era realmente uma pergunta e se dirigiu ao lavatório, a professora perguntou: — O que é que você fez ao meu bichano? Um gato grande, velho e carnudo estava estendido preguiçosamente sobre a mesa, e a professora examinava sua pata sem dúvida um pouco machucada. Frieda portanto tivera razão — o gato não havia na verdade saltado sobre ela, pois com certeza já não podia mais saltar, mas se arrastado por cima dela; assustado com a presença de pessoas na casa habitualmente vazia, tinha se escondido rapidamente e nessa pressa, que nele não era costumeira, havia se ferido. K. tentou explicar isso calmamente à professora, mas ela só se ateve ao resultado e disse: — É sim, você feriu o animal; foi desse modo que você começou aqui. Veja! Chamou K. até a escrivaninha, mostrou-lhe a pata e, antes mesmo que ele se desse conta, ela passou as garras sobre o dorso da mão dele; na verdade as garras já estavam embotadas, mas a professora as tinha enfiado com tanta firmeza — dessa vez sem levar o gato em consideração — que brotaram filetes de sangue. — E agora vá para o seu trabalho — disse ela impaciente, inclinando-se outra vez para o gato. Frieda, que havia observado por trás das barras, junto com os ajudantes, gritou à vista do sangue. K. mostrou a mão para as crianças e disse: — Vejam o que um gato maldoso e pérfido me fez. Ele disse isso não certamente por causa das crianças, cujos gritos e cujas risadas já tinham se tornado tão autônomos que não precisavam de nenhum novo motivo ou estímulo: nenhuma palavra podia penetrá-las ou influenciá-las. Mas como a professora só respondeu à ofensa com um breve olhar de soslaio, continuando a se ocupar com o gato, o primeiro impulso de raiva com a sangrenta punição parecia satisfeito; K. chamou Frieda e os ajudantes, e o trabalho começou. Quando K. levou o balde e jogou fora a água suja, trouxe água fresca e começou a varrer a sala de aula, um menino de cerca de doze anos saiu de um banco, tocou a mão de K. e disse alguma coisa ininteligível em meio ao barulho. De repente, porém, cessou todo o ruído. K. voltou-se. O que tinha sido temido durante toda a manhã havia acontecido. Na porta estava o professor; em cada uma das mãos o pequeno homem segurava pela gola um dos ajudantes. Sem dúvida havia surpreendido os dois apanhando lenha, pois com uma voz poderosa bradou, introduzindo uma pausa entre as palavras: — Quem ousou arrombar o galpão de lenha? Quem é essa pessoa, para que eu a esmague? Nesse momento Frieda levantou-se do chão, que ela se esforçava para lavar aos pés da professora, olhou na direção de K., como se quisesse ganhar força, e disse — em sua atitude havia algo de sua antiga superioridade no olhar e na postura: — Fui eu quem fez isso, senhor professor. Não havia outro remédio. Se as salas de aula precisavam estar aquecidas de manhã cedo, era preciso abrir o galpão; não ousei pegar a chave com o senhor durante a noite, meu noivo estava na Hospedaria dos Senhores, era possível que pernoitasse lá, por isso tive que tomar a decisão sozinha. Se fiz algo errado, peço perdão por minha inexperiência; recebi muita repreensão da parte do meu noivo quando ele viu o que tinha acontecido. Na verdade ele me proibiu até de fazer o aquecimento cedo, uma vez que acreditava que o senhor teria demonstrado, ao trancar o galpão, que não queria aquecimento até chegar pessoalmente. O fato de que não está aquecido agora é culpa dele, mas a culpa de que o galpão foi arrombado é minha. — Quem arrombou a porta? — perguntou o professor aos ajudantes, que continuavam em vão tentando se livrar da sua garra. — O senhor — disseram ambos e, para que não houvesse dúvida, apontaram para K. Frieda riu, e esse riso parecia provar mais do que as suas palavras; depois começou a torcer dentro do balde o pano de chão com que havia lavado o piso, como se com sua explicação o incidente estivesse terminado e a declaração dos ajudantes tivesse sido apenas uma brincadeira feita num segundo momento; só quando já estava ajoelhada outra vez para trabalhar é que ela disse: — Nossos ajudantes são crianças, que apesar de sua idade deviam ainda estar nos bancos escolares. Fui eu sozinha que abri a porta com o machado ao anoitecer, foi muito simples, para isso não precisei dos ajudantes, eles só teriam atrapalhado. Mas depois meu noivo chegou à noite e saiu para verificar os estragos e se possível repará-los; os ajudantes foram correndo com ele, provavelmente porque temiam ficar sós aqui, viram meu noivo trabalhar na porta violada e é por isso que agora estão dizendo — bem, são crianças. Com efeito os ajudantes sacudiam sem parar a cabeça durante a explicação de Frieda, continuavam apontando para K. e se esforçavam com caretas mudas para persuadir Frieda a mudar de opinião; mas uma vez que não conseguiam, acabaram se submetendo; tomaram as palavras de Frieda como ordem e não responderam mais a uma nova pergunta do professor. — Então — disse o professor — vocês mentiram? Ou no mínimo inculparam levianamente o servente da escola? Eles continuaram em silêncio, mas os seus tremores e olhares de angústia pareciam indicar consciência de culpa. — Sendo assim vou surrá-los imediatamente — disse o professor e mandou uma das crianças ao outro aposento ir buscar a vara. Quando ele então a levantou para bater, Frieda gritou: — Os ajudantes é que disseram a verdade! Atirou desesperada o pano de chão dentro do balde, de tal forma que a água espirrou alto, e correu para trás das barras paralelas, onde se escondeu. — Um monte de mentirosos — disse a professora, que acabara de enfaixar a pata e tinha colocado o animal no colo, no qual ele mal cabia. — Resta portanto o senhor servente da escola — disse o professor, empurrou os ajudantes e se voltou para K., que durante todo o tempo, apoiado na vassoura, havia escutado. — Este senhor servente, que por covardia admite com tranqüilidade que culpem falsamente outras pessoas por suas patifarias. — Bem — disse K., que sem dúvida notava que a intromissão de Frieda havia abrandado a cólera sem freios do professor —, se os ajudantes tivessem sido surrados um pouco, eu não teria lamentado; se eles foram poupados por cem motivos justos, podem ser punidos uma vez por uma causa injusta. Mas pondo isso de lado, teria ficado contente em evitar um choque direto entre mim e o senhor, professor; talvez até o senhor tivesse gostado. Mas uma vez que Frieda me sacrificou aos ajudantes — aqui K. fez uma pausa, ouvia-se no silêncio atrás dos cobertores Frieda soluçar —, é preciso naturalmente pôr a limpo este assunto. — Inaudito — disse a professora. — Sou inteiramente da sua opinião, senhorita Gisa — disse o professor. — O senhor, servente da escola, diante naturalmente desta vergonhosa falta disciplinar, está despedido no ato; a punição, que ainda virá, é algo que eu me reservo, mas abandone esta casa agora mesmo com todas as suas coisas. Para nós será um verdadeiro alívio e a aula vai poder finalmente começar. Por isso: vá andando! — Não me movo daqui — disse K. — O senhor é meu superior, mas não o que me concedeu este posto; ele é o senhor prefeito e só aceito demissão da parte dele. Mas o posto não me foi atribuído para que eu me enregele aqui com o meu pessoal, e sim — como o senhor mesmo disse — para que o senhor prefeito impeça atos desesperados e irrefletidos da minha parte. Demitir-me de repente, agora, seria, assim, francamente contrário à sua intenção; enquanto eu não ouvir o oposto, de sua própria boca, não vou acreditar. É, portanto, provavelmente para grande proveito do senhor que eu não obedeça à sua leviana demissão. — O senhor então não vai obedecer? — perguntou o professor. K. balançou a cabeça. — Reflita bem — disse o professor. — Suas decisões nem sempre são as melhores; pense por exemplo na noite de ontem, quando o senhor se recusou a ser interrogado. — Por que o senhor menciona isso agora? — perguntou K. — Porque me apraz — disse o professor. — E agora repito pela última vez: fora daqui! Mas quando nem isso produziu efeito, o professor foi até a escrivaninha e confabulou em voz baixa com a professora; esta falou alguma coisa sobre a polícia, mas o professor recusou; finalmente chegaram a um acordo, o professor ordenou às crianças que fossem para a classe; elas teriam as aulas lá junto com as outras. Essa mudança agradou a todos, logo a sala foi esvaziada sob risos e gritos e o professor e a professora seguiram por último. A professora levou o diário de classe e sobre ele instalado em toda a sua plenitude o gato indiferente. O professor bem que teria deixado o gato ali, mas a professora rejeitou uma insinuação nesse sentido alegando a crueldade de K.; de modo que, além de toda a irritação com K., mais o gato ficou pesando sobre o professor. Certamente tiveram influência nisso as últimas palavras que o professor dirigiu a K.: — A senhorita professora deixa com as crianças, constrangida e forçada, esta sala, porque o senhor não obedece, de modo renitente, à minha ordem de demissão e porque ninguém pode exigir dela, uma jovem, que ministre aula em meio à sujeira da sua vida familiar. Portanto o senhor fica sozinho e pode, sem ser perturbado pela repulsa de espectadores decentes, espalhar-se aqui como quiser. Mas isso não vai durar muito, eu garanto. Ato contínuo, bateu a porta.
 
NEM BEM SAÍRAM TODOS, K. disse aos ajudantes: — Vão para fora! Estupefatos com essa ordem inesperada, eles obedeceram, mas, quando K. trancou a porta atrás deles, quiseram voltar, choramingaram do outro lado e bateram à porta. — Vocês estão despedidos — bradou K. — Nunca mais eu os admito ao meu serviço. Evidentemente essa era uma coisa que eles não podiam tolerar e martelaram a porta com as mãos e os pés. — Mestre, deixe-nos voltar! — exclamavam, como se K. fosse a terra seca e eles estivessem a ponto de se afogar na inundação. Mas K. não tinha compaixão e esperava impaciente, até que o barulho insuportável obrigasse o professor a intervir. Isso aconteceu logo. — Deixe os malditos ajudantes entrarem! — gritou ele. — Eu os demiti — gritou K. de volta. A constatação teve o efeito involuntário de mostrar ao professor o que acontecia quando alguém era suficientemente forte não só para demitir, mas também para executar a demissão. O professor então tentou acalmar por bem os ajudantes: eles deviam apenas ficar calmos, no final K. teria de admiti-los outra vez. Depois foi embora. E talvez tivesse feito silêncio se K. não houvesse começado a gritar para eles que agora estavam definitivamente demitidos e não tinham a mínima esperança de readmissão. Diante disso eles recomeçaram a fazer barulho como antes. O professor voltou, porém dessa vez não negociou mais, mas os expulsou de casa, empregando, evidentemente, a temida vara de castigo. Eles não tardaram em aparecer diante das janelas da sala de ginástica, ficaram batendo na vidraça e gritando, mas não era mais possível entender as palavras. Permaneceram ali no entanto não por muito tempo: na neve profunda não podiam ficar saltando como exigia sua inquietação. Por isso correram até a grade do jardim da escola, pulando sobre a base de pedra, de onde, embora só a distância, tinham uma visão melhor do interior do quarto; ficaram correndo ali, agarrando-se à grade, de um lado para outro, depois pararam de novo estendendo suplicantes as mãos enlaçadas para K. Assim continuaram durante longo tempo sem levar em conta a inutilidade dos seus esforços; permaneciam como que em estado de cegueira, certamente também não ouviam quando K. baixou as cortinas para se livrar da sua vista. No quarto agora mergulhado na penumbra K. foi até as barras paralelas para ver Frieda. Sob o seu olhar ela se ergueu, arrumou os cabelos, enxugou o rosto e em silêncio se preparou para fazer café. Não obstante ela soubesse de tudo, K. informou-lhe literalmente que havia demitido os ajudantes. Frieda só meneou a cabeça. K. ficou sentado num banco da escola observando seus movimentos cansados. Tinham sido sempre o frescor e a decisão que embelezaram seu corpo insignificante, e agora essa beleza havia acabado. Poucos dias de vida em comum com K. tinham bastado para chegar a isso. O trabalho no balcão de bebidas não fora fácil, mas provavelmente mais adequado a ela. Ou era a distância de Klamm a verdadeira causa desse declínio? A proximidade de Klamm é que a tornara tão incrivelmente atraente; graças a essa atração ela tinha arrebatado K. e agora ela murchava nos seus braços. — Frieda — disse K. Ela depôs rápido o moedor de café e se dirigiu a K. no banco. — Você está zangado comigo? — perguntou ela. — Não — disse K. — Creio que você não pôde agir de outra maneira. Vivia satisfeita na Hospedaria dos Senhores. Eu devia tê-la deixado lá. — Sim — disse Frieda olhando à sua frente com tristeza. — Você deveria ter me deixado lá. Por isso não sou digna de viver com você. Livre de mim você talvez pudesse alcançar tudo o que quer. Por consideração comigo você se submete ao professor tirânico, assume este posto miserável, solicita penosamente uma conversação com Klamm. Tudo por mim, mas eu retribuo mal. — Não — disse K. e colocou o braço consoladoramente em torno dela. — Tudo isso são ninharias que não me fazem mal e se quero chegar a Klamm não é só por sua causa. E quanta coisa você fez por mim! Antes de conhecê-la eu caminhava completamente a esmo aqui. Ninguém me recebia e se eu me impusesse a alguém era imediatamente despachado. E se em algum lugar eu conseguia encontrar a paz era com pessoas de quem eu fugia de novo, como a gente de Barnabás. — Você fugia deles, não é verdade? Querido! — bradou Frieda com vivacidade para recair em seguida na prostração após um “sim” hesitante de K. Mas K. também não estava mais decidido a esclarecer por que a partir da sua relação com Frieda tudo para ele havia mudado para melhor. Soltou devagar o braço em torno de Frieda e os dois ficaram sentados um momento em silêncio até que Frieda, como se o braço de K. a tivesse aquecido — um calor de que não podia mais prescindir —, disse: — Não vou mais suportar esta vida aqui. Se você quiser ficar comigo temos de emigrar para alguma parte, para o sul da França, para a Espanha. — Não posso emigrar — disse K. — Vim aqui para ficar aqui. E vou ficar. E numa contradição que não se esforçou para explicar, acrescentou, como se estivesse falando consigo mesmo: — O que poderia ter me atraído para este lugar ermo se não fosse o desejo de permanecer aqui? Depois disse: — Mas você também quer ficar aqui, é a sua terra. Só Klamm é que lhe faz falta e isso a leva a pensamentos desesperados. — Klamm me faz falta? — disse Frieda. — Existe uma superabundância de Klamm aqui, Klamm demais; para fugir dele quero ir embora. Não é ele que me faz falta, mas você. Por sua causa quero ir embora; porque não posso me saciar de você neste lugar, onde todos me usurpam. Preferia que me arrancassem esta bela máscara, preferia que meu corpo se tornasse miserável, se eu pudesse viver em paz com você. De tudo isso K. só ouviu uma coisa: — Klamm continua a manter contato com você? — perguntou logo. — Ele manda chamá-la? — Não sei nada a respeito de Klamm — disse Frieda. — Agora quero falar de outras coisas, por exemplo dos ajudantes. — Ah, os ajudantes — disse K. surpreso. — Eles a perseguem? — Você então não percebeu? — perguntou Frieda. — Não — disse K. tentando em vão lembrar-se de detalhes. — São sem dúvida rapazes impertinentes e lascivos, mas não notei que tenham ousado se aproximar de você. — Não? — disse Frieda. — Você não notou que era impossível mandá-los embora do nosso quarto no Albergue da Ponte, como vigiavam ciumentamente nossas relações, como um deles se deitou no meu lugar no saco de palha esta noite, como eles hoje se manifestaram contra você para expulsá-lo, arruiná-lo e ficarem a sós comigo? Você não percebeu nada disso? K. olhou para Frieda sem responder. Certamente essas acusações contra os ajudantes eram corretas, mas podiam ser também todas elas interpretadas com muito mais inocência a partir da personalidade ridícula, infantil, volúvel e descontrolada dos dois. E não falava contra a acusação o fato de que eles sempre haviam se empenhado em acompanhar K. por toda parte e não em ficar com Frieda? K. tentou dizer qualquer coisa nesse sentido. — Hipocrisia — disse Frieda. — Será que você não se deu conta? Por que então você os expulsou, se não por esse motivo? E foi até a janela, puxou a cortina um pouco de lado, olhou para fora e depois chamou K. Os ajudantes continuavam do lado de fora junto à grade; por mais que já estivessem visivelmente cansados, ainda estendiam de quando em quando, reunindo todas as forças, os braços suplicantes em direção à escola. Um deles, para não ter de se segurar o tempo todo na grade, tinha espetado a parte de trás do casaco numa das barras de ferro. — Pobrezinhos! Pobrezinhos! — disse Frieda. — Por que eu os expulsei? — perguntou K. — Você foi a causa imediata. — Eu? — perguntou Frieda sem desviar o olhar lá de fora. — Sua maneira de tratar com gentileza demais os ajudantes — disse K. — O modo de perdoar suas más maneiras, de rir deles, acariciar seus cabelos, a compaixão constante por eles; “pobrezinhos, pobrezinhos” é o que você disse mais uma vez, e finalmente o último incidente, em que eu não era para você um preço muito alto a pagar para poupá-los das bastonadas. — Mas é justamente isso — disse Frieda. — É disso que estou falando, é o que me faz infeliz, que me afasta de você, ao passo que não conheço felicidade maior do que estar com você sempre, sem interrupção, sem fim; embora nem em meus sonhos eu imagine que exista na Terra um lugar calmo para o nosso amor, seja na aldeia ou em qualquer outra parte, e por isso imagino um túmulo profundo e apertado onde fiquemos abraçados como se fosse com tenazes, onde eu esconda meu rosto em você e você o seu em mim e ninguém nunca mais nos veja. Aqui porém — veja os ajudantes! Não é para você que eles se dirigem quando juntam as mãos, mas para mim. — E não sou eu que olho para eles — disse K. —, mas você. — Eu, com certeza — disse Frieda quase zangada. — É sobre isso que estou falando sem parar; que importância teria de resto que os ajudantes estivessem atrás de mim, ainda que fossem enviados de Klamm? — Enviados de Klamm — disse K., a quem essa designação, por mais natural que logo lhe parecesse, de fato causou muita surpresa. — Enviados de Klamm, certamente — disse Frieda. — Talvez o sejam, mas são também, ao mesmo tempo, jovens estúpidos, que ainda precisam de uma surra para ser educados. Como são feios e sujos e como é repulsivo o contraste de seus rostos, que sugerem adultos, até mesmo estudantes, e seu comportamento pueril e tolo! Você não acredita que eu perceba isso? Envergonho-me deles. Mas é exatamente isso, ambos não me causam repulsa; no entanto, me envergonho deles. Tenho sempre de estar olhando para os dois. Quando uma pessoa chega ao ponto de se irritar com eles, tenho de rir. Quando deviam bater neles, tenho de passar a mão sobre seus cabelos. E se estou deitada à noite ao seu lado, não posso dormir e preciso olhar por cima de você para ver como um deles dorme bem enrolado na coberta e o outro se ajoelha diante da portinha aberta do aquecedor para alimentá-lo, e então tenho de me inclinar para a frente de tal maneira que quase o acordo. E não é o gato que me assusta — ah, conheço os gatos e sei também o que significa cochilar inquieta e sempre perturbada no balcão de bebidas —, não é o gato que me assusta, eu mesma me assusto. Não há necessidade alguma de que aquele monstro de gato apareça, eu me sobressalto ao menor ruído. Uma vez temi que você despertasse e tudo terminasse; fico outra vez em pé num salto e acendo a vela, para que você acorde logo e possa me proteger. — Nunca soube de nada disso — disse K. — Tinha apenas um vago pressentimento, por esse motivo eu os expulsei; mas agora eles foram embora, talvez agora tudo corra bem. — Sim, finalmente eles foram embora — disse Frieda, mas seu rosto parecia angustiado e sem alegria. — Só que não sabemos quem eles são. Enviados de Klamm — é assim que os chamo em pensamento, por brincadeira; talvez porém eles o sejam de verdade. Seus olhos, esses olhos ingênuos e no entanto cintilantes, lembram-me às vezes os olhos de Klamm. Sim, é isto, é o olhar de Klamm que às vezes me atravessa, vindo dos olhos deles. E por isso não era exato quando disse que me envergonho deles. Gostaria que fosse assim. Sei na verdade que em outra parte e em outras pessoas igual comportamento seria estúpido e indecente, mas com eles a coisa não se passa desse modo: é com respeito e admiração que observo suas tolices. Mas se os dois forem enviados de Klamm, quem nos livra deles? Seria bom nos libertarmos deles? Será que então você não teria que ir buscá-los de volta e ficar feliz se eles ainda viessem? — Você quer que eu os deixe entrar de novo? — perguntou K. — Não, não — disse Frieda. — Não há coisa que eu queira menos. A visão deles, se irrompessem agora aqui, sua alegria por me verem de novo, seu saltitar de crianças e os braços de homens que se estendem — talvez não pudesse absolutamente suportar tudo isso. Mas quando depois penso que você, que permanece tão duro contra eles, talvez impeça com isso que o próprio Klamm se aproxime, quero por todos os meios evitar as conseqüências disso. Nesse momento, desejo que os deixe entrar aqui outra vez. Por isso, faça-os vir logo! Não me leve em consideração, que importância eu tenho? Vou me defender enquanto posso, mas se tiver que perder, aí será com a consciência de que isso também acontecerá a você. — Você só reforça minha opinião sobre os ajudantes — disse K. — Nunca eles irão entrar de novo com o meu consentimento. O fato de eu ter mandado os dois para fora prova sem dúvida que conforme as circunstâncias é possível controlá-los e, um pouco adiante, que eles não têm nada essencial a ver com Klamm. Só ontem à noite recebi uma carta de Klamm, na qual se pode ver que ele está totalmente mal informado sobre os ajudantes, de onde se pode concluir, por sua vez, que estes lhe são indiferentes por completo, pois, se não o fossem, ele teria com certeza conseguido obter informações precisas sobre os dois. Que você no entanto veja Klamm neles não prova nada, pois ainda continua, infelizmente, influenciada pela dona do albergue e enxerga Klamm em toda parte. Você continua sendo a amante de Klamm, distante ainda de ser minha mulher. Às vezes isso me deixa triste, é como se tivesse perdido tudo; tenho então a sensação de ter acabado de chegar à aldeia, mas não esperançoso como antes na realidade estive, e sim consciente de que só me esperam decepções e que vou ter de prová-las uma depois da outra até a última gota. Mas isso só acontece de vez em quando — acrescentou K. sorrindo, ao ver Frieda sucumbir às suas palavras — e no fundo confirma a existência de algo bom, ou seja, aquilo que você significa para mim. E se agora exige de mim que eu escolha entre você e os ajudantes, então os ajudantes já perderam. Que idéia, escolher entre você e os ajudantes! Mas agora quero livrála definitivamente deles. Aliás, quem é que sabe se a fraqueza que nos acometeu a ambos não vem do fato de ainda não termos tomado o café-da-manhã? — É possível — disse Frieda com um sorriso cansado. Em seguida pôs-se a trabalhar. K. também pegou outra vez a vassoura.
 
UM INSTANTE DEPOIS bateram de leve à porta. — Barnabás! — gritou K., atirou a vassoura e com alguns passos estava junto à porta. Mais assustada com o nome do que com tudo o mais, Frieda olhou para ele. Com as mãos inseguras K. não conseguia abrir logo a velha fechadura. — Já abro — continuava a repetir em vez de perguntar quem realmente estava batendo. Teve então de verificar que pela porta bem aberta entrava não Barnabás, mas o pequeno jovem, que já antes tinha querido falar com K. Este, porém, não tinha nenhuma vontade de se lembrar dele. — O que você quer aqui? — perguntou. — A sala de aula fica ao lado. — Estou vindo de lá — disse o jovem e ergueu para K. seus grandes olhos castanhos; ficou ali em pé, os braços perto do corpo. — O que então você quer? Rápido! — disse K., vergando o corpo um pouco para baixo, pois o jovem falava baixo. — Posso ajudá-lo? — perguntou o jovem. — Ele quer nos ajudar — disse K. a Frieda e depois ao jovem: — Como é o seu nome? — Hans Brunswick — disse o jovem. — Aluno da quarta série, filho de Otto Brunswick, mestre-sapateiro da rua Madeleine. — Veja só, seu nome é Brunswick! — disse-lhe K. mais amigavelmente. Verificou-se que Hans tinha ficado tão impressionado com as estrias de sangue que a professora havia riscado nas mãos de K. que ele naquele momento decidira socorrê-lo. Espontaneamente havia escapulido agora — correndo o risco de uma grande punição — da sala de aula ao lado como se fosse um desertor. Provavelmente eram sobretudo essas idéias infantis que o dominavam. Correspondia a isso, também, a seriedade que transparecia em tudo o que fazia. A timidez só o havia tolhido no início, mas logo ele se acostumou com K. e Frieda e, quando depois recebeu um bom café quente para beber, tornou-se vivaz e confiante e suas perguntas fervorosas e insistentes, como se quisesse saber o mais rápido possível o que era mais importante para em seguida poder tomar com autonomia decisões relativas a K. e Frieda. Havia também algo autoritário no seu modo de ser, mas estava tão misturado com uma inocência infantil que a pessoa se submetia a ele voluntariamente, meio a sério, meio brincando. Seja como for, exigia toda a atenção para si, todo o trabalho tinha terminado, o café-da-manhã se estendia muito. Embora estivesse sentado num banco de escola, K. no alto, à mesa do professor, e Frieda numa cadeira ao lado, a impressão era de que o professor era Hans, testando e julgando as respostas com um leve sorriso nos lábios macios, o que parecia insinuar que certamente sabia que se tratava apenas de um jogo; mas por outro lado sua concentração era tanto mais séria em função disso, talvez não fosse absolutamente um sorriso, mas a felicidade da infância que aflorava dos seus lábios. Só consideravelmente mais tarde é que admitiu que já conhecia K., desde que este certa vez entrou na casa de Lasemann. K. ficou feliz com isso. — Você estava brincando aos pés da senhora, naquela ocasião? — perguntou K. — Sim — disse Hans. — Era minha mãe. Precisou então contar sobre sua mãe, mas ele o fazia só com hesitação e apenas depois de incitações reiteradas se constatou que na verdade ele era um menino, que às vezes, principalmente nas perguntas — quem sabe numa antecipação do futuro, mas talvez também só em conseqüência de uma ilusão dos sentidos do ouvinte inquieto e tenso —, parecia um homem enérgico, inteligente e de visão ampla falando, que logo depois, porém, sem transição, era outra vez um simples escolar, que às vezes nem entendia muitas das questões e interpretava mal outras, falava baixo demais, com uma falta de consideração infantil, embora chamassem com freqüência sua atenção para o erro cometido e que no fim, como se fosse por birra diante de certas questões urgentes, silenciava por completo, na verdade sem o menor embaraço, como um adulto jamais seria capaz de fazer. Em geral parecia que só ele tinha permissão para fazer perguntas e que, quando os outros perguntavam, alguma prescrição era infringida e o tempo desperdiçado. Podia então permanecer sentado por muito tempo, imóvel e com o corpo aprumado, a cabeça abaixada e o lábio inferior projetado para a frente. Frieda gostou tanto disso que com muita freqüência lhe fez perguntas, esperando que elas o fizessem desse modo calar-se. Conseguiu esse resultado algumas vezes, mas K. se irritou. No conjunto ficaram sabendo pouca coisa: a mãe era um pouco doentia, mas ficou indefinido que enfermidade era; a criança que a senhora Brunswick tinha no colo era a irmã de Hans e se chamava Frieda (a identidade do nome com o nome da mulher que o inquiria foi recebida de forma inamistosa por Hans), todos eles moravam na aldeia, mas não na casa de Lasemann, estavam lá como visitas para tomar banho, uma vez que Lasemann tinha uma tina grande, na qual as crianças pequenas, de que Hans não fazia parte, tinham um prazer especial em se banhar e ficar brincando; sobre o pai, Hans falava com reverência e medo, mas apenas quando sua mãe não estava em questão na mesma hora; diante da mãe o valor do pai era manifestamente pequeno, aliás todas as perguntas sobre a vida da família permaneciam sem resposta, qualquer que fosse a maneira de abordá-la; acerca dos negócios do pai descobriram que ele era o maior sapateiro do lugar, ninguém o igualava; isso foi repetido várias vezes também em relação a questões muito diferentes; ele até dava trabalho a outros sapateiros, por exemplo o pai de Barnabás; no caso deste último, Brunswick certamente o fazia como uma concessão especial, pelo menos foi isso que sugeriu o orgulhoso movimento de cabeça de Hans, que motivou Frieda a descer de um salto até ele e lhe dar um beijo. À pergunta sobre se já tinha estado no castelo ele respondeu só depois de várias repetições, na verdade com um “não”, e à pergunta idêntica, referente à mãe, ele não deu resposta alguma. Finalmente K. se cansou, também a ele o questionário parecia inútil; deu razão ao jovem no sentido de que havia algo vergonhoso em tentar descobrir segredos de família pelo meio indireto que era a criança inocente; duplamente vergonhoso era no entanto o fato de que nem assim ficaram sabendo coisa alguma. E quando então K. perguntou ao jovem, para terminar, no que ele se prontificava a ajudar, não se espantou mais ao ouvir que Hans queria auxiliar no serviço ali para que o professor e a professora não ralhassem mais tanto com K. Este explicou a Hans que essa ajuda não era necessária; ralhar fazia parte, sem dúvida, da natureza do professor e havia pouca possibilidade, mesmo com o trabalho mais meticuloso, de se furtar a isso; o trabalho propriamente dito não era difícil e só em conseqüência de circunstâncias fortuitas ele hoje estava atrasado; aliás, a zanga não produzia em K. o mesmo efeito que causava a um aluno; K. se desembaraçava dele logo, como se lhe fosse quase indiferente, e esperava poder escapar inteiramente do professor muito em breve. Assim, como se tratava apenas de apoio contra o professor, agradecia muitíssimo e Hans podia agora voltar; a esperança era de que não fosse punido. Apesar disso K. não acentuou de modo algum e só involuntariamente insinuou que não precisava de ajuda em relação ao professor, ao passo que deixava em aberto a questão de outro tipo de auxílio; Hans no entanto percebeu isso claramente e perguntou se K. talvez precisasse de outra ajuda; iria ajudá-lo com muito prazer e, mesmo que ele próprio não estivesse em condições para tanto, pediria à sua mãe para fazê-lo e certamente ia consegui-lo. Mesmo que o pai ficasse preocupado, iria pedir ajuda à mãe. E a mãe já havia uma vez perguntado por K.; pessoalmente quase não saía de casa, só excepcionalmente tinha estado antes na casa de Lasemann, mas ele, Hans, ia com freqüência até lá para brincar com os filhos de Lasemann, e uma ocasião a mãe lhe perguntou se por acaso o agrimensor estivera outra vez lá. Ora, a mãe, por estar tão fraca e cansada, não ia fazer a pergunta inutilmente, e sendo assim ele havia dito simplesmente que não tinha visto o agrimensor lá, e a partir daí não se falou mais a esse respeito; mas quando ele o encontrou ali na escola, teve de lhe falar, para que pudesse relatar à mãe. Pois era aquilo de que a mãe mais gostava, quando os seus desejos eram realizados sem ordem expressa. Depois de breve reflexão K. disse que não precisava de nenhuma ajuda, tinha tudo de que necessitava, mas era muito gentil da parte de Hans que quisesse auxiliá-lo e agradecia pela boa intenção; era até possível que mais tarde precisasse de alguma coisa e nesse caso recorreria a ele, seu endereço ele já tinha. Por outro lado talvez ele, K., pudesse dessa vez ajudar um pouco, lamentava que a mãe de Hans não estivesse bem de saúde e evidentemente ninguém ali entendia a causa da dor; num caso negligenciado como esse era possível, muitas vezes, que sobreviesse o agravamento sério de um sofrimento leve. Ocorria que ele, K., possuía alguns conhecimentos médicos e, o que valia mais ainda, experiência no tratamento de doentes. Muita coisa que os médicos não haviam conseguido, ele tinha alcançado. Em sua casa, por causa de virtudes de curador, sempre o chamaram de “erva amarga”. De qualquer forma ele gostaria de ver a mãe de Hans e conversar com ela. Talvez pudesse dar um bom conselho; ele o faria com prazer em nome de Hans. Os olhos do menino brilharam logo de início a essa oferta, o que induziu K. a se tornar mais insistente; mas o resultado foi insatisfatório, pois Hans respondeu a diversas perguntas, sem nem mesmo ficar triste, que a mãe não podia receber nenhuma visita de pessoas estranhas, porque estava necessitando de muitos cuidados; K. mal havia falado com ela aquele dia, apesar disso a mãe ficou de cama alguns dias, o que sem dúvida acontece com freqüência. Mas o pai, na época, se irritou muito com o fato de K. ter dirigido a palavra à mulher e certamente não permitiria jamais que K. a visitasse, na verdade ele quis então procurar K. para puni-lo por seu comportamento e só a mãe o impediu de fazer isso. Acima de tudo, porém, a própria mãe não queria em geral falar com ninguém, e o fato de ter perguntado por K. não significava nenhuma exceção à regra; pelo contrário, justamente por tê-lo mencionado naquela eventualidade, ela poderia ter expressado o desejo de vê-lo, mas isso ela não fez e desse modo externou claramente sua vontade. Ela só queria ouvir a respeito de K., e não conversar com ele. Por sinal, não era de uma doença propriamente dita que sofria; conhecia muito bem a causa do seu estado e às vezes fazia alusão a isso: provavelmente era o ar dali que não conseguia suportar, mas ela não queria mais de jeito algum deixar outra vez o lugar por causa do pai e das crianças — além do que já estava melhor do que estivera antes. Foi mais ou menos isso que K. ficou sabendo; a capacidade de reflexão de Hans se intensificava visivelmente, uma vez que queria proteger a mãe diante de K.; de K., a quem supostamente quisera ajudar; sim, com o objetivo de manter K. a distância da mãe ele contradizia em alguns pontos até mesmo as suas próprias afirmações anteriores, por exemplo em relação à doença. Apesar disso, K. também notava que Hans ainda continuava bem-intencionado em relação a ele, só que esquecia de tudo o mais em função da mãe; quem quer que se pusesse diante da mãe incorria logo em erro; dessa vez tinha sido K., mas podia, por exemplo, ter sido também o pai. K. quis tirar a prova e disse que fora com certeza muito sensato da parte do pai proteger a mãe assim de qualquer perturbação, e se ele, K., tivesse na ocasião apenas pressentido algo semelhante, não teria certamente ousado interpelar a mãe e agora, a despeito do atraso, pedia que o desculpassem em casa. Entretanto ele não era capaz de entender plenamente por que o pai — uma vez que a causa da enfermidade tinha sido explicada tão claramente como Hans dizia —, por que o pai impedia a mãe de se recuperar mudando de ares; era preciso dizer que a retinha, pois ela só não ia por causa dos filhos e dele próprio, mas podia levar consigo os filhos, aliás não tinha de ficar fora por muito tempo, nem ir para muito longe; já lá no alto da montanha do castelo o ar era totalmente outro. O pai não precisava temer os custos de uma viagem dessas, afinal era o maior sapateiro do lugar e certamente ele ou ela tinham parentes ou conhecidos no castelo que os acolheriam com prazer. Por que ele não a deixava partir? Não devia subestimar um mal como aquele, K. só havia visto a mãe fugazmente, é certo; foram no entanto sua palidez e fraqueza, dignas de chamar a atenção, que o tinham movido a falar com ela; já então ficara admirado com o fato de que o pai havia deixado a mulher doente no ar nocivo da sala de banho e lavagem de roupa e não se contivera nem um pouco em suas altas vociferações. Sem dúvida o pai não sabia do que se tratava, mesmo que o mal tivesse talvez melhorado nos últimos tempos, uma moléstia dessa natureza tem caprichos, e quando não é combatida ela se impõe com força total e aí nada mais pode ajudar. Se K. já não podia falar com a mãe, quem sabe fosse bom que ele falasse com o pai e o alertasse sobre tudo isso. Hans ouviu com muita atenção, compreendeu a maioria das coisas e ficou fortemente impressionado com a ameaça contida no restante do que lhe fora incompreensível. Apesar disso Hans disse que K. não podia falar com o seu pai, o qual tinha aversão por ele e provavelmente o trataria como o professor. Disse isso sorrindo com timidez quando se referia a K., sombrio e triste quando fazia menção ao pai. Mas acrescentou que talvez K. pudesse conversar com a mãe, mas sem que o pai o soubesse. Depois Hans refletiu um pouco, o olhar fixo, como uma mulher que quer fazer algo proibido e procura uma possibilidade para realizá-lo sem ser castigada. Disse que talvez fosse possível depois do dia seguinte: à noite o pai ia à Hospedaria dos Senhores, onde mantinha conversações; nesse caso ele, Hans, viria ao anoitecer e levaria K. até a mãe, com a condição, é verdade, de que a mãe concordasse, o que ainda era muito improvável. Acima de qualquer coisa ela não faria nada contra a vontade do pai, obedecia-lhe em tudo, inclusive nas coisas cuja insensatez até ele, Hans, percebia claramente. Na realidade, Hans agora buscava o apoio de K. contra o pai; era como se tivesse enganado a si mesmo, uma vez que acreditara que queria ajudar K., enquanto o que realmente desejava descobrir era se talvez — já que ninguém no seu antigo círculo pudera auxiliá-lo — esse homem, que tinha aparecido de repente e havia até mencionado sua mãe, não seria capaz disso. Quão inconscientemente fechado era esse jovem, quase manhoso, era uma coisa que até agora mal tinha sido possível deduzir de suas maneiras e palavras; só se percebia isso através das confissões literalmente suplementares, arrancadas por acaso ou com intenção. E agora ele ponderava, em longas conversas com K., que dificuldades tinham de ser superadas; mesmo com toda a boa vontade de Hans, elas eram quase intransponíveis; mergulhado nos seus pensamentos e no entanto buscando ajuda, ele continuava fitando K. com os olhos que piscavam inquietos sem parar. Antes da saída do pai não devia dizer nada à mãe, senão o pai ficaria sabendo e tudo seria impossível; portanto só mais tarde poderia mencionar o fato, mas agora, em consideração pela mãe, não devia fazê-lo de repente e rápido, porém devagar e na ocasião oportuna, pois primeiro tinha de pedir permissão à mãe, depois vir buscar K.; mas será que aí já não seria tarde demais, a volta do pai já não ameaçava acontecer? Bem, era impossível que acontecesse. K. provou que, pelo contrário, não era impossível. Que o tempo não bastasse não era preciso temer — uma conversa breve, um encontro breve, era suficiente; e não havia necessidade de que Hans viesse buscar K. K. esperaria escondido em algum lugar perto da casa e iria logo a um aceno de Hans. — Não — disse Hans. K. não podia ficar perto da casa (outra vez a suscetibilidade em torno da mãe o dominava). Sem o conhecimento da mãe, K. não podia se pôr a caminho; num entendimento como aquele, desconhecido da mãe, Hans não devia entrar com K., era preciso que ele fosse buscar K. na escola e não antes — antes que a mãe soubesse e permitisse. “Muito bem”, disse K.; então era realmente perigoso, pois aí seria possível que o pai o surpreendesse na casa e, mesmo que isso não acontecesse, a mãe não o deixaria de modo algum entrar, de medo, e sendo assim tudo ia fracassar por causa do pai. Dessa vez foi Hans que fez objeções, e desse modo a discussão andou de um lado para outro. Já fazia muito tempo que K. tinha chamado Hans, que estava sentado no banco, para a escrivaninha do professor, colocando-o entre os seus joelhos e às vezes o acariciando para que se acalmasse. Essa proximidade também contribuiu para estabelecer um acordo a despeito da oposição intermitente de Hans. Os dois afinal concordaram com o seguinte: primeiro, Hans diria toda a verdade à mãe; entretanto, para tornar mais fácil sua anuência, acrescentaria que K. também falaria pessoalmente com Brunswick, mas não a respeito dela, e sim dos seus assuntos. Isso de fato era correto — no curso da conversa ocorreu a K. que Brunswick, que em outros aspectos era uma pessoa perigosa e má, não podia na verdade ser seu adversário: fora ele, pelo menos segundo o relato do prefeito, que havia liderado aqueles que, mesmo tendo sido por motivos políticos, haviam solicitado a indicação de um agrimensor. A chegada de K. à aldeia devia, pois, ter sido bem recebida por Brunswick; de qualquer modo, a acolhida irritada no primeiro dia e a aversão, da qual Hans falara, eram quase incompreensíveis; mas é possível que Brunswick tenha ficado ofendido pelo fato de K. não ter se dirigido primeiro a ele para pedir ajuda; talvez existisse um outro equívoco que pudesse ser esclarecido em algumas palavras. Mas se isso tivesse ocorrido, então K. podia perfeitamente contar com um apoio contra o professor, até mesmo contra o prefeito, e todo o embuste oficial — pois era outra coisa a não ser isso? — por meio do qual o prefeito e o professor o mantinham a distância das autoridades do castelo e o constrangiam ao posto de servente de escola; se isso fosse descoberto haveria uma nova luta entre Brunswick e o prefeito em torno de K., e Brunswick teria de puxar K. para o seu lado; K. se tornaria hóspede na casa de Brunswick, os poderes de Brunswick seriam postos à sua disposição, a despeito do prefeito; quem é que sabe aonde ele chegaria por esse meio? Em todo caso estaria com freqüência na proximidade da mulher. Assim brincava K. com os seus sonhos e os sonhos com ele, ao passo que Hans, que não pensava em nada senão na mãe, observava com inquietação o silêncio de K., do modo como fazem as pessoas diante de um médico mergulhado nos próprios pensamentos para encontrar um método de cura para um caso difícil. Hans estava de acordo com a proposta de K. no sentido de ir conversar com Brunswick a respeito do trabalho de agrimensura, mas apenas porque, assim, sua mãe ficava protegida do pai; além disso tratava-se de um caso de emergência, que ele esperava que não chegasse a acontecer. Só perguntou como K. ia explicar ao pai a hora tardia da visita e afinal se satisfez, embora com o rosto um pouco anuviado, com a possibilidade de K. dizer que o posto insuportável de servente de escola e o tratamento desonroso que recebia do professor o haviam feito perder qualquer contenção num súbito acesso de desespero. Quando então, desse modo, tudo — até onde se podia ver — estava previamente pensado e a possibilidade de êxito pelo menos não ficava mais excluída, Hans, liberado do peso de refletir, se tornou mais alegre, ainda conversou um pouco, infantilmente, primeiro com K. e depois com Frieda, que durante muito tempo ficou ali sentada, como se estivesse perdida em outros pensamentos e só agora recomeçava a participar da conversa. Entre outras coisas, perguntou a Hans o que ele queria ser quando crescesse; ele não pensou muito e disse que queria se tornar um homem como K. Quando depois foi perguntado por que motivos, evidentemente não soube o que responder, e à pergunta sobre se queria por acaso virar servente de escola ele disse “não” com firmeza. Só depois que o interrogatório continuou é que se percebeu o desvio pelo qual havia chegado ao seu desejo. A situação presente de K. não era de modo algum invejável, mas triste e desprezível — isso Hans também via com precisão e para percebê-lo não tinha de observar outras pessoas; ele mesmo teria preferido preservar a mãe de qualquer olhar ou palavra de K. Apesar disso, veio a K. e ofereceu-lhe apoio; ficou feliz quando K. aceitou; acreditava ter localizado algo semelhante em outras pessoas e acima de tudo a própria mãe havia mencionado K. Dessa contradição nasceu nele a crença de que K. era, naquele momento, ainda baixo e repulsivo, mas, num futuro quase inconcebível de tão remoto, ele iria sem dúvida superar a todos. E era exatamente essa distância absurda e a orgulhosa evolução a que ela devia levar que atraíam Hans; por esse preço ele desejava aceitar até o K. atual. A qualidade peculiarmente infantil e precoce desse desejo consistia no fato de Hans olhar K. de cima para baixo como a alguém mais jovem, cujo futuro se estendia mais à frente do que o dele próprio, que era o de um menino. E também era com uma seriedade quase sombria que ele, sempre pressionado pelas perguntas de Frieda, falava sobre essas coisas. Só K. o animou outra vez, quando disse que sabia o que Hans invejava nele — tratava-se de um belo cajado nodoso que estava sobre a mesa e com o qual Hans havia distraidamente brincado durante a conversa. Ora, K. sabia fazer cajados como aquele e, se o plano vingasse, faria um ainda mais belo para Hans. Agora já não estava mais inteiramente claro se Hans não tivera em mente, de fato, apenas o cajado, tão contente ele ficou com a promessa e se despediu alegremente, não sem apertar firme a mão de K. e dizer: — Então, até depois de amanhã.
 
ESTAVA EM CIMA DA HORA para Hans ter saído, pois logo em seguida o professor escancarou a porta e gritou quando viu K. e Frieda tranqüilamente sentados à mesa: — Desculpem pelo incômodo! Mas me digam quando afinal vão arrumar as coisas aqui. Temos de ficar apertados do outro lado, a aula é prejudicada com isso, vocês porém se esticam refestelados aqui na grande sala de ginástica e, para terem mais espaço ainda, mandaram embora também os ajudantes. Agora, no entanto, por gentileza, pelo menos se levantem e se mexam! Depois disse só para K.: — Você vá buscar já para mim o almoço no Albergue da Ponte. Tudo isso foi gritado com raiva, mas as palavras eram relativamente brandas, mesmo o “você”, que era de uma rude familiaridade. K. estava disposto a obedecer imediatamente e, só para sondar o professor, disse: — Mas eu fui despejado. — Despejado ou não despejado, vá buscar meu almoço — disse o professor. — Despejado ou não despejado, é justamente isso o que eu quero saber — disse K. — Mas o que é que você está tagarelando aí? — disse o professor. — Você não aceitou o despejo. — Isso é suficiente para torná-lo sem efeito? — perguntou K. — Para mim não — disse o professor. — Pode acreditar, mas para o prefeito sim, de uma maneira incompreensível. Bem, agora corra, senão você realmente sai daqui voando. K. estava satisfeito; nesse meio-tempo, portanto, o professor havia conversado com o prefeito, ou talvez nem conversado, mas apenas se conformado com a opinião previsível do prefeito e esta era favorável a K. Agora K. queria ir buscar às pressas o almoço no albergue, mas quando ainda estava saindo o professor gritou de novo para ele voltar, seja porque queria experimentar a docilidade de K. por meio dessa ordem especial, para depois se orientar por ela, seja porque tinha outra vez vontade de dar ordens: causava-lhe satisfação fazer K. sair correndo a toda e depois voltar, por um comando seu, com a mesma pressa, como se ele fosse um garçom. Por sua vez, K. sabia que pela concessão excessiva ele se transformaria em escravo e saco de pancadas do professor, mas até um determinado limite ele agora queria aceitar com paciência os caprichos do professor, pois mesmo que este, conforme ficara evidenciado, não pudesse despejá-lo legalmente, ainda era certamente capaz de tornar o posto dolorosamente insuportável. Mas justamente esse lugar agora não importava a K. mais como antes. A conversa com Hans havia lhe dado novas esperanças, admissivelmente improváveis e completamente sem base, mas que não podiam ser esquecidas: elas quase eclipsavam até as de Barnabás. Se as seguisse, e não podia fazer outra coisa, então precisaria reunir toda a sua energia para não se preocupar com nada mais, nem com a comida, a casa, as autoridades da aldeia, nem mesmo com Frieda — e no fundo só se tratava de Frieda, pois todas as outras coisas só o preocupavam quando relacionadas a ela. Era por isso que precisava tentar conservar esse posto, que dava alguma segurança a Frieda e, visando a esse objetivo, não devia lamentar que suportasse da parte do professor mais do que costumava engolir. Nada disso era excessivamente penoso, fazia parte da cadeia contínua dos pequenos sofrimentos da vida, não era nada em comparação com aquilo a que K. aspirava e ele não tinha ido até ali para levar uma vida de honra e paz. Sendo assim, da mesma forma que estivera pronto para correr até o albergue, estava também disposto, diante da mudança de ordem, a arrumar primeiro a sala, para que a professora pudesse vir com a classe. Mas a limpeza precisava ser muito rápida, pois em seguida K. devia ir buscar o almoço, e o professor já estava com bastante fome e sede. K. garantiu que tudo seria feito segundo o seu desejo; um instante depois o professor observou como K. se apressava, afastando os leitos, repondo no lugar os aparelhos de ginástica, varrendo o chão voando, enquanto Frieda lavava e esfregava o estrado. O zelo parecia satisfazer ao professor, que chamou a atenção para o fato de que diante da porta estava preparado um monte de lenha para o aquecedor — certamente ele não queria mais deixar que K. tivesse acesso à reserva — e depois, ameaçando voltar logo para verificar as coisas, saiu para ir ver as crianças. Após um momento de trabalho em silêncio Frieda perguntou por que K. agora se submetia tanto ao professor. Era sem dúvida uma pergunta cheia de compaixão e preocupação, mas K., que estava pensando em quão pouco Frieda tinha conseguido protegê-lo das ordens e violências do professor, segundo a promessa inicial dela, disse laconicamente que, agora que havia se tornado servente de escola, precisava cumprir os deveres do posto. Depois o silêncio voltou, até que K., lembrando — justamente por causa da breve conversa — que Frieda permanecera tanto tempo como que perdida em pensamentos preocupados, sobretudo durante quase toda a conversa com Hans, perguntou-lhe abertamente, enquanto carregava para dentro a lenha do aquecedor, o que então a ocupava. Ela respondeu, levantando devagar os olhos para ele, que não era nada definido, que apenas pensava na dona do albergue e na verdade em muitas de suas palavras. Só quando K. a pressionou é que ela, depois de várias negativas, respondeu com mais precisão, mas sem com isso deixar de fazer o seu trabalho, coisa que realizava não por zelo, uma vez que o trabalho não progredia nada, e sim para não ser forçada a encarar K. E aí contou como a princípio ouvira calmamente a conversa de K. com Hans, como depois, com algumas palavras de K., ficou assustada, começando a entender mais claramente o sentido delas e como, a partir de então, não pôde mais parar de captar, no que K. dizia, confirmações de uma advertência que ela devia à dona do albergue, mas em cuja justeza nunca quisera acreditar. K., zangado com as generalidades de Frieda e mais irritado do que comovido com a voz chorosamente queixosa — sobretudo porque a dona do albergue outra vez se imiscuía na sua vida, pelo menos através das lembranças, já que até então tivera pouco êxito pessoal —, atirou no chão a lenha que carregava, sentou-se em cima dela e exigiu, agora com palavras sérias, plena clareza. — Muitas vezes — começou Frieda —, logo no início, a dona do albergue se empenhou para que eu desconfiasse de você; ela não afirmava que você mente; pelo contrário, dizia que você é infantilmente franco, mas que o seu modo de ser é tão diferente do nosso, que nós, mesmo quando você fala com franqueza, dificilmente conseguimos acreditar e, se uma boa amiga não nos salva antes, temos que nos acostumar por meio da amarga experiência. Até ela, que tem um olho agudo para as pessoas, não deixou de passar por coisa diversa. Mas depois da última conversa com você no Albergue da Ponte — repito aqui apenas suas palavras maldosas — ela desvendou seus truques, agora você não seria mais capaz de enganá-la, mesmo que se esforçasse para ocultar suas intenções. “Mas ele não esconde nada”, isso eu sempre dizia, e aí ela também afirmou. “Empenhe-se em escutá-lo de fato numa oportunidade qualquer, não apenas superficialmente, mas prestando uma atenção real.” Ela não fez nada mais que isso e no que me diz respeito escutou naquele momento mais ou menos o seguinte: você se insinuou junto a mim — ela usou essa palavra pejorativa — só porque cruzei o seu caminho por acaso, não o desagradei de todo, porque você também considera uma empregada de bar, completamente equivocado, a vítima predestinada de qualquer cliente que estenda a mão. Além disso queria passar a noite, naquela ocasião, na Hospedaria dos Senhores, por algum motivo, segundo a dona do albergue soube pelo gerente da hospedaria — e não havia absolutamente outro meio para consegui-lo senão por meu intermédio. Tudo isso teria sido motivo suficiente para me transformar em sua amante por aquela noite; mas a fim de que alguma coisa a mais resultasse disso, esse mais era Klamm.
.
.
.

                                                                 CONTINUA
.
.
.

A dona do albergue não afirma que saiba o que você quer de Klamm; afirma apenas que, antes de me conhecer, você tentava chegar a Klamm tão freneticamente quanto depois. A única diferença era que antes você estava sem esperança, mas agora acreditava ter em mim um meio confiável para abrir caminho a Klamm de maneira real, rápida e até com vantagem. Como me assustei! Mas foi só por um instante, sem razão mais profunda do que hoje, quando você disse que, antes de me conhecer, teria se perdido aqui. Talvez sejam as mesmas palavras que a dona do albergue usou; ela disse também que, desde que me conheceu, você se tornou consciente do seu objetivo. Foi o resultado, afirmou ela, de você acreditar que conquistou, na minha pessoa, uma amante de Klamm e assim ter em sua posse um penhor que só poderia ser resgatado ao preço mais alto. Negociar esse preço com Klamm era sua única aspiração. Já que você não tem nenhum interesse por mim, que tudo o que importa é o preço, está disposto a aceitar tudo em relação a mim, mas se obstina em relação ao preço. Por isso é indiferente que eu perca o lugar na Hospedaria dos Senhores, indiferente que eu também tenha de deixar o Albergue da Ponte e indiferente que eu precise fazer o trabalho pesado de servente da escola; você não tem mais delicadeza, nem tempo para mim, me abandona aos ajudantes, não sabe o que é ciúme, meu único valor para você é que fui amante de Klamm; na sua ignorância se esforça para não deixar que Klamm me esqueça para que no final eu não resista tanto quando chegar a hora decisiva; no entanto, luta também contra a dona do albergue, a única pessoa que você acha capaz de me arrebatar de você; por esse motivo leva ao limite a disputa com ela para ter que deixar comigo o Albergue da Ponte; você não duvida que, em qualquer circunstância, eu seja sua propriedade, na medida em que isso dependa só de mim.

.
.
.

.
.
.

A entrevista com Klamm é vista por você como um negócio, moeda contra moeda. Você calcula todas as possibilidades; uma vez que alcance o preço, está pronto a fazer tudo; se Klamm me quiser, irá me entregar a ele; se ele quiser que fique comigo, você ficará; se ele quiser que você me rejeite, você vai me rejeitar. Mas você também está disposto a representar uma comédia: se for vantajoso vai fingir que me ama para tentar combater sua indiferença ressaltando sua nulidade e envergonhando-o com o fato de o ter sucedido; ou então comunicando-lhe as confissões de amor que eu fiz em relação à pessoa dele, o que realmente aconteceu, e pedindo-lhe que me acolha de novo, certamente pagando o preço por isso. E se tudo o mais não der certo, você irá simplesmente implorar em nome do casal K. Mas é aí que você vai ver — concluiu a dona do albergue — que se enganou em tudo, nas suas suposições e esperanças, na idéia que tem de Klamm e das relações dele comigo; nesse momento vai começar o meu inferno, pois só então serei realmente a única propriedade de que você depende, mas ao mesmo tempo uma propriedade que provou ser sem valor e que irá tratar de forma correspondente, já que você não tem nenhum outro sentimento por mim a não ser o de proprietário. Tenso, a boca cerrada, K. tinha ouvido com atenção, a lenha debaixo dele havia rolado, ele escorregara quase até o chão sem ter notado, só agora se levantou, sentou-se no estrado, pegou a mão de Frieda, que tentava fugir fragilmente dele, e disse: — No relato que fez, nem sempre fui capaz de distinguir a sua opinião da opinião da dona do albergue. — Era apenas a opinião da dona do albergue — disse Frieda. — Ouvi tudo com atenção porque a venero, mas foi a primeira vez em minha vida que rejeitei totalmente a opinião dela. Parecia tão lastimável tudo o que ela dizia, tão distante de uma compreensão de como são as coisas entre nós! O que ela falava me dava a impressão, antes de mais nada, de que o correto era completamente o oposto do que dizia. Pensei na manhã sombria depois de nossa primeira noite. Como você se ajoelhou ao meu lado com o olhar de que então estava tudo perdido. E como depois se configurou de fato, por mais que eu me esforçasse para ajudá-lo, só o atrapalhava. Por minha causa a dona do albergue se tornou sua inimiga, uma inimiga poderosa, que você ainda continuava a subestimar; por minha causa, sendo obrigado a cuidar de mim, precisou lutar pelo seu posto, ficou em desvantagem com o prefeito, teve de se submeter ao professor, colocouse à mercê dos ajudantes, mas o pior de tudo foi que, por minha causa, você talvez tenha ofendido Klamm. O fato de querer sempre chegar até ele era só a aspiração impotente de aplacar Klamm de algum modo. E eu pensei comigo mesma que a dona do albergue, que sabe de tudo isso certamente muito mais do que eu, quis com as suas insinuações apenas me proteger contra auto-recriminações demasiadamente ruins. Esforços bem-intencionados, mas supérfluos. Meu amor por você teria me ajudado a superar tudo, teria no fim feito você avançar, se não aqui na aldeia, então em alguma outra parte; uma prova de sua força esse amor já deu, foi ele que o salvou da família de Barnabás. — Era essa portanto sua opinião contrária na ocasião — disse K. — O que mudou a partir daí? ...

 

 

                                                                  

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades