Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O CAVALEIRO DA ESPERANÇA
Escrito em 1942, durante a vigência da ditadura do Estado Novo, com o objetivo fundamental de servir à causa da anistia aos presos (e exilados) políticos, O Cavaleiro da Esperança — Vida de Luiz Carlos Prestes circulou amplamente no Brasil, mesmo antes do lançamento de sua primeira edição em língua portuguesa, através da tradução em espanhol, publicada naquele mesmo ano. Cumpriu, creio eu, o objetivo visado, concorrendo para popularizar e intensificar a campanha pela anistia naquele então apenas iniciada. No correr do tempo, sucederam-se edições e traduções.
A contingência política resultante do golpe de estado de 1964, com o estabelecimento da ditadura militar, retirou O Cavaleiro da Esperança das livrarias brasileiras, às quais retorna agora, com o mesmo objetivo que o inspirou: servir à causa da anistia aos presos (e exilados) políticos, campanha que é novamente a mais urgente e generosa bandeira de nosso povo.
Numa entrevista, há algum tempo, um jornalista perguntou-me se eu estaria de acordo em reeditar O Cavaleiro da Esperança, caso ocorresse tal perspectiva. Respondi que certamente o faria, assim fosse possível, pois sinto-me orgulhoso de ser autor deste livro que é, também, homenagem de estima e admiração a um brasileiro dos mais notáveis, figura que extralimitou de todas as diversas fronteiras onde o quiseram deter, para tornar-se uma legenda e um símbolo, no Brasil e pelo mundo afora. Sou velho amigo e admirador de Luiz Carlos Prestes, cuja vida parece-me exemplo de coerência e dignidade, de dedicação ao povo. Discordar de Prestes, combatê-lo, é direito de todos os seus adversários políticos. O que ninguém pode fazer, honradamente, é negar grandeza à sua presença em mais de meio século da vida nacional, o extremo amor ao Brasil, paixão a conduzi-lo numa extraordinária trajetória.
Pessoa amiga que somente agora leu este livro, achou-o ingênuo; a classificação não me desgosta. A ingenuidade não representa um mal maior; perigoso é o cinismo que vem se transformando em hábito no pensamento político do país. A condição ingênua destas páginas, escritas quando Hitler ameaçava dominar o mundo e a ditadura do Estado Novo parecia inabalável, nasce de minha obstinada crença no futuro.
Jorge Amado
Bahia, fevereiro de 1979.
INTRODUÇÃO COM RIMANCE E UMA NOTA
RIMANCE
Te contarei agora a história do Herói. Já te contei, amiga, a história do poeta, a poesia era a sua arma, ia na frente do povo. Foi no cais da Bahia, era noite de mil estrelas, lembras-te? Deste-me a tua mão direita, eu te contei a história do poeta Castro Alves. A grande lua no céu, o verde mar onde o refluxo das estrelas se confundia com o brilho das lanternas dos saveiros. Vinham sons de atabaque da nossa cidade misteriosa, Iemanjá espalhava sua cabeleira sobre o mar, também ela viera ver a lua cheia no céu da Bahia. E também ela ficou, junto com os marítimos, os estivadores, o cego que era poeta, os operários que descansavam de um dia árduo, os jogadores semiprofissionais e o negro tocador de violão, também Iemanjá ficou ao teu lado ouvindo a história do poeta. Cantei a minha louvação do poeta do povo e o povo me deu de beber e de comer. Os marinheiros trouxeram os mariscos, os estivadores trouxeram frutas e pão, cachaça dos vagabundos. O negro pinicou sua viola, o cego disse seu improviso. Os jogadores semiprofissionais partiram os baralhos sebentos e deixaram no seu reconhecimento e na sua bondade que eu ganhasse uma partida e aprendesse todas as marcas, mesmo as mais misteriosas, dos seus baralhos preparados.
Naquela noite veio música do cais, falava do mar, do supremo mistério do amor. Veio música da cidade, música negra das macumbas, falava de homens escravos e da suprema beleza da liberdade. Iemanjá saiu da sua encantada morada e veio para junto de nós, era a poesia de repente conquistada. E tu me deste teu corpo nas areias do cais e nele descansei minha cabeça, cobri as estrelas, a lua, os homens e Iemanjá com o manto dos teus cabelos, e repousei em ti, negra minha, nas areias do cais da Bahia.
Cantei a minha louvação do poeta do povo e o povo me deu comida para a minha fome, bebida para a minha sede, negra para o meu desejo. E sobre todos nós brilhava no céu a estrela matutina que era o coração do poeta Castro Alves junto aos homens se libertando.
Tempos depois, estávamos no mar, tu me disseste: "Havia outra estrela no coração dos homens e havia um negro, gigantesco e risonho como os negros dos teus romances, que tinha um enorme P tatuado no peito. Saía uma estrela do seu coração. Como nas histórias que narras, mas só que dessa vez era tudo verdade. Por que havia tanta esperança boiando sobre nós nessa noite do cais da Bahia?"
Uma estrela existia e não era a estrela matutina, brilhando do alto dos céus, não era uma luz na noite do passado. Tu a sentiste, vinha mesmo do peito dos homens, dos operários que descansavam, dos marítimos que cheiravam a maresia e tinham os olhos ardidos do vento do mar, do soldado que amava u´a mulata nas areias do trapiche, vinha da terra, uma luz de presente, uma luz de esperança, uma luz de futuro. Tu a sentiste na noite, boiando no ar, vinha do povo sentado na areia.
Várias vezes vimos essa estrela, amiga, nas nossas viagens de feira em feira no Brasil. Certa vez — era noite de chuva e vento — íamos pela rua pobre de uma cidade distante, íamos curvados, teu corpo bem junto ao meu. Do escuro de uma sala, através da madeira das janelas, o rumor de vozes de homens em uma prática amarga chegava até nós. E, de súbito, na sala alguém disse um nome. E desapareceu a amargura e o desespero, ficou só a esperança. Também sobre nós, sobre a chuva e o vento, brilhou na rua pobre uma estrela. Houve uma alegria de primavera na noite chuvosa de inverno. Outra vez nós vimos os homens que iam presos. Sorriam, não eram ladrões, nem assassinos, não exploravam mulheres, nem vendiam tóxicos. Os que os levavam eram ladrões, assassinos, exploravam mulheres e vendiam tóxicos e eram a polícia. Os presos sorriam, as mulheres que os viam passar choravam, os homens apertavam os punhos. Alguém murmurou um nome, o nome de outro preso. E a esperança brilhou no sorriso dos que iam presos, nas lágrimas das mulheres, nos punhos cerrados dos que ficavam. Luz de uma estrela que empalideceu os assassinos, ladrões, cáftens, cocainômanos que eram a polícia.
Na noite do Brasil, amiga, vimos uma estrela que brilha e ela anuncia os raios e a tempestade do povo e anuncia também a manhã de bonança e de alegria. Estrela da esperança.
Vou te contar, amiga, a história dessa luz, dessa estrela, dessa esperança. Muitas vezes me perguntaste se era Pedro Ivo, se era Tiradentes, se era o negro Zumbi dos Palmares, algum dos heróis cantados pelo poeta Castro Alves. Na noite do cais da Bahia, um negro sorria, ele tinha um P tatuado no peito, ele sabia da verdade. "Seria um milagre?", me perguntaste. "Ê um milagre", eu te respondi.
Um milagre do povo, amiga! Nós que somos vagabundos dos caminhos do Brasil, que o cortamos em todas as direções em todas as conduções, nós temos visto diariamente novos milagres, espantosos milagres do povo. Aqueles que não crêem no povo são os que não mais crêem na poesia e no heroísmo. E o povo realiza cada dia novos milagres de poesia, novos milagres de heroísmo.
Um dia o povo negro do Brasil, escravo e desgraçado, fez o milagre de poesia que foi o poeta Castro Alves. Um povo que não podia falar precisando de uma voz que clamasse. Fez o milagre da mais bela das vozes.
E muitos anos depois; todo o povo do Brasil, escravo e desgraçado, o povo negro, o povo índio escondido no fundo da floresta, o povo branco, o povo mulato que é o povo mais lindo do mundo, povo de mãos e pés atados, com sede, com fome, sem livros e sem amor, fez o milagre de heroísmo que é Luiz Carlos Prestes, P no peito dos negros, no coração dos soldados da Coluna, luz no coração dos homens, operários, marítimos, camponeses, poetas, sambistas, tenentes e capitães, romancistas e sábios. Luz no coração dos homens, das mulheres também, estrela da esperança. Um povo escravo precisando do seu Herói. Fez o milagre do maior dos Heróis.
Herói, que coisa tão simples, tão grande e tão difícil! Herói, que palavra mais linda! Só o povo, amiga, concebe, alimenta e cria o Herói. Nasce das suas entranhas que são as suas necessidades.
Nasce do povo, é o próprio povo no máximo das suas qualidades. Como o poeta, vai na frente do povo. O Poeta e o Herói constroem os povos, dão-lhes personalidade, dignidade e vida. São momentos supremos na vida de uma nação e na vida de um povo. Tão necessários como o ar que se respira, a comida que se come, a mulher que se ama. Por isso os inimigos do povo, os traidores do povo, os que o querem enganar e desgraçar, tentam apresentar poetas e heróis nas praças públicas. Mas, amiga, esses são falsos heróis e falsos poetas. O Poeta está na praça quando o povo clama, pedindo liberdade. O Herói está na frente do povo quando o povo se levanta, conquistando liberdade. Os outros são fabricados, poetas incensadores dos tiranos, nascidos de um setor de classe, vendidos por migalhas de pão de mesas ricas, capados no seu poder criador igual a um capão que tem a plumagem tão linda como um galo mas não tem nenhuma força viril. E os que, coroados de louros, se apresentam como heróis são apenas tiranos sobre o povo, em dramático carnaval. Nunca te enganarás, amiga, porque o povo nunca se engana. Ele sabe como é a voz dos seus Poetas, por que é a sua própria voz. Ele reconhece a figura dos seus Heróis, por que é a sua própria figura. Não importa que literatos vendidos se apresentem como Poetas, que o tirano se apresente como o Herói. O Povo os repele e se afasta deles. Não ouve a voz dos literatos, nem fixa o gesto teatral dos tiranos. Seu coração e seu pensamento estão com o seu Poeta e o seu Herói, sua voz e seu braço.
Vê, negra, que os tiranos mascarados de Heróis, cercados de polícia, cercados de literatos vendidos mascarados de Poetas, clamam sobre os mares, os campos e as cidades do mundo para o povo. Tu choraste um dia sobre o destino do Brasil. Campos que amamos, que conhecemos nas suas plantações de cana, de milho, de cacau, de café e de algodão, cidade e povoados tão líricos, usinas e fábricas, mares dos saveiros, das canoas e dos navios, livros dos romancistas e dos sociólogos, sobre tudo isso a pequena sombra mesquinha da tirania se estendeu, sujando e envilecendo a paisagem física e a paisagem humana. Os anos de terror e de desgraça, de escravidão e de miséria rolaram como uma capa sobre o Brasil.
Tu choraste um dia, negra, quando alguém que nos era caro se vendeu, vestiu ele também sua camada de lama. Durante um momento perdeste a confiança e desejaste morrer já que tudo era tão podre e tão vil. E então eu te prometi contar a história do Herói, aquele que nunca se vendeu, que nunca se dobrou, sobre quem a lama, a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca deixaram rastro. E como ele é o próprio povo sintetizado num homem, é certo que o povo não se vendeu nem se dobrou. Como ele o povo está preso e perseguido, ultrajado e ferido. Mas, como ele, o povo se levantará, uma, duas, mil vezes, e um dia as cadeias serão quebradas, a liberdade sairá mais forte de entre as grades. "Todas as noites têm uma aurora", disse o Poeta do povo, amiga, e em todas as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora, guiando os homens até o amanhecer. Assim também, negra, essa noite do Brasil. Tem sua estrela iluminando os homens. Luiz Carlos Prestes. Um dia o veremos na manhã da liberdade e quando chegar o momento de construir no dia livre e belo, veremos que ele era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança; calor no dia, certeza.
Te contarei a história do Herói, amiga, e então não terás jamais em teu coração um único momento de desânimo. Como naquelas noites em que o seu nome, balbuciado por vezes a medo, afastava a amargura e o terror, agora eu falarei dele para que tu e o povo do cais que me ouve saibam que podem confiar e que a noite não é eterna. Eterno no mundo, amiga, só o povo e a memória dos seus Heróis e dos seus Poetas. Ê curto o tempo dos tiranos, é curta a noite da escravidão. E tão bela ê a manhã da liberdade que vale a pena morrer por ela, dar a vida pela certeza de que ela vem, que chegará para os homens. Mas, ah! amiga, morrer é fácil, seja por uma mulher, seja pela liberdade! Difícil é viver uma vida de sofrimento e de luta, sem desanimar e sem desistir, sem se vender, sem se curvar. Mais que a morte, a liberdade pede a vida de cada um, todos os seus momentos, todas as suas forças.
Assim fez Prestes, amiga. E assim o está fazendo. Tudo lhe ofereceram, não se vendeu. Todos os bens da vida na sua frente, não se vendeu. Tudo lhe fizeram, não se curvou. Todos os sofrimentos na sua frente, não se curvou.
Cortou o Brasil com os seus soldados, general do povo. Cortou os caminhos do exílio, seu coração estava com o povo do seu país. Voltou um dia, um raio cortou a noite do Brasil. Têm-no num cárcere, é o povo encarcerado. Um dia sairá, será o povo se levantando, rompendo as cadeias da escravidão. É o povo num homem. O Herói que o povo concebe, alimenta e cria: Luiz Carlos Prestes.
Sua mãe no exílio com suas irmãs. Sua esposa, prisioneira dos nazistas, num campo de concentração. Sua filha nascendo na prisão, crescendo no exílio. Esse, amiga, sabe viver pela liberdade e pelo povo.
E se em qualquer momento nosso pobre coração sente fraquejar diante do sofrimento e deseja a morte para se afastar de toda a dor e de toda a imundície, então basta pensar por um minuto naquele que se chama Luiz Carlos Prestes e que, em meio à suprema dor e à suprema imundície, sofrendo, vendo os seus sofrerem, vendo o povo sofrer, vendo outros morrerem, cederem ou se venderem, continua de pé, sua vida. pela liberdade. E então teremos novas forças, coragem, esperança. Esperança, amiga.
Chamaram-no Cavaleiro da Esperança, nome que o povo lhe deu. Estrela na noite negra, temporal do povo, raio na escuridão, vento noroeste que sacode a tirania, adivinhado pelo gênio dos poetas do passado, Cavaleiro da Esperança. Dá-me tua mão, amiga, te contarei a história de Luiz Carlos Prestes.
Bem sei, negra, que essa não é uma noite do cais da Bahia. Diferente é esse cais, são outras suas estrelas, onde está a lua nessa noite fria? Noite de exílio no cais de outra terra. Não importa, amiga. Não importa que os homens desse cais falem outra língua e cantem outras canções. Assim como sentimos a beleza das canções que cantam os marinheiros de todo o mundo, assim eles entenderão a história que te vou contar. O povo desse cais se reunirá em torno de mim, igual ao povo do cais da Bahia. E me dará de comer e de beber e tocarão seus instrumentos de música e dirá seus improvisos. E depois de ouvir a história do Herói, os homens levantarão as mãos, altearão as vozes e clamarão, sobre os mares e as montanhas, pela sua liberdade. Porque, amiga, o povo é o mesmo em qualquer porto do mundo, na beira de qualquer cais, sob qualquer céu: bom e forte, generoso e compreensivo, amando a liberdade, a beleza e o heroísmo. Não, amiga, não é uma noite de exílio num cais estranho. Nunca estarei entre estranhos e no exílio desde que esteja junto ao povo, falando para ele. Por isso te conto daqui, longe do cais da Bahia, essa história. Aprende nela uma lição de coragem e de fidelidade ao povo e à liberdade. E saberás então por que se pode deixar a pátria e as pessoas que amamos e partir para outras terras ou para os cárceres e ainda assim ser feliz. Nunca é caro, amiga, o preço da liberdade, mesmo quando é mais que a morte, é a vida no exílio ou na prisão.
Nesse cais distante dá-me tua mão esquerda, ouve a história do Herói.
NOTA
Como senti necessidade de escrever uma biografia de Castro Alves, da mesma maneira achei que era meu dever de escritor, perante o povo do Brasil, escrever uma biografia de Luiz Carlos Prestes. Esse parêntesis que faço no meu trabalho de romancista para escrever a biografia de um Herói e a de um Poeta eu o encontro sumamente honroso para mim. Ontem, no Brasil em efervescência, o povo se levantando, lutando e construindo a revolução, estava muito bem que eu me preocupasse apenas com as figuras de romance que simbolizavam a luta, o sofrimento, a vida do povo. Hoje, quando o nazismo sangrento e assassino ameaça a própria existência de nossa Pátria, achei que devia falar para o povo sobre as figuras que ele produziu e que nunca foram sufocadas, as que construíram liberdade.
Falei primeiro do Poeta, aquele que fez a Abolição e a República, que cantou as Revoluções que haviam de vir, gênio e profeta de um povo. Queria apresentar ao povo o seu Poeta na sua inteireza. E ao mesmo tempo queria ver se, com o exemplo de Castro Alves, era possível salvar uns restos de dignidade e de honra na degradação por que está passando parte da literatura brasileira, dia a dia se entregando às forças da reação. E quis que o povo soubesse que existem artistas que nunca se entregaram, nunca se. venderam, que lutaram sempre, longe deles os mesquinhos interesses. Por isso falei de Castro Alves, artista do povo, social, político interessado, revolucionário. E, por isso mesmo, genial. Ao entregá-lo ao carinho do povo, quis também deixar marcada a sua tradição literária para os escritores novos que surgem no Brasil e que se encontram, nesse triste momento, diante de forças intelectuais em decomposição, vencidas ou pelo medo ou pelo suborno, pregando a volta às formas caducas e reacionárias da "arte pela arte", afastando criminosamente a literatura do povo.
Falo agora de Luiz Carlos Prestes, trago para junto do povo a sua figura de Herói, nascida do povo e na frente do povo. Um exemplo para todo o Brasil. Por maior que possa ser a sujeira sob a ditadura, a dignidade de Prestes, por si só, é suficiente para lançar uma luz sobre esse charco, uma luz de esperança. Quando o povo do Brasil vê uma geração de homens se entregar, nada melhor que mais uma vez apontar para Luiz Carlos Prestes.
Por outro lado esta biografia representa o pagamento de uma dívida. Muito se tem falado nos motivos que resultaram na moderna literatura brasileira, na novelística e na crítica. Inúmeros artigos e ensaios se têm escrito sobre isso e não sei de nenhum que ligue o nome de Luiz Carlos Prestes a esse movimento. No entanto ninguém teve em relação a ele uma importância maior, uma influência mais decisiva. A moderna literatura brasileira, aquela que deu os grandes romances sociais, os estudos de sociologia, a reabilitação do negro, os estudos históricos, resulta diretamente do ciclo de movimentos iniciado em 22 que só encontrará seu término com o pleno desenvolvimento da revolução democrático-burguesa, 22, 24, 26, 30 e 35 trouxeram o povo à tona, interessaram-no nos problemas do Brasil, deram-lhe uma ânsia de cultura da qual resultou o movimento literário atual. E como Luiz Carlos Prestes foi e é a figura máxima de todos esses movimentos, chefe, condutor e general, a sua ligação com a moderna literatura brasileira é indiscutível. E essa literatura não tratou dele, da sua figura em nenhum momento. Ê justo que o "modernismo", movimento dos oligarcas paulistas, não tomasse conhecimento de 22 e 24. Creio que só a voz de um poeta se levantou para cantar a Coluna Prestes. Foi Raul Bopp, e os seus poemas com essa temática até hoje se encontram inéditos. E só um romancista descreveu a vida do Brasil de então, ligando-a aos acontecimentos revolucionários: Pedro Moita Lima, com Bruhaha. A vitória do movimento armado de 30 permitiu que este e as lutas anteriores produzissem seus frutos literários; toda a moderna literatura do Brasil, voltada, ao contrário do "modernismo", para as realidades cotidianas, voltada para o povo. Com o surgimento da Aliança Nacional Libertadora toda essa literatura, que se iniciava, encontra o seu apoio num movimento de massas e pode atingir seu máximo. Com Prestes. O fracasso da insurreição de 35, a prisão de líderes revolucionários e de Prestes, vem paralisar essa literatura. Ainda produziu ela alguns livros, com a força que restava do movimento da Aliança. A implantação do Estado Novo em 1937 traz o suborno como arma política. A compra de uma literatura. Os escritores mais nobres silenciam, impedidos de falar. Outros se vendem. Outros ainda se limitam, abaixam a voz numa última tentativa de dizer alguma coisa. Quando Prestes deixar a prisão, libertado pelo povo, e as massas brasileiras voltarem à rua, esse movimento literário voltará à vida, renascerá com certeza com maior força e já com uma imensa experiência literária, sobrepujadas as suas falhas, vencidos os seus erros.
Esta biografia vale assim também como o pagamento de uma dívida de toda uma geração de escritores para com um líder do povo. Muito devemos a Luiz Carlos Prestes, com esta louvação quero lhe pagar uma parcela dessa dívida.
Esse é, no entanto, o menor dos motivos que me levam a escrever este livro. O mais importante de todos é o meu amor ao povo, ao seu heroísmo, à sua beleza. Como escritor tenho uma enorme dívida para com o povo. Tudo de belo e de forte que possam ter meus livros eu o aprendi com o povo. E com ele aprendi a amar Luiz Carlos Prestes. Era ainda um menino de internato quando o seu nome lendário chegou pela vez primeira aos meus ouvidos. Desde então não mais deixei de ouvi-lo e de me apaixonar pela aura de heroísmo, de dignidade humana, de estranha beleza, que o rodeava. Esse homem, que era amado por gente de todas as classes, que era uma palavra de ordem para o povo, foi uma das figuras que encheram a minha adolescência e a minha juventude. E que encheria depois a minha vida política, seu soldado que fui na Aliança, e que ainda sou hoje, minha maior honra. Essa a maravilha do sortilégio de Prestes. Não é apenas um herói para a juventude. Se conserva íntegro e completo pelo tempo afora. Cada vez maior.
A primeira vez que prometi escrever este livro foi em 1938, num ônibus que ia de Estância a Aracaju, em Sergipe. O chofer havia sido da Coluna Prestes. Fora depois da Aliança. Falávamos de Prestes e ele me perguntou por que eu não escrevia a vida do Herói. Desde esse dia tenho sentido cada vez mais urgente essa necessidade. Como uma necessidade do povo. E a realizo hoje, feliz de ter cabido a mim a tarefa de falar sobre o maior dos homens do meu país. E muito mais feliz por isso acontecer num momento em que, por miseráveis moedas, alguns escritores brasileiros fazem, envergonhados, a apologia do regime cujo processo de decomposição e de desagregação desmoraliza o Brasil. Há muito que, enojado, me afastei desses escritores. Disse uma vez que uma coisa me ligava poderosamente a Castro Alves e que por isso escrevia sem medo a sua biografia: a fidelidade ao meu povo, às suas lutas e aos meus ideais. Repito isso de referência a Prestes. Como ele, tenho sido fiel ao meu povo. E é essa fidelidade que me leva hoje a escrever a sua vida.
Diante da sua enorme figura não me sinto amedrontado. Ante ele ninguém sente medo. Infunde coragem e vontade de vencer. Nunca medo diante dele, sempre amor. Escrevo sem receio. Existirão as falhas literárias, ninguém sabe melhor dos meus defeitos de escritor que eu mesmo. Mas também sei que nunca tomei da minha pena senão para tratar de assuntos que amo, que nunca minha voz se dirigiu senão ao povo e que nunca foi beber em outra fonte que a da sabedoria popular. Um escritor do povo falando sobre um líder do povo tem sempre a certeza de que fará uma obra útil. Sei que deste livro que inicio a figura de Prestes saltará inteira. Ê o que me importa. As fronteiras técnicas da biografia, que os críticos amam impor, não me interessam como nunca me interessaram as fronteiras marcadas para o romance. Em geral os críticos não escrevem nem romances, nem biografias, e quando as escrevem são romances ou biografias medíocres.
Outra coisa: este não é nem pretende ser um livro frio. Não analiso uma figura distante no tempo e distante na minha afeição. Nunca trataria de uma figura que não amasse. Este é um livro escrito com paixão, sobre uma figura amada. E, quanto ao equilíbrio e à imparcialidade, de referência a Luiz Carlos Prestes são coisas que não se faz necessário medir. Porque nele os lados negativos não surgiram nunca, nem nos dias de luta, nem nos dias de triunfo, nem nos dias de prisão, esses dias que despem o homem de todas as capas artificiais e o colocam nu nos seus verdadeiros sentimentos. Neste dias Prestes apareceu ainda maior e mais Herói.
Falo dele com admiração, com entusiasmo e com fé. Não falaria sobre ele se não o amasse, não confiasse nele. Falo dele como um escritor do povo sobre um condutor do povo. Com liberdade e com amor.
1ª. PARTE
O menino pobre
"En la orilla del dia nació Luiz Carlos Prestes.
Es como si os dijera, nació un rio."
JOSÉ PORTOGALO.
NESSAS terras do sul ele nasceu, amiga. Aqui, nesses campos que se estendem em busca do infinito, correm livres os animais e as lendas. É o pampa, planície sem fim, melancólica e suave; o céu azul, azul de impossíveis comparações, o campo verde, verde de todos os matizes, onde pastam os bois calmos, onde correm nervosos cavalos. Aqui nascem os homens valentes, amiga, aqueles que deixam um rastro de lenda na sua passagem. É o país do Rio Grande do Sul, dos caudilhos, das revoluções, da coragem sobre todas as coisas.
Nessas terras do sul ele nasceu. Nessas terras deixaram a marca dos seus passos a brasileira Anita Garibaldi e o italiano Giuseppe Garibaldi. Esse aprendeu liberdade e democracia nessas terras do Rio Grande, no seio dessa brasileira Anita. Os dois nos seus cavalos, à frente dos gaúchos. História do Rio Grande, saborosa como uma lenda, heróica como uma epopéia. O amor misturado com as revoluções, as cavalgadas partindo dentro da noite, poeta morrendo nos campos de luta.
1 Nessas terras ele nasceu.
Houve uma revolução, ela se chamava de "Farrapos". Houve uma República nessas terras, quando ainda as forças reacionárias do Império eram donas do país. Luta de anos, os gaúchos dando sua vida pela liberdade. Caindo nos campos, junto com os seus cavalos. Sangue empapando essas terras, dando-lhes o imortal sentido da liberdade. Os caudilhos na frente dos seus homens. As noites eram então, amiga, cheias do tropel das colunas partindo, os cascos dos cavalos arrancando a erva do chão. Durante anos e anos nasceram em caudilhos nas terras do Rio Grande. Homens que chefiavam os demais, coragem e decisão. Uma palavra na boca: liberdade. Os gaúchos seguiram sempre essa palavra quando a pronunciam homens corajosos. Amavam-na como a nenhuma outra, como amavam a coragem sobre as demais virtudes. A voz de tribunas sobre esses pampas falando de República. Os gaúchos aprenderam essas palavras, aprenderam ainda mais esses exemplos. Nunca vacilaram, que não é próprio dos gaúchos a vacilação. Esses fazendeiros de gado a quem se misturaram a partir do século XIX os imigrantes europeus, esses brasileiros que durante anos haviam vivido confinados nas suas fazendas, em contato somente com a natureza e os animais, o cavalo sendo quase um complemento das suas pernas, se sentiam os guardiões das fronteiras sulistas do Brasil, já que essas terras marcavam os limites da pátria e o começo de outros países. Um dia vieram para a Corte, quando a Corte se estabeleceu no Rio, nos tempos ainda do vice-reinado. E se transformaram em políticos, em oradores, em parlamentares, homens cujo talento ganhava fama nos "salões do Rio de Janeiro de D. João VI, nos salões de Pedro I e de Pedro II. E na terra do Rio Grande, nas fazendas feudais, sob o calor dessas palavras, sob a ação imediata das necessidades desses fazendeiros e dessa economia rural, os homens se transformaram em revolucionários, os cavalos cortando a noite do pampa, as figuras românticas dos caudilhos ganhando legenda pelo país afora. Nesse tipo de economia rural agropastoril, haviam de florescer os governantes patriarcais. Mas havia de florescer também, amiga, o amor à liberdade e à luta, a rebelião contra essas fórmulas feudais de governo. Essas terras do sul estão encharcadas de sangue revolucionário, é vermelha a raiz desses pastos e dessas árvores.
Melancólicas lendas do sul, melancólicas como a sua natureza. O deus amado desses gaúchos é o Negrinho do Pastoreio, o mais sofredor dos heróis das lendas brasileiras. O menino negro que morre vítima dos maus-tratos do senhor e revive;, pelos pampas nas noites silenciosas de bois e de estrelas. Ele vai, negrinho sacrificado às torturas da escravidão, na frente dos cavaleiros rebeldes, a música do tropel dos cavalos é doce música para seus ouvidos. Essa economia atrasada que daria os tiranos, daria também os grandes revolucionários. Sofrendo ditaduras longas, o gaúcho aprenderia o amor à luta, à liberdade, faria de um menino negro, escravo e infeliz o herói dos seus cantos, o mais terno dos deuses da gente brasileira.
Esses campos do sul, essas terras dominadas e indomáveis, explodiriam em tiranos e em revolucionários. Nessas terras, amiga, dessa economia, nasceram os tiranos. Filhos de dono de fazenda, senhores feudais, de alma escravocrata, da raça daqueles que mataram o menino negro, dos torturadores do Negrinho do Pastoreio. Fazendeiros, feudais, pais de família da época patriarcal, donos do destino dos seus homens, senhores da terra, da vida e da morte, o lado reacionário, atrasado, odioso da raça dos gaúchos. O dono da terra, o que nunca viu um livro, o que desconfia das cidades c do progresso, aquele que dos animais e da natureza não aprende senão os maus ensinamentos, as manhas e as espertezas. Da raça dos que mataram o Negrinho do Pastoreio. Os senhores da terra traziam todos eles gotas de sangue do Negrinho do Pastoreio nas suas mãos. E no coração o desejo de dominar os homens, sob chicote, como dominavam os pacíficos bois do pampa sem fim. Sonho eterno dos tiranos que nasceram nessa terra. Sonho impossível, porque como n m rio subterrâneo corre nas planícies do Rio Grande o sangue dos revolucionários caídos na luta.
Mas, amiga, aqui também haviam de nascer os homens da revolução. Pela mesma causa por que nasciam os tiranos: porque os homens eram tratados como animais, valendo menos que um boi de raça, que um árdego cavalo. Haviam de nascer também os que fizeram do negrinho sacrificado o seu deus, estes que o levaram como uma bandeira na frente das suas cavalgadas, estes que haviam de aprender da natureza, dos animais e dos homens escravizados, o amor à vida livre, os que aprenderiam as grandes lições. Os que fariam as cidades, sairiam das fazendas para aprender e depois voltar aos pampas com a sua experiência e então levantar os homens e na sua frente partir para derrubar os tiranos e tornar a vida melhor, mais digna e mais bela. Em nenhum lugar do Brasil, amiga, a escravidão e a liberdade se encontraram tantas vezes no campo de luta como nessas terras. Nasceram mulheres, nasceram homens e esses traziam o sangue do Negrinho do Pastoreio não nas mãos mas no coração, como um desejo de vingança e de justiça. E o desejo de libertar os homens do chicote dos senhores, dos donos da vida e da morte. Sonho eterno dos homens dessa terra. Sonho que é a realidade cada dia, que é a luta de cada instante. Porque como um rio, corre por estas terras o sangue dos que morreram na luta pela liberdade. Nessas terras do sul, amiga, nasceu Luiz Carlos Prestes. E seu nascimento marca o instante em que começa o fim do tempo dos tiranos. Seu nascimento é a prova de que a raça dos esmagados já tinha adquirido suficiente força para derrubar os tiranos e ganhar a liberdade. Porque essa raça já tinha tanta forca e tamanha necessidade que, por fim, havia produzido o Herói. O Negrinho do Pastoreio, bandeira de escravos, desapareceu nesse dia 3 de janeiro de 1898 da frente dos seus homens. Porque outra bandeira surgira, bandeira dos homens livres. No momento em que ele nasce começa uma nova época para todos os escravos do Brasil. Com ele chega o momento da luta final, o terrível e maravilhoso momento da última batalha.
Nessa terra do sul, amiga, nasceram os tiranos, aqueles que, partindo da sua fazenda, do chicote sobre os bois e a espora sobre os ginetes, haveriam de chicotear e esporear, humilhar, desonrar e desgraçar a raça brasileira.
Nessas terras do sul, amiga, nasceu o herói, e aquele que, partindo do meio dos homens escravizados do campo, dos homens explorados da cidade, haveria de animar e levantar, dignificar, dar consciência e libertar o povo brasileiro. Nessas terras do sul, amiga, do sangue do Negrinho do Pastoreio, do sangue dos homens vivendo como animais do pampa, do sangue dos revolucionários do passado, do sangue de Anita Garibaldi, do sangue dos homens sacrificados na cidade, nasceu Luiz Carlos Prestes.
Um dia, amiga, um menino de treze anos fugiu de casa para sentar praça no exército como simples soldado. A mãe aristocrática chorou lágrimas de desespero no seu orgulho ferido. O seu sangue azul se revoltava contra a idéia daquele filho em tão plebéia profissão. Um seu avô fora guarda-roupa do Imperador e esse nobre emprego doméstico lavara no sangue da família Freitas Travassos as possíveis manchas negras ou indígenas, deixando-o azul, de um puro azul aristocrático. Sobre o retrato do antepassado que tivera a honra de calçar meias no Imperador, de ajudá-lo a vestir o sobretudo, rolavam as lágrimas desesperadas de Luísa de Freitas Travassos. Nessa hora ela nem se lembrava que diante desses seus sobrenomes havia um outro, mais humilde, de sangue apenas vermelho, o apelido Prestes. E quando se lembrou foi para lhe atribuir a culpa daquela fuga do menino, daquela sua vocação para soldado como o filho de qualquer taverneiro. Agora o neto do guarda-roupa do Imperador aparecia envergando a humilhante farda de soldado raso. Luísa fitou o retrato do nobre com remorso. A culpa fora dela. Casara com um plebeu de posição, é verdade, mas em cujas veias corria não o sangue azul aristocrata da Corte, mas sim o sangue artesão de um calafate profissional. Daí esse instinto vulgar do filho. Desde criancinha se lhe metera na cabeça aquela idéia de ir para o exército, de ser soldado. Diante da sua resolução obstinada ela por fim cedera, mas sob a promessa de que pelo menos ele começasse do alto, entrasse para a Escola Militar como cadete, ao que tinha direito, devido ao seu sangue azul. Ser militar já era uma vergonha para a honra da família, acostumada a empregos no Paço, a olhar com desprezo qualquer profissão que não fosse a honrada, a rendosa e descansada profissão de parasita da Corte. Qualquer profissão, qualquer trabalho, amiga, era para Luísa quase um insulto. O homem, a seu ver, nascera para as intrigas da Corte, para os galanteios refinados, as polcas dançadas com a maior arte, os ditos de espírito sendo toda uma difícil ciência. Esse, sim, era um serviço para um aristocrata, a sua natural vocação, algo verdadeiramente distinto e refinado. Olhava com desprezo toda outra classe de trabalhos. Mesmo o trabalho de distribuir justiça, que fora o trabalho cotidiano do seu marido. Não. Não fora para isso que Deus criara, no seu momento de melhor inspiração, a classe privilegiada dos nobres. Criara-os para que eles enchessem a terra com a sua graça, com o seu talento, a sua fidalguia, a delicadeza das mãos tratadas, da pele macia quase impossível de distinguir entre os homens e mulheres. Por vezes dizia isso ao marido, amiga, e o juiz Antônio Pereira Prestes, o "velho Dr. Prestes", como chamavam em família e na cidade de Porto Alegre, sorria seu sorriso entre irônico e bondoso, e falava:
— Dona Luísa, vosmecê esquece que muitos desses fidalgos têm um sangue bem misturado... e o cabelo nada sedoso... Quanto a mim, Dona Luisa, francamente muitas vezes prefiro esses bons negros escravos...
Dona Luísa de Freitas Travassos tinha um sublime olhar de desprezo. Acima daquelas ironias do marido estava o insinuante sorriso e o soberbo porte do seu antepassado que saltava, parecendo vivo, do retrato a óleo na parede da sala, um sorriso feliz de quem acabara de entregar a D. Pedro o lenço de cambraia finíssima para que ele assoasse as ventas imperiais, esse sorriso e a graça desse porte bastavam para situá-la muito acima das plebéias ironias do velho Dr. Prestes. Casara com um plebeu, o coração não sentiu a voz azul do seu sangue, gostou daquele advogado brilhante e culto, a quem todos acatavam pelo conhecimento do direito que possuía a quem todos vaticinavam uma brilhante carreira. Não era nobre mas o seria um dia, com certeza; ali estava o Imperador, em nome e em lugar de Deus, para limpar com um decreto o sangue dos seus fiéis e dar-lhe a cor de um céu azul sem manchas. Não era nobre, diziam os seus parentes molestados. Ainda era muito viva a lembrança do calafate, trepado no costado dos barcos, no trabalho ignominioso de operário. Um trabalho a soldo... Sobre os ouvidos fidalgos de Luísa a voz das tias, a voz dos tios, o sorriso mofador dos primos nobres, o cochichar sem fim das primas, das amigas, das conhecidas da Corte. Mas, ah!, negra; o amor é maior que qualquer orgulho e que qualquer preconceito. É capaz de fazer uma nobre descendente de um guarda-roupa do Imperador dividir seu leito com o filho de um calafate. Demais— pensava Luísa nas suas noites de indecisão — um dia, triunfante, respeitado, rico e conhecido, o seu advogado teria das mãos do monarca o prêmio de um título de visconde ou de barão que jogaria para as lonjuras do passado a opressora recordação do calafate trepado no costado de um barco, na popa de uma canoa, na proa de um navio. Um navio... Uma caravela cortando os mares... Sim, até podia fazer desenhar no seu escudo de armas o perfil de uma caravela, as brancas velas abertas ao vento do oceano, as vagas rebentando ao seu encontro. E então a história de um filho de calafate seria invenção de inimigos anônimos e covardes e subsistiria a lenda dos fidalgos portugueses que atravessaram o oceano nas frágeis caravelas para a aventura das descobertas dos mundos desconhecidos. E um dia entregou a fidalga mão ao filho do calafate e foi viver com ele na cidade de Porto Alegre, onde Antônio Pereira Prestes se fez o mais estimado e conceituado dos juizes. A sua familiaridade com as leis, seu conhecimento das matérias do curso jurídico, e, mais que tudo, o seu inato senso de justiça, a independência de caráter que herdara do pai calafate, fizeram dele um homem popular na cidade, espécie de exemplo de caráter reto, de homem cumpridor dos seus deveres, em que o senso da honra só era igualado pelo senso da justiça, a verdadeira justiça, não aquela que se apóia somente na lei, mas a que tem raízes igualmente na bondade e no conhecimento da vida desigual dos homens.
As sentenças do Dr. Prestes não morriam no ambiente provinciano da então pequena cidade de Porto Alegre. Ecoavam, amiga, nos tribunais da Corte, onde faziam doutrina, conceituados desembargadores se guiando por elas. E o mesmo prestígio das suas sentenças tinham os seus conselhos, conselhos justos de homem bom e sábio, que muitas vezes evitavam os pleitos demorados, solucionando questões que passeariam muitos anos pelo foro antes que as leis as resolvessem. E a sua casa, tal a sua fama, era muitas vezes convertida no lar das crianças que, por uma ou outra razão, tinham que ficar sob a guarda da lei. Ele não as tratava como a órfãos ou a pequenos delinqüentes. Deixava, amiga, que os filhos nesses dias fossem cordiais companheiros dos menores depositados à sua guarda. E se Dona Luísa de Freitas Travassos reclamava contra aquela intimidade dos filhos com meninos pobres, órfãos ou delinqüentes, achando que um menino fidalgo deve saber guardar o seu lugar, o velho Dr. Prestes, com a sua mansa voz, objejtava-lhe que criava os filhos para serem homens e não pianequins da Corte.
Esse desprezo pela Corte, pelos hábitos, pelos títulos nobiliárquicos, pela vida elegante, esse entregar-se de corpo e alma aos seus deveres de juiz irritavam e magoavam Dona Luísa. Perdera já a esperança de ver o marido desembargador no Rio de Janeiro, freqüentando o Paço, trocando ciência com o Imperador que tinha fama de sábio, sendo um dia obsequiado com título tão almejado de barão ou de visconde ou mesmo de marquês. Decididamente essa não era a ambição do Dr. Prestes, que se contentava com o respeito e o bem-querer de Porto Alegre, que não almejava nem a Corte, nem a honra de discutir com o Imperador, nem o título de nobreza. Para ele bastavam o seu gabinete, os livros, o estudo meticuloso de cada sentença e a satisfação que via no rosto daqueles a quem a justiça era feita.
Além de tudo — e isso era o mais terrível para a descendente dos Freitas Travassos — o juiz vivia a falar no pai calafate, a reviver com muito orgulho aquela desprezível história que Luísa tanto sonhara substituir pela poética lenda dos conquistadores sobre as caravelas, sobre a terra bravia, sobre os índios nas bandeiras civilizadoras do sertão. O Dr. Prestes tinha uma estranha inclinação em narrar o que chamava a "heróica vida do pai calafate", lutando para dar ao filho uma vida melhor que a desgraçada vida que levara. Lutando e vencendo, fazendo do filho, à custa de sacrifícios que o juiz narrava com desagradável abundância de detalhes, ao ver de Luísa, fazendo do filho um doutor em leis. Não que Luísa desejasse que o marido odiasse ou esquecesse o pai. Mas que deixasse essas histórias, esses detalhes para os momentos de intimidade no leito de jacarandá que ocupava dois terços do quarto de dormir. E que deixasse a ela a narração da história da família para as visitas, que ela a tinha bem estudada, bem detalhada, os sacrifícios do calafate sendo substituídos pelos atos de bravura, pela matança em massa de tribos de índios, praticada pelo avô bandeirante.
E não só para as visitas, amiga. Para os filhos também. Desde que se desiludiu de ver o marido interessado num título de nobreza, toda a sua esperança foi depositada nos filhos, especialmente no mais velho. Esse herdaria do sangue dos Freitas Travassos a graça irresistível da nobreza, o segredo da conquista da Corte e das grandes cidades, o ar mundano e a superioridade natural que um sangue nobre inculca nas pessoas. Esse, amiga, era sua esperança, seu trunfo naquele jogo de ambições. Talvez herdasse do sangue do calafate o amor ao trabalho, aos estudos, a aprender para poder viver melhor, à justiça e a outras coisas tão terrenas. Que fosse assim não importava, porque ao Imperador agradavam os homens cultos. Assim pelo menos ela ouvira dizer... Seria um nobre culto, porém nobre antes de tudo. . . Luísa se embalava no sonho daquele filho, levando-o um dia pela mão através dos salões esplendidamente iluminados do Palácio Real. Chegava a ouvir os diálogos murmurados à passagem de mãe e filho:
— Lá vai a Sra. Freitas Travassos e o jovem visconde.
— Ela é de excelente família. . . Sangue de lei... Mas o pai? De onde veio?
— Existe algo sobre um bandeirante. . . Um fidalgo também.
Porém por que o Dr. Prestes se obstinava em narrar aos filhos a sua descendência paterna, fazendo por vezes burlas alegres sobre a diferença do seu sangue e do sangue dos Freitas Travassos? Por que consentia que os meninos, o pequeno Antônio em particular, brincassem com os esfarrapados e esfomeados órfãos que a justiça depositava em sua casa?
Sem dúvida — pensa nessa manhã em que constatou a fuga do filho — fora em meio àqueles moleques que, impressionado com as suas histórias, Antônio começara a conceber a louca idéia de entrar para o exército. Esses meninos pobres, essa molecada da rua, tinham uma admiração rude e sincera pelo exército que era recrutado entre a gente pobre, um exército que tinha muito poucas prerrogativas no Paço e contava com muito pouca simpatia do Imperador. Já antes de o Dr. Prestes falecer, o menino Antônio falava em ir para o exército , em ser soldado. Luísa achava que o marido não rebatia com suficiente autoridade as idéias do filho. Quando o Dr. Prestes morreu, deixando os filhos ainda muito crianças, não tendo Antônio, o mais velho, sequer dez anos, Luísa se lançou à batalha de vencer as tendências plebéias do filho. Contava que o seu sangue nobre falasse mais alto no coração de Antônio que o sangue ralé do calafate. Inútil batalha. Todos os sonhos' do menino, todos os desejos, se reduziram a ingressar nesse exército. Se pelo menos fosse a marinha...
Essa, amiga, era uma carreira nobre. Nela ingressavam muitos aristocratas, filhos de famílias nobres ou de famílias ricas, brancos todos, onde não eram permitidos os oficiais feitos ao calor da luta, os oficiais sem cursos, como no exército. Carreira que incluía viagens aos países estrangeiros, conhecimento de outras civilizações, contato com a nobreza da velha Europa, que brilhava em cortes distantes e faustosas. Não era o exército com seus quadros recrutados entre os trabalhadores, negros e mulatos libertos, entre os camponeses, os oficiais muitas vezes sem curso, uma grande desigualdade entre uns e outros, poucos nobres, poucos ricos, alguns mal sabendo ler, tendo conquistado os galões no campo de luta, poucos amigos de "arrastar a espada no. Paço", não tendo livre entrada nele como os oficiais da marinha, só chegando à presença augusta do Imperador com audiência solicitada. Ah!, amiga, se ainda fosse a marinha...
Mas esse menino Antônio herdara aquela vontade firme do avô calafate, que conseguira fazer do filho um doutor em leis. Sabia o que queria e não desistia assim da sua vocação. Aquele apelido Prestes abafava os gritos de protestos dos Freitas Travassos.
Luísa conseguiu a muito custo que Antônio lhe prometesse que pelo menos entraria para a Escola Militar, começaria do alto, não procuraria escalar posições, partiria já de um alto degrau da escala. Antônio prometera. Mas que estranha atração, amiga, arrastava esse menino para o meio do povo, para junto da gente pobre, para perto desses índios, negros e mulatos que formam o exército? Vinha de um avô calafate mas vinha também de um guarda-roupa do Imperador. Será então, negra, que esse sangue plebeu dos calafates do mundo é mais poderoso e forte que o sangue azul dos nobres?
Um dia Antônio Pereira Prestes fugiu de casa e sentou praça no exército. Soldado raso. Tinha treze anos de idade mas já era decidido como um homem, disposto para a vida, amando-a como a uma aventura que se deve viver integralmente.
Luísa chorava diante do retrato do avô aristocrata que parecia, sob os veludos que o vestiam, ter um gesto de significativo enojo para a decadência do sangue daquela sua família. Num outro retrato, vestido com roupas mais modernas e mais modestas, sorria seu sorriso bom e irônico o juiz Antônio Pereira Prestes, pai do jovem soldado. Entre os dois retratos, as lágrimas de Luísa, as lágrimas de Luísa Freitas Travassos, transbordaram em soluços.
O que ela não compreendia, o que doía dentro do seu coração, era aquela vitória do sangue vermelho do calafate sobre o sangue azul do nobre nas veias do menino, na vontade, nos desejos, nos pensamentos do menino. Se assim continuasse — pensava a nobre Luísa de Freitas Travassos — os seus descendentes, no futuro, estariam com os calafates do mundo contra os condes, barões, viscondes, duques e imperadores do mundo. Um dia. . .
Um dia, amiga, uma menina que tinha a mania de ler jornais e se interessar por política pôs uns livros numa maleta de estudante e marchou para a escola, para ser professora como a filha de qualquer costureira que queria subir um pouco mais na vida. Isso para a família de Leocádia representava descer na escala social. Gente abastada, comerciante de dinheiro o pai, filha de uma família patriarcal a mãe, tinham sobre o destino da mulher no mundo a idéia de que a esta competia casar bem e se limitar ao seu lar, aos pensamentos do marido, sem se interessar pelo que se passava além das fronteiras da sua casa. Não existia o mundo para a mulher de então, amiga. Naquele tempo em que ler um romance era um ato quase imoral por parte de uma jovem, constituía realmente uma extravagância o interesse que Leocádia demonstrava pela política. Uma menina querendo ler os jornais, se interessando pela revolta da armada, discutindo sobre revoluções, era um acontecimento inesperado na pacata vida do casal Felizardo. E agora aquela idéia de ir para a Escola Normal, de sair professora, de ensinar o bê-a-bá a meninos pobres.
É verdade que Dona Ermelinda Augusta de Almeida Felizardo, a mãe de Leocádia. possuía uma capacidade de evoluir, de acompanhar as idéias mais novas do século, que a levaria a seguir toda a carreira do filho de Leocádia até o distante ano de 1941, quando morreu. 3 Mas as idéias mais novas daquele momento na cidade de Porto Alegre, no extremo sul do Brasil, eram de que nada tinha a mulher que ver com os acontecimentos do mundo. E de que uma filha de gente abastada não tem realmente nenhum motivo para seguir a carreira sem futuro de professora, carreira para gente pobre, para gente necessitada. A filha de um comerciante abastado devia se preparar era para o casamento. Devia era ser moça prendada, sabendo seu pouco de francês, seu pouco de piano, cuidar da casa, temperar um prato, dançar com elegância, para poder casar bem, com um moço nobre que a levasse para a Corte, para uma vida mais alta ainda. Dona Ermelinda se uniu à oposição da família, à oposição de todos os preconceitos levantados contra a absurda idéia de Leocádia. Talvez que não protestasse com muita convicção. Talvez Dona Ermelinda sentisse a asfixia de caráter que era a vida das mulheres de então. Talvez pensasse que a filha agia bem, que devia mesmo realizar sua vida, conseguir a sua independência conseguindo trabalho. Mas, como não se opor, amiga, se todo o mundo se espantava da resolução de Leocádia?
Joaquim José Felizardo protestou mais veementemente. Que diriam os fregueses da Casa Felizardo, aquela popularíssima casa comercial da Rua dos Andradas? Mas tampouco Joaquim José era homem para estabelecer uma reação que a menina Leocádia não vencesse. Essa menina, amiga, não era uma simples obstinada. Ela, como o jovem Prestes, sabia o que queria, e conquistaria a sua vida. Vida para ela não significava casar bem, com um moço de boa família e boa posição, ter casa confortável, negras que cuidassem dos seus filhos, da cozinha, mucamas para cantar as nostálgicas cantigas nas noites cálidas de verão, gordura e displicência. Não, amiga. Todas as manhãs Leocádia via a vida passando pela rua, na figura dos homens que iam para o trabalho, dos negros escravos, dos fregueses que discutiam monarquia e república, abolição e escravatura na Casa Felizardo, das mocinhas que tinham de ir para a escola para aprender algo com que ganhar a vida. Sim, amiga, a vida passava diante de Leocádia e a tentava, chamava com as suas mãos de trabalho, com o muito que fazer de bom e de nobre que a moça descobria no mundo. Ela não nascera para viver nos limites da sua casa, o mundo se movimentando lá fora, os problemas, os sofrimentos se processando lá fora sem que sua mão se levantasse para os mitigar.
Em Leocádia se revelavam os traços mais acentuados do caráter dos pais. De Dona Ermelinda vinha-lhe a insatisfação, o desejo de evoluir, de acompanhar a marcha das idéias; de Joaquim José herdara os sentimentos progressistas, o amor à cultura, a compreensão das injustiças sociais.
Um curioso homem, esse comerciante, Joaquim José Felizardo. O espetáculo dos políticos profissionais cuidando dos próprios interesses em vez de se preocuparem com os interesses do povo e do país, levara-o a odiar a política, a considerá-la como algo indigno. Culto, leitor ávido de quanto livro novo aparecia na Europa, era um estranho tipo de comerciante, se diferenciando dos seus colegas da época, não só por ser letrado e capaz de discutir com qualquer homem da lei ou qualquer político, como porque se revoltava contra princípios inteiramente assentes como os dogmas da Igreja ou n escravidão, Tudo isso o fazia simpático a todos os infelizes, a todos os que formavam a legião imensa dos pobres, dos oprimidos, dos escravos. A abolição o apaixona, os versos de Castro Alves eram seus versos favoritos. É verdade que o seu ódio à política limita a sua colaboração à campanha abolicionista. Não forma ao lado do partido que clamava pela redenção dos escravos. Desconfiava que esse partido jogava com tão nobres palavras e tão belas idéias apenas como uma hipócrita bandeira política. José Felizardo acreditava que a hipocrisia era o mais torpe dos defeitos. Fazia abolição à sua maneira: comprando escravos com o único fito de libertá-los, empregando fortunas nessa obra de fazer homens livres. "Pai dos Negros", chamaram-no em Porto Alegre. As portas da sua casa sempre estiveram abertas para os negros fugidos que ali encontravam a fortaleza de onde os senhores não os podiam sacar. De uma maneira ou de outra o comerciante que lia Revolução Francesa e declamava Castro Alves dava-lhes o presente da liberdade.
Os negros o saudavam na rua:
— Bênção, meu pai...
E saudavam-no também, com carinho e respeito, as viúvas e os órfãos que sabiam que naquela mansão da Rua da Ponte encontrariam sempre um alívio a seus sofrimentos, uma boa e carinhosa mão que lhes ajudaria sem parecer estar ajudando. Sua morte foi um dia de luto para toda a cidade. Nessa tarde de 1899 o Presidente do Estado ia atrás do carro fúnebre. Mas ia também uma multidão anônima, gente pobre, mulatos, viúvas e negros, principalmente negros, escravos que ele resgatara.
Leocádia pôde vencer rapidamente a oposição daquela mãe interessada pelo evoluir do mundo, daquele pai reto e culto, interessado nos mais graves problemas do seu tempo. Desde cedo, amiga, Leocádia se acostumou a vencer obstáculos e a lutar. Por isso na sua gloriosa velhice pôde espantar toda a América com a sua coragem, a sua dignidade no sofrimento, a sua inteireza moral, a sua impressionante grandeza.
E um dia a menina rica partiu a caminho da Escola Normal como a filha de qualquer calafate. O comerciante Felizardo comentava com os fregueses da sua casa comercial aquela extravagância da filha, mas sorria liberalmente. Dona Ermelinda sorria com certo orgulho ao contemplar a filha em companhia das normalistas que estudavam para ter uma profissão. Lá ia ela, a sua Leocádia, misturada com moças pobres, tão álacre como qualquer uma delas, tão feliz, tão consciente do que fazia... Sim, ela não seria como as mulheres que Dona Ermelinda conhecia, uma criatura de horizontes limitados, confinada à sala de visitas, à cozinha, ao leito conjugal, para quem a leitura era um ato indecente, a vida um espetáculo distante e perigoso.
No dia em que Leocádia tomou dos seus livros e partiu para estudar, em meio aos lamentosos suspiros da família, Dona Ermelinda não suspirou, não ficou entre triste e espantada. Ficou pensando, amiga, um pensamento lindo: um dia as mulheres do mundo serão livres, a sua casa não será um cárcere dourado, cairão os preconceitos idiotas, colaborarão com os homens na construção de um mundo melhor. Um dia...
Um dia, negra, um dia radiante de sol, o moço soldado e a moça professora, Antônio e Leocádia, se encontraram, se namoraram, se compreenderam e se amaram. Tiveram um lírico noivado nas ruas de Porto Alegre e juntaram num casamento suas rebeldias adolescentes.
Os cadetes, naquela manhã de 15 de novembro de 1889, manhã gloriosa, amiga, quando o trono ruía no Brasil, reuniram-se em torno de seu mestre e chefe, o tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, e juraram "vencer ou morrer". Na sua frente estavam a República, a democracia e o futuro. Atrás haviam de ficar a monarquia, a reação, o passado denegrente. Nessa manhã os cadetes da Praia Vermelha, a mais culta e a mais célebre das escolas do exército de então, a escola dos "doutores do exército", selaram o "pacto de sangue". Ou a República, o governo do povo e para o povo, ou a morte na luta. Vieram um a um e juraram. Era um momento emocionante, amiga. Os jovens que terminavam os seus estudos colocavam de imediato sobre os seus ombros a tarefa imensa de construir os destinos da Pátria. Essa geração aprendera patriotismo, civismo e dignidade tia boca daquele íntegro tenente-coronel que era um sábio, um justo e um herói.
Vieram um a um, amiga. Um veio pálido de emoção, outro veio sorrindo, um terceiro trazia os lábios contraídos de ódio porque este era um mulato e seus avós haviam sido escravos do Império. Chegou a vez do cadete Antônio Pereira Prestes. Marchou resoluto e firme, os olhos para a frente, a cabeça erguida, o olhar sereno, o gesto impávido. E jurou e se colocou ao lado de Benjamin para acompanhá-lo.
Este cadete, como aquele outro mulato, como o camponês que terminava os estudos, não havia entrado para o Escola da Praia Vermelha pela porta fácil dos direitos da nobreza. Bem que o quisera sua mãe. Muito lutara para que ele começasse desde o alto a sua carreira, para que se aproveitasse das regalias que a família lhe podia proporcionar e iniciasse sua vida de militar como aluno de uma das escolas. Mas Antônio Pereira Prestes pensava de outra maneira. Pensava como seu pai, o filho de operário, que é preciso começar de baixo e conquistar as posições. Por isso, naquele momento em que jurava lutar contra a monarquia e vencê-la ou dar pelo ideal da República a sua vida, ele não o fazia, amiga, levado apenas pelo entusiasmo juvenil despertado pelas lições e pelos discursos de Benjamin. Esse cadete tinha 7 anos de vida de soldado, de vida misturada com o povo, em contato desde baixo com os seus problemas, sentindo-os não como um observador ou um espectador mas como alguém que os vivia em carne própria. Sabia quanto custava a um soldado transpor as portas da Escola Militar e da Escola de Estado-Maior, portas que tão facilmente se abriam à nobreza parasitária e aos filhos da gente rica. E sabia mais, muito mais, amiga. Sabia do que se passava pelas cidades e pelos campos, um soldado raso vive em contato com a gente mais pobre, com a gente mais explorada e mais sofredora. Sabia dos negros, com eles, com os muitos que eram seus iguais de armas, aprendera do inenarrável sofrimento de toda uma raça escravizada. Assistira às suas lutas reivindicadoras. Pudera ver dia a dia a hipócrita reação do Império se levantando cauta e fortemente contra o pensamento abolicionista. Como vivia ao lado de ex-escravos e de filhos de escravos, trabalhando com eles igual na sua profissão, soube não se deixar enganar com a demagogia da família imperial querendo fazer o Imperador e os seus passarem como "abolicionistas que não decretavam a abolição por não lhes permitirem as forças políticas do país". Soube ver e compreender que a escravidão negra era a base em que se assentava o Império, era a sua própria vida. E que por isso a família imperial e o Imperador tinham que ser necessariamente escravocratas.4 E que, mesmo abolida a escravidão, vitorioso o povo nesse particular, mesmo assim não estaria completa a obra dos patriotas. Que era preciso um regime onde o povo estivesse representado, onde pudesse escolher seus governantes, onde pudesse fazer ouvir o clamor das suas necessidades. Necessidades que o soldado Antônio Pereira Prestes enxergara com os seus olhos assombrados de menino que fugira de casa para viver no exército a aventura da vida. E descobrira que a vida do povo era uma bem triste aventura, amiga, amarga e dolorosa aventura, heróica por vezes, trágica quase sempre. Vira as famílias esfomeadas dos artesãos no mesmo momento em que nos salões do Paço, ante os bufetes sortidos de esquisitas delicadezas culinárias, os bailarinos descansavam as pernas mastigando comidas de complicados nomes franceses. Vira nos sertões do nordeste os homens sem terra virarem profetas da desgraça, se improvisarem em chefes militares e religiosos para lutar pelo direito àquela terra com que os condes, os barões, os marqueses de então (que seriam os "coronéis" de hoje) haviam sido presenteados pelo Imperador em agradecimento a uma frase de espírito, a uma valsa bem dançada, a umas surras bem aplicadas sobre o lombo dos negros. Vira esses negros fugirem das senzalas imundas e vis para a liberdade nas selvas. Vira vítimas e heróis, vítimas anônimas e anônimos heróis. Vira o povo, vivera sua vida, sentira com ele, sofrerá seus sofrimentos. Foi assim, amiga, que esse menino Antônio Pereira Prestes se fez homem e aos 20 anos completava seus estudos militares.
Naquela manhã de 15 de novembro de 1889 não foi o cadete Antônio Pereira Prestes, o discípulo de Benjamin Constant, somente quem jurou morrer pela vitória da República. Foi também — e principalmente, negra — o soldado Antônio Pereira Prestes, discípulo do povo, que já aprendera da vida, antes de aprender dos livros, a necessidade da democracia e da liberdade.
Um a um vieram os cadetes, pulsava de alegria o nobre coração do tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Eis uma geração que ele formara nos princípios de dignidade do homem, de fé na humanidade, de fraternidade universal. Nunca, amiga, fora no Brasil a cátedra de professor tão bem empregada em função de uma idéia progressista e revolucionária como o foi então por Benjamin Constant. Os que hoje, amiga, perseguem no Brasil os professores que pregam as novas idéias do século do alto das suas cátedras, honrando e dignificando a sua profissão de educadores, os que os perseguem, que lhes arrebatam as cátedras conquistadas em concursos, que os torturam e os encarceram, esquecem a lição da República, a lição de Benjamin Constant. Esquecem que este fez da sua cátedra a sua tribuna.
E que a estas lições republicanas deve muito o Brasil a queda da monarquia. Foi ele quem, baseado na filosofia de Augusto Comte, em grande parte norteado por ela, denunciou a cada momento a demagogia do Imperador se fazendo passar por liberal, por abolicionista, até por republicano. Este, amiga, foi realmente o homem que representou todos aqueles que desejavam a República, como D. Pedro II representava, melhor que ninguém, todos os reacionários.
No século passado, amiga, os revolucionários, os que queriam derrubar o Império e implantar um governo do povo, levantaram a bandeira da abolição. É o republicano Castro Alves primeiro, depois é Rui Barbosa, ainda estudante em São Paulo, são todos os que sonham a República, os que fazem a campanha da libertação dos negros. O Império resiste. Mas quando, sob a pressão popular, a abolição é concedida, Pedro II faz-se passar por abolicionista. Atribui aos seus ministros inteira responsabilidade da demora da medida. Lembra que antes decretara outras medidas tendentes a melhorar a situação dos escravos. Em verdade, amiga, ele apenas tentava, com esses decretos — pequenas concessões feitas ao clamor público — retardar o mais possível a abolição. Esse Imperador Pedro II, a quem os áulicos chamaram de Magnânimo, num retórico abuso do adjetivo, foi em verdade uma criatura reacionária ao extremo, de pequena inteligência que virou assombrosa inteligência devido a alguns maus sonetos publicados na imprensa e a umas quantas composições em latim.5 Escravocrata, esmagando com sangue os levantes populares, as revoluções surgidas aqui e ali por toda parte do Brasil. Mas dando-se ao luxo de conversar com escritores, de se interessar por arte, de se fazer chamar de neto de Marco Aurélio. Inimigo do povo e da inteligência se fazendo passar por pai do povo e por mecenas.
Muitos se deixaram enganar nos tempos do Império, amiga, com a máscara de bondade e de liberalismo com que Pedro II vestia o seu reacionarismo. Muitos se deixam hoje enganar, amiga, com a máscara da vítima, de bondade e de democracia com que o Estado Novo veste o seu fascismo.
Porém, negra, nós sabemos que o povo termina sempre por alcançar a verdade e fazer dela a sua bandeira. E sabemos também que os verdadeiros líderes do povo, os que foram produzidos por ele, não se deixam enganar com a máscara dos tiranos.
Assim aconteceu no dia de ontem com Benjamin Constam. Esse era um líder do povo, um que soube ver a verdade, arrancar do rosto do tirano a máscara impudica de liberal e mostrá-lo ao povo na sua verdadeira e mesquinha fisionomia. Assim acontece também, amiga, com Luiz Carlos Prestes. Este soube denunciar a máscara trágica dos inimigos de hoje e mostrá-los ao Brasil na sua trágica nudez.
Benjamin Constant representava nos fins do século passado as virtudes mais nobres do povo brasileiro. Era um homem de honra por excelência, um condutor inteligente, culto e sincero. Veio de uma existência de menino pobre, galgando postos, sofrendo todas as injustiças e todas as privações. Seu prestígio perante o povo não vinha de condições exteriores que por vezes fazem o prestígio dos falsos líderes. Vinha de uma grandeza concreta, algo palpável e visível. Não possuía ele nenhuma das qualidades de demagogo e, sim, as qualidades de verdadeiro chefe do povo.
Com uma enorme parecença moral com ele, Luiz Carlos Prestes é hoje o seu continuador dentro das novas condições. Esse também, amiga, não possui nenhuma das qualidades do demagogo. Nada nele é exterior e falso. Sua grandeza é também algo concreto e palpável. Vem de uma vida dedicada ao povo, de culto à honra, à dignidade e à verdade. De fidelidade à causa do Brasil. Como Benjamin Constant ele é culto, inteligente e franco. Veio como o republicano de uma família pobre e galgou os postos, sofrendo todas as injustiças e todas as privações. Também, ele um dia se encontrou com uma filosofia da vida como Benjamin Constant se encontrara com o positivismo. O marxista Luiz Carlos Prestes representa no cenário brasileiro de hoje a mesma importância — senão uma importância histórica maior — que o positivista Benjamin Constant na segunda metade do século passado. São ambos militares provados na luta e que revelaram, um. o conhecimento e a coragem, outro, um gênio militar e político sem similar na América. São ambos homens que sacrificam tudo ao bem do povo. E não possuem nem um nem outro os arrebatamentos emocionantes dos oradores fecundos, nenhuma teatralidade de gesto, não põem sobre o rosto bondoso, nem um nem outro, nenhuma máscara para com ela surgirem diante do povo. Exteriormente nada têm de magnético nem de arrebatador. São calmos e serenos, afáveis e simples. Mas ambos possuem uns olhos penetrantes e vivos, olhos que dão a medida dos seus corações. Em ambos, de imediato o povo reconhece a figura dos seus líderes. Encontra sem vacilação, em Constant e em Prestes, no positivista e no marxista, o seu condutor nessas horas tão distantes e tão semelhantes na luta contra a monarquia e da luta contra o fascismo. Porque, se nesses dois homens não existiu nem existe a teatralidade dos gestos nem a falsa retórica dos demagogos, em compensação vem deles uma aura de força, de verdade e de ideal que arrasta e conduz os homens. Eles trazem o futuro nas mãos.
Na frente dos seus alunos, Benjamin Constant marcha contra o Paço. Os homens que chefiavam a revolta do exército naquele dia ainda não sabiam até onde deviam levar o povo. Ouviam os gritos que pediam República mas estavam em dúvida sobre se proclamá-la ou não.
O tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães vai na frente dos seus alunos, aqueles cadetes que haviam acabado de jurar fazer a República ou morrer. Entre eles, tranqüilo e decidido, vai Antônio Pereira Prestes. Atravessam as ruas da cidade do Rio de Janeiro que os tribunos agitam, discursando de cada sacada, trepados sobre caixões, Lopes Trovão, Pardal Mallet, Raul Pompéia, Silva Jardim. A multidão que os vê passar os aclama, brada pela República, segue os cadetes tão jovens e tão heróicos.
Na Rua do Ouvidor, amiga, a populaça viva o nome de Benjamin Constant. E dão vivas também.aos cadetes que conhecem, vivas que chegam de vozes isoladas e que vão se juntar ao eco das aclamações a Constant. Porém, em determinado momento os cadetes passam junto a um grupo de mulatos e negros, ex-soldados. E nesta hora as aclamações se dividem entre o tenente-coronel que comanda e um dos cadetes que o segue. É que aqueles ex-soldados, aqueles negros e mulatos, reconheceram entre os cadetes alguém que fora soldado como eles e que de todos os soldados se fizera amigo, reconheceram o soldado Antônio Pereira Prestes.
Nessa manhã, amiga, de 1889, o nome de Prestes foi pela primeira vez aclamado nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.
A criada saiu apressada, o rosto negro aberto num riso largo. Foi entrando, sem cerimônia, nas casas dos vizinhos, naquela Rua do Riachuelo da cidade de Porto Alegre. Se já haviam passado as festas de Natal e de Ano-Bom, por que então, amiga, a negra empregada dos Prestes invadia assim a vizinhança como quem leva a notícia de uma festa?
Ah!, amiga, nesse 3 de janeiro de 1898 havia realmente uma festa na Rua do Riachuelo. Hoje há uma festa em toda a América, comemorando esse dia. Os negros do Brasil, os mulatos do Brasil, os brancos do Brasil, os operários nas suas fábricas, os camponeses com as suas foices, os soldados com os seus fuzis, os aviadores com seus aviões, os intelectuais com seus livros, os sábios com seus instrumentos de ciência, todos, todos com sua imensa fome de liberdade, com sua sede de progresso, em cada três de janeiro festejam o nascimento do herói da liberdade. E já que hoje é uma noite de terror, amiga, as bocas impedidas de falar, às mãos impedidas de escrever, nas pobres casas operárias, nas casas de palha dos camponeses, nas casas cada vez mais humildes dos pequenos comerciantes, dos pequenos lavradores, dos empregados, nos quartéis de soldados, sargentos e tenentes, nas casas vigiadas dos intelectuais e dos sábios, os corações se voltam emocionados para uma célula triangular que existe no pavilhão dos tuberculosos da Correção. Ali está aquele que nasceu em 3 de janeiro, que empunhou a bandeira do povo e com ela partiu para a sua cruzada de libertação. Os oligarcas e os inimigos da pátria tremem nesse dia. Não ousam nessa noite sair de casa, cobrem-se com os lençóis até a cabeça e nem assim conseguem abafar os latidos alarmados dos seus pequenos corações. Porque eles sabem que essa é uma data do povo e que, em cada casa brasileira, em cada coração limpo da mancha da traição, há festa nessa noite do aniversário de Luiz Carlos Prestes. E há esperança. Um latido de esperança, tão forte e tão sentido, que atravessa o silêncio imposto pela polícia e ressoa como uma sentença implacável no peito acovardado de cada traidor do bem da pátria. Um latido de esperança, amiga. Tão forte que atravessa o imenso cárcere que é o Brasil de hoje e transborda sobre a América, de norte a sul, do Alasca à Patagônia.
Esse dia, amiga, é um dia de festa do povo, de todo o povo da América. Vem do Canadá, dos índios do México, dos camponeses, dos operários do México, Lázaro Cárdenas, Lombardo Toledano. Da América Central, de Nicolas Guillen com os poetas de Cuba, os mulatos de Cuba, nossos primos-irmãos morrendo nas plantações de cana-de-açúcar como os mulatos do Brasil.
Um grito que vem num verso quente como uma rumba, nostálgico como um son. De Marta Aguirre, de Emílio Ballagas. De toda a América do Sul, seus operários, seus estudantes, seus sábios, seus escritores. Do Peru, da Colômbia e da Venezuela. Do Equador de negros macilentos e de índios tristes, de crianças esmolando no porto cinzento de Manta. De Aguira Malta, de Jorge Icaza e do túmulo de José de La Cuadra, que conheceu tão bem os sofrimentos do seu povo. Um grito, um latido de esperança. Do democrático Uruguai, tão valente! Do Chile forjando liberdade, lição na América. Do gênio de Neruda. da força de Laferte, do meu amigo Geraldo Seguei, dos operários reunidos querendo enviar um advogado ao Brasil. Da Bolívia onde ele viveu do Paraguai sofrendo uma ditadura tão violenta quanto a do Brasil. Da Argentina, das mulheres pedindo por ele, seu nome nos comícios, seu nome nos versos dos poetas. Cantado por Portogalo, cantado por Raul Gonzalez Tunon, seu nome num comitê de ajuda à U.R.S.S. Esse dia, amiga, é um dia de festa para a América. Um dia de esperança, um dia de amor e de confiança no líder encarcerado. Um dia de ódio contra os tiranos. Mulheres e homens pensam nele, murmuram, dizem e gritam seu nome, reclamam sua liberdade, sonham com vê-lo mais uma vez atravessando os sertões do Brasil na frente dos seus homens, rasgando estradas por onde caminhará, esplendidamente bela, a liberdade. Estradas para a liberdade que ele construiu, caminhos de liberação. Um dia de festa, amiga, para toda a América.
As negras que velaram nossos berços nas noites do Brasil, contavam histórias de heróis lendários e anunciavam nas suas predições supersticiosas o nosso futuro. Lembras-te, amiga, da negra que velou teu berço? Com certeza foi ela quem primeiro disse, olhando os teus olhos, que tua vida seria sofrer e acompanhar um contador de histórias, vagabundo e rebelde, amigo de ver a lua dos mais diversos portos. Foi uma negra também quem disse certa noite distante de Ilhéus que eu amaria estar sentado no meio do povo na feira ou no cais e que inventaria modinhas e histórias. As negras sempre acertam, amiga, porque elas vêem com os olhos do amor. Assim aquela negra empregada dos Prestes que, na manhã de 3 de janeiro de 1898, corria as casas da Rua do Riachuelo anunciando que nascera aquele que havia de ser uma estrela. Era o que ela descobria nos olhos vivos do infante. O brilho de uma estrela, tão forte que a assustou, uma luz ardente. Lembrou-se dos seus deuses e viu Oxóssi, o deus da caça nas matas, o que atravessava as florestas da África. Mas viu também Xangô, o deus do raio e do trovão, o deus vitorioso das batalhas. E viu mais, viu o brilho daquele que se fizera deus no Brasil, aquele que da África viera homem e aqui, num sonho de escravo, se fez o deus da liberdade. Viu Zumbi, o deus mais novo dos negros, o que levantou os escravos, fugiu para a selva dos Palmares e fez uma república de homens livres. Viu uma luz nos olhos do infante. Oxóssi rompendo as selvas. Xangô lançando os raios na batalha, vencendo as guerras, Zumbi forjando a liberdade. Nunca, jamais vira um menino assim. Na macumba, naquela noite, dançaria em honra dele e em honra dele cantaria aquele canto de vitória:
— "Erô ójá ê para mon, ê inun ójá li ô ló."
Eis por que, amiga, ela invade as casas dos vizinhos, o rosto explodindo numa gargalhada, o corpo quase numa dança para dar o recado que o tenente Antônio Pereira Prestes e Dona Leocádia mandavam.
— O seu tenente e iaiá mandam dizer que têm mais um criado às ordens... — e seus olhos riam como seus lábios, como seu corpo todo.
Ria toda ela, excitada e feliz, ria com a mesma ampla gargalhada com que festejava nas noites de macumba o aparecimento de Oxolufã, o maior dos deuses.
A sua infância, amiga, foi uma infância de menino pobre.
A pobreza foi a mais fiel companheira da família de seu pai o tenente Prestes. Este tinha um "caráter demasiado independente e altivo para que as posições lhe fossem facilmente dadas. Apesar do seu valor e de sua capacidade, sua vida foi sempre difícil em matéria de dinheiro. A carreira do exército não era então das mais bem pagas. E ele, além da família, ainda sustentava do seu soldo os parentes maternos. Por outro lado o dinheiro do sogro e da Casa Felizardo há muito que não existiam, as fugas de negros protegidos por Joaquim José, a ajuda aos escravos, às viúvas e aos órfãos, haviam gasto o melhor do pecúlio do comerciante. A vida do tenente era dura. Suas idéias positivistas e as suas concepções de honra impediam-lhe de viver arrastando sua espada na ante-sala dos gabinetes ministeriais ou nos palácios do governo. Nunca fez "carreira" no exército. Havia de morrer em 1908 no posto de capitão engenheiro, pobre, deixando a família inteiramente sem recursos.
O menino Luiz Carlos Prestes cresceu aprendendo que às crianças pobres não é dado ter caros brinquedos de mola nem livros de luxuosas gravuras. Nos seus Natais ele via que Papai Noel era feito apenas para os filhos daqueles que souberam armazenar moedas. Aquele menino que por vezes parava o riso fácil de criança para se tornar subitamente sério e pensar num problema de adulto, cedo compreendeu que a beleza e a alegria do mundo estavam mal divididas. Via os meninos da sua rua órfãos de qualquer presente, da ilusão de qualquer brinquedo. Via que a conversa em casa falava repetidas vezes na questão dinheiro. Teve desde criança esses problemas diante de si e desde criança aprendeu a resolvê-los da maneira mais digna que era, por estranha casualidade, a maneira mais difícil.
Eram ele e quatro meninas. Como não havia brinquedos, ele não se contentava com fabricar os seus. Fabricava também bonecas para as irmãs porque, amiga, desde cedo este menino pobre amou ver a gente feliz em seu redor, desde muito cedo ele se interessou pela felicidade alheia. A alegria ambiente era a sua alegria. Primeiro foi a sua casa, amiga. Depois foram os seus colegas de curso, quando oficial, foram os seus soldados, logo depois era todo o Brasil, até que um dia, no exílio ele viu e compreendeu que o problema era um problema do mundo: da felicidade de todos os oprimidos. Desde cedo começou esta sua carreira, negra. De casa, em meio às dificuldades de menino pobre.
Aprendeu de Antônio e de Leocádia que a vida não se resumia ao lar. O pai, positivista, preocupado com o mundo. A mãe, queimando os olhos cada noite nos jornais do dia, acompanhando passo a passo o caso Dreyfus que se desenrolava na França longínqua, falando em Zola, dando detalhes do drama. Desde a sua primeira infância Luiz Carlos Prestes soube do mundo, das lutas dos homens, das injustiças e dos sofrimentos. E desde a primeira infância começou a temperar o aço do seu caráter. Aprendeu com o, pai as lições de incorruptibilidade. O capitão de engenheiros lhe ensinou, amiga, que a felicidade não se conquista vendendo a inteligência, o caráter e o coração. Ensinou-lhe que a felicidade está na compreensão da justiça, numa vida valente e digna. Por isso, amiga, muitos anos depois ele pôde da sua cela de prisioneiro escrever a Dona Leocádia que, "apesar de tudo se sentia feliz". Isso quando acabavam de condená-lo a mais 30 anos de prisão, no mais iníquo dos processos. Essa fortaleza de ânimo, esse conceito da verdadeira felicidade, não daquela que se encontra facilmente nas comodidades exteriores da vida, mas a que se procura no serviço da humanidade, foram-lhe dados desde aqueles anos pelo exemplo do capitão e da sua mulher preferindo todas as privações a qualquer concessão de ordem moral ou intelectual. Compreendeu que havia dois caminhos na vida e viu que seus pais seguiam o mais difícil. Parecia-lhes o mais belo. Assim também pensou o menino.
Infância de filho de oficial, transferido muitas vezes, de guarnição em guarnição, primeiro em Porto Alegre, depois no Rio de Janeiro, em seguida no interior do Rio Grande do Sul, em Ijuí e em Alegrete, mais uma vez em Porto Alegre. Como uma família de ciganos de terra em terra, levantando o acampamento para seguir o seu chefe. O menino Luiz Carlos encheu os olhos com o espetáculo dos homens no campo, aqueles que não tinham terra e viviam curvados sobre a terra trabalhando para os que se haviam apossado dela. Viu nas cidades os donos das fábricas acumulando dinheiro à custa dos que trabalhavam nas fábricas e dos que compravam os produtos das fábricas. Viu o operário, o camponês, o pequeno-burguês, viu o povo sofrendo. Era uma criança séria. Sorria e brincava como as demais crianças, corria e brigava, mas costumava muitas vezes parar num canto, o rosto concentrado, pensando. Essa criança se acostumou a pensar e a tirar conclusões do que via.6 A sua seriedade, que por vezes parecia timidez, não era medo da vida. Era que ele sentia, amiga, que os problemas da vida tinham de ser encarados seriamente, necessitavam reflexão.
Um dia o pai adoece. Foi uma longa enfermidade da qual não se curaria jamais, que o levaria a viajar para o Rio com a família, em busca de melhoras. São tempos sombrios. Na casa suburbana do Rio de Janeiro, o pai na cama, o menino Luiz Carlos assiste à mãe se desdobrar no trabalho. Dona Leocádia é o chefe da casa nesse momento, é a mãe carinhosa, a esposa cuidando do marido enfermo, e ainda aquela que tinha de providenciar para que o dinheiro chegasse para todas as despesas. Foram tempos tristes, a casa envolta no ambiente pesado de um drama que se desenrolava a cada instante. Os amigos foram rareando, em pouco era só a família pobre e triste em torno ao capitão moribundo. Faltava dinheiro e faltava alegria. Dona Leocádia escondia dos filhos a sua aflição, mas realmente era difícil esconder algo desse menino Luiz Carlos de percepção tão aguda. Ele compreendia todo o drama da mãe mas compreendia também quanto ela era forte no sofrimento. Compreendia que ela não sentia a menor parcela de infelicidade por o marido ter preferido uma vida dura mas honrada a uma fácil existência acomodatícia.
Dona Leocádia atravessava a casa com os passos leves. Na quarto, o capitão Antônio Pereira Prestes agonizava. O menino Luiz Carlos cuidava de que as irmãs estivessem alegres, que não sentissem o drama que se desenrolava na casa. Seu rosto ficava cada vez mais sério. Mas também cada vez mais tranqüilo. E, quando o capitão morreu, deixando-o com menos de 10 anos, foi ele quem consolou a todas. Foi ele quem enxugou as lágrimas de Leocádia e desviou para os brinquedos a atenção das irmãs. Os meninos pobres, amiga, desde os primeiros anos tomam contato com a vida, têm sobre os ombros débeis de crianças responsabilidades de adultos. Os problemas estão próximos a eles, estão por vezes sobre eles. O menino pobre Luiz Carlos olhou em torno de si: sua mãe e suas irmãs sem esposo e sem pai, quase ao desamparo. Era um horizonte cinzento e sem perspectivas. Não, amiga, não era sem perspectivas. Desde esses anos distantes esse menino acostumou-se a não perder a perspectiva, a não perder a confiança, a não perder a alegria interior. Olhou para a frente e se dispôs a enfrentar a vida.
Muitos anos depois, amiga, um dia, da sua cela ele escreveu a Dona Leocádia no exílio: "O que me passa hoje não representa para mim nem surpresa nem infelicidade". Essas grandes palavras, negra, ele as aprendeu ainda na sua infância, na sua casa materna, ao contato com a dor e com a pobreza. E essa a lição que ele hoje nos ensina: não há horizonte, por mais cinzento que ele seja, por mais sem perspectiva, que não tenha por detrás a esperança de um céu azul e livre. Nos ensina também, amiga, que a liberdade está dentro de cada um de nós e que mesmo na prisão o rebelde é um homem livre. Escravo é só aquele que ama a escravidão.
'Senora, hiciste grande, más grande a nuestra América.
"una madre de llanto de venganza, de flores,
una madre de luto, de bronce, de victoria,"
PABLO NERUDA
Como uma sombra tutelar, amiga, se debruça sobre a vida de Luiz Carlos Prestes, desde a mais remota infância, a grandeza de uma mulher forte. Nas veias de Leocádia Prestes, corre aquele mesmo sangue das santas e das heroínas: de Anita Garibaldi, de Maria Quitéria e também de Ana Néri. No painel em que se destaca em primeiro plano a figura heróica de Luiz Carlos Prestes, Dona Leocádia se levanta como a força que o cria, o protege e o sustem. Eu te diria, negra, que por vezes vejo nessa anciã a melhor imagem do povo brasileiro. Vê, amiga, é o povo. Igual a seu filho. Se o Herói é concebido, criado e alimentado pelo povo, sem dúvida nessa Leocádia Prestes, de altíssima presença humana, encontramos a transfiguração do povo.
Vê, amiga, no céu do exílio brilha a grande lua amarela do Brasil. Ela veio daqueles céus, de iluminar aqueles mares e aqueles campos. Brilhou sobre os saveiros no pequeno porto do mercado da Bahia. Seu alvacento brilho foi nessa mesma noite, negra, o misterioso cabelo de Iemanjá. Brilhou sobre as pontes do Recife, sobre as águas volumosas do Amazonas, sobre as águas dramáticas do São Francisco. Brilhou sobre a caatinga e sobre o pampa. E brilhou também, amiga, sobre a desolada ilha de Fernando de Noronha, saudades para os presos de trinta e cinco, nossos irmãos, brilhou sobre aquela célula da Penitenciária do Rio onde Luiz Carlos Prestes sonha o Brasil de amanhã. Vem do Brasil esta lua, amiga, na sua luz amarela chega uma cálida lembrança da pátria.
Uma vez, negra, era também noite de lua na caatinga, onde se limitam Bahia e Sergipe. Eu estava com o cangaceiro Zé Baiano, do bando de Lampião. Era um negro enorme, tinha matado muita gente, muitas marcas na sua repetição. Mas era um homem bom, negra, gostando de ouvir histórias e de contar façanhas e valentias.
Lampião o mandara para que cobrasse impostos em Sergipe. Nesse tempo, amiga, em anos muito próximos, Lampião governava o sertão de cinco Estados. Zé Baiano estava sentado, tinha posto a repetição de um lado, contava bravezas de Lampião. Sua voz rude de camponês transformado em bandido pelos donos da terra tinha, ao falar do seu chefe, do maior dos cangaceiros, uma doçura comovente. Contava valentias de Lampião, até a lua, amiga, parava para ouvi-lo. "É o homem mais valente do mundo — me disse — não há ninguém como ele". Narrou de tiroteios na noite de ataques a fazendas, de punhaladas à traição. Contou de Arvoredo, de Bem-te-vi, de Corisco, o loiro bandido romântico. Contou de Volta Seca, que era um menino. Contou de Maria, Bonita, valente como seis cabras. E contou de Lampião, contou muito do seu chefe. Tinha um orgulho na sua voz que se fazia doce e melodiosa, no brilho dos seus olhos mansos de negro. Depois — ia alta a lua no céu, a caatinga tinha tons fantasmagóricos — me perguntou se eu conhecia alguém mais valente. "Não há no mundo" — me disse.
Eu me lembrei então, amiga, que em terras de França u'a mãe de família brasileira falava em comícios, visitava ministros, conversava com políticos, clamava para o povo, para salvar das mãos infanticidas do nazismo uma criança de meses, sua neta. Zé Baiano sorria, era um sorriso de triunfo. Então eu lhe falei de Dona Leocádia Prestes e ele e os outros que ouviam ficaram atentos e escutaram. "É u'a mulher — lhes disse — é uma velhinha, uma velhinha e não usa revólver, nem punhal, nem repetição, mas é uma velhinha valente".
Foi um dia, negra, Dona Leocádia Prestes. É como se te dissesse: foi um dia o povo do Brasil. Nós a sentimos como se sente a pátria. Pátria da dignidade e da coragem, dos sentimentos maternais no seu máximo, da força no sofrimento. Quando esta velha, amiga, levanta o altivo rosto sulcado pelas marcas da dor, máscara de tragédia grega, é todo o povo do Brasil, é a Pátria mesma quem se ergue na plenitude das suas grandes qualidades.
Então, naqueles tempos da infância de Leocádia, ela fora uma menina rebelada contra os preconceitos idiotas que faziam da mulher uma empregada de luxo. Depois fora a companheira do marido, junto com ele, não na passiva atitude das mulheres do tempo, se lamentando, se queixando quando os esposos preferiam viver duramente em vez de sacrificarem a sua maneira de pensar e se acomodarem. Leocádia, ao contrário, foi a animadora consciente e tenaz da atitude do marido. Era com alegria que o acompanhava nas suas sucessivas transferências, era com alegria que imaginava o equilíbrio doméstico para que o pequeno soldo chegasse para as despesas. E era a primeira a apoiá-lo quando ele recusava curvar a espinha às exigências da política mesquinha dos homens que deturpavam a obra dos republicanos. Da sua boca nunca saiu, amiga, uma palavra de pessimismo nem uma palavra desalentadora. Educou-se com o marido, aprendeu dele o muito que ele podia lhe ensinar, como depois haveria de aprender do filho os segredos da miséria do mundo e os segredos da felicidade do mundo. Antônio e Leocádia foram um casal unido e corajoso, apoiados um no outro, caminhando para a frente com decisão. Esses anos de casamento foram uma tranqüila marcha para a frente de dois caracteres e de dois corações fortes.
Mas cedo morreu Antônio. Imagina, amiga, a dor dessa mulher ainda jovem que perdeu o seu companheiro de todos os dias, aquele que soubera lhe auxiliar quando ela procurava desenvolver a sua personalidade, quando ela procurava perscrutar o mundo lá fora com seus olhos curiosos e humanos. No primeiro momento Leocádia pensou que tudo lhe faltava. Não apenas pelos problemas imediatos de comida e de casa que se projetavam diante dela. Também pela falta da força moral do marido, pelo exemplo que ele era para os filhos.
Leocádia reagiu de imediato. Ali estavam os filhos pequenos, ali estava principalmente o menino, amiga, esse Luiz Carlos para quem ela tinha que ser mãe e pai, a quem tinha que dar os carinhos da melhor das mães e o exemplo do mais digno dos pais.
Quando o caixão saiu levando o inesquecível morto bem-amado, Leocádia se voltou para os filhos, se voltou para Luiz Carlos. E partiu para a frente. Agora era mãe e pai, carinho e força, bondade e confiança, tenacidade e firmeza.
O primeiro problema era o do sustento da família. O montepio de um capitão era naquele tempo uma ninharia. Leocádia resolveu trabalhar. Não fora por pernosticismo que estudara na Escola Normal e agora a sua rebeldia de menina lhe ia ser sumamente útil. Foi ser professora de música e de francês, e quando rareavam as alunas ela era a costureira do bairro, os olhos presos à agulha nas noites mal Iluminadas da casa pobre. Suas mãos souberam ganhar o pão e aprenderam as durezas do trabalho. Nem assim, nessa dura prova, sonhou sonhos de ambiciosa riqueza para o filho e para as filhas. Sonhou apenas como fazer deles um homem e mulheres dignas, a honra acima de tudo, a humanidade acima de todos.
Seu sonho para o filho era um sonho de bondade. Imaginava-o médico um dia, mas não perdido na comodidade de um consultório luxuoso, atendendo ao nervosismo de grã-finas inventando moléstias como passatempo. Não. Pensava numa cidade pequena do interior, perdida no mato, a gente pobre enchendo o pobre consultório, o jovem médico distribuindo saúde. Assim o imaginava, amiga, em função da humanidade.
E assim ele havia de ser, negra, em função da humanidade. Mas não médico. As dificuldades financeiras da família impediram o sonho lindo e modesto de Leocádia. Como pensar nas despesas de uma educação tão pesada, como a de médico, quando o dinheiro mal dava para a comida? Não havia muitas alunas, pouca gente podia no bairro pobre aprender francês e música. Tampouco sobravam os vestidos a costurar e os que vinham eram vestidos de modestas fazendas, de feitio barato. Não. Luiz Carlos não poderia ser médico.
O menino crescia vendo a mãe trabalhando como um homem mas ainda assim alegre e carinhosa. Viu que Dona Leocádia fazia questão de honra nos seus pagamentos mesmo nos mais insignificantes. Em meio a todas as dificuldades, aquela era uma casa sem contas atrasadas, de boa fama entre os comerciantes da vizinhança. O próprio Luiz Carlos, apesar dos seus onze anos ainda não cumpridos, tinha crédito nos armazéns porque, como dizia o vendeiro português da esquina, "fiar aos Prestes era igual a ter dinheiro em caixa". A palavra do filho de Dona Leocádia valia como a palavra de um homem feito. Isso ensinou o menino a adquirir um senso de responsabilidade e um escrúpulo no cumprimento das suas obrigações que iriam ser, depois, marcantes na sua vida. A vizinhança seguia atenta a luta da família Prestes. Aprendia com aquela viúva e com aquelas crianças uma lição de coragem.
Apenas, amiga, Luiz Carlos não poderia ser médico. A única profissão que lhe seria possível, porque era uma profissão barata, era a militar. Militar como seu pai, ali também se podia servir à humanidade. Aos onze anos, após vencer uma série de obstáculos, Luiz Carlos entrou para o Colégio Militar. Começou a sua gloriosa carreira.
Nenhum aluno, amiga, honrou até hoje, no Brasil, os bancos escolares como o jovem Prestes. Sua permanência no Colégio Militar é uma série ininterrupta de triunfos e de injustiças. Era o primeiro nos estudos, o primeiro como educação, caráter e inteligência. Tinha, segundo as regras que regiam a vida estudantil no Colégio Militar, direito ao posto mais alto entre os alunos: o de Comandante-aluno. Não lhe deram o cargo. Outro colega, também de notas distintas, mas evidentemente sem a mesma marca genial de Prestes, era o comandante7. A Luiz Carlos deram apenas o lugar de major-fiscal. Era um menino pobre, amiga. Terminou o curso com distinção em todas as matérias. Três medalhas lhe eram por isso devidas, os prêmios mais altos do Colégio. O aluno Luiz Carlos nunca recebeu essas medalhas. Era um menino pobre, amiga.
Esse jovem de menos de 18 anos soube ser de uma absoluta serenidade diante das injustiças. Sempre de cabeça altiva diante dos que arrotavam sua riqueza ou a posição eminente dos pais. Sempre afetuoso e bom diante dos pobres como ele. Nunca se queixou das injustiças quando eram praticadas com ele, sempre se levantou contra as injustiças praticadas com os outros. O colégio deu-lhe outra lição de vida: mostrou-lhe como o dinheiro, venha de onde vier, substitui a inteligência e o caráter. Viu e sentiu em carne própria quanto a pobreza desmerece o homem, mesmo perante aqueles que são encarregados de distribuir justiça. Diante de um mundo errado o menino Luiz Carlos era vítima desses erros. Não protestava de imediato, mas já começava a compreender que era necessário mudar a face deste mundo. Muitos anos depois, já tendo tentado essa mudança e não tendo conseguido realizá-la, ele pôde ver e compreender o problema na sua inteireza. E pôde então partir para a sua batalha.
Mas, amiga, começou a afiar a sua arma nesses dias injustos de colégio. Viu riqueza e pobreza frente a frente. O sangue artesão que tinha nas veias era agora o sangue predominante nele, pobre como o avô calafate. Filho de professora e costureira, órfão sem fortuna e sem posição. O menino pobre que era Luiz Carlos Prestes aprendeu a pensar.
Nos dias de saída colocava perante Leocádia os problemas que o colégio lhe apresentava. Era o primeiro, mas não o tratavam como o primeiro, esse lugar era ocupado por outro. Via os bons alunos pobres valerem menos que os ricos. Por quê?
Um dia, negra, era a lua cheia sobre a caatinga sertaneja. Estava o negro Zé Baiano, suas mãos haviam tirado a vida de muita gente. Eram mãos de camponês, feitas para lavrar a terra, para tanger bois para o curral, para domar cavalos bravos. Um dia tomaram a sua terra, mandaram-no embora sem dar explicação. Zé Baiano era um menino ainda, tomou sua repetição, matou o ladrão da sua terra. O rico compra a justiça com seu dinheiro de ouro, amiga, Zé Baiano de graça só encontrou a vingança. Depois virou bandido no grupo de Lampião.
O menino Luiz Carlos Prestes aprendeu dos lábios de Leocádia que a sua revolta individual seria apenas vingança. Tinha que sofrer a injustiça e aprender com ela. Um dia encontraria seu caminho. Leocádia não pensou tampouco em consolar o menino com histórias de recompensas celestes e com fábulas de virtuosa moralidade e de frágil realidade. Disse-lhe apenas e isso ela o sabia com o exemplo do marido:
— Há meninos ricos e meninos pobres, filho. Há homens ricos e homens pobres. Os ricos tomam sempre o lugar que compete aos pobres. Sempre foi assim...
Um dia no sertão uma negra camponesa disse o mesmo a Zé Baiano. Apenas acrescentou numa resignação à desgraça:
— ... e sempre há de ser assim... nunca há de mudar...
Por isso Zé Baiano pegou sua repetição, partiu para a vingança. Leocádia continuou:
— Sempre foi assim, mas eu creio que um dia não será assim. Estuda, meu filho, não desanimes com as injustiças, talvez um dia tu encontres nos livros e no meio dos pobres como tu uma solução para esse problema.
Foi assim que Luiz Carlos Prestes partiu por outro caminho e foi por isso que Zé Baiano e os outros do grupo de Lampião em vez de um dia, no futuro, marcharem ao seu lado, marcharam contra ele, desorientados e explorados mesmo na sua rebelde condição de cangaceiros temíveis.
Negra, a sombra imensa dessa magnífica criatura, espantosamente forte na sua fragilidade feminina, se debruça orientadora sobre a infância do menino pobre. É o seu exemplo que lhe dá ânimo. Dela, de Leocádia Prestes, ele parte para a compreensão da seriedade da vida, para a decisão diante dos problemas, para a sua marcha sempre para a frente, sem recuos.
Rolava naquela noite essa mesma lua do cais do exílio sobre as terras bravias da caatinga natal. Eu falava, amiga, para Zé Baiano e os camponeses que o rodeavam. Contei da que Leocádia Prestes fez em terras da Europa para salvar a neta dos assassinos de crianças. Quando acabei, Zé Baiano ficou um minuto calado, os camponeses olhavam a lua e uma mulher saiu para chorar. Zé Baiano me disse:
— Livrou a menina, hein! Velha danada...
Ficou procurando outro adjetivo, não encontrou. Sua língua era curta, ele nunca tivera escola onde aprender muitas palavras. Ficou procurando, a mulher já não chorava, sorria feliz. Zé Baiano cocou a carapinha suja, espiou a lua cheia.
— Eu gosto dessa velha... Até Lampião havia de gostar dela...
Há um homem que está preso, amiga, têm demasiado medo dele. sabem que no seu peito reside a liberdade e é a ele que têm encarcerada desde que o prenderam. Antes ele se levantara vezes seguidas na frente do povo, na frente dos pobres, aprendera os segredos da má divisão do mundo. Atravessou, numa epopéia imortal, o pampa, a selva e a caatinga. Cruzou rios, escalou montanhas, rasgou estradas. Na sua frente ia a liberdade, em torno dele era a esperança.
Mas sobre ele, amiga, sobre os seus soldados, sobre o povo se levantando, como um símbolo do próprio povo da própria pátria escravizada, traída, mas rebentando as cadeias tia escravidão, como a mãe do povo, aquela que concebeu, alimentou e formou o Herói, sobre todos nós, a sombra de Leocádia Prestes.
E também hoje, amiga, nos dias de desgraça que são os dias de mais forte esperança. Como amanhã no dia em que o povo partir de novo. Sua sombra, marcada de marcas dolorosas de dor, mas altiva e serena, implacável, justa e todo-poderosa. É o próprio povo, amiga. Vê, é a Pátria. Nunca mais então, negra, os camponeses se transformarão em bandidos. Suas mãos feitas para o arado não mais utilizadas na repetição. E amanhã veremos, amiga, essa anciã de rosto vincado pelos sofrimentos ficar sorridente e feliz, descansada e igual às outras velhas do mundo, tranqüila e bela. Porque nesse dia, companheira, o povo e a pátria estarão sorridentes e felizes, tranqüilos no trabalho, belos na felicidade de todos. Ela é a imagem do povo e da pátria, sua melhor imagem. Suas marcas de sofrimento são as marcas do sofrimento da pátria. Sua alegria de amanhã será a alegria do povo.
Era a primeira sabatina do ano e os "calouros" da Escola Militar do Realengo estavam nervosos. Não só era o seu primeiro contato com a Escola de onde sairiam oficiais do exército como também o coronel Pio Borges, professor de analítica, tinha a terrível fama de homem exigente, ranzinza, avarento nas boas notas e absolutamente incorruptível. Não havia para ele outro empenho que não fosse o saber perfeitamente a matéria. Os calouros esperavam a leitura das notas daquela primeira sabatina e tremiam na expectativa ansiosa de quem espera o pior.
O bedel iniciou a leitura. As notas eram de um a dez mas o professor coronel Pio Borges parecia não saber disso, já que utilizava quase que exclusivamente do zero ao cinco, principalmente o zero. Caíam as notas baixas sobre a turma aniquilada dos calouros. De repente o próprio bedel parou a leitura, a boca semi-aberta, um ar espantado de quem tinha enxergado algo inconcebível. Espiou alarmado para o professor. Mas como este não se movesse continuou a leitura:
— Número duzentos e quarenta e quatro, grau nove.
Agora a surpresa era geral, a classe toda atônita com aquela nota ótima dada por um professor da exigência do coronel Pio Borges. Pistolão não podia ser, o coronel estava acima de pedidos e amizades. Então teria que ser forçosamente algum rapaz de uma capacidade antes desconhecida na Escola Militar. Quem seria? Essa pergunta correu a classe, ciciada de boca em boca, a curiosidade extravasando dos alunos para o bedel e deste para o próprio professor que queria aproveitar o momento para identificar o autor daquela prova de sabatina tão perfeita que o deixara espantado ao corrigi-la e ao não encontrar o que corrigir.
Também o aluno duzentos e quarenta e quatro estava surpreso e algo espantado. Ele sabia que fizera uma prova boa, o que escrevera estava certo, ele o estudara conscienciosamente. Mas estava espantado da nota grau nove porque se acostumara a ver as boas notas, os graus máximos, serem dados aos alunos ricos. Desta vez alguém fizera justiça. Os rapazes ricos que no Colégio Militar arrebatavam-lhe com a força do dinheiro os graus mais altos sucumbiam sob as justíssimas notas baixas. Luiz Carlos Prestes encontrara um homem justo e refez-se da surpresa para se alegrar. Esse rapaz, amiga, estimava os homens e acreditava neles. Aquele professor o ajudava na sua fé.
Os alunos olhavam um pouco incrédulos para o rapaz franzino, ligeiramente corcovado, dono de um nascente bigodinho, a quem aquele nove não enchia de vaidade. Luiz Carlos tinha dezoito anos mas eram dezoito anos de vida pobre e difícil, dezoito anos observando como o mundo dos pobres lutava para não parecer, e não seria um simples nove, como não seria mais uma injustiça que iria afetar a sua tranqüila meditação sobre a vida.
Meditação sobre a vida, sim, negra. A tranqüilidade daquele rapaz franzino não era a tranqüilidade dos céticos que se desiludiram da vida e dos homens diante das primeiras tristezas. Não. Sob esta tranqüilidade havia um espírito vivo e curioso que observava e estudava, procurava causas, efeitos e soluções. Que se atracava aos livros porque nos livros estava uma parcela de experiência, eram resultantes da vida. Era necessário saber, saber muito penetrar o mais profundo das coisas ir até a raiz dos mistérios. A vida e a cultura. Tinha em casa, no colégio, nas ruas, os ensinamentos da vida. Nos pequenos fatos diários, como nos grandes. No aluno rico ganhando boas notas, em Dona Leocádia curvada Nobre as costuras, procurando desesperadamente um emprego de professora, nos obreiros do bairro, subalimentados e queimando os olhos em velas de cera para ler brochuras clandestinas. Vinha de toda parte a grande lição da vida. E dos livros vinha a explicação daqueles fatos. Esse rapaz vivia dentro da vida e sobre os livros. Eis por que, amiga, aquela nota nove, espantosa para os outros, não o afetou.
Aliás, amiga, já se desprendia, desse rapaz uma força moral que dominava os colegas. Desde o primeiro dia de curso ela se fez notar. São célebres os "trotes" anuais aos novatos, tradição de cada faculdade brasileira mais arraigada ainda na Escola Militar. Porém, de Luiz Carlos Prestes já se desprendia tal energia de caráter que a ele não trotearam. Não foi uma vitória da força física, um atleta escapando do trote pela força dos seus músculos. Esse era um rapaz delgado e baixo, mas tinha uma tal seriedade no seu riso despretensioso, deixava uma tal sensação de homem completo e formado que os outros abriam caminho à sua passagem e mesmo os mais velhos procuravam a sua companhia, impressionados com a inteligência e os conhecimentos daquele jovem.
Considerado o primeiro aluno da escola Militar desde a sua função, foi o ídolo dos colegas, o chefe, o juiz, o líder inconteste da mocidade que com ele estudou. Os jovens, amiga, têm uma estranha capacidade de adivinhar os homens. Já te contei em outra noite que os jovens da Faculdade de Direito do Recife souberam ver num menino de 16 anos que fazia versos atacando as retrógradas idéias que dominavam a cidade, o seu líder, souberam colocá-lo em frente a um homem já feito, como Tobias Barreto, e em frente à reação, aos preconceitos, à escravidão e à monarquia. Assim como os estudantes do Recife souberam adivinhar Castro Alves, souberam compreender a marca que ele já trazia, aquela marca de gênio popular, assim também os estudantes da Escola Militar do Realengo adivinharam nos 18 anos de Luiz Carlos Prestes a estatura do líder, souberam enxergar a marca de herói popular, de chefe do povo, que ele trazia nos olhos penetrantes, no sorriso que explicava tanta coisa.
Olhavam-no como algo poderoso e diferente, mas ainda assim próximo deles. Esse rapaz austero para consigo mesmo, ordenado e disciplinado, que fazia de sua vida escolar uma vida de trabalhos árduos e de estudos sem descanso, mas que era de uma enorme indulgência para com os outros, que nunca se envaidecia mas que também nunca se humilhava, que não desviava a atenção dos estudos nem para as mulheres que se encantavam com as flamantes fardas dos cadetes, que tinha plena consciência do sacrifício que sua mãe fazia para educá-lo e que queria ser digno desse sacrifício, esse rapaz não dominou, com a força do seu sorriso e com a força maior do seu exemplo, tão-somente os seus colegas de ano. Dominou também os mais adiantados e em torno dele se formou toda uma geração. Ainda estudante ele realizou aquilo que Benjamin Constant realizou quando professor, educou nos princípios de honra e de dignidade humana toda uma geração de militares brasileiros.
Aluno dos primeiros anos, era professor dos colegas de anos superiores. Não estudava apenas as matérias pelas quais tinha de responder. Estudava também as matérias dos anos seguintes para poder lecioná-las aos estudantes que lhe pediam explicações e aulas.
O segundanista Luiz Carlos Prestes ensinava a alunos de terceiro ano. Esse era um rapaz sem egoísmos. Na sala de estudos não estudava sozinho numa ânsia de vencer competidores. Estudava em voz alta, diante do quadro-negro, rodeado pelos colegas, estudando para si e para todos, preparando em conjunto, resolvendo diante dos outros os problemas escolares do dia seguinte.8
Ganhou a confiança e a admiração dos colegas. Esse rapaz que em breve seria o mais amado dos brasileiros, herói de todo um povo, a esperança de uma pátria, já tinha então esse dom de irresistível simpatia. Acompanhavam-no, certos de que ele sabia melhor que ninguém os caminhos e de que nenhuma ambição mesquinha o conduzia. Que seu coração era limpo e clara a sua inteligência. Não sabiam ainda que ele era o retrato do povo, filho do povo. Mas sabiam já que distantes dele estavam os cálculos dos demais, a ânsia de subir na vida, de escalar na vida, de escalar degraus rapidamente, fosse de que maneira fosse. Nenhuma preocupação de fazer carreira. Estudar para saber e ensinar. Aprender para poder resolver os problemas. Esse rapaz lhes mostrava todos os dias que ninguém pode viver somente para si existindo os homens lá fora, estrangulados pela fome de pão, de liberdade e de cultura. Aprendia para que todos aprendessem. Com Luiz Carlos Prestes, amiga, toda uma geração de cadetes estudou em função do povo.
Por isso o defendiam quando uma injustiça o afetava, como quando naquela vez na aula de desenho linear, tendo ele feito, como de hábito, não só o seu trabalho como o de vários colegas, e tendo o descuidado professor dado a um destes a tarefa de aplicar as notas, o rapaz concedeu grau dez a si mesmo e grau sete ao autor do seu desenho. 9 Ao serem lidas as notas, a turma escutou a injustiça:
— Luiz Carlos Prestes, grau 7.
Grau dez tivera o outro e os alunos gritaram:
— Mas se foi Prestes quem fez os dois desenhos! Luiz Carlos sorria, as injustiças não o abalavam. Na sua frente havia um largo caminho, essas injustiças escolares serviam para abrir os seus olhos para as injustiças do mundo para com os homens sem dinheiro. Por isso ele via o pedreiro, o pescador e o soldado. Por isso via o marinheiro e o sapateiro, o negro trabalhando nas docas, o camponês sem terra regando a terra alheia com o seu sangue. A pobreza era uma escola.
Os colegas o queriam e o defendiam. Viam nele um chefe, alguém que sabia mais e que via mais claro, alguém que não ficava nos livros, lia na vida e começava a falar do futuro como as profetisas que lêem nas linhas das mãos. Linhas da vida que eram as ruas pobres do bairro onde Dona Leocádía cuidava das crianças, economizando níqueis para poder comprar os livros para o filho, onde os obreiros escalavam as ladeiras árduas do morro em que viviam, ruas cheias das famílias dos soldados, cheias de angústias diárias e diários problemas de dinheiro.
Gerações de rapazes se perdiam em refinadas discussões intelectuais sobre os problemas do infinito misterioso, do após-vida, de Deus existindo ou não. Luiz Carlos notava que esses eram os ricos, os que tinham tempo vago e vida fácil. Os outros, os rapazes da sua rua, os soldados jovens e os jovens operários não tinham tempo para esses metafísicos problemas. Outros problemas mais chãos e mil vezes mais terríveis os torturavam. Era a comida do dia seguinte, era a doença em casa, era o senhorio cobrando o aluguel.
Esse rapaz sabia dessas verdades ocultadas com tanto carinho. E salvou da metafísica e dos devaneios toda uma geração e a trouxe para perto dos problemas do Brasil, para perto dos problemas do povo. Os homens que fizeram as revoluções de 22, 24, 30 e 35 foram educados por Prestes, tiveram nele o seu professor e isso quando ele era ainda aluno da Escola Militar. Dessa geração saíram os tenentes, os outubristas e os nacionais-libertadores. Dessa geração saíram os 18 do Forte de Copacabana, os homens da Coluna Prestes e os homens do 3? Regimento e da Escola de Aviação.
É que em meio a essa geração estava um menino pobre de olhos abertos para a vida, de alma debruçada sobre os livros, sentindo no seu coração o sofrimento do povo. Este enxergou o povo desde cedo e por isso, negra, os outros viram nele o chefe, aquele que tinha o que ensinar.
As injustiças, os triunfos, a confiança, e a admiração dos colegas e professores, a sua nomeação indiscutida e aplaudida pelos demais para instrutor-técnico de todos os grupos de engenharia e artilharia, a perseguição do professor de Arte Militar que não suportava os comentários inovadores do cadete e que jamais lhe deu uma nota superior a 7, incapaz de prever no seu agarramento aos detalhes consagrados que, com aquelas inovações, o seu aluno iria derrotar, poucos unos depois, a dezoito generais com fama de estrategistas durante a epopéia da Coluna, nada disso o afastava dos demais, nada disso o punha acima de todos, de peito inchado de vaidade e de sorriso superior. Ao contrário, amiga, era o mais humano dos jovens, amando a existência comovida-mente, os dias de saída sendo dias de felicidade familiar. Durante toda a sua gloriosa carreira esse genial condutor do povo, esse chefe, líder indiscutido, obedecido e amado, em nenhum momento deixou de ser o mais humano e simples dos homens. Gênio militar e gênio matemático, o primeiro do seu povo, coração de aço, condutor e guia, o primeiro dos operários, o primeiro dos camponeses, o primeiro dos soldados e marinheiros, o primeiro também das outras camadas pobres da população, dos progressistas e dos patriotas sinceros, foi sempre, em todos os momentos, o mais doce, o mais bondoso, o mais amigo de todos os homens.
Coração de aço como o coração do povo. Mas coração humano e compreensivo e bom como o coração do povo.
Os dias de saída eram dias de festa. Na casa pobre e limpa, Dona Leocádia sorria contente. Luiz Carlos a rodeava de carinhos, alegre e travesso, preocupado com a saúde dela, enchendo-a de felicidade. E havia as irmãs. Luiz Carlos era desentoado como um bom militar. Mas as irmãs pequenas queriam canções com que chamar o sono na noite suburbana. E o aspirante a oficial que era o primeiro da Escola, que era o chefe dos seus colegas, o mais brilhante dos alunos e o mais querido dos companheiros, entoava com sua voz desafinada as ternas cantigas de ninar para adormecer as irmãzinhas. Sua voz enchia de carinho o quarto:
"Bicho tatu, sai de cima do telhado..."
Bicho tatu sobre o telhado da casa pobre. Sobre todos os telhados de todas as casas pobres do Brasil. O bicho tatu da exploração do homem pelo homem, da pátria sacrificada às ambições desmedidas dos governantes, do povo sofrendo, da gente sem o que comer e sem o que beber. Luiz Carlos Prestes, nas suas noites familiares da juventude, enquanto cantava para as irmãs, pensava no Brasil que o rodeava. No povo do Brasil. Os problemas imensos enchiam sua cabeça jovem. Mas a irmã reclamava contra a paralisação do canto desafinado e ele sorria e se voltava para ela e sentia o seu coração estremecer de amor.
Essa a lição que nos ensina hoje, amiga. Ninguém por mais alto que suba, por mais que seja admirado e querido, pode deixar de ser humano, de sentir, com todos, todas as alegrias e, todos os sofrimentos, mesmo os menores, os mais ínfimos, os quase imperceptíveis que duram apenas um momento, sem que deixe a sua altura e sem que perca o amor aos demais. Aço e amor, eis de que é feito o coração dos heróis. Assim o de Luiz Carlos Prestes, negra.
Lá está, em Realengo, amiga, a Escola Militar. De gloriosa tradição, surgindo a cada passo na História do Brasil, do Império à República, era a Escola Militar da Praia Vermelha. Nela ressoou a voz de Benjamin Constant, dela saíram o positivismo e a República, os chefes do exército que se negaram a combater os negros de Cubatão, dela saiu Floriano Peixoto.
De gloriosa tradição, amiga, é esta Escola do Realengo que sucedeu à da Praia Vermelha. Vê, negra, esta é uma Escola ilustre. No futuro, quando os dias forem melhores, quando a vida for uma permanente festa de trabalho e alegria, os homens pararão diante dela comovidos. As mulheres trarão flores nos braços agradecidos e os pais narrarão para os filhos a história desta Escola. As crianças olharão os pátios e as salas de aula com os vivos olhos brilhando. Ninguém passará diante dela sem que certa emoção não baile no seu peito. Essa é uma Escola ilustre, amiga.
Porque aqui estudou e formou seu caráter Luiz Carlos Prestes. Nos pátios desta Escola ele passeou, delgado rapaz, interessado na vida, os companheiros em torno: Juarez Távora, Siqueira Campos, João Alberto, Carlos da Costa Leite, Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias, Newton Prado. Ele falava, os outros ouviam, lá fora era o Brasil imenso, seus campos, suas montanhas, suas cidades, seus rios, o São Francisco, o Paraná e o Amazonas. De toda parte vinha um lamento, um clamor de desgraça, um pedido de socorro. A República deturpada, a democracia esmagada, a Pátria traída.
Em muitas outras escolas, amiga, universidades, faculdades e colégios superiores, não ressoou esse grito da Pátria ferida, do povo esfomeado. Os alunos viviam no brilho da inteligência, perdidos em frases de espírito, em fórmulas literárias novas e inúteis, em filosofias céticas ou reacionárias, tentando abafar numa gargalhada de gozo ou desconhecer num sorriso de menosprezo o clamor que ia lá fora, no Brasil imenso. As Faculdades de Direito, de Medicina, de Letras, de Agronomia, de Veterinária, de Química e de Engenharia viraram centros de literatura. De um soneto ou de um poema, partiam para mundos imaginários e distantes, para a fuga mais desoladora da vida, de um meio ambiente gritando por socorro. Na Faculdade de Direito do Rio, Ronald de Carvalho pesquisava ritmos novos, na Faculdade de Medicina da Bahia os futuros médicos discutiam gramática sob a batuta dos professores mais preocupados com o português clássico que com os micróbios, na Faculdade de Medicina do Rio, o professor Aloísio de Castro escrevia sonetos efeminados e ditava aulas na mais pura e afetada língua de Coimbra, fugiam todos da vida para o modernismo, para o neotomismo, se preparavam para o fascismo quando o seu momento fosse chegado. As faculdades desconheciam Marx, a guerra se transformava em literatura, o Brasil em um deserto de que fugir. A sombra nova que se debruçava sobre essas escolas era a pequena sombra de Marinetti.
E eis, amiga, que em meio a toda essa tristeza, a Escola Militar do Realengo forma uma geração de homens, forma uma geração de brasileiros. Para esta Escola existia o Brasil, existia a guerra, existiam os homens, não estava sobre ela uma sombra de poeta medíocre. Uma vida gravitava nela, fazia-a vibrar, fazia com que ela escutasse o rumor subterrâneo que vinha do país, que não o temesse, que não cerrasse os ouvidos para ele, que não o abafasse com uma gargalhada, não o menosprezasse com um cético sorriso. Nesta escola Luiz Carlos Prestes, debruçado sobre os livros, os olhos abertos para a vida, o coração aberto ao rumor que vem lá de fora, conduz com a presença do seu exemplo uma geração até o Brasil.
Como antes na Praia Vermelha, agora em Realengo chegavam numa cavalgada de gritos e clamores, os problemas do país. Para estes moços a pátria existia, a farda do exército era uma responsabilidade perante o país, perante o povo. O cadete Luiz Carlos Prestes, o menino pobre Luiz Carlos Prestes, lhes ensinava a responsabilidade do exército. Um velho bedel que viera dos dias da Praia Vermelha recordava no jovem de hoje a figura austera e magnífica de Benjamin Constant. Mas recordava também o consumir-se pelos destinos da pátria que era a marca de Floriano Peixoto. Nesta Escola do Realengo, amiga, passeou seus passos preocupados pelo Brasil o aluno Luiz Carlos Prestes. Em torno dele iam outros jovens: muito em breve o Brasil todo saberia desses homens, em casas pobres no interior, nas cidades na fímbria do mar, nas palhoças sobre os morros miseráveis, na beira dos grandes rios, haveria retratos de homens moços saídos desta Escola. Nas outras escolas, amiga, vai uma agitação, literária de falso brilho e de ridículos problemas. Aqui vai uma fervura de combate, um sonhar dos destinos do país, uma serenidade de grandes e graves problemas. No coração desses moços ressoa o clamor que vem do Brasil.
Um dia, amiga, iremos de braço dado, iguais a namorados recentes, num passeio até os pátios dessa Escola do Realengo. Ouviremos os toques de cometas, ouviremos os Comandos marciais, os alunos marchando, sentiremos de perto a evocação desses dias de ontem, quando um rapaz de olhos acesos, de rosto sério e profundo, de largo sorriso afetuoso, pregava dignidade, nobreza, coragem e patriotismo para os seus colegas. Através destes pátios, no silêncio destas salas de aula, veremos destacar-se a sombra inesquecível dos jovens cadetes de 1920. Suas figuras gigantes. Morrerão em 22 na praia elegante de Copacabana. Morrerão em 24 nas ruas ricas de São Paulo, nos pampas do Rio Grande, morrerão até 27 nos sertões do Brasil, desde o sul até o nordeste, morrerão em 30 com o povo a seu lado, morrerão em 35 na frente do povo. E viverão hoje, e viverão amanhã, com eles o povo que não morre, que se levanta mil vezes, "a liberdade não morre", nos ensinou o Poeta, negra. Uns já se foram, outros ainda lutam, esse jovem Prestes está encarcerado com seu povo. Desta escola, amiga, ele partiu para os caminhos da vida, dos gritos que chegaram até aqui e que ele soube sentir e desvendar para os outros, ele partiu para conhecer todos os mistérios de uma luta que se aproxima do seu fim. Partiu para se colocar à frente do povo. Dos pátios desta Escola, das salas de aula, dos ensinamentos, dos colegas ávidos da Pátria. Aqui o seu gênio recebeu os primeiros esclarecimentos e aqui ele temperou o aço da sua espada e do seu coração. Nesta Escola do Realengo, amiga.
Vê, negra, é uma escola ilustre esta escola. Aqui foi o princípio de Luiz Carlos Prestes. É como se eu te dissesse: aqui começou a história moderna no Brasil.
A casa suburbana ficava perto de um morro, numa vila de vinte casas iguais, no fim da Rua Magalhães Couto, no Méier. Rua sem calçamento, enlameada, esburacada e pouco edificada, um capinzal e terrenos baldios a limitavam, seu horizonte mais próximo era o morro de lavadeiras e operários. O negro estivador, marido de Julieta, a lavadeira, por vezes descia o morro para dar uma prosa com o "seu tenente", porém, outras vezes, era o jovem tenente Prestes quem escalava as ladeiras ensolaradas para ouvir da boca do estivador o relato da dura vida do cais. A rua pobre, o morro miserável eram um mundo para o tenente de vinte e um anos.
Saíra da Escola Militar em 1920. Tenente de engenharia, foi mandado servir no Batalhão Ferroviário, que construía ramais da Estrada de Ferro Central do Brasil, no subúrbio de Deodoro. Aplicou-se ao trabalho com o ardor que lhe era próprio, com o mesmo afã com que se aplicara aos estudos. Agora queria pagar à família os sacrifícios que fizera por sua causa. Porém nesse jovem tenente, amiga, não havia lugar para egoísmo, nem mesmo para um nobre egoísmo. Nunca pôde isolar-se dos demais, viver para ele só, ou mesmo para ele e para a família. Sentia por muito mais gente, seu interesse pelos demais vinha de dentro de si. E seus soldados compreenderam logo que aquele tenente era diferente dos demais, que não se contentava com dar ordens, com fiscalizar o trabalho. Ia para o meio deles, dirigia pessoalmente, consertava com um sorriso o que não estava bem feito, demonstrava praticamente o que se devia fazer, trabalhava tanto como um deles. E mais que isso, sempre aparecia disposto a lutar pelos soldados quando os interesses deles eram pisoteados por oficiais ciosos dos seus galões, despóticos do seu posto. Não permitia injustiças, os soldados notavam com estranheza que para esse tenente Prestes eles eram feitos da mesma carne e do mesmo sangue que os oficiais, por mais alta que fosse a sua hierarquia. Então, como antes os alunos da Escola Militar, os soldados cercaram Luiz Carlos Prestes e se fizeram seus soldados. Uma vez um deles explicou aos outros:
— O pai do tenente foi soldado como a gente. Ele sabe...
E o avô amiga, fora calafate e a mãe era adjunta de professora noturna, saindo todas as noites para a escola distante onde lecionava para ajudar a vida pobre da casa. E a irmã mais velha, Eloísa, trabalhava numa casa comercial para que as menores pudessem estudar. Ele vinha diretamente do trabalho a soldo, da vida difícil e pobre, dos sacrifícios para viver. Se sentia mais próximo dos sofrimentos dos soldados que dos envaidecidos galões dos oficiais.
Trabalhar para a família... Ajudar a que Leocádia e as irmãs tivessem uma vida melhor, mais calma, mais descansada. Muito haviam lutado para fazer dele um oficial. Se recordava de quando quisera deixar os estudos e entrar para o comércio, assim poderia ajudar com algum dinheiro a família. Leocádia lhe dissera então que o melhor que ele podia fazer era estudar e alcançar o oficialato, ajudando-as muito mais no futuro. Chegara esse momento. Agora cabia a ele sustentar essa casa, dar repouso a Leocádia, descansar Eloísa, dar um pouco mais de conforto às irmãs pequenas.
Todas as noites ia levar e buscar Leocádia no bonde que a conduzia à escola. Para ele era um dever e uma alegria. Esse filho e essa mãe continuavam os mais afetuosos companheiros. A gente os via passar, as mulheres comentavam num sorriso simpático:
— Lá vai "seu" tenente com a mãezinha... Um homem bom...
Ele passava com Leocádia, os cumprimentos se sucediam. As moças sorriam, os homens o estimavam. "Um homem direito" — diziam.
Em casa era um sem-fim de que fazeres. Tomava as lições das irmãzinhas, era o seu professor. Voltava a sair logo depois, quando chegava a hora de Leocádia regressar da escola. E quando a família já dormia, ele se encerrava no seu quarto e começava a estudar. Nascera matemático, mais que nenhuma ciência essa o interessava. Não deixou um só dia de estudar, de estar em companhia dos seus livros, como não deixou um só dia de viver intensamente a vida. E até «lia madrugada brilhava a luz no seu quarto, servindo de comentários aos operários do morro:
— "Seu" tenente está estudando... Um homem de saber... No outro dia estava novamente com as irmãs menores, antes de partir para o trabalho. As duas crianças da casa enchiam uma parte da sua vida. Sempre amou enternecidamente as crianças e para estas, mais que irmão, ele fora o verdadeiro pai. Brincava com elas e lhes ensinava as lições. Sua chegada aos sábados era uma festa porque elas sabiam que ele nunca vinha de mãos vazias, trazia sempre um livro ou um brinquedo. Rodeavam-lhe o pescoço e, levando as duas pequenas como um colar, ele entrava em casa entre risos e beijos.
Seu interesse ia até aos animais domésticos. Os passarinhos que gorjeavam nas gaiolas, a cachorrinha Milonguita e a grande e sedosa gata preta, a Frou-frou tão ciosa da sua ninhada de gatinhos vivazes.
Dona Leocádia, nos seus momentos livres, plantava o jardim, cuidava de flores e pássaros. Prestes era o seu ajudante como era o carpinteiro da casa, manejando a enxada ou o martelo com a mesma mestria e a mesma alegria sã com que manejava seus instrumentos de engenharia.
Nas noites de domingo fazia música. Sentava-se à citara e suas mãos calosas arrancavam os sons melodiosos que enchiam de poesia a casa suburbana. Não era alheio à arte, amando a beleza, o canto, a música e a poesia. Os vizinhos chegavam, gente modesta da rua, gente ainda mais pobre do morro. Por vezes dançavam, o tenente era desajeitado para dançar, ficava conversando com os homens. As moças de grandes laçarotes nos cabelos, de vestidos domingueiros muito engomados, olhavam-no entre suspiros mas para ele ainda não chegara o dia do amor, e o tenente Prestes não compreendia os suspiros e os sorrisos. Seu coração estava todo para a sua família e para os problemas do seu país. Dançavam, cantavam, jogavam jogos de prendas, o tenente ia para a berlinda, as moças diziam que ele estava lá porque era sério demais, não gostava de namoro.
Outras noites ficava a família em torno da mesa da sala rememorando, na intimidade, fatos e lembranças, fazendo planos para o futuro. Apesar de tudo, Leocádia ainda pensava ver o filho médico um dia, curando enfermos numa cidade pequena do interior. Falavam do capitão Antônio Pereira Prestes, o positivista, o que morrera pobre para não se dobrar aos donos do poder. Conversavam tranqüilos assuntes da vida diária, os filhos da gata negra, as travessuras e graças das irmãs pequenas faziam conjeturas sobre o crescimento da madressilva que se enrascava no caramanchão ou sobre quando floriria a roseira de rosas vermelhas como sangue. Prestes se interessava por tudo, intervinha nos mais diversos assuntos. Só não falava dele mesmo. Era de uma modéstia além dos limites. Nunca dizia dos seus sucessos nos trabalhos, dos elogios recebidos. Modesto no viver, modesto, nas roupas, querendo que os familiares tivessem tudo, não fazendo questão de nada para ele.
Decorria doce, tranqüila e feliz a vida da família. Trabalhava-se, conversava-se, vivia-se numa paz terna e quente, cheia de afeto e de compreensão. Assim foram esses anos de 20 a 22.
Nem mesmo a gente da Rua Magalhães Couto, no subúrbio do Méier da cidade do Rio de Janeiro, poderia imaginar que, em meio àquela felicidade, o tenente Prestes levasse no peito infinitas preocupações. Que se preparava para uma revolução.
Sim, amiga, porque para esse homem não existia vida diz que o fizesse esquecer do Brasil, a vida desgraçada dos homens seus patrícios. No trabalho, com soldados e os oficiais, no subúrbio com os pequenos comerciantes, com os vizinhos, com a gente do morro, ele sentira a necessidade da revolução. Em casa faziam planos para o futuro, no quartel ele conspirava. Toda aquela paz seria quebrada sem dúvida, toda a esperança de um futuro mais feliz seria deixada de lado, mas, que importava? A Pátria e o povo reclamavam o jovem capitão. Capitão, sim, amiga, que rapidamente ascendera de grau, seus enormes conhecimentos dando-lhe um prestígio excepcional no exército. Se não pensasse naquele clamor do povo que começara a ouvir nos bancos da Escola Militar, poderia fazer uma carreira rápida e fácil. Tinha saber, a inteligência e a cultura. Dominava a sua profissão como ninguém. Mas, mais que nenhum outro, ele ouvia os gritos desesperados que vinham dos quatro cantos do Brasil. Sua geração conspirava, os homens que ele havia formado na Escola Militar conspiravam para derrubar um governo divorciado do povo. E conspirou também.
Na doce paz do lar, Leocádia vivia feliz. Luiz Carlos Prestes chega um dia até ela, conta-lhe sua atitude. Bem sabe ele que Leocádia concordará e será a primeira a desistir de qualquer sonho e de qualquer interesse para vê-lo lutando pelo seu povo. Para ela o Brasil estava antes de todos os outros interesses.
Doce vida familiar, tranqüila existência de paz. Mas não era uma doce vida a vida do Brasil, amiga. Era triste e terrível. Um povo pedia pão, cultura e liberdade. Muitos não quiseram ouvir esses gritos, tinham uma doce vida de família, projetos e sonhos. Que importava a pátria, que importava o povo?
Na noite conspirativa das reuniões clandestinas, Luiz Carlos Prestes deixa a terna quentura familiar pelo ambiente exaltado dos revolucionários. Em breves dias será o 5 de julho de 1922. Prestes se prepara para ele. Em casa as irmãs dormem, ronrona Frou-frou junto aos seus gatinhos, descansa Milonguita das traquinadas do dia, não cantam os canários, só Leocádia vela. No meio da noite o filho chegará. Virá do traçamento de planos, do acordar resoluções, virá de sonhos também. Ela compreende. Pensava-o sonhando sonhos para a família. Era demasiado pouco para ele: Luiz Carlos Prestes sonhava sonhos para o Brasil.
Vinha desde o mais longínquo e desde o mais próximo recanto do Brasil, amiga, de todas as partes vinha esse grito que os oficiais e os soldados do exército escutavam. Soluços, clamores, ais que se transformavam num grito, um sonho que nascia de uma desgraça repetida cotidianamente. Vinha desde os dias em que os senhores de escravos, ex-donos da monarquia, se apossaram da República e a vilipendiaram e transformaram numa escrava sua.
Esse povo do Brasil, negra, é um povo heróico. Eu queria ser dono dos adjetivos do mundo para te falar sobre ele. Queria saber as palavras mais doces, as mais ternas e as mais humanas e as mais heróicas para te dizer da coragem e da confiança que latejam no coração da gente brasileira. Pisado e acorrentado, ignorado e desprezado, de mãos atadas, de boca cerrada, comendo o indispensável para não morrer, traído e insultado, o povo do Brasil não desespera e não se tranca numa indiferença suicida. Luta, clama, grita, brada e cria do seu sangue os seus líderes e os seus heróis. Heróico povo esse, resistente e digno, esperança sem fim nas suas canções, esperança nos seus gritos, esperança nos dias de desgraça que nada mais são que a véspera do dia da liberdade. Tremem os donos do dinheiro e do poder porque nunca serão donos da vontade desse povo, nunca conquistarão seu libertário coração rebelde. Nunca esse povo se desesperou nem nos momentos mais angustiosos. Clamou sempre, numa luta de todos os minutos para rebentar as cadeias que prendem os seus pulsos. Gritou com Tiradentes e com os poetas mineiros na aurora da liberdade, nos dias da inconfidência. Na voz de Alvarenga e Gonzaga, no martírio e na nobreza do alferes esquartejado. Gritou nos dias da Independência, a voz de José Bonifácio. Gritou com Zumbi, nas selvas dos Palmares, gritou com os negros nas selvas do Cubatão, gritou na Bahia na revolta do alufá Licutã na frente dos negros males. Gritou nas ruas do Recife, gritou pela boca de Frei Caneca sorridente diante do pelotão de fuzilamento. Pela boca dos gaúchos nas revoltas do sul. Com Benjamin nos dias da República. Com a maior das suas vozes, clamor de beleza na voz de Castro Alves, construindo liberdade. Gritou com a serena força de Floriano Peixoto consolidando a República e defendendo a integridade da Pátria. E seu clamor continuava, subterrâneo, insistente, cada vez mais poderoso. Heróico povo esse, amiga! No seu sofrimento gerava dolorosa mas tenazmente o seu Herói, sua voz e sua espada. Humanização desses gritos, o povo concebia Luiz Carlos Prestes. Nascido do sangue de Tiradentes e da voz de Castro Alves. Do coração do povo. Sua voz e sua espada.
Era no princípio da República, amiga. Floriano tomara o governo. Esse tabaréu das Alagoas, desengonçado e pouco amigo de sorrir, via os ideais da República perecerem. Os senhores da monarquia, os ex-donos de escravos, os novos donos dos escravos dos moinhos e das fábricas estrangeiras que se estabeleciam, das fazendas em crescimento, queriam novamente se apossar do poder. Governar contra o povo e contra a pátria, a favor apenas dos seus interesses. Em torno de Floriano, os "tenentes" da época, os discípulos de Benjamin Constant, o romancista Raul Pompéia se consumindo no amor às turbas populares, o teatrólogo Artur Azevedo, uns quantos jornalistas, a imensa massa humana. Contra ele a gente que tinha as terras, que tinha as fábricas, os títulos de nobreza, os empregos bem pagos. Rui Barbosa, advogado dos ingleses, os senhores das fazendas de São Paulo e Minas, o monarquista Silveira Martins, os almirantes saudosos da proteção da Corte. Queriam se apossar da República. Fizeram a revolta, Floriano a aplacou com mão de ferro. Os interesses ingleses, que os revoltosos defendiam, tentam proteger e ajudar cinicamente os reacionários em armas. O Ministro da Inglaterra vai a Palácio perguntar a Floriano como ele receberia um desembarque de tropas inglesas para "proteger os interesses dos súditos britânicos". O tabaréu das Alagoas não alterou a voz para responder:
— Recebo a bala...
Esse era o momento do povo no poder, amiga, a República a serviço do Brasil, dos seus interesses, do seu progresso e da sua independência política e econômica. Mas Floriano era um patriota, não era um político. Realizou eleições honestas. Os limites que a Constituição impunha ao povo no direito de voto faziam com que apenas uma parcela mínima da massa popular pudesse exercer as funções de eleitor. Num país de analfabetos, com uma enorme proporção de escravos recém-libertados, só as pessoas que sabiam ler e escrever podiam votar. Demais a máquina eleitoral montada na monarquia não fora destruída, era que funcionava na República. E como Floriano era incapaz de fraudar uma eleição e como não compreendera que a Constituição devia ser alterada nos itens referentes ao direito de voto, os senhores de escravos ganharam a República. O povo, logo depois, diria pela voz dos seus tribunos:
— Essa não é a República dos meus sonhos.. .
Não era a República dos positivistas, dos cadetes do exército, dos homens da Abolição, do poeta Castro Alves, dos tribunos Silva Jardim e Lopes Trovão. Era, igual à monarquia, o governo de alguns contra a imensa maioria do povo.
O governo de alguns que venderia as mudas dos seringais aos capitalistas estrangeiros e destruiria a economia da borracha. No princípio do mundo da Amazônia, amiga, nas terras e nas águas do grande rio onde nascem as febres e as assombrações, nesse mundo se gerando ainda, ilhas arrastadas pelas águas, terra parindo terra e parindo vida, o começo de tudo, os grandes animais da água, as grandes árvores da terra, as aves aos milhares, o homem assombrado chegando cedo demais para uma terra em começo, chegando do Nordeste das secas com aquela rude valentia que é maior que qualquer coragem, nesse mundo crescia selvagemente uma espantosa riqueza do povo do Brasil. Na selva impenetrada e impossível de penetrar cresciam os seringais, seios de que brotavam os rios da borracha, riqueza de um povo. Ela surgiu um dia como uma esperança de vida melhor. Não era branca e leitosa para os olhos ávidos dos homens. Era metálica e amarela, dessa cor de ouro que têm todas as coisas que produzem dinheiro. Mas tinha ligada a si igualmente essa tragédia de tudo que, com o dinheiro, traz ambições, lança o homem contra os outros homens, seus irmãos. Nasceram as cidades, o sonho da Amazônia era uma realidade espetacular. Empurrado pelo chicote das secas, do sol queimando o pasto verde, matando o gado e os homens, bebendo na sua infinita sede a água das cacimbas, os cearenses rumaram para a Amazônia. Antes era o país das lendas, das mulheres guerreiras, do boto, da Cobra Grande, de Ci, os índios soltos vagando pelas selvas. Os cearenses chegaram e foi o país da Amazônia, foi a cidade de Manaus nascendo no meio do rio e da floresta, entre a água barrenta do Amazonas e a escura água do rio Negro. Foi de repente a civilização: os palácios, os cabarés, os navios, os caminhos de ferro, a ampliação das fronteiras da Pátria, os homens viajando de Manaus e Belém para a Europa, Paris, Viena, Lisboa e Londres, castanholas em Madrid, amantes em Montparnasse, bancos na City, queijadinhas na estrada de Cintra. Os portugueses chegaram com seus estabelecimentos comerciais, comprando a borracha que descia dos seringais, sangue das árvores e sangue dos homens misturados. Os portugueses enriqueciam e iam construir teatros, hospitais e escolas nas aldeias das províncias natais do outro lado do mar. Chegaram os sírios, aventureiros do século XX, a mala de mascate na primeira subida do rio, na primeira descida do rio a grande casa elegante de modas nas ruas de Belém, nas ruas de Manaus. Dentro da selva, lutando contra a terra na infância, se gerando, lutando contra a água mais poderosa que o sol no dilúvio diariamente repetido do rio como um mar, lutando contra a febre, a cocaína do impaludismo, o veneno do tifo, a desgraça da lepra, lutando contra os animais, penetrando a selva impenetrável, rasgando os caminhos de um mundo, caçando a sua comida todos os dias, sem mulher para as suas noites de assombrações, dentro da selva o nordestino, também o amazonense filho de branco e índio, construía a riqueza. O português a comprava, o sírio a negociava por berliques e berloques, os ricos do país nos seus sobrados de Manaus, nas suas casas coloniais de Belém, nos rendez-vous elegantes do Rio, na Glória ou no Catete, na casa de prostitutas refinadas ou nos palácios governamentais, usufruíam desse trabalho, desse morrer a cada momento, desse vencer a morte sob todas as formas a cada momento, na mais trágica e emocionante epopéia moderna que é a aventura do cearense na Amazônia nos dias da borracha. Na selva, comido pela febre, coberto pelos mosquitos, lençol da Amazônia, estrangulado pelo rio violado no seu mistério, odiado pelo índio dono da terra e expulso da terra, o trabalhador do Nordeste segue sempre. Sua canoa corta as águas do rio, uma perna para o crocodilo, um olho para a seta do índio, o sangue para o impaludismo, que restará para as grandes cobras que imitam as curvas dos igarapés? Mas segue sempre. Pôs os trilhos da Madeira—Mamoré, a estrada de ferro mais cara do mundo, comendo dinheiro, comendo gente. Repara bem, amiga, e então verás que esses dormentes sobre os quais assentam os trilhos não são de madeira, se bem haja demasiada madeira nessa selva. Esses dormentes são feitos de corpos de homens que morreram na construção dessa estrada. Sobre esses corpos estão os trilhos, sobre eles correm os trens na selva de espantos. Essa é uma história que só o rio Madeira sabe, só ele te poderia contá-la detalhe por detalhe, e tão terrível ela é, amiga, que tuas lágrimas de dor formariam outro rio junto aos rios da Amazônia. Rios de sangue na água branca dos igarapés. Dentro da selva o cearense segue, seu coração é de bronze, forjado na forja do Ceará com o fogo do sol, temperado nas secas, a família morrendo, o cavalo caindo, o gado agonizando, antes fora verde pasto nessas campinas hoje é deserto só. Aí ele aprendeu sua valentia indômita e com ela partiu para a Amazônia, contra a selva, o rio e as febres. Essa riqueza, essa imensa e incomensurável riqueza que desce o rio, em navios, em canoas, batelões, milhares e milhões de quilos de borracha, é trabalho dele, é a sua vida, o seu sangue, sua esperança. Nas cidades o português espera, o sírio espera, espera o brasileiro, o milionário e político feito pelo milionário, nos quilos de borracha chegados do fundo da selva vêm o progresso, a civilização, a alegria de viver. Terra rica e fecunda que ele nunca viu mas que é sua. Porque, amiga, essa terra não é do cearense que a conquista. Ela tem dono, tem senhor que a possui e a goza como se goza a mulher. O cearense que a conquista é seu escravo apenas. São assim as histórias da Amazônia, amiga.
Nas ruas asfaltadas de Nova York, Chicago, Los Angeles, Londres, Paris, Berlim, todas as cidades do mundo, rolam os automóveis sobre o sangue cearense. Eis, amiga, que o czar de todas as Rússias não assassina apenas os operários e os camponeses do grande país do norte. Quando ele sai no seu automóvel seus pés de pneus são feitos com sangue cearense derramado nos seringais da Amazônia. Ford se nutre desse sangue, dele se nutrem Wall Street e a City. Por detrás dos brasileiros ricos, dos políticos da capital ou dos Estados, por detrás do sírio aventureiro, do português comerciante, está o capital estrangeiro. São os dois extremos, amiga, do drama da Amazônia, na sua esperança e no seu esplendor. Embaixo, com seus músculos de gigante, o cearense sustenta como a base de uma pirâmide, os comerciantes de Manaus e Belém, os milionários do Brasil, a cobiça dos capitalistas dos países estrangeiros. Estes estão no cume dourado da pirâmide. A eles não custa nenhum trabalho. Com um pouco de dinheiro compram a riqueza de um povo.
Os ingleses acharam que não havia por que comprar a borracha ao Brasil quando lhes sobravam terras onde plantar os seringais. Mas, como conseguir a árvore da borracha, quando só nascia, crescia e vicejava na Amazônia? Não foi difícil solucionar o problema, amiga.
O cearense sabia do crocodilo, da cobra, do índio, da febre que o mosquito trazia, das noites masturbadas no sonho impossível de deitar com uma mulher, das feras soltas, da comida conquistada e sem tempero, sabia da floresta inimiga, do rio inimigo, sabia dramaticamente do patrão presente no chicotear do capataz, na espingarda assassina nas tentativas de fuga, mas nada sabia de alguém sobre o rio, a febre, a selva, o capataz, o patrão, a escravidão e a riqueza. Não sabia do imperialismo se debruçando sobre todos os mistérios da Amazônia, cobiçando todas as suas riquezas, a borracha extraída, as mudas de seringal que criariam outras florestas no mundo e transformariam a desgraça e a fortuna do homem na Amazônia numa tragédia inglória e sem beleza. Que podia saber um trabalhador cearense impaludado dos mistérios econômicos do mundo? Para ele já sobravam os mistérios do rio.
Um dia, amiga, um governante, cínico, desavergonhado, inimigo da pátria e do povo vendeu para com isso aumentar seu cabedal, as mudas dos seringais ao governo inglês.10 Que importam a esses governantes, negra, o povo e a Pátria? São palavras sem sentido para eles. Para eles existe a sua pança que deseja manjares finos, seus olhos desejam espetáculos belos, seu corpo que deseja mulheres jovens, lindas, ternas e carinhosas. Existe seu corpo de lama, seu coração ávido de fortuna, dinheiro nas mãos trementes de avareza. Que importam o povo e a Pátria? Que importam o progresso e a felicidade do Brasil? O capitalista estrangeiro comprou barato as mudas de borracha. Enriqueceu mais o governante, o país da Amazônia empobreceu.
Nunca mais, amiga, os portugueses de Manaus e de Belém construíram teatros em Lisboa, nunca mais queijadinhas em Cintra, os sírios voltaram a carregar as malas de mascates nas subidas e nas descidas do rio agora pobre. Agora nas ilhas da Oceania, sobre desgraçados destinos orientais, caía o chicote dos capatazes ingleses, em plantações simétricas, ordenadas e aptas para um máximo rendimento. Agonizava a borracha do Brasil. Os ricos de Belém não acabaram a sua igreja de mármore e ouro a Nossa Senhora de Nazaré para agradecer tanto dinheiro que agora era tanta pobreza. Nunca mais Paris, sabedorias sexuais das mulheres francesas. Um pedaço da Amazônia foi dado a Ford. O inglês tinha levado as mudas de borracha, tinha terra onde plantá-las. O americano quis as mudas e as terras. Sobre o solo brasileiro, no mistério dos rios, sobre o boto e o pajé-grande, tremula em terras da pátria do Brasil a bandeira ianque das quarenta e oito estrelas. Sobre o cearense, escravo ontem do rico brasileiro, do português, do sírio, escravo hoje de Ford. Nunca mais, amiga, os ricos de Manaus foram a Nova York olhar os arranha-céus, tomar uísque falso, ver as estrelas de cinema em carne e osso. Os ricos de Manaus ficaram os pobres de Manaus, bebendo cachaça nacional nos bares da cidade, olhando com tristeza o seu enorme teatro dos tempos da borracha alta. E, como era pouco, deram outro pedaço aos japoneses, mais novo imperialismo queria também sua dentada de Brasil. Nunca mais, negra, os ricos da Amazônia puderam gritar nos palácios governamentais do Rio para trêmulos governantes. Seu chicote de mando era feito com dinheiro da borracha e isso foi um dia. Na borracha, agora, só há mesmo o sangue do cearense, cada vez ganhando menos para que o patrão possa ganhar para seus vícios adquiridos na alta. Mais febre, mais falta de tudo, de medicamentos e de mulher, nem mesmo para os ricos há um sonho de esperança. Sobre a Amazônia, no topo dos navios, a bandeira inglesa conduzindo mudas e mudas. Sobre a Amazônia, a bandeira americana na Fordolândia. Sobre a Amazônia, a bandeira japonesa nas colônias à margem do rio. E sob a Amazônia, como um rio mais largo e mais volumoso que todos os rios reunidos da gleba imensa, o sangue cearense corre, corre, é um soluço, é um ai dolorido, é uma voz pedindo socorro, um brado, um grito, um clamor. Junto deles gritam ex-ricos de Manaus e Belém, os brasileiros, os portugueses, os sírios. Gritam os escritores, romance de Ferreira de Castro, contos de Peregrino Júnior. Um grito, amiga. Vem da Amazônia vendida e empobrecida, ressoa no coração dos tenentes, vibra no coração de Luiz Carlos Prestes.
Na Academia Brasileira de Letras, amiga, um homem do país dos rios falava da Grécia. Coelho Neto era de um dos três Estados amazônicos, Amazonas, Pará, Maranhão, seus destinos ligados ao grande rio. Havia o cearense, o português, o sírio, o índio, o homem rico e o homem pobre, não havia mulheres, havia a selva, a tragédia, o drama, o inferno em vida. A Amazônia era milhares de romances, de artigos, de poemas. Coelho Neto era o símbolo e o chefe de toda uma literatura. Dos homens que haviam substituído na prosa, à geração de Aloísio Azevedo, de Raul Pompéia, de Artur Azevedo, de Manuel Antônio de Almeida de Machado de Assis, de Euclides da Cunha e na poesia a geração de Castro Alves. Coelho Neto, "Príncipe dos Escritores Brasileiros", considerado o maior de todos os que escreviam no país naquele momento, a literatura dando-lhe um lugar na Câmara, outro lugar na direção de um clube de futebol, dando-lhe empregos. Publicou duzentos livros. Sua letra bonita encheu milhares de folhas de papel, frases,, adjetivos, verbos, substantivos, imagens trabalhadas, períodos estudados, os problemas da língua portuguesa de Lisboa caprichosamente analisados. Nem uma linha nesses milhões de linhas sobre os homens lutando na Amazônia, nem uma linha, nem um desaforo, nem um xingamento, contra os que vendiam a Amazônia. Coelho Neto não sabia palavras feias, nem palavras duras. A literatura de toda essa geração sem fibra, sem nervos, toda uma geração vendida por migalhas, é a mais inútil e falsa literatura do mundo. Mulatos do nordeste e do norte, mestiços do sul, imigrantes de São Paulo, falando todos eles na Grécia. São Luís do Maranhão não é uma cidade do norte do Brasil: é a "Atenas Brasileira", se orgulhando de falar português puro.
A política vendia o país, contraía empréstimos, girava em torno de um produto, ora a borracha, ora o café, ora o açúcar, os literatos ignoravam o país. O povo ignorava os literatos e estes vendiam seus livros em Portugal, quando os vendiam. Para essa geração de sensibilidade de moça-de-cidade-pequena o Brasil não existiu. A literatura era a escada para empregos, o livro e o artigo matéria para brilho social. Foi essa geração, amiga, quem pariu num aborto cretino a célebre frase: "A literatura é um sorriso da sociedade". A sociedade bailava nos salões pagando com ouro estrangeiro a orquestra, pagando com dólar, com libra, com marco, com franco, os vestidos, os sapatos, os sorrisos das mulheres, os sorrisos dos literatos. A tradição de luta e de brasileirismo da literatura nacional se perdia nesses desfibrados, maus escritores além de tudo, reles imitadores de quanta porcaria se publicava na Europa. Comprados por míseros empregos, respondendo à sensibilidade de uma burguesia que não a possuía, preocupados com ridículas questiúnculas gramaticais, trancados numa torre que não era de cristal porque era de um vidro fosco e opaco, esses mulatos pernósticos do Maranhão, de Pernambuco e da Bahia, esses filhos de imigrantes de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que falavam em Grécia e em Paris, traíam a sua missão de escritor, desconheciam seu povo, empregavam sua voz apenas em cantar ditirambos aos vendedores da pátria. Resultavam da classe que enriquecia à base da entrega do Brasil aos imperialismos. Por isso mesmo tinham de ser "neutros", "apolíticos" e medíocres.
O fenômeno Coelho Neto, como símbolo da literatura nacional da época, subproduto da má literatura européia de então, mostra o divórcio entre o povo e os homens que governavam. Os escritores novos surgiam para a vida diante da angústia de ter que se trancar nos gabinetes, burilar um soneto alexandrino bem medido e de rimas ricas, para poder subir na carreira das letras. Terminavam falando em Grécia, falsificando os sertanejos do Brasil em maus romances, apresentando uma sociedade que não existia.
Esse fenômeno literário que tentaria repetir-se nos dias do Estado Novo, essa literatura desconhecendo o povo, fugindo para distantes paragens, sendo apenas escada de empregos, escada para carreira política, recebia, ela também, ordens de Wall Street e da City por intermédio dos seus caixeiros brasileiros. Nos jornais brasileiros do imperialismo europeu e americano, Coelho Neto e outros cuspiam sua pequena literatura de pastiches. Tinham um sagrado horror pelo povo, o povo não tomava conhecimento do escritor como um homem útil e digno. A literatura era um balcão onde se vendiam sonetos, frases e consciências.
A história do Brasil nesses anos, que vão de 1900 a 1922, é a história do café. Vem de antes a interferência da economia cafeeira na política nacional. A abolição levou o café a apoiar os republicanos. O café luta contra Floriano domina o país com Prudente de Morais para não mais abandoná-lo até o ciclo dos levantes. Assentada sobre este produto a vida econômica nacional, em torno dele girou a política. Os dois estados de maior produção, São Paulo e Minas, se revezavam na presidência da República. Através do café vinham os interesses ingleses e americanos em luta, mais os alemães e os japoneses penetrando. Era a Docas de Santos, as estradas de ferro, as minas de ouro, o contrato da Itabira Iron, os ingleses levando vantagens, os americanos querendo fazer um presidente seu. Os alemães acumulavam gente no Paraná, em Santa Catarina, amanhã seria o dia do nazismo e com ele o integralismo e a política dos marcos compensados.
O parque industrial de São Paulo se desenvolvia, mas o governo continuava a responder às ordens da oligarquia fazendeira, dos donos dos pés de café. Os presidentes que se sucediam não traziam nenhum caráter progressista, vinham quase que diretamente das fazendas de café de São Paulo e Minas, a preocupação desse produto, a preocupação dos empréstimos para pagar empréstimos anteriores, a derrocada dos dinheiros públicos, a indiferença absoluta pelos problemas do povo. A servilidade de menino medroso diante do professor sendo a sua atitude perante as nações poderosas que lançavam seus capitais no Brasil, donas da luz, do gás, do ouro, do ferro, dos bondes, dos trilhos, de grandes extensões de terra. Prudente de Morais e Campos Sales iniciaram essa política. Estavam longe se bem próximos na medida do tempo, os dias em que Floriano respondia com uma frase de homem ao Embaixador agressivo. Hoje os governantes eram só humildade diante dos embaixadores. Frases doces e mansas. Até esses ouvidos não chegou nunca o clamor que vinha do Brasil. Os positivistas que haviam feito a preparação ideológica da República olhavam espantados para o espetáculo governamental. Do poder central, o café e o imperialismo se lançavam sobre os Estados, fazendo os governadores, as câmaras, os senados. Os imperialismos se aliavam aqui, lutavam mais adiante, se pegavam nas eleições, faziam governo e oposição. Era o tempo, negra, quando ainda não se falava em proletariado e se tratava o povo com um desprezo olímpico.
Nas fazendas de São Paulo e Minas os camponeses do nordeste, os matutos paulistas, eram acusados de indolentes pelos senhores da terra. O imigrante italiano ou português se confundia com eles, sol a sol nas fazendas, trabalhando para um grupo pequeno de grandes fazendeiros.11
Nas lutas eleitorais as promessas se sucediam nos discursos e banquetes. O povo não se comovia. Perdera a capacidade de crer nesses homens e gritava para o futuro na esperança de que, dos seus gritos, nascesse algo novo. Esses gritos é que abalavam as paredes da Escola Militar do Realengo. O café estava próximo, o governo também, a vida miserável das fazendas. Esses problemas, menos distantes que os da Amazônia, repercutiam nas conversas do Rio de Janeiro, nas noites nas casas de família, nos sindicatos que se formavam, nos bares, nas pensões de estudantes. E mais que tudo entre os jovens cadetes.
O café de São Paulo dava um presidente, o café de Minas dava outro. Mesmo as demais culturas do campo brasileiro desapareciam diante do rei-café. Os homens do Rio Grande, os homens de Pernambuco, os homens do cacau da Bahia, se alarmavam. Tinham eles também os seus interesses. E o café, soberano e único, os desconhecia no seu governo, como desconhecia o povo sofrendo nas cidades e nos campos.
Em alguns oficiais da marinha, amiga, naqueles que vinham dos salões do Paço para os dias mais democráticos da República, ficara um travo da rançosa fidalguia. Para eles os negros continuavam a ser escravos, os marinheiros não deviam ser tratados como seres humanos. A chibata era a boca com que esses oficiais davam ordens aos marinheiros.
Um dia um negro marinheiro revoltou a armada. Um grupo de oficiais pensava também que não havia motivo para tratar os marinheiros como escravos. Talvez fossem até maioria, mas o ar soberbo dos oficiais reacionários fazia com que estes não se definissem. Os marinheiros se levantaram, com eles os oficiais de máquinas. O negro João Cândido dominou a marinha, fez manobras, deu tiros, igual a um almirante no seu navio. O marinheiro era alguma coisa, não era só um animal para a chibata.
Nesse dia sobre a Guanabara correu o mais doce dos ventos. Sacudiu a bandeira dos navios o coração dos marinheiros. Doce brisa do mar, ajudando os revoltosos nas manobras. Havia quem apostasse que os marinheiros sozinhos não saberiam mover os grandes navios. Eles os conduziram com a mestria de rudes homens do mar. Prometeram-lhes tudo, enganaram-nos com anistia e promessas. A chibata voltou a rolar sobre as costas do negro João Cândido, mas nesse dia, amiga, os marinheiros haviam descoberto que não era tão difícil conduzir eles próprios os navios através das ondas e dos ventos.
Grito de marinheiros que ficou rolando sobre a baía de Guanabara. Rolando sobre a cidade e sobre o mar.
Nas eleições presidenciais de fraudes, promessas e compras de votos, alguns dos problemas surgiam à tona num grito mais angustioso. O povo saía à rua, dele vinha esse grito, esse erguer de punhos, esse arfar de peitos. Até quando?
E veio a guerra, o Brasil mandou marinheiros, ganhou uns navios e a gripe de mil novecentos e dezoito. Grandes médicos saneavam o Rio, saneavam São Paulo, as cidades do litoral onde o estrangeiro morava. O medo que o europeu, senhor do dinheiro, tinha à febre amarela levava o governo a cuidar desses problemas. Mas o interior continuava abandonado, epidemia de tifo e de varíola, impaludismo, febres de todo tipo. Mas no interior não morava o inglês, nem o alemão, nem o ianque, todos esses que tinham dinheiro para emprestar ao governo, nem o brasileiro rico, o paulista e o mineiro do café. Esses residiam nas grandes cidades do litoral ou nas capitais européias. No interior moravam pobres-diabos cuja vida bem pouco importava. Para que sanear então esse imenso interior?
E veio a revolução russa, um vento de renovação correu no leste da Europa. O mundo começava a mudar a sua face.
Os literatos tipo Coelho Neto morreram anos depois sem saber sequer que numa sexta parte do mundo se criava uma civilização diferente, nova e bela. Eles pensavam estar na Grécia de Alcibíades e estavam apenas no Brasil de Venceslau Braz. Mas, amiga, nessa época havia no Rio um mulato, bêbedo e sujo, ínfimo empregado do Ministério da Guerra, que escrevia romances. Não davam importância aos seus romances, sabotavam-no, riam dele. Menos importância ainda davam aos seus artigos, aqueles em que ele se dizia "maximalista", e onde fazia, sozinho no Brasil, o elogio da revolução soviética russa12. O mulato Lima Barreto, o genial e enternecido romancista da cidade do Rio de Janeiro, seus subúrbios, seus mulatos, suas ruas pobres, seus crioléus, o jornalismo e o funcionalismo, esse mulato de gênio, só uma vez transpôs as portas da Academia. Ia assistir a um ato, vaiou, fez um escândalo pavoroso, escândalo que deixou cobertas de vergonha as faces carminadas de quanto Aloísio de Castro descansava as nádegas aristocráticas nos fofos coxins acadêmicos. Nesse momento podre do Brasil, a voz de Lima Barreto, isolada, sabotada, porém temida e poderosa, é a melhor prova de que o grito que vem do povo começa a ter a força de uma revolução, porque já transformava em arte o seu lamento e, do coração do escritor, esse lamento saía feito revolta. Nenhum vulto da literatura brasileira do passado, além de Castro Alves e Euclides da Cunha, tem a força popular desse mulato carioca. Ele é povo, sempre povo gritando, cuspindo violentamente no rosto dos donos do poder e do dinheiro. Denunciando em romances, em artigos, em pasquinadas, os inimigos do povo. Não fazendo em nenhum momento questão de carreira literária. Abandonando os grandes jornais pelos pequenos semanários operários. Em meio à efeminada literatura brasileira da época, contra ela e sobre ela, surge como um espantoso milagre esse vulto de gigante, tantos anos enterrado no olvido, já que era impossível negá-lo, sua obra crescendo com o tempo. Um milagre do povo, amiga, o romancista Lima Barreto.
Um milagre do povo, vindo das greves de mil novecentos e dezessete, as primeiras grandes greves operárias do Brasil, vindo da Revolução de Outubro na Rússia. Lima Barreto resultava de tudo isso e da miséria em que vivia o povo brasileiro, como Coelho Neto resultava da vida pacata, cômoda, das camadas governantes, dos fazendeiros de café não querendo saber como vivia a gente do país.
Em 1917 os operários, amiga, iniciam o seu ciclo de greves, começam a pesar na vida política do país. Aí já não é mais uma súplica, um pedido de socorro. É um protesto, agitação, os operários ameaçando os oligarcas, conquistando direitos, mostrando a sua imensa força.
A mobilização operária que as greves desse ano iniciam é começo de outra etapa política para o Brasil. Outro poder se levanta, o poder que irá liderar a revolução popular do futuro, o que lançará as sementes de 22, 24, 30 e 35.
No nordeste, os cangaceiros cortavam o sertão de cinco Estados, eram a resultante da injustiça nos campos, nasciam dos senhores feudais, um protesto anárquico e violento, Lampião, como antes Antônio Conselheiro, Antônio Silvino, Lucas da Feira e Besouro, como depois Corisco, é o camponês jogado para o banditismo pelo coronel das fazendas tomando a terra, dispondo do direito de vida e morte nos seus domínios sem fim.
No mesmo momento em que a classe operária surge e mostra a sua disposição para a luta, a reação desembainha novas armas. O proletariado em greve no Rio dava Lima Barreto na literatura. A reação, sentindo que o tempo da bonança se acabava, produz esse monstro literário que é Jackson Figueiredo. Esse sergipano sem lirismo, doente de ódio, de ambição pequena, atacado de bajulação delirante, nascido para lamber pés de donos, será em breve o homem que vai ensinar censura aos policiais, precursor de toda a polícia política do país, avô do DIP, beato, medroso e avaro. Sendo um dos mais insossos escritores do Brasil, incapaz de armar uma frase e desconhecendo o segredo da beleza e da força do estilo, soube, no entanto, que era passado o momento dos escritores "sorrisos da sociedade", que a reação, a oligarquia, os senhores da terra e do poder, necessitavam do escritor-policial. E inaugurou no Brasil essa era. Dele nasceria diretamente o integralismo do psicopata Plínio Salgado. Amarelo, dessa cor de barro dos biliosos, homem triste, §em alegria, desconhecendo toda a beleza da vida, Jackson de Figueiredo é o que de mais reacionário produziu a literatura brasileira.
Por outro lado, amiga, a fortuna cafeeira iria poucos anos depois explodir no "modernismo". Os ricaços de São Paulo, a quem os adormecedores romances de Coelho Neto não interessavam, e que não conseguiam digerir a literatura policial de Jackson de Figueiredo, se bem a utilizassem, a esses homens que haviam corrido os cabarés da Europa, as igrejas e os museus, que haviam bebido com os chefes dos diversos "ismos" literários, viciados em Cocteau, em Majinetti, em Blaise Cendras, só interessaria uma literatura mais refinada, mais difícil e quase esotérica. A sensibilidade gasta desses novos-ricos cria o modernismo. É a revolução total da forma, conservando o mais reacionário dos conteúdos. Clowns de uma alta burguesia enriquecida de repente, os modernistas têm a tarefa de fazer os seus patrões rirem. Inventam uma língua, não queriam escrever na língua acadêmica de Portugal, desconheciam a língua do povo do Brasil.
Os modernistas em geral procuram casamentos vantajosos na aristocracia cafeeira. Uns conseguem, outros se mantêm virgens, em empregos menos rendosos.
Epitácio Pessoa, nordestino, é igual a qualquer paulista ou mineiro fazendeiro de café. Apenas é mais ambicioso de dinheiro, as fazendas do norte dão menor renda que as do sul. Eleito Presidente da República, visita a Inglaterra e Norte-América, chega ao Brasil num navio de guerra ianque, os americanos riem felizes. Chegou a vez deles. Epitácio, amiga, não se contenta com os cofres da nação, abarrotados de dinheiro tomado de empréstimos aos estrangeiros. Sua fazenda não tinha no nordeste o luxo das fazendas de café do sul. Ele leva as colheres de prata do Palácio.
No momento, amiga, em que a falta de patriotismo, de caráter, de moralidade administrativa, o desprezo ao povo, a crapulice política e literária atingia o seu máximo, como o máximo atingia o clamor do povo, o seu grito de revolta, nesse mesmo momento, como uma resposta a tudo isso, ao desprezo e ao clamor, em 1922, é fundado, no Rio de Janeiro, o Partido Comunista do Brasil.
2ª. PARTE
A marcha da Coluna Prestes
"Luego te vieron ir siempre delante
de prodigiosos hombres animados
por tu tranqüilo gesto impresionante
y tu esperanza de lo inesperado."
RAUL GONZALEZ TUNON
"A coluna marcha
Na frente dos cavalos, das cidades, dos sertões
Na frente das ondas, do fogo, das promessas."
MURILO MENDES
DA SUA cama de doente, impossibilitado de tomar parte na luta, Luiz Carlos Prestes ouvia, amiga, as notícias do levante de 5 de julho de 1922.13 O governo Epitácio Pessoa nos seus dias finais estava pronto para entregar a Presidência da República a Artur Bernardes.
Nessa madrugada de 5 de julho levantara-se a Escola Militar, cadetes sobre os quais ainda vagava a lembrança próxima do cadete Luiz Carlos Prestes, levantaram-se os fortes do Leme e de Copacabana, jovens oficiais formados no seu caráter e na sua maneira de pensar por aquele outro jovem oficial que fora seu colega de curso. Numa cama de enfermo, Luiz Carlos Prestes segue as notícias, as más notícias da revolta. Porque o governo a abafara, amiga, unidades comprometidas não se haviam revoltado, uma cilada hábil e indigna fizera o comandante do forte prisioneiro do governo,14 as tropas legalistas ameaçando os revolucionários. O que restava da revolta naquele momento era o Forte de Copacabana15 e nesse forte o "tenentismo" iria marcar de uma maneira dramática e épica a sua primeira aparição perante o povo do Brasil. Dezoito homens iriam escrever com sangue os seus nomes nas areias de Copacabana.
Frágil lápide para a imortalidade são as areias, amiga, banhadas pelo mar que lava a cada instante o que nelas resta de temporal e passageiro. O mar é imortal, poderoso como nada, e nas areias que domina só fica através dos tempos, como marca definitiva, o rastro da sua constante passagem sobre elas. As ondas arrastam para o mais profundo dos oceanos tudo que a mão do homem e o coração do homem deixam gravados sobre a lápide branca das areias. Nomes de amadas, frases de desejo, castelos medievais construídos pelas mãos sonhadoras das crianças, esculturas de artistas populares, a recordação do corpo alvo e nu das mulheres, o cadáver espantoso dos afogados. Nada resta sobre as areias momentos depois porque o mar é cioso do seu domínio e da sua imortalidade e passa sobre as recordações dos homens a cadência cotidiana do seu rolar em ondas de espuma. Os homens que imaginam deixar gravados seus nomes através dos tempos, que não procurem deixá-los sobre as areias porque muito mais poderoso que a vontade humana é o mar, dono dos destinos, da lua, das embarcações e dos pescadores. Dono das areias também. Sobre elas, imperecível e única, só a lembrança do mar, seu senhor e seu amante. Qualquer pescador sabe disso, amiga, qualquer marinheiro, qualquer vagabundo do cais.
Mas, ah!, amiga, mais poderoso que o próprio mar é o povo. Quando é ele quem grava um gesto para a eternidade não importa onde o grave. Mesmo a frágil, ondulosa e momentânea areia será indestrutível mármore se sobre ela o povo deixa a sua marca. Ficará através dos tempos, a passagem diária do mar só fará aprofundar cada vez mais a marca daquele gesto. E quando ela é feita com sangue, então, amiga, sobre a brancura da areia e sob o azul do mar, surge num brilho de amor a vermelha marca do povo. Vermelha como uma bandeira de luta, como o sangue de que foi feita, como a dor, o ódio, as mais belas flores, vermelha como a esperança. Mais poderoso que o mar é o povo amiga.
Fora uma noite dramática a de 5 para 6 de julho no Forte de Copacabana. O comandante preso pelo governo mandara pedir aos revolucionários que não bombardeassem a cidade inocente e indefesa. A revolta era contra o governo oligárquico e não contra o povo. Era impossível bombardear o Palácio do Governo, um morro impedia que os tiros de canhão atingissem o seu alvo. No Forte de Copacabana o tenente Siqueira Campos, que assumira o seu comando, convoca os oficiais para uma reunião. Algo têm que fazer. As tropas governistas se aproximam pela praia, são milhares de homens, bem armados, bem municiados. Cercarão o forte e este terá que se render pela fome. Os homens que estavam aí, amiga, eram desses que não se rendem. Estão em torno de Siqueira Campos. Uma pergunta: que fazer?
Newton Prado, Mário Carpenter, Eduardo Gomes, Siqueira Campos discutem. Podem fazer voar o forte. Voarão com ele, pois assim o governo não o tomará jamais. Siqueira Campos chega a pegar de um facho aceso e toma a direção do paiol de pólvora. Mas ali estão centenas de soldados e demais aquele forte não é deles, é do povo, eles podem dispor das suas vidas mas não podem dispor dos bens do povo. Se fosse como um detalhe numa luta com possibilidades de vitória, eles o poderiam fazer, mas era apenas o último gesto heróico de uma revolta fracassada. Siqueira solta o facho incandescente, a discussão recomeça. Decidem explicar a situação aos soldados, mandá-los para as suas casas. Assim o fazem. Ficam apenas dezessete homens no interior do forte revoltado. Em frente a eles nas areias da praia de Copacabana, avançam as colunas governistas. Centenas e centenas de homens, fuzis e metralhadoras. Os revolucionários descem a bandeira do Brasil do mastro do forte, dividem-na em dezessete pedaços, um sobre cada coração. E, deixando o forte, partem os dezessete homens a oferecer combate aos milhares de soldados. O dólmã aberto, sob ele um roto pedaço de bandeira do Brasil. Um dia, há muitos anos, no momento vil da escravidão, Castro Alves gritara por um homem que arrancasse do topo do mastro dos navios negreiros a bandeira escarnecida. Hoje, novamente escarnecida e insultada pelos donos do poder, ela é arrancada de um mastro e posta sobre o coração dos homens que defendiam sua dignidade e sua honra. Sobre o coração, no peito que as balas varariam. Assim eles partem, seus passos sobre a branca areia da praia, seus olhos para a frente, um sorriso nos lábios.
São jovens todos, amiga. Têm diante deles a vida bela, cheia de sol, para eles só há a estação da primavera, distante está o inverno. Além da praia, na cidade do Rio de Janeiro, noutras cidades do Brasil, nos campos, estarão velhas mulheres que pensam na sorte desses filhos, estarão noivas saudosas, esposas com filhos amanhã órfãos, está a vida que os chama, que quer travar seus pés e deixar um traço de amargura nos seus corações. Mas não, amiga. Sobre esses corações está um trapo de bandeira despedaçada, é um símbolo de todo um povo desesperado de sofrimento, pedindo justiça, vingança, o que comer, morrendo de sede nas secas, pedindo a vida dos homens em sua defesa. Mais que a beleza da vida, que os desejos da vida, fala a desgraça do povo, falam os desejos do povo. Na frente vai Siqueira, seguem-no oficiais e soldados, vai um civil também.
Siqueira escrevera no trapo do pavilhão roto um recado para a noiva. Lembrança que lhe deixava. No seu, Carpenter deixara uma frase para seus pais. O civil estava na praia, nada tinha com aquilo. Era Otávio Correia, um gaúcho passeando no Rio. Os dezessete homens marcham, ele lhes pergunta:
— Aonde vão?
— Vamos para a morte.
— E por quê?
— Para ajudar a salvar o Brasil.
— Então também vou.
Dão-lhe um fuzil, ele marcha também. Agora são dezoito. Não, amiga, agora são milhares, são milhões, porque agora a massa de povo se uniu nesse civil aos soldados. Esse civil são os gaúchos do Rio Grande, a gente dos pinheirais e dos ervais de Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso. Os homens curvados nos cafezais, nos cacauais, dobrados na Amazônia vendida, esfomeados nas cidades, explorados nos campos. Nesse civil vai o povo, milhares e milhões.
Estão próximos os soldados. Sobre as areias de Copacabana as marcas dos passos. Nessa praia elegante, de mulheres sorridentes nas manhãs de verão, despidas em maiôs graciosos, de homens ricos descansando sua ociosidade diária, de festas, de esportes, do superficial e do chique, na praia mais rica, mais elegante e mais linda da América do Sul, o povo do Brasil vai gravar um gesto seu, de heroísmo e de beleza, vai marcar o seu protesto contra os seus inimigos. Não importa que amanhã os corpos dos donos do poder se enrolem na fofa areia, desconhecendo ainda o povo. Não importa, porque sob esses corpos flácidos está o sangue do povo derramado e dele nascem diariamente novos lutadores. E amanhã, essa praia cumprirá também seu destino humano.
As crianças virão brincar sobre ela, os trabalhadores descansarão nela do seu trabalho, os pobres gozarão da sua beleza. Os inimigos do povo não mais estarão. Copacabana não será a mais elegante das praias, mas será cada vez mais bela, uma praia do povo. Só então, amiga, o mar poderá lavar a marca de sangue que os dezoito do forte deixaram sobre ela. Nesse dia 5 de julho começou uma caminhada do povo, amiga.
Eles vão, são dezoito, dezessete soldados e um civil. Um povo inteiro marcha ao lado do mar. Os soldados inimigos fazem pontaria. No coração, sobre o trapo de bandeira.16
E então o mar compreende e fica parado, sem ondas, sem movimentos, a areia é dos homens. O mar assiste, vai-se passar algo eterno e imortal como ele próprio.
Os homens marcham, vão sorrindo. Partem os tiros, os primeiros, milhares depois, a metralhadora e o fuzil. O sangue rola, uma palavra na praia de Copacabana, gravada com sangue: Liberdade. Para sempre, amiga.
"Trema o vale, o rochedo escarpado,
Trema o céu de trovões carregado.
Ao passar da rajada de heróis."
CASTRO ALVES
Amiga, convida a gente toda desse cais distante. Os marinheiros, os estivadores, os que estão no botequim, os que estão nos guindastes ainda trabalhando, os que carregam e os que descarregam navios, o piloto do avião e o remador no seu barco rápido, as mulheres que passam, as ricas e as pobres, as bonitas e as feias, as que vivem num lar feliz e as que vivem na desgraça, os operários, os camponeses que vêm para a feira, com seus produtos, os choferes dos ônibus, o revolucionário que faz um comício, os marinheiros soviéticos que estão no seu navio, impedidos de desembarcar, que chegam -da outra pátria distante de esmagar assassinos vis. Convida a todos, amiga, com tua voz de melodia, porque agora vou-te falar da cruzada de heróis pelo Brasil. Pelos pampas, pelos sertões, pelos desertos, através das montanhas, dos rios e das cidades. Vou-te falar da Coluna Prestes. É o maior feito militar de um povo, a maior epopéia da América moderna, a mais pujante, dramática e densa de vida. Um moço de gênio, general de vinte e seis anos, traça no mapa os novos caminhos de uma raça e marca, com passos profundos dos seus soldados, as estradas da libertação do Brasil.
Nessa marcha, amiga, vinte e seis mil quilômetros cruzados de 29 de outubro de 1924 a 3 de fevereiro de 1927, há, não só um rasgar de selvas, um abrir de estradas na caatinga e nos desertos, há também um abrir de caminho no pensamento brasileiro. Do Rio Grande do Sul ao Estado amazônico do Maranhão. Do Paraná ao Tocantins. Da Bahia a Mato Grosso, de Minas a Goiás. Por onde a Coluna passou, através de todo o Brasil emocionado, trouxe à tona problemas esquecidos, dramas que pareciam sem solução, desgraças seculares que se abalaram ao passo dos soldados do povo. Vinha o povo, amiga, nas cidades, nas vilas, nas fazendas, e trazia, junto com as oferendas de pão e frutas para os soldados, trazia também a oferenda dos seus sofrimentos. Esses homens que se haviam levantado no Rio de Janeiro em 22, em São Paulo e no Rio Grande em 24, só mesmo agora, atravessando o Brasil por dentro, tomavam contato com a realidade do país e viam quão era mais extensa e profunda e dolorosa a miséria, a infinita miséria do povo. Nessa marcha, amiga, prodigiosa de heroísmo, traçada e conduzida pelo gênio de Prestes, o povo aprendeu dos soldados a lição da revolta. E os soldados, e os chefes, e Luiz Carlos Prestes, aprenderam do povo os problemas do Brasil. O marxista Luiz Carlos Prestes de hoje resulta diretamente da marcha da Coluna. Rasgando sertões e rasgando documentos de tomada ilegal de terra pelos grandes coronéis aos pequenos camponeses. Tirando presos inocentes das cadeias tétricas. Cruzando com os cangaceiros, lutando com eles, vendo a sua verdadeira fisionomia. De cada combate uma lição, uma lição em cada quilômetro andado, o povo aprendendo da Coluna, a Coluna aprendendo do povo.17
Ainda hoje pelos agrestes sertões, nas margens do São Francisco, nos campos do Piauí, no mistério do planalto central, vivem as lendas inúmeras da Coluna, alentando os sertanejos. Muitas vezes ouvi de camponeses, choferes e jagunços, histórias em que os heróis de lenda, Pedro Malazarte e Besouro, eram misturados com os heróis da Coluna, Siqueira, Dutra e Trifino. Nas noites longas de estrelas sobre os rios, a água parada, os homens lembram, para os meninos sertanejos condutores de cegos e guias de cangaceiros, o tropel numeroso e épico da Coluna. Vinham mil homens, mil e quinhentos, por vezes eram só oitocentos, vinha a liberdade com eles. Antes eram as tropas do governo, o ódio ao povo, os desatinos contra o povo. Depois, quando longe estivesse a Coluna redentora, seriam de novo a injustiça e a opressão do governo. Mas, no rastro da Coluna, ficava a esperança. Um dia ela voltará para sempre e com ela a liberdade. E com ela a justiça e o amor e a alegria.
Os túmulos da Coluna, pobres túmulos cavados entre dois combates, entre uma parada rápida e a apressada partida para diante, estão espalhados de extremo a extremo do Brasil. Existem os monumentos nas praças das cidades grandes. Aos verdadeiros heróis e aos falsos heróis. Os homens das cidades param diante desses mármores e desses bronzes, se recordam dos feitos, enchem o coração de confiança.
Não há outros monumentos no sertão, amiga, que não sejam os túmulos dos soldados da Coluna Prestes. A erva cresceu sobre eles. As cruzes estão carcomidas e em muitos já não existem. Não se pode ler mais os nomes, é apenas um soldado do povo que repousa da sua luta. Talvez nem fosse mesmo nesse lugar exato que o soldado foi enterrado, uma bala no peito como uma medalha, talvez fosse até bem distante daqui. Não importa, amiga. Corre a lenda que aqui dorme seu sono de morte um soldado da Coluna. Então, vêm os sertanejos. Esse pouco de terra alteada é o seu monumento de glória, sua meta de esperança. Porque um dia, ele está certo desta verdade, a Coluna voltará, os rios e as montanhas e os homens ouvirão o tropel dos cavalos e o silvar das balas de fuzil. E com ela voltarão a liberdade e o amor, a justiça e a alegria. Porque na sua frente voltará o Cavaleiro da Esperança.
Os camponeses largaram as foices e os machados, os bois e os arados quando ele passou, sua épica figura. Era capitão quando levantou seus soldados. Foi coronel, mais tarde general, conduziu seus homens de batalha em batalha, de vitória em vitória, os planos geniais, a coragem espantosa, numa mão a justiça, na outra a liberdade. Mas foi principalmente o Cavaleiro da Esperança. O povo desesperado do sertão, o povo de repente na festa da revolta, encontrou esse nome para ele. Esse povo revoltado do sertão, amiga, deu-lhe o presente desse nome como um verso de amor.
Vinha esse povo do desespero de Antônio Conselheiro, vivia a esperança triste do Padre Cícero, a justiça vingativa de Lampião. Euclides da Cunha, espectador de um momento do drama do sertão, gritara seu grito de protesto há anos, mas nada mudara na face das coisas. O desespero do sertão se agravava. As populações desgraçadas criavam cangaceiros e beatos e profetas numa ânsia de libertação. Os cegos, nas feiras nordestinas, cantavam os á-bê-cês dos jagunços valentes, dos bandidos sem lei. Os profetas, enlouquecidos de miséria e fome, clamavam nos sertões, de fazenda em fazenda, de povoado em povoado, anunciando o fim do mundo em castigo dos pecados dos homens. Os sertanejos criavam demônios e criavam santos, nos seus corações nem uma sombra de confiança no futuro. Esses rios, amiga, tão volumosos de água, tão largos e encachoeirados, são mantidos pelas lágrimas do sertão infeliz. Lágrimas e sangue nas terras da caatinga, nos rios sertanejos. Nem um sonho de futuro, apenas a desgraça desse presente sem solução.
Mas, de repente, o sertanejo larga sua foice, seu machado, suas cadeias de escravidão. Sua foice é um fuzil agora, uma metralhadora é seu arado, na frente da Coluna vem o Cavaleiro da Esperança. Ele atravessa o sertão como um vento de tempestade que muda a face das águas e traz à tona do mar os detritos escondidos no fundo dos oceanos. O sertão, virado pelo avesso, aberto em chagas de problemas a solucionar, se descobre a si mesmo nesse homem, e ele, Luiz Carlos Prestes, encontra o Brasil na sua nudez. Desde então mudaram a vida do sertão e a visão da vida que tinha Prestes.
A Coluna é o maior momento de um Brasil em busca de si mesmo. Com os problemas diante de si sem saber solucioná-los. Com os homens se revoltando nos quartéis e pedindo apenas a mudança de um presidente. Sem saber ainda como solucionar os problemas. Dos sertanejos se fazendo cangaceiros em vez de se fazerem revolucionários. A Coluna, com sua epopéia imortal, e é o momento de transformação. Os sertanejos deixam de se transformar em jagunços para se fazerem soldados da liberdade. Os homens, oficiais, soldados e civis, que vinham das cidades, na Coluna se depararam com os problemas do Brasil em carne viva e viram que tinham que procurar solução para eles. Sem a Coluna não seria possível a Aliança Nacional Libertadora em 35. Sem a Coluna possivelmente Prestes teria participado do levante de 30 e talvez fosse hoje apenas um general do exército. A Coluna dá-lhe a visão exata do drama do Brasil. A ele, a seus soldados e ao Brasil todo. Com a força dos acontecimentos homéricos a Coluna rasga caminhos para a Revolução brasileira.
Vem do Rio Grande, amiga. O desconhecido capitão de engenharia é de súbito o general que realiza uma estupenda proeza desaconselhada até pelos chefes revolucionários. No Paraná as forças de Prestes e de Miguel Costa se juntam e iniciam a grande marcha. Em frente a eles está o Brasil. Por dentro dele vão conduzir a Revolução. Esses homens, nesse momento inicial, não sabem ainda bem o que querem. Se lhes fosse perguntado o que fariam no caso de vencer, eles responderiam com três ou quatro frases retóricas e com algumas diretivas que não estavam à altura do feito realizado. Mas, ao terminar a marcha, eles sabiam, sim, o que desejavam. Já em 30, a Aliança Liberal apresenta reivindicações concretas ao país, resultantes da experiência da Coluna. E já em 30, muito adiante da Aliança Liberal, o chefe da Coluna, Prestes, lança para o Brasil os seus manifestos. Mais que os outros, esse viu não só os problemas como os verdadeiros meios de solucioná-los. Ninguém ensinou mais na marcha da Coluna que ele. Ninguém aprendeu mais na marcha da Coluna que ele.
Através dos pampas, dos sertões, dos desertos, das selvas, a Coluna marcha, amiga. Vão os homens barbudos, de longas cabeleiras, vestidos de couro como os vaqueiros, calçados de alpargatas como os sertanejos, parecem cangaceiros, parecem profetas, estão iguais a este povo do interior do Brasil. Mas são profetas de um novo tipo: no fuzil e no revólver, no punhal e no facão, não trazem a morte numa vingança desesperada. Trazem a liberdade, o sonho de um Brasil melhor, mais belo, mais justo.
Na frente dos desejos, das esperanças, dos sonhos, dos problemas do Brasil marcha a Coluna Prestes. Milhões de homens se alimentam dela, nela toda a sua esperança. As tropas vinte vezes maiores que a perseguem, as tropas bem municiadas, bem equipadas e bem pagas, que a perseguem, são derrotadas urna, duas, dez, cem vezes. Cada dia é uma luta, cada dia é uma vitória. Luiz Carlos Prestes tem o gênio dos grandes soldados. O professor que não entendia suas provas de estratégia militar e que, por isso, lhe dava notas baixas tinha, razão. Com a estratégia do professor, 18 generais são batidos. O cadete de então revolucionava nos sertões do Brasil a ciência da estratégia. Como hoje os jovens generais soviéticos. O povo, amiga, é essencialmente revolucionário e os líderes são feitos para transformarem a ciência do mundo e a vida do mundo. Na frente dos seus mil homens o herói do povo assombra mesmo os velhos generais mais cultos com a sua capacidade guerreira.
Não é apenas a coragem nos combates, o arriscar a vida a cada momento. É também, e principalmente, o conceber os planos vitoriosos, a percepção do momento perigoso e de como sair dele. É a arte da guerra que um rapaz de vinte e seis anos conhece como o mais experimentado dos generais. Nem o mais empedernido jogador, nem o mais sábio dos generais, apostaria um tostão em que a Coluna seria capaz de realizar sequer uma marcha de 100 quilômetros. Forças infinitamente maiores contra ela. E a natureza bravia, a fome, as doenças, os animais da selva, os rios intransponíveis, as montanhas jamais escaladas, a mata, a caatinga, nenhuma estrada. Prestes marchou com a sua coluna vinte e seis mil quilômetros.
Venceu os soldados do governo, dezoito generais, tropas vinte vezes maiores. Venceu a fome, as doenças inúmeras, as febres desconhecidas. Venceu as montanhas, os rios, as selvas, a caatinga intransitável. Venceu o desespero do sertão. Seu nome como um alento para os que descriam. Seus planos geniais como uma certeza para os que se iam bater. Sua tranqüila coragem como um exemplo para os que iam morrer. Sua vontade de aprender como uma esperança para amanhã.
Em torno da Coluna, a cada dia e cada quilômetro vencidos, se juntavam cada vez mais a esperança e a confiança do Brasil. Agora aqueles homens desesperados de ontem viam o dia de amanhã. Coluna de fogo, do fogo da esperança. Coluna de aço, do aço da coragem. Coluna de justiça, da liberdade também. Na frente vai Prestes. Os sertanejos disseram, negra, que na frente ia o Cavaleiro da Esperança. Vão cansados, sujos e esfomeados. Levam doentes e feridos. Mas não pensam em parar. Também a liberdade, amiga, por vezes nos parece subjugada e presa. Nem assim ela sustem a sua marcha. Sempre para diante, a noite de hoje é tão-somente véspera da manhã radiosa. Essa a mensagem da Coluna.
Ainda hoje eles marcham no céu do Brasil, sobre os sertões. Na boca dos sertanejos, seus olhos em direção a Prestes. No murmurar dos rios, no ruído das cachoeiras. Um dia eles atravessaram o Brasil. Levaram consigo a esperança e a deixaram com os homens desgraçados. Um dia voltarão e desta vez deixarão a liberdade com os homens redimidos. Num dia próximo, amiga.
Quando se levantou da sua cama de enfermo, Luiz Carlos Prestes se encontrou, amiga, diante do fracasso da revolta de 1922. O Presidente da República, Epitácio Pessoa, se preparava para entregar o poder ao Presidente eleito, Artur Bernardes. Homem que não sabia rir, Jackson de Figueiredo iria ser seu braço direito, alguns assassinos de execranda memória seriam as mãos desse braço: as "milícias" do Cravo Vermelho, primeira organização de molde fascista do Brasil, A campanha eleitoral de Bernardes fora feita por estes homens, ladrões, assassinos, malandros, que levavam na lapela do paletó um cravo vermelho. A alma católica de Jackson Figueiredo, leitor de São Tomás e discípulo de Santo Inácio, era a mentora espiritual desse bando. Nessa época o povo vai definir com apelidos os defensores de Bernardes. É O momento do marechal Escuridão, do major Metralha, do general Rapa-Coco. A campanha Bernardes, feita à base da fraude eleitoral, da ameaça aos adversários, da compra de todos os indecisos, lança a mocidade do exército à revolta de 22. O discutido caso de uma pretensa (e inegavelmente falsa) carta de Bernardes ao seu líder na Câmara ordenando que ele comprasse todo o exército, todos os generais, porque todos — dizia a carta — se vendem, provoca uma agitação enorme no país, em meio às classes armadas. O Clube Militar, zelando pelas tradições e pela dignidade do exército, faz o processo da carta, cuja autoria Bernardes negou. Os peritos concluem por declarar que a carta era realmente do candidato à Presidência da República. Esse é o fato imediatamente ligado à revolta de 22, ao dramático, espetacular e emocionante episódio dos Dezoito do Forte.
Prestes, ao se restabelecer do ataque de tifo, resolve não assistir à transmissão de poderes. Cada oficial digno sente muito próximo o suposto insulto de Bernardes ao exército e sente o sangue derramado dos tenentes e dos soldados de Copacabana. Prestes consegue uma licença e logo depois sua transferência para a guarnição do Rio Grande do Sul. Vai trabalhar como fiscal da construção de quartéis no interior do Estado. A construção desses quartéis era uma das negociatas mais escandalosas de então. As verbas votadas eram desviadas pelos políticos, os materiais empregados eram de qualidade inferior aos que constavam como comprados. Havia uma comilança geral, que envolvia políticos, fiscais e engenheiros. O engenheiro-fiscal Luiz Carlos Prestes denuncia uma, duas, três vezes, o vergonhoso desvio de dinheiro, de material, as trapaças inúmeras a que a construção dos quartéis, agora sob sua fiscalização, dava margem. Não levaram em conta os seus relatórios. Ele telegrafa. Não respondem. Ele solicita vir ao Rio fazer um relatório verbal, provar os fatos. Não consentem, ele vem assim mesmo. E os senhores das verbas e das negociatas, têm, como solução que afastar o jovem capitão de engenharia do seu posto. Prestes é mandado dirigir a construção de um trecho da estrada de ferro que ligaria, no Rio Grande do Sul, a vila de Santo Ângelo a Comandaí.
Prestes chegava do contato com toda a sujeira administrativa, de ver a dilapidação dos dinheiros públicos, o roubo como norma de governo, de ver as denúncias patrióticas que fizera esquecidas nas repartições competentes, os responsáveis fazendo ouvidos moucos. Vinha de viver um momento de luta contra os que governavam em benefício próprio. Agora, na estrada de ferro, eram ele e trezentos soldados. Nenhum outro oficial para ajudá-lo. Era o trabalho sol a sol, 12 horas por dia no leito da estrada, responsável por tudo, concebendo os planos, instruindo os soldados, engenheiro e trabalhador. Como muitos anos antes seu pai, o tenente Antônio Pereira Prestes, agora o filho tinha um contato direto com a vida dos soldados. Era igual a um deles no meio do pampa, trabalhando na construção da estrada. Os problemas dos soldados saltavam-lhe à vista. Dos trezentos homens apenas uma porcentagem mínima sabia ler. A grande maioria analfabeta não tinha idéia do mundo, trancada em sua própria situação miserável. Saindo das doze horas de trabalho no leito da estrada, sob o sol de verão, Prestes não vai descansar. Funda sozinho, sozinho dirige, uma escola para os seus soldados. É o diretor, o professor e o bedel. Os soldados, então, amiga, o chamaram de pai e assim começou a sua intimidade, que aumentaria a cada dia, com os soldados do Brasil, povo do Brasil. Em menos de 3 meses, noventa por cento dos seus soldados sabiam ler e escrever. Agora podiam entender aquele estranho capitão de engenharia, que não possuía nenhum dos pernosticismos que, por vezes, os galões costumam dar, que mais pareceria um soldado como eles, se não fosse o seu saber extraordinário. Humano e sábio. Prestes é o pai dos seus soldados. Chefe, pai e companheiro. Os homens do batalhão, quando falam nele, têm lágrimas nos olhos. Para eles não há ninguém melhor, mais sábio e mais Insto e mais amigo.
Mas nesse momento, amiga, novamente se agitam as forças inconformadas do Brasil. O governo Bernardes, em um mio de poder, reafirmava todas as irregularidades administrativas. Os erros governamentais se agravavam e agora um regime policial se montava no país. Os revolucionários voltam a conspirar. Essa conspiração envolve enormes forças políticas. A gestação da nova revolta começa febrilmente. Como antes, Prestes se encontra em meio aos revolucionários. E agora, mais do que nunca, quando ele viveu os escândalos administrativos e a vida difícil dos soldados.
Um estranho capitão, esse Luiz Carlos Prestes, amiga. Acreditou que não se devia revoltar como oficial do exército. Havia um juramento de fidelidade aos poderes constituídos e ele, para estar bem consigo mesmo, completamente, solicita uma licença e questiona a sua demissão do exército. Enquanto espera que lhe dêem a demissão pedida, trabalha de engenheiro civil. Instala luz elétrica em algumas cidades gaúchas: Santo Ângelo e Santiago do Boqueirão, entre outras. Vários problemas de engenharia lhe são apresentados e por ele resolvidos, quando da instalação de luz nessas cidades. Foi necessário trazer a corrente de alta tensão de muito longe. Ele realiza todo o trabalho com a maestria, a competência e a celeridade que lhe são próprias. Em 25 de setembro essas cidades inauguraram o novo melhoramento. Assim era que Luiz Carlos Prestes entendia administração.
Os revolucionários se levantavam em São Paulo, no novo 5 de julho, Isidoro Dias Lopes e Miguel Costa chefiam o levante, Prestes reitera seu pedido de demissão do exército. A resposta não chega, ele não pode esperar mais. O movimento se alastra pelo país, o mal-estar aumenta. A 29 de outubro de 1924 Prestes levanta o Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, aquele batalhão a quem ele ensinara a ler. Nesse dia o engenheiro, o professor, o teórico, deixa os seus instrumentos técnicos para tomar a farda de general e mostrar ao país e ao mundo o seu gênio militar e a coragem do seu povo.
No segundo aniversário da revolta de 1922 o general Isidoro Dias Lopes se colocou à frente das tropas, em São Paulo. Acompanhava-o um grupo de oficiais do exército e da polícia militar daquele Estado e de Mato Grosso, entre eles Miguel Costa, os dois irmãos Távora, Joaquim e Juarez, Padilha, Mesquita, Mendes Teixeira, Eduardo Gomes, um dos sobreviventes do Forte de Copacabana, Cabanas, velhos caudilhos como João Francisco. Dominaram a cidade do dia 5 a 27 de julho. Joaquim Távora fora a alma do movimento, querido dos soldados, bravo e combatente. A sua morte, resultante de um ferimento recebido no ataque que as forças revoltosas fizeram contra o quinto batalhão de polícia, foi o começo da queda do movimento em São Paulo. A incompreensão de Isidoro acerca do apoio que lhe poderia trazer a massa operária paulista, o seu receio de entregar armas ao povo, vieram impedir que os contingentes revolucionários crescessem.18 Nesse momento, na cidade de São Paulo, Isidoro tinha cerca de seis mil homens sob as suas ordens e um número três vezes maior, aproximadamente dezoito mil soldados governistas cercavam a cidade ao norte e a leste. Além disso, mais de dez mil homens marchavam ou se reuniam para completar o cerco da cidade. Colunas desciam de Minas Gerais para a zona noroeste. De Mato Grosso, pelo sudoeste, marchava a guarnição militar. O destacamento Azevedo Costa era organizado em Itapetininga, para atacar a cidade pelo sul. Entre tropas já dispostas para o combate e tropas em marcha ou em organização, o governo Bernardes tinha nas proximidades de São Paulo perto de trinta mil homens para jogar contra os seis mil revoltosos de Isidoro. Os chefes revolucionários resolvem abandonar a cidade e descer com a tropa para pontos de onde pudessem continuar a luta. Na noite de 27 para 28 de julho as forças que se haviam levantado deixam São Paulo e, pela Estrada de Ferro Paulista, atingem a cidade de Bauru.
A revolta da armada fracassara também. Somente o São Paulo içara a bandeira vermelha dos revolucionários, sob as ordens dos comandantes Hercolino Cascardo e Amaral Peixoto. Os demais navios não aderiram e o São Paulo, após uma troca de tiros com uma das fortalezas da barra do Rio de Janeiro, navegava em direção ao sul, tendo a sua tripulação ido deixar o barco de guerra no porto de Montevidéu, entregue às autoridades uruguaias.
Isidoro chega pela Paulista a Bauru. Dessa cidade as tropas revolucionárias resolvem atingir a foz do Iguaçu de onde poderiam ameaçar três Estados: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Estado este onde a revolta era esperada a cada momento. De Bauru Isidoro parte com a sua tropa, para o porto Joaquim Távora, na margem esquerda do rio Paraná. Utiliza a Estrada de Ferro Sorocabana. A retirada não se faz, no entanto, calmamente. Os soldados sob o comando do major Juarez Távora, que formavam o flanco-guarda das forças revolucionárias, sustentam uma série de combates em Vitória, Araquá e Botucatu, enquanto que a retaguarda, chefiada pelo general Miguel Costa, luta em Salto Grande, Paraguaçu, Água Clara, Indiana, Santo Anastácio, Coatá e Caiua.
Ao chegarem os revolucionários em Joaquim Távora são obrigados a enfrentar as forças governistas do coronel Germano Fachnes, aquarteladas na margem direita do Paraná, no lugar chamado Foz do Pardo, no Estado de Mato Grosso. Isidoro desaloja essas tropas e intenta apoderar-se de Mato Grosso, atacando a cidade de Três Lagoas, de onde partia a Estrada Noroeste do Brasil. Mas a resistência encontrada faz com que o general reinicie a sua marcha para o Iguaçu. Desce o rio Paraná e vai estabelecer os seus quartéis na margem esquerda, na região que vai de Guaíra à Foz do Iguaçu.
Sucedem-se os combates. As tropas do governo que ocupavam os portos de Jacaré e D. Carlos, sob o comando do coronel Péricles de Albuquerque, são batidas, como batidas são as tropas de Guaíra, mandadas por Dilermando de Assis. Chefiou o ataque dos revolucionários a Guaíra o capitão Garcia Feijó. Levava consigo apenas uma pequena tropa de vanguarda, armada, exclusivamente com facões e revólveres, nem um fuzil, nem uma peça de artilharia.
No momento em que se estabelece na zona do Iguaçu, disposta a iniciar a campanha do Paraná, a revolução conta com três mil homens em armas. Metade dos efetivos com que saíra de São Paulo. Mortes em combate, mortes na marcha, deserções, fugas, doenças, tinham reduzido de cinqüenta por cento as forças de Isidoro. Esses três mil homens se estendem numa vasta extensão que vai do rio Piquiri, ao norte, ao rio Iguaçu, ao sul, do rio Paraná, a oeste, à serra de Medeiros, a leste. São três mil homens mal armados, esgotados pela marcha e pelos combates realizados. Em frente a eles com efetivos quatro vezes maiores, descansadas, bem municiadas com artilharia pesada, artilharia de campanha e de montanha, armas automáticas, centenas de milhares de tiros, estão as tropas do governo. Três generais, considerados os mais aptos do país, dirigem esses doze mil homens: Cândido Rondon, aureolado pelo seu trabalho de catequese dos índios, conhecendo bem aquela região, tendo viajado todo o interior do Brasil, o homem indicado para a luta naquele terreno, e mais Sezefredo e Coitinho. A frente de batalha se estende por cem léguas. Durante sete meses os combates se travam, sem que os governistas consigam aniquilar as pequenas forças revolucionárias. Batem-se em Guarapava, batem-se na serra do Medeiros, numa batalha de quarenta dias e quarenta noites, nos Campos de Mourão. Os doze mil homens do governo são insuficientes contra os três mil revolucionários. O governo imagina ganhar tempo. Um seu deputado, que é amigo do general Isidoro, convida o chefe da revolução para uma entrevista em Libres, em terras estrangeiras. Estabelecido esse quase armistício enquanto durasse a conferência, o governo reforça as suas tropas. Como era evidente, Isidoro c o deputado não chegam a um acordo. Mas estava realizado o plano do governo. Tivera tempo de reforçar os seus efetivos. Ele tentava esmagar as tropas de Isidoro antes que a coluna de Prestes, que já marchava do Rio Grande, estabelecesse contato com as forças paulistas. E a 27 de março de 1925, os governistas conseguem a vitória de Catanduva, tomando a cidade, deixando o exército de Isidoro numa posição das mais difíceis. Posição da qual iria ser salvo pelas forças de Luiz Carlos Prestes.
A revolta no Rio Grande explodiu entre os dias 28 e 29 de outubro, em diversos pontos do Estado. Oficiais do exército e caudilhos se levantaram na frente de soldados e de civis. Na região da serra se levantou Lionel Rocha. No sul (onde haviam recentemente chegado, para ajudar o movimento, o major Juarez Távora, Olinto de Mesquita Vasconcelos e o legendário João Francisco) pegaram em armas Honório de Lemos, Zeca Neto e Júlio Bárrios. No mesmo instante em que Prestes levantava os soldados do Batalhão Ferroviário na zona das Missões.
Após uma série de combates, as colunas de Honório de Lemos e Zeca Neto, que se haviam reunido, internam-se no Uruguai. Logo depois, em dezembro, Júlio Bárrios toma o mesmo caminho. Só as tropas de Prestes se mantiveram, combatendo em Itaqui e em Tupaceretã. Dois meses leva Prestes combatendo na região das Missões. Sabia que no sul e na serra havia outros revolucionários em armas. Mas a derrota de Honório Lemos e de Zeca Neto, com a sua conseqüente internação no Uruguai, deixa Prestes e os seus dois mil homens (tais eram os efetivos da sua coluna) ante dez mil e quinhentos soldados do governo. Prestes resolve subir para Santa Catarina, procurando junção com as forças de Isidoro. Na Colônia Militar do rio Uruguai os dez mil governistas o cercam. Numa manobra genial ele rompe o cerco, bate-se em Conceição, em Ramada, em Campos Novos, derrota o general Lúcio Esteves, segue o rio Uruguai até Porto Feliz. Entra na zona do Contestado.
A Campanha do Contestado dura outros dois meses. Prestes marcha sobre Barracão, combate em Pato Bravo, faz a retirada estupenda do rio S. Francisco, onde derrota o general Paim, faz a defesa de Maria Preta, onde Cordeiro de Farias tem um papel glorioso, opondo-se com setenta homens do Batalhão Ferroviário aos dois mil homens chefiados por Claudino Nunes. Outra figura que inicia nessa marcha a sua carreira com um grande brilho é João Alberto, que chefia a retaguarda da Coluna.
Espremido entre as forças do general Paim e as de Claudino Nunes, Prestes não só abandona Maria Preta em completa ordem, como consegue enganar os dois adversários e lançá-los um contra o outro, enquanto sai pela mata considerada intransponível. Paim e Claudino combatem uma noite toda, numa batalha terrivelmente sangrenta, certos um e outro de que estavam combatendo as forças de Prestes. Só pela manhã dão conta do engano mortal em que caíram, quando já a tropa de Prestes se encontrava longe. O coronel de vinte e seis anos inicia a revolução da estratégia.
Tendo unido suas tropas às do coronel Fidêncio de Melo, Prestes abre uma picada no terreno sem estradas e parte para a região do Iguaçu, onde estão as forças de Isidoro e Miguel Costa. A Coluna, com a sucessão de combates e de deserções, se encontrava reduzida a oitocentos homens. Homens que não tinham o que comer, nem o que vestir, barbados, de longas cabeleiras caindo sobre os ombros, com poucas armas e quase sem montadas* Prestes segue com a idéia de atacar a retaguarda das forças do general Rondon, colocando-o entre as suas tropas e as de Isidoro. Mas a vitória que Rondon obtém em Catanduva, contra Isidoro, impede esse movimento de Prestes. As tropas paulistas, nesse momento, recuavam, acossadas pelos efetivos várias vezes maiores dos governistas. Prestes, chegando à região do Iguaçu, parte para conferenciar com Isidoro e os demais chefes militares, sobre a marcha do movimento revolucionário. Em Foz do Iguaçu o esperam como a um salvador.
A missão francesa, amiga, que preparava os jovens oficiais brasileiros, sempre pregara a guerra de trincheiras. Essa guerra que iria dar a linha Maginot e a rápida derrota dos exércitos franceses em 1940, ante as forças alemãs. Aquele professor de Prestes que lhe dava notas baixas em estratégia não podia compreender a guerra de movimento do seu aluno, como não a poderia compreender Gamelin, chefe da Missão Francesa no Rio. Agora, em plena luta, em plena batalha, Prestes vai aplicar os seus novos princípios. Já do Rio Cirande ele escrevera a Isidoro: "Para nós revolucionários o movimento é a vitória. A guerra, no Brasil, qualquer que seja o terreno, é a guerra de movimento." Isidoro se entrincheirara na região do Iguaçu e começava a pagar caro a sua fidelidade a esse tipo de guerra de posições. Não vira, como Prestes, que essa era a guerra que mais convinha ao governo "que tem fábricas de munições, fábricas de dinheiro e bastantes analfabetos para jogar contra as nossas metralhadoras".
Viajando para a Foz do Iguaçu, Prestes leva a idéia de convencer os chefes revolucionários da necessidade de fazer uma guerra de movimento, de abandonar no Paraná as tropas do governo e partir através do Brasil. Assim poderão manter a revolta e esperar novos levantes de regimentos e batalhões. A melhor prova das vantagens da guerra de movimento era a própria marcha que ele acabara de fazer. Viera do cerco de São Luís e trouxera os seus homens, dois mil a princípio, oitocentos no fim, até Iguaçu, batendo dez mil e quinhentos adversários, andando mil e quinhentos quilômetros, desmoralizando as forças inimigas.
Na Foz do Iguaçu realiza-se a conferência dos chefes revolucionários. Doze de abril de 1925. Reúnem-se Isidoro, Miguel Costa, Padílha, Mendes Teixeira, Gwayer, Álvaro Dutra e Delmont.
Esse, amiga, era o momento mais difícil da revolução. Uma grande desmoralização se estende pela tropa e pela oficialidade. Desertar é a palavra que mais se ouve. João Gay e Filinto Müller são expulsos da Coluna, como contra-revolucionários que aliciavam gente para fugir, atravessar a fronteira para o estrangeiro, que criavam um clima de derrotismo. Vários outros oficiais emigraram, muitos soldados desertam. A revolução parece perdida. A derrota das tropas de Isidoro em Catanduva abala o espírito da soldadesca. A chegada do Sul dos oitocentos homens de Prestes, com Siqueira Campos, Cordeiro de Farias e João Alberto, não aumenta o moral da tropa paulista composta de mil e trezentos homens literalmente sem ter o que comer. O terreno onde há sete meses demoravam estava demasiado batido, nada mais restava de alimentação. Os traidores espalhavam notícias terríveis. A expulsão de Filinto e Gay, feita por Prestes, melhora de início o ambiente. Faz com que daí em diante os que querem fugir já não se preocupem com aliciar gente que os acompanhe, enfraquecendo a Coluna, indo da fuga à traição. Fogem apenas. Mas ainda fogem muitos, oficiais e soldados, levam munição e dinheiro. E a verdade é que havia poucos soldados, poucos oficiais, pouca munição e pouco dinheiro.
Na conferência dos chefes revolucionários parece, inicialmente, que esse espírito de liquidação vai predominar. Mas o general de vinte e seis anos que chegara do sul, que passara um aniversário em combate, em Ramada, toma a palavra e inicia o seu informe dizendo que ele e os seus soldados não emigrariam mesmo que emigrassem todos os outros, mesmo que todos dessem por terminada e perdida a revolta.19 Ele, com os seus homens, continuaria a luta. Continuaria com a Coluna através do Brasil, entraria em Mato Grosso, tomaria depois para leste, ameaçaria a capital do país. Os chefes revolucionários se galvanizam com as suas palavras. E votam a marcha da Coluna através do interior, a vida da revolução.
Sobre os generais, os coronéis, os velhos mestres do exército, a figura do capitão de ontem, hoje general, vinte e seis anos geniais, cinco meses de luta e de vitórias, exerce uma fascinação que lhes dá alento e esperança. Vota pela marcha Isidoro, que deve partir para a Argentina para defender os interesses da revolta, entrega a Prestes e a Miguel Costa o comando dos homens. Também Bernardo Padilha, o outro general, não pode continuar no seu posto, sua saúde não resiste. O major Miguel Costa é agora o general-comandante. O capitão Luiz Carlos Prestes é o coronel-chefe do Estado-Maior.
Os soldados são avisados do que se passa. Vão-se internar, porém, no país e não como soldados de uma revolta vencida. Mas como soldados de uma revolta lutando pela vitória. Vão iniciar a Grande Marcha, amiga.
A primeira luta, amiga, como sempre, teve que ser contra os covardes, os traidores, os descrentes, aqueles que por medo, por erro de visão ou por má fé se opunham à marcha da Coluna, declarando a revolução perdida. Ainda não se iniciara a Grande Marcha, reunidas as forças do Rio Grande do Sul e São Paulo, de Prestes e Miguel Costa, quando os seus efetivos começaram a diminuir assustadoramente. A proximidade da derrota sofrida em Catanduva, o cerco em que estavam as tropas revolucionárias "metidas numa garrafa arrolhada", na frase de Rondon, general das forças governistas, o abatido moral dos oficiais e soldados esfomeados vivendo há meses uma vida quase de animais da selva, as pragas imundas, tudo era um convite à fuga para o estrangeiro. Ali, ao lado, estavam as fronteiras de terras onde encontrariam fartura e liberdade, conforto e saúde. Do outro lado era o mistério do Brasil indevassado, estradas que não existiam, um inimigo mil vezes mais poderoso, e mais a fome, e mais as moléstias endêmicas do interior do país, os rios desconhecidos, as montanhas perdidas no oeste. Para muitos a idéia do jovem oficial Prestes era uma idéia absurda: como atravessar o Brasil sem fim? "Terras do Sem-Fim", escreveu um dia um poeta, amiga, falando dessa terra do Brasil. Misteriosa de lendas, prenhe de assombrações, as moléstias, impaludismo, tifo, lepra, febre amarela, febres de todas as cores, como uma trágica cavalgada sobre ela. Um sonho trágico. Os oficiais e os soldados amedrontados não viam diante da marcha apenas um drama, viam uma tragédia nunca igualada antes. Havia os que se recordavam da retirada da Laguna, na guerra do Paraguai. Pouca coisa era ela comparada com o sonho absurdo de Prestes. Assim raciocinavam os covardes, os traidores, os que não possuíam visão para compreender que na Marcha estava a salvação do movimento revolucionário, para ver que o capitão de ontem era um gênio militar nascido em terras da América, herdeiro de Bolívar e San Martin, que seu plano não era louco e absurdo, era produto dos estudos de noites e noites e de uma intuição quase milagrosa. Esses não souberam enxergar o gênio na manhã indecisa do Paraná.
O medo da mata, da selva, do mundo desconhecido, da natureza perigosa. Muitos desertaram, oficiais, soldados e civis, muitos temiam a morte. Não eram suicidas, diziam. Muitos ficaram, esses tiveram confiança, a marcha que Prestes acabara de fazer desde o Rio Grande os convencera de que estavam diante de um general capaz de grandes feitos. Que importava a natureza agreste, que importavam as doenças, as dificuldades, o encontrar-se com a morte a cada instante? A morte é uma mulher bela e cada cavalheiro deve saber ser galante com ela. Conquistá-la como a uma linda amada. Conquistá-la com heroísmo, com uma vida ardente.
Trancados dentro de uma garrafa, dissera Rondon com seu malicioso sorriso, aprendido dos índios guerrilheiros. Entre os rios que dividiam o Brasil dos países irmãos, como uma rolha adiante, as forças governistas. Se ninguém sabe a solução dos problemas, se muitos fogem para o estrangeiro com medo de morrer nessa garrafa arrolhada, Prestes já o solucionou. Diante da surpresa do adversário ele "faz saltar o fundo da garrafa". Resolve atravessar as fronteiras do Paraguai, passar por este país as suas forças, e entrar assim em Mato Grosso, ante o inimigo burlado.
As forças revolucionárias iniciaram a retirada. Prestes abre uma picada, construtor de estradas do Brasil, de Santa Helena onde está o grosso da tropa até Porto Mendes, 'onde deverão transpor o rio e entrar no Paraguai. De uma extensão que passava pelas frentes de Catanduva, Floresta, Centenário, Encruzilhada, Piquiri e Guaíra, as colunas do Rio Grande e de São Paulo começam no dia 30 de março a caminhada heróica. As forças se encontram reduzidas a mil e quinhentos homens. A Coluna que descera de São Paulo, com as deserções, as fugas e as mortes em combate, tem apenas setecentos soldados. A Coluna que subira do Rio Grande, sob as ordens de Prestes, conservava os seus oitocentos homens com que chegara. Aí haviam sido bastante menores as deserções. Não só a expulsão violenta e desmoralizante dos traidores como Filinto mostrara a energia do chefe, como a tropa que fizera, sob seu comando, a primeira marcha de duzentos e cinqüenta léguas, acreditava nele e no seu plano. Para os soldados, Prestes era um deus da vitória, um deus do combate, e era também um amigo. Não o abandonariam.
Na marcha em direção a Porto Mendes a Coluna se bale várias vezes: na ponte do rio S. Francisco, perto de Guaíra, nas proximidades de Porto Artaza, na estrada de S. Francisco a Cascavel, impedindo que o inimigo a persiga e a destrua. Em plena ordem é feita esta retirada para Porto Mendes. A picada aberta por Prestes leva as tropas até as margens do Paraná. Na Foz do Iguaçu, com intuito de enganar o inimigo, lutava o esquadrão comandado por Deusdedit Loyola.
Estão diante do rio Paraná, rio de três países, do Brasil, do Paraguai, da Argentina, fronteira de três pátrias. Largo de quinhentos metros, profundo de trezentos, nesse ponto em que as forças da revolução pensam em atravessá-lo. Aí estão eles, amiga, os soldados de Prestes. Nesse momento eles vão fazer saltar o fundo da garrafa. Os soldados fitam a corrente rápida, se abrindo em redemoinhos, a morte roncando nas corredeiras do rio. Travessia difícil, mil e quinhentos homens possuindo apenas um pequeno navio de máquinas escangalhadas, o Assis Brasil, e uma canoa. Estão homens, oficiais e soldados, estão mulheres também, as célebres vivandeiras que acompanharam a Coluna, amor no rastro dos homens, amor maior que todas as dificuldades, estão mil e quinhentos animais, cavalhada da tropa. Do outro lado é um país estrangeiro, cujas fronteiras vão ser violadas, cujo governo é amigo do governo que esses homens combatem. Como serão recebidos? Se se salvarem da morte no rio, não irão encontrar a morte no país do Paraguai? Nesse último momento de indecisão alguns oficiais e soldados ainda desertam. Cada vez lhes parece mais aventuroso o plano de Prestes. Mas os seus soldados ficam. Para eles só existe aquela imensa e comovente confiança no seu chefe. Diante do rio Paraná eles se encontram na noite de 26 de abril. O seu problema mais grave é o de transportes para cruzar o rio. Evidentemente o Assis Brasil, com as máquinas rebentadas, e a canoa, não eram suficientes para a travessia. Havia o perigo de passar uma parte da tropa e outra ficar exposta à fuzilaria inimiga na margem brasileira. Mas, na manhã de 27, encosta em Porto Adela o vapor Bell, de bandeira paraguaia. Prestes encarrega João Alberto de tomá-lo e esse oficial, que vinha desde o Rio Grande se revelando um soldado de magníficas qualidades, domina o navio após rápida luta. Agora têm dois navios em que fazerem a travessia. João Alberto, na canoa, atravessa o rio, desembarca em terras paraguaias, onde entrega ao comandante da guarnição a carta em que os revolucionários explicam o seu gesto e pedem licença para atravessar o território do país irmão, comprometendo-se a fazê-lo em perfeita ordem.
No dia 28 de abril as tropas revolucionárias atravessam o rio Paraná e penetram no Paraguai. A 29 as primeiras patrulhas inimigas atingem Porto Artaza e Porto Mendes, onde estavam antes as forças de Prestes. Rondon estava certo de que Prestes com seus soldados se encontravam comprimidos contra o rio Paraná, fundo da sua célebre garrafa. Verificou que para Prestes a garrafa não havia existido.
Tinham que atravessar cento e vinte e cinco quilômetros por território paraguaio para atingir as fronteiras de Mato Grosso. A vanguarda, chefiada por João Alberto, parte no dia 28 e o grosso da Coluna com o Q.G., na tarde de 29. Na retaguarda vai a artilharia, defendida pelo esquadrão comandado pelo capitão Ari Salgado Freire. A marcha da artilharia é penosa, através de atoleiros, riachos, pântanos. Os canhões têm muitas vezes que ser arrastados sobre os rios, com dificuldades incontáveis. Prestes pouco depois resolve abandonar a artilharia que de quase nada lhe ia servir na marcha.
A tropa revolucionária apresenta um quadro de espetacular miséria. Os homens sujos, barbados, cabeludos, vestidos literalmente de farrapos, calçados com sobras de sapatos, magros e tresnoitados. Toda esta marcha de 125 quilômetros Prestes a faz a pé, para que um soldado mais cansado, talvez ferido, possa utilizar seu cavalo. Isso o fez muitas vezes. Quando via um soldado incapaz já de poder continuar a caminhada, suas forças esgotadas, a vontade de continuar já não podendo com o peso do corpo exausto, Prestes desmonta, dá-lhe o seu cavalo e vai ele, o general, o comandante, o vitorioso de tantos combates, a pé com o mais humilde praça. Por isso a tropa o leva dentro do coração e se faz forte para todos os cansaços, para todas as dificuldades. Ninguém quer se mostrar fraco e tímido diante do grande chefe.
A vanguarda atinge Mato Grosso a 30 de abril, e a Coluna no dia 3 de maio atravessa a fronteira, penetrando novamente no Brasil. A travessia do território paraguaio fora feita em completa ordem como o prometeram Prestes e Miguel Costa.
Na entrada de Mato Grosso, a Coluna volta a sustentar combates contra as forças governistas destacadas nesse Estado e contra as forças de "voluntários" arregimentadas pelos chefes políticos prepotentes. Um dia e uma noite o batalhão sob a chefia de Cordeiro de Faria luta contra o inimigo e o vence. Se dirige depois para o Patrimônio de Dourados de onde desaloja as forças governistas. Porto Felício, nas margens do Amambaí, é ocupado por um batalhão da Coluna, o batalhão de Virgílio dos Santos. Daí ele marcha para Campanário, sede do imenso latifúndio da Mate Laranjeira, país dentro do país do Brasil, país da escravidão e da mais terrível exploração do homem pelo homem. João Alberto com seu regimento derrota o 17º. B. C. em Panchita. O inimigo foge, deixando armas, caminhões e homens mortos, em direção ao rio Panuí, onde mais uma vez vai ser vencido, dias depois, pelo mesmo João Alberto, que atravessa esse rio sob o fogo da fuzilaria inimiga, ataca e domina Patrimônio da União.
João Alberto, vanguarda da Coluna, se dirige daí para a ponte do rio Amambaí, onde se travara antes o combate do regimento Cordeiro de Farias contra as tropas do governo. Encontra a ponte destruída pelos "voluntários" de um político estadual. Consertada a ponte, os regimentos João Alberto e Siqueira Campos se reúnem e penetram na cidade de Ponta Porã, antes defendida por um regimento de cavalaria, um batalhão de 3º. R. I., e "voluntários" agarrados a laço. São oitocentos homens que abandonam a cidade ao saberem da aproximação das forças revolucionárias. Prestes e Miguel Costa, saindo de Zaicarô, onde se haviam demorado, liquidando a artilharia impossível de conduzir, atravessam Marcolino-Cuê, Panchita, o rio Panuí, em direção a Patrimônio da União. Nesse momento já se encontrava na chefia geral das tropas que combatiam os revolucionários em Mato Grosso o major Bertholdo Klinger. Este uniu suas tropas com as do coronel Péricles de Albuquerque, que se havia retirado de Ponta Porã e esperam os revolucionários nas cabeceiras do rio Apa. João Alberto os ataca nesse ponto, trezentos homens contra mais de dois mil. Depois, novamente reunido a Siqueira Campos, partem para a serra do Amambaí, penetrando até Retiro Misael, onde esperam a chegada do grosso da Coluna. Esta marcha em direção da estação de rio Pardo, na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, a duas léguas de Retiro Misael. Na margem esquerda do rio Dourado, dispersa uma tropa de "voluntários". Na margem desse rio Prestes faz construir balsas sobre barris para a travessia da Coluna. Em Patrimônio de Dourados o batalhão de Cordeiro de Farias se reúne ao grosso da tropa. A primeiro de junho a Coluna atinge Retiro Misael, após atravessar uma série de rios e de marchar uma quantidade de quilômetros. Ao cair da tarde do dia seguinte, um crepúsculo chuvoso, a Coluna atinge o leito da estrada de ferro. No dia 4 chega a Patrimônio de Jaraguari, onde as brigadas São Paulo e Rio Grande se separam para marcharem por diversos caminhos, indo voltar a reunir-se no dia 10 nas cabeceiras do rio Camapuã. Nesse momento é feita a reorganização do comando da Coluna. As ciumadas entre os soldados paulistas e os gaúchos, dando lugar às vezes a lutas e conflitos, fazem com que os chefes resolvam fundir as duas brigadas, misturando os soldados e os oficiais. Havia também, por vezes, ligeiras divergências entre Miguel Costa e Prestes sobre a estratégia a seguir. No memento da entrada em Mato Grosso, amiga, os dois companheiros tinham pensamento diverso. Miguel Costa pensava em dar combate, numa batalha definitiva, às forças do governo. Prestes discordava, vendo que a vitória seria impossível, que essa batalha iria liquidar não só a Coluna como também a revolução, já que esta só poderia voltar a se processar no país se a Coluna a mantivesse viva no interior. Miguel Costa era, sob inúmeros aspectos, um admirável soldado e uma admirável figura humana. Comandante-em-chefe da Coluna, jamais passou pelo seu coração a menor sombra de inveja ao ver destacar-se sobre todos o nome de Prestes, o idealizador e condutor da Grande Marcha. A Coluna tomou o nome do chefe do Estado-Maior pela vontade dos soldados e do povo do Brasil, contra n vontade de Prestes. Nunca Miguel Costa abriu a boca senão para realçar a justiça dessa designação, senão para fazer o elogio do seu companheiro e camarada. Comandante da Coluna, ele foi o homem que mais apoiou e sustentou os planos de Prestes. As pequenas divergências que entre eles haviam surgido em matéria militar logo desapareceram com a remodelação do comando, quando Prestes ficou virtualmente responsável por todo o lado estratégico e tático da marcha. Nunca houve entre os dois o menor atrito, Prestes dando todo prestígio a Miguel Costa, Miguel Costa deslumbrado perante o gênio militar de Prestes. Unidos, esses dois homens representam a grandeza moral da revolta de 24. Miguel Costa é o revolucionário que não abriga o menor vislumbre de vaidade ferida. Diante do fato concreto do gênio militar de Luiz Carlos Prestes ele se curva como o mais consciente dos revolucionários. Ele o prestigia com a força do seu nome, é o primeiro a reconhecer que diante de Prestes estão diante de um fenômeno de exceção. A figura de Miguel Costa, amiga, do general de tantas vitórias, ídolo dos soldados paulistas, homem de caráter reto, de extrema popularidade, nunca cresce e sobe tanto como ao reconhecer e apoiar o gênio de Prestes. Esse momento de Miguel Costa, de profunda força revolucionária, basta para marcar nesse homem os caminhos do futuro. Mais uma vez, em 1935, vamos encontrá-lo, valente, digno e conseqüente, ao lado de Prestes na Aliança Nacional Libertadora, seu presidente em São Paulo.20
A Coluna marcha em direção à cidade de Baús, onde se aquartelava o major Klinger. Partira antes, como vanguarda, um destacamento, sob o comando de Djalma Dutra, que vence a 17 uma força mineira e a 18 uma outra no povoado Paraíso, no qual entrou, cortando as comunicações entre Baús e a estrada de ferro. Nesse mesmo dia o grosso da Coluna atravessa o rio Baús, as forças de Cordeiro de Farias e de Siqueira Campos travando combates com os inimigos. O major Klinger está cercado, mas Prestes levanta o cerco pois a posição ocupada por Klinger é de defesa fácil. No ataque a Coluna iria perder grande parte de seus homens e munições e a derrota de Klinger não valia esse desgaste. A Coluna reinicia a marcha em busca da fronteira de Goiás, onde vai penetrar a 3 de junho, após ter atravessado o planalto mato-grossense, desde as fronteiras do Paraguai até a Serra de Santa Marta.
Na travessia de Mato Grosso a Coluna se vestiu e se alimentou. Na fartura do Estado, tão abandonado pelas autoridades administrativas, Prestes encontrou comida e roupa para os seus homens. A Coluna já não parecia aquela turba de mendigos esfarrapados que penetrara no Paraguai ante os olhos atônitos do general Rondon.
É também em Mato Grosso que Prestes vai conseguir boas montadas para a Coluna. Em Mato Grosso as patrulhas encarregadas das "potreadas" têm os seus momentos mais heróicos. Oito, dez, quinze homens que são enviados em busca de cavalos para montar a Coluna, de gado para a Coluna comer. São como afluentes do grande rio da Coluna. Abrem picadas, exploram os terrenos, são eles que, junto com os bois e os cavalos, trazem notícias do inimigo, da sua localização. Em torno da Coluna, com seus satélites, os "potreadores", amiga, desorientam as forças adversárias, num raio de muitas léguas em redor. Se se afastavam em busca de animais para o leste, para o sul, para o norte, a notícia era que a Coluna marchava para o sul, para o norte, para o leste, os "potreadores" tomados como a vanguarda dela. Esses homens, amiga, em número tão diminuto, praticaram proezas guerreiras que jamais foram esquecidas e que hoje, vestidas com roupagens de lendas poéticas pelos cantadores do sertão, são folclore no interior do Brasil. Muitas "potreadas" não voltaram jamais, esmagadas pelo inimigo. Outras se perderam num rumo distante da Coluna e emigraram para o estrangeiro. A grande maioria voltou sempre, desfalcada de um, dois, três homens, arrastando atrás de si a cavalhada conquistada, trazendo notícias frescas e certas da direção e dos planos dos governistas. "Potreadas" que percorreram vinte, cinqüenta e cem léguas, antes de se juntarem novamente à Coluna.21 "Potreadas" que lutaram contra exércitos, que tomaram cidades e vilas, que se batiam diariamente, arrastando para longe dos caminhos que a Coluna abria, e pelos quais marchava, os batalhões do governo. Exploradores e guerrilheiros da Coluna Prestes, os "potreadores" ajudam a Coluna a construir e ampliar os caminhos do Brasil. Heroísmos individuais repetidos a cada dia, a cada instante, a cada momento.
Na marcha da Coluna Prestes, amiga, a epopéia resulta da soma incomensurável dos heroísmos, dos feitos individuais. O gênio de Prestes chefia uma legião de heróis. Nesse exército revolucionário o indivíduo tem um valor incalculável. Em nenhuma página da história militar do Brasil a iniciativa individual, o heroísmo individual, se entrosam tão perfeitamente dentro do pensamento coletivo, do mando do chefe. O gênio de Prestes e o heroísmo de Prestes, a sua rapidez de iniciativa, a sua capacidade de resolver imediatamente as situações reproduzem-se em cada oficial, em cada soldado. Em cada regimento, em cada batalhão, em cada "potreada". Aí não há apenas o chefe. Há ele, o maior soldado da sua pátria, e há cada soldado como valor humano. Assim era a Coluna, amiga.
Te direi alguns nomes, amiga: uma se chamava "Aí! Jesus!", mulata espevitada. A que dançava maxixe nas noites da selva e da caatinga, nos rios de assombros, era a "Onça". "Cara de Macaca" ia vestida de couro, ninguém a distinguiria de um vaqueiro dos gerais de Mato Grosso, dos campos do nordeste. Santa Rosa teve um filho a quem chamaram de "José, o Filho da Revolução". Hermínia, a corajosa e dedicada Hermínia, austríaca que se fez heroína nos campos do Brasil, a loira Hermínia que encontrou a felicidade no amor do negro Firmino. "Isabel Pisca-Pisca" se fazendo passar por Isabel, a Redentora, ante os sertanejos mais incultos. A linda Alzira com seus dezoito anos e a sua boca suja. Tia Maria, a velha Maria que os governistas temiam, acusada por eles de ser feiticeira, assassinada por eles de uma maneira tão bárbara. A gorda Chininha, andarilha sem rival, marchando mais rápida que qualquer soldado num desafio às suas banhas. E a mais formosa de todas, Albertina, a bela Albertina, cuja cabeça de mártir caiu no seu momento de bondade e de heroísmo.
Ferido no combate de Piancó, o tenente Agenor Pereira de Souza, das forças revolucionárias, fazia a marcha numa padiola, carregado pelos soldados. Seu estado se agravava dia a dia. Quando a Coluna chegou a Minas do Rio de Contas, cidade da Bahia, a gente se condoeu da sorte do tenente. Com a ferida viera a tísica nas dificuldades da marcha e o tenente morria sem nenhum conforto. Ele fora um dos melhores combatentes da Coluna, vinha desde o Rio Grande, e os comandantes e os soldados viviam a tragédia do companheiro morrendo, sem remédios, sem pouso, sem descanso. Na cidade de Minas do Rio de Contas pessoas caritativas ofereceram-lhe pousada. Ele aceitou e com ele resolveram ficar seu irmão Alibe, menino ainda, de dezessete anos, se fazendo homem nas lutas da Coluna, e Albertina, a mais formosa das vivandeiras, flor do Rio Grande, tanta bondade no seu coração quanta beleza no seu corpo. Resolveu ficar para cuidar do tenente, para suavizar os seus dias derradeiros.
A Coluna partiu deixando os companheiros e deixando a vivandeira. Ela ficou agitando seu lenço vermelho de revolucionária, uma lágrima nos olhos, um sorriso amigo nos lábios finos. Depois voltou-se para o tenente. Eram os remédios, o carinho de irmã, a dedicação de enfermeira. Talvez até o tenente Agenor melhorasse e pudesse ser transportado para a Bahia, onde havia bons médicos e bons hospitais. Assim pensava Albertina, pensando que se isso acontecesse ela voltaria a cruzar os sertões em busca da Coluna e que continuaria com ela a Grande Marcha.
Mas, amiga, os soldados do governo entraram em Minas do Rio de Contas. A cidade sofreu seus desmandos, cada qual tomou a sua parte, um tenente escolheu como seu botim a vivandeira da Coluna. O seu desejo refreado naqueles sertões, os seus instintos de repente soltos, se açularam diante da beleza de Albertina. O lenço vermelho de revolucionária emoldurava seu rosto branco. Era como uma flor, era como um sonho maravilhoso. O tenente não viu o homem doente, morrendo. Não viu o menino que aprendera dignidade e heroísmo a Coluna. Só viu a mulher linda, nem viu mesmo que uma vivandeira da Coluna Prestes tinha a coragem de um homem. Se atirou a ela como um animal solto nos pastos. Mas Albertina não o queria, só tinha nojo. O menino foi em sua defesa. Rolaram as duas cabeças, a do menino e a da mulher, o tísico morria na cama ante o espetáculo de tão vil degradação humana. O sangue dos degolados empapou as mãos do tenente, satisfez-lhe os desejos, o monstro ria mostrando aos soldados a cabeça de Albertina, sem corpo, envolta no lenço vermelho da Revolução.
Um soldado estrangulou um sorriso, o tísico tossiu seu protesto sem força. Uma mulher soluçou, um homem riu histérico. Os soldados estremeceram, o próprio tenente empalideceu. A cabeça sem corpo, vermelha de sangue, vermelho lenço arrebanhando os cabelos, sorria ainda seu sorriso de nojo diante dos homens como feras, as mãos vendidas ao governo, o coração vendido também. Sorria a cabeça de Albertina.
Vivandeiras da Coluna, mulheres do povo que seguiram seus homens, que seguirão a Revolução. Somente elas tiveram forças para vencer Prestes. Aquelas que vinham desde o Rio Grande do Sul tiveram do chefe ordem de abandonar a Coluna na travessia do rio Uruguai. Fizeram que sim com a cabeça. Prestes infundia-lhes um infinito respeito. Tratava-as como um amigo, nunca lhes dirigira uma graçola, nunca lhes dissera um insulto. Apenas lhes explicou que aquilo não era um passeio para mulheres, era uma difícil marcha para homens fortes. Elas deviam ficar. As vivandeiras fizeram que sim com a cabeça, amiga. No outro dia, quando terminavam a travessia do rio, antes mesmo de ver os soldados, Prestes viu as vivandeiras que tinham atravessado. Firmes para marchar. Uma levava o fuzil do seu homem, outra atendia a um enfermo, uma terceira sorria e com seu sorriso afastava a fadiga dos soldados. Prestes sorriu também. E elas seguiram.22
Bem mereceram essa condescendência de Prestes, bem mereceram seguir. Atravessaram rios e escalaram montanhas. Lutaram como homens, morreram como heróis. Meninos nasceram na travessia, o amor iluminou as noites da Coluna. À margem dos rios, nos desertos do nordeste, na caatinga agreste, na selva misteriosa, nas montanhas conquistadas, antes dos combates onde a morte espreitava os homens, após os combates onde os homens arriscaram a vida, nas noites de estrelas e lua, de violas e modinhas, nas noites sem estrelas, sem lua, só os fantasmas e as assombrações, em toda a marcha da Coluna, elas estiveram presentes.
Te direi, amiga, do idílio da loira Hermínia e do negro Firmino. Ela viera da Áustria, de Viena das valsas e da alegria. Era loira, seu cabelo de trigo, seu rosto de farinha. Era dedicada e boa, valente e decidida. Foi enfermeira da Coluna, mãe dos soldados feridos, irmã dos oficiais doentes. Fez toda a marcha até a internação final na Bolívia. Nos combates ela ficava próxima às linhas de fogo e ia até elas em busca dos soldados e dos oficiais feridos. Quando o cerco de Teresina ela fez várias vezes o caminho entre as linhas revolucionárias e as inimigas, conduzindo para o posto médico da Coluna os soldados caídos. Não descansou um minuto, não teve um instante de medo. Suas brancas mãos molhadas de sangue. Seu olhar nos que eram derrubados, partia para eles, os conduzia sob as balas. Faziam pontaria nela, naquela loira valente. Um dia ela fora jovem nas ruas de Viena, as músicas melodiosas saindo de cada café, de cada boca. Crescera em São Paulo, tranqüilo e pacato. Fora com a Revolução, ela a trazia no coração. Marchava tranqüilamente entre as balas, nos braços o homem ferido. A enfermeira Hermínia, do país da Áustria, a enfermeira Hermínia, do país do Brasil. Um dia, quando um combatente parecia perdido, foi ela o voluntário corajoso que partiu em busca das seções de metralhadora pesada que marchavam longe, no centro da Coluna.
Foi no combate de Anápolis e a esse seu gesto a Revolução deve essa vitória.
Seu coração envolto em música tremeu diante da figura negra do tenente Firmino. Este era um bravo, com aquela risonha coragem dos negros, descendente dos heróis de Palmares, dono de uma gargalhada sadia. Nas noites de viola e tiranas, quando a Coluna gemia saudades dos povoados natais, quando falava de amores distantes e impossíveis, na voz dos cantores sertanejos, quando a lua descia para admirar os heróis, quando as estrelas ficavam mais vermelhas no céu, a loira Hermínia e o escuro Firmino trocavam palavras de amor. Os rios as ouviram, as montanhas as guardaram no seu coração de granito. Sussurradas nas caatingas, gemidas nas margens do São Francisco e do Tocantins. As águas levaram nas suas corredeiras a música dessas palavras do negro brasileiro e da branca austríaca. Em La Gaiba, amiga, em terras da Bolívia, com a Coluna internada, um dia iriam nascer mulatos brasileiros filhos desse amor. Um dia, os filhos de Hermínia e de Firmino pisarão novamente o solo da Pátria. E repetirão os feitos do pai e os feitos da mãe, novos soldados da Revolução. Nos rostos mulatos a farinha branca do rosto de Hermínia, o negro mel de cana do rosto de Firmino. Mulatos do Brasil.
Nas noites de parada, quando a Coluna se estendia pelas pradarias, como um rio de homens, atrás a picada recém-aberta, na frente a mata por conquistar, de um lado o inimigo tão superior em forças, de outro lado as doenças, a falta de comida, a saudade dos que ficaram nas terras e nos campos deixados um dia pela Revolução, nessas noites, sensual e lânguida, a mulata "Onça" se rebolava no maxixe den-goso. Dançava para os soldados a dança mais nacional e mais tentadora e mais lasciva. Nos olhos de cada um que acompanhava o quebrar, o partir, o juntar-se de novo do corpo felino de "Onça", boiava uma lembrança de um dia perdido no passado. Uma dança, uma mulher que passara na rua, uma palavra atirada ao acaso, uma festa, uma lembrança de amor.
Do corpo de "Onça", onde as ancas tinham vida própria no ritmo do maxixe, vinham as recordações de uma vida que ficara para trás. Seu baile na floresta era espantoso e lúbrico. Vinham as assombrações, o lobisomem, a mula-de-padre, o caipora que só tem um lado, vinham os animais da selva, a anta, a onça, o macaco, vinham os pássaros e vinham os peixes, e ficavam todos, junto aos homens, presos ao corpo de "Onça" se desfazendo e se juntando no ar, as nádegas como uma popa de navio no meio das ondas agitadas. No recesso mais misterioso da selva, amiga, a mulata dança, seu corpo nas árvores, um braço no rio, a mão perdida no céu, nos olhos dos homens as nádegas redondas. No recesso da selva, amiga, "Onça" se estraçalha no maxixe.
Nem sempre dança. Por vezes carrega rifles, outras vezes salva homens. Seu corpo não é só um corpo de perdição, não serve somente para os suspiros de amor. Certa vez a tropa de um destacamento foi atacada por forças vinte vezes maiores. Os homens estavam perdidos, como nas noites lúbricas de maxixe. "Onça" partiu por entre as balas, estabeleceu ligação com o grosso da Coluna, salvou os homens da morte. Passou entre as balas, os inimigos só viram seu corpo dengoso se rebolando no caminhar maneiro de mulata sensual. Voltou com as forças, nessa noite dançou seu maxixe como uma dança de vitória. Essa era a "Onça", amiga.
Pelo sertão, entre os soldados governistas, entre as populações supersticiosas corriam as lendas sobre a Coluna. Eram inúmeras, cheias de estranha beleza, cantadas pelos cegos nas feiras como uma festa do Nordeste, a figura de Prestes como a de um herói de legenda, como um novo deus sob os céus do Brasil, Falavam essas lendas das qualidades da Coluna. Uma dizia da rapidez dos movimentos. E explicava que os homens só comiam as partes dianteiras dos animais para assim adquirirem rapidez no seu andar. Muitas destas lendas nasciam da presença das vivandeiras nos batalhões revolucionários. Santa Rosa teve um filho, aquele a quem chamariam de "José, o Filho da Revolução", e vinte minutos depois já estava no lombo do seu cavalo, marchando. Os sertanejos imaginaram então que as mulheres que viajavam com a Coluna pariam mesmo em cima das selas e os meninos já nasciam andando e aos poucos meses pegavam no rifle.
Porém a que era aureolada de mistério, cujo nome circulava de boca em boca entre os soldados do governo era a Tia Maria, preta velha, seca e de olhos brilhantes, que morreu dramaticamente, entre torturas. Contavam dela que era a feiticeira da Coluna. Que nas vésperas das batalhas, enquanto o flautim de Favorino substituía os atabaques, ela, diante das metralhadoras revolucionárias, invocava os deuses negros das macumbas, Oxóssi que é deus da guerra, Xangô, o deus do raio e do trovão. Ogum e Oxolufã. E assim fechava às balas inimigas o corpo dos soldados da Coluna. A lenda corria de boca em boca. todos os soldados do governo sabiam do nome de Tia Maria, e odiavam esse nome como o de uma inimiga terrível, a que manejava as forças infernais, as forças dos deuses negros e que haviam vindo nos tempos da escravidão das florestas da África, das terras de Aiocá, para as florestas do Brasil, para as Terras do Sem-Fim.
No combate de Piancó, Tia Maria caiu prisioneira. Os go-vernistas olhavam-na com mais ódio que os sargentos e soldados presos. Como eles, ela foi torturada. Como eles, foi mandada cavar a sua própria cova, o túmulo onde seria deixado o seu corpo após o fuzilamento. Como eles, como os soldados da Coluna, a vivandeira Maria, a velha negra seca, se recusou. Como eles foi espaldeirada, injuriando, como eles, os miseráveis que a torturavam. Como eles, ela foi retalhada a faca, devagarinho, numa morte lenta, um suplício além de toda imaginação. Em nenhum momento sua voz enfraqueceu. Enquanto a torturavam e matavam clamou pelos seus deuses, convidando-os a perseguirem os inimigos seus e da Pátria. Morreu como uma última praga na boca sem dentes de negra velha. Essa era a Tia Maria, amiga.
Vivandeiras da Coluna, mulheres do Brasil. Seu sangue sobre o solo da Pátria. Seu sorriso sobre os rios, seus ais de amor sobre os campos. Nasceram meninos, as vivandeiras nos seus cavalos, ajudando os homens, curando as feridas, o fuzil do amado nos seus ombros para que ele pudesse descansar. Derramaram seu sangue, deram suas vidas. Foram dignas de Prestes na epopéia da Coluna. Hoje seus nomes e seus apelidos enchem os cantos dos cegos no nordeste, os a-bê-cês mais heróicos. Junto às espadas, aos fuzis, às metralhadoras, elas seguem, bravias flores do Brasil. Vermelho lenço no cabelo, amiga, uma rosa atrás da orelha.
No dia 23 de junho a Coluna penetrou em Goiás. Viera do Paraná, após a junção das forças de Prestes com as de Miguel Costa, atravessara território paraguaio, atravessara Mato Grosso. Tomava agora para leste, marchando para o planalto central do Brasil. Muito longe estava o mar, a Coluna começava a marcha em sua direção. Prestes levava a Revolução ao centro mesmo do país, amiga, ao mais profundo do seu coração, ao misterioso país do ouro, do mate como floresta, das pedras verdes que alucinaram os bandeirantes.
Esse país inexplorado de Mato Grosso e Goiás, terras que nunca acabam, fazendas como nações, tudo primário, bárbaro e desconhecido. Até aqui não chegaram as leis, amiga, nem mesmo essas leis já agora tão deficientes para as capitais e os Estados mais civilizados do litoral. Aqui, os senhores feudais criaram as suas leis próprias, as mais bárbaras, as mais brutais. Nessas terras a abolição nunca se deu, a gente continua escrava de uns poucos homens donos da terra. Em cada uma destas fazendas, negra, poderias pôr uma nação da Europa e sobraria terra.
Aqui são os tempos ainda da Colônia, amiga. Esses latifúndios da Mate Laranjeira, esses latifúndios dos senhores feudais, os homens como os mais miseráveis escravos, sem nenhum direito, sem uma lei que os proteja, são uma visão dantesca.
No momento em que termina de atravessar Mato Grosso, quando penetra em Goiás e inicia sua marcha para o norte, Luiz Carlos Prestes, o que se levantara contra a falta de liberdade nas grandes cidades, ao começar a cruzar o interior, no início apenas da sua marcha, já se dera conta de que o Brasil necessitava de uma revolução muito mais profunda. Diante dele aquele mundo insuspeitado de problemas vitais, se apresentando não na leitura amável de um livro, de um relatório, não num discurso elegante na Câmara ouvido de confortável poltrona, mas vivido em carne própria. Diante dessa visão espantosa Luiz Carlos Prestes sente como eram ainda indecisos os chamamentos dos revolucionários. Que viam eles, que pediam eles? Viam os problemas infinitamente menores que borbulhavam nas cidades do litoral. Pediam pequenas reformas administrativas, a profundidade da revolta era quase nenhuma. Por isso mesmo, o povo escravizado do interior não a sentira, não se abalara com ela. Diante da sua escravidão, que era o voto secreto?
Sim, amiga, um dia esse jovem militar, quando ainda estudante, quando iniciava sua vida de oficial, ouvira, junto aos seus colegas, o rumor de um grito que subia da carne sofrida da terra brasileira. Escutaram-no, seus corações estremeceram com ele, procuraram atendê-lo, sua espada a seu serviço. Mas não tinham chegado ao âmago da desgraça que provocava esse soluço imenso. Tinham visto apenas a primeira capa de problemas, os mais profundos haviam escapado às suas palavras de ordem revolucionárias. Disso, amiga, Luiz Carlos Prestes se deu conta logo ao atravessar Mato Grosso. Não importava mais marchar contra o Rio de Janeiro e derrubar Artur Bernardes, pôr no seu lugar um político igual a ele, que daria algumas leis mais e fecharia os olhos e os ouvidos para esses problemas que o próprio Luiz Carlos Prestes só agora via, sentia e sofria. Certa vez, depois da Coluna, amiga, no exílio, ele disse com sua clara voz de mestre:
— "Quando resolvemos empreender a marcha para o norte do país, já os objetivos militares da Coluna, mesmo tecnicamente falando, haviam passado para um segundo plano."
E acrescentou seus propósitos:
— "O que tínhamos em vista, principalmente, era despertar as populações do interior, sacudindo-as da apatia em que viviam mergulhadas, indiferentes à sorte do país, desesperançadas de qualquer remédio para os seus males e sofrimentos. Obra sobretudo de caráter político e social. . . Ora, tudo faz crer que esses resultados foram obtidos, o mais satisfatoriamente que era possível."23
Foram obtidos, sim, amiga. Para essa gente desesperançada, o pescoço dobrado à canga da escravidão, restou um ânimo novo após a passagem da Coluna. E por isso, negra, chamaram ao moço que a conduzia de "Cavaleiro da Esperança". Na sela do seu cavalo, na ponta da sua espada, como uma flor vermelha na sua boca, vai a esperança para os desgraçados. Para os milhões de desgraçados, esse povo do Brasil. Atravessando Mato Grosso, seu mistério de rios, a tragédia sanguinolenta e brutal da Mate Laranjeira, dos latifúndios sem fim, Luiz Carlos Prestes transforma a revolta militar de São Paulo e Rio Grande no início de uma revolução social. Prolongou o levante seu e de Miguel Costa pelos tempos afora, até os dias de hoje. Já não interessava derrubar com um golpe um governo e substituí-lo por uma oposição resultante das mesmas forças econômicas que haviam elegido o outro presidente. Era preciso levantar o povo em defesa dos seus direitos, dar ao povo a visão dos seus problemas, criar líderes ligados a esses problemas, não apenas os homens travando no Congresso e nos jornais debates sobre assuntos de política local. Esse é um grande momento de Prestes, amiga, momento que marca a sua altura intelectual e a sua altura de condutor. Ele expusera ao marechal Isidoro, nos dias do Paraná, o seu plano de derrubar o governo, fazendo a Coluna marchar contra o Rio de Janeiro. Pouco tempo havia passado depois disso. Mas esse pouco tempo era muito tempo, eram séculos quando vivido numa marcha através do interior do Brasil, através do Paraná e Mato Grosso, sobre problemas, sobre drama, sobre uma tragédia sem comparação. Não eram, primordialmente, motivos de ordem militar que faziam Luiz Carlos Prestes abandonar seus planos de marcha sobre o Rio de Janeiro. Que, com seu gênio militar, tantas vezes comprovado, ele poderia tentar essa marcha, ninguém o pode duvidar. Mas ele viu que o importante era levar a Revolução ao povo, era dar a esses desesperançados consciência do seu drama, perspectiva de solução. Levar a Revolução ao povo.
Já te disse, amiga, que antes de ler nos livros as soluções de Marx e Lênin, Prestes as leu na Grande Marcha. Cada dia era mais que um livro. Aprendeu O Capital nas terras de esmeraldas de Mato Grosso e Goiás. Quando, no exílio, ele se encontra com o marxismo, sua alegria não tem limites. Eis aí a solução de todos os problemas. Eu te diria, amiga, que a Coluna se internou em 27 e não marchou à frente de todo o povo em direção ao Rio de Janeiro, porque, sentindo, vivendo e sofrendo os problemas, Prestes não havia encontrado ainda a solução para eles. Não tinha a sua base ideológica, mesmo ele não sabia ainda onde devia levar o povo, que bandeira desfraldar. E esse homem, em que a honestidade de princípios e de ações era e é a norma de vida, não queria enganar o povo. Ele mesmo tinha que buscar primeiro a solução. Viria então com ela até o povo, como viera até ao povo trazendo a esperança nas mãos amigas. Um dia ele voltaria trazendo a Revolução nas suas mãos mais experientes ainda. Na Grande Marcha ele, como Euclides da Cunha ante a luta do sertão nos anos de Antônio Conselheiro, como Castro Alves diante da escravidão dos negros nos tempos do Império, foi marxista sem ainda ter lido marxismo. Esse general tinha a visão genial e profética dos poetas. Poeta ele também, de versos escritos com soldados, com a espada, a metralhadora, as vivandeiras, com sua coragem, com sua dignidade. Construiu e constrói os poemas mais formosos da América. Seu nome é um título maravilhoso de poema. Seu poema da Marcha, poema da Esperança, Cavaleiro Luiz Carlos Prestes na frente da sua Coluna.
Deram aos soldados do povo todos os nomes: Coluna da Morte, Coluna Fênix, Coluna Invicta, Coluna Prestes. E dizendo Coluna Prestes o povo dizia Coluna da Esperança. Na sua frente o Cavaleiro da Esperança, Luiz Carlos Prestes, suas barbas crescidas, seus olhos ardentes, sua face tranqüila, seu sorriso triste mas confiante. Cavaleiro do povo.
Desde os dias de Mato Grosso, desde os dias de Goiás, entre o espetáculo maravilhoso da terra verde, rica de imedível riqueza, úbere farto que daria para alimentar o mundo, e o espetáculo da terra pobre, pobre de infinita pobreza, pobre de justiça social, miseravelmente pobre, os homens morrendo de fome na terra mais rica do mundo, Prestes começa a sua distribuição de justiça. Bem sabia ele, amiga, que com o rasgar de livros de impostos extorsivos lançados contra as populações pobres, que com o soltar presos inocentes, vítimas da sanha dos senhores da terra, que com o queimar de processos monstruosos, que, com o destruir dos troncos, das palmatórias e das gargameiras, bem sabia ele que não resolvia o problema total e imenso. Que este pedia soluções que ele ainda buscava. Mas sabia também que cada livro de imposto rasgado, cada preso inocente que era solto, cada morte de homem que evitava, cada boca satisfeita na sua fome, cada processo queimado, cada juiz destituído, eram maravilhosas lições para o povo, lições de esperança e de revolução. Quando ele mandava que esse tão simpático e tão pitoresco Dr. Lourenço Moreira Lima, na Coluna o capitão Moreira Lima, o "bacharel feroz", examinasse um processo e lhe dissesse que crime de senhores feudais estava encapuzado na acusação do pobre homem que lutara pela defesa de seu pequeno pedaço de terra, centenas e milhares de camponeses aprendiam que a luta pela terra era justa. Quando ele mandava rasgar diante do povo os livros, onde eram consignados os exorbitantes impostos que enriqueciam os latifundiários donos do poder, ensinava ao povo que devia levantar-se contra os impostos, os decretos, as leis escravizadoras, que matavam o povo de fome. Essas populações subalimentadas, mortas de fome no meio da mais incrível fartura, nunca haviam pensado em conquistar sua comida. Prestes lhes ensinava essa lição, diariamente, na sua distribuição de justiça pelo Brasil. Desde o Rio Grande, desde Santa Catarina e Paraná, através de Mato Grosso e Goiás, através do nordeste de cinco Estados, nas margens do Tocantins, nas margens dramáticas do São Francisco.
Levava a Revolução na sua frente. Não sabia ainda bem qual revolução. Foi quando, amiga, ele começou a ler nas caminhadas. Entre combate e combate, quando passava os dias montado atravessando as estradas que acabava de abrir na mata, ia lendo, procurando nos livros as soluções para os problemas diante dele. Mas eram raros os livros no caminho da Coluna. Só depois, no seu exílio de La Gaiba, ele iria receber dos seus admiradores o presente de uma biblioteca marxista completa. Presente de aniversário. Mas já na Coluna ele procurava, desesperadamente, nos livros que lhe vinham à mão, um caminho, um caminho pelo qual a sua Coluna pudesse conduzir o povo do Brasil.
Encontrava tempo para ler no pouco tempo dos dias cheios da Coluna. Eram os planos de combate, o trabalho de comandante, de chefe do Estado-Maior, eram os trabalhos de embarcações para a travessia dos rios largos, no levantamento de mapas e croquis. Prestes traça a corografia do Brasil na marcha da Coluna. Rios e montanhas tomaram seu lugar na carta geográfica do país. General, engenheiro, geógrafo, médico, o que ele não é nessa Marcha? Que detalhe do conhecimento humano escapa ao seu gênio prodigioso?
Agora estão em terras de Goiás. Aqui passaram antes os bandeirantes caçando os índios, buscando as esmeraldas na água também verde desses rios de encantamento, abrindo caminhos, construindo fazendas. Vieram de Mato Grosso, um mistério sobre o mundo, tentando aventureiros e sábios. Mato Grosso dos índios selvagens, dos caçadores de feras, dos cientistas desaparecidos para sempre. Goiás é uma continuação do mistério da selva mato-grossense. O planalto central traz à imaginação lembranças de indecifráveis mistérios. Sua flora, sua fauna, as pedras preciosas, os rios verdes de esmeraldas e amarelos de ouro. Terras da morte nos garimpos, nas flechas dos índios, na garrucha ambiciosa dos brancos. A Coluna penetra em Goiás.
A 23 de junho a Coluna entra em Buracão, no sopé da Serra de Santa Marta. E aí festeja a noite de São João. A noite do Batista, o pasquineiro da Palestina, seus discursos para o povo nas margens do Jordão, seus discursos contra o tetrarca, sua prisão no cárcere imundo, sua palavra ainda jorrando dali como uma maldição contra os maus governantes, sua romântica cabeça revolucionária rolando na bandeja de prata de Salomé, sua boca rebelde beijada pela boca sensual da dançarina num beijo de vingança, sua língua, que sabia clamar, parada agora. A noite do santo panfletário é a mais popular noite de festa do interior. Na frente das casas se elevam fogueiras, estouram os foguetes no céu, essa é também a festa do milho, canjicas, manuês, pamonhas, cuscuz, mungunzá, as espigas crepitando nas fogueiras. Nessa noite de junho de 1925, o santo das águas do Jordão, o que clamava a sua revolução na beira de um rio, foi festejado na beira dos rios, entre os chapadões, pelos revolucionários. As fogueiras se estendiam no planalto imenso, estrelas da terra brilhando tanto quanto as estrelas do céu. Os soldados dançavam e cantavam, orquestras improvisadas com harmônicas e violões, as vivandeiras dançavam, as melodias lembravam outras noites de São João nos povoados natais. A festa dos soldados no mistério do planalto, entre as águas esmeraldinas dos rios goianos, tinha tons fantasmagóricos, homens e mulheres pulando a fogueira, tornando-se compadres e comadres, o céu de estrelas, a terra por conquistar em torno. Naquela hora lírica e saudosa, festejando o santo, recordando as festas tranqüilas e doces das cidades natais, os homens se haviam esquecido dos combates, da caminhada sem descanso, do marchar sempre para a frente, entre balas, febres e dificuldades. Dançavam apenas, entregues totalmente ao ritmo das harmônicas e dos violões, os olhos perdidos nas lembranças. Assim foi a noite até que pela manhã a cometa tocou seu toque de marcha.
A Coluna transpõe a serra do Rio Bonito, atravessa os afluentes do rio Paraná, uma quantidade deles; o Correntes, o Verdinho, o rio dos Bois, o Claro, o Verde Grande, o Corumbá, o Meia-Ponte. A direção da marcha é o Planalto Central, verde mar de morros ondulados. E ali chegam, atravessam os rios Maranhão, o Descoberto e o Paraná. Escalam a serra de Paraná, elevada e abrupta, penetram então em Minas Gerais, tendo cortado Goiás de oeste para leste. Em Minas a Coluna marcha sobre os chapadões limitados pelos rios Preto, Urucuia, Claro, Pardo, Pandeiro, Peru-Assu, Carinhanha. Entram no Estado da Bahia, numa zona deserta, fazendo uma ligeira curva para voltar a penetrar em Goiás, escalando a serra de São Domingos, entrando na vila do mesmo nome. Continuam atravessando rios, cruzando chapadões. Agora são os afluentes do Tocantins e é o próprio Tocantins, rio amazônico: o Tocantinzinho, o Paranã, o Palma, o Manoel Alves, o Manoel Alves Pequeno e o Manoel Alves Grande, o rio das Balsas e o rio do Sono, nesse traçar da carta geográfica do Brasil.
A Coluna marcha no rumo do Tocantins, que atingirá na cidade de Porto Nacional, seguindo daí pela sua margem até o "rio Manoel Alves, divisa de Goiás com o Estado do Maranhão.
Toda essa marcha foi feita sob combates. No dia 26 a vanguarda, que João Alberto chefia, penetra na cidade de Mineiros. No dia 27, às quafro horas da tarde, a retaguarda, Cordeiro de Farias no comando, trava combate com as forças governistas de Klinger. Cordeiro, após duas horas de fogo cerrado, domina a situação e continua a marcha, impedindo que Klinger possa perseguir a Coluna, atinge no dia 29 a Invernada Zeca Lopes onde, por proposta de Juarez Távora, espera a chegada das tropas batidas de Klinger para destroçá-las num combate final. Klinger porém marchou rapidamente, atacando a retaguarda, agora comandada por Djalma Dutra, intimando a Coluna a se render. Os destacamentos de João Alberto e Siqueira Campos marcharam em ajuda a Dutra, obrigaram Klinger a entrincheirar-se numa posição difícil, lugar onde faltava água e comida. A ofensiva de Klinger, a ofensiva acompanhada de proposta de rendição, se transformara numa retirada. No dia 30 continua o combate terrível, o inimigo muito melhor armado, melhor municiado, com um efetivo maior. Mas o entusiasmo dos soldados da Coluna não tem comparação. Caem os homens mortos de parte a parte. Klinger luta como um homem que defende sua única possibilidade de não ser aniquilado. Os homens da Coluna lutam como sabem lutar os soldados revolucionários. Lutam como lutou nesse dia o tenente Modesto Lafayette Cruz, que aí deixou sua vida. Ele tomara a iniciativa de conquistar num assalto os caminhões inimigos onde estavam as metralhadoras que varriam as linhas da Coluna. Modesto reúne seus homens e avançam todos sobre os caminhões, de peito aberto, as metralhadoras abrindo claros entre eles. Marcham contra ela, uma faca, um revólver, um punhal. Modesto vai na frente, a metralhadora canta no seu peito, ele cai, mas o pelotão continua, sua última ordem fora uma ordem de avançar. O pelotão conquista dois caminhões contra os quais tem que se dirigir agora o fogo das metralhadoras inimigas.
Às oito horas da noite, ainda sob o fogo, a Coluna, onde as balas inimigas haviam aberto claros de oficiais e soldados, parte ante a perspectiva de Klinger receber reforço pela estrada que ia de Invernada à cidade de Mineiros. A Coluna atravessa fazendas, rios, penedos, os maravilhosos penedos das "Torres do Rio Bonito", destrói pontes, constrói balsas, entra na cidade de Rio Bonito no dia 5 de julho, primeiro aniversário da revolta de São Paulo, terceiro aniversário do levante do Forte de Copacabana. Juarez, Pinheiro Machado e Pedro Palma discursam, um padre reza uma missa. E outro padre, seguindo a tradição do clero pobre do Brasil, se une às forças da Coluna: o padre Manoel de Macedo. Nesse ano de marcha a Revolução andara muito. Não apenas cortando o interior do Brasil, mas aprofundando os seus problemas, instigando e levantando o povo. Nesse ano o nome antes desconhecido do capitão de engenharia Luiz Carlos Prestes era o nome nacional do general Luiz Carlos Prestes, chefe da Coluna, levando a revolução pelo Brasil. Siqueira Campos, que vinha da manhã épica dos 18 do Forte, do levante, do putsch para derrubar o governo numa manobra violenta, constatava agora que uma revolução sem a massa era apenas mudar um homem por outro. A lição de Prestes, lição que ele aprendera na marcha, era compreendida pelos oficiais e pelos soldados. Agora, o povo já se acercava da Coluna, os governistas tinham muito mais dificuldade em caçar gente para os seus batalhões de voluntários. Agora a gente vinha do interior mais distante ver o general Luiz Carlos Prestes, que destruía os troncos, fazia fogueiras com as palmatórias, com os livros de impostos, com os processos iníquos. Vinha ver os seus oficiais, João Alberto, Cordeiro de Farias, Djalma Dutra, Trifino, Ari, Siqueira Campos a quem um sírio emocionado beija a ponta da barba nazarena num gesto oriental e cômico de carinho. Os homens escrevem cartas a Prestes, dizendo-lhe que dão seu nome bem-amado aos filhos recém-nascidos, que dão seu nome aos jardins pobres das suas casas já que não o podem dar às praças públicas.24 As populações já se dirigem aos chefes revolucionários fazendo-lhes pedidos, confiando neles.
Assim a população da cidade de Anápolis, distante três léguas da qual se encontrava, no dia 23, a Coluna. Os habitantes vêm pedir que a Coluna não penetre na cidade para evitar um possível combate com forças inimigas a chegar. É um pedido e um aviso, a vida da Coluna já interessava às populações. Prestes acede e a Coluna parte, rumando para o norte.
Mal iniciara a marcha, o destacamento de Cordeiro de Farias, que acabava, como vanguarda, de atravessar uma mata onde a Coluna marchava agora, se encontra com as forças inimigas de Klinger. Essa é a manhã do combate decisivo contra as forças governistas, em Goiás. Klinger estava com suas tropas na estrada de rodagem, ante um morro junto ao qual ficava a cidade de Anápolis, que seria o campo de batalha se Prestes não fosse avisado pela população. São dez horas da manhã quando Cordeiro de Farias inicia o combate com Klinger. João Alberto ocupa uma curva da estrada, para cortar a retirada ao inimigo. A luta se prolonga até as quatro horas da tarde. Apenas um automóvel com o médico das forças governistas consegue escapar. Os caminhões de Klinger, os caminhões por cuja posse o tenente Modesto e tantos soldados deram a vida no combate da Invernada Zeca Lopes, são conquistados agora, quando a Coluna obtém uma espetacular vitória contra as forças de Klinger, obrigando-as a se internarem na mata à sua retaguarda, deixando caminhões, armas, munições, muitos prisioneiros, homens mortos na estrada.
Vendo arder a fogueira imensa dos caminhões inimigos, a Coluna parte após o combate. No dia 28, João Alberto, novamente fazendo a vanguarda da Coluna, bate uma força da polícia do Rio Grande, na ponte do rio Descoberto, ao lado da cidade de Santa Luzia, apoderando-se de munições. No dia 6 de agosto, Siqueira Campos bate a polícia goiana ao lado do rio Arraial Velho, no Planalto Central. A Coluna, no dia 11, cruza a serra do Paranã, invade o Estado de Minas, em São João do Pinduca. Prestes, nesse momento, estuda as possibilidades de invadir o território da Bahia. Ele e Miguel Costa confiavam em que nesse Estado as forças da Coluna podiam ser ampliadas de muito e seguiriam para o nordeste com grandes efetivos. Mas, ao mesmo tempo, Prestes receia colocar-se entre o mar e o rio São Francisco. João Alberto é destacado, com noventa homens, para marchar até o rio São Francisco estudar in loco a situação. No dia 19 ele chega à vila de São Romão, margem esquerda do São Francisco. Encontra-se aí com um navio e duas chatas que conduziam de Pirapora um batalhão da polícia baiana, antes sob o comando geral de Rondon no Paraná. João Alberto ataca mas é obrigado a retirar-se e vai esperar na boca do Urucuia o navio e as chatas. Deixa aí duas metralhadoras e acampa uma légua adiante. No dia 21, numa curva do rio, aparecem as embarcações. As metralhadoras do destacamento da Coluna abrem fogo, infundindo pânico entre as forças do governo. Soldados se atiram n'água, o coronel Alberto Costa, que chefia essas forças, não sabe o que fazer. O navio desgoverna e fica a salvo das metralhadoras, o que permite aos governistas voltarem ao navio e seguirem viagem antes que João Alberto chegasse com os seus homens. No dia 24, Djalma Dutra à frente de alguns homens faz um reconhecimento na cidade de São Francisco, na margem direita do rio, tiroteando com o inimigo. João Alberto regressa e Prestes resolve não invadir a Bahia, voltando a Goiás, caminho do Maranhão. Marcham por uma zona deserta da Bahia, entram novamente em Goiás em 7 de setembro, Dia da Pátria. Da vila de São Domingos marcham para o Maranhão, passando por Posse, Riacho e Conceição. Vão quase sem munições, os últimos combates haviam feito gastar muitos dos poucos tiros que a Coluna possuía. Não há, amiga, uma só bala para as metralhadoras. E a Coluna só tem um único fornecedor de munição: o governo inimigo, através das suas tropas batidas. Entre chuvas torrenciais e queimadas que os soldados faziam nos campos antes secos, a Coluna se adiantava para o norte. Agora os habitantes se reúnem em torno dela, se dependuram nela, como disse o poeta, nas regiões hoje miseráveis que foram antes as regiões do ouro, aventureiros chegando de toda parte na febre do dinheiro. Padres velhos rezam missas pelo sucesso da Grande Marcha. Juarez fala explicando ao povo a revolução. Os homens beijam a mão de Miguel Costa, o comandante. Se emocionam ante Prestes, o grande general. A esperança já marcha na frente da Coluna, na voz dos seus feitos, onde ela chega já encontra as lendas que nasceram dela, a confiança que dela decorre, a esperança, a esperança, amiga. De toda parte vem gente para ver o Cavaleiro da Esperança, a Coluna Invicta, para assistir às fogueiras dos livros de impostos, aos discursos de explicação na voz de Juarez, de Pinheiro Machado, do Padre Manoel de Macedo, a batina substituída pelo fuzil, do bacharel feroz, o capitão Moreira Lima, advogado único da gente pobre do interior, o que decidia das infâmias dos processos e libertava os presos com suas sentenças revolucionárias. Um major tenta levantar uma parte da Coluna contra os chefes. Esse desejava não uma revolução em marcha, indo ao povo e levantando o povo. Queria, amiga, a tomada imediata do poder par?, usufruir das vantagens dele. Convida para o levante o padre Macedo e o tenente Agrícola Batista. Seu plano era simples: apoderar-se da caixa da Coluna, dois mil e quinhentos contos que nela havia, apoderar-se das armas, fazer da Coluna um grupo de saqueio de vilas e cidades, marchar para o sul levando o que encontrasse de valioso pelo caminho, se internando milionário na Bolívia. Esse major é o anti-Prestes. Para ele não existia a justiça, os fins da Coluna não eram os seus fins. O padre Macedo e o tenente Agrícola se horrorizam com o plano. Esses pensavam como Prestes, se haviam levantado porque conheciam a desgraça da vida da gente pobre. Denunciam a traição do major, Miguel Costa o expulsa da Coluna junto com os oficiais que conspiraram com ele.
A Coluna continua sua marcha para o Maranhão. Siqueira Campos derrota a polícia goiana que perseguia a Coluna, esta chega a Chuva de Manga, no rio Palma. Atravessa esse rio, chegam à cidade de Natividade, marcha sobre Porto Nacional. Aí é publicado um número de O Libertador, o jornal da Coluna. De Porto Nacional a Coluna segue para a fronteira maranhense. As tribos indígenas, sofredoras dos maiores sofrimentos, perseguidas por todos, procuram a proteção da Coluna. São xavantes e javaés que encontram Prestes na serra do Piabanha. Dizem-lhe das suas necessidades e das suas desgraças, acompanham a Coluna durante dias. Em Pedro Afonso cruzam o rio do Sono, marchando a vanguarda da Coluna para o Maranhão, através de Jalapão. O grosso das tropas segue pelas margens do Tocantins, para alcançar no dia 11 o rio Manoel Alves Grande, penetrando no Estado do Maranhão. Prestes concluíra, amiga, a campanha de Goiás, derrotara as tropas de Klinger, levantara o povo do Estado.
No seu rastro ficou o desejo de revolta, o gosto bom da justiça entrevista pelas populações durante a sua passagem. Ficou a certeza de que havia uma vida melhor, que era necessário conquistá-la. Ficou nesses campos, planaltos e rios de Goiás entre a, gente escravizada, o germe da revolução.
O coração de Prestes, amiga, se confrangera diante dos troncos da época da escravidão ainda levantados no país de Mato Grosso e Goiás. Nos ervais ele vira a escravidão nas suas formas mais sórdidas. Vira os senhores dos latifúndios, os patrões e os caoatazes, chicote numa mão, revólver na outra, na sede da fazenda o tronco, a palmatória, os instrumentos de tortura, o armazém fornecedor, instrumentos de escravidão. Seus olhos humanos se empaparam nessas visões.
Seu sorriso ficou mais triste, seu rosto tranqüilo ficou mais fechado de revolta. Nas noites de estrelas e pirilampos ele vira os papudos como uma legião miserável. Os doentes da doença de Chagas, trágico espetáculo de Goiás. Essa era a terra verde das esmeraldas, mais pirilampos na terra que estrelas no céu, terra rica e bela; essa era, amiga, a terra mais pobre do mundo para o homem que a habitava. A mais trágica também. Como uma desgraça maior que todas, a praga da doença de Chagas matava homens no país abandonado pelos médicos, pelo governo, pelo ministério e pela secretaria de saúde pública, o ministro pensando um discurso bonito, o secretário tratando de fraudar uma eleição, que lhes importava a doença de Chagas? Que lhe importava os papudos no interior, morrendo às dezenas? Ao entrar em São João do Pinduca, um povoado na fronteira de Minas e Goiás, Prestes constatou que toda a população estava atacada da doença de Chagas. Eram negros, abandonados do mundo, uma raça desaparecendo, uma cidade que morria. Longe de toda civilização, dos remédios, dos médicos, do conforto, da higiene. Era uma visão de morte coletiva, morrendo aos poucos, durante meses e anos, os negros papudos sem nenhuma esperança. Iam acabando devagarinho, o silêncio cada vez se fazendo mais dono da cidade. O rosto sereno de Prestes se fechou ainda mais. Mais triste o seu sorriso ainda, amiga. Cada vez ele se se sentia mais distante dos chefes políticos da revolta, iguais aos chefes governistas. Cada vez mais perto do povo. Distribuindo justiça, estudando, vivendo, começando a pensar no dia da grande Revolução.
Nas margens do rio, ele viu, amiga, chegarem os índios, os xavantes e os javaés, despojados de tudo, caçados como feras, perseguidos como criminosos. Vinham-lhe pedir, a ele general da Revolução, proteção e enxadas para cuidar da terra. Viu em Porto Nacional o preto João Francisco amarrado há quatro anos numa corrente. Antes, amiga, passara sete anos de martírio no tronco, como um escravo. Estava condenado a 30 anos de prisão porque o juiz que o julgara estava bêbedo na hora de lavrar a sentença, apesar de o júri o haver absolvido. O advogado não se interessou em apelar, aquele cliente não pagava. Há onze anos o negro velho João Francisco, que não tinha crime, que fora absolvido, pagava, sete anos de tronco, quatro de correntes nos pés e nas mãos, a bebedeira do juiz. Assim era e é, amiga, a justiça no interior do Brasil. Viu os livros de cobranças de impostos, impostos para os pobres que os ricos eram donos da terra, nada pagavam apenas cobravam. Viu com que alegria as populações assistiam à fogueira feita com esses livros.25
Seus olhos tristes ante tanta injustiça, tanta miséria, tanto sofrimento e tanta desgraça! Seu coração revoltado, suas mãos de vingança, suas mãos de justiça, não mais a serviço de um pensamento indeciso e informe ainda. Agora a serviço do povo. Marchando com sua tranqüila coragem, com sua magnífica esperança no dia da justiça.
No rastro da Coluna, amiga, em Mato Grosso e Goiás, como antes no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná, ficava a esperança na recordação do seu Cavaleiro que passara, Luiz Carlos Prestes na frente da Coluna.
Nas casas pobres, amiga, nas casas dos sem justiça, dos sem pão e sem liberdade, como o retrato de um santo, ao lado da oleografia de São Roque, de São Benedito e da Virgem, recortado de um jornal, estava o retrato do jovem oficial barbado e sério, um pouco triste, de olhos ardentes, o olhar no futuro. Como um santo, duas velas ardendo embaixo, a gente rezando para ele. Aquele em quem se devia confiar. Em cada casa pobre, em cada choça, em cada cabana, em cada mocambo, em toda parte onde se desejava a liberdade, como um marco de esperança pendia o retrato de Luiz Carlos Prestes, amiga. Embaixo duas velas, em torno a esperança.
Agora a Coluna ia iniciar a campanha do Maranhão e Piauí, de onde desceria para o nordeste, atravessando Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia. Ia vencer combates, lutar marchar incessantemente. Mas, já agora, das fazendas, dos povoados e das cidades, viriam as famílias, numa alegria de dia de festa, assistir, à passagem dos soldados de Prestes. Levavam café, leite, doces de milho, remédios para os feridos: Essas são cenas que de agora em diante se repetem a cada dia. Já sabem o que é a Coluna, os motivos por que ela marcha, por que combate. Já sabem quem é Prestes, o que ele quer, o que ele faz. Seu nome já é o mais popular de todos os nomes do país. Sua cabeça posta a prêmio no Rio, os sertanejos, os nortistas, trazendo flores e comida para ele e para seus soldados. Assim, sob essa emocionante solidariedade do povo, foi feita a campanha do Piauí e do Maranhão, amiga.
O destacamento João Alberto atravessou para o Maranhão, pelo Passo Cordeiro. Logo depois atravessou o grosso da Coluna e, no dia 13, o destacamento Cordeiro de Farias, com o qual ia Juarez Távora, adiantou-se para a cidade de Carolina, ao norte. Outra parte da Coluna toma o rumo de Santo Antônio das Balsas, marchando daí para São Raimundo das Mangabeiras, onde penetra a 28. João Alberto, com seu destacamento, já partira para Grajaú com a missão de libertar o tenente-coronel Paulo Kroger, que fora enviado por Miguel Costa e Prestes aos chefes oposicionistas do Maranhão com uma missão política. Kruger caiu prisioneiro dos governistas e foi transportado para a capital do Estado antes que João Alberto chegasse com a sua força. A Coluna, no dia 2 de dezembro, ocupa Loreto, vila na fronteira piauiense. Em Riachão o destacamento Cordeiro se reunira a ela. Djalma Dutra domina a vila de São Félix. travando pequeno combate, e a Coluna chega a Mirador a 7. A Coluna vai-se adiantando pelo Estado do Maranhão, para o norte, com a idéia de ameaçar a capital do Piauí, a cidade de Teresina, situada nos limites com o Maranhão.
O plano de uma revolta que entregasse o Estado às forças da Coluna fracassara com a prisão de Kruger. Prestes, de acordo com Miguel Costa e Juarez, resolve então a invasão do Ceará. Mas como este Estado se encontra fortemente defendido pelas forças do governo, Prestes imagina chamá-las em sua perseguição através de uma campanha rápida pelo Maranhão e Piauí. Se ele se demorasse nesses Estados, ameaçando cidades, marchando de um lado para outro, as forças governistas acorreriam e o Ceará ficaria em condições de ser invadido. Prestes realiza admiravelmente seu plano. As tropas da Coluna nos começos de dezembro estão acampadas em Loreto, a treze léguas do rio das Balsas. Somente o destacamento João Alberto avançava de Grajaú em direção a Mirador.
As forças governistas, num total de mil e quinhentos homens, um batalhão do exército, o 23º. BC, forças da polícia cearense e forças de cangaceiros que o governo contratara, se aquartelavam em Benedito Leite e Uruçuí, cidades do Piauí, nas margens do rio das Balsas. A Coluna avançou para Mirador. O destacamento de Djalma Dutra enganara o inimigo, marchando paralelamente ao grosso da tropa, chamando para si a atenção dos governistas. Trava diariamente tiroteios até que o inimigo abandona Benedito Leite e Uruçuí, partindo então a Coluna para a cidade piauiense de Floriano. Ao mesmo tempo o destacamento João Alberto chegava de Grajaú e Prestes o envia para as margens do Pamaíba.
Djalma Dutra, um dos mais bravos oficiais da Coluna, havia obtido no combate de Uruçuí uma vitória marcante. Da tarde de 7 até a madrugada de 8, parte das suas forças tiroteia com o inimigo na altura de Benedito Leite. Enquanto isso informam-no de que os governistas desciam reforços pelo Pamaíba em navios e balsas. Avança para a vila Nova Iorque onde ataca um dos vapores. João Alberto se aproximava também e o inimigo abandona precipitadamente todas as suas posições em Benedito Leite e Uruçuí, tomado de pânico.
Nos mesmos dias desse combate, Siqueira Campos, em cujo destacamento ia o subchefe do Estado-Maior, o tenente-coronel Juarez Távora, ocupou Picos, vila maranhense, tendo os civis que a defendiam fugido para Almeida, onde Siqueira os desbaratou. No dia 10 o destacamento entra em Passagem Franca, no Parnaíba.
Prestes planeja tomar a cidade de Floriano. O inimigo foge desta cidade e da de Amarante já agora ameaçada pelo destacamento de Siqueira. No dia 20, Juarez, que vinha com esse destacamento, penetra em Amarante, onde Prestes já chegara horas antes. O Q.G. se estabelece em Floriano ao mesmo tempo em que Dutra e João Alberto, ao mando de Juarez, marcharam em direção a Teresina pela margem direita do Parnaíba, enquanto pela margem esquerda marchavam Cordeiro de Farias e Siqueira Campos, sob o comando geral de Prestes que ia com esses destacamentos. Miguel Costa, com parte da Coluna, guardava as posições de Floriano. Era o ataque, amiga à capital do Piauí.
Távora a 23 chega a São Pedro, no dia de Natal se avista com Prestes em Riacho Seco, toma contato com o inimigo a 28, dia em que Prestes chega a Flores. Três mil homens defendiam Flores e Teresina, sob o comando do coronel Gustavo Bentemuller. O general João Gomes era o chefe supremo das forças governistas nos dois Estados. Mandava sete mil homens do seu Q.G., em São Luís do Maranhão. As forças que marchavam contra os três mil governistas eram oitocentos homens, quatrocentos com Prestes, quatrocentos com Juarez. Miguel Costa, com o Q.G., deixa Floriano e marcha com trezentos homens na retaguarda das forças de Juarez. Do lado inimigo a coluna do coronel Almada buscava ligação, vindo do sul, com as forças de Bentemuller. Os tiroteios sucediam-se desde 23, os governistas gastando munição.
Prestes ataca a cidade de Flores, cortando as comunicações ferroviárias entre ela e Caxias, enquanto Juarez atacava Teresina. O plano de Prestes está no seu momento supremo. O governo, alarmado com a possibilidade de a capital do Piauí cair nas mãos da Coluna, envia para este Estado quanta força dispõe no Ceará. O Ceará fica virtualmente desguarnecido. Prestes ordena a retirada do cerco de Teresina e Flores, ante os governistas assombrados, e marcha para o Ceará. O inimigo se prestara perfeitamente ao plano do general revolucionário.
No cerco de Teresina, amiga, a Coluna perdeu a colaboração de Juarez Távora. Fora feito prisioneiro das tropas do governo, quando de um reconhecimento. Juarez, que fizera o levante em São Paulo, digno substituto de seu irmão Joaquim, que fora enviado ao Rio Grande para levantar esse Estado, era o subchefe do Estado-Maior e a ele muito ficara a Coluna devendo no decorrer da marcha até ali. Sua competência de militar, sua honestidade pessoal e profissional, sua retidão de caráter, haviam sido elementos marcantes no êxito da marcha. Ele era o orador que expunha os fins da Marcha. Anos depois iria se separar de Prestes, suas soluções para o problema brasileiro baseadas em outras teorias filosóficas e sociais.
A Coluna marcha para o Ceará. Marcha lutando. Siqueira bate-se com a polícia pernambucana, sob o comando do coronel João Nunes, em Valença. Mendes Morais, capitão da Coluna, ocupa a cidade de Picos. Cordeiro de Farias é atacado por Almada.
No dia 20, sob as aclamações dos soldados, Luiz Carlos Prestes é promovido a general por Miguel Costa. João Alberto e Siqueira têm agora o posto de coronéis. Através da caatinga que começa e dos bosques de carnaubeiras, tendo escalado a serra Grande, a Coluna chega à vila de Pio X, na fronteira do Ceará. No dia 22 penetra nesse Estado, indo sestear numa fazenda, marchando em seguida para Arneiroz, no rio Jaguaribe, que é transposto no mesmo dia 25. João Alberto com seu destacamento entrara mais ao norte, pela cidade de Ipu, dominando parte da Estrada de Ferro de Sobral, ameaçando esta cidade e a capital do Estado. Reunidas as forças da Coluna, esta continua sua marcha pelo Ceará, na direção do Rio Grande do Norte. A 29 passa pela Estrada de Ferro de Baturité, ocupa a estação de Sussuarana, a 31 toma contato com o inimigo. No dia 2 de fevereiro chega a Boa Vista. A Coluna visa o Estado de Pernambuco, onde se espera a revolução de Cleto Campeio. Esse oficial do exército conseguira estabelecer ligação com Prestes e mandara-lhe narrar o seu plano de levantar Pernambuco e Paraíba. Prestes encaminha sua marcha para aquele Estado a fim de apoiar o movimento. No dia 4 de fevereiro, cruza os limites do Ceará com o Estado do Rio Grande do Norte, pela ladeira dos Miuns. Essa subida numa serra abrupta, por uma picada infernal, sob o fogo do inimigo alojado no alto da serra é um dos feitos mais heróicos da Coluna. As pedras que ladeavam a picada rasgam os corpos dos homens que têm que marchar um a um, as padiolas sendo um problema terrível, as metralhadoras dando trabalho. Do alto da serra dos Miuns o inimigo metralhava a Coluna. Mas esses soldados de Prestes, amiga, não desanimavam com facilidade. Desalojam o inimigo, conquistam o cimo da ladeira, penetram no Rio Grande do Norte.
Desde que saíra de Goiás, a Coluna atravessara três Estados: Maranhão, Piauí, Ceará. Prestes vira passar mais um seu aniversário no calor do combate, na febre dos planos traçados durante as marchas. Fora promovido a general, perdera a colaboração de Juarez, dominara com sua força moral a insubordinação de Benício dos Santos. Esse era um civil gaúcho que acompanhava a Coluna desde o Rio Grande do Sul com uma tropa de amigos. A disciplina militar, dura e severa, pesava sobre esse homem acostumado à vida solta dos pampas. Na noite de 3 de dezembro, quando comemoravam o aniversário de Miguel Costa, Prestes repreende um sargento que praticava desordens. O sargento o desrespeita e é preso, com mais alguns soldados. Esclarecido que os homens haviam agido por ordem de Benício, Prestes impede que Miguel Costa os castigue, reenvia-os para o seu destacamento, e, acompanhado tão-somente de Landucci, seu ajudante-de-ordens, vai até os homens de Benício. Chama-o, se põe à frente dele e do seu batalhão e, com os que o haviam tentado matar na véspera, faz uma marcha de vinte e quatro horas. Na frente vão ele e Landucci, logo atrás Benício e o sargento que, por ordem daquele, havia sacado seu revólver contra Prestes. Atravessam matas, cruzam rios, marcham e marcham, Benício e o sargento e os soldados agora só têm remorso no coração, mais uma vez Prestes os conquistou. Assim era ele, amiga, impávido e reto, assim conquistava a estima, o respeito e a admiração dos seus homens.
Nessa campanha de três Estados, Prestes se encontrou com o impaludismo. Antes fora a praga das sarnas que batera sobre a Coluna, os homens barbados e peludos parecendo imenso bando de macacos que se cocavam. Mas, na travessia do rio Piauí, quando das grandes chuvas, o impaludismo derrubou quatrocentos homens da Coluna. Prestes marchava com febre, quase nenhum oficial escapou. Mas, esses homens não sentiam a febre, a maleita não os jogava no chão. Alimentavam-se dessa mesma febre do impaludismo para os atos mais heróicos. Aquela marcha alucinante já não podia ser rota por uma epidemia de maleita. Os homens tremiam no frio do impaludismo, faltos de quinino, de qualquer outra medicação, mas ainda assim marchavam e combatiam. As horas do delírio, que o impaludismo traz todos os dias com uma constância infatigável, não eram novidades para aqueles soldados, para aqueles oficiais, para aquele chefe. Um sonho febril já era a própria marcha da Coluna, sonho que tanta gente considerava impossível e que eles estavam realizando ante o assombro dos mais sábios estados-maiores. Que era o impaludismo para esses homens? No Piauí a maleita se segurou na Coluna e foi sua companheira até a Bolívia. Não deixaram mais de ter febre, mas se acostumaram com ela, não a contavam mais como doença.
No terreno seco do Ceará, onde o sol era o inimigo maior, o impaludismo diminuiu. Haviam morrido muito poucos homens, seis para quatrocentos doentes. Depois das chuvas de dilúvio do Piauí, o Ceará apresentava uma paisagem desolada de seca. As areias onde o sol brilhava como sobre um espelho eram levantadas pela ventania ardente. Era o deserto. Era como atravessar sobre fogo, os pés queimando, o sol apertando a garganta seca dos homens. Depois do mistério das selvas de Mato Grosso, dos gerais e do planalto de Goiás, das chuvas palustres do Piauí era a fogueira do Ceará que queimava gerações nordestinas nas secas periódicas. A Coluna vai sob o sol terrível, vencendo o sol, a areia e o vento causticante, como vencera o impaludismo. Como estava vencendo os cangaceiros.
Lampião se havia oferecido a Prestes, o general recusara sua adesão. Lampião foi dono desses Estados do nordeste durante muitos anos. Partira da injustiça dos donos da terra, das leis bárbaras contra os pobres, para a vingança do cangaço. A revolta virando banditismo, saque, estupro e morte. O governo contrata Lampião para combater a Coluna. Ele é feito capitão num insulto ao exército. E como ele, o governo arrebanhou quanto cangaceiro existia no nordeste, para lançar contra Prestes. Foram os homens do padre Cícero, taumaturgo do Ceará. Na esperança dos seus milagres, da sua intimidade com a Virgem, se dependuravam as populações nordestinas. Viajam léguas e léguas para tomarem a bênção ao padre Cícero. Juazeiro do Ceará, sua cidade e sua fortaleza, era o reduto onde os cangaceiros se homiziavam. Padrinho de Lampião, prometendo a toda a gente desgraçada um milagre caído do céu, do manto estrelado da Virgem, que um dia melhorasse as suas vidas. O padre Cícero não aceitou tomar parte na luta contra Prestes. Talvez que, na sua loucura religiosa, na sua bondade atrapalhada, querendo ajudar os sertanejos, não tendo para lhes dar senão os milagres, desconhecendo os caminhos que poderiam levar os homens a uma vida melhor, talvez ele tenha sentido que com Prestes vinha a palavra verdadeira de libertação para os seus sertanejos infelizes. Não aceitou luta contra ele, mas todos os Floros Bartolomeus, que exploravam o seu prestígio de santo supersticioso junto aos nordestinos, aceitaram de bom grado o dinheiro e os postos militares, armaram os cangaceiros e saquearam cidades e vilas, povoados e fazendas, já que não conseguiam vencer a Coluna.
É que, amiga, se tornava cada vez mais difícil ao governo formar os batalhões de voluntários. Esses voluntários eram caçados a laço pelos senhores feudais, os donos dos latifúndios de Mato Grosso e Goiás. Os seus escravos que eram lançados contra a Coluna, aparecendo nos jornais do governo, sob a censura carola de Jackson de Figueiredo, como patriotas que se alistavam para defender a "boa causa". Os feitos da Coluna, os militares e os sociais, a distribuição de justiça, impossibilitaram, no nordeste, a caça desses voluntários pelos chefetes políticos. As populações desertavam para não formarem contra Prestes. O governo teve de recorrer aos cangaceiros, bandidos de profissão, terror dos sertões, para formar tropas contra a Coluna. Foi assim, amiga, que Virgulino, o que foi decapitado anos depois nas margens do São Francisco, foi feito capitão. O capitão Virgulino Ferreira, Lampião, homem do governo contra Prestes. Rezavam os governistas por Lampião, o que deflorava virgens, matava inocentes, capava gente, roubava ricos e pobres. Por ele o padre-nosso e a ave-maria.26
Luiz Carlos Prestes vencera o impaludismo, o sol, as florestas e os rios. Vencia os cangaceiros também. Seu nome, como uma chicotada na face dos inimigos do povo, ressoava sob os céus do pais. Nos lares pobres, nas choças, nos mocambos, nas senzalas do país, as mulheres de faces cavadas, as crianças doentes, os homens escravizados imploravam aos céus, aos seus deuses misturados, brancos, índios, negros, deuses mesclados de religiões e superstições, imploravam pela vitória do Cavaleiro da Esperança. Também da caatinga ardente sobem preces para os céus, amiga.
A Coluna, amiga, entrava agora em plena campanha do nordeste, tomando o caminho do rio São Francisco. Mais três Estados vão ser atravessados pelos soldados de Prestes: Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Nessa travessia vai haver o sangrento combate de Piancó, onde Cordeiro de Farias e seus soldados vão se cobrir de glória, onde os governistas vão se superar nas torturas aos revolucionários que caíram prisioneiros. É também nessa travessia que o gênio de Prestes realiza uma das suas mais audaciosas manobras militares: quando três colunas governistas procuram cercar a Coluna acampada na fazenda Buenos Aires, num contraforte da serra Negra. O governador de Pernambuco já comunicara ao Rio de Janeiro, numa antecipação da vitória, que as forças revolucionárias estavam cercadas e perdidas, nada mais lhes restando, senão morrerem ao tentar escalar a serra. Quinze mil homens se preparavam para acabar com a Coluna Prestes, liquidar a Revolução em marcha no país. Prestes se demorava ali à espera de notícias da revolta de Cleto Campeio que devia estalar em Recife. O fracasso dessa revolta, ainda não conhecido por Prestes, ativara os governistas. O cerco da Coluna foi revelado na tarde de 22. Prestes então faz uma volta sobre si mesmo, de 23 léguas, marchando em marcha forçada através da caatinga, abrindo picadas, em lugares onde nem mesmo os cangaceiros haviam nunca penetrado, sob uma chuva infernal, cruzando atoleiros, andando dia e noite, numa média de treze léguas diárias, enquanto as colunas governistas continuavam cercando a fazenda Buenos Aires, tentando espremer entre ela e a serra Negra os soldados de Prestes. Este, tendo descrito um arco, saía no rio São Francisco, atravessando para a Bahia. As tropas governistas não encontraram na fazenda Buenos Aires nem rastro da Coluna Prestes. Essa foi uma das grandes manobras que o general de vinte e sete anos realizou na marcha através do Brasil. Os caminhos intransponíveis, a caatinga inconquistada, os atoleiros jamais varados, os soldados enterrados na lama até a barriga, as padiolas com os doentes e os feridos sendo levados através de todas as dificuldades, os cangaceiros bordeando a caatinga onde não se haviam atrevido jamais a entrar, esperando o aparecimento dos homens da Coluna para liquidá-los, os cavalos morrendo nos atoleiros, uma marcha fantasmagórica, dia e noite.
Os soldados num mar de lama. Aqueles atoleiros pareciam hão ter fim. Na noite imensa de horas compridas, eles seguiam, o chefe na frente, lama até quase os ombros. Os espinhos da caatinga rasgavam as carnes. Os animais noturnos piavam ao longe, corujões espantados. Uma rã gritava na boca de uma cobra, os soldados seguiam, o atoleiro nunca terminava. Os doentes prendiam gemidos nos balanços das padiolas. A noite sem lua, o céu sem estrelas. Um soluço de dor na boca dos homens, um estrangulamento de medo nos seus corações. Voltar era impossível: os quinze mil governistas cercavam a fazenda de onde eles haviam vindo. Por detrás, a serra Negra e nela a morte. Na caatinga de atoleiros e espinhos, o medo morava. Os soldados olhavam o céu escuro, nem uma estrela para guiá-los. Gritos de rãs assassinadas, pios agourentos das corujas. Nem uma estrela, os homens perdidos na lama. Olhavam para a frente. Existia uma estrela, amiga. Olhavam para ela, o chefe que marchava rasgando os caminhos, Luiz Carlos Prestes andando na lama. Uma estrela. Os doentes prendiam os soluços de dor, os soldados expulsavam o medo do coração. Dois dias depois chegavam às margens do rio São Francisco. Haviam atravessado o caminho do inferno, onde Lampião nunca entrara, nem mesmo ele, que nascera e morava na caatinga. Por esse caminho Prestes entrou e por ele salvou seus homens da morte, salvou a Coluna da destruição.
Essa foi, amiga, a manobra final da campanha dos três Estados. Haviam vindo do escalar, sob o fogo inimigo, a ladeira dos Miuns. Na estrada do Rio Grande do Norte os destacamentos de Ari e de João Alberto liquidam, na vila de São Miguel, as forças "patrióticas" dos cangaceiros a serviço do governo. A 5 de fevereiro a Coluna escala a serra Luís Gomes, entra na vila deste nome, na fronteira com a Paraíba. Penetra nesse Estado, onde João Alberto é encarregado de procurar ligação com os tenentes Seroa da Mota e Souza Dantas, que deviam tentar um levante na capital paraibana, em combinação com o levante de Cleto em Pernambuco. O levante havia fracassado após heróica resistência de onze revolucionários atacados por quatrocentos homens. Seroa e Souza Dantas foram presos. Na Paraíba, a Coluna atravessa as serras de Boa Vista, da Pedra Cerrada e das Pitombeiras, cruzando vários rios: Piranhas, Piancó, Santana, Pedra Lascada e Pajeú. No dia 8 o destacamento Ari está em Boqueirão de Curema, batendo o inimigo, e a 9 a Coluna marchava em direção a Piancó. Cordeiro de Farias, com seu destacamento, fazia a vanguarda. Ao se aproximar da vila, Cordeiro é recebido sob cerrado fogo dos soldados da polícia paraibana e de cangaceiros. Comandava as forças do governo o padre Aristides Ferreira da Cruz, deputado estadual. Cordeiro descia a ladeira que conduz à cidade de Piancó, com os seus homens, quando foi atacado. O combate se prolongou por três horas, prenhe de atos heróicos, caindo feridos e mortos vários oficiais e praças da Coluna, os capitães Pires e Batista assaltando a cadeia pública onde se haviam entrincheirado grandes contingentes inimigos. Temerário assalto esse, amiga! Pires foi ferido três vezes, já antes, tinha onze outros ferimentos. Três vezes caiu, três vezes se levantou e marchou adiante. De súbito, quando ia mais intenso o combate, o inimigo içou a bandeira branca numa casa. Cordeiro mandou parar o fogo e os soldados penetraram na cidade. Mas era apenas um ardil do inimigo e foram recebidos sob uma rajada de balas que partia da casa do padre Aristides. Djalma Dutra manda que os seus homens atirem sobre a casa uma lata de gasolina com o fim de incendiá-la. E, sob balas, penetram na casa do padre, dominando aquele último foco reacionário. Piancó caíra em mãos de Cordeiro de Farias.
A Coluna saiu de Piancó a 10, atravessa a vila de Santana dos Garrotes, acampa em Pitombeiras, ocupa no dia seguinte Belém e Tavares, cruza o Pajeú e as serras de Boa Vista e Pedra Cerrada. A vanguarda penetra em Pernambuco. A 12 a Coluna se encontra toda neste Estado, entrando entre Flores e Ingazeira dos Afogados, tendo acabado de cruzar a Paraíba.
João Alberto, que fora tentar contato com Seroa da Mota e Souza Dantas, se reúne à Coluna, tendo antes atacado forças inimigas na vila de Malta, conquistando grande presa de munições e armas. A Coluna se interna por Pernambuco adentro. A 14, Dutra e João Alberto destroçam uma força da polícia pernambucana, comandada pelo coronel João Nunes. Essa força foge em debandada, deixando automóveis, caminhões, armas e munições. A Coluna continua em direção à fazenda São Boaventura. Prestes espera a cada momento receber notícias do levante de Cleto Campeio. No dia 15, a Coluna entra em São Caetano, enquanto Siqueira, com o seu destacamento, ocupa Betânia, expulsando daí a polícia de Pernambuco. O destacamento de Ari é mandado em busca de ligação com Cleto Campeio. Siqueira luta em Mulungu, João Alberto luta em Campo Alegre. A Coluna marcha por caminhos difíceis, as chuvas, que não param, transformando as picadas em atoleiros. Em Tabuleiro Comprido a Coluna descansa à espera de notícias de Cleto. Daí parte a 21 para a fazenda Martinho. A 22 chega à fazenda Cipó. Na hora mesma da chegada é atacado pelo inimigo: tropas do exército, da polícia e cangaceiros. Cordeiro de Farias, na vanguarda da Coluna, agüenta o inimigo enquanto o grosso da tropa transpõe a fazenda. A travessia foi feita sob fogo, combatendo especialmente os destacamentos de Siqueira Campos e Djalma Dutra. Em determinado momento os soldados de Siqueira são tomados de pânico, ao ver que o inimigo se aproxima cada vez mais. Amedrontados, iniciam a debandada. Siqueira, reunindo um pequeno grupo que ficara firme, avança para o inimigo. Os soldados que já fugiam, ao ver aquela decisão valente do seu comandante, voltam às fileiras, derrotando os adversários. Cordeiro acompanhou a Coluna que partia da fazenda Cipó, combatendo o inimigo, evitando que ele avançasse contra o grosso da tropa. Horas depois da Coluna partir, o destacamento de Ari chega à fazenda onde se encontra com as tropas governistas. Bateu-se e conseguiu retirar-se indo reunir-se à Coluna na fazenda Buenos Aires. Desta fazenda Prestes inicia, quando da aproximação dos quinze mil homens do governo, a manobra através da caatinga. São aquelas 23 léguas em arco, saindo através da fazenda Cipó onde haviam combatido antes, chegando a 25 à fazenda Brejinho, distante três léguas do São Francisco. Daí o destacamento de Siqueira Campos parte como vanguarda, atacando a 25 e mantendo sob assédio até 26 a vila de Jatobá, no São Francisco, onde estavam as forças governistas. Enquanto isso, a Coluna atravessava o rio, passando para o Estado da Bahia. A travessia foi feita pelo povoado de Várzea Redonda a uma légua e meia de Jatobá, onde Siqueira encurralara o inimigo. O tenente Brasil, numa canoa, se transportou com alguns soldados para a margem baiana do rio, onde se apossou de duas embarcações a vela nas quais a Coluna cruza o São Francisco. Era madrugada alta quando as barcaças velejam pelo rio levando os homens da Coluna Prestes. Agora a lua brilhava sobre eles, a grande lua amarela dá Bahia, navegavam já em águas que eram de Iemanjá, dona de todos os mares, todos os lagos, todas as cachoeiras e todos os rios do Estado negro.
Nessa noite, amiga, ela não estava na sua pedra do Dique no cais da Bahia, olhando a lua cheia, tentando com sua verde cabeleira os marinheiros apaixonados. Não. Nessa noite ela navegava num raio de luar e viera para as suas águas do rio São Francisco ver o general Luiz Carlos Prestes que ia na popa de uma barcaça, a barba ao vento, os olhos penetrando a noite, o coração batendo por todos os negros e mulatos desse rio de drama. Iemanjá soprou a brisa mais fresca, estendeu seus cabelos sobre as águas para que elas ficassem mansas e doces, conduziu com suas mãos de bússola as embarcações que levavam a Coluna. Seus olhos verdes fitos em Prestes, o que sabia os caminhos das terras da felicidade. Pai dos soldados e dos sertanejos, pai dos marinheiros também, amiga.
As lendas ficavam na rabada da Coluna, amiga, marchavam também na sua frente. Nessa terra de superstições e história, de bandoleiros e profetas, nessa terra agreste do sertão, as lendas surgem a cada instante, acerca de cada coisa. Os fantasmas habitam todo o interior do Brasil, milhares de assombrações morando nas matas, a poesia como em ondas na boca dos cegos violeiros, dos pretos narradores, das negras velhas que embalaram o sono das crianças brancas e mulatas. Nessas terras, amiga, os poetas são transformados em heróis de aventuras, nunca ninguém soube onde ficam os limites da realidade e da imaginação. Lendas dos negros, lendas que vieram da África para as costas da Bahia e Pernambuco. Lendas dos índios nas selvas de Goiás e Mato Grosso. Por entre elas atravessava a Coluna Prestes. E dela, desse punhado de soldados destemidos, nasciam igualmente as lendas. A Coluna conduzia o heroísmo e a justiça, conduzia a poesia também, amiga. No seu rastro as lendas, as lendas na sua frente.
Já te disse que, na voz dos sertanejos, os soldados da Coluna só comiam as partes dianteiras dos animais, para assim adquirirem aquela espantosa rapidez de movimentos que caracterizou a Grande Marcha. As patas dianteiras arrastam para frente, as patas de trás são as que querem ficar. Nas patas dianteiras está o segredo das marchas velozes. Assim o contam os sertanejos, amiga, assombrados ante a ligeireza dos movimentos da Coluna.
Nasciam as lendas das "potreadas" audaciosas, nasciam as das vivandeiras valentes, nasciam as do heroísmo dos oficiais, do gênio de Prestes. Para o interior do Brasil, a Coluna era o inédito, o nunca visto e o nunca esperado. As populações estavam acostumadas com os cangaceiros roubando, queimando, destruindo, violando propriedades e mulheres, com a polícia que perseguia os cangaceiros e que em nada se diferenciava deles.27 Um grupo de homens armados representava sempre para o camponês do interior uma ameaça à sua vida, à sua família, aos seus parcos bens. Era sempre um aumento das suas desgraças, no bando vinham novas leis ainda mais terríveis que as escravizadoras leis dominantes. A lei do cangaço, a lei da polícia que perseguia o cangaço. Junto com as enchentes, os rios transbordando, levando as plantações e o gado, junto com as secas, o sol comendo as safras, sugando o sangue dos animais até matá-los, os cangaceiros e a polícia eram o trágico cotidiano do sertão. No seu folclore tão sofrido, conduzido através do país nas violas dos cegos, esmoladores, essas eram as personagens das lendas, dos cânticos, das histórias e dos á-bê-cês.
A Coluna era diferente. Aqueles homens armados, lutando todos os dias, barbados, cabeludos, sujos e esfarrapados, vestidos de couro como os cangaceiros, como os vaqueiros tocadores de gado, ardendo em febre nas caminhadas, a maleita agarrada neles, não traziam a morte, o roubo, o crime, a violação no lombo dos seus cavalos, no rastro dos seus pés andarilhos. Traziam algo que o sertão desconhecia, algo que nunca estivera presente nos júris, nas administrações, nos impostos, nas contas que os coronéis liquidavam com os trabalhadores: a Coluna trazia a justiça, amiga, era impossível de crer!
Mas quando os sertanejos comprovaram que era verdade, que aquele rapaz magro tudo o que queria era melhorar a vida deles, então tomaram das suas violas, das suas harmônicas, e compuseram as lendas da Coluna. Aí não se fala de desgraças como nos á-bê-cês dos cangaceiros, como nas histórias da polícia. É um canto terno de louvor, as qualidades heróicas da Coluna, o incrível dos seus feitos, a figura do chefe, ele não era mais um homem, era um deus das selvas, de corpo fechado às balas, andando sobre os rios, adivinhando o pensamento de todos.
Contavam, amiga, que o fogo crescia lado a lado nos caminhos que a Coluna abria na mata e na caatinga, à força de facão, para proteger os soldados da aproximação dos inimigos. 28 As demoradas queimadas que resultavam ou do sol ardente, fazendo os gravetos secos se incendiarem, ou de um cigarro atirado ao acaso, se transformavam numa proteção dos céus ao Cavaleiro da Esperança. Uma vez, amiga, numa feira distante, um cego cantava sua recordação de Luiz Carlos Prestes.
"Deixando os soldados frios.
Passava a pé pelos rios,
As águas se endurecia.
Junto do fogo seguia.
O fogo lhe protegia
A brasa já se esfriava
Quando seu pé lhe pisava."
Para os sertanejos assim era ele. Capaz de todos os milagres. A água dos rios se endurecendo, virando terra batida quando seus pés se punham sobre ela na continuação da marcha. O fogo a protegê-lo, as brasas se esfriando ao seu passar. Assim imaginavam o Herói, o homem que, como um mágico, os fazia ver as coisas das quais o sertão já havia perdido a lembrança, coisas distantes como a justiça.
Uma vez, negra, Cordeiro de Farias encontrou dois velhos, pai e filho, um com oitenta e cinco anos, o outro com sessenta. Cordeiro pediu-lhe que lhe mostrassem as canoas com as quais poderia atravessar o rio, na margem do qual estavam. Os velhos se benzeram, admirados da pergunta. Para que canoas, se a verdade é que a Coluna conduzia um "apareio de mangaba" que colocava sobre os rios e sobre o qual passava? E falaram a Cordeiro também de uma "rede" para apanhar gente, que a Coluna transportava e da qual nem por milagre os soldados governistas escapavam.
Essas populações se acostumaram a respeitar os padres, houve um tempo em que o clero pobre defendeu os seus interesses. Depois uma grande parte dos padres ficou com os ricos, seus instrumentos de escravidão. Mas a lembrança dos padres bons restara no pensamento do sertão. E quando a Coluna chegava, os camponeses beijavam, por vezes, a mão de Miguel Costa e o tratavam de bispo, como quem lhe dava um nome bom. Como confundiam uma vivandeira com a princesa Isabel, a que ficara na memória dos pobres porque assinara o decreto de libertação dos negros. Mas Prestes era um mistério maior: nos seus olhos ardentes os sertanejos viram o dom de adivinhar. Adivinhava o pensamento de todos, ninguém podia esconder-lhe nada. Para ele não havia segredos, nem os homens, nem os animais, nem a natureza bravia podiam com ele. Era maior que todos, era um adivinho.
Os homens da Coluna marchavam com a cabeça a prêmio. Nos jornais do Rio de Janeiro o governo oferecia fabulosa quantia pela cabeça de Luiz Carlos Prestes. Era inútil, os sertanejos bem o sabiam. Não haveria homem, não haveria soldado, não haveria polícia, nem mesmo cangaceiro, capaz de vencê-lo. Como vencê-lo se ele não era um homem igual aos outros, era um dos deuses da selva, adivinho e milagroso? Os sertanejos sorriam ao saber que sua cabeça estava a prêmio. Ainda hoje, amiga, tantos anos passados sobre a Grande Marcha, os cegos nas feiras do nordeste cantam o á-bê-cê de Luiz Carlos Prestes:
"Seus olhos adivinhava
O pensamento da gente.
Quando espiava para frente
Seus olhos tudo enxergava."
Fazem seu retrato, dizem dos seus feitos. Ficou no coração dos sertanejos, nas cordas das suas violas, na esperança que deixou:
"Andou por todo o sertão,
Abriu estrada a facão,
Por onde ele passasse
As coisas se indireitava,
Quem era bom que ficasse,
Quem era ruim se acabava."
Na boca dos cegos cantadores, na boca das populações desgraçadas do sertão com as quais ele deixou a esperança, o gosto doce da justiça, o sonho da sua volta, realidade de amanhã:
"De propósito vai se acabar,
No dia que ele voltar.
Se acaba seca, os bandido,
Os criminosos de morte.
Vai se acabar a má sorte
Do sertão já redimido
No dia que ele voltar."
No dia que ele voltar, amiga.
Descansaram em Saco, lugarejo na margem baiana do São Francisco. A Coluna iniciava mais uma etapa, a etapa do grande rio, onde o gênio militar de Prestes iria atingir sua plenitude, amiga. Vai arrastar atrás dele, numa corrida doida, os soldados governistas totalmente desorientados. A campanha do São Francisco é plena de grandes feitos militares. Nesse momento da entrada na Bahia, a Coluna contava com um total de mil e duzentos homens. A cerca de trinta mil homens subia o número das tropas governistas espalhadas entre Bahia, Pernambuco e Minas. Três ou quatro vezes maior ainda era o total dos soldados que o governo aliciara por todo o país para perseguir os mil homens de Prestes. Dezoito generais, vários coronéis são derrotados durante a Grande Marcha. O governo empregou todos os seus recursos militares na tentativa de derrotar a Coluna. Sem resultado. Prestes brincou com essas forças contra-revolucionárias, fez delas o que quis, fê-las andar para a frente e para trás, se juntarem num Estado quando ele queria entrar noutro, lutarem entre si, fugirem inúmeras vezes, se desorientarem sempre. Na sua visão genial, o adivinho dos sertanejos previa com um acerto absoluto os movimentos do inimigo, não lhe dava tempo a surpresas. Oferecia-lhes combate quando o achava necessário, enganava os governistas todas as vezes que desejava.
Agora vai atravessar o Desertus Austral, nome que Martins deu a essa região arenosa, de pedras e seixos cobrindo o chão. Vai logo depois cruzar toda a chapada Diamantina, lutando com os cangaceiros de Horácio de Matos. Vai descer a Minas e voltar à Bahia numa manobra espetacular, o seu célebre "laço húngaro". Vai subir ao norte novamente, antes de tomar o rumo do oeste, de voltar a Goiás. Palmilhará todo o Estado da Bahia, de norte a sul, de leste a oeste, ficará conhecendo o São Francisco como ninguém. O São Francisco, amiga, é como a veia arterial do Brasil. Seus problemas, suas riquezas, seus dramas são o cerne dos problemas, das riquezas e dos dramas do Brasil. Imensas fortunas se edificaram aqui, aqui a escravidão é um drama banal. Prestes vai estudar esses problemas, como estudou os demais problemas do Brasil, em carne viva. Marchando através deles, vivendo-os.
Ora viajando sobre areias escaldantes e pedras que rasgavam os pés, ora marchando entre flores de todas as cores, azuis, vermelhas, amarelas, roxas e brancas, entre grandes troncos abraçados por trepadeiras gentis ele vai de olhos abertos para a vida das gentes, para a riqueza das terras. Aprende, amanhã ensinará. Esse devorador de livros não aprendeu o que sabe apenas nos volumes das bibliotecas. Aprendeu na vida vivida intensamente, corajosa e heroicamente.
Em dezoito dias a Coluna atravessara o Desertus Austral. Varando dias e dias regiões sem água, atravessando noutros dias zonas de caatinga, mandacarus, quixabas, croás, favelas, palmatórias, culumbis, toda uma vegetação espinhenta, onde os caminhos eram uma utopia. Às 3 horas da tarde de 26, a Coluna parte de Saco em direção ao rio do Inferno, limite sul do deserto. Atravessa as serras do Queimado e de Santa Rosa, cruza os rios Vazabarris, o Salitre, o Inferno e o Ema. Os homens vão a pé, os cavalos ficaram na margem esquerda do São Francisco, demasiado cansados, o seu transporte não pagando a pena. A cavalo vão apenas os doentes, os feridos e os velhos. Prestes marcha a pé, ele gostava dessas largas caminhadas, podia pensar durante elas. No dia 3 entra em Várzea da Ema, povoado que recebeu a bala a vanguarda da Coluna, feita pelo capitão Benício dos Santos. Ele dominou rapidamente a situação. A Coluna, nesse momento, deixa de andar a pé para viajar no lombo de jumentos. Diante dos sertanejos de boca aberta, os heróis da Coluna Invicta passavam no lombo dos tardios jumentos, as esporas tocando o chão, num cômico desengonço. No dia 6 escalam a serra do Queimado, no dia 8 estão acampados a cinco léguas de Uauá, cidade onde seiscentos soldados da polícia saqueavam a população. O tenente Hermmio, que era baiano, ao saber dos crimes que os policiais cometiam contra os seus patrícios, junta seis soldados e mais a vivandeira Alzira e marcha com eles para Uauá, disposto a pregar um susto aos seiscentos novos donos da cidade. E o prega. Sustenta um largo tiroteio com eles, perde apenas Alzira, que é aprisionada na volta. Alia Coluna está próxima de Santa Rosa, pequeno povoado, onde Ari apreende um comboio de munições e alimentos que o governo mandava para a polícia estacionada em Uauá. Durante a noite houve tiroteios com o inimigo. A caminhada é vagarosa daí em diante, os destacamentos próximos uns dos outros. Assim atravessam os trilhos da Estrada de Ferro Leste Brasileiro, no ramal que une a cidade da Bahia a Juazeiro. Acampam na fazenda Cipó e no dia seguinte é reiniciada a marcha. Aí Prestes tem notícias do fracasso da revolta de Cleto Campeio em Pernambuco. No dia 15 chegam às margens do Salitre, a 16 atingem o rio do Inferno, saindo do Desertus Austral após percorrê-lo numa extensão de quinhentos e cinqüenta e oito quilômetros.
Estão diante da chapada Diamantina, nos seus limites ao norte. Essa é a região dos diamantes, das pedras tentando os homens, dos garimpos aventurosos, fortaleza do cangaço organizado com fins políticos, onde durante tantos anos dominou, como senhor e amo indiscutido, a curiosa figura de Horácio de Matos.
Feita a travessia do rio do Inferno, a Coluna chega a Alagoinhas a 18, após cruzar a serra de São Francisco e o rio Preto. Daí os homens marcham através de fazendas, escalam um desfiladeiro na serra de Cachoeira, vadeiam o rio do Brejo. Entram em povoados: Monte Alto, Caraíbas, Gabriel Lapão, Tiririca do Açuruá, Rochedo. Em Caraíbas são procurados por homens de Horácio de Matos, nada tendo resultado do entendimento. E a 27, após vencerem cinco léguas de lama como um rio pegajoso, são recebidos em Tiririca do Açuruá sob tiroteio dos homens de Horácio. Estes são batidos e fogem, deixando mortos na estrada. No dia 28, o destacamento Dutra volta a bater-se com os jagunços de Horácio em Barra de Mendes, terminando por ocupar esse povoado. A Coluna continuava a marchar pela lama que enchia o caminho. Os homens tinham um aspecto de terrível sujeira, os pés negros de barro, as pernas sujas, lama até a barriga. A 29 na povoação de Barro Alto, Dutra reúne-se à Coluna. No rio Jacaré lavam-se da lama, para seguir depois marchando nos atoleiros, logo após atravessá-lo. Agora a chuva vem aumentar o barro e aprofundar os atoleiros. As marchas são de parco rendimento, avançam poucas léguas cada dia. A 30 se encontram em Água de Rega. Combatem em todo o caminho os cangaceiros de Horácio de Matos. É quando Siqueira Campos põe fora de combate, ferido, um dos chefes das forças de Horácio: Zeca Bento. Galgam a serra de Campestre e a 1º. de abril entram em Aracuã. De todas as partes se movimentam forças governistas para combater a Coluna. Além dos Noldados regulares do exército e das polícias estaduais estavam os homens de Horácio de Matos, do coronel Franklin de Albuquerque e de Abílio Volney, todas elas bem municiadas. A Coluna, nessa travessia, está com quase absoluta falta de munições e Prestes a conduz com extrema habilidade entre as forças inimigas, evitando os combates que resultem em gasto de munição, em aumento do número de feridos que dificultavam a marcha naquela região de atoleiros. Siqueira liquida adiante de Aracuã a dois chefes horacistas que fugiam, Prestes envia o capitão Benício com ordem de prender uma tia de Horácio de Matos, Dona Casimira, cuja fama de chefe de jagunços enchia o sertão e chegara até a Coluna. Esta se dirige para o rio Coxo, passando pela vila Sumidouro, chegando em Guarani, a 3, a Bom Jesus do Rio de Contas a 4. No dia 5 estão nos limites sul da chapada Diamantina, após transpor a serra das Grotas, numa subida de setecentos metros. Seiscentos e oitenta e quatro quilômetros havia a Coluna marchado pela região dos diamantes, combatendo os jagunços de Horácio, o senhor feudal e valente daquela zona. Prestes ocupara dezesseis povoados e vilas, conduzira a Coluna entre forças imensamente superiores, gastando um mínimo de munição e um mínimo de homens.
A Coluna entra na cidade de Minas do Rio de Contas, onde o padre Macedo a deixa, desgostado porque num incidente que tivera com um soldado, Prestes dera razão a este. Aí Prestes se inteira também que Geraldo Rocha oferece aos chefes latifundiários sertanejos, em nome do governo, um prêmio de 500 contos de réis para aquele que "liquidar" a Coluna. Já antes o acadêmico e literato Félix Pacheco fizera, no Piauí, semelhante oferecimento: 100 contos pela cabeça de cada um dos chefes da Coluna.
De Minas do Rio de Contas a Coluna marcha para a cidade de Conteuba, ocupando povoados, cruzando rios. Vila Velha do Livramento, Vila Nova do Brumado, São Sebastião do Cisco, Caculé são povoados cortados nessa etapa. Os rios Brumado, São João, Antônio, Gavião são deixados para trás. A 17 a Coluna sai de Condeúba entrando a 19 no Estado de Minas Gerais. Duzentas e sessenta e seis léguas, mil trezentos e cinqüenta e seis quilômetros haviam sido vencidos na Bahia em 52 dias.
Ao entrar em Minas Gerais, amiga, Prestes obedecia a um plano pacientemente traçado. Queria arrastar para este Estado as forças governistas convencidas de que ele marcharia para o sul, talvez em direção ao Rio de Janeiro, enquanto ele realmente pensava em voltar para o norte, atravessando mais uma vez a Bahia. Como sempre, as tropas governistas foram enganadas pela manobra de Prestes, começaram a persegui-lo em Minas, evacuando a Bahia de soldados. O Estado-Maior governista transportou rapidamente suas forças para as margens mineiras do São Francisco, na preocupação de defender antes de tudo a Estrada de Ferro Leopoldina. Por outro lado as tropas do general Tourinho, os homens de Franklin de Albuquerque, de Horácio de Matos e de Volney penetraram em Minas à procura do rastro da Coluna, rastro que Prestes mandara limpar à proporção que avançava. O general Mariante, que não conseguira, como desejava, acabar com a Coluna na chapada Diamantina, pensava derrotá-la agora no norte de Minas Gerais.
Prestes engana o inimigo, iniciando uma marcha para o oeste, como quem ia colocar-se no rio São Francisco, bem onde os governistas o esperavam, torcendo a direção em seguida e entrando novamente no Estado da Bahia, fazendo novamente um círculo, marchando em linha paralela ao inimigo para o norte, enquanto esse descia para o sul à sua procura. É o "laço húngaro" da marcha pela Bahia, manobra que desorienta por completo as tropas inimigas. A Coluna sobe entre as forças governistas que descem. As patrulhas assistiam à passagem do inimigo que procurava a batida da Coluna. Tendo feito quase cento e duas léguas em Minas Gerais, se esgueirando entre o inimigo que a buscava para o sul, no dia 30 de abril a Coluna Prestes volta a penetrar no Estado da Bahia. Prestes havia realizado uma das suas mais celebradas manobras militares, com a qual tinha conseguido fazer com que a região que ia percorrer ficasse limpa de soldados.
Como num jogo de "picula" de crianças travessas, os governistas procuram Prestes que sumiu em Minas Gerais. Os soldados, amiga, olham uns para os outros, murmuram entre si frases de assombro. Não é um homem aquele general, é um feiticeiro aquela Coluna é mesmo mal-assombrada, aparece e desaparece, onde ela está que ninguém sabe? Os soldados do governo nessas perseguições sem resultados, no mar de notícias contraditórias que arrancavam das populações sertanejas, afogados em lendas sobre a Coluna e o seu chefe, terminam tomados de terror diante do sobrenatural que para eles era a Coluna Prestes. Se nem os próprios generais do exército sabiam e podiam explicar os movimentos audaciosos, os súbitos desaparecimentos, os aparecimentos ainda mais súbitos as vitórias consecutivas da Coluna, como não haveriam os soldados supersticiosos de imaginar mil coisas, de tremer todas as vezes que tinham que se lançar no rastro da Coluna?
E onde está ele, esse .rastro invisível que ninguém consegue"" encontrar nas estradas de Minas Gerais, nas margens do São Francisco? O general Mariante está tonto, como um menino que não consegue dar com o esconderijo de outro muito mais travesso. Nem mesmo os sertanejos, os cangaceiros acostumados a acompanhar rastros de animais matreiros da caatinga, os homens de Horácio, de Franklin, de Volney, nem mesmo esses, com seus olhos conhecedores dos segredos da terra, conseguem dar com o rumo da Coluna. Como um bando de formigas que perderam a direção do formigueiro, eles se estendem por Minas Gerais, os olhos presos no chão das picadas, atrás do rastro da Coluna. Os soldados se crêem ante algo sobrenatural, ante forças dos deuses negros ou dos deuses índios da floresta. Prestes marchava entre essas mesmas tropas que o rastreavam para o sul, enquanto ele subia para o norte abandonado de soldados. Para os sertanejos era uma assombração, a maior das assombrações, a Coluna que sumia e aparecia, um fantasma novo na mata. Se benziam, chamavam pelo nome santificado do padre Cícero, olhavam com descrença para os seus chefes. Nem Horácio, nem Franklin, nem Volney, muito menos os generais e os coronéis, Mariante com suas armas modernas, poderiam jamais vencer a Coluna. Como vencer o sobrenatural? A desmoralização penetrava nas forças governistas. A manobra do "laço húngaro" apressou de muito esse processo de terror entre o inimigo. Os generais tontos, os chefes sertanejos já acreditando em todas as lendas, os soldados com o terror nos olhos arregalados. Prestes subia com a Coluna novamente para a Bahia. Em Minas Gerais, amiga. Mariante apalpava as estradas, cheirava as picadas procurando o seu rastro.
Prestes reingressa em território baiano pelo município de Condeuba, onde havia passado na descida. Era uma noite de lua cheia, a água prateada dos rios, da mata vinham sons de violas chorosas, quando a Coluna marchava por terras do Estado negro.
Prestes se interessava em demorar na Bahia porque aí devia, como fora combinado, receber munições e armas, enviadas por Isidoro e pelos chefes civis da revolução. Essas armas e essas munições não vão chegar nunca, as pessoas encarregadas por Isidoro de providenciá-las nada haviam feito. No dia 1? de maio a Coluna atravessa o rio Gavião. Penetra nas Lavras Diamantinas, região de Horácio de Matos. Cruza o rio de Contas, entra na cidade de Ituaçu, atinge Catingueiro, galga a serra do Sincorá.
É uma altíssima ladeira, o caminho repleto de seixos que rolam. Os homens sobem a pé, levando os animais pelas rédeas, as padiolas nos ombros dos mais fortes. A marcha é iluminada com grandes velas de cera de carnaúba e os sertanejos das suas choças no sopé da montanha olhavam aquela subida fantasmagórica. Pareciam menos soldados que romeiros pagando uma promessa: escalando uma ladeira difícil na noite sem lua, as luzes das velas como as estrelas novas no céu escuro. As populações de muitas léguas em redor viam a estranha fileira de luzes que brilhavam no céu naquela noite. Noite sem lua, sem estrelas, só aquelas vermelhas estrelas, próximas uma da outra, constelação desconhecida que brilhava agora nas Lavras Diamantinas. Um rastro de luz no céu do sertão: era a Coluna Prestes, amiga, que marchava.
Agora os soldados revoltosos cavalgam pelos gerais campos verdes da Bahia. Entram em Barra da Estiva. Em Cocos, uma "potreada" tiroteia com o inimigo em Bom Jesus. Prestes envia o destacamento de Djalma Dutra à cidade do Mocugê, onde poderia conseguir armas e munições. Dutra devia reunir-se ao grosso da tropa em Guiné de Cima, para onde a Coluna se dirigia. O destacamento Dutra vai sustentar em Mocugê um combate desigual com as forças de Doca Medrado aí estacionadas. Esse chefe de cangaceiros, numa traição difícil de superar, havia mandado seu próprio filho ao encontro de Prestes, com oferecimentos de amizade. Assim Dutra é atacado inteiramente desprevenido. Ainda atravessava ele a garganta que as serras fazem ao lado do rio Paraguaçu, para entrar na cidade, quando a sua vanguarda, chefiada por Ari, é tiroteada pelo inimigo emboscado nos altos da serra e nas primeiras casas de Mocugê. Quatrocentos homens, soldados de polícia e cangaceiros de Doca Medrado, guarnecem a cidade. Dutra chefia duzentos soldados da Coluna. Ari se bate heroicamente, desde as nove horas da manhã até a noite, quando Dutra chega com o grosso do destacamento. A posição do inimigo era inexpugnável. Atirava ele dos altos da serra sobre a garganta onde os homens da Coluna se encontravam. Dutra envia o tenente Celestino Ferreira a um dos altos das serras para daí desalojar os governistas. Celestino cumpre, com êxito, sua missão, galgando a serra debaixo de fogo. Dominado esse alto, pode desviar para ele a atenção do fogo inimigo que partia do alto em frente, permitindo a retirada dos homens que desde a manhã estavam lutando encurralados na garganta das serras. Dutra se retira combatendo e vai encontrar a Coluna em Guiné de Cima.
Daí a Coluna segue marginando o rio Coxo, ocupando povoados, lutando contra os jagunços. Siqueira, Dutra, João Alberto sustentam várias vezes combates contra forças inimigas. Lutam em Várzea, em Furtado, em Barro Alto, em Olho-d'Água, num combate violento entre Dutra e a jagunçada. Siqueira apóia o destacamento de Dutra e o herói do dia é o tenente Brasil Gonçalves, que desaloja o inimigo de uma serra onde este se entrincheirara. A violência desse combate foi a maior dessa etapa da marcha, as balas dos jagunços atingindo o próprio Estado-Maior, arrancando a comida do prato de Miguel Costa. Ao ver a galinha assada voar levada por uma bala, o general comandante apenas sorri, comenta alegremente o fato, com sua característica bravura, e continua o almoço sob o tiroteio.
Avançam por Roça de Dentro, lutando aí e lutando em Maxixe, chegando finalmente a Santa Emília, em plena caatinga.
De Santa Emília em diante começou uma marcha espantosa, pela caatinga, sem vaqueano que os guiasse, sem estradas por onde marchar, o inimigo cercando a mata onde eles estavam. Esse foi, sem dúvida, um dos trechos mais difíceis da Grande Marcha, numa extensão de muitas léguas desde Santa Emília a Sento Sé. Os jagunços, os soldados da polícia e do exército cercavam a caatinga, absolutamente certos de que jamais a Coluna a transporia. Não havia sequer uma picada, Prestes e João Alberto iniciam a construção de uma estrada, trabalhando noite e dia, procurando atingir a estrada real da chapada Diamantina, o que conseguem realizar no dia 17. Não havia água, não havia comida. Em certo dia somente um boi foi abatido para os mil homens da Coluna. A água estava distante, um único poço existindo longe, sendo necessárias diversas viagens diárias dos cargueiros para abastecer os soldados. As tropas inimigas agora estavam certas da vitória. Aquele trecho de caatinga jamais fora penetrado. Os espinhos, a sede, a fome liquidariam sem dúvida uma grande parte da Coluna. O que sobrasse eles liquidariam, para isso cercavam a caatinga. Mas a audácia, a confiança e a resistência dos homens que Prestes chefiava não podiam ser medidas pela medida comum aos demais homens. Quando os soldados do governo, amiga, fecharam o cerco e atacaram a caatinga, já a Coluna se escoara pela picada recém-aberta e saíra na estrada real. Os sertanejos arregalaram mais uma vez os olhos grávidos de assombro. Era coisa de feitiçaria, era coisa impossível de combater e vencer. Como lutar contra homens que não respeitavam sequer a força indomável da caatinga? Que não respeitavam nem a fome nem a sede? Assim eram os homens da Coluna, amiga.
Saíram desse dia e noite de inferno, a morte cercando-os do lado de fora da mata, a morte com eles na falta de água e na falta de comida dentro da mata, os pés sangrentos dos espinhos, as mãos rasgadas, saíram daí para o inferno ainda maior de uma enchente do São Francisco. Passaram por Almas, Bom-Gosto e Pedrinhas, povoados onde sesteiam, descansando da aventura recente. Daí em diante é a marcha indescritível, de indômita coragem e de resistência espantosa, pela Estrada Cruel. Cruel foi um nome bem dado, amiga, pelos camponeses dessa zona a esta terra pobre de comida, coberta pela água do São Francisco que levara tudo na sua maior enchente daqueles anos próximos. No dia 19 a Coluna penetra na Estrada Cruel, em torno os mandacarus, os xique-xiques, as unhas-de-gato, as coroas-de-frade, toda a vegetação inimiga, espinhenta, da caatinga violada. Árvore amiga do homem só a umburana, guardando no seu tronco a água abençoada para o viajor sedento. E a beleza irrompendo em cores das trepadeiras que escondiam os espinhos da caatinga sob suas flores azuis e vermelhas, rubras de sangue, anil como o céu. Debaixo delas, sob o seu abraço, a flora opressiva dos mandacarus e das macambiras. A Estrada Cruel era uma picada de uma estreiteza angustiosa, os espinhos se entrecruzando sobre ela. Espinhos e flores, de longe em longe a visão confortadora de uma umburana. Na frente dos homens. Prestes marchava, amiga seu passo rápido, seu corpo ardendo de febre, sua vontade inquebrantável. Para a frente.
Assim haviam de marchar duzentas léguas por terrenos como este. A flora inimiga, a fauna inimiga também, negra. Nessas terras do sem-fim, não resistem outros animais que as cobras e os lagartos, os répteis mais imundos, mais traiçoeiros e mais venenosos. Aparecem na margem da picada, o seu silvo aterrador, o seu beijo de morte. As folhas secas estalam sob a passagem das cobras, dos lagartos ficados do princípio do mundo, animais de outras eras distantes que ainda viviam naquelas terras, terras que pareciam elas também de um passado remoto. De entre as coroas-de-frade e as unhas-de-gato, a cascavel e a jararacuçu, as grandes cobras da mata, espiam a marcha da Coluna Prestes. Os homens vão com sede, vão com fome. Silvam as cobras, a "cabeça-de-platona", a "pico-de-jaca". Estremecem os homens no horror do animal venenoso, mas seguem. Na frente vai Prestes, quem pode ter medo quando o acompanha?
Passam por Brejo em Brasa, por Junco, Gavião, Algodão e, na madrugada de 25 estão em Tabuleiro Alto. Estes não são sequer povoados, amiga. São simples arruados de choças onde vive uma população miserável. As águas do São Francisco, tendo pulado sobre as margens, se estenderam por esses campos, engolindo as plantações e o gado. A Coluna não encontra o que comer. Em Tabuleiro Alto é impossível atravessar o São Francisco. Não existem embarcações, o rio, com a enchente, se abre numa largura de cinco léguas. Jibóia imensa, sesteando após haver comido as safras e as plantações. A gente que morava nas margens fugira diante da cheia. Prestes resolve então marchar em direção a Sento Sé, no sertão mais fértil. É verdade que ali estava o inimigo, nessas quarenta e cinco léguas que vão de Tabuleiro Alto a Sento Sé. Ali os governistas esperavam que a Coluna morresse de fome na caatinga alagada pelo São Francisco. A falta de condução, a patrulha de navios que guardava o rio, a miséria que reinava na sua margem esquerda impediam que a Coluna o cruzasse, colocando-o entre ela e o inimigo. Tentar transpor o rio era um suicídio igual ao de ficar parado naquele inferno alagado, em companhia apenas das cobras. Prestes resolve marchar por entre o inimigo. Este guardava a garganta da serra do Encaibro, na entrada da cidade de Sento Sé. Prestes toma esse rumo. Marcham através da cheia do rio. Ora são verdadeiros lagos, a água até a cintura, até os ombros dos homens. Ora são atoleiros imensos, a lama retardando a caminhada. Não havia quase comida. Nem farinha, nem açúcar, nem café, nem sal. Um pouco de carne apenas, sendo abatidos os últimos bois magros que a Coluna conduzia. Não havia fumo, não restavam rapaduras. E a marcha tem que ser rápida, tão rápida como nunca fora. A morte marcha nos seus calcanhares, os soldados têm que ganhar essa corrida com ela. A Coluna bate nessa travessia todos os recordes das marchas de infantaria, os seus homens estabelecem um recorde maior que qualquer da Grande Guerra de 14, para dias depois superar esse mesmo recorde.29 Os sertanejos da região, acostumados a todos os segredos daquela terra, calculavam que ninguém seria capaz de marchar mais de quatro léguas sobre ela na jornada de um dia. A Coluna fez até nove léguas por dia, em marcha de onze horas. Os sertanejos já não se espantavam de nada. Olhavam com um respeito infinito o rapaz magro que chefiava essa tropa. Balançavam a cabeça no seu gesto secular de admiração. A Coluna entra em arruados e povoações abandonadas: Curra-linho, Tombador, Pascoal, Areai, Vara, Currais, Lagoa Preta. Aí o destacamento Dutra, no momento fazendo a retaguarda, é atacado pelas forças inimigas, grande número de soldados. Dutra aceita o combate e repele o ataque. Essa coluna inimiga, formada de soldados da polícia e de homens de Franklin e Volney, continua na rabada da Coluna Prestes, perseguindo-a. Enquanto isso, em Brejinhos, para onde Prestes marchava, grandes forças governistas o esperavam. Era um plano do comando governista para colocá-lo entre dois fogos. Prestes abre uma picada através da caatinga, abandona a estrada, e vai sair na retaguarda do inimigo, perto do povoado de Seriema, a pouca distância de Sento Sé. As forças governistas que vinham na sua batida continuaram pela estrada na qual pensavam que ele marchava. E assim seguiram até se encontrar com as outras forças da polícia que aguardavam em Brejinhos a chegada da Coluna. Mais uma vez se deu o engano fatal: as duas forças do governo lutam entre si, certas, tanto uma como outra, que estavam destruindo a Coluna Prestes. No dia 2 de junho Prestes havia terminado a terrível caminhada de Tabuleiro Alto a Sento Sé, caminhada considerada impossível pelos sertanejos, vencendo a mais bravia das naturezas, andando sobre as águas do São Francisco, num milagre que as lendas sertanejas celebram nas feiras do nordeste. Milagre do gênio, amiga, milagre do povo que criara os soldados e o chefe da Coluna.
Estão novamente nas margens do São Francisco, nos limites com Pernambuco. A Coluna aparece diante das forças concentradas nesse Estado e quando elas se lançam em sua perseguição, Prestes ordena a marcha para o sul, em direção à cidade baiana de Monte Alegre. Mais uma vez ele vai limpar um Estado de tropas inimigas, antes de invadi-lo. Mais uma vez as forças governistas são enganadas por uma manobra militar do grande chefe. A Coluna traça, nesta sua marcha, um arco de Seriema a Monte Alegre. Daí ela marchará em linha reta para Serrinha, tomará depois para o norte, rapidamente, passando próximo da cidade de Geremoabo, indo atravessar a fronteira em Rodelas, penetrando em Pernambuco desguarnecido de forças inimigas. Essa enorme curva de mil quatrocentos e setenta quilômetros é feita em trinta e dois dias, marchando a Coluna, por vezes treze léguas por dia.
A primeira etapa, de Seriema a Monte Alegre, é vencida no dia 18. A vanguarda penetrara nessa cidade a 17. A população festejou a Coluna na alegria daquele encontro com os soldados da Liberdade. Desde Seriema haviam atravessado rios, povoados, a retaguarda repelindo sempre o inimigo. Haviam encontrado rapadura, que substituía o açúcar, haviam encontrado novamente os campos dos gerais. Em Monte Alegre, pela primeira vez, oficiais vão repousar em camas de verdade. E tão desacostumados estavam que não conciliam o sono. Na véspera da chegada em Monte Alegre, tendo conseguido montar a maior parte da Coluna, Prestes acede em aceitar um cavalo que lhe traz um soldado. Marchara a pé, nesses últimos meses, mais de duzentas léguas. Enquanto a Coluna descansava e era festejada em Monte Alegre, no seu bem merecido dia de descanso, Prestes partiu para a vanguarda. No dia 19 a Coluna segue no rastro do seu chefe e condutor. Vai em direção ao mar, seu fito é a cidade de Serrinha. Na cidade de Riachão são avisados de que em Serrinha haviam chegado oitocentos homens da polícia baiana. Essa força sai em perseguição da Coluna mas ela já partira de Riachão, atravessando a 22 a Estrada de Ferro Leste Brasileiro, entre Serrinha e Salgado. Daí segue para a vila de Pombal, cruzando o Itapicuru, derrotando num combate a força da polícia pouco antes de entrar na povoação. Novamente são os festejos, agora a Coluna, distribuidora de justiça, amiga do povo, é a esperança dessas populações sertanejas. Trazem-lhe doces e roupas, água pura das fontes, remédios e mantimentos. De nada adiantava, amiga, a campanha de infâmias que a imprensa governista desatava no país contra a Coluna. Os sertanejos viam a verdade, viviam aquela epopéia, nela se nutriam de esperança. Por isso as bandas de música das cidades e das vilas, pobres bandas de música desafinadas, saíam pelas estradas a saudar os soldados do Cavaleiro da Esperança. Por isso vinham as moças com flores na mão, as mulheres com remédios e pão.
Entram em Bom Conselho, cruzam a serra de Itiúba, recolhem voluntários numa feira do povoado Guloso. Entram na região de Canudos, onde os sertanejos desesperados haviam tido anos antes um momento de trágica revolta. Ali as forças de Antônio Conselheiro, profeta do sertão, filho da fome, da exploração e da miséria, se haviam levantado clamando justiça. Ali haviam derrotado os soldados do governo. Ali foram esmagadas. Agora Luiz Carlos Prestes atravessa essas históricas paragens, onde fora esmagada uma revolta sem direção. Os homens ignorando tudo exceto a miséria das suas vidas. Clamando para os céus, pegando em armas, nem sabiam mesmo gritar pelos seus direitos. Prestes se levantara também, sua revolta fora inicialmente sem direção. Mas agora ele já sabia por que devia lutar. Amanhã encontraria a solução desses problemas e com ela voltaria a se pôr à frente do povo.
Aqui lutaram os sertanejos, Antônio Conselheiro à sua frente. Anos depois lutaram de novo, era Prestes que os conduzia. E com eles volverão à luta uma, duas, mil vezes se assim for necessário, amiga. Um dia essas terras serão terras de fartura, a desgraça terá fugido delas. Quando a Coluna voltar, negra.
A 30 estão em Várzea da Ema, atravessam o rio Cipó, entram por um trecho de caatinga. A 2 de julho, quando caía o crepúsculo triste do sertão, chegam à margem do São Francisco, a um quilômetro de Rodelas, na fronteira pernambucana. Agora podia transpor o rio. As forças que guarneciam Pernambuco estavam espalhadas pela Bahia, nos pontos mais diversos, perseguindo a Coluna que ninguém sabia nunca onde estava.
Prestes terminava a sua campanha da Bahia, onde marchou cinco mil e vinte e dois quilômetros, atravessou trinta e três rios, perseguido por trinta mil soldados, pela fome, pela sede, pela febre, pela agreste natureza, pelos répteis traiçoeiros. Duzentos homens da Coluna haviam ficado nos campos e nas caatingas da Bahia, feridos, desaparecidos ou mortos. O inimigo fora vencido várias vezes, e agora, após os últimos feitos militares de Prestes, nem mesmo os generais do governo acreditavam possível derrotá-lo. Quando telegrafavam para o Rio de Janeiro dizendo que a Coluna estava cercada e desta vez seria fatalmente destruída, eles já o faziam por hábito, amiga, nem mesmo eles acreditavam nesses telegramas. Agora, negra, até os generais se haviam inoculado da superstição dos cangaceiros. Também eles pensavam que se tratava de algo sobrenatural: era-lhes impossível medir o gênio de Prestes. Para eles era o Demônio da guerra, dono de todos os caminhos daqueles infernos das caatingas. Para os sertanejos era uma estrela cortando a noite da Bahia.
Nessa madrugada de julho, na margem do São Francisco, mais uma vez Iemanjá vê o Herói. Ele vai partir para outras águas que não são as suas. Águas das iaras de Goiás e Mato Grosso. Sobre o rio São Francisco, Iemanjá estende os seus cabelos, sopra doce brisa sobre as águas, detém os ventos da tempestade, na noite tranqüila e bela a Coluna embarca. Iemanjá ainda os vê, desaparecendo na mata. Na frente vai Luiz Carlos Prestes, amiga.
Na madrugada de 2 de maio de 1925, amiga, o capitão Costa Leite, acompanhado de Jansen de Melo, Décio Mendes da Fonseca, Luís Celso Uchoa, Mário Chaves Ferreira, Leopoldo Nery, Failace da Gama e de um sargento, tiroteia no 3º. Regimento, na Praia Vermelha do Rio de Janeiro.
Nos anos que vão de 24 a 27, quando a Coluna se internou, se sucedem os levantes, as revoltas, as tentativas de revolução no país. O exemplo vivo da Coluna levando no calor do seu seio, na saga do seu derroteiro, a Revolução, como uma bandeira, punha em atividade os que não estavam conformes com o regime discricionário que imperava no país. Nas prisões abarrotadas conspirava-se. Se conspirava nas cidades, nos quartéis, nos consultórios médicos, oficiais, sargentos, soldados e civis, de olhos puxados para; a epopéia da Coluna, esperando o momento de empunharem às suas armas e facilitarem o caminho de Prestes para o Rio de Janeiro.
Na prisão, Silo Meireles, cadete de 22, dos que se levantaram na Escola Militar, conseguia fazer ligações revolucionárias. Costa Leite é preso quando tenta se juntar aos revolucionários de 24, articulando um amplo movimento no Rio de Janeiro, movimento que devia explodir em novembro.
Essa revolta contava com a Escola Militar, escola que trazia a tradição de 22, toda uma turma expulsa por revolucionária, e mais a Vila Militar, com seus dois regimentos, a Aviação e a Escola de Sargentos. Eduardo Gomes, sobrevivente dos 18 do Forte de Copacabana, em junho de 1924, levanta vôo no seu avião, levando consigo apenas um alemão, com o fim de bombardear o Palácio do Catete, não o fazendo porque falta a gasolina e o avião cai nas proximidades de Nova Iguaçu.
O movimento é denunciado e Costa Leite é preso num quarto coalhado de bombas, onde, minutos antes, os chefes do levante haviam tido uma reunião. Preso Costa, articulador do movimento, esse fracassa antes mesmo de explodir.
Mandado para a ilha Grande, foge com Tasso Tinoco, Aristóteles Souza Dantas e Mário Sales Ferreira, outros oficiais presos. Atravessam a baía numa canoa, se internam no mato. A ordem na polícia é "trazê-los mortos ou vivos".
Costa Leite, como a Coluna nas caatingas do nordeste para os chefes de cangaceiros e para os generais que o perseguiam, vira fantasma para polícia política do país. Atravessa estações ferroviárias vestido de mulher, uma morena bastante razoável, queimada pelo sol das praias de banho, mignon e irrequieta, uma morena que, no dizer da polícia, conduzia sob as saias cortadas na última moda de Paris revólveres e cartucheiras de balas, e em lugar dos seios levava bombas capazes de fazer voar uma cidade. O jornal ilegal da revolução, o Cinco de Julho, dos irmãos Motta Lima e de Bernardo Canelas, o trata de "Prestes da Cidade". São Paulo, Paraná e Rio são seus campos de ação. Esse homem, amiga, de uma energia indomável, que seria depois o major Costa Leite dos comícios de 35, um dos chefes da Aliança Nacional Libertadora, galvanizando com a sua presença, com a sua decisão, com a sua experiência — sendo ele próprio toda uma tradição revolucionária — as multidões famintas de liberdade e de pão, o major Costa Leite das fugas espetaculares, o major Costa Leite do Exército Republicano Espanhol, seus conhecimentos, sua coragem, sua flama revolucionária a serviço da humanidade, o major Costa Leite dos campos de concentração na França traída, esse homem era nos anos de 24 a 27 o pesadelo do sono alarmado dos policiais. Mal-assombração das cidades, se movimentando como só ele sabe se movimentar, parecendo ter o dom da ubiqüidade, surgindo aqui, ali, acolá, nos lugares mais inesperados, levando com ela a conspiração, ameaçando o governo de onde estivesse.
Na noite de 2 de maio de vinte e cinco, com os seus sete companheiros ele penetra no 3º. R. I. Chegaram em dois automóveis. Ligado ao assalto ao 3º. está o possível levante da Fortaleza de São João e de um batalhão de polícia aquartelado em Botafogo. Os oficiais penetram, o sucesso coroa inicialmente esse intrépido plano de dominar o regimento. Mas um grupo de legalistas consegue tomar posição, quando já a tropa estava formada, à espera de armas, e tiroteia contra os soldados desarmados e os oficiais assaltantes. Esses respondem, Jansen de Melo cai ferido, para morrer instantes depois, na Casa de Saúde Pedro Ernesto, espécie de Q. G. de todos os conspiradores e revoltosos de então. Os assaltantes são obrigados a abandonar o quartel, e o assalto ao 3º. R. I., com o levante que estava ligado a ele, fracassa. Fora um instante de intenso heroísmo: nove homens assaltando um regimento. Ficaria como uma página de louca coragem, de ardor revolucionário, cresceria lendária nas histórias sobre a revolução que circulavam de boca em boca no Brasil. Histórias que o Cinco de Julho divulgava.
O Cinco de Julho era o órgão dos revoltosos. Onde estava essa oficina, amiga? Onde se imprimia esse jornal pequeno e violento, circulando clandestinamente de mão em mão, um exemplar lido por centenas de pessoas, fazendo mais opinião que toda a imprensa governista do país a cantar loas ao Presidente, a vomitar infâmias sobre a Coluna na prosa sem brilho de Jackson de Figueiredo e seus discípulos? Na magnífica carreira de jornalista de Pedro Motta Lima, organização de romancista que a revolução transformou num articulista ímpar no Brasil, há dois momentos de rara e emocionante beleza. Entre esses dois momentos ele foi secretário de jornais que simpatizavam com as revoluções tenentistas ou as apoiavam: A Manhã, na fase de Mário Rodrigues, O Imparcial, A Gazeta, o Diário Carioca, dirigiu A Esquerda e A Batalha. Mas naqueles dois momentos ele foi o jornalista da revolução. No momento do Cinco de Julho ele é a voz de revolta tenentista, é a voz da Coluna Prestes clamando dos sertões sobre as cidades. Em 35, nos dias de A Manhã, aquele corajoso, honesto e digno diário de todos nós, ele é a voz da Aliança Nacional Libertadora, a voz da revolução pela independência do Brasil, mais uma vez a voz de Prestes sobre a Pátria. Vinte anos sua pena a serviço do povo. Sua família é grande, seus avós se chamam José do Patrocínio e Alcindo Guanabara, Libero Badaró e Raul Pompéia. Como este, ele é romancista e deixa o romance pelo jornal, quando constata que o artigo do momento é mais útil ao povo que o romance imortal. O Cinco de Julho, como a A Manhã nas jornadas de 35 descende da remota tradição das Cartas Chilenas, os poetas fazendo da sua arte o instrumento de crítica social e política, concitando o povo à revolução.
É o Cinco de Julho quem agita a família "tenentista", quem leva a sua palavra ao povo. Naqueles anos em que se conspirava diariamente era esse jornalzinho quem dava conta ao país inteiro da efervescência revolucionária. Quando a imprensa sob a censura nada podia noticiar, nem os horrores da Clevelândia, antecipação perfeita dos campos de concentração da Alemanha de hoje, criação do governo nas margens mortíferas do Amazonas, sua única obra nessa região do Brasil, nem os levantes que se sucediam no país, era o Cinco de Julho quem levava alento e confiança à gente das cidades. Dizia da escravidão em que vivia o país, do heroísmo dos que não queriam ser escravos.
O Cinco de Julho é o respiradouro daquele subterrâneo de conspirações se processando nas casas "tenentistas" dos Meireles, de um Viriato Schmaker — sua esposa, aquela intrépida Carolina, guardando, de revólver em punho, as esquinas vigiadas enquanto Costa e Barcelos combinavam detalhes dos levantes — de um Pedro Ernesto.
No Cinco de Julho são noticiados os levantes no país. Se Maynard Gomes por duas vezes, em 24 e em 26, se rebela contra o governo em Sergipe, arrastando toda a gente do Estado atrás de si, é o jornal de Motta Lima quem vai informar das palavras de ordem, da profundidade e da repercussão desses movimentos.30
Nesses anos da Coluna percorrendo o interior, amiga, mantendo viva a Revolução, de oficiais e civis conspirando, de sargentos e soldados à espera da hora de se levantarem, a polícia buscava afanosamente as oficinas e os redatores desse pequeno jornal que ressuma heroísmo e combatividade.
Os levantes se sucedem desde o Amazonas, negra, onde Ribeiro Júnior e Magalhães Barata dominam a cidade de Manaus e marcham pelo grande rio, plantando aí também a semente da revolta antes de serem vencidos. No Pará é Augusto Assis de Vasconcelos quem comanda os soldados num levante também dominado.
"Os inimigos da lei" é o nome que o governo dá aos onze revolucionários que, na Paraíba, quando denunciado por um traidor o movimento que aí devia estourar, em ligação com o de Cleto Campeio em Pernambuco, resistem a bala aos quatrocentos homens da polícia paraibana que os vieram prender. Aristóteles de Souza Dantas e Seroa da Mota são aí os chefes revoltosos. Com eles estão nove homens, quatro dos quais eram ex-marinheiros do São Paulo, que voltavam do exílio em Montevidéu para se ligar à Coluna Prestes. Esses homens sustentam violento combate contra quatrocentos soldados da força pública. Resistem enquanto podem.
Logo depois vai fracassar o levante de Cleto Campeio, em Pernambuco, do qual o da Paraíba era um afluente. Por intermédio de Josias Carneiro Leão, Cleto estabelecera contato com a Coluna e com ela concertara o plano da revolta.
Se não conseguisse dominar Pernambuco, marcharia ao encontro da Coluna, para engrossar as suas forças. Os elementos comunistas do Estado apoiaram Cleto, tendo alguns deles tomado parte na luta armada.31 O levante se dá em Jaboatão, onde os revolucionários partem para Gravata. Aí Cleto Campeio é assassinado à traição, tomando o comando dos revolucionários o capitão Waldemar de Paula Lima que, após as lutas de Tapada, os revoltosos à procura da Coluna para a ela se juntarem, "é degolado pelos governistas.
Já em 24, em outubro, fracassara a revolta da Armada, planejada pelo almirante Protógenes. Somente o São Paulo se levantara sob o comando de Hercolino Cascardo e Amaral Peixoto, rumando para o Uruguai quando se viu só, os demais navios de guerra de fogos apagados na baía de Guanabara.
Como fracassaria, amiga, a revolta do Rio Grande que Isidoro preparava. Toda essa efervescência revolucionária só iria se concretizar numa vitória em 30, quando a agitação do povo pôde ser feita, pôde ser aproveitado o imenso trabalho da Coluna.
No entanto, apesar de que esses levantes, essas tentativas revolucionárias, não resultaram num movimento decisivo, eles provavam que o país estava sendo arrancado do seu sono de desesperança, pela marcha dos soldados de Prestes no interior. Ao passar da Coluna os problemas se revolviam e vinham à tona. O Presidente não governava cidades calmas. Os comunicados do Ministério do Interior que anunciavam a cada manhã: "Reina calma em todo o país" não diziam a verdade. O povo bem o sabia. A verdade estava nas páginas clandestinas do Cinco de Julho, escrito do seu esconderijo por Motta Lima e Bernardo Canelas, 32 noticiando os levantes que desabrochavam em todo o Brasil, como as primeiras flores de após o inverno que murcham apenas nascem mas que são, amiga, anunciadoras da primavera que se aproxima.
Agora, amiga, a Coluna, fracassados os movimentos que a deviam apoiar, tendo que conquistar armas e munições nos combates com o inimigo, já que as prometidas por Isidoro nunca haviam chegado, tendo despertado o sentido de revolta em todo o interior do país, após atravessar quatorze Estados do Brasil, vinda de São Paulo e do Rio Grande até o norte, cruzando mais de uma vez quase sempre os Estados por onde passou, tendo destruído injustiça e plantado esperança em todo o Brasil, tendo ensinado e tendo aprendido, agora a Coluna toma o rumo do oeste na sua volta. Fora como um vento de tempestade, furacão sobre as injustiças, a exploração e a desgraça. O mar calmo dos problemas se transformou no mar de tempestade do povo. Da Coluna iria nascer a literatura de novelas, a literatura de sociologia, que o povo comeria na sua fome de saber despertada pelos soldados e pelos feitos de Luiz Carlos Prestes. Da Coluna iria nascer a agitação na Aliança Liberal, no ano de trinta, o povo formando contra o governo, arrancando Washington Luís do poder. Da Coluna e do seu chefe iria nascer, em trinta e cinco, a Aliança Nacional Libertadora, o povo traído pelos homens de trinta, se reunindo ao chamado do Herói da Coluna. É ela quem abre as estradas da liberdade, da independência econômica da pátria. É ela quem vai, com. sua caminhada de epopéia, rasgar os tumores dos problemas, espalhar o seu pus à vista de todos. Nunca será suficientemente louvada, seja pelo heroísmo desmedido da sua campanha militar, seja pela sua imensa ação social. A Coluna através do Brasil como o sangue novo da Revolução.
No dia 3 a Coluna dá início à marcha através de Pernambuco. Vai atravessá-lo das margens do São Francisco, na altura de Rodelas, à serra de Dois Irmãos, limite com o Piauí, próximo à cidade de Ouricuri, que a Coluna atinge a 9. Oito dias dura a nova travessia de Pernambuco, de 3 a 11; dia em que os soldados acabaram de cruzar a serra e saem no Piauí nas cercanias da povoação de Campinas. Em Pernambuco festejam o segundo aniversário da revolução de 24. Miguel Costa, o herói de São Paulo, e Prestes, o herói do Rio Grande, são aclamados pelos soldados. Mas nesse mesmo dia sustentam um combate contra as forças de cangaceiros chefiados por Pedro Luz. Lutando festejaram o seu aniversário. Derrotando inimigos, negra.
No Piauí, Prestes marcha em direção noroeste, para a cidade de Picos, atingindo Jaicós na manhã de 13, e Picos no dia seguinte. Daí a Coluna segue para a cidade de Oeiras, rumo ao oeste. Marcha entre os rios Itaim e Canindé, num formoso vale. A 17 a Coluna entra em Oeiras. Todas essas cidades recebem, com a alegria que já se tornou costumeira, os oficiais e os soldados. Em Oeiras a Coluna descansa até 23, quando toma o rumo do sul, em direção à fronteira baiana. O destacamento Ari, durante a permanência da Coluna em Oeiras, ocupa Floriano na froteira com o Maranhão. E o destacamento de João Alberto guarnece a cidade de Amarante mais ao norte, na mesma fronteira. Em Joronhenha esses destacamentos se reúnem à Coluna. A retaguarda, feita por Cordeiro de Farias, luta a 22 com o inimigo. A 27 é Siqueira Campos quem faz a retaguarda e a ele compete bater duas vezes os governistas que marchavam no encalço da Coluna. Nesse momento o governo, já desiludido da vitória militar, havia feito contratar assassinos para penetrarem na Coluna e matar Prestes e Miguel Costa. Um desertor das forças revolucionárias fora escolhido para isso.
Marcham para a fronteira da Bahia, tiroteando com o inimigo quase todos os dias. Mendes de Morais luta a 28, a 31 o pelotão do tenente Nelson, quando cortava os fios telegráficos em Uruçuí, é atacado pelas forças de Volney. Começa a faltar novamente a comida, viajam dias inteiros entre queimadas, os campos das margens do Uruçuí se incendiando com a maior facilidade. Na subida de um chapadão tem que deixar a maior parte da cavalhada que, enfraquecida, não consegue galgar a ladeira difícil. É um chapadão sem água, onde a marcha é dificultada pela sede que tortura os homens. Vão sair depois numa região frutífera, laranjas, limas, mangas e cajus. Aí a Coluna mata a sede. Mas logo adiante, marchando para sudoeste, vão encontrar serras se desmoronando, nas margens do riacho Frio, zona de árvores nuas de folhas, uma floresta alucinante, morta, perdida naqueles ermos. Tinham visto já a terra nascendo. Viam agora, no sul do Piauí, a terra morrendo, sem forças para sustentar as árvores esqueléticas, sem forças para sustentar as serras ruindo, o sol torrando tudo, seu chicote de luz e de fogo.
A 16 a Coluna cruza o limite para a Bahia, através da serra de Tabatinga. Marcham dia e noite em direção a Goiás. A 18 o capitão Odilon Guimarães, que comandava a guarda avançada da Coluna, combate com forças de Horácio de Matos na margem esquerda do rio Sapão. A Coluna passa ao lado dessas forças, pela margem direita do rio Sapão, tendo do outro lado a serra da Tabatinga. Marcham os soldados pelas margens do rio Sapão que atravessam a 19, entrando no dia seguinte no Estado de Goiás, por entre os rios verdes e os rebanhos de gado que viriam matar a fome da Coluna, que fizera as últimas travessias sob um regime de racionamento. Agora, amiga, penetram pela chapada das Mangabeiras.
Em Goiás, amiga, a primavera é a única estação. Nessa planície sem fim não há os frios terríveis do inverno, nem os calores insuportáveis do verão. Não há outono levando as folhas das árvores, amarelando tristemente a paisagem. Aqui é o verde perene, terras que se beneficiam de muitos rios. Sobre esta primavera de doze meses influem o Tocantins, o Araguaia, o Paraná e os afluentes do São Francisco. Essas águas que cruzam o Estado fazem a riqueza do seu solo, a beleza dos seus dias, numa maravilhosa rede de irrigação, águas verdes de Goiás. Através desses dias de sonho a Coluna marchava, amiga, descendo Goiás. Sua direção é no rumo de Porto Nacional, seguindo daí para o sul. Parte da margem do rio Estiva, cruza o Morro, o Pedra de Amolar, o Matéria, o Rola, acampa no rio Escuro no Faveira, escala a serra Jalapão para chegar a 22 à margem direita do rio do Sono.
Os mantimentos faltam, não há café, nem açúcar, nem farinha, no dia 25 não há carne para o jantar. Não há cavalos também. A 27 se encontram Prestes e a Coluna perto da cidade de São José do Duro, na fazenda Alto Alegre. Aí Prestes resolve fazer o inimigo, que o perseguia há dias, cair numa emboscada. Manda o tenente Acilino até a fazenda Piau, onde estão os governistas para atraí-los, enquanto os destacamentos de Siqueira Campos, Cordeiro de Farias e João Alberto tomam posição para o combate. Os governistas perseguem Acilino na suposição que se tratava de uma "potreada" perdida. E vão cair na emboscada, encontrando-se com o flanco esquerdo do destacamento de Siqueira. O combate foi rápido mas sangrento. Os governistas são batidos e entre os seus mortos fica Newton Milhormes, um dos homens que estavam incumbidos de assassinar Prestes e Miguel Costa. Miguel é gravemente ferido nesta ação, tendo sido arrancado das linhas de fogo quando já baleado, pelo tenente Sadi Machado.
A 28 a Coluna atravessa o rio das Balsas, a 29 encontra gado e cavalos. No dia 1º. de setembro Prestes cruza com seus homens a primeira linha de defesa dos governistas, estendida de São José do Duro a Porto Nacional. Essas tropas do governo tinham feito uma inútil tentativa de cerco da Coluna. Em verdade, não lhe pudera dar sequer combate, Prestes atravessando entre elas sem que elas o percebessem.
O governo tinha tido o sonho de esmagar em Goiás as forças revolucionárias. Para isso enviou a polícia paulista para esse Estado, quatro mil homens ao mando do coronel Pedro Dias de Campos, transportando o que mais havia de moderno em armas, metralhadoras e fuzis-metralhadoras bem equipados, levando até aviões.
Contam, amiga, que o coronel Pedro Dias de Campos dispôs sobre um mapa na calma de uma repartição pública paulista, para alegria dos chefes governistas, o seu infalível plano de campanha: fortificar duas linhas de mais de cem léguas cada uma, ao comprido de Goiás, com os seus quatro mil homens e os dois regimentos de cavalaria que o governo pusera sob suas ordens. A primeira linha era a que se estendia de São José do Duro a Porto Nacional, e que a Coluna acabava de cruzar. A segunda estava disposta no vale do Paranã, da cidade de Formosa à vila de Cavalcanti. Prestes, sem nenhuma dificuldade, acabava de deixar para trás a primeira dessas linhas. Continua a marcha para o sul. A 9 a Coluna atravessa o Paranã, a 13 se encontra ao sul da vila de Cavalcanti nas proximidades da segunda linha do coronel Pedro Dias. No dia 15 a retaguarda da Coluna bate-se com essas forças governistas. A 18 é iniciada a travessia da chapada dos Veadeiros. No dia seguinte o pelotão que faz o flanco esquerdo da Coluna, comandado pelo capitão Eufrides Beltrão, é atacado e repele tropas inimigas chegadas de Cavalcanti. Nesse mesmo dia a Coluna atravessa o Tocantinzinho, cruzando a segunda linha do coronel Pedro Dias, deixando-o só com o infalível plano de vitória, cercando apenas montanhas e rios. A 22 a Coluna entra no Planalto Central. As "potreadas" e os destacamentos de vanguarda sustentam na continuação da marcha sucessivos tiroteios, apreendendo munições e armas do inimigo. A 29 avistam a cidade de Anápolis, a três léguas da qual irão passar. No dia 30 estão a uma légua da cidade de Barro Preto. Chegaram ao sul de Goiás, no dia 1º. de outubro Prestes ordena a João Alberto que marche para leste, sobre o Triângulo Mineiro, pondo em perigo a cidade de Santa Rita do Paranaiba, desviando para aí a atenção das tropas do governo. Enquanto isso a Coluna marcharia para o oeste, em busca de Mato Grosso. João Alberto realiza o seu raid, com inteiro sucesso, indo reunir-se à Coluna em Mato Grosso, após ter percorrido mil trezentos e cinqüenta quilômetros.
No mesmo dia 1º. Prestes, sabendo que duas forças governistas, um batalhão da polícia paulista comandado pelo major Artur Almeida e uma tropa de jagunços de Horácio de Matos marchavam contra a Coluna por diversas direções, resolve atirá-las uma sobre a outra. Com esse fim parte à meia-noite do acampamento da fazenda João Batista, deixando apenas alguns homens, encarregados de chamarem para aquele ponto a atenção das forças de Artur Almeida e de Horácio. Mais uma vez o inimigo atende aos planos de Prestes. A polícia e os jagunços, os dois grupos governistas, irrompem sobre a fazenda, um de cada lado, e lutam entre si até às 8 horas da manhã, quando se reconheceram. Quando se reconheceram, amiga, mais de duzentos homens estavam mortos no campo de batalha! O major Artur Almeida suicida-se ao dar conta do seu erro.
A Coluna marcha para Mato Grosso. No dia 6, Dutra bate-se com a polícia paulista, no dia 9 um pelotão do destacamento Siqueira tiroteia com a mesma. polícia na cidade de Rio Bonito. A 10 a retaguarda é atacada num combate que dura cinco horas, tendo o inimigo se retirado finalmente sob o fogo de Dutra e dos seus homens. A 11 o tenente Nicácio, no flanco esquerdo, combate contra jagunços. A 13 é Siqueira Campos quem põe os governistas em fuga. A 15 a Coluna entra no Estado de Mato Grosso, Goiás fora atravessado mais uma vez, de norte a sul, de leste a oeste.
Nesse momento, em Mato Grosso, quando a 22 o destacamento de João Alberto se reúne ao grosso da tropa, a Coluna contava com um efetivo de oitocentos homens, dos quais duzentos não estavam em condições de luta, ou ferido, ou desarmados, ou esgotados.
Havia velhos, meninos e mulheres. E os seiscentos homens capazes não tinham mais munição, estavam armados de uns quantos fuzis velhos, de alguns revólveres. Vinham de uma marcha através de todo o Brasil. A Coluna levantara o animo de todo o povo e inutilmente esperara que algum dos vários movimentos revolucionários prometidos por Assis Brasil. Batista Luzardo e Isidoro, chefes civis e militares da revolução, se processasse e permitisse o alastramento da revolta no país. Inutilmente esperara também as armas prometidas por Isidoro. Prestes resolve então enviar Djalma Dutra e Moreira Lima a Libres, para que se entrevistassem com Isidoro c Assis Brasil, e com eles concertasem o destino da Coluna — se continuaria no país à espera de uma revolução próxima, se emigraria — para que mandassem também notícias definitivas sobre a anunciada revolta no Rio Grande.
Dutra e Moreira Lima partem escoltados pelo destacamento Siqueira Campos que não consegue, na volta, reencontrar a Coluna e que realiza um audacioso raid, marchando por cerca de nove mil quilômetros, através de Goiás e Minas até a República do Paraguai, onde se internou.
Em Mato Grosso, Prestes se movimenta com a Coluna à espera dos enviados. Se aproxima, amiga, o momento da internação na Bolívia. A Coluna vive seus últimos meses de epopéia. Reduzida à metade, queimada de febre, o impaludismo voltando de quando em vez a atacar os homens, marchando através das selvas de Mato Grosso, é o próprio coração do Brasil pulsando pela liberdade.
Como um astro descrevendo uma órbita alucinada, numa rapidez de assombração, assim, amiga, Siqueira Campos, com o seu destacamento, cortou Goiás, Minas e Mato Grosso, na vertigem de uma marcha de nove mil quilômetros, em cinco meses. Tendo deixado a Coluna no município de Coxim, ele acompanha Moreira Lima e Djalma Dutra durante dois dias. Após haver atravessado a serra de Camapuã, entrega os emissários a um piquete que deve levá-los até Libres, piquete sob a chefia de Emídio de Miranda. E Siqueira, conforme o combinado, volta para se reunir à Coluna. Mas não consegue encontrá-la e, então, leva cinco meses a procurá-la de um lado a outro, cortando os três Estados numa corrida vertiginosa, marchando por vezes da meia-noite de um dia até às duas da manhã do outro, 26 horas a pé ou a cavalo, fazendo 20 léguas diárias, arrastando atrás de si oitenta homens. Foram mais ou menos oitenta até o fim, amiga. Apenas não eram os mesmos oitenta. Quarenta dos que saíram com ele, acompanhando Moreira Lima e Dutra, ficaram pelo caminho, mortos, feridos, cansados. Outros foram recrutados e se incorporaram, enchendo o lugar dos que não resistiam ao ímpeto dessa marcha. Oitenta homens, com o seu magnífico comandante, tomaram dezenas de cidades, atravessaram por entre o inimigo, combateram, passaram perto, mais de uma vez, do Q. G. legalista, era como um furacão desconhecido rolando sobre Goiás, Mato Grosso e Minas.33
Siqueira Campos, o herói do primeiro 5 de julho! Era ele, amiga, quem conduzia esses homens com o seu ar de mosqueteiro, jogando a vida a cada passo, um riso na boca jovem, uma ironia cortante para o inimigo, uma pilhéria no momento de mais intenso perigo, os seus homens presos aos seus gestos, o mais querido dos companheiros de Prestes. Sua marcha de nove mil quilômetros, não andados mas voados, os cavalos galopando todo o tempo, um galope de cinco meses, por vezes sem os cavalos sobre os quais galopar. Seria inacreditável se não fora realizada no fim da Grande Marcha, tendo Siqueira um acervo de experiência enorme. Só assim se pode explicar essa trajetória de meteoro.
Quando deixou os emissários em caminho de Libres ele traçou, em busca da Coluna, uma grande circunferência em torno de Cuiabá, partindo daí para Goiás, penetrando depois no Triângulo Mineiro, em Minas, de onde, ao saber da internação da Coluna na Bolívia, marchou para Bela Vista, no Paraguai.
Pela primeira vez os desconhecidos e inexplorados pantanais de Taquari, em Mato Grosso, são atravessados, lado a lado, pelo homem. São os homens de Siqueira que realizam essa façanha antes considerada impossível. Durante semanas marcham sobre pântanos sem fim e marcham velozmente. Vencem aquela terrível região com uma energia inconcebível. Ao lado de Siqueira vai Trifino, uma criança quase, um grande soldado já.
Em determinados dias chegam a marchar cento e dois quilômetros.
Não há, nesses cinco meses, um momento de repouso, um momento de descanso. Largam os cavalos cansados para os inimigos que vêm no seu rastro. Tomam de cavalos novos e partem. O tempo de descanso se resume aos minutos que os homens levam em transportar, do lombo do animal cansado para o novo cavalo requisitado, a sela gasta. Entram por areais. após saírem dos pântanos. Montanhas e rios: o Jauru, o Taquari, o Piqueri, quantos mais, são cruzados por essa nova assombração. Atravessam entre cidades mas isso não basta ao mosqueteiro da Coluna. Ele, com seu penacho, entra nas cidades, nas maiores que encontra no seu caminho: Rio Verde, Santana do Paranaíba, Palmeiras, Pouso, Santa Cruz, Paracatu, Jatai, onde os habitantes se assombram da sua chegada por entre as tropas inimigas. As vilas ocupadas são inúmeras. Como as cidades, elas são de três Estados: de Goiás, de Mato Grosso e de Minas Gerais.
Aproxima-se a Coluna duas vezes do Q. G. inimigo, chegando próximo à cidade de Campo Grande, se comprazendo em assustar o general Mariante. Toma a cavalhada dos legalistas, à noite, de surpresa. Se aproxima de Corumbá e corta as linhas telegráficas desta cidade. Cruza estradas de ferro, marcha por elas, marcha pelas estradas de rodagem. Toma estações ferroviárias: estação Visconde de Taunay, a de Ligação, a Estação Pires do Rio, cujo nome muda para Estação Luiz Carlos Prestes, homenagem ao chefe que Siqueira adorava.
Seu penacho de mosqueteiro moderno o leva a audácias alucinantes: quando marchava entre as cidades de Jatai e Rio Verde, para encurtar caminho, atravessa, à meia-noite, por dentro do acampamento inimigo que dormia. Os seus oitenta homens, num galope desenfreado, cortam o acampamento governista, acordando soldados e chefes. Quando quiseram persegui-lo já ele estava longe, quem podia ter a ilusão de alcançá-lo no seu galope de astro?
Foi assim, de surpresa em surpresa, hoje aqui, amanhã no lugar onde o inimigo menos o podia esperar, sem respeitar distâncias nem dificuldades, que ele subiu, desceu, cortou de lado a lado várias vezes esses sertões desconhecidos. Procurava a Coluna e sem dúvida passaria muito mais tempo nesse galope desenfreado se não lhe chegasse a notícia da internação de Prestes na Bolívia. Tinha andado nove mil quilômetros, pelos mais difíceis caminhos, com a maior rapidez possível, quando se internou no Paraguai.
Andou pelo leito de estradas de ferro, por estradas de rodagem, mas abriu também estradas novas pelos pantanais e pelos desertos. Explorou regiões, soldado feito geógrafo, denominando rios e montanhas. Um mapa do Brasil, amiga, depois da Grande Marcha, em confronto com um traçado antes de Prestes ter atravessado o Brasil, te mostrará centenas e centenas de estradas novas, as estradas que a Coluna rasgou. Por elas hoje atravessam pacíficas boiadas, cavaleiros em viagem, carros e automóveis. Foram construídas por esses homens admiráveis. Por Prestes, por Siqueira também, através dos mistérios dos pântanos de Mato Grosso.
Ora ele vai em cavalos de fina raça, garanhões requisitados em fazendas de ingleses criadores, ora anda a pé. Mas, seja bem montado, seja a pé, a sua velocidade, base da vida do seu destacamento, oitenta homens cercados por milhares de soldados inimigos, a sua velocidade não diminui, é uma coisa de pura imaginação num transbordamento de aventura.
Siqueira Campos. .. Seu nome respira heroísmo, bravura indiscutida, visão rápida, um astro traçando uma órbita desorientadora. Mosqueteiro de Prestes, mosqueteiro do povo do Brasil. Um sorriso alegre nos lábios finos, uma pilhéria em meio ao perigo, uma ordem precisa salvando a todos do perigo. Siqueira Campos, amiga.
Há pouco falando dele a alguém que perguntava onde estaria Siqueira hoje, se fosse vivo, Prestes respondeu, amiga, Prestes que tão bem o conhecia:
— Estaria aqui comigo preso.34
Depois desse elogio, amiga, nenhum outro pode ser feito a Siqueira Campos. Nada diz tão eloqüentemente da sua bravura, do seu coração, da sua inteligência e do seu caráter. Estaria, sim, com o seu povo e com o Herói do seu povo até o fim.
Os emissários partiram, amiga, a Coluna não pode esperar na paz de um acampamento que eles voltem. Andar é o seu destino, marchar é a sua missão. Os seiscentos homens estão estafados, mas que importa? É preciso marchar, atravessar mais uma vez essas selvas de Mato Grosso e Goiás, evitar o quanto possível o inimigo que a munição rareia cada vez mais. Prestes conduz a Coluna pelo labirinto de rios de Mato Grosso e Goiás. Esquiva-se do inimigo quanto pode, vence-o todas as vezes que é obrigado a lhe dar combate.
A 26, a vanguarda feita por João Alberto, ao atingir a ponte do rio Jauru, enxerga o inimigo que a ocupa. Eram dez e meia da manhã, as tropas governistas que guarnecem a ponte são poderosas. João Alberto bate-se até às cinco da tarde quando, desaloja o inimigo. Esse combate assume aspectos inéditos até mesmo para a marcha da Coluna: dez homens do destacamento despem-se, prendem um pente de bala nos dentes, o fuzil sobre as costas, atravessam o rio a nado, e nus vão atacar a retaguarda adversária. Nesse momento já Prestes, acompanhado de dois pelotões sob o comando de Ari, cruzava o rio para atacar o flanco e a retaguarda governistas. Cordeiro que fazia a retaguarda da Coluna é atacado pela. cavalaria inimiga, tendo conseguido retirar-se em ordem apesar de quase não poder responder à fuzilaria por falta de munição. Os dez guerreiros nus levantam o pânico entre as forças que guarneciam a ponte e quando Prestes chega, com os pelotões de Ari, já os governistas batiam em retirada. A Coluna atravessa a ponte do rio Jauru e a incendeia em seguida. A 28 estão nas margens do Taquari, onde um piquete, mandado por Agrícola Batista, tiroteia com uma força do governo, composta de jagunços. Dois dias depois cruzam o rio Piqueri e a 31 chegam ao riacho Jordão em cujas margens acampam.
Continuam através dos rios e das selvas de Mato Grosso. A 6 de novembro Cordeiro de Farias, na retaguarda, perto do rio Itiquira, derrota as tropas de Franklin de Albuquerque que marchavam no rastro da Coluna. A 8 João Alberto, na vanguarda, faz o inimigo fugir na estrada entre Santa Rita do Araguaia e Lajeado. E no dia 10 volta-se a bater contra forças da polícia mato-grossense unidas a grupos de jagunços, que tentavam um assalto contra o seu destacamento. O inimigo foge deixando um fuzil-metralhadora, vários fuzis, 750 tiros de guerra, cavalos e feridos. No dia seguinte a polícia de Mato Grosso volta a deixar armas e munições nas mãos da Coluna ao ser novamente derrotada, desta vez pelo capitão Philó. A Coluna chega ao rio das Garças. Estão em plena região dos diamantes, onde habita uma população provisória, trinta mil homens que chegam em busca de fortuna e partem, meses depois, ou com pedras que lhes darão o dinheiro com que comprar os bens da vida, ou com a experiência de mais uma aventura inútil. Muitos ali deixarão a vida, bandeirantes de um novo tipo.
No dia 14 o tenente Hermínio, com um pelotão do destacamento Ari, debanda as forças de Franklin. A Coluna marcha em direção a Goiás. Se demorara em Mato Grosso à espera de que ali se reunisse a ela o destacamento Siqueira Campos. A notícia, porém, de que uma grande força revolucionária fora vista nas imediações da capital de Goiás, leva a Coluna para este Estado, na esperança de que se tratasse de Siqueira e dos seus homens. A 17 atravessa o Araguaia e penetra em Goiás pela quarta vez. Antes, porém, a retaguarda, feita por Cordeiro de Farias, combate contra forças de Horácio de Matos.
A Coluna bate Goiás à procura de Siqueira. Entra em fazendas, atravessa riachos, ribeiros e rios, estradas e picadas. Luta a 22 na estrada do Rio Bonito, a 24 cruza o rio Caia-pó, a 27 Cordeiro de Farias entra no povoado do Rio Claro, expulsando daí o inimigo, tropas de jagunços de Tibúrcio de Souza Morais. Mas a 28 Cordeiro enfrenta forças regalares do exército, do 6º. B. C, vencendo-as também. A 29, já certos de que era falsa a notícia de Siqueira se encontrar por aquelas paragens, a Coluna toma o caminho de volta para Mato Grosso.
Novamente penetram no povoado de Rio Claro, a primeiro de dezembro batem-se contra forças do 6º. B. C, abastecendo-se a Coluna de munições com o resultado dessa luta. No dia seguinte descansam nas margens do Caiapozinho, onde o tenente Nicácio consegue mais munições num combate contra tropas inimigas, formadas por jagunços. No dia 5 a Coluna sesteia na margem esquerda do rio Piranha, marchando daí para o rio Paraíso, atravessando o Araguaia a 7, enquanto o capitão Philó atacava as forças inimigas aquarteladas no garimpo Bom Jardim, para que a Coluna fizesse a travessia sem dificuldades. Estão mais uma vez em Mato Grosso e a 11 a Coluna toma a direção da fronteira da República da Bolívia, onde deve encontrar Djalma Dutra e Moreira Lima. com as ordens de Isidoro e Assis Brasil.
Prestes orienta essa última etapa da marcha no sentido de se afastar o mais possível dos povoados, das cidades e das vilas, onde mais facilmente poderão encontrar o inimigo. As munições e as armas da Coluna não permitem combates sucessivos e prolongados. Ainda assim ela lutará mais de urna vez antes de entrar em terras estrangeiras. No dia 18 estão os homens no rio das Garças que atravessam no dia seguinte, sustentando um duro combate com as numerosas forças da polícia mato-grossense. O inimigo é completamente derrotado, retirando-se às pressas, deixando mortos, feridos e prisioneiros, entre eles um tenente. No dia 20 João Alberto, no ocupar a Colônia dos Taxos, desaloja daí um contingente governista. Seguem para o rio Mortandade, donde parte o tenente Nicácio Costa para tomar a Colônia Sangradouro, o que realiza batendo uma tropa da polícia de Mato Grosso. No dia 24 essa mesma tropa, composta de 400 homens, combate e é derrotada pelos destacamentos de Cordeiro, Ari e João Alberto. No campo de batalha fica uma grande presa: 5 fuzis, 15 mil tiros de guerra, 14 cofres de munições para metralhadoras, 60 carregadores, perfazendo vinte mil tiros, dois caminhões, um automóvel, cavalos, fardamento, também feridos, mortos e prisioneiros.
No dia 24 a Coluna toma o rumo do oeste, indo combater a 28 na ponte sobre o rio Mando, contra o 6º. B. C, o qual derrota, tomando-lhe munições. O Ano-Novo encontra a Coluna na fazenda Rafael, de partida, sob chuva torrencial. Sob essa mesma chuva é comemorado entre os soldados o vigésimo nono aniversário de Prestes, o terceiro que ele passava marchando através do Brasil, o primeiro dos três que passava sem combater. Aos 26 anos era, amiga, um capitão de engenharia que se havia distinguido na Escola, que não pudera permanecer no posto de engenheiro-fiscal porque sua honestidade o fizera protestar violentamente contra escandalosos desvios de verba. Um homem que parecia indicado para trabalhos de gabinete, um matemático antes de tudo, construtor de estradas, de usinas elétricas, longe estavam aqueles que o conheciam de imaginá-lo general, traçando planos de combates, de ataques e retiradas. Fora um aluno de estratégia militar em luta com seu professor, tirando notas discretas, dando palpites que pareciam inteiramente errados ao mestre. Agora, três anos depois, era o general mais celebrado da América Latina, tendo realizado o maior raid de cavalaria do mundo, tendo derrotado 18 generais de renome, tendo percorrido trinta mil quilômetros, um gênio militar como antes não houvera notícias nessa parte do mundo. A marcha da sua Coluna era agora estudada com assombro não só pelos mestres que duvidaram antes das suas qualidades de estrategista, como pelos mais autorizados estados-maiores dos demais países da América e da Europa. Batera todos os recordes de marcha de infantaria na travessia de Tabuleiro Alto a Sento Sé. Com mil e quinhentos homens, que se haviam reduzido aos quinhentos que comandava agora, atravessara entre cem mil inimigos bem armados, bem municiados, bem pagos. Lutara contra o exército, contra as diversas polícias estaduais, contra os cangaceiros organizados em tropa de combate. Vencera todos, como vencera a natureza bravia, como vencera as febres e os animais da selva e da caatinga. Sua derrota fora anunciada, pelos generais governistas, vinte ou trin-, ta vezes. Sua cabeça a prêmio, marchando e combatendo com trinta e nove graus de febre. Sua coluna cercada várias vezes. Rompeu os cercos, transformou as derrotas certas em vitórias conquistadas a rasgos de gênio. Nunca sentiu a febre, entrando pelos atoleiros, dando seu cavalo a um soldado ferido, a um soldado cansado. Levando por um imenso país desgraçado e angustiado a esperança de um futuro melhor. Levantando as gentes, negra, traçando os caminhos da liberdade no Brasil.
No dia 5 o capitão Philó morre lutando contra as forças de Franklin, aquelas forças que ele vencera tantas vezes. A 8 a Coluna atravessa o rio Paraguai, no dia 10 sesteia na estação Afonso, na linha telegráfica de Cuiabá a Santo Antônio do Madeira.
E, em direção à Bolívia, penetra nesse dia nos pântanos que se estendem até a fronteira. É o trecho mais assustador da marcha, se algo pode assustar esses homens de aço. Os animais já não existiam. Dos mil e quinhentos homens que haviam partido das margens do Paraná, apenas quinhentos estão reunidos em torno de seu chefe, dois terços da Coluna ficaram pelo Brasil, corpos e sangue em quatorze Estados, esperança sobre toda uma pátria. São quinhentos e, desses quinhentos, muitos já não podem combater. São feridos, são doentes, são mulheres, são velhos, são meninos.35 Não há quase munições; não há quase armas, não há o que comer, não há cavalos sobre os quais viajar, vão montados nos poucos bois que levam, e essa montaria diminui a cada dia porque os bois são abatidos para comida. Além da carne magra desses raros bois cansados, tudo que resta é o palmito de quando em vez encontrado na estrada difícil. Todos marcham descalços, não há mais sapatos, não há roupa tampouco. Vestem farrapos, de cor indefinida, bordados de lama, da lama dos pantanais. Alguns levam apenas uma tanga sobre o sexo, feita com os restos de um cobertor. Outros vestem recordações do que fora antes calças ou cuecas. Os mosquitos, trazendo todas as febres nos seus ferrões aguçados, cobrem as noites da Coluna. Não resta nenhum tempero para cozinhar. A pouca carne é comida sem sal, chamuscada no fogo difícil de acender no lamaçal sem fim. Para descansar, os homens têm que subir nos galhos mais altos das árvores, como um imenso bando de macacos.
Mas a sua energia não se quebra. Prestes diz: "Adiante", e os homens marcham, atolados até os ombros, uns amparando os outros, Prestes sustentando um soldado que já não caminha, Cordeiro de Farias entregando a outro mais cansado e com menos responsabilidade o boi em que viajava, João Alberto procurando um caminho mais transitável naquele oceano de lodo, Ari atendendo a um enfermo. As mulheres levam os fuzis quase inúteis dos homens durante horas para descansá-los, os meninos não se comportam como homens, se comportam como heróis. Na frente, como de costume, vai Prestes, qual é o homem que não o seguirá?
Entre o rio Sepotuba e Cabaçal não há caminhos. Prestes abre com seus soldados uma picada de duzentos e quatro quilômetros, num trabalho de oito dias, trabalho estafante para homens sadios, descansados e alimentados, trabalho que esses homens estafados realizam alegremente.
No dia 14 a Coluna atinge Porto Belo na margem esquerda do Sepotuba, o transpõe no dia seguinte, e inicia a construção da picada.
No dia 25, já livres da mata que pela primeira vez fora penetrada pelo homem, o capitão Ítalo Landucci, ex-ajudante-de-ordens de Prestes, servindo agora no destacamento de João Alberto, derrota forças governistas, chefiadas pelo tenente Procópio. A 28 um pelotão do destacamento Cordeiro de Faria, que faz a retaguarda, bate-se com forças da polícia mato-grossense e jagunços. Esse foi o último combate da Coluna, sua última vitória. Nele ainda morrem oficiais e soldados, nele o inimigo deixa trinta mortos e é perseguido numa distância de dez quilômetros. Nele a Coluna ainda conquista munições. São os mesmos bravos, amiga, estão rotos, febris e esfomeados. Mas, ainda assim, são os melhores guerreiros da América.
Nesse dia a Coluna cruza o rio Jauru, no porto de Jacutinga. No dia 3 de fevereiro de 1927, a Coluna Prestes se prepara para marchar. São cinco horas e trinta minutos, a madrugada rompe sobre Mato Grosso. Uma voz ordena:
— Marchar!
Eles olham: é a fronteira da Bolívia na frente. Os olhos se voltam para trás, ali ficava o Brasil. Esses soldados, amiga, não têm perfeita idéia do que realizaram. Sabem que acompanharam Prestes, que lutavam pela liberdade e por uma vida melhor. Mas talvez nem saibam que plantaram nas terras do Brasil a Revolução para todo o sempre.
Marcham devagar. Esses homens nunca choraram, amiga. Mas agora, quando a Pátria fica para trás, os velhos soldados da Coluna, curtidos de mil combates, deixam que as lágrimas rolem sobre os farrapos, sobre as barbas crescidas, sobre os peitos nus. E, como o faziam sempre que algo os perturbava, procuram com os olhos o general Luiz Carlos Prestes. Olham para a frente, ele sempre vai na frente. Não, desta vez, amiga, ele marcha na retaguarda, é o último a deixar as terras do Brasil. Seu rosto sereno, sua face tranqüila, seu olhar ardente. Um soldado o fita e compreende. Grita para os outros, sua voz alegre como um toque de clarim:
— Um dia a gente volta...
Sua voz em direção do Brasil que fica, última mensagem de esperança da Coluna Prestes. Agora é o exílio, amiga.
Te falarei, amiga, dos grandes e dos pequenos, dos oficiais e dos soldados, que o heroísmo foi comum a todos, era o clima cotidiano que a Coluna respirava. A voz altíssima de Romain Rolland, negra, anunciou que os séculos recordarão para sempre a epopéia dessa marcha.36 Ele escreveu sobre a Coluna essa verdade: "A unidade das raças e das almas do Brasil se forjou através dela." Sim, amiga, durante três anos o Brasil viveu o clima de epopéia de canto puro à liberdade, de amor à pátria e aos homens, que era a marcha da Coluna Prestes.
Te contarei dos grandes e dos pequenos. Dos que venceram as lutas, as febres, a infâmia, a natureza adversa, a fome e a sede, os rios e as montanhas.
Uma vez, era no Piauí. A Coluna passava em frente de um rancho de barro batido, coberto de palha. Nele vivia Joel, igual a milhares de sertanejos do Brasil. A Coluna passava, ele queria lhe presentear com algo, agradecer de alguma maneira aos soldados da liberdade o quinhão de esperança que lhe deram. Se adiantou até Luiz Carlos Prestes, levava uma cuia de farinha na mão. Era tudo que havia de alimento no seu rancho. E disse:
— General, tá aqui essa farinha, é tudo que eu tenho para comer no meu rancho... Dê prós soldados...
Voltou ao rancho e achou que era pouco. Ele possuia também um burro, com o qual ganhava a farinha que comia. Tomou-o pelo cabresto, se adiantou novamente até Prestes:
— General, tá aqui esse burrinho que é tudo que eu tenho para viver. . . Monte nele, não vá mais de a pé. . .
Voltou ao rancho e achou que era pouco, amiga. Mas ele não tinha mais nada que dar, mais nada possuía no mundo. Sim, amiga, ainda possuía algo, possuía a sua vida que podia dar pela liberdade. Pela terceira vez se adiantou até Prestes. Nada conduziu nas mãos mulatas, mas ia sorrindo de alegria:
— General — disse — agora leve a mim. . . Me dê um fuzil, já lhe dei tudo que tinha, agora me dê um lugar na sua Coluna. . .
Foi assim, amiga, que o soldado Joel entrou para a Coluna Prestes no alto sertão do Piauí.
Assim chegavam os voluntários, os que enchiam os claros deixados pelos que caíam sob o fogo dos soldados do governo. Davam tudo que tinham, davam a vida também, era poderoso sobre os sertões, amiga, o chamado da Coluna. Os toques de cometa nas madrugadas bravias despertava a liberdade sobre a selva, os gerais e as caatingas. Nesses anos em que o heroísmo foi o alimento diário do interior brasileiro.
Te falarei de Miguel Costa, amiga, o general comandante. Te falarei do Cordeiro de Farias, de Siqueira Campos, de João Alberto, de Djalma Dutra, de Moreira Lima, de Juarez Távora, de Trifino Correia, de Ari Freire, de Manuel Lira. de Paulo Kruger, de Alberto Costa, de Ítalo Landucci, o italiano que era ajudante-de-ordens de Prestes, de Virgílio dos Santos, do tenente Hermínio, do tenente Souza. Seus nomes como um poema. Também dos que começaram soldados e sargentos e terminaram tenentes e capitães. Te falarei de Moreira Lima, o advogado, Fúrmanov escrevendo a crônica desses Tchapáievs da América, largando a pena de Secretário da Coluna para tomar do fuzil de capitão da Coluna, largando o fuzil para estudar os autos dos processos montados pelos donos da terra contra os que trabalhavam na terra e para ordenar a sua destruição. Foi dos que ganharam um nome como uma condecoração na Grande Marcha. Chamaram-no de "Bacharel Feroz" porque era valente nos combates, o inimigo jamais pensaria que aquele capitão tão destemeroso, aguerrido e bravo era um homem de leis e não um militar de carreira.
Começo te falando dele, amiga, porque foi ele quem nos deixou a crônica detalhada e viva da marcha da Coluna Prestes. Ele foi o intelectual dentro da Coluna, a arma ao ombro, seu sangue pelo povo. Se extasiando como um poeta diante das paisagens, descompondo virulentamente os adversários, narrando singelamente os comoventes episódios da epopéia, errando várias vezes quando queria aprofundar fatos sociais, acertando sempre que falava da importância da Coluna. Soldado de Prestes, capitão da Liberdade, novamente com Prestes na Aliança Nacional Libertadora em 1935, saindo da cadeia para morrer logo depois, nos dias de desgraça de hoje sobre o Brasil, seu coração não resistindo ao espetáculo do seu general preso e torturado nas masmorras do Rio. Era o homem da Coluna, da Marcha de combate em combate, de vitória em vitória. O clima de baixeza moral, de achincalha-mento dos homens, que é o clima do Estado Novo, o matou de vergonha e de desgosto. Em 35, quando Prestes lhe escreveu sobre a Aliança e a Revolução, ele lhe respondeu, amiga, era ainda o capitão da coluna: "Estou certo de que se você entrar no Brasil, à frente de uma Coluna, esta camorra cairá com a maior facilidade." É o mesmo homem que escreveu as páginas desparramadas mas cheias do calor de vida vivida de Marchas e Combates.37 Tendo evolucionado na sua revolução, como evolucionara Prestes e a Coluna. Tinha marchado para a esquerda, era a continuação da Grande Marcha. "Para a esquerda, é a frase que se ouve em todas as bocas", escreveu ele a Prestes, amiga, esse filho do povo nordestino, a pena e o fuzil, a beca e o dólmã. Lourenço Moreira Lima, advogado e capitão.
Outro que já morreu foi Siqueira Campos, amiga, o bravo dos bravos, sua vida um poema de bravura, sua morte nas águas, caindo de um avião. Viajava para a conspiração de 30, por ela estivera no Brasil, conspirando em São Paulo, escondido em casas de amigos, a polícia aterrorizada só com o seu nome e a notícia da sua presença animando a todos, levantando os temerosos, dando novo ânimo aos que não acreditavam na vitória. O avião em que ia do Prata a São Paulo caiu nas águas do rio. No rio da Prata seu corpo desapareceu num dia de luto para o Brasil. Nesse dia. mesmo as vivandeiras da Coluna, as que lhe punham apelidos porque ele não as queria no seu destacamento, mesmo elas choraram se lembrando do jovem comandante. Ele viera do Forte de Copacabana. Ia na frente dos homens que marchavam pela praia no primeiro 5 de julho, um trapo de bandeira sobre o coração. As balas não puderam com ele, seu corpo perfurado se levantou meses depois de uma cama de hospital. Quando a Coluna apareceu, ele estava com a Coluna. Vencedor de mil combates, homem da confiança de Prestes, caudilho que arrastava atrás de si a soldadesca embriagada de bravura, exemplo de coragem e de honestidade. Depois de Prestes, e com Miguel Costa, ele foi o mais amado pelo povo dentre os cavaleiros da Coluna. Era destemido até a loucura, tinha a rapidez das decisões, via sempre o caminho certo a seguir na mais confusa das situações.
É, nos dias da Coluna, um jovem comandante de 24 anos. Aos vinte e dois se imortalizara na praia de Copacabana. Era a melhor imagem da coragem e da dignidade do exército. Os olhos vivos, a boca enérgica, pilheriando com tudo, tendo o dom de fazer Prestes rir, alegre e no entanto o mais disciplinado e mais disciplinador dos oficiais da Coluna.
Na travessia de Pernambuco, no combate da fazenda Cipó, quando as tropas do exército, da polícia e de cangaceiros atacaram tão violentamente a Coluna, houve um momento em que o 5º. Pelotão, do destacamento Siqueira Campos, atacado por forças infinitamente superiores, se tomou de pânico, os soldados numa debandada, na procura de onde se esconder para salvar a vida. Foi quando Siqueira gritou juntando os poucos que não fugiram. Se põe à sua frente, de peito aberto, seu sorriso de escárnio, avança contra o inimigo, fogo do seu revólver, fogo de seus olhos de brasa. Os soldados do 5º. Pelotão, dos seguros esconderijos que haviam elegido, vêem Siqueira que vai na frente, quase ao seu lado o tenente Sadi Machado, uns poucos homens a segui-los a caminho de uma morte ardente. Mais forte que o medo, é essa visão, amiga. Vai Siqueira de peito aberto, as balas em torno dele, os adversários caindo adiante, ele vai, seu gesto é um chamado aos homens que se aterrorizaram, é uma lição aos homens que fugiram. E eles voltam, já não têm medo. Vão saindo um a um de detrás das árvores, se vão reunindo, em breves minutos todo o 5º. Pelotão está na batalha, novamente bravo e destemeroso, novamente batendo os governistas com aquela férrea decisão de homens da Coluna.
Mais forte que o medo, amiga, era a sugestão chegada do chefe de Copacabana, seu sorriso indiferente no meio das balas, seu destemor à morte.
Amiga, se eu te fosse contar episódio por episódio, fato por fato, todos os momentos de bravura da vida de Siqueira Campos, ficaríamos no cais até que essa lua cheia que veio do Brasil virasse a lua minguante dos dias tristes. Sua vida breve e intensa é como um poema guerreiro, um combate em cada verso, um feito em cada estrofe. Como o afluente de um grande rio, que dado o volume das suas águas e a força da sua correnteza e a vida que leva às terras que banha, é também ele um rio com força própria, assim o destacamento de Siqueira, nos dias finais de Mato Grosso e Goiás, deixa a Coluna para acompanhar Dutra e Moreira Lima a Libres. E, não reencontrando o grosso da tropa, o destacamento de Siqueira Campos marcha nove mil quilômetros, afluente da Coluna como um rio, banhando de esperanças novas terras, fazendo nas suas marchas nascer, crescer e florir a Revolução. Siqueira Campos, amiga, quer dizer bravura.
Eis um belo homem e eis um bravo homem, amiga: o general Miguel Costa. Anda por todo São Paulo, negra, cruza as ruas afanosas da capital no seu trabalho intenso, cruza as ruas de Santos despejando café sobre o mundo, entra pelas fazendas, cafezais, algodoais, mandiocais e milharais, e pergunta ao citadino, ao marítimo, ao camponês, ao soldado, ao comerciante ao operário, ao pintor de tabuleta, ao pintor de óleos e guaches, ao sapateiro e ao boêmio da Avenida São João, pergunta a qualquer desses homens quem é Miguel Costa e ele te responderá com emoção nas palavras de carinho, com um orgulho na voz cheia de admiração. Seu nome é uma bandeira, mas uma bandeira de combate, amiga, da cor do sangue que ele viu correr, da cor das misérias que ele viu o povo sofrer, da cor do seu coração sangrando pelo povo. Eis outro homem do povo, amiga. Outro filho das gentes sofredoras, outro líder que o povo criou nos seus momentos mais angustiosos, quando os seus problemas se agravavam até ao desespero. Quando Joaquim Távora, alma e coração da revolta de vinte e quatro, desaparece, seu substituto na confiança do povo é Miguel Costa. Nunca traiu essa confiança. Comandante-em-chefe da Coluna Prestes, é ele quem nos dias de Estado-Maior colabora com Prestes e com Juarez no traçar os planos de combate, seus conhecimentos militares sendo um dos capitais mais positivos da Coluna.
Sóbrio, seu cabelo grisalho, seu riso bom e humano, ferido quando se batia na primeira fila ao lado de um soldado qualquer. Seu bom humor inalterável em toda a marcha da Coluna. Jovial como o mais jovem dos tenentes, bravo como o mais bravo da Coluna. Sua presença bastava para dar, mesmo nos momentos mais dramáticos da marcha, quando os homens quase nus, sujos e esfomeados, mais pareciam animais da selva que soldados marchando, um aspecto perfeitamente militar à Coluna. Quando os homens passavam, cansados e feridos, ele estava imutável e com seu sorriso bom, conforto e alegria, e então até mesmo a natureza agreste compreendia que aqueles eram soldados, os mais valentes soldados do mundo. Soldados de Miguel Costa, o general comandante-em-chefe.
Nos dias da Aliança, no ano do povo do Brasil, no ano de 35, novamente ele vem nos braços do povo. Novamente ao lado de Prestes com aquela sua comovente admiração e confiança no outro general. Vai às prisões nos dias dos inimigos do povo, nos anos de 36 em diante. Hoje o povo o olha com o mesmo olhar de límpida esperança. Acredita e confia em Miguel Costa, amiga. Esse nasceu do ventre generoso do povo, a traição nunca há de morar no seu peito. Por isso ele é o mais amado dos homens de São Paulo.
Juarez é o símbolo do "tenentismo" de 22 a 30. Honesto, por vezes ingênuo, se deixando trair por políticos matreiros, aparecendo por vezes como responsável por erros que outros tinham cometido, abusando da sua boa fé. Técnico militar de reconhecido valor, subchefe do Estado-Maior da Coluna, preso em Teresina, preferindo continuar prisioneiro a ver a gente da cidade sofrer um cerco e uma batalha, ele forma com Prestes e Miguel Costa o trio que organiza os planos de combate, que é responsável pelas vitórias da Coluna. Em 30 seu nome corre de novo através do país. Atrás dele descem as populações do norte e do nordeste sobre as quais a Coluna havia derramado o bálsamo da esperança.
João Alberto, Cordeiro de Farias, Djalma Dutra, Ari comandaram outros destacamentos. Cordeiro bateu-se em cem combates, ainda hoje sustenta os combates contra os nazistas no seu governo no Rio Grande do Sul. A marcha da Coluna é profunda no coração dos homens, amiga.
Cordeiro de Farias... Seus dias da Coluna são um suceder de feitos, seu destacamento, lutando na vanguarda, lutando na retaguarda, ora num flanco, ora noutro, cem vezes ele se cobriu de glória.
De glória se cobriu João Alberto, se cobriu Djalma Dutra, Ari Salgado Freire. A João Alberto chamaram de "homem providencial", aparecendo sempre nos momentos difíceis, sua coragem nunca superada, pernambucano com todas as características da sua raça. Homem sem nervos nos momentos de perigo. Abrindo picadas, atravessando entre balas, conseguindo soluções inesperadas para problemas imediatos. Era uma espécie de "faz tudo" na Marcha da Coluna. Comandante e engenheiro, médico e artilheiro, a cavalo ou a pé, nos dias de vitória, nos dias de fome.
Assim foram Dutra e Ari, amiga, assim foram Trifino, esse valente Trifino de ontem e de hoje, Landucci, Kruger, Moreira e Lira, os outros todos.
Vararam o desconhecido, a selva, a caatinga, os campos de terra do sem-fim. Para eles não existia o medo. Não combatiam apenas os soldados inimigos. Combatiam a febre, a natureza, a desesperança das populações infelicitadas.
Muitos desses homens morreram, amiga, vivem no coração do povo. Outros tomaram por caminhos que não são os nossos caminhos. Mas eu te direi, amiga, que daqueles que fizeram a Coluna Prestes nunca devemos desesperar. Nos seus corações ficou uma marca profunda. Da mesma maneira como a marca de traição e de miséria ficou no coração dos que tragam a Coluna no momento de 24 e desses nunca ninguém pode nada esperar, dos homens que a seguiram, mesmo daqueles que entraram nos anos de hoje por perigosos desvios, nunca devemos desesperar de todo. Por mais graves que possam nos parecer os seus erros de determinados momentos, devemos lembrar, amiga, que o povo foi uma bandeira para esses homens e que o chamado do povo é poderoso como nenhum chamado. Eles o ouviram uma vez. Quem sabe se não o ouvirão de novo nesses dias em que o sofrimento do povo atinge novamente os limites do indescritível?
Mas eu te falo deles, amiga, no seu momento de heroísmo, no seu momento revolucionário, quando, todos eles, os que continuam com o povo e os que o abandonaram, levantaram a bandeira da Revolução sobre o Brasil e conduziram a esperança até o coração da Pátria. Te falo deles nessa hora de epopéia. Quando eles são heróis do povo do Brasil.
Como heróis do povo do Brasil são esses mil e quinhentos homens da Coluna. Mais de oitenta por cento da tropa ferida, quase sempre mais de uma vez. Vinte e seis mil quilômetros atravessados em quase três anos de uma marcha cujo descanso maior foi de quarenta e oito horas. Seiscentos soldados que morreram, misturando seu sangue com o de setenta oficiais. Cem mil cavalos utilizados na maior marcha da cavalaria do mundo. Trinta mil bois abatidos nos dias em que havia bois a abater. Cinqüenta e três combates de importância, milhares de tiroteios menores.
Ah!, amiga, as noites seriam curtas para eu te narrar os feitos heróicos dos soldados, para eu te falar de um por um. Não há soldado, não há cabo, não há sargento, não há sub-tenente da Coluna que não tenha tido seu momento de heroísmo A Coluna, sob o comando de um chefe genial, é um leito coletivo, engrenagem de milhares de anônimos heroísmos, os chefes nunca subestimando os indivíduos, esses absolutamente conscientes do que se esperava deles.
Zé Viúvo foi ferido numa perna e fez um grande trecho da marcha numa padiola. Deitado, levado sobre os ombros dos outros, nos seus dias de doente, ele viu a falta que fazia cada homem, o trabalho que cada homem doente dava aos demais. Sabia também que a Coluna não deixava para trás os seus feridos, nem os que não mais podiam combater, levava-os consigo, livrando-os assim da morte certa sob as torturas dos governistas. Os doentes eram uma carga pesada nos ombros da Coluna. Mas ele sabia também que nenhum doente tinha forças para abandonar a Coluna, o lar que havia conquistado. Zé Viúvo ficou aleijado, quando deixou a padiola foi para o lombo de um cavalo. Não podia andar. Arranjou então umas muletas, se arrastava com elas, foi até Prestes e pediu-lhe que não o deixasse como um inútil, ele queria prestar serviços. Prestes conhecia os homens, os seus corações não tinham segredos para ele. Sorriu para Zé Viúvo, mandou que lhe dessem o fuzil de novo. E com a sua arma na mão, nos olhos a visão do riso bom de Prestes, Zé Viúvo ia, nas noites de acampamento, fazer sentinela. Sentava dentro do mato, aleijado que não se podia manter em pé, as muletas a um lado. o fuzil na mão. Não havia sentinela mais de confiança que Zé Viúvo. Ai do inimigo que aparecesse nas suas noites de vigia! Sentado, a arma sobre as pernas inúteis. Zé Viúvo nunca errou um tiro. Nunca a Coluna foi tomada de surpresa quando das suas vigias. Foi assim, amiga, que os soldados inutilizados conseguiram ser úteis à Coluna.
Pires foi ferido quatorze vezes. Fez toda a Coluna até a Bolívia onde chegou capitão. Agrícola Batista recebeu três balas na mesma perna. Não se amedrontou, fazia pilhéria, falava em cortar aquela perna que trazia urucubaca. Assim eram eles, amiga, esses soldados da Coluna.
Homens como Luís Carreteiro que só não trouxe para a Coluna as mulheres da sua família. Veio com todos os homens, seu irmão Benício, seus três filhos. Morreram todos, feridos na Grande Marcha, nenhum chegou à Bolívia. Luís Carreteiro, seus três filhos, seu irmão. Foram caindo um por um, caiu ele por fim nas proximidades de Piancó. Era um velho, deu seu sangue e o sangue moço dos filhos.
Bacelar, o gigantesco tipógrafo de Piracicaba, que vinha desde São Paulo lutando bravamente. Só quis um prêmio, ingênua vaidade de tipógrafo: que seu aniversário fosse noticiado pelo Libertador, o jornal que a Coluna de quando em vez publicava ao entrar em alguma cidade que possuía oficinas gráficas. Fizeram-lhe a vontade, ele se sentiu perfeitamente pago das feridas causadas pelas balas. Assim eram esses homens, amiga.
Como o negro Balduíno, velho de carapinha branca, os anos incontáveis, que já fizera a guerra no ano distante de 93, acompanhando Pinheiro Machado. Vivia sempre ao lado do oficial Pinheiro Machado, descendente do político gaúcho. Um dia o esquadrão de Pinheiro se empenhou num combate desigual, os inimigos cercaram o comandante. Balduíno se colocou ao seu lado, ordenou a Pinheiro, com sua autoridade de negro velho amigo, que se fosse para outro lado e, saltando do seu cavalo, se pôs na frente dos adversários disparando seu revólver, gritando seu grito de guerra trazido das selvas da África. As balas terminaram, puxou da sua espada, velha espada da campanha de 93, penetrou com ela em meio ao inimigo, não a largou nem quando caiu morto, trespassado de balas, furado de baioneta. Esse negro Balduíno, amiga, que salvou Zezé Pinheiro nesse dia.
Favorino Pinto, que já não podia combater de tão velho, caudilho das passadas revoluções gaúchas, que seguia na Coluna para acompanhar os seus dois filhos, para aconselhá-los nas horas de combate. Bom Bico, mágico de feira, fazendo teatro para os soldados nos dias de parada, sendo o mais valente soldado nos dias de combate. O preto Castorino, forte, e alto como uma árvore da selva, valente sem igual. Deixou um rastro de fama no sertão, foi sargento por bravura. Gostava de lutar sozinho contra centenas de inimigos. Quando a Coluna já partira de Picos, depois de Cordeiro de Farias ter-se batido, ele voltou sozinho e sozinho enfrentou a cidade armada em guerra. De pé no campo, negro gigante sorridente, atirava contra os soldados da cidade de Picos. A fuzilaria cortava o capim, silvavam as balas em torno dele.
Noutro combate assim, Castorino morreu na chapada Diamantina. Agüentando sozinho um bando de jagunços. Caiu por fim, levou muitos com ele, amiga.
Os meninos que eram feitos anspeçadas, como Jaguncinho, os que eram mortos entre torturas pelos legalistas como Aldo. Como aquele filho do capitão Hildebrando de Oliveira, que viu seu pai morrer quando marchava sobre uma trincheira inimiga. O menino o viu cair, não teve um grito de espanto, uma lágrima de desespero. Tinha dezessete anos mas os meses que levara na Coluna, em companhia de seu pai, valiam como anos de experiência. O capitão caiu, ele tomou das suas armas, continuou o seu combate, avançou para a trincheira, percorreu o resto do caminho que Hildebrando queria percorrer. Ao terminar o combate conta a Cordeiro de Farias que o pai morrera mas que ele tomava o seu lugar.
Assim eram eles, amiga, os homens da Coluna, os meninos que se faziam homens na Grande Marcha. Te disse de alguns, não te contei da maior parte deles. As histórias da Coluna, as dramáticas, as heróicas e as comoventes, se sucedem às dezenas e às centenas. Não passa um dia sem um feito grandioso. Não há um homem que não tenha uma história bela como uma lenda. Sobre seus corpos os inimigos tatuaram com balas as medalhas da Coluna. Amiga, era preciso que a noite se alongasse, que o luar nunca terminasse, para que eu pudesse te narrar uma ínfima parte dos feitos desses homens.
Vê, eles vão sorrindo, aquele não tem perna, deste a bala levou um braço, rasgou o rosto daquele outro, para trás ficaram os cadáveres de muitos. Feridos, aleijados, doentes. Soldados ainda assim, lutando com o que lhes resta do corpo, não cedendo nunca, avançando sempre, a certeza do futuro. São a imagem da Revolução, amiga.
Cada negro, cada branco, cada mulato da Coluna Prestes tem a sua história. É sempre uma história heróica e bela. Dessas histórias, amiga, as gerações se alimentarão pelo tempo afora, de heroísmo e de esperança. Esses heroísmos diários de cada homem, de cada menino, de cada vivandeira, fazem a epopéia coletiva da Coluna Prestes, estrela rasgando o céu do Brasil, a noite de escravidão do Brasil. "Rajada de heróis", disse o poeta, negra.
Contam, amiga, as crônicas da Coluna, as escritas e as orais, as que estão nos livros e nos artigos e as que são narradas nas feiras do nordeste pelos cegos cantadores, a comovente repetição de um mesmo fato ao relatarem a morte dos soldados.
Dizem que, quando um soldado era ferido de morte e compreendia que poucos minutos lhe restavam de vida, ao lhe perguntarem os companheiros e os oficiais qual seu último desejo para satisfazê-lo, ele, como todos os demais, repetia:
— Quero morrer com o general ao meu lado.
Por vezes o general estava trabalhando, a cabeça febril debruçada sobre um plano de combate, sobre o traçado de uma picada, o croqui de uma ponte a destruir ou a construir. Por vezes estava marchando a cavalo ou a pé, por vezes estava combatendo. Mas num canto da selva ou da caatinga, um soldado morria e na hora final, quando tudo se ia acabar para ele, enunciava como seu último desejo, como a coisa que poderia fazê-lo feliz na hora extrema da morte, aquela vontade de ter junto a si o general Luiz Carlos Prestes.
Morrer fitando-o, assim não via mais as terras agrestes e abandonadas, não via mais as populações famintas de onde o soldado saíra. Não via mais a miséria do presente. Nos olhos ardentes de Prestes via o futuro livre, aquelas terras ricas e fecundas abertas na fartura de todos. Os homens libertados, felizes, trabalhando uma terra sua, com máquinas suas, a paz, o riso e o amor. Morrer fitando Luiz Carlos Prestes, a mão moribunda entre as suas mãos amigas. Esse aperto de mão que afasta todo o medo. Alegria infinita de morrer ao lado do Herói, conversando com ele, imaginando com ele o futuro melhor de todos os humanos.
Por isso, amiga, quando o oficial chegava e, com a rude franqueza dos que não têm medo, perguntava ao soldado o que ele desejava antes de partir, se um recado para a noiva, se dinheiro para a família, se um cigarro ou se um trago de bebida, ele respondia sempre, resposta que se sucedeu durante toda a Grande Marcha:
— Quero morrer com o general ao meu lado.
E Prestes chegava, seu sorriso amigo, suas mãos companheiras, seus olhos ardentes, com ele o futuro. Sentava junto ao leito improvisado. Falavam, ele e o soldado, dos feitos passados, das lutas, das marchas e das vitórias. Falavam do futuro também, o futuro que nasceria do sangue dos soldados caídos. O soldado sabia que nem sua mãe nem sua amada deixariam de receber notícias e dinheiro. E sabia também que os homens amanhã seriam libertados da dor e da desgraça. Junto a ele a tranqüila face, os olhos amigos, o sorriso quente de carinho de Luiz Carlos Prestes.
O soldado ria, ria feliz, amiga, feliz morria nas selvas ou na caatinga. Feliz, fitando a face amada de Luiz Carlos Prestes. Assim contam as crônicas, negra, pelas bocas dos cegos nas feiras do nordeste.
No ano de 24, amiga, quando a Coluna apareceu com o levante do Rio Grande e a revolta de São Paulo, os chefes civis e militares viam apenas alguns dos motivos por que o povo almejava a revolução, e se batiam apenas por umas poucas e superficiais mudanças. A verdade é que a esses chefes havia chegado o eco do clamor imenso de desespero que vinha de todo o Brasil. Mas só se apercebiam dos problemas que estavam imediatamente diante deles. Os grandes e profundos problemas do Brasil eram-lhes desconhecidos. Os que habitavam o interior impenetrado viviam à margem dos grandes rios, nos latifúndios, floresciam num regime de escravidão social que só poderia encontrar semelhante na Rússia tzarista.
Os chefes da Revolução, Prestes à frente de todos, iriam aprender sobre as reais necessidades do Brasil, na Grande Marcha. A Coluna tem duas faces poderosas, amiga: aquela que levava esperança ao povo, a outra que levava experiência aos líderes do povo. Os homens que partiam do litoral civilizado, das grandes cidades, do Rio, de São Paulo, de Porto Alegre, iriam se defrontar com o inimaginável. Sua primeira constatação é que desconheciam completamente o Brasil. Se tinham ido a uma luta revolucionária pelos problemas políticos e sociais que as cidades lhes haviam apresentado, davam-se conta agora que essa revolta era absolutamente superficial para a profundidade dos problemas básicos do país.
Esse o motivo por que as revoltas de 22 e 24, como os levantes de 25 e 26, não tiveram uma base de massa, eram mais putschs secos que mesmo revoluções. No entanto a marcha da Coluna vai pôr essa situação pelo avesso. A Coluna aprendeu e ensinou. Levou a luta ao povo, no seu começo era uma tropa de soldados sobrados de um putsch que havia fracassado. No fim da Grande Marcha o panorama era totalmente diverso: a Coluna era uma revolta marchando pelo país, levantando as populações, vivendo um programa. Só foi possível a vitória de 30, precedida e acompanhada do formidável movimento de massas daquele ano, porque a Coluna havia despertado o povo e ensinado aos seus líderes. A Aliança Liberal vai utilizar, em 30, todos os ensinamentos da Coluna aos revolucionários e aproveitar-se da semente de liberdade que a Coluna deixara no coração do povo. Os líderes da revolta de outubro de 30, que depois — como Prestes previra — irão, na sua maioria, trair o povo e voltar-se contra ele, só conquistaram o poder porque já apresentavam um programa de reivindicações. Programa que será de muito superado no ano de 35, quando Prestes, indo ao encontro do povo traído por tantos dos chefes de 30, lança a Aliança Nacional Libertadora. A Aliança Liberal se balançava entre as reivindicações populares e os compromissos de seus chefes políticos com os imperialismos que a financiavam. Liberta desses compromissos estava a Aliança Nacional Libertadora, fruto totalmente dos interesses do povo.
Os limites desses dois movimentos servem para marcar, também, a capacidade de Prestes de ir para diante e dos que ficaram em 30 com a Aliança Liberal. Como Prestes, eles tinham visto os problemas, eles os haviam vivido, traziam no sangue a sua marca indelével. Mas se contentaram dentro dos limites que os políticos hábeis punham às reivindicações populares, no preparar da traição próxima. Prestes já havia ido adiante desse programa. Quando ele termina a marcha da Coluna só uma coisa o preocupa: encontrar o caminho verdadeiro para solucionar os problemas do Brasil. A revolução deixa de ser uma aventura a tentar cada vez que haja oportunidade. A revolução passa a ser uma resposta às necessidades do povo, uma resposta concreta e positiva, não apenas a mudança de um governo por outro, mas o apresentar soluções reais para os males do país.
"O que tínhamos em vista -— disse Prestes se referindo à Coluna 38 — principalmente, era despertar as populações do interior, sacudindo-as da apatia em que viviam mergulhadas, indiferentes à sorte do país, desesperançadas de qualquer remédio para os seus males e sofrimentos." Isso ele o havia conseguido realizar. Essa foi uma face da Coluna, um dos seus trabalhos.
Havia a outra face, os líderes do povo aprendendo dos sofrimentos do povo, vendo o superficial daquelas plataformas revolucionárias que haviam acompanhado os movimentos de 22 e 24. É o momento em que o pensamento "tenentista" começa a evolver para um pensamento "nacional-libertador". Em verdade, quando tudo parece indicar que em 30 o "tenentismo" tem seu momento culminante, o que acontece realmente é que, em 30, é a parte do "tenentismo" que não evolvera que pretende firmar-se como doutrina. O "tenentismo", aquele que representava progresso, já evolvera até um pensamento mais amplo. Ao fazer o retrato da Coluna, vendo-a do exílio, Prestes39 fala sobre essa outra face e marca a evolução rápida que estava tendo o "tenentismo":
"Não há solução possível para os problemas brasileiros dentro dos quadros legais vigentes. A questão não é de homens, mas de fatos, isto é, de sistema e de regime. Nenhum governo, mesmo animado das melhores intenções desse mundo, poderá, nos limites da legalidade normal, resolver os problemas nacionais em equação. A solução tem de vir de uma transformação radical em tudo, não apenas na superfície política, é preciso reorganizar o país sobre bases novas. É preciso criar novas bases econômicas e sociais de relações entre os homens que habitam e trabalham nesta grande terra. É preciso quebrar, resolutamente, as cadeias que oprimem o Brasil e impedem seu desenvolvimento ulterior, sua expansão fecunda e gloriosa." 40
Isso ele aprendera com a Coluna, durante a marcha. Não fora apenas a Coluna quem dera algo. Também o povo dera aos homens da Grande Marcha uma nova visão da vida e do Brasil. O povo acabara de criar o seu líder à sua feição, marcara-o com o fogo dos seus problemas. Nesse momento Prestes fala em "retalhar os latifúndios". Prestes se levanta, depois da Coluna, contra o imperialismo, sua voz clama para os países todos da América Latina no sentido de se unirem contra o inimigo comum: o imperialismo. O líder do povo do Brasil começa a sua carreira de grande líder de toda a América. Porque viveu no interior da sua pátria os problemas semelhantes de todos os países latino-americanos.
Vê, amiga, como cresceu esse movimento!
Nos dias iniciais de 24 o seu programa não contém uma palavra sobre latifúndio, sobre a questão operária, sobre o imperialismo. Em 24 Isidoro tem medo de aceitar o apoio dos operários de São Paulo. Terminada a Grande Marcha, outra é a voz de Prestes. Se ampliou ao contato com o povo, sai mesmo das fronteiras do Brasil, um pensamento americano, os problemas se repetindo em cada país da América Latina, só podendo existir para todos eles uma única solução. Agora, amiga, chegado da travessia genial, ele tem os problemas enfeixados na mão.
Está doente, a febre o consome, de todas as partes do Brasil, todos os partidos políticos, os mais diversos, o chamam, o convidam para seu chefe. Todos querem explorar o seu nome e o seu prestígio. Também os partidos dos outros países da América o procuram. Ele chegou cercado de lenda e de heroísmo. É a esperança do seu povo. Todos o querem utilizar em proveito próprio. Na sua mão ele tem os problemas. Porém, amiga, ele, indiferente aos chamados, indiferente aos oferecimentos, quer apenas encontrar a solução para esses problemas. Seu tempo de exílio, que vai começar, é todo ele dedicado a essa busca afanosa. Só volta ao Brasil quando tem algo de concreto para o seu povo.
Agora, amiga, que deixamos a Coluna internada em terras da Bolívia, terminada a Grande Marcha, quero dizer-te que ela não levantou apenas o povo. Ela ensinou também a Luiz Carlos Prestes. Não restam apenas o heroísmo, as vitórias militares revelando o gênio do general de vinte e seis anos. A Coluna, linha do coração traçada na mão do Brasil41 como disse o poeta, amiga, revela o país a Luiz Carlos Prestes, dá-lhe a responsabilidade de Herói de um povo. Nunca trairá a Coluna. Mesmo hoje, amiga, na prisão mais infecta, ele está continuando a Grande Marcha, os problemas na mão direita, na mão esquerda as soluções. Como naqueles distantes anos, o povo o espera. Mais que qualquer outra, sua voz vai concorrer para que terminem os dias de fome e de escravidão.
Desta vez para sempre.
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