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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAVALO / Steven James
O CAVALO / Steven James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Você não sabe como o treinador de tigres faz? Ele não ousa dar ao tigre nenhuma coisa viva para comer, com medo de que ele possa conhecer o gosto da fúria ao matá-la. Ele não ousa dar a ele nenhuma coisa inteira para comer, com medo de que ele possa conhecer o gosto da fúria ao despedaçá-la.
Ele mede o estado do apetite do tigre e compreende completamente sua disposição feroz. Tigres são de uma raça diferente dos homens... os homens que acabam mortos são os que vão contra eles.
– Chuang Tzu, filósofo chinês, 351 a.C.

Para melhor compreensão da história, é necessário que se faça uma observação acerca de seu título. O autor, Steven James, criou a série de histórias do agente especial Patrick Bowers seguindo um padrão: cada livro é intitulado de acordo com o nome das peças do jogo de xadrez. Depois de O Peão e A Torre, este terceiro volume recebeu o título em português de O Cavalo, como a peça do jogo.
Porém, é necessário lembrar, para que certas partes do enredo façam maior sentido, que o nome original da história, assim como o da peça de xadrez em inglês, é The Knight, que, traduzido literalmente para o português, seria O Cavaleiro. A alteração do título se dá apenas para seguir o padrão dos nomes das peças, desejado originalmente pelo autor.

 

 

 


 

 

 


1

Quinta-feira, 15 de maio
Mina de Bearcroft
Montanhas Rochosas, 65 quilômetros a oeste de Denver
17h19

O cheiro triste e maturado da morte emanava da entrada da mina abandonada.

Alguns agentes do FBI acostumam-se com esse cheiro em momentos como esse e, depois de um tempo, ele se torna parte da rotina diária.

Isso não aconteceu comigo.

Minha lanterna emitia um feixe estreito de luz através da escuridão, mas iluminava o suficiente para mostrar que a mulher ainda estava vestida, sem sinais de abuso sexual. Dez velas grossas a cercavam, suas chamas dançando e lambendo o ar empoeirado, conferindo ao túnel uma sensação fantasmagórica e transcendental. Ela estava a cerca de 10 metros de distância e deitada como se estivesse dormindo, com as mãos no peito. E em suas mãos estava o motivo pelo qual eu havia sido chamado.

Um coração humano em lento processo de decomposição. Nenhum sinal da segunda vítima.

E as velas tremeluziam ao redor dela no escuro.

Parte dos meus deveres no escritório local do FBI de Denver inclui trabalhar com o Departamento de Polícia de Denver em uma força-tarefa conjunta que investiga os infratores criminosos mais violentos da região metropolitana de Denver, ajudando a analisar evidências e sugerir estratégias de investigação. Como esse crime parecia estar ligado a outro duplo homicídio cometido no dia anterior, em Littleton, o tenente Kurt Mason pediu minha ajuda.

Porém, alguns oficiais da força policial local tendem a ser territorialistas e, no momento em que pisei fora do helicóptero da força-tarefa, percebi o quanto os quatro homens da perícia ficaram animados por eu estar lá. Provavelmente não faria diferença informar que Kurt queria que eu analisasse a cena com ele antes de me conduzirem ao túnel.

A mina mal tinha altura suficiente para que eu ficasse de pé e era estreita, de modo que eu podia tocar os dois lados ao mesmo tempo. A cada cinco ou 10 metros, grossas vigas escoravam as paredes e o teto, evitando desmoronamentos.

Um trilho enferrujado que havia sido usado por mineradores para conduzir vagonetes de minério pela mina corria pelo chão e desaparecia na escuridão em algum lugar além do corpo da mulher.

Enquanto dava alguns passos para dentro do túnel, verifiquei se meus tênis deixavam pegadas, mas vi que o chão era muito duro. Então, era improvável que também tivéssemos impressões de pegadas do assassino.

A cada passo, a temperatura diminuía, aproximando-se dos 5 °C. A hora da morte ainda era desconhecida, mas o ar frio teria tornado a decomposição mais lenta e ajudado a preservar o corpo. A mulher poderia estar lá há dois ou três dias.

Uma das velas se apagou.

Por que você a trouxe aqui? Por que hoje? Por que essa mina? De quem é aquele coração nas mãos dela?

A voz de um dos membros da perícia cortou o silêncio escuro.

– Sim, o agente especial Bowers entrou. Ele não está com pressa.

– Eu espero que não – era o tenente Mason, e fiquei feliz por ele estar ali. Ele esteve ao telefone desde que eu havia chegado, e agora parei e esperei que se juntasse a mim.

Um feixe de luz passou por mim quando ele ligou sua lanterna e logo depois ele estava ao meu lado.

– Obrigado por aparecer, Pat – ele falou em voz baixa, um pequeno gesto de respeito com a morta. – Eu sei que você está partindo para lecionar na Academia semana que vem. Espero que...

– Posso dar consultoria lá de Quântico, se for preciso.

Ele fez um pequeno aceno com a cabeça.

Com 41 anos de idade, óculos estilosos de aro fino e olhos rápidos e inteligentes, Kurt parecia mais um banqueiro de investimentos do que um detetive experiente, mas era um dos melhores investigadores de homicídios que eu já havia conhecido. Havia sido um ano difícil para ele, porém, e isso estava estampado em seu rosto. Cinco anos atrás, quando ele e a esposa Cheryl tinham saído, a filha deles, Hannah, de um ano e três meses, afogou-se na banheira enquanto a babá estava na sala de estar enviando uma mensagem de texto para um amigo. Kurt e eu nos conhecíamos há apenas alguns meses, quando sua filha morreu, mas eu havia perdido recentemente minha esposa e, de certo modo, a noção de tragédia compartilhada tinha aprofundado nossa amizade.

Silenciosamente, colocamos luvas de látex. Começamos a andar em direção ao corpo da mulher.

– O nome dela é Heather Fain – sua voz soava solitária e oca dentro do túnel. – Acabei de ficar sabendo. Desapareceu de seu apartamento em Aurora na segunda-feira. Ninguém viu o namorado dela desde então, um cara chamado Chris Arlington. Estávamos de olho nele... até... – sua voz foi sumindo. Estava observando o coração.

Olhei para o corpo de Heather, ainda a cinco metros de distância, e deixei seu nome caminhar em minha mente.

Heather.

Heather Fain.

Isso não era apenas um cadáver, eram os restos mortais trágicos de uma

jovem mulher que tinha um namorado, sonhos e uma vida em Aurora, Colorado. Uma jovem mulher com paixões, esperanças e angústias.

Até esta semana.

A tristeza me penetrou como uma faca.

O comentário de Kurt me fez pensar que ele poderia ter um motivo

para acreditar que aquele era o coração de Chris Arlington.

– Nós sabemos a identidade da segunda vítima? – perguntei. – Se é ou não Chris?

– Ainda não – um nervosismo tomou conta de sua voz. – E eu sei o que você está pensando, Pat: não suponha, examine.

– Não se preocupe. Vou examinar.

– Eu sei.

– Temos de começar de algum lugar.

Focalizei o feixe de luz no coração.

– Sim, temos mesmo.

Juntos, nos aproximamos do corpo.


2

As velas emitiam um cheiro de baunilha que se misturava com o cheiro de carne em decomposição e o forte odor de enxofre vindo das profundezas da mina. Imaginei se as velas eram a maneira que o assassino encontrou para mascarar o cheiro do corpo quando este começasse a se decompor; imaginei onde ele poderia tê-las comprado, e há quanto tempo estavam queimando.

Detalhes.

Tempo.

– Eu devo te contar – Kurt disse – que o capitão Terrell não está feliz pelo fato de isso estar nas mãos da força-tarefa. Ele quer que fique totalmente com a polícia local.

– Obrigado por avisar – mesmo a três metros de distância eu podia ver as veias carnudas e intrincadas do coração. – A gente resolve isso depois.

Chegamos ao corpo de Heather.

Caucasiana. Por volta de 25 anos, corpo mediano, cabelo castanho

empoeirado. Batom fresco. Imaginei-a viva, se mexendo, respirando, rindo. Tomando por base a estrutura óssea do rosto, ela devia ter um sorriso tímido e adorável.

Sua pele estava marcada e manchada, e houve certa atividade de insetos, mas a temperatura baixa fez com que fosse mínima.

Analisei por um momento o coração, preto-avermelhado e preso nas mãos dela. Parecia muito escuro, e terrível, apoiado em seu peito.

Então minha visão voltou-se para as velas. Através dos anos descobri que ter um entendimento claro do local e da relação de tempo de um crime é o ponto mais importante para se começar uma investigação. Olhei o relógio e então assoprei as cinco velas em volta das pernas dela.

– Anote 17h28.

Kurt escreveu os números em sua caderneta.

– Fluxo de cera?

– Sim – mais tarde, faríamos com que os técnicos forenses queimassem velas dessa marca nessa altitude e nessa temperatura e comparassem a taxa de derretimento e a quantidade do fluxo de cera para determinar por quanto tempo as velas ficaram queimando. Isso nos diria quando foi a última vez que o assassino esteve ali. Eu não precisava dizer nada disso para Kurt; nós estávamos na mesma sintonia.

Analisei a posição do corpo em relação ao modo como o túnel se curvava para a esquerda, seguindo o veio mineral que penetrava a montanha. Parecia que o corpo de Heather não havia sido colocado a esmo na mina. O assassino havia centralizado o corpo entre duas vigas de suporte.

Ele queria que a víssemos assim que entrássemos na mina. Ele a emoldurou. Como uma foto.

– Só mais alguns minutos – Kurt disse, tirando-me dos meus pensamentos. – Então terei de deixar os caras da perícia entrarem.

Inclinei-me sobre o corpo.

Os olhos dela estavam fechados.

Nenhuma tatuagem visível.

Nenhuma roupa rasgada, nenhum sinal de luta. Calça preta, botas

de couro marrom, uma blusa florida amarela e laranja com uma mancha

escura de sangue que havia escorrido do coração.

Empurrei uma mecha de cabelo que cobria sua orelha esquerda e vi que ela era furada em três lugares, mas ela não usava nenhum brinco. Verifiquei a outra orelha. Nenhuma joia.

– Vamos descobrir se ela estava usando brincos no dia em que foi sequestrada. Se ela estava, verifique com o ViCAP1. sobre outros casos de assassinos que levam brincos como troféus de seus assassinatos.

Ele escreveu na caderneta.

– Kurt, além de você, quantos policiais estiveram aqui?

– Apenas dois – ele apontou sua luz na direção de um túnel em uma interseção que levava para o leste. – Verifiquei os túneis antes de eles chegarem aqui. Está limpo. Nenhum outro corpo.

Pingava água em algum lugar fora da vista no fundo da mina. Ecos molhados rastejando em minha direção.

– Nós sabemos quem é o dono dessa mina?

Ele balançou a cabeça.

– Aqui em cima, os direitos sobre os minérios mudam muito de mãos. São herdados, revendidos. É difícil rastrear. Jameson está trabalhando nisso.

Voltei minha atenção para Heather novamente.

Nenhuma contusão na face, nem sangue no cabelo, nem marcas no

pescoço. Como ele te matou, Heather? Segurou um travesseiro contra seu rosto? Te afogou? Te envenenou?

– Vamos fazer um exame toxicológico.

– O médico forense está a caminho para dar continuidade à investigação. A vela ao lado do ombro direito dela piscou.

Movimentei meu feixe de luz para além do coração e o direcionei para as leves dobras e rugas de sua roupa.

Kurt se inclinou ao meu lado, apontando primeiro para os ombros dela, então para os tornozelos.

– Não há aglomeração ou aglutinação nas roupas dela – ele disse. – Ele não a arrastou para cá; ele a carregou.

– É o que parece. Mesmo assim, ele gastou um tempo para alisar sua roupa, pentear seus cabelos. Ele passou um tempo com ela. Preparando-a. Garantindo que tudo estava certo.

Senti uma tristeza renovada diante da morte dela e da pessoa cujo coração agora descansava em seu peito. Movimentando o feixe de luz sobre o corpo, pensei em quantos assassinos retornavam para o local de descarte de suas vítimas para violar seus restos, para reviver a emoção do assassinato, mas não havia sinais de que ele tivesse corrompido o corpo. E eu estava grato por isso acima de tudo.

Por que aqui? Por que você a trouxe aqui? Quando estou no meio de uma investigação tenho a mania de conversar comigo mesmo, e não percebi que havia feito mais do que apenas pensar minhas duas perguntas até ouvir uma voz de mulher atrás de mim:

– Ele está nos mandando uma mensagem.

Então, passos, rápidos, firmes, com propósito. Com cuidado para não direcionar o feixe de luz em seus olhos, virei minha lanterna na direção da mulher que se aproximava de nós. No canto da luz, pude ver seu rosto de cowgirl naturalmente bonito e seus cabelos loiros avermelhados.

– Detetive Warren – eu disse.

– Agente Bowers.

Aos 29 anos, Cheyenne foi a mulher mais jovem a ser promovida a detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Denver. Ela era inteligente, tinha os pés no chão, era dedicada e eu gostava dela. Eu havia trabalhado com ela em seis casos da força-tarefa no último ano, e a cada vez ficava mais impressionado.

Mesmo sendo sete anos mais velho, com certeza havia química entre nós, e ela havia tomado a dianteira e me chamado duas vezes para sair, mas aconteceram alguns desencontros. No entanto, à luz dos problemas que eu estava tendo em meu relacionamento atual, esses dois casos vieram à minha cabeça.

Os olhos dela passaram por mim e encontraram o corpo iluminado pela lanterna de Kurt.

– Posicionamento ritualístico – ela disse. – Ele levou um tempo para deixar tudo certo.

– Sim – focalizei minha luz em Heather novamente.

Um dos membros da perícia chamou Kurt em voz alta. Vi sua mandí

bula tensa; ele ficou um momento em uma ponderação silenciosa, então entregou para Cheyenne a lanterna, pediu licença e saiu.

Voltei minha atenção para Heather e, quando me inclinei para perto de seu rosto, percebi algo em sua boca. Gentilmente, puxei seu lábio inferior para ver dentro.

Um dispositivo preto do tamanho de um chiclete em tira dobrado estava em sua língua.

Cheyenne também viu. Ajoelhou-se ao meu lado. A maior parte da minha atenção permaneceu na cena do crime, mas um pouco voltou-se para ela, para o suave toque do seu braço contra o meu.

Ambos examinamos o objeto.

– O que é isso? – ela perguntou.

– Não sei.

– Já volto – ela saiu da mina enquanto eu usava meu celular para tirar fotos do rosto de Heather e do posicionamento do objeto em sua boca.

Cheyenne retornou com pinças plásticas e um saco para coleta de evidências.

– A perícia ficou emocionada em passar isso para a frente.

– Tenho certeza de que ficaram.

Ela me deu a pinça e eu a deslizei cuidadosamente para dentro da boca de Heather. Apertei o objeto para removê-lo.

E ouvi uma voz.

“Vejo você...”

Caí para trás.

“...em Chicago...”

Uma gravação.

“...agente Bowers.”

Recuperei o fôlego.

Senti meu coração disparar.

Olhei para a pinça e para o pequeno dispositivo de gravação. Parecia um daqueles que você encontra em alguns tipos de cartão de festas. A pressão dos lados o ativou.

– Ok – Cheyenne soltou um suspiro fino e comprido. – Eu não estava preparada para isso.

Meu coração ainda estava martelando.

– Nem eu.

A mensagem se repetiu. “Vejo você em Chicago, agente Bowers.” Esperei para ver se havia mais alguma coisa, mas aquelas seis palavras se repetiam a cada seis segundos. Cuidadosamente, coloquei o disposi

tivo de gravação no saco para evidências.

– Ele sabe sobre Chicago – Cheyenne disse, pegando o saco comigo.

– Sobre o julgamento de Basque.

No dia seguinte de manhã eu iria para Chicago para depor no segundo julgamento de um assassino em série chamado Richard Devin Basque, um homem que eu havia detido 13 anos atrás, no começo da minha carreira como investigador. Ele fora declarado culpado e estava preso desde então, mas recentemente novas evidências surgiram e, agora, era possível que fosse solto.

Eu não queria pensar naquilo agora.

A gravação continuava tocando: “Vejo você em Chicago, agente Bowers”. O som distante de água pingando.

Por um momento, ouvi o túnel. Meus pensamentos.

Quem quer que tenha deixado a gravação não apenas sabia que eu estaria em Chicago amanhã, mas sabia também que eu estaria aqui, nesta cena de crime, hoje.

Mas como?

E como este assassinato está ligado ao julgamento de Basque?

Outra vela se apagou. A escuridão rastejou em nossa direção das pro

fundezas da mina, e o coração ao qual Heather estava agarrada não mais apresentava a cor vermelha: estava completamente preto.

Vozes atrás de mim. Kurt e a unidade de perícia.

– Tudo bem – Cheyenne disse. – Aí vêm eles.

A gravação continuava repetindo a mensagem. Eu queria saber como desligá-la.

Enquanto a equipe se aproximava, deixei minha luz afastar-se do corpo de Heather e caminhar pela parede do túnel, onde analisei o brilho emitido pelos minerais incorporados na montanha. Fissuras e fendas ocasionais de apenas alguns centímetros de largura atravessavam a rocha.

Uma antiga escada de madeira tosca desaparecia por um poço a quatro metros do corpo. Andei até ela e mirei minha lanterna para baixo. O poço era tão estreito que mal permitia que uma pessoa descesse. Cerca de 10 metros abaixo, ele terminava em outro túnel.

– Alguma ideia do tamanho dessa mina? – perguntei para Cheyenne.

– Ainda não, mas algumas dessas antigas minas de ouro percorriam quilômetros.

Então a perícia chegou. Nós deixamos o dispositivo de gravação com eles e Cheyenne e eu fomos para a entrada da mina.

Quando passei pelos homens a caminho da saída, cumprimentei-os discretamente, mas Kurt foi o único que respondeu.


3

Cheyenne andava ao meu lado.

– Você acha que foi Taylor que deixou a mensagem? – ela perguntou.

Sebastian Taylor era um ex-assassino na lista dos mais procurados do FBI que havia tomado especial interesse por mim alguns meses atrás e havia começado a me mandar cartas provocativas e fotos de pessoas da minha família. Ele assinava todos os bilhetes como “Shade”, o codinome que uma dupla de assassinos tinha usado em San Diego em um caso no qual trabalhei em fevereiro. O exame de DNA realizado em um dos envelopes nos mostrou que era Taylor quem estava mandando as mensagens e que ele era, na verdade, o pai de um daqueles assassinos.

Duas semanas atrás, um policial havia encontrado marcas de pneu na lama próximas a uma caixa de correio rural que Taylor havia usado para enviar um envelope. Nós não sabíamos ainda se as marcas de pneu eram do veículo dele, mas pareciam uma boa pista. A equipe de Kurt estava encarregada disso.

– Isso não parece o tipo de crime de Taylor – eu disse para Cheyenne.

– E todas as suas mensagens anteriores para mim haviam sido escritas à mão, e não gravadas.

– Algum outro assassino com o hábito de mandar mensagens pessoais para você?

– No momento, não.

Se Taylor fosse o assassino e estivesse realmente planejando me ver em Chicago, eu queria estar pronto para ele. Então, quando Cheyenne e eu nos aproximamos da entrada, peguei meu celular.

– Vou ligar para um amigo meu do Bureau para fazer algumas coisas acontecerem.

– Cuidado, Pat – sua voz carregava uma profunda preocupação. Mais profunda do que a preocupação de uma colega de trabalho. – Isso é diferente. Eu não gosto disso. De nada disso.

– Eu entendo – um leve desconforto passou-se entre nós, e ela, então, voltou para a mina, e eu disquei o número de Ralph.


O agente especial Ralph Hawkins não era apenas o diretor interino do National Center for the Analysis of Violent Crime2. do FBI, ou NCAVC, mas era também um dos meus amigos mais próximos. Apesar de ele estar em Washington, no quartel-general do FBI, eu sabia que se tinha alguém que podia colocar uma equipe de prontidão no tribunal de Chicago amanhã, esse alguém seria ele.

Enquanto esperava que ele atendesse, percebi que o sol havia se escondido quase totalmente atrás das montanhas e que o dia começava a desaparecer. Logo após o trecho plano de terra onde o helicóptero estava pousado, florestas selvagens de abetos se espalhavam pelas encostas. Além delas, picos irregulares cobertos de neve projetavam-se para o céu.

O sinal do meu celular desapareceu, e segui em direção ao helicóptero. Tentei novamente.

Próximo dali, um carro parou na estrada esburacada que levava até a mina e o dr. Eric Bender, médico forense de Denver, saiu do veículo. Óculos grossos. Rosto sereno. Eric tinha quase 1,95m, era magro e tinha um andar inclinado que fazia parecer que ele estava sempre levemente desequilibrado. Ele deve ter percebido que eu estava ao telefone, pois, em vez de me cumprimentar com palavras, apenas acenou para mim.

Acenei de volta. Conheci Eric no ano passado, um mês depois de ter me mudado para Denver com minha enteada. Tessa não fazia amigos facilmente, então fiquei grato quando descobri que a filha dele, Dora, também estava no Ensino Médio, e fiquei mais grato ainda quando as duas garotas se deram bem.

Eric desapareceu dentro da mina na hora em que Ralph atendeu. Informei a ele sobre a mensagem gravada e da possibilidade de ser Taylor.

– Tudo bem – ele disse. – Vou fazer algumas ligações. Eu mesmo irei para Chicago. Quando você depõe?

– Às 13h. Calvin vai me buscar no aeroporto.

– Werjonic?

– Sim.

– Encontro com você no tribunal – Ralph raramente falava mais do que o necessário. – Se for Taylor, nós o pegaremos – e finalizou a ligação.

Poderíamos colocar mais pessoas vigiando os aeroportos da região, mas eu tinha a sensação de que, se Taylor quisesse chegar em Chicago, ele encontraria um jeito. Ainda assim, liguei para meu supervisor no escritório local do FBI em Denver e pedi a ele para enviar um alerta para todos os aeroportos do Oeste e Meio-Oeste.

O piloto do helicóptero da força-tarefa que havia me trazido da central de polícia estava inclinado contra a cabine. Ele tirou os olhos da edição do Wall Street Journal que lia e me olhou.

– Pronto?

– Só mais um minuto.

O tenente-coronel Cliff Freeman havia se aposentado da Força Aérea ano passado, aos 44 anos, e agora pilotava helicópteros em meio período para o governo federal. Um homem de família com dois filhos gêmeos de 11 anos, ele tinha o cabelo cortado curto, ainda estava em boa forma e tinha uma habilidade especial sobre o mercado de ações de alta tecnologia.

Voltei para o túnel para dar uma última olhada no corpo de Heather e, em seguida, me juntei a Cliff na cabine do helicóptero.

Assim que decolamos, reparei nas trilhas escassas e nas estradas de terra que desciam as montanhas íngremes e atravessavam a Floresta Nacional de Arapaho. A rota de saída que o assassino provavelmente usou não deveria ser difícil de descobrir. Analisei a topografia da área. Memorizei-a.

Então o sol deslizou para trás das montanhas, e a noite começou a rastejar pelas Montanhas Rochosas.

A mensagem gravada ecoava em minha cabeça: “Vejo você em Chicago, agente Bowers”.

– Verei você também – eu disse para mim mesmo.

E sobrevoamos as montanhas em direção a Denver para que eu pudesse fazer as malas e pegar meu voo.


4

27 quilômetros a sudeste da Mina de Bearcroft
20h12

Com o passar dos anos, Sebastian Taylor aprendeu a tomar cuidado.

Tomar cuidado enquanto ele trabalhava para a CIA encontrando maneiras permanentes para lidar com pessoas problemáticas; tomar cuidado na década seguinte, para manter sua antiga linha de trabalho em segredo enquanto lançava sua carreira política; tomar mais cuidado ainda durante seus quatro anos como governador da Carolina do Norte, armando terreno para concorrer futuramente à presidência. Tomar cuidado, tomar cuidado. Sempre tomar cuidado.

Ele saiu do chuveiro e se enxugou; depois pegou sua Glock da bancada ao lado da pia e abriu a porta para o quarto.

Sempre tomando cuidado.

Mas além de tudo, ele havia tomado cuidado durante os últimos sete meses após sua queda, depois de assassinar um ex-associado e ir parar na lista dos mais procurados do FBI.

Por décadas, Sebastian havia feito apenas o que era melhor para os Estados Unidos. Mas, desde que seu país havia se virado contra ele em outubro passado e começado a caçá-lo como um procurado, ele encontrou espaço em sua consciência para um tipo diferente de lealdade e descobriu que dinheiro podia ser um motivo pelo menos tão satisfatório quanto o patriotismo.

Sebastian pensou nessas coisas enquanto terminava de se vestir, se armava e calçava seu sapato Oxford Taryn Rose Chester feito à mão. Sapatos italianos eram os mais bem-feitos do mundo, e mesmo tendo consciência de que deveria ser discreto com suas aquisições, ele ainda se permitia alguns luxos. Um toque das coisas mais finas da vida.

Nos últimos poucos meses ele havia construído uma nova identidade, escolhido uma casa isolada nas montanhas 50 quilômetros a oeste de Denver e então, cuidadosamente, cobriu seus rastros enquanto planejava seu próximo passo contra um certo agente do FBI problemático que parecia surgir sempre no lugar errado na hora errada.

O agente especial Patrick Bowers.

Sebastian terminou de amarrar os sapatos, levantou-se e alisou o paletó Anderson & Sheppard costurado à mão para cobrir seu coldre de ombro. Sim. As coisas mais finas.

E era por isso que ele estava indo ver Brigitte Marcello novamente, essa noite.

Mesmo já tendo passado dos 50 anos, Sebastian mantinha-se em uma forma impecável, o que era útil para alguém que preferia mulheres mais jovens. E, aos 27 anos, Brigitte ainda não tinha começado a ceder à ação do tempo. Ela ainda estava inteira. Ainda estava linda. Ainda era digna de sua atenção.

Depois de fazer amor em uma noite no mês passado, ela disse a ele suave e amavelmente:

– Eu não acredito que estou fazendo isso. Você tem idade suficiente para ser meu pai.

– E você tem idade suficiente – ele disse enquanto a puxava para perto de si – para ser meu verdadeiro amor – e então ela se derreteu em seus braços e eles fizeram sexo novamente. Sim, para conseguir o que você quer das pessoas, você simplesmente tem de dizer a elas o que querem ouvir.

Ele pegou o envelope de papel pardo contendo as fotos da enteada de Bowers, Tessa. Colocou-o dentro de sua maleta.

Uma rápida olhada no relógio: 20h22.

Tempo suficiente para enviar as fotos pelo correio antes de buscar Brigitte às 21h. Depois de oito envelopes, o FBI com certeza havia instalado câmeras de segurança para reconhecimento de rostos nos correios da área de Denver. Muito melhor deixar que os federais rastreiem suas cartas até casas escolhidas aleatoriamente pela cidade – era só encontrar uma bandeira de caixa de correio virada para cima na casa de alguém tolo o suficiente para colocar suas cartas na caixa durante a noite em vez de fazer isso pela manhã, e então enfiar o envelope dentro da caixa.

Tomando cuidado.

Alerta.

Sebastian Taylor não era o tipo de homem com quem se brinca.

Ele entrou na garagem, ligou as luzes e foi até seu Lexus RX, correta

mente chamado de veículo utilitário de luxo em vez de veículo utilitário esportivo. Abriu a porta do motorista.

E sentiu a lâmina, fria e veloz, morder seu tendão de Aquiles direito...Sentiu a força em sua perna ir embora enquanto o intruso cortava o tendão de sua perna esquerda também, ainda mais profundamente.

E mesmo que Sebastian tenha sido treinado para lidar com a dor, ele involuntariamente engasgou enquanto desabava no chão.

Mas quando chegou ao chão, ele já havia sacado sua Glock.

Ele girou, de barriga para baixo, e mirou, mas percebeu tarde demais que o homem havia dado a volta por trás do Lexus, e antes que pudesse virar e atirar o intruso estava sobre ele, forçando um joelho contra suas costas, pressionando seu peito contra o concreto e agarrando seu pulso e seu antebraço direitos.

Não.

Sebastian reconheceu a posição das mãos do homem e soube o que estava prestes a acontecer.

Não.

Mas por causa do ângulo estranho, ele era incapaz de impedir.

Não!

Com uma força rápida e precisa, o homem se inclinou para a frente enquanto simultaneamente girava as duas mãos.

Houve um estalo úmido e grave quando os ossos do pulso direito de Sebastian se quebraram.

O homem tirou a Glock de sua mão mole e lançou-a para longe do alcance, em direção à porta da cozinha.

E, por um momento, Sebastian sentiu apenas a dor subindo pelo seu braço e por sua perna. Ele ficou parado, tentando controlá-la.

Não conseguiu.

Agora de pé, o homem tinha recuperado a navalha que devia ter der

rubado depois de cortar os dois tendões de Aquiles de Sebastian.

– Desculpe pelo pulso, governador. Você sacou sua arma mais rápido do que imaginei. Você realmente é bom no que faz.

Sebastian se virou para ver seu agressor.

Máscara de esqui preta. Blusa preta. Jeans. Luvas de couro marrom.

A navalha que ele segurava pingava sangue vermelho e brilhante no concreto. Mas quem? Quem era ele?

Alguém do seu passado?

Um alvo que ele não havia acertado?

Controle a dor. Controle a dor.

Não, ele sempre havia cumprido suas tarefas à risca. Nunca deixava nenhuma ponta solta.

– Quem é você? – Sebastian perguntou, escondendo qualquer sinal de dor de sua voz.

Por um momento, o homem o observou como se ele fosse um animal em exposição, e não um ser humano.

– Você pode me chamar de Giovanni. Vamos fazer desse jeito esta noite, o que você acha, Shade?

Como ele sabe quem você é?

Sebastian apertou os olhos.

– Por que a máscara de esqui? Só covardes se escondem por trás de máscaras.

– Você é um homem esperto. Eu localizei e desabilitei três de suas câmeras de vigilância, mas é possível que você tenha mais. Eu não podia me arriscar a ser identificado pela polícia depois que você estiver morto.

Sebastian deixou a ameaça de morte pairar sobre ele. Ele não ia morrer naquela noite.

O homem que preferia ser chamado de Giovanni analisou a crescente poça de sangue aos pés de Sebastian, então sacou um lenço branco do bolso e começou a limpar a navalha.

– Esse pulso deve estar doendo mesmo. Os tendões de Aquiles também. Ouvi falar que apenas partos e fraturas no fêmur são mais dolorosos que ter esses tendões cortados.

Sebastian sabia que xingar, implorar, chorar não ajudaria em uma situação daquelas. Então, apesar da dor estonteante, ele se manteve quieto. Apenas ouviu e planejou. Preparou-se para responder.

O homem terminou de limpar a lâmina, dobrou a navalha e deslizou-a para dentro do bolso da calça.

Sebastian podia sentir as contrações em suas pernas. Ele tentou controlá-las, interromper os tremores involuntários, mas não conseguia, e Giovanni deve ter percebido.

– Não tenha vergonha – Sebastian percebeu um toque de admiração na voz do homem. – Sério. Você está lidando com a dor incrivelmente bem.

Lentamente, Sebastian pressionou a mão esquerda contra o concreto frio. Ele precisava de apenas um momento para deslizar a mão até a arma reserva.

Com cuidado. Sim, agora era uma hora em que ele era grato por ser cuidadoso.

A Smith and Wesson M&P 340, com armação de escândio, calibre .357 de cano curto localizada em seu coldre de tornozelo era uma das mais poderosas armas de cano curto que a S&W já havia feito.

As coisas mais finas.

Não era um homem com quem se brinca.

Giovanni pegou a maleta que Sebastian havia derrubado quando caiu e colocou-a na bancada situada ao longo da lateral da garagem.

– Governador, você não ouviu as histórias? Sobre o louco que espera debaixo dos carros das pessoas em suas garagens e em estacionamentos de shoppings e então, quando estão prestes a entrar no carro, corta os tendões para incapacitá-las? Você deveria ter verificado debaixo do seu carro.

Sebastian o viu abrir a maleta e remover o envelope contendo as fotos de Tessa Bernice Ellis. Ele pegou uma caneta hidrográfica preta do bolso e escreveu algo que Sebastian não pôde ler no envelope.

Pegue a arma. Apenas pegue a arma.

Giovanni pegou uma bolsa esportiva preta debaixo do Lexus onde ele aparentemente havia se escondido mais cedo.

– Você conhece a história sobre como o tendão de Aquiles recebeu esse nome, não é? – ele colocou a bolsa no chão, fora do alcance de Sebas-tian. – Aquiles. O maior guerreiro da Grécia, mas ele tinha uma fraqueza.

Paciência. Paciência.

– Existia somente um lugar onde ele era vulnerável. Aquele tendão na parte de trás da perna, logo acima do calcanhar. Sua única pequena fraqueza. E você sabe qual foi a sua? Orgulho. Soberba. Você encobriu seus rastros, mas nunca realmente achou que podia ser encontrado.

Com o pulso quebrado, Sebastian só poderia usar a mão esquerda. Mas ele sabia que ainda poderia disparar uma arma.

Lentamente, ele começou a arrastar a perna pelo concreto em direção à sua mão.

– Você foi cauteloso, mas não se manteve atento. Mas não se sinta mal. Todo mundo tem isso. Aquele lugarzinho onde a flecha vai perfurar.

Giovanni abriu a bolsa esportiva e olhou para seu relógio.

– Eu gostaria de poder dizer que nosso tempo juntos será prazeroso, mas infelizmente as coisas vão ficar um pouco bagunçadas.

Sebastian puxou a perna mais alguns centímetros na direção de sua mão. Só mais um pouco e você consegue.

Mais um pouco.

Giovanni pegou um cortador de tapetes. Abriu a lâmina. Colocou-o sobre a bancada.

Enquanto Sebastian mexia a perna, o calcanhar raspava no chão, abrindo o corte em seu tendão de Aquiles. Ele respirou fundo para calar a dor. Descansou a perna. Estabilizou-se. De algum modo, conseguiu não gritar.

Giovanni sacou dois rolos de corda da bolsa e os colocou organizadamente à sua frente na bancada.

Então, um alicate.

Depois, uma faca de caça.

Sebastian sabia que não tinha muito tempo.

Ele agarrou a perna, puxou-a para cima e o ferimento abriu. Sua perna se contorceu em espasmos, e uma tontura escura passou por ele, mas ele não gritou. Apenas alcançou a arma.

Tudo em um instante, Sebastian instintivamente abriu o coldre, pegou a arma de cano curto e girou-a em direção a Giovanni.

– Eu tenho uma .357 mirada para suas costas – ele estava surpreso com sua calma, considerando a tremenda dor que sentia.

Giovanni congelou.

O jogo havia mudado.

– Tente qualquer coisa e eu atiro – mas antes de Sebastian matá-lo, ele queria saber quem era aquele homem. – Agora, mãos para o alto, ou vou garantir que você morra muito, muito lentamente. Afinal, como vocêdisse antes, eu sou bom no que faço.

O homem que preferia ser chamado de Giovanni não se moveu. Sebastian não queria matá-lo até ter algumas respostas, mas se o homem não obedecesse, ele apertaria o gatilho e não deixaria isso incomodá-lo nem por um instante.

– Estou te falando, você não quer abusar da sorte. Coloque as mãos para o alto e vire-se para mim.

Giovanni lentamente levantou as mãos e começou a virar.

– Quem te mandou?

Nenhuma resposta.

– Eu perguntei: quem te mandou? Como você me encontrou? Quando Giovanni finalmente o encarou, Sebastian pôde ver uma tremida levemente visível descer pela garganta do homem. Ainda sem resposta.

– Essa enrolação vai te custar caro – Sebastian disse. – Agora, tire a máscara.

Giovanni deixou seus olhos se moverem rapidamente na direção da Glock de Sebastian caída no chão perto da porta da cozinha. Mas aquela olhada entregou tudo.

Assim que ele pulou na direção da arma, Sebastian apertou o gatilho da sua .357.

Um clique.

Nada mais.

Giovanni tropeçou pela garagem. Sebastian atirou novamente.

Um clique.

Nada. De novo.

Como poderia a arma estar vazia? Você sempre a mantém carregada. Sempre! Giovanni levantou-se, segurando a Glock. Encarou Sebastian.

– Como eu estava, um momento atrás? – ele perguntou. – Eu pareci com medo? Eu ensaiei, sabe, em frente ao espelho. Eu não sou um ator tão bom, e não achei que seria convincente se eu improvisasse. Mas eu enganei você, não foi? Parece que sim.

Ele mirou a Glock no rosto de Sebastian.

Não!

Sebastian respirou fundo.

Giovanni atirou.

Nada.

O homem observou friamente Sebastian e balançou a cabeça, desapontado.

– Governador, por favor. Você realmente acha que eu deixaria você entrar na garagem com alguma de suas armas carregada? Você é um homem muito perigoso. Isso não seria muito esperto da minha parte. Você não deveria deixar a arma em sua cama. Ou, ainda, deixar sua Glock sobre a bancada do seu banheiro. Alguém poderia entrar na sua casa e esvaziá-las enquanto você está tomando banho.

– Quem é você? – Sebastian ouviu sua voz indo da confiança para o medo.

A única resposta de Giovanni foi pegar uma das cordas da bancada e, com a rapidez de um gato, correr em direção a Sebastian. Antes que ele pudesse sair do caminho, Giovanni enrolou a corda em torno do seu pulso não machucado e torceu o braço de Sebastian na direção da bancada. Um instante depois, ele havia amarrado o pulso a uma das pernas da bancada.

Agora ele estava de pé, pegando a outra corda.

Sebastian sabia que não podia deixar Giovanni amarrar sua outra mão. Se ele fizesse isso, ficaria completamente desamparado. Tudo acabaria. Ele rolou na direção do pulso amarrado e tentou puxar a corda, tentou desamarrá-la, mas como o pulso estava quebrado, ele não tinha forças para fazer isso.

Então Giovanni veio em direção a ele novamente. Sebastian tentou lutar contra ele, mas seu agressor torceu seu braço com força, e um dos ossos em seu antebraço arrebentou-se. Dessa vez Sebastian não pôde evitar e soltou um grito agudo de dor. A estranha protuberância na manga do paletó mostrou que o osso do braço havia atravessado a pele.

– Está tudo bem – Giovanni estava puxando seu braço na direção do carro. – A maioria dos homens já estaria chorando agora. Eu tenho enorme respeito por você – ele soava genuinamente impressionado. – Você está fazendo um trabalho admirável!

Sebastian puxou seu pulso amarrado, mas o nó que Giovanni havia feito só ficava mais apertado. Com um último surto de força, ele tentou empurrar Giovanni, mas falhou.

Em poucos segundos, Giovanni havia amarrado o pulso quebrado de Sebastian nas rodas de liga de alumínio de 18 polegadas e sete raios de seu veículo utilitário de luxo, o Lexus RX de cem mil dólares, e Sebastian Taylor estava indefeso, com os braços esticados, um para cada lado, os dois pulsos amarrados.

Giovanni examinou as cordas para garantir que eram seguras.

– Pronto – então ele se levantou, andou na direção da bolsa esportiva e pegou um serrote.

– Tudo bem se você gritar, de verdade, não vou pensar menos de você – ele mexeu novamente na bolsa e pegou uma tira grossa de tecido.

– Agora, eu posso te amordaçar até acabarmos, se você quiser. Pode tornar as coisas mais fáceis. Baseado no que eu vejo, morder uma mordaça parece ajudar as pessoas a lidar com a dor. Para mim, tanto faz. Deixo a escolha com você.

Sebastian estava cansado de ser legal. Ele soltou uma enxurrada de xingamentos e terminou dizendo:

– Você é um homem morto. Não faz ideia de com quem está lidando. Giovanni colocou a mordaça de volta na bolsa esportiva.

– Tudo bem, então. Vamos começar.

Carregando o serrote, ele se ajoelhou e posicionou a lâmina contra o joelho esquerdo de Sebastian, logo abaixo da patela. Então segurou a perna com força contra o concreto com a outra mão.

– Nós temos uma noite longa à nossa frente. Eu não vou muito fundo nesse primeiro corte, então sugiro que você não se mexa demais. Só vai fazer mais bagunça e me obrigar a demorar mais. Eu acho que você não ia gostar. Mas, novamente, a escolha é sua.

Sebastian sentiu o medo, bruto e profundo, atravessá-lo. Ele cerrou os dentes, tentou se preparar para o que estava por vir, sentiu um grito se aproximando, mas então, antes que o homem pudesse começar a serrar, ele ouviu o barulho do cascalho na parte de fora da garagem.

Um carro.

E um pequeno brilho de esperança. Talvez, só talvez, ele ainda pudesse sair dessa vivo.

Giovanni correu para o interruptor de luz e desligou-o. Apenas o leve brilho dos faróis e do luar pela janela permaneceram.

Ele pegou a mordaça.

– Parece que isso não é mais opcional...

Sebastian começou a pedir socorro, mas seu grito foi rapidamente interrompido quando Giovanni colocou o tecido grosso em sua boca e amarrou atrás da cabeça.

Fora da janela, os faróis piscaram e uma porta de carro se abriu e depois se fechou.

Giovanni levantou-se.

– Deve ser Brigitte. Muito pontual. Muito solícita. Depois de receber aquela mensagem de texto que mandei para ela mais cedo em seu nome, ela deve ter decidido se apressar – Giovanni pegou outro pedaço de corda da bolsa esportiva. – Acredito que você disse a ela que houve uma mudança de planos. Que você planejou uma noite inesquecível e se ela poderia, por favor, trazer comida chinesa. Achei que seria mais fácil desse jeito, ter vocês dois no mesmo lugar, e, além do mais, eu gosto de comida chinesa e tenho certeza de que no fim dessa noite eu vou estar faminto. É conveniente para todo mundo.

Sebastian tentou gritar, tentou tirar a mordaça de sua boca, mas não era possível.

Na luz fraca da garagem, ele viu Giovanni sacar a navalha.

– Sabe, de acordo com a história, eu preciso matá-la primeiro, deixar você assistir, então é assim que vamos fazer – ele parou e olhou para baixo, para Sebastian, com simpatia. – Bom, tudo bem, então. Eu já volto – e desapareceu pela porta que levava para a casa.

Sebastian Taylor, o ex-assassino que chamava a si mesmo de Shade, não acreditava no Todo-Poderoso. Se ele acreditasse, teria rezado, teria implorado por piedade divina por tudo que ele havia feito em seu passado secreto, mas, em vez disso, ele apenas pôde xingar seu captor, e o mundo e sua própria falta de cuidado. E lutou sem esperança contra suas amarras enquanto seus tendões rasgados escoavam sangue no chão da garagem, marchando permanentemente os saltos de seus sapatos de couro italiano de 495 dólares.

Ele ouviu a porta da frente se abrindo.

Brigitte havia chegado.

A longa e última noite havia começado.


5

Sexta-feira, 16 de maio
Denver, Colorado

6h32

Acordei.

Tomei banho.

Me vesti.

Encontrei meu celular e vi que Cheyenne havia deixado uma mensagem de voz: o laboratório forense havia ligado o DNA de Chris Arlington ao do coração.

– Então, para ser franca – ela não soava insensível, apenas foi direto ao assunto –, ele não é mais um suspeito. – Ontem parecia bem possível que Chris fosse a segunda vítima, então a mensagem dela não me surpreendeu.

E agora, o desafio: encontrar uma maneira de concentrar meus pensamentos no julgamento vindouro em vez de deixar minha atenção ser desviada para as mortes no Colorado. Eu sempre trabalho em múltiplos casos simultaneamente, mas tirar um deles da minha cabeça enquanto trabalho em outro é uma luta constante.

Levei um momento para revisar minhas anotações sobre o caso de Basque, então terminei de arrumar minha mala e fiz um pouco de café para conseguir sobreviver à manhã. Eu estava na metade de uma xícara de Sana’ani – um grão encorpado e robusto do Iêmen – quando minha enteada Tessa apareceu na porta da cozinha, colocando seu piercing da sobrancelha para ir para a escola.

– Oi – ela disse. Ela vestia jeans desbotados, tênis de lona e uma camiseta que dizia “Viva o Verde ou Morra”. A linha de cicatrizes finas que ela havia feito em si mesma nos meses após a morte da mãe era visível em seu braço direito, e a ponta de sua tatuagem de corvo aparecia por debaixo de sua manga esquerda. A sombra de olho, o batom e o esmalte das unhas combinavam com o cabelo preto e davam personalidade às suas feições delicadas, fazendo-a parecer bonita, mas também levemente ameaçadora. Do jeito que ela gostava.

– Bom dia – eu disse.

– Eu sei que você não vai me dizer onde é esse julgamento, mas eu vou perguntar mesmo assim – ela pegou uma blusa do cabide na parede e jogou o cachecol prateado que eu havia comprado para ela na minha última viagem para a Índia em torno do pescoço. – Onde é o julgamento, Patrick?

Por causa de seus cabelos negros e espírito livre, peguei a mania de chamá-la de Raven3. às vezes – parte do motivo pelo qual ela havia escolhido aquela imagem para sua tatuagem – e agora eu disse:

– Eu não posso te contar sobre o julgamento, Raven. Você sabe que minha vida profissional e minha vida familiar têm de estar...

– Separadas. Eu sei. Só pensei em perguntar.

Ela andou entre as caixas de mudança e serviu-se de uma xícara de café. Nenhum de nós sabia quem era o pai biológico dela, e ela não tinha nenhum parente próximo, então, após a mãe ter morrido, nós dois sofremos juntos, lutamos juntos e finalmente acabamos nos amando de um jeito que me fazia sentir como seu verdadeiro pai.

Olhei o relógio. Com minha permissão do FBI eu poderia ir direto para o portão de embarque do aeroporto, então a segurança não seria problema, mas o trânsito poderia ser.

– Escute, eu preciso...

– Esse é diferente, não é? – ela estava olhando para seu café e girando uma colher dentro dele, apesar de eu não me lembrar de ela ter colocado nada dentro da caneca.

Pensei que eu sabia aonde ela estava querendo chegar com a pergunta, mas esperava estar errado.

– O que você quer dizer?

– Tipo, quando você estava se preparando pra isso e tal – ela não levantou o olhar da xícara de café. – Eu observei você. Dava pra ver. É...

Ela deve ter parado para procurar pela palavra certa, mas por mais brilhante que ela fosse, eu duvidei. Suspeitei que ela estava esperando para que eu completasse o espaço vazio – provavelmente com a palavra pessoal –, mas em vez disso, eu apenas disse:

– Sim. Esse é diferente.

Uma pequena pausa. Ela pegou a xícara e passou andando por mim em direção ao quarto dela.

– Vamos. Me ajude com meu colar. Eu nunca consigo fazer esse fecho funcionar.

Chegar ao aeroporto na hora seria difícil, mas eu podia ver que algo mais importante além do colar estava na cabeça dela. Eu decidi me dar mais alguns minutos.

Quando cheguei ao quarto dela, ela já havia colocado o café sobre a cômoda e estava procurando em sua caixa de joias.

– Quem é? Esse cara, esse julgamento. Pelo menos me diz o nome dele.

– Tessa, você sabe que eu não posso falar sobre meu...

– Só o nome.

– Ele é um assassino, Tessa, é tudo que você precisa saber. Fui eu que o peguei, há muito tempo. Antes mesmo de conhecer sua mãe.

– Então o que ele fazia com suas vítimas?

– Ele as matava.

– Ele fazia mais que isso, ou não te incomodaria tanto.

– Tessa...

– Vamos. Você sempre faz isso, você toca no assunto e daí não quer terminar de falar sobre ele.

Pisquei.

– Eu não toquei no assunto, você que tocou.

Ela pegou o colar de turmalina negra que eu havia dado para ela em outubro passado, no seu aniversário.

– Pare de discutir – ela me deu o colar, sentou-se na cama e me observou pelo espelho do quarto.

– Não estou discutindo – passei o colar em torno do pescoço dela. Tentei travar o fecho.

– Está, sim.

– Não estou.

– Eu digo que você está discutindo.

– E eu digo que...

Ela sorriu e levantou suavemente a sobrancelha.

– Olhe – adolescentes não deviam poder fazer isso. Devia existir uma regra. – Conversamos sobre isso depois.

– Agora você está evitando minha pergunta.

Eu ainda estava brigando com o fecho. Ela estava certa, era complicado.

– Tessa, você odeia ouvir sobre cadáveres. Sangue, todo esse tipo de coisa. Aliás, a propósito – apontei para os pôsteres da banda favorita dela, Death Nail 13, e a foto emoldurada de Edgar Allan Poe, seus olhos escuros e perturbadores olhando para mim através do quarto –, o que acontece com você e essas bandas, e Poe? Quero dizer, tudo que ele escreve é sobre a morte e o macabro.

– Apenas uma das minhas incoerências cativantes, parte do que me faz ser tão adorável.

Incoerências cativantes.

Ótimo.

– Você escuta death metal e dorme com um ursinho de pelúcia.

– Você está tentando mudar de assunto, e não vai funcionar. Apenas resuma para mim. Em linhas gerais.

Resolvi o problema do colar. Tentei pensar em um jeito apropriado de descrever para uma garota de 17 anos o que Basque havia feito, e finalmente acabei dizendo:

– Esse homem, ele fez muitas coisas ruins.

– Ah, jura? Um assassino que faz coisas ruins? Que coisa estranha – ela ainda estava me observando pelo espelho. – Eu nunca teria imaginado isso – então, após um momento, quando eu não respondi, sua voz ficou mais fina, mais séria. Uma ponta de apreensão. – Quão ruins?

Uma pausa.

– Ruins tipo Silêncio dos Inocentes – eu disse finalmente. Ela olhou para mim pelo espelho.

– Você está com medo dele?

– Olha, podemos parar com isso? Eu preciso ir para o aeroporto...

– Você está? – ela virou-se e me olhou diretamente nos olhos.

Admitir que eu estava com medo de alguém não parecia coisa de um

“valoroso agente do FBI”, mas percebi que ela saberia se eu não fosse sincero com ela. Tomei um pouco de ar.

– O que ele fez para aquelas mulheres... Ele me fez questionar certas coisas. Sobre a quantidade de maldade que somos capazes de fazer, sobre o que cada um de nós é...

Ela me observou imóvel por um momento, e eu podia ver sua curiosidade insaciável lutando contra sua aversão sobre a morte.

– Então – ela disse afinal –, você está com medo dele.

Eu disse a ela a verdade.

– Sim.

Ela ficou quieta por um longo tempo.

– Bom – ela disse finalmente. – Fico feliz.

Eu não estava certo sobre o que dizer.

Um momento sombrio se estabeleceu à nossa volta, e ainda que eu precisasse ir embora, não queria deixá-la sozinha pensando sobre assassinos e morte.

– Boa sorte nas suas provas.

– Elas só começam segunda-feira.

– Saquei. E você vai passar a noite na Dora hoje, certo? – quando ela acenou com a cabeça, acrescentei: – Não atrapalhem a noite de sono do dr. Bender.

– Certo.

Quando viajo, Tessa normalmente fica com meus pais, que moram a cerca de 15 minutos, nos arredores de Denver. Essa semana, meu pai estava em uma viagem de pescaria em Wisconsin com meu irmão Sean, mas minha mãe ainda estava em casa.

– Ligue para Martha se tiver algum problema.

– Ligo – ela pegou um chapéu de lona cinza do mancebo e colocou na cabeça. O chapéu parecia ter sido atropelado uma dúzia de vezes por um caminhão.

– Quando você voltar para casa de manhã, empacote algumas coisas, ok? Ela resmungou e virou os olhos.

– Eu não entendo por que temos de levar tanta coisa. Nós só vamos passar o verão, não é como se...

– Empacote algumas coisas, ok?

– Tanto faz.

– Que na verdade é o seu jeito de dizer “eu te amo e ficarei feliz em fazer isso para você, Patrick”. Não é?

Um pequeno sorriso.

– Possivelmente.

Deixamos o quarto dela e no meu caminho pela casa, peguei minha mala e a bolsa do computador no meu quarto e então a encontrei na porta da frente.

– Tudo bem. Eu devo voltar amanhã por volta do meio-dia. Podemos almoçar juntos – coloquei minha bagagem no chão e dei um pequeno abraço nela. – Preciso ir.

– Espere – ela me segurou pelo braço. – Existe alguma chance de ele ser solto?

– Sempre tem uma chance.

Ela me olhou de um jeito inquieto e solene.

– Se ele te assusta... Quer dizer... Tem uma... Só faça um bom trabalho, ok? Tudo que posso fazer é dizer a verdade.

– Ok – eu disse.

Então beijei-a na testa, peguei minhas malas e parti para Chicago.


6

Tribunal Criminal do Condado de Cook

Esquina da West 26th com a South California Avenue

Chicago, Illinois

11h52 no fuso horário central americano

Com o número de manifestantes a favor e contra a pena de morte cercando o tribunal, a South California Avenue havia sido fechada, então o dr. Calvin Werjonic e eu estacionamos a um quarteirão de distância. Saímos do carro dele e protegi os olhos da chuva torrencial.

Apesar da tempestade, havia atiradores posicionados por toda a volta do tribunal.

Por causa da possibilidade de Sebastian Taylor aparecer, Ralph coordenou esforços com o Departamento de Polícia de Chicago e o U.S. Marshals Service4. para fornecer proteção. Mas mesmo com a ajuda deles, eu não tinha certeza de que conseguiríamos localizar Taylor. Ele era um dos homens mais esquivos e perigosos que eu já havia conhecido, e eu não conhecia muitas pessoas que fossem boas o bastante para detê-lo.

A mensagem gravada na mina não continha nenhuma ameaça específica contra mim, mas se Taylor estivesse aqui, eu queria pegá-lo, então, mesmo tendo um estacionamento seguro no subsolo do tribunal, eu insisti que não o usássemos.

Eu queria estar em um local aberto, onde ele pudesse me encontrar. Agora, enquanto eu procurava algum trocado nos bolsos, Calvin, que tinha perto de 75 anos e parecia estar prestes a ser carregado pelo vento, apertou o casaco londrino contra si mesmo.

– Te encontro lá dentro, garoto – seu leve sotaque inglês dava sabor a cada palavra.

– Tudo bem.

Quando ele desapareceu pela chuva escura, relâmpagos serpenteavam pelo céu, deixando o soar dos trovões pelo caminho. Coloquei algumas moedas no parquímetro.

Calvin Werjonic, Ph.D, doutor em Jurisprudência, havia sido meu orientador nove anos atrás, quando comecei meu programa de doutorado em criminologia ambiental. Esse também foi o ano em que passei de detetive do Departamento de Polícia de Milwaukee a agente do FBI.

Pelos próximos quatro anos me enterrei nos meus estudos de pós--graduação, enquanto ainda trabalhava em tempo integral para o National Center for the Analysis of Violent Crime do FBI. Anos difíceis. Muito pouca vida pessoal. Apenas alguns poucos amigos, mas quando eu finalmente terminei meus estudos, Calvin deixou de ser meu professor para se tornar um deles.

Parquímetro alimentado, atravessei a rua em direção ao tribunal, de olho nos manifestantes. Eu pensei que as tempestades iriam mantê-los longe, mas apesar do tempo ruim, parecia que 300 ou 400 pessoas haviam aparecido.


Imaginei quais delas poderiam ser agentes do FBI ou policiais disfarçados. Enquanto caminhava para o prédio, cogitei a possibilidade de Taylor não ser quem deixou o dispositivo de gravação na boca de Heather. Na verdade, poderia ter sido praticamente qualquer uma daquelas pessoas na multidão.

Procurei por rostos familiares, por qualquer um que estivesse fazendo contato visual desnecessário comigo, ou propositalmente evitando-o, mas não vi nada de anormal.

Havia pelo menos 150 apoiadores da pena de morte, alguns carregando placas com fotos ampliadas das vítimas, outros segurando cartazes que diziam “Olho por olho. Vida por vida”.

As pessoas reunidas do outro lado da rua seguravam cartazes com “A morte Não é Igual à Justiça” e “Recuperar Para Não Matar”. Os dois grupos tentavam gritar mais alto que o outro.

Duas visões de justiça.

Dois lados da equação.

Felizmente, a polícia havia liberado um caminho e o bloqueou com cavaletes de madeira, portanto pude chegar à escadaria do tribunal. Subi com o vento rasgando pelo canal entre o prédio administrativo vizinho e o tribunal, fazendo a chuva jorrar em meu rosto.


7

Calvin estava secando a chuva do casaco quando o encontrei no saguão de entrada.

– Que cena lá fora – ele disse.

– Não estou surpreso – enxuguei o cabelo. – Considerando quem está sendo julgado. – Mesmo estando na parte de dentro, a temperatura não havia mudado. O sistema de ar central não deveria estar funcionado apropriadamente. Imaginei que estava fazendo em torno de 16 °C. Talvez mais frio.

Calvin ficou em silêncio por um momento e, então, disse:

– Estou um pouco surpreso por eles não terem reconhecido você, garoto.

– Faz 13 anos.

– Sim – ele disse pensativo. – Acho que sim.

Eu estava examinando os rostos dos repórteres e dos transeuntes no saguão, tentando não parecer que estava olhando. Alguns membros das famílias das vítimas usavam faixas pretas nos braços.

– Além do mais, assassinos são muito mais memoráveis do que os caras que os pegam. Ninguém faz figurinhas de agentes do FBI ou de policiais, mas três companhias diferentes fazem com assassinos em série.

– Isso é um pouco perturbador.

– Mais do que só um pouco.

Um conjunto de repórteres olhou em nossa direção e aparentemente reconheceu Calvin, pois eles começaram a vir até nós como um rebanho, os olhos fixos nele. Ele estava acostumado com a atenção da mídia, sendo um dos especialistas em criminologia mais acionados pela CNN, então não me surpreendeu, mas eu gosto de entrevistas da mídia tanto quanto gosto de café de beira de estrada, e acho que Calvin sabia disso, pois passou por mim para interceptá-los.

– Te vejo na sala do tribunal – ele disse.

Agradeci e fui em direção ao posto de segurança onde seis poli ciais estavam de guarda ao lado de três detectores de metal. Um dos policiais, um homem atarracado com uma cabeça incomum coberta por cabelos cortados bem rente, acenou para que eu desse um passo à frente. Demorou um pouco para que eu esvaziasse meus bolsos e colocasse minhas chaves com minhas lâminas de abrir fechaduras, junto com minha minilanterna de LED e alguns trocados, na máquina de raio X.

Antes que o policial pudesse pedir, dei a ele minha identificação e disse:

– FBI.

Então removi minha SIG P229 .357 e a faca que Ralph havia me dado

– uma Randall King TSAVO-Wraith preta, automática – e entreguei a eles também.

A Wraith não era o tipo de faca que eu teria escolhido por minha conta, mas Ralph havia me dito que eu precisava de uma faca boa e tinha me dado aquela mês passado. Tessa disse que a Wraith era “animal”.

O que era na verdade uma descrição muito boa.

O policial, cujo distintivo dizia Jamel Fohay, colocou a arma e a faca em uma mesa ao lado dele, então olhou para minha identificação enquanto eu colocava a bolsa do computador na esteira transportadora.

– Federal, é? – ele disse. – Um cara grande passou por aqui há alguns minutos.

Deveria ser Ralph.

– Agente Hawkins.

– Vocês dois estão aqui para depor?

– Ele depôs mês passado. Eu vou agora.

Ele não pareceu ter pressa para devolver minha identificação, e a fila de repórteres esperando para entrar no tribunal estava crescendo rapidamente atrás de mim, então tomei minha identificação da mão dele e ele se afastou para que eu passasse.

Ele gesticulou em direção à minha Wraith.

– 75 gramas. Lâmina de aço inoxidável ATS-34. Feita nos Estados Unidos da América. Ótima escolha.

– Você conhece bem facas.

– Eu trabalho na sala de evidências – ele explicou – sempre que não fico preso sendo babá dessa máquina de raio X. Vejo um monte de facas passando. Sempre é bom ver uma Randall King. Vai ter de deixá-la aqui, no entanto. A SIG também. Você conhece o procedimento – ele as colocou dentro de um armário de metal preso à parede. Fechou com uma chave. Deu-a para mim.

Depois de todas as vezes que havia sido convocado como testemunha especialista, eu estava bem familiarizado com os procedimentos e o protocolo do tribunal. Mesmo variando entre jurisdições, eu sabia que aqui em Illinois ninguém podia portar armas no tribunal com exceção dos dois policiais que ficam de guarda na porta principal. Alguns estados permitem que juízes tenham armas escondidas sob a mesa.

Mas não Illinois.

Enquanto pegava meus objetos pessoais, vi a atenção do oficial Fohay mudar para a fila de repórteres se formando no posto de segurança.

– Quando você depuser – ele disse –, lembre-se daquelas mulheres. Eu lembro delas todos os dias, pensei.

Mas em vez de responder, peguei minhas coisas e me dirigi para os elevadores.

Sim, eu me lembro delas; e agora mais do que nunca, pois um erro que cometi quando prendi o assassino pode ser suficiente para libertá-lo.


8

Basque usava um matadouro abandonado.

Era para lá que ele levava as mulheres. Era onde ele as torturava, sempre tomando cuidado para mantê-las vivas o suficiente para que o vissem remover cirurgicamente e comer pedaços de seus pulmões.

Baseado nos relatórios do médico forense, às vezes ele conseguia manter as vítimas vivas por mais de 12 horas – um fato que ainda me causava calafrios.

Quando o encontrei no matadouro, ele estava de pé sobre Sylvia Padilla, segurando um bisturi.

Gritei para ele largar a faca e ele tentou fugir, atirando em mim com uma Smith & Wesson Sigma, acertando meu ombro esquerdo. Quando minha arma falhou, corri na direção dele e lancei um gancho de carne em seu rosto. Ele se esquivou e consegui derrubá-lo e algemá-lo. Então corri para tentar salvar Sylvia.

E quando fiz isso, ele caçoou dela enquanto ela sofria.

E quando o sofrimento dela acabou, ele caçoou dela enquanto ela morria.

Então, o meu erro.

Eu acertei ele. Forte. Duas vezes. Mesmo ele estando algemado, e sem ter tentado fugir ou resistir à prisão. E em um momento escuro de fúria pelo que ele havia feito, peguei o bisturi para usar nele, mas felizmente consegui me controlar. Seja como for, eu apenas quebrei sua mandíbula.

Mais tarde, por alguma razão que nunca consegui adivinhar, ele disse aos oficiais que o interrogaram que ele havia quebrado a mandíbula quando o gancho de carne o acertou, mesmo nunca tendo acertado.

Naquele momento, eu não queria que nada comprometesse o caso, então, no meu relatório oficial, não esclareci as coisas cuidadosamente como deveria ter feito.

– Houve um confronto – escrevi. – Mais tarde foi descoberto que a mandíbula do suspeito foi quebrada em algum momento durante sua prisão – era verdade, só não era toda a verdade. As evidências físicas eram suficientes para condená-lo, e a defesa não ligou muito para a mandíbula quebrada, especialmente porque o próprio Basque alegou ter sido um acidente. As circunstâncias acerca da luta nunca foram tratadas no julgamento. Ele foi condenado, sentenciado, e acabou assim.

Mas não acabou assim.

Eu ainda carregava a lembrança comigo. Eu havia atacado fisicamente um suspeito e, depois, omitido informações pertinentes no meu relatório. Era um segredo do qual não me orgulhava. E Basque sabia disso. E quando alguém conhece seus segredos, ele tem poder sobre você.

Mais do que tudo, psicopatas anseiam por poder e controle. Então talvez fosse isso. Talvez fosse por isso que ele se manteve quieto por todos esses anos. Não tinha como saber.

Mas uma coisa eu sabia: eu não gostava do fato de Basque ter poder sobre alguém. Especialmente sobre mim.

Encontrei Ralph me esperando ao lado do elevador.

Mesmo ele não sendo tão alto quanto eu, ele ainda tinha mais de 1,80m,

e, com seus ombros largos, ele parecia preencher todo o corredor. Ultimamente, ele vem tentando voltar a levantar pesos como fazia quando era um Army Ranger,5. antes de entrar para o FBI. Talvez fosse uma crise de meia-idade, não sei. Pelo que ouvi, ele estava fazendo repetições com 100 quilos – o que queria dizer que ele provavelmente conseguiria levantar um máximo de 180 quilos. Nada mau para um cara com quase 40 anos.

– Vamos subir pelo caminho de trás – ele disse. Ele estava comendo algum tipo de petisco branco do tamanho de um M&M. Empurrou uma porta próxima e eu o segui através de um corredor estreito em direção às escadas dos fundos.

– Alguma coisa sobre o Taylor? – perguntei.

– Nada ainda. Se ele estiver aqui, é um fantasma.

Passamos por uma janela e eu vi a Cadeia do Condado de Cook envolta por cercas de arame farpado logo do outro lado de um beco. Era ali que estavam mantendo Basque.

Quando eu ainda era detetive no Departamento de Polícia de Milwaukee, trabalhando no caso de Basque, Ralph havia me encorajado a entrar para a academia do FBI. Foi alguns anos antes de eu aceitar o convite dele, mas no fim aceitei, e nos tornamos grandes amigos desde então.

Ralph tinha raspado a cabeça desde a última vez que eu o havia visto, e decidi que isso era digno de um comentário.

– Belo corte de cabelo – eu disse.

– Ideia da Brineesha – ele resmungou, esfregando uma enorme pata por sua cabeça. – Disse que fico sexy. Eu me sinto como uma bola de sinuca.

– Eu concordo com sua esposa. Ficou bem em você, amigo.

Mesmo com algumas pessoas cruzando no final do corredor, nós acabamos em uma parte relativamente deserta do prédio. Talvez Ralph tivesse escolhido esse caminho de propósito para que pudéssemos conversar sem ninguém ouvisse nosso papo.

Ele comeu mais do petisco que segurava.

– Lien-hua vai ficar com ciúme quando eu contar a ela que você dis se isso.

Senti uma pontada de arrependimento quando ele mencionou o nome dela. Lien-hua era a mulher com quem eu vinha saindo nos últimos quatro meses, uma colega do FBI, criadora de perfis. Ralph não sabia que nosso relacionamento estava dando seus últimos suspiros, e não parecia o melhor momento para contar para ele, então decidi mudar de assunto.

– O que você está comendo?

A escada que era usada para transferir prisioneiros da cadeia para o tribunal estava bem à frente.

– Passas cobertas com iogurte – ele deslizou a mão para dentro do bolso e sacou outro punhado. Atirou em sua boca.

– Você tá brincando.

– Brineesha me fez ficar viciado nisso semana passada – ele estava falando com a boca cheia. – Você já experimentou? É incrível.

Ele me ofereceu um punhado de seu bolso. Uma bola de fiapos de pano veio junto.

– Não, obrigado – eu disse. – Eu não sou um grande fã de iogurte.

– Como quiser – ele lançou o punhado todo na boca, com fiapo e tudo. – Você não sabe o que está perdendo.

– Nem quero saber.

Passamos por um bebedouro e ele acenou na direção de um banheiro próximo à escada.

– Ei, preciso mijar.

Pensei em como eu teria de ficar preso na sala do tribunal pelas próximas horas e decidi que deveria passar no banheiro também.

Ralph parou no bebedouro para tomar água, então passei por ele, empurrei a porta do banheiro masculino e parei no meio do caminho.

Encarando-me, a um metro de distância e ladeado por um par de enormes policiais do Departamento do Xerife do Condado de Cook, estava Richard Devin Basque.


9

Assim que vi Basque, senti um aperto no peito, um surto agudo de raiva e arrependimento, o passado me soterrando. Se você tivesse mantido a calma após Sylvia ter morrido... Se você tivesse chegado ao matadouro mais cedo, ela poderia estar viva... Se você tivesse desvendado o caso um dia antes...

Ele sorriu para mim.

– Detetive Bowers – por alguma razão, percebi que seus dentes estavam todos no lugar, impecáveis. Sua mandíbula parecia perfeita também; os cirurgiões fizeram um bom trabalho. – Não, espere... é dr. Bowers agora, não é? Um agente do FBI? Como o tempo voa. É bom vê-lo novamente.

Eu não respondi.

Ralph apareceu ao meu lado na porta, bloqueando o caminho.

– Vamos – latiu um dos policiais, conduzindo Basque na direção da porta. – Vamos embora – mas Ralph colocou sua mão no ombro do homem. Na hora, parecia que o cara ia empurrar a mão dali, mas então ele percebeu os músculos no antebraço de Ralph e parou.

– Tudo bem, cara. Deixa ele – Ralph tirou sua mão quando achou que deveria. – Nós podemos conversar por um minuto. Estamos aqui apenas para mijar – mas Ralph não entrou no banheiro, apenas ficou barrando a porta.

Comecei a imaginar o que ele tinha na cabeça; eu tinha a sensação de que ele esperava que Basque tentasse algo para que ele pudesse derrubá-lo. Com força. Eu esperava que não fosse para isso que as coisas caminhariam.

– Só para deixar registrado, então – Basque disse –, eu renuncio a todos os meus direitos de ter um advogado presente. Um papo cairia bem.

– Viram? – Ralph disse para os policiais. – Pronto.

Ambos mediram Ralph e ninguém se moveu. Eles recuaram e todos nós nos encaramos.

Por motivo de segurança, decidi que não falaria com Basque antes de depor para não correr o risco de ter problemas no julgamento.

Ele olhou para mim. Ele quase não havia mudado em 13 anos na prisão. Ainda tinha a aparência confiante e bonita de um galã de cinema, o olhar incisivo e o sorriso de baixar as defesas que tanto serviram a ele para atrair suas vítimas para seu carro. Assim como Ted Bundy e tantos outros assassinos, Basque havia usado charme e carisma como sua arma mais eficaz.

Com a aparência intacta, o tempo que passou na prisão havia servido apenas para endurecer suas feições, emprestar alguns vincos ao lado de seus olhos e envolvê-lo em uma espessa camada de músculos esculpidos que se flexionavam contra o terno de grife que seus advogados sem dúvida haviam comprado para o julgamento. No geral, ele parecia tão arrojado, confiável e elegante como sempre. Talvez até mais.

Um assassino canibal bonito e de aparência respeitável.

Eu costuma ficar chocado quando me encontrava com pessoas que cometiam os mais apavorantes crimes – torturar e eviscerar suas vítimas, comer ou estuprar cadáveres em decomposição – porque os infratores quase nunca têm a aparência que você imagina. Em vez de parecerem monstros, eles se parecem com técnicos de times infantis, professores de faculdade, presbíteros de igreja ou com aquele cara que mora na sua rua – porque na maioria das vezes, é exatamente quem eles são.

Basque mudou sua atenção para Ralph. Mostrou a ele um largo sorriso.

– Agente especial Hawkins. Eu gostei do seu depoimento mês passado. Muito persuasivo, eu achei. E como está Brineesha? Esse é o nome dela, né? Uma gracinha. Está cuidando bem dela, eu espero.

O rosto de Ralph ficou sombrio. Ele deu um passo à frente.

– Assim não – eu pedi a ele silenciosamente, mas tenho certeza de que Basque e os policiais me ouviram. – Não aqui – dirigi-me aos dois homens escoltando Basque. – Leve-o daqui.

Um deles agarrou o braço de Basque, mas ele continuou firme no lugar. Após 13 anos puxando ferro todos os dias, precisaria dos dois para movê-lo dali. Para piorar a situação, Ralph ainda bloqueava a porta.

Eu podia sentir o ar ficando pesado à nossa volta.

– Vamos – eu disse para Ralph, mas ele não se moveu. Nem Basque, e nem os policiais.

Basque olhou para mim novamente. Um sorriso suave e charmoso.

– Todos esses anos eu esperei que você me visitasse na prisão, Patrick. Mas você tem tantos casos para resolver, eu imagino. Eu li sobre vários deles no jornal. Você tem andado ocupado – ele molhou os lábios. – Mas senti falta de te ver.

Ralph estalou o pescoço e disse:

– É, pode ficar muito solitário lá dentro. Tenho de certeza de que você

achou vários...

– Às vezes solitário, robusto amigo, mas nunca sozinho – ele virou-se para encarar Ralph. – Não com o bom Deus ao meu lado.

Ah, eu quase havia me esquecido. Sete meses atrás na prisão, Richard Basque havia encontrado Jesus, assim como tantos condenados diante de uma audiência de condicional ou de um novo julgamento parecem fazer. A perspectiva de liberdade deve ser um forte incentivo para se fazer as pazes com Deus.

Os olhos de Ralph endureceram. Coloquei minha mão em seu ombro para puxá-lo, mas se Ralph quisesse fazer alguma coisa com Basque, eu não imaginava como conseguiria impedi-lo. Os policiais escoltando Basque ficaram tensos também. Tudo estava indo pelo caminho errado. Basque deixou seus olhos escuros se banquetearem na raiva crescente de Ralph.

– Até onde eu saiba – Ralph disse, com os punhos cerrados –, Deus está do lado das ovelhas, e não dos lobos. Alguém como você vai queimar no...

– Ninguém está além da redenção, agente Hawkins.

Agarrei o braço de Ralph.

– Vamos. Preciso ir para a sala do tribunal.

Finalmente, Ralph saiu de lado e os policiais rapidamente direcio naram Basque para o corredor. Enquanto saíam, ele disse por sobre o ombro para mim:

– Patrick, quando isso acabar, espero que possamos nos encontrar novamente em uma situação menos desconfortável, talvez repartirmos o pão juntos. Partilhar do corpo e do sangue.

Suas palavras do corpo e do sangue ecoaram pelo corredor enquanto a porta se fechava e Ralph enchia o lugar de palavras que eu duvidava que Basque poderia encontrar em sua Bíblia recém-desempoeirada.

Olhei para meu relógio. O tempo havia evaporado. Eu precisava correr.

Fizemos o que tínhamos de fazer no banheiro, corremos pelas esca das e chegamos à sala do tribunal bem na hora em que a policial feminina com rosto sério estava se preparando para fechar as portas.


10

12h25

Todos na sala estavam se ajeitando em seus lugares.

Eu nunca havia estado nessa sala do tribunal antes e não pude deixar de pensar que, com suas paredes revestidas, colunas de mármore falso e cadeiras retas de madeira, ela era remanescente dos dias em que o prédio havia sido construído, há cerca de 100 anos.

Sob a luz moderada, tudo parecia imponente – a escrivaninha ampla do juiz, a bancada das testemunhas que se erguia a cerca de dois metros do piso da sala, assentos para mais de 200 pessoas nas galerias. O cheiro de pó e livros antigos preenchia o ar.

Na mesa da defesa, do outro lado da sala, uma mulher esguia e intensa, com seus 40 e poucos anos, estava sentada conversando com Basque. Ela tinha os lábios apertados e dedos finos e estava vestindo o mesmo terno feminino cinza-escuro que havia escolhido para uma entrevista na Fox News semana passada. Eu a reconheci imediatamente: srta. Priscilla Eldridge-Gorman, a advogada principal de Richard Basque. Sua equipe de advogados estava sentada ao lado dela.

Há 13 anos, Basque havia sido julgado e condenado no Condado de Delafield, Wisconsin. Desde então, ele havia sempre afirmado sua inocência e chegou a convencer um professor de direito da Michigan State University a dar uma olhada em seu caso. Por três anos, a professora Renée Lebreau fez seus estudantes de graduação revisarem os procedimentos e transcrições do julgamento, e acabaram encontrando discrepâncias na evidência de DNA e no depoimento de uma das testemunhas oculares que afirmou ter visto Basque deixando a cena de um dos assassinatos. A srta. Priscilla Eldridge-Gorman exigiu que a sentença de Basque fosse reduzida, mas após uma revisão judicial cuidadosa, a Corte do Sétimo Distrito decidiu a favor de um novo julgamento.

E, então, aqui estávamos.

Um homem hispânico muito bem vestido, chegando aos 40 anos,

atravessou apressadamente a sala e escorregou para a cadeira ao meu lado, interrompendo meus pensamentos.

– Bom te ver, Pat.

– Emilio – eu conhecia o procurador-assistente Emilio Vandez de uma rápida reunião que tivemos no mês anterior para nos prepararmos para o julgamento.

Ele pegou uma pilha de pastas de arquivo de sua maleta e colocou-a em nossa frente. Levou um bom tempo ajeitando-as.

– Parece que estamos bem para hoje.

– Fico feliz em saber disso.

Emilio colocou dois lápis ao lado da pilha e, então, cuidadosamente os posicionou em paralelo um com o outro. Respirou profundamente.

– Eu não sei o que há de errado com esse ar-condicionado. Eu deveria ter trazido um suéter – então olhou ao redor da sala como se estivesse procurando pelo motivo de estar tão frio.

Eu tinha ouvido falar que Priscilla Eldridge-Gorman era boa, muito boa, e comecei a imaginar se Emilio Vandez era páreo para ela.

Então, o oficial de justiça pediu a todos que se levantassem, o juiz entrou, e o julgamento de Richard Devin Basque foi retomado.


Vinte minutos antes, escondido e invisível no meio da multidão de manifestantes, Giovanni observou Patrick Bowers entrar no tribunal. Agora, ele voltava para seu carro alugado estacionado a uma quadra da barreira policial.

Ele havia chegado de avião e alugado o carro sob um nome falso, e usava um disfarce enquanto balançava seu cartaz de “A morte Não é Igual à Justiça”.

Ninguém sabia que ele estava lá.

Ele dirigiu até um beco próximo, ligou para o departamento de expedição de Denver e fez uma denúncia anônima reportando o local dos corpos de Sebastian Taylor e Brigitte Marcello. Então lançou o celular pré-pago em uma lixeira.

E, então, tudo estava no lugar.

Por meio de seus contatos, ele sabia que Sebastian Taylor havia tentado subornar membros do júri para que Basque fosse solto. Ele ainda não sabia por que Taylor queria que Basque fosse absolvido, e o governador havia ficado notavelmente de bico fechado a noite toda em relação a seus motivos, até quando as coisas progrediram para mais e mais desconforto. Mas isso não importava. Nada disso importava. O júri sequer daria um veredicto.

Não, Giovanni havia dado seus próprios passos.

Ele ligou o rádio de polícia que havia trazido consigo para monitorar os eventos da tarde.

E aguardou que a história se desenrolasse.


11

O julgamento, que havia sido marcado para começar no fim do outono passado, havia ficado atolado em um lamaçal jurídico por meses – adiado cinco vezes por revisões jurídicas e uma série de recessos e interrupções.

No entanto, isso foi uma boa notícia para mim porque queria dizer que eu não teria de passar por uma fase interminável de declarações de abertura, argumentos e contra-argumentos. Nós poderíamos ir direto ao assunto. E após os rituais preliminares do julgamento e uma hora de interrogatório de Emilio, a srta. Eldridge-Gorman caminhou até o meio da sala e parou por um momento ao lado da mesa contendo os sacos, fotos, esboços e outras evidências físicas para começar seu exame cruzado.

Ela lentamente virou o rosto para o júri.

– Antes de começarmos, eu gostaria de lembrar ao júri que consultamos três dos melhores analistas de DNA do país, e cada um deles corroborou a inocência do meu cliente. O sr. Basque é uma vítima do sistema que passou os últimos 13 anos em...

– Protesto, meritíssimo! – Emilio Vandez estava de pé antes que Priscilla pudesse terminar a frase. – Aqui vamos nós de novo. Ela vai interrogar a testemunha ou apenas reapresentar o caso?

O juiz, um homem de cabelos brancos chamado Lawrence Craddock, olhou primeiro para Vandez, então para Priscilla Eldridge-Gorman.

– Faça logo suas perguntas. Nós já sabemos como você se sente em relação ao réu. Você esclareceu abundantemente nos últimos quatro meses – ele respirou longamente de modo que parecia ter puxado metade do ar dentro da sala do tribunal. Eu tive a impressão de que ele fosse falar mais, mas ele parou.

Ela acenou com a cabeça. Ela provavelmente estava esperando a objeção e estava apenas tirando vantagem da oportunidade para reiterar sua afirmação sobre a inocência de Basque. Só mais um artifício para manipular o sistema a favor de seu cliente. Eu odiava esses jogos de pose e exibicionismo. Com muita frequência eles obscurecem fatos e evidências e acabam comprometendo a justiça.

– Dr. Bowers – a srta. Eldridge-Gorman prosseguiu –, por favor, diga seu nome e função para a corte.

– Agente especial Patrick Bowers. Sou um criminologista ambiental do National Center for the Analysis of Violent Crime do FBI. Atualmente, estou em serviço no escritório local em Denver e, quando necessário, sirvo em uma força-tarefa para crimes violentos em conjunto com o Departamento de Polícia de Denver.

– Mas você já foi detetive.

– Sim. No Departamento de Polícia de Milwaukee, por seis anos. Fui eu que fiz a prisão do réu.

– Sim – ela disse rigidamente. – Foi você. Mas chegaremos lá em um instante. Você poderia gentilmente citar suas qualificações?

Eu já tinha passado por tudo isso com Emilio, mas é típico da defesa pedir a você para repetir suas qualificações para que eles possam sabotar seu depoimento diminuindo-as ou desacreditando-as aos olhos dos jurados.

Repetir meu currículo era a última coisa que eu queria fazer, mas eu não queria que nada interferisse no caso da promotoria, então decidi acabar logo com aquilo. – Estou na divisão de crimes violentos do FBI há nove anos e, como mencionei, fui detetive de homicídios por seis anos. Durante os últimos 15 anos, fui assistente ou investigador principal de 618 casos e sete países, e servi como testemunha especialista em 91 julgamentos criminais e civis. Tenho bacharelado em justiça criminal pela University of Wisconsin-River Falls, um mestrado em criminologia e direito pela Marquette University e um Ph.D em criminologia ambiental pela Simon Fraser University. Também trabalhei como consultor para o National Law Enforcement and Corrections Technology Center6. em Denver, Colorado, estive no conselho da American Academy of Forensic Sciences7. e servi como contato entre a National Geospatial-Intelligence Agency8. e o FBI para ajudar a integrar a pesquisa geoespacial militar com a pesquisa da comunidade policial.

Pronto. Feito. Chega disso.

A srta. Eldridge-Gorman caminhou firme em minha direção. O baru lho forte de seus saltos confiantes ricocheteavam como tiros pela sala.

– E não é verdade, dr. Bowers, que cinco anos atrás você ganhou a Condecoração Presidencial de Serviço Exemplar por Inovação Policial e escreveu dois livros sobre investigação geoespacial, um dos quais ganhou o Prêmio Distintivo de Prata por Excelência em Crimes Verídicos?

– Sim, está correto.

– E, não seja modesto agora, você é um dos maiores especialistas em criminologia ambiental e investigação geoespacial do mundo.

Eu não estava gostando disso.

– Essas são minhas áreas de especialidade.

– Seu currículo é impressionante, doutor – presumi que ela estivesse me chamando de doutor sempre que tinha chance para tentar me fazer parecer CDF. Outra tática. Mais jogos. Ela saboreou um momento de silêncio e então acrescentou: – Parabéns!

– Obrigado – nunca é um bom sinal quando o advogado de defesa começa parabenizando você por suas conquistas. Ela me deu um sorriso artificial e percebi que ela não estava apenas buscando informações, mas já havia me colocado na boca de uma armadilha verbal.

– Como um investigador geoespacial, você estuda horário, local e progressão de crimes, correto?

– Sim.

– E usando modelos computadorizados e análise geoespacial, você cria o que é chamado de “perfil geográfico” para ajudar a diminuir o número de suspeitos ou focar a investigação em uma localização específica?

– Se o caso justifica a criação de um perfil geográfico, sim. Está correto. Olhando além dela vi Calvin no fundo da sala. Ele não estava ali para depor, apenas para observar, e ele deve ter notado algo, pois estava rabiscando ocupadamente em uma caderneta de papel.

– E você usa informações de satélites de defesa para estudar esses locais – ela consultou suas anotações. – Um sistema chamado FALCON.

– Sim: a sigla em inglês para Rede de Operação Secreta e Localizador Aeroespacial Federal.9. É o programa de mapeamento digital geoespacial mais avançado do mundo.

O tom dela mudou da cortesia para a condescendência.

– É justo mencionar, porém, que sua abordagem é de certo modo controversa, não é, dr. Bowers?

– Protesto! – Vandez gritou. – As técnicas de investigação do dr. Bowers não estão sendo julgadas aqui. O sr. Basque está.

– A pergunta dela é relevante – respondeu severamente o juiz Craddock.

– Uma técnica pode ser controversa mas ainda assim eficaz e bem estabelecida – ele olhou para ela. – Mas a srta. Eldridge-Gorman deve se certificar de que não vai insultar ou importunar a testemunha.

– É claro, meritíssimo – ela pensou por um momento. – Deixe-me refazer a pergunta. Suas estratégias investigativas são consideradas por alguns como não convencionais...?

– Investigações deveriam ser mais focadas em descobrir a verdade – eu disse – do que em seguir a convenção.

– E você não procura por motivo?

– Não.

– Nem usa criação de perfil psicológico ou comportamental?

– Não.

– De fato – ela olhou para suas anotações –, você chegou até a escrever, e eu cito: “Eu não ligo para o porquê de alguém cometer o crime. Eu prefiro pegá-lo do que ficar tentando analisá-lo psicologicamente”.

Na verdade, eu tinha orgulho daquela frase.

– Sim. Eu escrevi isso, e o resto do parágrafo também: “Investigadores precisam parar de se perguntar ‘por que?’ e começar a perguntar ‘onde?’. Não importa por que o infrator cometeu o crime, nosso objetivo é descobrir onde ele está”.

– E você até ridicularizou o uso de análise de DNA. Não é verdade?

– Eu nunca ridicularizei, eu apenas não dependo disso. Criminosos assistem demais a CSI. Não é incomum eles deixarem sangue, cabelo, saliva, até sêmen de outras pessoas em cenas de crimes, para desorientar investigações. Eles estão usando o sistema contra nós. E são bons nisso.

– Então, você prefere a criação de perfil geográfico – ela não disse isso como uma pergunta.

– É uma das ferramentas mais eficazes que conheço para diminuir a lista de suspeitos em casos envolvendo infratores seriais.

– Mas dr. Bowers – ela saboreava suas palavras com um sarcasmo que aumentava lentamente –, a criação de perfil geográfico não seria útil apenas se houver cinco ou mais locais de crime? Esse não é o número mínimo necessário para um perfil geográfico preciso?

– Quanto mais casos ligados, mais precisos conseguimos ser, sim. Dados 12 ou mais lugares, nós podemos chegar a 97% de acerto em diminuir a lisa de locais prováveis para a base de ação do infrator.

Agora, ela fingia ignorância.

– Mas como você sabe que uma série de crimes estão ligados? Se vocêtiver, digamos, 16 assassinatos em dois estados por dois anos, como você pode dizer que todos foram cometidos pelo mesmo criminoso?

– A análise de ligação – eu disse –, também conhecida por Análise de Caso Comparativo, é normalmente responsabilidade da polícia local. A ACC é feita através de uma cuidadosa revisão de ligação iniciada pelo infrator, descrições de testemunhas oculares, localização das cenas dos crimes, vitimologia, ou seja, características ou relacionamentos das vítimas que apontam para uma ligação entre os crimes, e evidências físicas encontradas nas cenas dos crimes. Com relação aos 16 crimes pelos quais o sr. Basque é acusado, eu mesmo analisei os dados e tive a certeza de que os homicídios foram cometidos pela mesma pessoa.

– Mas você poderia ter errado?

Olhei para além dela, para as fotografias mórbidas espalhadas pela mesa de evidências.

– É possível. Todas as investigações trabalham com a hipótese de probabilidades, não de certezas.

Pensei que ela fosse se prender ao que falei, mas ela disse:

– E para seu método investigativo funcionar, não é verdade que o infrator deve ter um ponto de estadia estável? Não estar apenas passando pela região?

Ela havia feito uma pesquisa, eu tinha de dar esse crédito a ela. Ela estava citando quase que diretamente do capítulo 15 do meu livro Entendendo o crime e o espaço.

– Está certo – eu disse. – Infratores transitórios distorcem os resultados. Imagine uma pessoa dentro de um armário, pintando as paredes com tinta spray enquanto gira em um círculo. Se ela sair no meio do trabalho, é possível encontrar o local exato onde havia estado se analisarmos os padrões e a densidade das gotículas de tinta nas paredes. Mas seria obviamente impossível fazer o mesmo se ela andasse pelo armário enquanto estivesse pintando.

– Sim, mas e se essa pessoa estiver mesmo se movendo, dr. Bowers? E se o infrator for um viajante, vamos dizer assim? Ele dirige até a cidade, comete seu crime e então retorna para sua casa no subúrbio logo após. Isso é possível, não é? E isso faria o perfil geográfico ser completamente inútil, ou, na melhor das hipóteses, impreciso, correto?

Eu já tinha ouvido todas essas objeções antes, lidado com elas em profundidade no meu livro, abordado algumas delas anteriormente nos procedimentos durante a análise de Emilio.

– Assim como qualquer técnica investigativa, a criação de perfis geográficos tem suas limitações.

A srta. Eldridge-Gorman abriu a boca, mas antes que ela pudesse responder, eu adicionei:

– Mas é assim com qualquer método. Antes de comparar DNA você precisa encontrar algum DNA. É o mesmo com análise de impressões digitais, ou de cabelo, ou de marcas de mordida.

Após uma rápida tomada de fôlego, continuei:

– Nos softwares mais avançados de criação de perfis geográficos, estamos eliminando alguns dos problemas que você acabou de mencionar. Nós incluímos análises de movimento espaço-temporal que calculam o centro médio dos crimes baseado na sequência dos crimes e não apenas no local. Isso nos ajuda a ver se o ponto de ancoragem dos crimes está mudando. Topografias temporais virtuais aprimoradas revelam as mudanças sincrônicas e diacrônicas de padrões de crimes dentro de localidades especificadas. Além disso, adicionamos um modelo Bayesiano que incorpora as pesquisas atuais sobre...

Percebi os olhos vidrados dos membros do júri.

Oh. Isso foi ótimo, Dr. CDF. Brilhante.

Talvez eu devesse ter tratado do uso das estatísticas multivariadas também. Isso teria sido bom. Ou análise de densidade espacial e o uso de rotinas suavizadoras para reduzir os efeitos das barreiras psicológicas associadas a mapas mentais. Tenho certeza de que isso teria impressionado também.

Priscilla parecia satisfeita por ter me induzido a usar jargão técnico.

– Então, em termos leigos – ela disse –, você tem melhorado a tecnologia e refinado seu método desde a prisão de meu cliente há 13 anos.

– Correto.

– Então você admite que quando meu cliente foi preso, sua estratégia investigativa precisava de melhorias.

– Não é exatamente isso...

Um leve sorriso.

– De volta à minha pergunta. Se essa técnica só funciona com um infrator que possui um ponto de ancoragem estável ou uma moradia-base – ela levantou as mãos em uma demonstração dramática de espanto –, como você sabe que ele não é um viajante antes de pegá-lo? – então ela me deu um sorriso de mentira. – A resposta é: você não sabe, não é, dr. Bowers?

– Não...

– Então, suas conclusões podem ser completamente...

Eu estava cansado daquilo.

– Toda investigação é um processo global. Você continuamente avalia as provas e revisa sua estratégia investigativa quando necessário – minha voz havia ficado severa, argumentativa, e isso provavelmente era o que ela estava tentando conseguir. Tentei diminuir o tom. – A criação de perfis geográficos é apenas uma faceta de uma investigação bem-feita.

Quando disse as palavras “investigação bem-feita”, olhei novamente para as evidências colocadas na mesa. A blusa rosa desbotada de Juanita Worthy, salpicada de manchas escuras... o bisturi que Richard Devin Basque estava segurando quando o prendi... as fotos ampliadas da Asso-ciated Press das 16 vítimas conhecidas... um mapa do Meio-Oeste com as localidades de cada crime marcadas com tachinhas vermelhas... uma machadinha ainda manchada de sangue...

A srta. Eldridge-Gorman continuou, mas as evidências haviam tomado minha atenção e eu estava ouvindo-a apenas parcialmente.

– Não é verdade – ela estava andando de um jeito teatral na frente do júri – que quando você estava investigando os crimes para os quais meu cliente era... – ela hesitou, procurando pela frase correta – uma pessoa de interesse... que você comparou o horário dos crimes com os horários de trabalho dos suspeitos para tentar diminuir a relação de suspeitos?

Voltei minha atenção para ela.

– Sim. A natureza desses crimes exigia que o infrator estivesse presente enquanto ocorriam.

Mas na minha cabeça, eu estava pensando nos itens sobre a mesa, agora removidos dos sacos plásticos de evidência: a Smith & Wesson Sigma com a qual Basque atirou em mim... a chave do freezer do matadouro onde ele havia mantido quatro dos pulmões das mulheres...

Alguma coisa no posicionamento das evidências sobre a mesa não parecia certa.

– Dr. Bowers – Priscilla Eldridge-Gorman atravessou a sala do tribunal em minha direção –, você acha que a justiça é feita quando um homem é condenado por assassinato em primeiro grau baseado em seus dias de folga do trabalho?

Ela estava distorcendo minha pesquisa, tentando fazê-la soar ridícula. E mesmo eu não acreditando que júri algum daria crédito à linha de questionamento dela, pelo jeito que os jurados estavam me olhando, parecia que pelo menos alguns deles dariam.

A sala ainda não havia esquentado.

Ainda estava fria.

As evidências.

Algo com as evidências.

– Dados os horários e os locais dos crimes – eu disse –, os horários do sr. Basque teriam permitido que ele estivesse presente no local de cada um dos assassinatos.

A srta. Eldridge-Gorman segurou uma pasta de arquivo.

– E assim também poderiam estar seis outros empregados da firma de aquisições onde ele trabalhava – ela bateu a pasta na mesa, fazendo um barulho alto. – Eu verifiquei. E essa é apenas uma companhia. Milhares de pessoas poderiam ter cometido aqueles crimes.

A mensagem gravada no Colorado disse: “Vejo você em Chicago”.

Será que o assassino de Heather Fain e Chris Arlington estava na sala

do tribunal?

Deixei meus olhos se distanciarem da mesa de evidências e irem para os rostos das pessoas na sala, mas Priscilla Eldridge-Gorman andou até a minha frente, bloqueando minha visão.

– Você realmente testemunhou meu cliente atacando Sylvia Padilla? Um dos homens na galeria fez contato visual comigo e então rapida mente olhou para outro lado.

– Não. O sr. Basque estava inclinado sobre o corpo dela quando cheguei. O homem estava usando uma faixa preta no braço, o que significava que ele era um membro da família de uma vítima. Mas qual delas? Qual vítima?

– Então você admite – a srta. Eldridge-Gorman disse – que é possível que meu cliente tenha ouvido os gritos de Sylvia Padilla, foi oferecer ajuda, como qualquer cidadão consciente faria, e estava se inclinando para ajudar a pobre mulher quando você correu na direção dele – ela olhou para mim com simpatia. – Sem dúvida com a simples intenção de cumprir seu dever como um oficial da lei, e então quando você mirou sua arma nele, ele compreensivelmente temeu por sua vida e foi forçado a se defender atirando com sua arma legalmente registrada. Isso é possível, não é?

– Ele estava segurando o bisturi.

O homem com a faixa no braço ainda estava evitando o contato visual.

– Meu cliente encontrou-o caído sobre o peito da mulher e removeu-o para que pudesse ajudar a parar o sangramento.

Senti minha paciência me abandonando novamente.

– Ele caçoou dela quando ela morreu.

Ela levantou uma pasta de arquivo.

– De acordo com o relatório de polícia que você preencheu, meu cliente disse: “Parece que vamos precisar de uma ambulância, detetive”. E então: “Parece que não vamos precisar daquela ambulância, afinal”. Ele estava simplesmente mostrando preocupação por ela.

Aquilo era ridículo.

Mentalmente visualizei os rostos dos membros das famílias das víti mas. Fazia 13 anos, e o homem que eu observava estava ocultando o rosto, olhando para o relógio.

Se eu conseguisse uma vista desobstruída do seu rosto...

– Dr. Bowers – Priscilla disse, novamente interrompendo minha linha de raciocínio. – É possível que você tenha capturado o homem errado?

– Tenho certeza de que acertamos...

– Mas é possível?

– É possível – eu disse impacientemente. – Sim.

O homem com a faixa no braço finalmente olhou na minha direção. Sim. Eu o reconhecia. Ele era o pai de Celeste Sikora, a penúltima vítima conhecida, uma das mulheres que eu poderia ter salvo se tivesse desvendado as coisas um pouco mais rápido.

– Mas – eu disse, elaborando minha resposta, tentando calar a frustração crescente na minha voz –, como eu disse há pouco, todas as investigações lidam com probabilidade, e não certeza. Nós não vivemos em um mundo perfeito. Não é pedido ao júri para determinar a culpa de uma pessoa com absoluta certeza, mas sim para além de qualquer dúvida razoável...

– Estou ciente dos requisitos legais da jurisprudência americana, dr. Bowers.

Sim, o pai de Celeste, Grant.

Ex-militar. Eu me lembro porque ele reagiu tão violentamente quando o informei que os ferimentos da filha foram fatais que ele teve de ser sedado.

O julgamento, Pat. Concentre-se no julgamento.

– Mas como eu estava dizendo... – continuei falando, mas minha atenção estava dividida. – As evidências apoiam fortemente a conclusão de que Richard Basque era...

– Dr. Bowers – a voz dela ficou gelada –, você agrediu fisicamente o meu cliente?

A sala girou ao meu redor. Tonto. Um redemoinho de cores. Então tudo se focalizou.

Ela diminuiu o espaço entre nós.

– Lá no matadouro, após ele ter sido algemado.

Então Basque contou a ela. Ela sabe.

Grant Sikora olhou para o relógio na parede. Uma gota de suor bri lhou em sua testa.

Você jurou contar a verdade, toda a verdade e nada além da verdade.

– Você quebrou a mandíbula de Richard Basque com o punho? – ela perguntou. – Você o agrediu após ele estar algemado?

Você não pode deixar Basque escapar. Você sabe disso, Pat. Você não pode admitir que bateu nele.

O tempo desacelerou.

Suor? Por que Sikora está suando?

Olhei de Grant Sikora para Priscilla. Além dela, vi Basque sorrindo,

como se o momento pelo qual ele estava esperando todos esses anos tivesse finalmente chegado. Se eu falasse a verdade, ele poderia escapar, mas se eu mentisse, estaria cometendo perjúrio e indo contra tudo pelo qual eu havia trabalhado todos esses anos.

Outra gota de suor se formou na testa de Sikora.

Está frio demais na sala do tribunal para se estar suando. Frio demais. A menos que...

– Dr. Bowers! – a srta. Eldridge-Gorman havia parado na minha frente e agora plantava as mãos na cintura, seus dois cotovelos protuberantes como asas. – Você está tendo problemas para se lembrar daquela noite no matadouro?

Grant Sikora começou a seguir discretamente o caminho na direção da passagem lateral. Não é incomum pessoas saírem de um tribunal enquanto um julgamento está acontecendo, então ninguém mais pareceu perceber. Os olhos dele estavam cravados em mim.

A mesa de evidências.

A machadinha... a faca... a pistola... uma arma... ele está atrás de uma arma?

– Vou perguntar uma última vez – suas palavras eram como pedras frias caindo uma por uma sobre a sala imóvel. – Você agrediu fisicamente Richard Devin Basque após ele estar sob sua custódia no matadouro?

Nada além da verdade.

Responda a ela, Pat. Você tem de responder a pergunta.

Meus olhos passaram pela mesa de evidências, analisando, exami nando o posicionamento dos itens. Reparei no furo de segurança da Sigma, a pequena ranhura que permite ao operador observar a capa de bronze das balas se houver alguma emperrada.

A voz da srta. Eldridge-Gorman soou:

– Juiz Craddock, por favor, ordene à testemunha que responda! Dentro do furo de segurança vi um brilho da cor de bronze...

– Dr. Bowers, eu o aconselho a responder a pergunta da defesa. Aquele brilho poderia significar apenas uma coisa.

A srta. Eldridge-Gorman levantou as mãos.

Aquela arma estava carregada.

– Você vai responder à pergunta da defesa? – o juiz disse. Sikora está atrás da arma!

– Não – murmurei.

– Não? – o juiz gritou.

Grant Sikora chegou à passagem lateral e correu na direção da mesa de evidências.

Você não pode deixá-lo pegar a arma.

Impeça-o, Pat. Você tem de impedi-lo!

Agarrei o corrimão da bancada de testemunhas e me lancei por sobre a borda.


12

Meus sapatos escorregaram quando pousei. Bati no chão e quando consegui me levantar, a mão de Grant Sikora havia encontrado a arma.

Os três segundos seguintes pareceram durar uma eternidade e tudo aconteceu de uma só vez.

Corri na direção dele. O tempo ruiu e então se expandiu. Uma série de pensamentos terríveis percorreram minha mente. A arma está carregada. Ele é o pai de Celeste. Ele vai atrás de Basque.

Sikora ergueu a arma e os dois policiais de guarda na porta principal da sala do tribunal sacaram suas armas.

Eu instintivamente procurei por minha SIG. Encontrei apenas o coldre vazio.

Por toda minha volta, sons irreconhecíveis, palavras elásticas que de algum modo desaceleraram-se enquanto se moviam pelo ar entre os vincos do tempo. Gritos... berros... o movimento frenético de pessoas buscando proteção... Me senti como em uma cena de um filme onde as balas deslizam em câmera lenta pelo ar, só que dessa vez a bala ainda não havia sido atirada. E eu tinha chance de pará-la.

O juiz havia desaparecido atrás da mesa e Richard Basque havia levantado de seu assento e se virado na direção de Sikora. Imóvel como a morte, ele assistiu Grant girar a pistola em direção aos policiais que estavam gritando com ele para largar a arma.

Pelo canto dos olhos vi Ralph a caminho do atirador, atropelando uma multidão de pessoas sentadas na galeria. Mas eu estava mais perto. Muito mais perto.

A voz estridente de Priscilla Eldridge-Gorman atravessou a sala dizendo para Basque se abaixar. Abaixe-se! Ela se jogou para debaixo da mesa, mas ele não se moveu. Apenas ficou firme e imóvel.

Eu estava quase em Sikora.

Os dois policiais ergueram suas armas. Um deles atirou e a bala zum biu pelo meu rosto e arrebentou o corrimão de madeira da bancada de testemunhas atrás de mim.

Alcancei Sikora, mas antes que eu pudesse agarrá-lo ele atirou, e um dos policiais sofreu um arranque para trás e com um grito agudo caiu no chão. A policial feminina que havia fechado as portas da sala do tribunal mais cedo hesitou, olhando rapidamente para seu parceiro.

Grant Sikora olhou para o cano da arma, parecendo aturdido por ter realmente puxado o gatilho.

E, então, cheguei até ele.

Agarrei seu braço e busquei a arma, mas ele se desvencilhou, girou e a levantou até meu rosto.

– Saia da frente.

O tempo alcançou a realidade e congelou. Eu já tive armas apontadas para meu rosto antes, mas não importa quantas vezes isso acontece, você nunca se acostuma. Senti meu coração martelando contra meu peito. Calma, Pat. Calma. Levantei as mãos para mostrar que eu não era uma ameaça.

– Largue sua arma! – a policial que não havia sido atingida gritou. Só então percebi que eu estava em sua linha de fogo. Ela não tinha uma visão desimpedida de Sikora, apenas de mim.

Pelo canto dos olhos eu podia ver o outro policial caído no chão, o sangue do ferimento à bala ensopando a manga de sua camisa, mas era apenas seu braço. Não parecia letal. Isso é bom. Vai nos fazer ganhar tempo.

– Largue a arma!

– Cale a boca – Grant berrou. – Todos calem a boca! – ele deu um passo na minha direção. O policial no chão estava lentamente sacando sua arma. – Larguem suas armas – Sikora gritou para os policiais. – Ou o agente do FBI morre.

Três metros à minha esquerda, Ralph silenciosamente posicionou-se ao lado da mesa do promotor. Todas as outras pessoas, com exceção de

Basque, ou estavam deitadas no chão ou ajoelhavam-se abaixadas. Algumas pessoas espiavam sobre as bordas das cadeiras e mesas para assistir aos acontecimentos. Nenhum dos policiais largou a arma. Basque ainda estava parado, calmamente assistindo tudo acontecer.

– Larguem as armas! – Grant gritou. – Joguem todas para cá!

Vi o dedo dele no gatilho e senti meu coração se contorcer. Ele nunca erraria dessa distância. De jeito nenhum.

– Larguem as armas! – Ralph ordenou. – Agora!

Sikora não pareceu se importar que mais alguém tenha gritado aque las palavras, ele apenas manteve os olhos grudados em mim. Manteve a arma imóvel.

Os dois policiais avaliaram a situação por um momento e finalmente ambos lançaram suas armas em nossa direção.

– Ninguém mais se mexe! – Sikora gritou, então olhou na direção de Ralph. – E você, afaste-se. Agora!

– Calma – Ralph ergueu a mão e deu um passo para trás, na direção da parede. – Estou me afastando, ok?

– Mais longe!

– Já estou – mais um passo.

– Continue.

Dois passos.

Sikora olhou para a policial de pé ao lado do parceiro.

– Saiam pela porta! Ninguém entra aqui. Se alguém tentar, qualquer um que for, se aquela porta se abrir, Bowers morre – ele balançou a cabeça para a esquerda. – O oficial de justiça e o juiz vão com ela. Agora!

Após um momento, o juiz apareceu atrás de sua mesa, onde esteve escondido. Seu rosto estava marcado pela raiva, mas não disse nada. Ele e o oficial de justiça seguiram a policial pela porta, e então a fecharam atrás deles.

Ralph e eu ainda tínhamos uma chance de consertar as coisas, mas apenas se conseguíssemos chegar perto o suficiente de Sikora para derrubá-lo, mas para fazer isso eu precisava concentrar a atenção do homem em mim.

– É Grant, né? – eu disse. – Seu nome é Grant Sikora? Conheci você após a morte de sua filha.

Ele olhou para mim, sem responder. Respirou duas vezes agitadamente.

Apontei.

– O policial em quem você atirou, ele vai ficar bem – eu falava lentamente, tentando acalmá-lo. – Acabe com isso agora. Eu entendo que você está nervoso...

– Não.

– Você tem direito de estar nervoso...

– Não!

– Mas atirar em pessoas não vai ajudar a...

– Quieto! – havia raiva em sua voz, mas o queixo estava tremendo. Uma lágrima escapou pelo canto do olho.

Ele está arrependido, muito arrependido.

– Ninguém mais precisa se machucar – me inclinei na direção dele. – Você não é um assassino.

Ele balançou a cabeça violentamente.

– Ele a matou. Ele matou minha Celeste.

Tem outros agentes aqui? Onde eles estão?

Sikora gritou para além de mim, na direção de Richard Basque:

– Você matou minha filha, seu filho da...

– Ela acreditava? – perguntou Basque, interrompendo Grant.

– O quê?

– O Senhor disse que aqueles que vivem e acreditam Nele nunca morrerão. Sua filha acreditava?

– Cale a boca – Grant estava tremendo, tomado pela tristeza e pelo ódio. – Cale a boca, cale a boca, cale a boca!

Seus olhos travaram em Basque novamente. Ele havia tomado sua decisão.

Moveu a arma na direção do homem que havia torturado, matado e devorado sua filha.

Minha chance. Minha única chance.

Agora ou nunca.

Agora.


13

Atirei-me na direção de Sikora e agarrei a arma, travando os dedos em torno de seu pulso e girando ao mesmo tempo. Puxei o cano para longe da direção da multidão e apontei para a parede vazia do lado norte. E dessa vez, garanti que Grant Sikora não pudesse me empurrar.

Ele deve ter escorregado o dedo do gatilho porque a Sigma não disparou. Com a força movida pela adrenalina, ele tentou se livrar de mim novamente. Torci o braço dele para trás, tentando controlá-lo, desarmá--lo, mas com sua outra mão ele agarrou algo da mesa de evidências e acertou-me do lado; um calor de esmagamento, uma rajada de dor me atravessou e imaginei se não teria me quebrado uma costela.

Com o que quer que ele tinha me batido, Grant me acertou do lado novamente, mas eu não iria soltar.

Um rápido movimento – Ralph no caminho em nossa direção, mas demoraria alguns segundos até que ele pudesse me ajudar.

Então percebi que Grant estava segurando a machadinha que Basque havia usado em três de suas vítimas. Felizmente, ele só havia conseguido acertar o cabo em mim, e não a lâmina, mas ainda assim, doía o suficiente para que eu perdesse o fôlego.

Quando ele rumou para acertar o cabo da machadinha em mim novamente, prendi a respiração e acertei seu antebraço, mandando a machadinha para o chão.

Agora, a arma.

Nós estávamos nos encarando com a Sigma entre nós. Enquanto lutávamos por ela, Grant girou e caímos sobre a bancada de testemunhas.

– Largue a arma! – Ralph virou a mesa de evidências, espalhando o que estava sobre ela. Correu em nossa direção.

O rosto de Grant Sikora estava cheio de determinação e percebi que se Basque tivesse assassinado alguém que eu amava, eu estaria tão determinado quanto ele, com tanto ódio quanto ele.

– Ele... – seus dentes estavam cerrados pelo esforço de lutar comigo, mas ele conseguiu falar mesmo assim. – Ele... a... matou.

– Por favor – eu disse. Minha lateral estava latejando tanto que era difícil respirar. – Não...

– Ele a devorou – Grant disse. – Devorou minha Celeste...

Senti o cano da arma sendo pressionado contra minhas costelas machucadas. Tentei afastá-la, mas Sikora pendeu para o lado. As solas de seus sapatos escorregaram e juntos trombamos com a parede.

Foi quando a arma disparou.


14

Tudo pode mudar em um instante.

Senti o coice da arma passando pelo meu braço e acertando meu ombro. Então é isso.

O tempo acelerou.

Após todos esses anos, isso termina assim.

Esperei a dor do impacto da bala tomar conta de mim.

Não senti nada.

E então vi o rosto do sr. Sikora.

Não.

Seus olhos perdendo o foco, seu aperto em meu braço ficando fraco. Não, por favor, não!

O líquido quente se espalhou pelo meu abdômen, mas o ferimento não era meu.

Ralph estava do meu lado.

– Chamem uma ambulância – eu disse. Ele apalpou os bolsos procurando seu telefone enquanto eu colocava o sr. Sikora no chão deitado de costas.

Depois de tirar a arma da mão dele e jogá-la para longe de nós, apoiei sua cabeça gentilmente enquanto aplicava pressão sobre o ferimento à bala com a outra mão.

Mas eu não podia estancar o sangramento.

– Não o deixe... – Grant tossiu, lutando para respirar.

Eu queria dizer a ele que tudo ia ficar bem, que ele não precisava se preocupar, que o tiro não tinha sido perigoso, mas não sou bom mentiroso.

– Relaxe – eu disse suavemente. Nada além da verdade. – O socorro está chegando.

Ele puxou o ar engasgando, mas não disse nada.

O sangue no peito de Grant era espumoso e brilhante, o que queria dizer que a bala tinha acertado seu pulmão, possivelmente raspado em seu coração. Mesmo que os paramédicos chegassem nos próximos minutos, não achava que ele sobreviveria.

– Os paramédicos estão chegando – eu disse. Considerando a mensagem gravada no Colorado e a forte segurança aqui, duvidei que ele mesmo tivesse carregado a arma. – Quem carregou a arma para você, Grant?

Ele lutou para respirar.

– Ar....

– Eles estão vindo. Me diga um nome. Quem foi?

Ele engoliu, respirando com muita dificuldade.

– Você precisa pegar... ar...

Quatro policiais entraram com tudo pela porta e nos cercaram. Um deles pegou a S & W do chão, os outros três miraram as armas para o rosto do sr. Sikora.

– Afastem-se – eu disse. – Deem espaço para ele.

Eles hesitaram.

– Afastem-se!

Quando recuaram, Grant Sikora me puxou para perto.

– Por favor – ele tossiu e borrifou um pouco de sangue na minha bochecha. Eu tinha certeza de que era o único que podia ouvi-lo.

– Prometa-me que você não vai deixá-lo fazer isso de novo.

– Grant, você precisa...

– Prometa-me – urgência. Desespero. – Por ela. Por Celeste.

Eu precisava dizer algo.

– Eu prometo – eu disse suavemente. – Eu prometo que não vou deixá-lo fazer novamente. Agora, por favor, diga-me quem carregou a arma. Um nome.

Mas ele não me ouviu concluir meu pedido. Enquanto eu falava, ele fechou os olhos, sua mão caiu do meu braço e Grant Sikora morreu.

Não!

Se fôssemos tentar trazê-lo de volta, eu precisava manter seu sangue circulando. Comecei a fazer compressões no peito, mas após alguns minutos, quando os paramédicos ainda não haviam chegado, senti a presença de Ralph ao meu lado, sua mão no meu ombro.

– Ele se foi – a voz de Ralph era o mais gentil possível. – Pat – ele se ajoelhou ao meu lado e colocou a mão no meu ombro. – Ele se foi.

Eu continuei. Talvez ele estivesse errado.

Mais duas compressões, mais três, mais quatro, mas não eram sufi-

cientes, nunca seriam suficientes. Uma equipe de paramédicos entrou na sala do tribunal e quando assumiram as tentativas de reviver Grant, eu me inclinei para trás, sem fôlego. Meu coração estava acelerado.

Tentei relaxar, acalmar minha respiração, mas parecia não conseguir.

Pela sala do tribunal, os espectadores e membros do júri estavam emergindo de seus esconderijos. Richard Basque estava próximo, me observando. Seus olhos profundos e tocantes me encontraram, fizeram uma varredura, uma mistura psicopata de frieza e calor.

– Obrigado, dr. Bowers – ele falou alto o suficiente para que eu ouvisse, então deixou um sorriso tomar seus lábios. – Devo minha vida a você.

Chega.

Levantei-me e fui na direção dele.

Dessa vez foi a hora de Ralph me segurar.

– Esquece isso, Pat – lutei para me livrar, mas ele não me soltou. – Como você disse antes, assim não.

– Eu estou bem.

Tentei tirar as mãos dele de mim. Finalmente, ele soltou por conta própria e estudou meu rosto.

– Eu estou. Estou bem.

– Isso é bom – ele disse suavemente. – Porque agora você precisa mesmo estar. – Ele se manteve perto de mim.

O corpo e o sangue.

Ainda tenso. Ainda com raiva.

Os paramédicos estavam usando um desfibrilador em Grant, mas pela cara do chefe dos paramédicos, dava para ver que esse era um paciente que eles não esperavam conseguir trazer de volta.

Um pai de luto estava morto, um assassino sem remorso estava vivo e eu havia feito uma promessa que não tinha certeza se poderia cumprir.

Tudo pode mudar em um instante.


6 minutos depois

Giovanni observou a ambulância sair do tribunal.

Por estar ouvindo o rádio da polícia, ele sabia que a ambulância carre gava o corpo de Grant Sikora em vez de Richard Basque. E ele tinha usado suas credenciais para descobrir de um dos delegados fora do prédio que o agente especial Patrick Bowers era quem o havia impedido.

Bem.

Giovanni esperava, é claro, que Sikora fosse levado dali dentro de um saco preto, mas ele pensou que, com o passado dele como sargento de artilharia dos Fuzileiros Navais, ele seria capaz de completar sua missão primeiro. De todos os membros de família das vítimas, ele tinha sido a melhor escolha.

Mas ele não havia sido bom o suficiente para passar por Bowers, o que pelo menos confirmou o que Giovanni já suspeitava – que o agente especial Bowers era a escolha perfeita para a história número dez.

Parecia que uma pequena mudança de planos aconteceria.

Hora de voltar para Denver.

Para contar o conto número cinco.


15

A lateral do meu corpo doía.

Meu coração doía.

E Grant Sikora não sobreviveu.

Ele foi dado como morto ao chegar ao St. Francis Medical Center 30

minutos atrás. O policial em quem ele atirou precisaria de férias e fisioterapia para se recuperar, mas voltaria a usar normalmente o braço, então parecia que mesmo uma tragédia tendo acontecido, uma outra fora evitada.

Duas, se você considerar Basque escapando com vida.

A sala do tribunal onde estávamos havia se tornado uma cena de crime, por isso o oficial de justiça tinha levado os jurados para a sala do júri e todos os membros da mídia e parentes das vítimas haviam sido conduzidos para o saguão. A equipe médica e o pessoal da polícia, além de algumas pessoas como eu mesmo, que estiveram envolvidas no julgamento, foram movidos para uma sala menor do outro lado do corredor.

Localizei um dos detetives da polícia de Chicago e dei a ele meu depoimento, porém, com mais de uma centena de testemunhas na sala do tribunal, não havia muita ambiguidade sobre o que havia acabado de acontecer.

Mesmo não sendo a hora ou o lugar para conversarmos sobre todos os problemas que precisávamos discutir, após eu ter estado tão perto de ser atingido por um tiro, senti a necessidade de conversar com Lien-hua, de ouvir sua voz. Disquei o número dela, mas ela não atendeu.

Decidi não deixar nenhuma mensagem.

Deixei minha camisa, ainda ensopada com o sangue de Grant Sikora, com dois investigadores, e enquanto Ralph foi procurar Calvin para pegar uma troca de roupa na minha mala, no porta-malas do carro, pedi para um dos paramédicos dar uma olhada nos ferimentos na lateral do meu corpo.

Um exame rápido foi suficiente.

– Você vai precisar de um raio X para ver se as costelas estão quebradas – ele disse.

Eu não era novo em brigas, então já sabia que o tratamento para costelas machucadas e costelas quebradas era praticamente o mesmo: mantê-las presas com gaze, evitar esforços e tomar muito analgésico. Concluí que esperaria para ver o quanto elas me incomodariam antes de fazer um raio X.

– Obrigado – eu disse.

Ele enrolou confortavelmente uma gaze em volta do meu peito e me deu um saco de gelo para reduzir o inchaço.

– Cuide disso, ok?

– Cuidarei. – Quando ele foi embora, vi Ralph se aproximando, me trazendo uma camisa limpa e uma calça jeans. Aceitei as roupas, agradeci a ele e fui procurar um banheiro para me limpar e me trocar.

Alguns minutos mais tarde, quando estava afivelando meu cinto, meu telefone tocou e imaginei que Lien-hua deveria ter visto minha chamada perdida. Atendi. – Oi.

– Alô, Pat? – era a detetive Cheyenne Warren. – Fiquei sabendo do que aconteceu aí. Estou feliz por você estar bem.

– Somos dois, então – percebi que não fiquei desapontado por ser Cheyenne em vez de Lien-hua.

Ela foi direto ao assunto.

– Parece que não foi Taylor que deixou a gravação na mina.

– O quê? Como você sabe?

– Nós o encontramos hoje de manhã, morto, junto de sua mulher. Devo dizer que só achamos que é uma mulher. É difícil dizer.

Suas palavras só poderiam querer dizer uma coisa.

– Desmembrada?

– Sim. O assassino deixou-a na água na represa do Parque Estadual Cherry Creek. Porém, matou-a na casa de Taylor; nós comparamos o sangue nos dois locais.

Digeri suas palavras enquanto retornava para a sala do tribunal.

– Taylor tinha uma casa na região de Denver?

– Nas montanhas. Perto de Evergreen. Foi onde ele foi decapitado, não antes de ser torturado. Ainda estamos procurando a cabeça.

Inacreditável.

Os envelopes haviam sido todos enviados de dentro da área metro politana de Denver, então eu suspeitava que Taylor poderia estar vivendo na região, mas ainda assim, era desconcertante ouvir que ele havia estado tão perto de nós e nós não o encontramos.

– Suspeitos? – perguntei.

– Ainda não.

Eu estava pensando em tudo que ela havia acabado de me contar quando o oficial de justiça conduziu os jurados até a sala. Eu só tinha tempo para algumas perguntas rápidas.

– Além dos desmembramentos – perguntei –, existe alguma evidência ligada à morte de Heather Fain?

– Nenhuma evidência física ainda, mas houve uma denúncia anônima, do mesmo jeito que com o corpo de Heather.

O juiz Craddock e os dois advogados principais emergiram da entrada do juiz.

Tentei pensar em algum criminoso com o qual eu já houvesse me deparado que poderia ter encontrado, subjugado e assassinado Taylor, mas nenhum veio à mente.

– Mais alguma coisa?

– Nós vamos até a casa de Taylor de manhã para terminar de analisar a cena. Cedo: 7 da manhã. Fica a meia hora do centro da cidade; talvez você possa ir de carona comigo, para reduzir nossa emissão de carbono.

Normalmente, me irrita quando as pessoas tentam soar “sustentáveis” e “verdes” usando o clichê da “emissão de carbono”, mas vindo de Cheyenne, parecia natural.

– Eu iria – eu disse –, mas não devo chegar em Denver antes do meio--dia de amanhã.

– Então mude seu voo. Volte hoje à noite.

Era uma possibilidade.

Suspeitei que o juiz fosse pedir a anulação do julgamento, mas só

saberia em alguns minutos.

– Vou mudar se eu conseguir. Eu te ligo de volta quando souber mais.

– O juiz Craddock colocou-se atrás de sua mesa e pediu ordem. Eu preci-

sava sair do telefone. – Faça-me um favor. Mande uma mensagem para o agente Ralph Hawkins por mim. Informe-o sobre o assunto.

– Tudo bem.

Dei a ela o número de Ralph, finalizei a ligação e desliguei o celular.

Após todos terem tomado seus lugares, o juiz Craddock encarou os jurados e limpou a garganta.

– Esse incidente envolvendo o sr. Sikora não é de nenhuma relevância para o julgamento em questão. Estamos conduzindo um julgamento que diz respeito ao réu Richard Devin Basque, e não a esse homem que acabou de tentar matá-lo. Se for permitido que esse evento perturbe o processo judicial, nosso sistema de justiça se tornaria muito frágil e facilmente manipulável, deixando de ser eficaz. – Ele respirou profundamente. – Portanto, considerando todos esses fatores, não pedirei a anulação do julgamento. Vocês ficarão isolados até segunda-feira. Sem meios de comunicação. Sem contato externo. Durante o fim de semana forneceremos psicólogos independentes apontados pela corte para conduzir, sem qualquer custo, sessões de aconselhamento confidencial para qualquer membro do júri que desejar discutir seus sentimentos em relação ao ocorrido. Retomaremos os procedimentos segunda-feira às 9 horas em ponto, quando o dr. Bowers retornará para a bancada.

Eu mal podia acreditar em suas palavras, e pelo olhar dos membros do júri, nenhum deles acreditava também. Eu não tinha certeza do que seria normal em uma situação como essa, mas retomar o julgamento na segunda-feira...

– Não vou deixar esse evento atroz descarrilar o processo judicial. Não no meu tribunal – ele passou os olhos por cada um dos membros do júri. – Esse julgamento vai avançar. Vamos continuar e chegar a um veredicto, e a justiça será feita.

Mesmo estando surpreso por sua decisão, quanto mais eu pensava sobre ela, mais entendia sua lógica. As ações de Grant Sikora não eram o assunto ali e não deveriam afetar o resultado do julgamento. E quanto mais esperássemos, mais provavelmente os jurados lembrariam do atirador e esqueceriam dos detalhes do julgamento.

Esperei que a srta. Eldridge-Gorman se opusesse à decisão do juiz, o que realmente fez, com bastante veemência. Ela certamente apelaria se Basque fosse condenado, e o Estado faria o mesmo se ele fosse absolvido. Que bagunça.

– Objeção negada – o juiz Craddock guinchou. – Dispensados! – ele bateu o martelo, levantou-se e já tinha tirado metade de sua veste quando entrou em sua sala.

Assim como eu, o júri deve ter pensado que ele pediria a anulação do julgamento, pois ficaram sentados em silêncio, chocados, a maioria deles com o olhar perdido na direção da porta da sala do juiz, que agora estava se fechando lentamente.

Tirei um momento para pensar.

Eu realmente queria dar uma olhada na cena do crime onde Taylor havia sido morto. Ainda não eram nem 17h, assim eu provavelmente conseguiria pegar um voo mais cedo e ainda chegar em casa hoje à noite, e, então, voltar para Chicago domingo à noite.

Uma ligação rápida para a companhia aérea me informou que havia um voo que chegaria em Denver logo após às 22h, e eu ainda tinha 90 minutos antes da hora de partida, de modo que, mesmo com o trânsito de sexta-feira, imaginei que daria certo.

Confirmei a reserva de assento e estava terminando a ligação quando a srta. Eldridge-Gorman atravessou a sala em minha direção. Ela chegou perto e falou em voz baixa, apenas para que eu ouvisse.

– Eu sei o que você fez no matadouro, dr. Bowers. Segunda-feira de manhã pedirei que você responda por desacato ao tribunal por se recusar a responder à pergunta de hoje.

Ela devia estar me testando para ver se eu diria algo que ela pudesse usar contra mim quando eu retornasse para a bancada na semana seguinte. Não respondi.

– Se você disser a verdade, o júri irá descartar seu depoimento e simpatizar com meu cliente – um terrível senso de satisfação permeava cada uma de suas palavras. – E se você mentir, cometerá perjúrio. De qualquer jeito, Richard será libertado, dr. Bowers, e graças a você.

Tudo havia repentinamente se tornado mais complicado ainda.

– Tenha um bom fim de semana, srta. Eldridge-Gorman – eu disse a ela.

– Terei – ela pegou sua pasta e me deu um meio sorriso. – E estou ansiosa para vê-lo segunda-feira.

Ela caminhou para longe e percebi que Ralph esteve nos observando. Ele veio até mim, e após ela estar fora do alcance de sua voz, perguntou:

– O que foi isso?

– Um mal-entendido – eu nunca havia contado a ele o que tinha acontecido no matadouro, e agora não era a hora de tratar daquilo.

Sua voz grave ficou mais baixa ainda do que o normal.

– Algo que você queira me contar, amigo?

Considerei minhas opções, sua amizade, o caso, meu futuro... e decidi deixar as coisas como estavam por enquanto.

– Não. Não é nada – gesticulei na direção da porta. – Você está saindo?

– Preciso dar uma declaração para a imprensa. Sendo o agente sênior no local... você sabe.

– Entendi.

Ele murmurou algumas palavras especiais sobre como estava animado em conversar com os repórteres. Quando parou para respirar, eu disse:

– Reservei um voo mais cedo. Preciso ir para o aeroporto.

– Falo com você amanhã.

Acenei com a cabeça, ele foi embora, e depois de pegar minha faca e minha SIG, fui na direção da porta dos fundos para evitar os parasitas da mídia em torno da entrada do tribunal. No caminho, liguei para Cheyenne e disse a ela que conseguiria me encontrar com ela às 7h na manhã do dia seguinte.

– Eu pego você na sua casa por volta das 6h30 – eu disse.

– Que tal se eu dirigisse? Quer dizer, a não ser que você tenha problemas com uma mulher no banco do motorista.

Eu tinha a sensação de que ela não estava apenas conversando sobre caronas, mas decidi não mexer com isso.

– Tudo bem. Você pode me pegar – só depois de dizer as palavras que percebi que elas continham pelo menos tanto duplo sentido quando as dela.

– Está ótimo pra mim – ela disse, um sorriso em sua voz. – Te vejo às 6h30.

Ela nunca havia ido até minha casa antes, então passei para ela meu endereço antes de desligarmos. Liguei para Calvin para avisar que eu pegaria um táxi para o aeroporto e que ele poderia ficar com minha mala até segunda-feira. Enquanto esperava que ele atendesse, saí pela porta dos fundos do tribunal.

Encontrei-o parado nos degraus, protegido da garoa por uma marquise ampla acima dele, vasculhando os bolsos, à procura de seu telefone que tocava.

– Oh, aí está você, garoto, estava esperando por você – ele encontrou o telefone, olhou para a tela e então para mim. – Devemos conversar pessoalmente ou pelo celular?

Olhei para ele.

– Como você sabia que eu estava vindo nessa direção?

– Eu sei o quanto você gosta de aparecer na TV. Venha comigo. Eu te dou uma carona para o aeroporto – ele ajeitou o casaco e saiu pela chuva.

Mas eu hesitei.

– Eu acabei de mudar meu voo, há menos de cinco minutos. Como você...?

– Meu garoto, eu não posso revelar todos os meus segredos – ele pegou as chaves do carro. – Venha comigo, tem algo que quero perguntar para você no caminho.


16

Por cerca de 20 minutos, Calvin enfrentou o tráfego sem falar. Talvez ele estivesse tentando me dar uma oportunidade de lidar com a morte de Sikora. Difícil saber.

A chuva estava parando, mas as nuvens se penduravam pesadas e cinzentas sobre nós. Eu sabia que o sol não ia se pôr por algumas horas, mas o dia já parecia estar caminhando para a noite.

Entramos na Kennedy.

Mais tempo se passou.

Um carro nos fechou e o motorista mostrou a Calvin um gesto bastante elaborado que eu havia visto apenas algumas vezes nas ruas de Nova York. Por um momento isso fez com que me lembrasse de quando vivi naquela cidade, e de Christie, a mulher que eu havia conhecido lá, pela qual havia me apaixonado, com quem havia me casado e que havia enterrado lá.

Morte.

Ao meu redor.

Tocando minha vida não importa onde fosse.

E agora essa semana, mais dela: as duas vítimas na quarta-feira, no dia anterior a eu me juntar ao caso... Heather Fain e Chris Arlington ontem...Sebastian Taylor e a mulher não identificada, e agora Grant Sikora...

Tanta morte em meu passado, em meu presente. Eu havia escolhido essa carreira, essa vida para mim, mas às vezes...

– Ouvi alguns dos repórteres conversando – Calvin disse suavemente, interrompendo meus pensamentos – enquanto você estava dando seu depoimento para a polícia. A mídia já está te chamando de herói, garoto. Eles querem dar a você uma medalha.

– Eu não sou herói, Calvin.

– Você salvou a vida de um homem.

– Quem? – isso era a última coisa sobre a qual eu queria conversar.

– Basque? Ele merecia morrer. Sikora merecia viver. Como isso faz de mim um herói?

Calvin pensou por um momento. Ele escolheu não responder, e eu senti que seu silêncio era algum tipo de contestação.

– Fiquei orgulhoso de você hoje – ele disse finalmente. – Orgulhoso de ter sido seu professor.

Suas palavras pareciam conclusivas, como se ele estivesse finalizando uma de suas palestras em vez de simplesmente estar comentando sobre o dia. Me senti desconfortável.

– O que está havendo?

Mais uma vez ele escolheu não responder, o que não era costume dele.

Agora, ele definitivamente tinha minha atenção.

Um caminhão de lixo na nossa frente expeliu um vapor de chorume.

Calvin passou para a pista da esquerda para ultrapassar.

O silêncio aumentava entre a gente, e finalmente, quando percebi que ele não iria responder minha pergunta, tentei adivinhar o que ele estava querendo falar comigo.

– Foi algo que eu falei na bancada que... – procurei pela palavra certa. – Que você achou impreciso ou não representativo de...

Ele balançou a mão no ar desdenhosamente.

– Não seja ridículo, garoto. Claro que não. Nada desse tipo – esperei que ele continuasse, mas novamente recebi apenas silêncio.

Eu nunca havia conhecido ninguém que escolhesse suas palavras mais cuidadosamente ou mais precisamente do que o dr. Calvin Werjonic, mas agora ele estava sendo evasivo. Eu não queria pressioná-lo, mas eu queria descobrir o que estava acontecendo.

– Patrick, governos quebram diariamente leis e tratados buscando defender os interesses de suas nações. E isso é necessário porque leis são estabelecidas para servir a algo maior do que eles mesmos.

– A justiça – eu disse.

– Sim.

Pensei nessas palavras à luz dos eventos do dia.

– Mas Calvin, a justiça é um problema para as cortes resolverem.

– Sim, sim, claro. A resposta correta. A resposta de livro.

Eu não havia reparado ainda, mas agora, sob o dia escurecido pelas nuvens, percebi que ele parecia frágil e cansado, como um poderoso penhasco finalmente cedendo à erosão do tempo.

– Mas não é a sua resposta?

– A busca pela justiça não leva a uma resposta, mas a um dilema: até onde alguém está disposto a ir para vê-la ser realizada? – Calvin passou de volta para a pista da direita.

Eu estava começando a ver como suas palavras poderiam estar relacionadas ao julgamento. Eu esperava estar errado.

– Nós não juramos dizer “a verdade, toda a verdade e nada além da verdade”? A justiça não é feita quando a verdade é censurada.

– Sim, precisamente.

Mais uma resposta surpreendente.

– Mas?

– Mas você percebeu que os advogados tanto da acusação quanto da defesa não são obrigados a fazer esse mesmo juramento? Em vez de jurarem dizer toda a verdade, é esperado que, digamos, eles façam o contrário. A obrigação legal deles é dizer apenas a versão da verdade que sustente seus casos. Apenas as testemunhas, e não os advogados, precisam jurar dizer toda a verdade. E ainda assim, como você percebeu há um momento, a justiça não é feita quando a verdade é censurada.

Eu não sabia o que dizer. O tráfego carregado se fechou ao nosso redor. Horário de pico.

– Nós perdemos de vista o objetivo, Patrick. Nosso sistema judiciário está mais preocupado com acusações e absolvições do que com a verdade ou a justiça. Você sabe que é verdade. Ficamos reticentes quando deveríamos admitir.

Ele estava certo nos dois casos: era verdade, e eu não gostava de admitir. Tanto a acusação quanto a defesa se prendem a evidências e testemunhas que apoiem seus casos. Se eles descobrissem provas que ajudariam o outro lado, eles não as colocariam em julgamento, mesmo que isso significasse impedir um homem inocente de ir para a prisão ou garantir que um assassino brutal fosse trancafiado na cadeia. É isso que acontece quando um sistema legal valoriza direitos individuais acima da busca pela verdade ou pela administração da justiça.

Calvin continuou:

– Mas ver a justiça sendo feita, não foi para isso que entramos nessa área em primeiro lugar? Isso não é mais importante do que ganhar um caso?

– Você não está justificando...

Um suspiro cansado.

– Eu tenho 76 anos, garoto. Eu não tenho tempo sobrando para justificar ou condenar, apenas para raciocinar e, enquanto for capaz, agir.

Era estranho ouvir Calvin dizer essas coisas. Com o passar dos anos, eu mesmo havia questionado aspectos do sistema judiciário, mas nunca havia articulado minhas desconfianças para ninguém.

– Sim – eu disse, voltando para a pergunta. – Foi por isso que entrei nessa área.

Estávamos nos aproximando da saída para o aeroporto O’Hare e senti que ainda não havíamos chegado ao ponto crucial de nossa conversa.

– Calvin, no tribunal você disse que queria me fazer uma pergunta.

– Sim, claro – ele disse. – Agora, por favor, entenda que eu tenho todo o respeito quando fizer referência à sua enteada no meu exemplo hipotético.

– Continue.

– Imagine que um homem está sendo julgado por agressão sexual de primeiro grau. Você é chamado como testemunha e você sabe que ele é culpado e que seu depoimento vai fazer a diferença no veredicto.

Comecei a me sentir desconfortável.

– Tudo bem.

– Porém, as evidências não são suficientes para uma condenação e você sabe que se você relatar apenas os fatos do caso, ele vai ser absolvido e vai atacar sexualmente Tessa, ou talvez outra garota da idade dela. No entanto, se você esconder a verdade em seu depoimento em relação à culpa dele, ele será condenado. O que você faria?

Essa situação hipotética não me deixou quase nenhum espaço de manobra.

– Assumindo que meu depoimento fosse o único fator decisivo – senti minha garganta apertada –, eu mentiria para protegê-la – finalmente, como uma lente entrando em foco lentamente, percebi o que Calvin estava dizendo e como isso se relacionava com os eventos anteriores no dia.

– Sim – ele acenou com a cabeça gentilmente. – Porque proteger os inocentes é mais importante do que qualquer outra coisa.

Ele virou a cabeça e olhou para mim. Apesar da idade, seus olhos estavam alertas e incisivos como nunca, e dessa vez ele foi direto ao assunto.

– Você acredita que Richard Basque é culpado daqueles assassinatos? Não havia dúvida na minha cabeça.

– Sim, ele é. E provavelmente mais do que sabemos.

– Eu revisei o caso, como você sabe. E estou convencido disso também. Chegamos à saída para o aeroporto. Calvin seguiu por ela.

Um pensamento.

Não, não poderia ser.

Mas talvez fosse.

– Calvin, você carregou a arma, não foi?

Ele balançou a cabeça negativamente.

– Desculpe-me por te decepcionar. Deve existir mais alguém por aí pensando do mesmo jeito que eu.

Talvez eu não devesse ter acreditado nele, mas acreditei. Afinal, alguma outra pessoa tinha matado Heather e Chris e havia deixado a mensagem provocativa na mina. Então, os comentários de Calvin poderiam significar apenas uma coisa:

– Você acha que eu não deveria ter impedido Sikora.

Ele foi rápido com a resposta.

– Não, não. Não estou questionando nada do que você fez. Acho que você fez a coisa mais nobre, uma coisa heroica.

– Mas não a coisa certa?

– Se você não tivesse reagido tão rápido como reagiu, duas pessoas estariam mortas em vez de uma. Eles não teriam levado o sr. Sikora com vida, você sabe disso.

Percebi que ele não havia respondido minha pergunta.

– Mas se você não está questionando o que fiz, o que você está fazendo?

– Me explicando.

Ele parou o carro na frente do Terminal 1.

– Do que você está falando?

Calvin deixou o carro em ponto morto.

– Há mais de cinco décadas eu conto a verdade e observo pessoas que eu sabia serem assassinos, estupradores e pedófilos serem libertadas – seus dedos tremeram suavemente. Ele os apoiou no volante, provavelmente para que eu não percebesse. Mas percebi. – E eles cometeram crimes novamente – ele disse. – Eles estupraram de novo, assassinaram de novo. Tantas vidas foram destruídas porque eu acreditava que se eu relatasse os fatos, a justiça aconteceria. Mas não acontecia. E agora, o sofrimento dos inocentes pesa demais sobre minha consciência.

Ele olhou para mim, um fogo acinzentado queimava em seus olhos, uma única e terrível lágrima escorria por sua bochecha.

– Talvez eu pudesse ter feito mais para ajudá-los.

– Mas talvez não.

– Verdade – ele reconheceu. – Mas mesmo assim, é tarde demais para mudar o que foi feito. Só podemos mudar o que é e o que será.

Um policial se aproximou do carro. Ou nós saíamos dali ou eu pegava minha maleta e ia para o balcão de check in. Eu poderia ter me identificado como agente federal, mas minha carteira estava na bolsa do computador no porta-malas e eu não queria ter todo esse trabalho. Eu só queria terminar aquela conversa.

– Você não tem mais certeza se fez a coisa certa ao ter falado a verdade todos esses anos.

Calvin olhou pela janela para a chuva. Seu silêncio era toda a resposta de que eu precisava.

Me lembrei de sua pergunta hipotética sobre o estuprador: “Se você esconder a verdade em seu depoimento em relação à culpa dele, ele será condenado. O que você faria?”

Verdade e justiça sempre lutaram entre si em nossas cortes. Por todos esses anos eu havia escolhido o lado da verdade. Calvin também. Talvez tivéssemos escolhido o lado errado.

“Prometa-me”, o sr. Sikora disse.

“Eu prometo”, eu disse a ele.

Eu podia sentir algo mudando dentro de mim. A confiança que sem pre tive no sistema judiciário repentinamente parecia ingênua e otimista demais.

– Você acredita que Basque vai matar novamente se for libertado? – Calvin perguntou.

– Sim.

– Eu também.

O policial bateu com a mão contra o vidro. Levantei um dedo para pedir a ele mais um instante, então perguntei a Calvin:

– Você vai fazer algo, não vai?

Silêncio.

– O que é? O que você vai fazer?

Ele juntou as mãos em cima do volante.

– Vou observar cuidadosamente – suas palavras eram decisivas. Firmes. – E ver o que acontece a seguir.

Procurei o que dizer. O policial bateu na porta e começou a exigir que eu saísse do carro, o que finalmente fiz. Ele apontou para Calvin.

– Ele precisa ir embora.

Saí do carro e Calvin abriu a janela.

– Eu ligo pra você – eu disse.

– Sim, ligue.

Então peguei minhas malas e observei Calvin ir embora, as luzes traseiras de seu carro brilhando no asfalto molhado. Um reflexo embaçado, distorcido.

O policial estava parado ao meu lado, e quando não me movi, ele disse:

– Está tudo bem?

Não. Não está. E pode não ficar nunca mais.

– Sim – eu disse. – Está tudo bem.

Então entrei no terminal, imaginando se eu deveria ter deixado Sikora matar Richard Basque, ou se talvez eu devesse tê-lo ajudado a mirar a arma.

As palavras de Calvin me assombravam enquanto eu caminhava pelo aeroporto: “Vou observar cuidadosamente e ver o que acontece a seguir”.

Bom, eu também.


17

Hospital Memorial Batista
Denver, Colorado
19h51, fuso horário das montanhas

Disfarçado e vestido como um zelador, Giovanni passou pelo nível inferior do Hospital Memorial Batista em direção ao necrotério. Ele carregava uma bolsa esportiva preta à prova d’água e tomava cuidado para evitar os corredores que possuíam câmeras de segurança.

Seu voo chegara havia cerca de uma hora, o que lhe dera bastante tempo para ele se preparar.

Agora, ele arrombou a fechadura do necrotério, entrou na sala e fechou a porta atrás de si. Colocou no chão sua bolsa esportiva. Abriu-a.

Então, seguiu para a área de armazenamento a frio onde ficavam os recém-chegados.


Giovanni nunca havia ido para a cadeia por assassinato, o que era um pouco surpreendente, considerando quantos deles ele já havia cometido.

E considerando que ele havia até confessado um deles.

Mas nenhum crime, nem aquele primeiro, aparecia em sua ficha porque ele tinha apenas 11 anos quando confessou, e a corte decidiu que ele era jovem demais para compreender suas ações, que ele era apenas um garoto.

Em vez de passar um tempo na cadeia, ele havia passado seis meses em um hospital especial e então foi para um internato e se encontrava com um orientador três vezes por semana para conversar sobre seus sentimentos.

Mas nem seu orientador, nem nenhum de seus advogados, ou juízes, ou defensores apontados pela corte haviam entendido que ele realmente sabia o que estava fazendo quando matou a avó dois dias antes de seu aniversário de 12 anos. Ele sabia muito bem. E mesmo agora, todos esses anos depois, tudo ainda parecia bastante fresco em sua memória.


Ele destravou a porta de metal que levava aos cadáveres e sentiu o sopro de ar frio no rosto e nos braços quando entrou. Apenas alguns graus mais frio que a mina, frio o suficiente para armazenar os corpos por alguns dias, mas não para chegar a congelá-los.

Ele era responsável por oito mortes ocorridas durante a semana passada, ou possivelmente sete, se o padre ainda estivesse vivo, então reconheceu alguns dos corpos na área de armazenamento a frio, mas os notou sem qualquer emoção ou mesmo satisfação. Eles haviam sido apenas personagens na épica história que ele estava contando, nada além disso.

Giovanni levou a maca contendo o cadáver de Travis Nash para a sala de autópsia e fechou a porta do freezer.

Um lençol branco cobria o cadáver, e ele o descobriu, revelando o corpo nu e cor de argila do homem que ele havia assassinado 12 horas antes, no que havia sido interpretado por todo mundo como um ataque cardíaco. Nenhuma autópsia havia sido requisitada.

Giovanni percebeu que se ele fosse manter estritamente o enredo, seria necessário que a esposa de Travis exumasse o corpo e cortasse sua cabeça com uma faca, mas as práticas funerárias haviam mudado um pouco desde o século XIV e, considerando que a cremação de Travis estava marcada para a manhã seguinte, levar seu corpo do necrotério era o mais próximo possível de uma exumação.

Desde sua morte mais cedo naquele dia, o sangue de Travis Nash estaria acumulado em sua cavidade corporal; portanto, não haveria muita sujeira, apenas um pequeno escorrimento.

Ele abriu a bolsa esportiva, pegou o serrote que havia usado em Brigitte e no governador, colocou a lâmina contra o pescoço inchado e frio do sr. Nash e começou o serviço.


Giovanni se lembrou da noite em que sua avó morreu.

Ele ainda podia vê-la parada na cozinha, inclinada sobre a pia, seus dedos frágeis esfregando os pratos, esfregando, esfregando, esfregando, e sua voz delicada como papel pedindo a ele por favor para colocar os copos na cristaleira, ao lado dos pratos, e perguntando se ele gostava de passar o verão com ela e se estava pronto para voltar para seu pai na terça-feira seguinte, e então o lembrando de não esquecer sua cópia de Os contos da Cantuária que ele estava lendo durante todo o verão, pois ela havia visto o livro mais cedo na varanda.

Ela estava usando um avental branco com a foto de um buquê de lírios desbotado bordado na frente, e havia manchas amarelas de caldo de frango ao lado das flores de quando ela havia limpado os dedos no avental.

Sim, ele lembrava de tudo: a brisa silenciosa do Kansas soprando pela janela aberta sobre a pia, o som dos grilos cantando nas sombras orvalhadas lá fora, o cheiro do perfume de velha de sua avó se misturando com o detergente com cheiro de limão, e o cheiro fraco de sopa de frango que ela havia feito pois era a sua favorita.

Sim, e ele se lembrou da faca repousada pacientemente no balcão ao lado dela.

E a voz de sua avó novamente:

– Por favor, veja se esses copos estão secos antes de guardá-los, querido. Você sabe que eles ficam cheios de germes se ainda estiverem molhados.

“– E a avó dele gritava com ele? Abusava verbalmente dele?”

“– Não que eu saiba, meritíssimo.”

“– E quanto à vida cotidiana dele com o pai? Ele era negligenciado de

alguma maneira?”

– “Ele parece ter tido uma criação normal e estável, meritíssimo. A mãe dele morreu durante o parto, mas não existe nenhum sinal de abuso físico ou mental por parte dos familiares.”

O cabo da faca era tão brilhante, suave e convidativo.

Ele se lembrava disso. E se lembrava de envolver a faca com os dedos e levantá-la, sentindo seu peso estável e balanceado.

Ele girou a faca de modo que a luz da cozinha refletia e dançava pela lâmina, onde brilhou, brilhou, brilhou, e então permaneceu ali por um momento antes de deslizar pela borda e desaparecer no ar ao seu redor.

A faca estava muito confortável em sua mão.

Sim, ele lembrava.

E então sua avó virou-se e o viu segurando a faca; ela limpou as mãos no avental e perguntou o que ele estava fazendo e se ele poderia por favor largar a faca porque facas são perigosas e não devem ser manuseadas sem cuidado, e ele deveria saber disso, um garoto daquela idade.

E ele lembrava como ficou feliz por ela ter se virado, pois não queria mesmo enfiar a faca nas costas dela, e desse jeito poderia ver o rosto dela quando acontecesse.

“– Meritíssimo, o garoto é muito jovem para entender suas ações. Não existe precedente para uma criança menor de 14 anos de idade ser condenada por homicídio em primeiro grau. Ele é um jovem profundamente perturbado que precisa de ajuda psicológica. A ele deveria ser oferecida orientação, e não encarceramento.”

Tudo estava claro.

Quando a avó viu que ele não ia largar a faca, deu um passo hesitante para trás, pressionando-se contra a pia. Ela ainda estava segurando um pano de prato, e água com sabão pingava dele e formava uma poça irregular aos seus pés sobre o chão xadrez de linóleo.

Ele se lembrava disso, mesmo após todos esses anos.


Giovanni terminou o serviço no pescoço de Travis e colocou a cabeça loira de cabelos encaracolados em um saco plástico; depois a embrulhou cuidadosamente em um grande lençol branco de linho e a colocou na bolsa esportiva.

Ele levou apenas um momento para se lavar e depois colocar as roupas de médico que havia trazido com ele. Enfiou as roupas de zelador na bolsa, cobriu o corpo novamente e colocou-o de volta no freezer.

Kelsey chegaria em menos de 10 minutos.

Ótimo.

Ele foi até a pia para enxaguar o serrote e preparar a agulha.


Por algum motivo, quando Giovanni deu um passo em direção à sua avó, os grilos pararam de cantar. Talvez eles soubessem. Talvez de algum modo eles pudessem saber o que estava prestes a acontecer.

Os olhos da avó se arregalaram, e então ela deixou cair o pano de prato e tentou empurrá-lo para longe, mas ele era forte para sua idade, mais forte que ela, e ela não conseguiu freá-lo. Não mesmo.

Giovanni já havia cortado carne; ele sabia que cortar carne não era fácil, e que o corpo da avó teria carne, o corpo de todo mundo tem, então ele esperava que fosse difícil enfiar a faca na barriga dela, esperava que houvesse mais resistência, mas foi muito mais fácil do que ele havia pensado que seria. Fácil até demais, na verdade. E tirar a faca foi mais fácil ainda do que enfiá-la porque ela estava escorregadia e brilhante com o sangue e outros líquidos que ele não reconheceu.

Ela não gritou nem chorou, apenas tossiu suavemente. Uma tosse úmida, e ela tremeu um pouco, e então inclinou-se mais contra o balcão ao lado da pia, caindo no chão.

Giovanni se inclinou sobre ela, e toda vez que ele enfiava a faca, fi-cava mais e mais fácil, especialmente quando ela parou de tremer tanto. E foi mais silencioso também, após ela parar de fazer aqueles barulhos estranhos vindos do fundo de sua garganta.


Giovanni ouviu uma batida na porta do necrotério e, então, com a expressão sombria e empática de um médico preocupado, ele a abriu e encontrou Kelsey Nash no corredor.

Ele disse a ela o quanto sentia por sua perda e desculpou-se por ter ligado para ela tão tarde, mas então explicou que precisava fazer algumas perguntas sobre o marido dela, agora, essa noite, antes da cremação, porque poderia ajudar a esclarecer algumas questões que haviam surgido em relação às circunstâncias da morte do marido.

Kelsey enxugou uma lágrima perdida, mas não entrou no necrotério. Ele acrescentou que a polícia temia que Travis pudesse ter sido assassi nado e que, novamente, ele sentia muito sobre todo o sofrimento, mas que isso levaria apenas um minuto e então ninguém mais a perturbaria de novo.

E por fim ela entrou hesitantemente na sala.


Quando Giovanni devolveu a faca ao balcão, ouviu os grilos lentamente voltarem a cantar. E ele gostou daquilo. Gostou que o mundo lá fora ainda estivesse normal; que, realmente, nada de mais havia mudado.

Com a exceção de sua avó, que estava caída imóvel em uma poça crescente de sangue que estava começando a encontrar as frestas no linóleo, fazendo linhas retas e brilhantes no chão da cozinha enquanto se distanciava dela.

Isso era algo sobre o qual ele gostava de pensar. As linhas vermelhas se distanciando dela como os raios de sol que ele fazia quando desenhava um sol no canto de um papel, na escola.

Ele observou o sangue deslizar pelas ranhuras do chão brilhante, observou a luz do sol escapar do corpo da avó.

“– Giovanni, seu pai já tocou você?”

“– Tocou-me?”

“– Sim. Em algum lugar ruim. Algum lugar que sua roupa de nadar

cubra. No seu bumbum ou...

“– Isso é um lugar ruim?”

“– Não, não. É que... talvez um professor de educação física ou alguém

do tipo? O professor Simons tocou em você lá? Ou sua avó?

“– No lugar ruim?”

“– Onde o calção de banho cobre.”

“– Não. Ahn-ahn. Ninguém. Só em lugares bons. Só bons abraços. Nada

no lugar ruim.”


Giovanni movimentou-se em direção ao freezer.

– O corpo dele está logo ali, senhora.

Kelsey parecia tão frágil e destruída pela morte recente do marido.

Ela deu um passo e parou.

– Eu sei como isso deve ser difícil para você – ele colocou uma mão cheia de compaixão sobre o ombro dela, para que ela não ficasse com medo.

– Eu prometo, vou fazer com que isso seja o menos doloroso possível.

Com a mão esquerda, ele tirou a seringa hipodérmica do bolso.


Ele se inclinou para que pudesse ver os olhos da avó. Eles pareciam tão estranhos, olhando para cima, para a luz da cozinha, sem piscar, e eram tão redondos e brilhantes que pareciam grandes bolas de gude que poderiam rolar da cabeça dela a qualquer momento.

– Como foi, vovó? – sua voz soou alta, forte e adulta dentro da cozinha vazia. Ele gostava do som adulto de sua voz e repetiu a pergunta, mesmo sabendo que ela não responderia. Não mais.

Ele observou aqueles olhos vítreos por um momento, imaginando se talvez eles piscariam, porque, mesmo ele tendo só 11 anos, havia ouvido falar que, às vezes, coisas desse tipo aconteciam depois de as pessoas terem morrido. Reflexos.

Mas não. Não sua avó. Mesmo ele tendo esperado até o sangue parar de se espalhar e começar a ficar escuro e com uma cara feia, mesmo então sua avó não piscou.

Ele colocou um dedo levemente contra o sangue que secava e descobriu que ele tinha ficado grudento e grosso e não parecia em nada com os raios mornos e macios do sol que tocaram seu rosto por todo o verão.

Seu cheiro era morno e acobreado.

E ele gostava da sensação que causava em sua pele.


Giovanni baixou Kelsey gentilmente até o chão.

O relaxante muscular a fez ficar mole, mas a deixou consciente, e ele podia ver seus olhos se movendo, dizendo que ela estava ciente do que estava acontecendo. Seus lábios sussurravam sílabas silenciosas. Palavras que nunca tomavam forma.

Ele tirou o cadáver de seu marido do freezer e removeu o lençol que o cobria.

– Oficialmente, você deveria morrer de tristeza – ele disse. Ela estava imóvel, com exceção dos olhos, dos lábios e do peito: seus olhos, alertas, o seguindo, seus lábios tremendo levemente, seu peito subindo e descendo, subindo e descendo com a respiração. Ele imaginou como seria estar consciente mas incapaz de se mover, capaz apenas de antecipar o que estaria para acontecer. Ele imaginou se ela conseguiria chorar mais. Não tinha certeza.

Ternamente, ele deslizou uma mão sob suas costas e a outra sob suas pernas, para que pudesse levantá-la sem machucá-la.

– Tentei achar um jeito melhor de fazer isso, mas não consegui pensar em nenhum – ele a colocou na maca, do lado do corpo sem cabeça. – Acho que isso foi a melhor coisa possível.

Ela não conseguia oferecer nenhuma resistência, estava maleável e era fácil para ele posicioná-la de lado e colocar uma das mãos dela sobre o peito do marido.

Ele virou o rosto dela para a direção em que a cabeça de Travis estaria. Sua bochecha esquerda estava apoiada sobre uma poça de sangue congelado que havia escorrido do coto úmido.

– Você tem se mantido em muito boa forma, então isso deve ajudar. Não há gordura corporal suficiente para isolá-la. Você estará com Travis em breve.

Apesar de sua paralisia, ela foi capaz de emitir um som engasgado que deve ter sido uma fraca tentativa de pedir socorro.

Os sons lembravam a Giovanni aqueles que sua avó havia emitido tantos anos atrás. Naquele dia, na cozinha.


Depois de terminar de lavar a louça, ele havia chamado a polícia e pedido a eles para virem, pois sua avó não estava se mexendo, e ele havia contado que achava que podia tê-la matado com a faca e que havia muito sangue no chão, escorrendo dela.

Enquanto os esperava, ele cuidadosamente secou os copos e os guardou do jeito que a avó havia pedido para ele fazer antes de ele ter enfiado a faca em sua barriga e ela ter caído se contorcendo no chão.

“– Ele não demonstra ameaça iminente para ele mesmo nem para ninguém, meritíssimo. Nós recomendamos que o garoto receba orientação e seja monitorado até seu décimo oitavo aniversário, e se ele aparentar estar mentalmente estável, que ele seja solto sob sua própria responsabilidade. Isso é tudo, meritíssimo.”

“– Algum comentário final da acusação?”

“– Nós insistimos que o garoto é extremamente perturbado e aceitamos

que ele seja institucionalizado e receba os cuidados psiquiátricos necessários, mas neste estado há uma sentença obrigatória por assassinato em

primeiro grau. Pedimos que, no caso de sua liberação dos cuidados psiquiátricos, ele sirva o restante da sentença na prisão por esse crime hediondo.”

“– Tudo bem. Faremos um breve recesso e então anunciarei minha decisão quando voltarmos, às 13h. Declaro a corte em recesso.”

Pelos próximos anos, os advogados de Giovanni, os juízes e todos os médicos e orientadores disseram a ele repetidamente que ele realmente não entendia o que estava fazendo naquele dia na cozinha de sua avó. E depois de um tempo ele quase começou a acreditar neles.

Mas na verdade, lá no fundo, ele sabia que eles estavam errados. Ele entendia.

Sim, ele entendia


Ele havia matado a avó porque queria ver como seria assistir alguém morrer. Ver se o incomodaria, se o faria se sentir triste ou não.

E não tinha feito.


Enquanto Giovanni pegava o lençol que estava cobrindo Travis e o colocava sobre Kelsey também, ajeitando-o em seu pescoço, ele pensou com carinho naquele verão que havia passado no Kansas quando tinha 11 anos. A luz do sol, os grilos e as lembranças. Os livros que havia lido. As histórias que havia aprendido.

Ele empurrou a maca até o freezer e parou para arrumar uma mecha de cabelo que estava no rosto de Kelsey.

Por um momento, ele ouviu os barulhos úmidos vindos da garganta dela, sons que o lembravam de sua avó, então ele saiu do freezer e fechou a porta atrás dele.

Depois de se trocar novamente, voltando a usar o uniforme de zelador, e de colocar as roupas de médico na bolsa esportiva, Giovanni dirigiu até sua casa, cuidadosamente evitando todas as câmeras de semáforos.

Amanhã seria um dia cheio.


18

Sábado, 17 de maio
1833 Cherry Street Denver, Colorado
4h59 da manhã

Não tive sonhos agradáveis.

Vi a mim mesmo no matadouro novamente, perseguindo Basque. O cheiro duro de sangue no ar. A goteira distante em um cano que vazava ecoando pela escuridão.

Ganchos de carne estavam pendurados ao meu redor. Balançando, retinindo, mesmo sem haver vento.

No sonho, penetrei o ar escuro com minha lanterna e, quando o fiz, uma mulher surgiu. Ela deu um passo e então parou e me fitou com olhos frios e sem vida. Eu a reconheci como a última vítima de Basque, Sylvia Padilla. Seu dorso estava cortado do mesmo jeito que quando a encontrei. Seu rosto muito pálido, o sangue drenado pela morte e a cor do rosto lavada pela luz da lanterna.

– Por que você não me salvou, Patrick? – ela apenas mexia os lábios, mas no sonho eu ouvia as palavras como se ela estivesse falando alto.

Lábios frios.

Sussurrando.

– Por que, Patrick?

E então, passos atrás de mim. Virei-me e minha lanterna iluminou os rostos de mais mortos ambulantes, todos se aproximando de mim.

– Por que, Patrick?

Cercando-me, tentando me alcançar.

– Por quê?

Empurrei-os para o lado, senti minhas mãos se sujarem em suas feridas quentes e úmidas e comecei a correr no escuro, minha lanterna balançando loucamente, as sombras se estilhaçando e depois se formando novamente, e daí se estilhaçando à minha volta de novo.

E então eu estava correndo por um campo e através do tempo, e eu estava no túnel da mina de ouro novamente, e estava me inclinando sobre o corpo de Heather e ela abriu os olhos, e depois deu um sorriso morto e entregou o terrível coração para mim.

Seus lábios, lábios frios.

– Pra você.

Mas então não era mais o rosto de Heather, mas o de Lien-hua, e estava me oferecendo o coração.

– Aqui está meu coração, Patrick. Pra você.

O coração tinha o cheiro da morte.

– Não – gritei em meu sonho.

Tropecei para trás.

Ela levantou-se e juntou-se aos cadáveres.

– Não!

E todos chamavam por mim, suas palavras no ritmo da batida do coração negro, dentro da minha cabeça.

– Por que, Patrick? Por quê?

E então acordei com um fraco manto de luz penetrando as cortinas do meu quarto.

Tentei relaxar, deixar o sonho desaparecer, mas ele se recusava a ir embora. Olhei para o relógio e apesar de já ter acabado de passar das 5h, eu não queria voltar a dormir e correr o risco de sonhar novamente, então levantei-me da cama.

As imagens continuavam passando como um filme na minha cabeça. Coloquei uma roupa para fazer exercícios e meu tênis de escalada e fui para a gruta de pedra que eu havia construído em nossa garagem – uma pequena academia de escalada com suportes chumbados nas paredes e pelo teto.

Como Tessa estava dormindo na casa de sua amiga Dora Bender, eu não precisava me preocupar em não acordá-la, então peguei meu aparelho de som de uns 20 anos, coloquei um U2, aumentei o volume o suficiente para me ajudar a esquecer o sonho, botei meu carro para fora e espalhei alguns colchões sobre o concreto para que eu não me machucasse mais do que o necessário quando caísse.

Depois de percorrer as paredes por 10 minutos para me aquecer, comecei a cruzar o teto, me pendurando de cabeça para baixo, os dedos agarrados nos suportes, os dedos dos pés enfiados em pequenas rachaduras ou pressionados contra os suportes por onde eu já havia passado.

Cruzando o teto e voltando.

Os braços bombeavam. O abdômen gritava. A lateral do meu corpo latejava pelas pancadas do cabo do machado de ontem, mas não estava tão dolorido quanto imaginei que fosse estar, então imaginei que nenhuma costela tinha se quebrado. No entanto, ainda doía, especialmente quando eu perdia o apoio e caía do teto de costas.

Os colchões ajudavam um pouco, mas eu certamente sentia o impacto.

Fiz o percurso por 45 minutos, mas por mais que me concentrasse nos movimentos, não conseguia espairecer. Então, finalmente, desisti e subi a escada para me aprontar para me encontrar com Cheyenne.


Algumas pessoas pensam que um investigador é imediatamente transferido para outro caso quando um assassino menciona seu nome enquanto se comunica com as autoridades ou quando faz algo que ameace ele ou sua família.

E mesmo esse cenário sendo um ótimo enredo para um romance policial ou filmes de policiais parceiros, não é assim que as coisas funcionam na vida real. Quando você começa um caso, especialmente um caso de alto nível com um assassino em série, você fica nele, independentemente de quantas ligações com ameaças, fotografias ou mensagens gravadas você receba do assassino.

Tem de ser desse jeito; de outro modo, assim que um investigador começasse a se aproximar, o assassino poderia simplesmente deixar uma mensagem ameaçadora ou fazer uma ligação provocativa e voilà!, a única pessoa que tinha chance de pegá-lo seria realocada. Não é desse jeito que funciona.

Seria fácil demais para os vilões.

No entanto, é verdade que se eles mencionam seu nome, a coisa se torna pessoal.

Havia sido pessoal com Taylor e com Basque, e agora eu sentia a mesma pontada, a mesma raiva íntima com esse novo assassino que havia deixado a mensagem gravada para mim na boca de Heather Fain.

Enquanto saía do chuveiro, trocava de roupa e tomava café da manhã, a mensagem ficava se repetindo na minha cabeça, tornando o caso mais e mais pessoal a cada vez que se repetia.

“Vejo você em Chicago, agente Bowers.”

Talvez um pouco de café ajudasse. Me deixaria agitado. Me ajudaria a pensar em uma nova direção.

Escolhi um hondurenho, torrado à francesa. Afinal, se a detetive Warren ia me carregar por aí pela manhã toda, o mínimo que eu podia fazer era oferecer a ela 470 ml de um café de primeira classe. Moí o suficiente para 940 ml, coei o café com perfeição, enchi duas canecas para viagem, adicionando um pouco de creme e mel no meu, e havia acabado de tomar uma tigela de mingau de aveia quando ela parou no meio-fio.


Carregando a bolsa do computador e agarrando as duas canecas para viagem contra o peito, saí pela porta. Eu nunca havia pegado carona com ela antes, e agora vi que ela dirigia um Saturn sedã 2002. Marrom. Riscado, sujo de lama. Aconchegante.

Mesmo ainda sendo muito cedo, o céu já estava limpo e azul, com uma única faixa de nuvens em camadas altas no oeste. Uma brisa leve e fria passava pela vizinhança, mas, tirando isso, o dia passava uma sensação de sólido e imóvel.

Cheyenne abriu a janela.

– Bom dia, Pat.

– Bom dia – coloquei as canecas sobre o teto e dei um tapinha no carro. – Tenho de dizer que imaginava você como o tipo de garota que dirige uma caminhonete.

– Difícil eu ser classificada assim. Coloque suas coisas no banco de trás.

Abri a porta e percebi que não seria fácil seguir suas instruções. O assento e o assoalho estavam empilhados com papéis, as sobras de pelo menos quatro visitas ao KFC, três alvos de tiro amassados, um par de cabos de chupeta enferrujados, uma roda de bicicleta, um par muito velho de botas de cowboy masculinas sobre as quais achei melhor não perguntar e um manual de voo de helicóptero. Apontei para ele.

– Eu não sabia que você pilotava.

– Ainda não terminei minhas aulas. Só falta tirar a licença.

A fim de arrumar espaço para minha bolsa do computador, empurrei os alvos para o lado. Eles continham agrupamentos no centro dos mais precisos que eu já havia visto; então, enquanto colocava minha bolsa no assento, perguntei a ela:

– Com que frequência você atira?

– Às segundas e terças-feiras. Tento não pular nenhuma semana.

Após fechar a porta, agarrei as canecas de viagem do teto e me juntei a ela no banco da frente.

– Parece que você também tenta não errar a mosca.

– É normal para quem cresceu em um rancho. Você precisa ser capaz de acertar coiotes no meio de cavalos.

– Não conte isso à minha enteada. Ela não gosta de caça: “Nada com um rosto deveria ser morto” – ofereci a ela uma das canecas de viagem. – Café?

– Não. Não gosto nem de ver.

– Ah, mas é um ótimo café.

– Isso é um paradoxo – ela disse.

Ok, isso foi inesperado.

– E eu que pensei que você fosse uma mulher de gosto exigente.

Ela me olhou furtivamente.

– Eu sou. Mas com certas coisas.

Ok. Essa mulher não era sutil.

Antes que eu pudesse dar alguma resposta inteligente, ela deslizou uma pasta de papel pardo pelo painel em minha direção.

– Um pouco de leitura para o passeio.

– Obrigado.

Assim que peguei a pasta, percebi um pingente de São Francisco de Assis pendurado no espelho retrovisor. Eu nunca imaginei que ela fosse do tipo religioso.

Ela realmente era difícil de ser classificada.

Cheyenne seguiu em frente e pegou a I-70.

– Aliás – ela disse –, Heather Fain foi envenenada. Era o mesmo veneno com o qual Ahmed Mohammed Shokr morreu na quarta-feira.

Ahmed era uma das vítimas do duplo homicídio na quarta-feira. Sua namorada, Tatum Maroukas, havia sido morta com uma espada.

Existem apenas quatro maneiras de envenenar alguém: inalação, ingestão, injeção e absorção. Então perguntei a Cheyenne:

– Sabemos como o veneno foi administrado?

– Injetado. Cloreto de potássio.

– Então – murmurei – eles encontraram excesso de potássio nas veias mas sem potássio no humor vítreo – era mais uma observação do que uma pergunta.

Ela me olhou intrigada.

– Como você sabia?

– É uma grande pista que aponta para cloreto de potássio. Mas tam bém uma pista óbvia. O assassino deveria saber que encontraríamos.

– Você acha? Eu não acho que muitos assassinos saberiam de algo assim.

– Esse saberia. Ele nos quer na cola dele.

– Como você sabe que ele não cometeu apenas um erro?

– Como você disse na mina no outro dia: ele está deixando uma mensagem. Ele não está tentando cobrir seus rastros, ele está propositalmente escolhendo deixá-los.

Ela demorou um pouco para responder.

– Mais uma coisa. Foi só uma mulher na Represa Cherry Creek.

– Pelo menos isso de boas notícias.

Cheyenne ficou em silêncio por um momento e parecia estar perdida em pensamentos profundos; então disse suavemente:

– Uma menina de 10 anos de idade encontrou as partes do corpo antes de o assassino ligar avisando do local.

Senti a garganta apertada. E bem lá no fundo, no lugar mais importante, jurei pegar esse cara.

Abri a pasta e comecei a analisar os arquivos.


19

6h45

Tessa teria dormido por pelo menos mais duas horas se o alarme idiota de Dora não tivesse tocado.

Quando Dora apenas rolou na cama e o ignorou, Tessa o desligou, então voltou para a bicama e olhou para a escrivaninha de Dora. Para o computador dela. Para a parede.

A respiração de Dora ficou estável novamente.

Nos últimos meses, sua amiga não vinha descansando o suficiente.

Então Tessa deixou-a dormir. Ela precisava.

No inverno passado, os pais de Dora haviam saído para um encontro com um dos amigos do pai dela, o tenente Mason e sua esposa. A garota, que havia ficado de babá na casa dos Mason, mandou uma mensagem de texto a Dora pedindo para ela descobrir quando eles iriam voltar, e Dora respondeu. Enquanto elas trocavam mensagens, a babá deixou a bebê sozinha na banheira. E a garotinha havia escorregado para dentro d’água.

Pensar nisso ainda dava calafrios em Tessa.

Apenas algumas pessoas sabiam que era Dora que estava trocando mensagens com Melissa, e até onde Tessa sabia, ela era a única pessoa com quem Dora tinha falado sobre isso.

– Se eu não estivesse trocando mensagens com ela – ela havia dito a

Tessa uma vez –, Melissa estaria prestando atenção na bebê.

– Que bobagem – Tessa havia dito. – Não é sua culpa – mas isso não ajudou muito. Nada que ela havia dito tinha ajudado, então finalmente ela não tocou mais no assunto.

Por um momento, Tessa ficou deitada assistindo o protetor de tela no computador de Tessa passando fotos da família dela. Tessa nunca havia tido pai e mãe por perto, exceto se você considerar os poucos meses antes de sua mãe morrer, quando Patrick estava com elas.

E tudo isso fazia com que fosse difícil olhar para as fotos de Dora com os pais felizes.

Tessa pegou seu celular, abriu a galeria de fotos, selecionou o álbum desejado e deslizou pelas fotos de sua mãe, esperando que aquilo a fizesse se sentir melhor, mas foi justamente o contrário. Finalmente ela guardou o telefone, virou para o lado, olhou para a parede e ficou esperando a amiga acordar.


Cheyenne estava quieta enquanto dirigia em direção à casa de Sebas-tian Taylor, e agradeci pelo silêncio, pois isso me dava chance de revisar os arquivos do caso profundamente.

As velas cercando o corpo de Heather eram Chantel, uma marca encontrada em praticamente qualquer loja de departamentos; então, tentar rastrear o comprador seria provavelmente um beco sem saída.

Além disso, o dispositivo de gravação podia ter sido comprado em qualquer loja de eletrônicos; então, assim como as velas, seria quase impossível de rastrear. Não havia nenhuma impressão digital nas velas nem no dispositivo.

A equipe forense havia conseguido determinar que as velas estavam queimando havia cerca de duas horas.

O espaço de tempo entre o acendimento das velas e a denúncia anônima daria ao assassino tempo suficiente para dirigir para praticamente qualquer lugar na região metropolitana de Denver.

A denúncia anônima na sexta-feira, aquela que relatava o local dos corpos de Sebastian Taylor e Brigitte Marcello, havia sido feita enquanto eu estava no tribunal.

O Serviço Médico de Emergência não foi capaz de rastrear o local de onde nenhuma das duas denúncias foram feitas.

Esses arquivos de casos incluíam transcrições de ambas as ligações anônimas; nos dois casos, quem ligou havia dito algo que chamou minha atenção: “O anoitecer está chegando. O quarto dia termina na quarta-feira”.

As frases repetidas certamente ligavam os homicídios duplos na quinta e na sexta-feira, e também despertaram minha curiosidade.

O anoitecer está chegando...

O quarto dia termina na quarta-feira...

Anoitecer... Uma metáfora para a morte? Um prazo final?

Quarto dia... Dias do mês? A duração da onda de crimes? Dias da cria

ção, talvez? O que a Bíblia diz que Deus criou no quarto dia? Teria alguma coisa a ver com isso?

Eu não sabia. Era algo que eu deveria pesquisar.

Enquanto ponderava as coisas, encontrei a página com as informa

ções sobre os assassinatos na casa de Sebastian Taylor.

Ele tinha um sistema de segurança de ponta, com cinco câmeras de vigilância, três das quais haviam sido desativadas. As outras duas apenas mostravam breves vislumbres de um homem de estatura mediana usando uma máscara de esqui.

E o assassino havia tornado aquilo pessoal novamente: ele deixou um bilhete para mim na bancada da garagem de Sebastian Taylor: “Shade não vai mais te incomodar, agente Bowers”. Então o assassino sabia que Taylor chamava a si mesmo de Shade, e ele sabia que Taylor vinha me enviando mensagens.

Mas como? Nada daquilo fora revelado ao público. E como ele encontrou Taylor?

Virei a página.

Após matá-los, o assassino havia transportado as partes do corpo de Brigitte para o lago, mas deixou o corpo de Sebastian Taylor na garagem. E, apesar de o cenário me perturbar em um nível pessoal, profissionalmente ele me intrigava.

Normalmente assassinos apenas transportam partes de corpos para se livrar deles ou para levar para casa como lembranças. Então, por que deixar um corpo na casa e levar o outro cruzando a cidade e então largá--lo em uma praia pública?

Considerei o seguinte: baseado nas duas mensagens que ele havia deixado para mim, o assassino sabia quem eu era, sabia que eu estaria na cena do crime na quinta à tarde e sabia que eu iria depor em Chicago. Então era provável que ele também soubesse sobre meu trabalho.

Se esse fosse o caso, ou ele era muito estúpido, deixando para mim diversas indicações de locais, cuja combinação me ajudaria a rastreá-lo, ou era muito inteligente, talvez escolhendo a mina abandonada e a praia pública por nenhuma outra razão a não ser atrapalhar a investigação.

E como ele havia sido capaz de localizar Sebastian Taylor, algo que nenhuma outra agência policial no país havia conseguido, eu não achava que esse assassino fosse burro.

Não, não mesmo.

Conforme Cheyenne seguia com o carro cada vez mais alto pelas montanhas na direção da casa de Taylor, terminei meu café e percebi que, se ela fosse decidir experimentar o dela mais tarde, ele não estaria mais fresco e, consequentemente, ela não iria gostar, e poderia nunca mais se apaixonar pela bebida mais perfeita do mundo. Então, fazendo-lhe um favor, bebi o café dela também.

– Vamos chegar lá em cerca de 10 minutos – ela disse.

Voltei para a lista de possíveis suspeitos.


Tessa ouviu Dora se mexendo na cama, mas esperou para ver se ela estava pronta para levantar.

O nome verdadeiro de sua amiga era Pandora, mas ela não gostava de ficar sendo constantemente lembrada da história sobre a garota que abriu a caixa e libertou todo o mal no mundo. Isso não era exatamente a coisa mais legal para alguém se sentir responsável. Então praticamente todo mundo a chamava apenas de Dora.

Ela tinha os cabelos avermelhados, olhos castanho-escuros tímidos e um tipo de rosto normal, facilmente esquecível. As duas garotas tinham se dado bem desde a primeira vez que se encontraram, mesmo não tendo nada em comum.

Ah! Exceto que, como o pai de Dora era o médico legista, os pais das duas lidavam com cadáveres o tempo todo.

Então pelo menos havia isso.

Finalmente Dora se inclinou na beirada da cama.

– Tessa, você acordou?

– Uh-hum.

– Dormiu bem?

– Sim, e você?

Uma pausa, e então:

– Eu fiquei acordando, pensando em... você sabe.

– Sim – Tessa tentou pensar em algo que tirasse a cabeça de Dora da morte da bebê. – Ei, eu ouvi falar bem de um vídeo novo do Syrup Dive. Nós deveríamos vê-lo.

Dora olhou para ela intrigada.

– Pensei que você odiasse Syrup Dive. Você me falou que a música deles era pangelo...

– Panglossiana – Tessa encolheu os ombros. – Bom, talvez eu tenha mudado de opinião. Vamos, ouvi falar que o vídeo é legal.

E então, mesmo que Tessa realmente achasse que a música do Syrup Dive fosse inocentemente otimista, ela foi até o computador de Dora e abriu o YouTube.

Mais uma vantagem: você não vai precisar mais ficar vendo fotos dos pais sorridentes de Dora.

– Panglossiano – Dora colocou os pés no chão. – É grego?

– Latim. Eu nunca estudei grego. Só latim. E um pouco de francês.

Dora se juntou a ela ao lado do computador.

– Tem alguma coisa que você não sabe?

– Eu não consigo descobrir por que eu não dou risada quando me faço cócegas.

Ela encontrou o vídeo.

– E – sua amiga disse – minha história, a Caixa de Pandora. Você não conhece. Eu ainda não acredito que você nunca a leu. Considerando o tanto que você lê.

Tessa nunca foi muito interessada em mitologia grega.

– Acho que conheço a história muito bem: Pandora era curiosa. Ela abriu a caixa e dela vieram toda a dor, pestilência e doenças do mundo.

– Sim, mas isso não é tudo – Dora bocejou. – Tem um final surpreendente.

– Vou dar uma olhada nesse fim de semana, prometo.

E então ela apertou play.


Eu tinha acabado de tomar o café de Cheyenne e havia lido cerca de dois terços dos arquivos do caso, quando ela quebrou o silêncio.

– Chegamos.

Tirando os olhos dos papéis, vi que estávamos virando pela longa entrada de cascalho que levava até a casa de Sebastian Taylor.


20

Taylor havia escolhido viver em uma rua sem saída, o que parecia tragicamente irônico para mim, considerando as circunstâncias.

Rústica, mas ainda assim sofisticada, a casa bege e marrom não era pretensiosa o suficiente para atrair atenções indesejadas, embora esbanjasse riqueza e abundância exatamente como eu tinha certeza de que Taylor gostaria.

Além do carro de Brigitte Marcello, que ainda estava parado na entrada, duas viaturas e dois carros civis, incluindo o de Kurt, estavam estacionados na frente da casa.

Depois de mostrarmos nossas identificações para o sonolento policial de guarda, Cheyenne e eu entramos na sala de estar de Sebastian Taylor.

Tapete de luxo. Mobília de couro. Apetrechos da Guerra Civil. Pinturas art nouveau que devem ter custado uma fortuna. Percebi que as paredes não possuíam nenhuma foto nem das ex-mulheres de Taylor, nem de nenhum dos seus quatro filhos, e nada disso me surpreendeu. Um armário de bebidas bem abastecido ficava perto da porta que dava para a sala de jantar.

Um dos policiais da perícia estava coletando impressões digitais na sala de jantar, e imaginei que os outros membros da unidade estivessem provavelmente na garagem, onde os assassinatos aconteceram. Quando estou trabalhando em um caso normalmente carrego um par de luvas de látex no bolso de trás da minha calça, mas encontrei algumas nos esperando sobre a mesa de centro, então Cheyenne e eu as colocamos.

– Vamos começar no andar de cima – ela disse.

Acenei com a cabeça e, então, subimos.

No meio do caminho, na escada, ela limpou a garganta discretamente.

– Você está terrivelmente quieto desde que saímos de sua casa, Pat. O que está passando por essa sua cabeça?

Levei um segundo para reunir meus pensamentos. Então disse:

– Em 15 anos como investigador eu nunca havia me deparado com um duplo homicídio no qual o assassino desmembrou as duas vítimas, então transportou uma delas para uma cena secundária onde seria facilmente encontrada e identificada dentro de horas.

– Verdade – ela disse pensativamente. – Normalmente ele teria deixado as duas vítimas, ou ido com as duas.

Chegamos ao andar superior.

– Exatamente.

O andar de cima da casa de Taylor era pequeno. Apenas um quarto principal com um banheiro anexo, um quarto extra que ele havia deixado completamente vazio, um banheiro comum e um patamar que ele havia transformado em um espaço para o computador. Tanto o corredor quanto os quartos eram decorados com tons de terra que eram cuidadosamente coordenados para combinar com o carpete.

Ela seguiu o caminho para o quarto principal.

– O que você acha que o assassino estava querendo nos dizer levando apenas um corpo?

– Eu não sei o que ele estava tentando nos dizer – respondi –, mas considerando os fatos até agora, ele conseguiu me dizer uma coisa.

– E o que é?

O carpete do quarto principal estava recém-aspirado, provavelmente pela perícia procurando por evidências. O quarto parecia intocado, nada fora do lugar.

– Que ele é único no jeito que pensa – me ajoelhei e vasculhei debaixo da cama. Não encontrei nada. Levantei-me e olhei para ela.

– Em outras palavras – ela disse –, difícil de classificar.

– Isso parece estar ficando popular.

– Me faz pensar em uma coisa que li uma vez: é essencial para um investigador entender o intelecto, o treinamento e a aptidão de seu oponente, e então responder de acordo.

Fiz uma pausa.

– É do meu artigo do mês passado.

– Sim. Foi um dos seus melhores este ano – os olhos dela eram como planetas delicados orbitando o quarto em uma simetria precisa. Às vezes ela movia os lábios levemente, mas então estreitava os olhos e balançava a cabeça de modo suave, como se estivesse tendo uma discussão silenciosa com ela mesma. – Eu não concordei com todas as suas conclusões, mas concordei com a parte sobre não esperar que uma pessoa de intelecto superior ou inferior aja de maneiras convencionais.

Entramos no banheiro.

– Bom, essa é a parte pela qual não posso levar crédito – creme de barbear e uma lâmina estavam sobre a bancada. Uma cesta de roupas sujas ficava no canto. Levantei a toalha que estava por cima e gentilmente segurei contra minha bochecha. Ainda estava levemente úmida. – Não é uma citação direta, mas o conceito vem da abordagem de C. Auguste Dupin em A carta roubada. Eu o creditei nas notas finais.

– Eu sei – ela disse. – Eu as li.

Esse sim era meu tipo de mulher.

Eu sabia pelos arquivos do caso que a perícia havia encontrado fios de cabelo de Taylor no ralo do banheiro. Não vi mais nada relevante na área do chuveiro.

– Mas – ela disse – fiquei surpresa por você ter citado uma história fictícia.

– Bem, minha filha, quero dizer, enteada, ela é uma grande fã de Poe. Ela me convenceu a ler três de suas histórias de detetives. Na verdade, não são ruins.

– Vou ter de conferi-las.

Levamos um tempo explorando os quartos do andar superior e então fomos para o primeiro andar onde encontramos o tenente Kurt Mason mandando uns dos membros da perícia examinar o carro de Brigitte.

Assim que ele saiu, Cheyenne se aproximou do armário de bebidas de Taylor e apontou para uma garrafa de vinho pela metade.

– Brunello di Montalcino, 1997. Bom. Esse homem conhecia vinhos – ela gesticulou na direção do conjunto de garrafas. – Mas tem muita coisa potente aqui. Você acha que ele tinha problema com bebidas?

Kurt balançou a cabeça.

– Alguém com problema com bebidas não deixa garrafas pela metade por aí, nem mantém um armário cheio de álcool tão visível. Ele esconde as garrafas, em armários, debaixo da cama ou no meio das roupas. – talvez sem nem perceber, Kurt foi falando mais baixo a cada palavra. Ele se ajoelhou e olhou para uma garrafa de vodca. – Não. Taylor não tinha um problema. Ele tinha um hobby.

Cheyenne e eu trocamos olhares. Eu tinha bastante certeza de que Kurt não bebia, mas eu sabia que sua esposa Cheryl havia adquirido esse hábito após a morte da filha deles no inverno passado. E, mesmo tendo tantas vezes visitado a casa deles desde que ele havia me convidado para me unir à força-tarefa em janeiro passado, eu nunca havia visto nenhuma garrafa pela metade por lá.

Hora de mudar de assunto.

– Impressões e DNA – eu disse. – Alguma coisa?

Kurt levantou-se e balançou a cabeça.

– Nada.

Dei uma olhada na lixeira da cozinha: uma caixa de granola, alguns guardanapos amassados, cascas de laranja. Fechei a lixeira.

– Escute, estive pensando que devemos dar uma olhada melhor na vitimologia.

Cheyenne falou, espelhando meus pensamentos:

– Quanto mais você sabe sobre o estilo de vida da vítima, sua história e seus hábitos, mais você vai saber sobre o assassino.

– Sim – ela obviamente havia lido um dos meus artigos do ano passado também. Impressionante. – Como ele as escolhe? Como sua vida se mistura com a delas? Vamos mais fundo. Não apenas as coisas típicas como conhecidos em comum, local de trabalho, endereço de casa, filiações a clubes. Eu quero saber qual caminho nossas vítimas faziam para ir para o trabalho, onde alugavam seus filmes, onde colocavam gasolina.

Percebi que estava dando ordens e me segurei.

– Me desculpem. Eu quero dizer que é essa a abordagem que devemos tomar.

– Vamos colocar Robinson e Kipler nisso – Kurt disse. Ele não parecia incomodado pelo meu tom.

– Preciso falar com Kipler mesmo – Cheyenne interrompeu. – Vou ligar para eles – ela pegou o celular e foi para a sala de jantar.

Quando ela saiu, Kurt olhou para a porta no outro lado da cozinha.

– Você viu a garagem?

– Ainda não.

– Vamos, é bom você dar uma olhada.


21

A garagem de Taylor era um santuário brilhante para sua SUV Lexus recém-encerada, que ficava perfeitamente centralizada entre as paredes. Uma bancada contornava o lado oeste. O lugar parecia imaculado, não fosse pela larga faixa de sangue onde o assassino havia feito seu trabalho.

A maioria das evidências já havia sido removida da garagem e levada para o laboratório, incluindo as cordas que amarravam Taylor, a mordaça e o próprio cadáver; mas o envelope pardo com a mensagem escrita manualmente pelo assassino para mim ainda estava sobre a bancada: “Shade não vai mais te incomodar, agente Bowers”.

Tirei as fotos do envelope e descobri que eram fotos instantâneas de Tessa saindo do colégio. Taylor havia incluído um bilhete que dizia: “Ela seria um alvo tão fácil! Você deveria cuidar melhor dela. – Shade”.

Meus dedos ficaram tensos e, quando coloquei de volta as fotos, percebi que, apesar do valor que eu dava para a vida humana, eu estava feliz por Sebastian Taylor estar morto.

De acordo com os arquivos do caso, as marcas de pneus encontradas duas semanas antes ao lado de uma das caixas de correio que Shade havia usado combinavam com os padrões da SUV de Taylor. Perguntei para Kurt:

– As duas armas de Taylor estão no laboratório?

– Sim.

– E nenhuma foi disparada? Nenhuma estava carregada?

– Isso mesmo.

A porta para a casa se abriu e Cheyenne se juntou a nós de novo.

– Acho que o cara esvaziou as armas enquanto Taylor tomava banho – eu disse. – Foi tudo um jogo elaborado e doentio.

Cheyenne parecia um pouco confusa.

– Fale mais sobre isso.

– Taylor era muito bem treinado. Ele nunca teria andado com uma arma sem um cartucho e é quase certo que ele teria atirado no invasor se alguma de suas armas estivesse carregada. Estou achando que o assassino entrou na casa de Taylor, encontrou as armas e as esvaziou antes de Taylor entrar na garagem. A hora perfeita para esvaziar as armas teria sido enquanto Taylor tomava banho.

Um dos membros da perícia parou de coletar impressões digitais na maçaneta e veio em nossa direção. Cabelo castanho. Cerca de 30 e poucos anos. Rosto inquisitivo. Eu o reconheci como um dos homens que estavam esperando fora da mina quando investigamos o corpo de Heather na quinta-feira. Nós ainda não nos conhecíamos, então imaginei que ele fosse novo na unidade. Estiquei minha mão.

– Agente especial Bowers.

– Reggie Greer.

Apertamos as mãos e então me ajoelhei ao lado da porta do moto rista. Ele agachou-se ao meu lado.

– Vê o sangue aqui, debaixo do carro? Taylor deve ter se aproximado do veículo e estava abrindo a porta quando o assassino, que estava escondido sob o carro, atacou.

Gesticulei com a mão, imitando o movimento de corte da lâmina do assassino.

– Um, dois. Primeiro a perna direita. Vê o respingo ali? – Kurt e Cheyenne acenaram com a cabeça. Reggie analisou as manchas de sangue.

Com meu dedo, tracei o limite do sangue espirrado.

– Taylor já estava a caminho do chão quando o assassino cortou seu tendão de Aquiles esquerdo. Dá para ver como o sangue espirrado da perna direita começa perpendicular ao veículo e termina paralelo a ele, então Taylor girou no sentido anti-horário caindo no chão. Provavelmente caiu de costas. Não tenho certeza sobre isso, porém. Análise de manchas de sangue não é minha especialidade.

Levantei e olhei ao redor.

Reggie estava olhando para mim

– Sangue espirrado não é sua especialidade?

– Isso mesmo – eu estava estudando as linhas de visão da janela do carro de Brigitte. Se as luzes estivessem desligadas dentro da garagem, os faróis dela teriam iluminado parcialmente o local.

Reggie devia ter ouvido minha conversa com Kurt alguns momentos antes, porque disse:

– Mas se o assassino se esgueirou para dentro da casa e descarregou as armas, por que não matou Taylor enquanto ele estava indefeso no chuveiro? Por que esperar?

– Talvez isso não fosse só uma questão de matá-lo. Eu não acho que ele quisesse que acabasse rápido: prendê-lo na garagem, incapacitá-lo, mas deixar para ele as armas para que ele pensasse que conseguiria escapar. Como um gato brincando com um rato.

– A morte não é suficiente – Cheyenne disse suavemente. – Ele quer vê-los se contorcendo antes.

Ouvi um toque de celular e tanto Kurt quanto eu apalpamos nossos bolsos. Quando peguei meu telefone, percebi que havia esquecido de ligá-lo. Kurt mostrou seu celular.

– Preciso atender.

Ele se distanciou. Liguei meu celular, e Reggie continuou coletando impressões digitais na maçaneta. Cheyenne ficou ao meu lado silenciosamente por um instante, e depois disse:

– Você chegou à página da lista de evidências nos arquivos do caso? Guardei meu telefone.

– Não.

Ela apontou para um recibo na outra ponta da bancada.

– É de comida chinesa. A perícia encontrou três caixas de comida vazias.

– Você tá brincando – verifiquei a hora no recibo. Havia sido emitida às 20h18.

– Não. Brigitte pegou a comida vindo para cá, mas não havia nada no estômago dela – e ela acrescentou sombriamente, sem dúvida se referindo ao desmembramento de Brigitte. – Nós nem precisamos de autópsia para descobrir isso.

Mas Taylor havia tomado banho, se trocado e estava prestes a entrar no carro quando foi atacado... Ele não estava esperando comer em casa, ele ia sair...

Nós poderíamos verificar as chamadas recebidas e as mensagens de texto no celular de Brigitte mas, por enquanto, me parecia que o assassino havia de alguma forma entrado em contato com ela e a convencido a trazer comida.

E as caixas de comida estavam vazias quando a perícia as encontrou.

O que queria dizer que ele comeu a comida chinesa enquanto matava e desmembrava aquelas duas pessoas.

Esse cara não estava para brincadeira. Era frio e perturbado o quanto podia.

– O dr. Bender já terminou a autópsia em Taylor? – perguntei para Cheyenne.

Ela balançou a cabeça.

– Não sei.

Disquei o número dele e, quando Eric atendeu, pedi desculpas por ter ligado tão cedo, então perguntei como estava a visita de Tessa.

– Boa – ele disse. – As meninas estão no quarto da Dora agora, no computador.

Fiquei surpreso por Tessa já ter acordado, mas me mantive no caso.

– Eric, para quando a autópsia de Sebastian Taylor está marcada?

– Estou indo para o hospital em meia hora – então ele adicionou com sobriedade: –, pois essa semana foi cheia. Eu mal consegui acompanhar tudo. Pretendo começar às 10h.

Eu não sou fã de acompanhar autópsias. Olhei no meu relógio: 9h09.

Me ocorreu que em menos de 48 horas eu estaria de volta na bancada de testemunhas em Chicago. Decidi não pensar sobre isso.

– Tudo bem se eu der uma passada para ver o corpo antes de você começar?

– Claro. Vou pedir para Lance Rietlin se encontrar com você. Ele é o meu residente esse ano. Ele te levará para onde for preciso. Está procurando por algo específico?

– Eu tenho algumas perguntas sobre os ferimentos, como ele foi atacado. Vejo você lá.

– Ok. Até mais.

Guardando o telefone no bolso, virei-me para Cheyenne.

– Podemos deixar a perícia terminar aqui. Se sairmos agora, acho que teremos tempo suficiente para inspecionar o cadáver antes de o dr. Bender começar.

Ela pegou as chaves.

– Deixe-me dar só mais uma olhada por aqui. Encontro você no carro.


22

Tessa e Dora deram uma pausa nos vídeos para tomar banho, se vestir e comer pizza fria de café da manhã antes de voltarem para o computador para checarem suas páginas do Facebook.

Após 10 minutos, Dora deu um tapa na escrivaninha.

– Acabei de lembrar de um vídeo que queria te mostrar – cada palavra dela soava meio espremida por causa do chiclete de morango que ela havia colocado na boca alguns minutos antes. – Você viu aqueles dos meninos resolvendo um cubo mágico vendados?

– Não – Tessa havia ouvido falar sobre os vídeos de cubo mágico e sabia que eles existiam há algum tempo, mas não havia se interessado por eles. Mas agora parecia que isso faria Dora feliz, faria com que ela não pensasse na razão pela qual não tinha conseguido dormir bem, então ela agiu como se estivesse interessada. – Claro, sim, vamos vê-los.

– É muito louco – Dora estava digitando no teclado. – Já tentou resolver um?

– Não.

– Sério?

– Sim, por quê?

Dora encolheu os ombros.

– Não sei. É que você gosta tanto de quebra-cabeças e coisas do tipo – ela rolou a tela até uma imagem congelada de uma menina chinesa mais ou menos da idade delas segurando um cubo mágico. – Esse é o melhor. Ela resolve em menos de um minuto.

Ela apertou play e Tessa viu a garota no vídeo estudar o cubo, esperar alguém vir vendá-la e então girar os lados até que, apenas 57 segundos depois, o cubo estava totalmente resolvido. Então ela largou-o, tirou a venda e sorriu.

– Incrível, né? – Dora pegou seu próprio cubo mágico da estante e deu para Tessa. Todos os lados estavam embaralhados. – Primeiro eu achei que ela memorizava os movimentos, mas não sei, ela deve ter girado os lados umas 40 ou 50 vezes.

– Vamos assistir de novo.

Elas assistiram.

– Setenta e duas – Tessa disse.

– Setenta e duas o quê?

– Ela girou o cubo 72 vezes.

Com o braço por cima do teclado, Tessa arrastou o cursor para o ícone de play e clicou com o mouse. Dora aproveitou a oportunidade para olhar no espelho e mexer no cabelo.

Quando o vídeo terminou, Tessa começou a analisar o cubo que Dora havia dado a ela.

– É maluco, né? – Dora disse. – Eu não consigo fazer. Existem bilhões de combinações diferentes.

Tessa considerou que... seis lados... nove quadrados de cada lado...

– Provavelmente mais que isso – ela murmurou.

– Então, viu!? – Dora disse. – É por isso que é tão incrível esses meninos resolvendo o cubo vendados.

– Acho que consigo fazer isso.

– Fazer o que? Resolver?

– Sim – Tessa disse. Ela já estava treinando girar os lados, sentindo como o cubo funcionava, a maneira como uma girada afetaria as combinações de cores nos outros lados.

– Bom, sim, se você treinar...

O pai de Dora chamou-a de um outro quarto e ela agitou um dedo no ar.

– Só um instante.

Enquanto a amiga saía do quarto, Tessa examinou o cubo. Havia pelo menos três maneiras de resolvê-lo. Primeiro, trapacear. Olhar a solução na internet. Talvez com um vídeo de instruções.

Não era a praia dela.

Segundo, mexer no cubo até que você instintivamente conheça os padrões, como quando digitamos ou aprendemos a tocar um instrumento musical. Mas isso levaria dias, semanas. Talvez mais.

Não, para resolvê-lo rapidamente, seria necessária uma abordagem diferente.

Então, matemática. Atribuindo um número diferente para cada um dos 54 quadrados, resolver o cubo se tornava nada mais do que uma simples – Ok, talvez não tão simples – equação algébrica tridimensional. E como as peças do meio não se moviam, e cada um dos outros quadrados era fixo em relação ao quadrado do lado no lado adjacente do cubo, o número de giros necessários para resolver diminuía exponencialmente.

Ela concluiu que não importava quanto os lados estivessem embaralhados, o cubo poderia sempre ser resolvido em menos de 40 giros.

Provavelmente menos de 30.

A garota no vídeo não havia sido eficiente o suficiente em sua solução. Dora voltou e se jogou na cama ao lado de Tessa.

– Meu pai está totalmente perdido essa semana sem minha mãe por perto.

– Onde ela está mesmo?

– Alguma convenção imobiliária em Seattle. Volta na quarta. De qualquer forma, ele precisa ir ao hospital fazer uma autópsia e precisa que eu faça algumas tarefas. Então vou ter de te deixar na sua casa umas 10h.

Isso dava a elas meia hora.

– Sem problema – Tessa atribuiu mentalmente números para cada um dos 54 ladrilhos no cubo. – Estou pronta.

– Se você está dizendo – Dora segurou sua mão. – Deixe-me misturar.

– Já está misturado.

– Vou misturar mais.

Tessa segurou-se para não revirar os olhos.

– Tanto faz – ela deu o cubo para Dora.

Dora virou-se de costas e Tessa podia ouvir os lados sendo girados. Na verdade, misturar os quadrados do cubo seria como embaralhar um conjunto de cartas de baralho, onde três vezes não se diferenciavam de 20 vezes. O grau de aleatoriedade introduzido na ordem das cartas era estatisticamente idêntico; você poderia girar e misturar o cubo por cinco minutos, cinco horas ou cinco dias e realmente não alteraria o número de giros necessários para resolvê-lo.

Após cerca de 30 segundos, Dora virou-se e entregou a Tessa o cubo.

Ela o analisou. Rodou-o por 360 graus. Memorizou as combinações de cores.

– Marque meu tempo – disse, e então fechou os olhos.

– Você não tá falando sério.

Tessa abriu os olhos.

– O quê?

– Com os olhos fechados?

– A menina chinesa fez assim.

– Ela provavelmente praticou a vida inteira.

– Talvez ela não tenha praticado nada. Quem sabe? Eu consigo fazer.

– De jeito nenhum.

– Ok, que tal apostarmos um latte? Se você conseguir resolver, você me paga um a caminho de casa.

Dora encolheu os ombros. Mascou seu chiclete.

– Ok. E vice-versa. Preciso pegar uma venda para você ou posso confiar? Tessa fechou os olhos novamente.

– Pode confiar em mim.

– Tudo bem, garota – então uma pausa. Tessa imaginou que Dora estava checando o relógio. – Preparar... atenção... vai!

Ela levou um momento para revisar mentalmente a relação entre os 54 números.

– Já estou contando o tempo – Dora disse.

– Shhhh – Tessa começou a girar os lados do cubo, reorientando os números em sua cabeça a cada girada, visualizando-os girando e se alterando em torno uns dos outros como se o cubo fosse transparente e todos os quadrados tivessem os números escritos neles. Calculando, recalculando suas posições, seus movimentos, seus padrões. Não era tão difícil quanto ela pensou que seria.

– Trinta segundos.

– Quieta.

Em sua mente, ela via os lados se formando, o lado vermelho com pleto, o lado branco faltando apenas uma parte. Ela parou. Pensou. Girou.

Pronto. Dois lados.

Quase.

Ela trabalhava metodicamente no cubo. Sistematicamente.

– Cinquenta segundos.

– Dora, shhhh!

Gira, gira.

Gira.

Sim. Todos os números alinhados.

Pronto. Ela colocou o cubo sobre a cama e abriu os olhos.

– Tempo!

– Um minuto e quatro segundos – Dora disse. Elas estavam ambas olhando para o cubo, que estava pelo menos tão embaralhado quanto antes. – Uau! – Dora usou um tipo de sarcasmo amigável. – Impressionante. Acho que vou querer um latte grande.

– Droga – Tessa murmurou. – Isso deveria ter funcionado.

– Tome – Dora enfiou o cubo na sacola que Tessa usava como uma bolsa. – Pegue. É seu.

– Não, tá maluca?

– Sério. Essa coisa é difícil demais para mim – ela esperou até Tessa pegá-lo. – Vai. Tá tudo bem.

Finalmente Tessa aceitou.

– Legal. Obrigada.

– Ah! – Dora disse. – Você não vai acreditar nisso. Vamos arrumar um cachorro!

Dora era a rainha das coisas aleatórias.

– Um cachorro? – Tessa sequer tentou disfarçar seu desdém.

– Sim. Meu pai falou que acha que vai ajudar. As coisas têm sido difíceis, sabe, desde...

– Sim, eu sei.

– Eu sei que parece meio estranho arrumar um cachorro quando...

– Não-não-não-não – Tessa espremeu todos os nãos juntos em uma só palavra. Ela sabia que lidar com tristeza e culpa não era fácil, mesmo quando a culpa não era sua. Ultimamente ela havia se dedicado a escrever em seu diário e fazer poesias para lidar melhor com seus sentimentos, mas logo após a mãe morrer, ela tinha se dedicado a se cortar, machucando seu próprio braço, para suportar a dor e a solidão. Arrumar um animal de estimação era algo muito melhor do que isso.

– Você não precisa explicar. Mas é só um cachorro? Vamos, em vez disso arrume um gato.

Dora pareceu desapontada.

– O que há de errado com um cachorro? Eles são os melhores amigos do homem.

– Bom, eu tenho uma regra: sempre que meu melhor amigo começa a cheirar minha bunda e comer seu próprio vômito, é hora de achar um novo melhor amigo.

– Ah – Dora disse. – Uau! Obrigada pela imagem.

– Sem problema.

– Talvez devêssemos pegar um gato.

– Boa escolha.

E então Dora partiu para uma explicação sobre como a prima dela havia arrumado um gato quando ela a estivera visitando, no verão passado em Orlando, e que ela a havia apresentado para aquele garoto muito lindo que trabalhava na Disney World, e então Dora suspirou e começou a falar sobre o quanto ela ia sentir falta de Tessa enquanto estivesse em Washington, no verão, e como ela queria arrumar um emprego no Elitch Gardens10. depois de fazer as provas finais, para as quais ela não estava mesmo preparada...

Mas a atenção de Tessa havia voltado para o protetor de tela de Dora. Ela desviou os olhos e fingiu ouvir a amiga.


Eu estava do lado de fora da casa de Taylor esperando por Cheyenne quando Kurt se aproximou de mim. Ele não parecia feliz.

– Aquela ligação que recebi há alguns minutos... – ele disse – era o capitão. Tem algo que preciso te contar.

Pelo tom de voz de Kurt, eu estava certo de que o capitão não havia nos convidado para tomar uma cerveja com ele depois do trabalho.

– O que foi?

– Você sabe como ele não gosta muito das suas técnicas...

Lá vamos nós.

– Sim?

– Bom, na noite passada ele conversou com sua supervisora no Bu reau, a diretora-assistente Wellington.

Ótimo.

Desde que dei um depoimento alguns anos atrás que atrasou tem porariamente os planos de carreira dela, Margaret Wellington vinha me atacando com tudo que fosse possível. Preparei-me para más notícias.

– Ela disse ao capitão Terrell que, com o julgamento de Basque e o tiroteio de ontem, ela teme que você possa estar distraído, sem poder realizar o seu melhor.

Eu podia sentir minha temperatura subindo.

– O meu melhor.

– Palavras dela, não minhas. Ela está enviando outra pessoa para trabalhar no caso com a gente. O capitão Terrell já aprovou. Ele é um grande fã desses programas de criação de perfis na TV, então ele...

– Ela está mandando um criador de perfil? – se Margaret estivesse mandando Lien-hua, as coisas iam ficar desconfortáveis muito rápido.

– Sim.

– Ela falou quem? É a agente especial Jiang? Lien-hua Jiang?

– Não. Um cara chamado Vanderveld. Não falou o primeiro nome.

Ah, isso era muito pior.

– Jake Vanderveld.

– Então você o conhece?

– Sim. Fomos apresentados.

Kurt olhou para mim por um momento, sem dúvida tentando deci frar o que se escondia em minhas palavras.

– Algo que eu deva saber?

Margaret sabia como eu me sentia em relação a Jake. Provavelmente por isso ela o colocou no caso.

– Você já percebeu que eu não sou exatamente o maior fã de criadores de perfil?

– Eu já devo ter percebido.

– Bom, ele é o motivo – vi Cheyenne sentando no banco do motorista. – Eu te conto tudo depois. Quando ele chega aqui?

– Ele deve chegar em algum momento próximo ao meio-dia. Acho que ele vai querer se informar sobre tudo esta tarde na central de polícia. Eu te aviso quando souber mais.

Cheyenne abriu a janela e colocou a chave na ignição.

– O que está havendo? – ela perguntou.

– Te conto no caminho – abri a porta do carro. – Vamos visitar o necrotério.


23

Sala 404, Conjunto de Jornalismo Investigativo Prédio do Denver News

Centro de Denver

9h22

Amy Lynn Greer suspirou.

Seu marido Reggie estava trabalhando em uma cena de crime, então foi ela que havia deixado o filho de 3 anos na creche meia hora atrás, mesmo tendo dois artigos para seu editor até o meio-dia.

Ela adoraria cobrir os assassinatos que Reggie estava investigando, em vez de escrever sua coluna sobre política local ou o acompanhamento do artigo sobre a quantidade de uso de medicamentos em filhos de jogadores profissionais de beisebol que usam esteroides, mas seu chefe se recusava a colocá-la em artigos relacionados aos casos de Reggie.

Assim que Reggie conseguiu o emprego, ela pensou que, pela linha de trabalho dela, estar casada com um dos peritos forenses de Denver teria suas vantagens, mas Reggie estava sob o olhar examinador do tenente Kurt Mason, que o havia informado quando arrumou o emprego que, se ele alguma vez soltasse qualquer detalhe sobre qualquer investigação para sua esposa, ficaria sem emprego e iria para o tribunal enfrentar acusações criminais antes que a história dela fosse publicada. Ponto final. Ela conhecia o tenente Mason e podia dizer que ele era um homem de palavra.

Ela fez uma pequena pausa no esboço da história dos esteroides, checou seu e-mail e encontrou cinco cartas, uma de cada agente literário para os quais ela havia enviado sua proposta de livro, todas rejeitando-o.

Cinco em um dia.

Isso deve ser um novo recorde.

Uma batida na porta interrompeu seus pensamentos.

– Sim?

A porta se abriu e uma voz feminina vagamente familiar disse:

– Eu tenho algo para você.

Amy Lynn olhou e viu uma das secretárias, uma mulher de cabelos cor de areia e pulsos grossos de quem ela nunca lembrava o nome, de pé na soleira da porta, segurando um enorme vaso de cerâmica com uma planta de folhas brilhantes, de onde nascia um cacho de flores brancas arroxeadas. O vaso era tão grande que ela precisava usar as duas mãos.

– O que é isso?

– Flores – a mulher explicou como se Amy Lynn não soubesse. Sua voz estava tensa pelo esforço de segurar o vaso enorme. – Posso colocá--las na mesa?

– Claro – Amy Lynn tirou alguns papéis do caminho. Ela tentou se lembrar do nome da mulher mas não conseguiu. Ela pensou ser talvez Britt ou Brenda ou Brett ou algo formal e feminino assim.

A secretária apoiou o vaso na mesa.

– Então, qual é a ocasião especial?

Amy Lynn olhou para as flores.

– Não tem nenhuma ocasião especial.

Flores?

Quem mandaria flores? Reggie nunca faria isso.

Pequenos cachos de estame apareciam no centro de cada uma das flores brancas. As folhas se sobrepunham e cresciam em camadas, cada conjunto de duas folhas em um ângulo perpendicular às folhas que estavam abaixo. O cheiro forte mentolado era de certo modo familiar, mas também desconhecido ao mesmo tempo.

Ela sabia como identificar alguns tipos de flores, mas na maioria aquelas que todo mundo conhece: lírios, margaridas e rosas. Ela não fazia ideia de que tipo de flores eram aquelas.

Mas ela estava mais curiosa sobre quem deveria ter mandado as flores do que com o tipo delas.

– Tem algum bilhete?

A secretária com o nome esquecível pescou um pequeno envelope de onde ele tinha caído no meio das folhas.

O envelope era branco e tinha apenas quatro palavras escritas à mão na parte da frente: “Para Amy Lynn Greer”.

Ela imediatamente percebeu que não era a letra do marido, e que se ele houvesse mandado as flores, não teria incluído o sobrenome dela.

Mas se não foi Reggie, quem foi? Ela tinha algumas fontes que eram homens e alguns amigos que eram um pouco mais que amigos, mas nenhum deles seria impetuoso o suficiente para mandar flores para ela. Pelo menos é o que ela pensava.

A secretária estava na espreita.

– Eu não abri – ela apontou para o envelope.

– Obrigada... hum, espere, desculpa. Qual é o seu nome mesmo? A mulher pareceu ofendida com a pergunta.

– Brett Neilson. Eu trabalho aqui desde...

– Obrigada, Brett, sim. Desculpe-me. Eu não sou muito boa com nomes.

– Tudo bem – Brett disse, mas ela não saiu, apenas ficou olhando para as flores. – Meu marido nunca me manda flores.

Amy Lynn não sabia o que dizer. Finalmente, ela apenas murmurou: – É. Homens. Você sabe – soou patético quando ela disse, mas de algum modo isso parecia satisfazer Brett Neilson, que deu a ela um meio sorriso e saiu da sala, fechando a porta atrás dela.

Após Brett ir embora, Amy Lynn analisou as flores novamente. Elas tinham uma qualidade formal, funcional, em vez de serem românticas e sedutoras. E aquele cheiro. Era de alguma especiaria?

E quem as enviou?

Ela não fazia ideia.

O bilhete.

Rasgando o envelope, ela encontrou um pequeno pedaço de papel-cartão com uma mensagem curta e enigmática escrita à mão:

Devemos nós tratar das lágrimas alheias? Por favor, sra. Greer, tenha coração.

– John.

John?

Que John?

Ela não reconhecia a letra manuscrita.

Amy Lynn pensou em todos os Johns que ela conhecia e quase ime diatamente eliminou todos eles da lista de pessoas que poderiam mandar flores para ela, especialmente essas com um odor enigmático.

Talvez fosse uma referência a alguma história que havia escrito? Algo sobre tristeza? Tragédia? A morte de alguém?

Amy Lynn voltou para seu computador e sentiu a excitação se manifestando dentro dela pela primeira vez naquela manhã.

Descobrir quem enviou as flores para ela era muito mais interessante do que analisar a política local ou escrever sobre as famílias de jogadores de beisebol drogados. Seu editor ia ter de esperar.

Ela empurrou suas anotações para o lado, digitou em seu teclado e começou a procurar pelos artigos que havia escrito, buscando referências a qualquer pessoa chamada John.


24

Cheyenne e eu chegamos ao Hospital Memorial Batista, um dos hospitais mais antigos e respeitados do estado do Colorado, às 9h46.

A administração do hospital vinha reformando a ala leste nos últimos seis meses e dava para ver que ainda faltava muita coisa. A cobertura da imprensa local havia enfatizado como “o atendimento aos pacientes não havia sido comprometido pelo menos” durante a reforma, mas no decorrer dos anos eu tinha visto a quantidade de informações tendenciosas que acabam saindo na imprensa, não estava de todo convencido das declarações cuidadosamente preparadas pelo administrador do hospital.

Eu estava saindo do carro quando meu celular tocou:

– Como nós fazíamos antes do celular? – Cheyenne disse com bom humor.

– Sofríamos menos acidentes de carro – olhei para a foto de identifi-cação de quem estava ligando.

Lien-hua Jiang.

Muito bem, isso sim era inconveniente. Cheyenne olhou para mim.

– Dê-me licença um minuto, por favor – eu disse.

– Claro – ela começou a atravessar o estacionamento, esperei até que estivesse fora do alcance do som.

– Oi – eu disse para Lien-hua.

– Alô, Pat? Como você está?

– Bem. Está tudo bem, muito bem – uma resposta dura e sem conteúdo. Comecei a seguir Cheyenne, mas me certificando de estar distante o suficiente para que ela não ouvisse minha conversa. – Como você está?

– Estou bem, obrigada por perguntar.

– Que bom.

– Sim – uma pausa que gritava alto. – Pat, você sabe por que estou ligando, eu acho.

Uau! Bom, ela não queria perder tempo, não é?

– Acho que talvez eu saiba – as palavras tinham um tom afiado, e eu sabia, mas deixei que saíssem assim mesmo.

– Por favor, isso já é muito difícil de se fazer pelo telefone. Você não precisa fazer ficar pior.

– Eu não estou tentando... – eu realmente não queria fazer isso. Não aqui, não agora. A 20 metros de mim, Cheyenne estava entrando no hospital. – Olhe, podemos falar sobre isso depois, talvez hoje mais tarde?

– Estou saindo para um serviço em Boston e não quero ficar com isso na minha cabeça. Não é nada contra você, Pat. Você sabe disso – eu podia ouvir dor na voz dela, mas nenhuma condenação. Ela ainda gostava de mim, não estava me culpando. E isso só tornava tudo mais difícil. – É que... – ela disse – ... as coisas não andam... Não está dando certo.

Por mais de um mês as coisas vinham se deteriorando, e ambos ficamos dançando em torno do problema, evitando dizer aquilo que nós dois sabíamos que era necessário.

– Sério, Lien-hua, não é uma boa...

– Acabou, Pat.

Senti uma pontada, uma sensação profunda de fim e arrependimento.

– Não, vamos conversar sobre isso depois. Talvez quando eu for para Washington mais no final da semana nós possamos...

– Não. Por favor. Seria duro demais para mim – sua voz não era rude, mas firme.

Uma longa pausa seguiu suas palavras. Eu não fazia ideia do que dizer. Tentei formular as palavras certas, mas elas me escaparam:

– Então...

– Sim.

Cheguei até as portas automáticas do hospital e elas se abriram desli zando. Eu mal estava ciente de estar entrando.

Em um dia melhor, tanto Lien-hua quanto eu teríamos encontrado algo útil ou agradável para dizer antes de finalizar a ligação, mas nesse dia, nenhum de nós disse nada. Instantes de silêncio desconfortável se passaram até que finalmente ela disse adeus, eu disse adeus e, então, a conversa terminou. Muito antes de eu estar pronto para isso.

As portas deslizantes se fecharam atrás de mim e fiquei parado com o olhar perdido na direção do telefone até que senti a presença de Cheyenne ao meu lado.

– Está tudo bem?

– Sim – menti.

Coloquei o telefone de volta no bolso e o senti estranho e desconfor tável. Peguei-o de volta e o enfiei novamente no bolso, com mais força.

Ela olhou para mim com compreensão e preocupação.

– Não, não está.

– Eu estou bem – eu disse, mas não a olhei nos olhos. – Vamos.

Alguns minutos depois, estávamos sendo escoltados pelo corredor por Lance Rietlin, um homem inquieto com seus quase 30 anos, que passou todo o tempo contando para Cheyenne o quanto ele apreciava poder trabalhar sob a tutela de alguém tão experiente e respeitado quanto o dr. Bender, mas eu não estava ouvindo na verdade. Em vez disso, estava tentando convencer a mim mesmo de que Lien-hua e eu ainda poderíamos ser amigos, que seríamos capazes de colocar de lado o sentimento profundo que tivemos um pelo outro e voltar a nos relacionarmos amigavelmente como fazíamos antes de começarmos a sair juntos, pois é isso que você diz a si mesmo nessas horas.

Você diz essas coisas, você se esconde atrás da ingenuidade, porque a verdade é muito dolorosa para ser admitida.

E a verdade era: de agora em diante seria difícil trabalhar com Lien--hua; eu sentiria ciúmes da atenção que ela daria para outros homens e sempre ficaria imaginando se nós, ou eu, poderíamos ter feito mais para salvar nosso relacionamento.

Lance nos conduziu descendo uma escada até o nível inferior do hospital, para além de uma série de armários de suprimentos e da sala de fisioterapia.

– Eles estão fazendo algum tipo de manutenção nos elevadores – explicou enquanto passávamos pelas placas de “fora de serviço” coladas nas portas. – Eles devem estar funcionando daqui a uma hora ou mais. Mas eu não contaria com isso.

Enquanto meus pensamentos voltavam para Lien-hua, percebi que falar abertamente sobre essas coisas foi um tipo de alívio, mesmo que cada um seguir seu caminho não fosse algo que eu quisesse.

Chegamos ao necrotério, e Lance destrancou a porta.

– Está bem cheio por aqui nesta semana. O dr. Bender e eu estivemos... Bem.

Ele não precisava dizer mais nada.

– Fiquem à vontade – ele abriu a porta. O cheiro muito forte de desinfetante hospitalar preencheu o ar. – Eric deve chegar em cerca de 10 minutos.

Percebi Cheyenne olhar para o relógio.

– Estarei no andar de cima – Lance disse. – A menos que queiram que eu fique.

– Não – respondi. – Ficaremos bem.

Ele me fez um leve aceno com a cabeça.

– Se precisarem de alguma coisa, é só ligar para o departamento de admissão. Eles me avisam – ele me passou o número, eu agradeci e, após ele ter ido embora, Cheyenne e eu entramos na câmara branca e estéril onde a morte é dissecada e estudada.

A sala se parecia com a maioria dos necrotérios que eu já havia visitado nos últimos 15 anos: balcões de aço inoxidável, luzes brancas fluorescentes, microscópios, balanças, unidades de eliminação sanitária, bandejas de instrumentos. Uma maca vazia.

E, é claro, as serras elétricas vibratórias para cortar crânios sem destruir a matéria cerebral delicada, agulhas Hagedorn para costurar as cavidades corporais, cinzéis para o crânio, serras de osso, cortadores de costelas.

Instrumentos do ofício.

As macas com os mortos deviam estar no freezer.

Ao atravessar a sala, pensei em como os necrotérios são projetados para serem impessoais e institucionais o máximo possível. Apesar de cadáveres serem sujos e nauseantes, o lugar onde os analisamos é impecavelmente limpo e cuidadosamente desinfetado para sobrepor o cheiro de podridão.

Talvez seja a nossa maneira de lidar com a morte, de ajudar a esquecer a risada, as lágrimas e os sorrisos das pessoas que estamos dissecando.

Talvez seja uma coisa boa, ser capaz de esquecer.

Chegamos ao freezer e fiquei olhando para a porta por um momento.

– Tá certo – disse suavemente. – Vamos dar uma olhada no governador.


25

Destravei a porta do freezer do necrotério. Abri-a.

Um redemoinho de ar gelado escapou e me rodeou. Eu podia ver cinco macas dentro.

Lábios mortos sussurravam para mim: “Por quê? Por que você não fez alguma coisa? Por que você não veio mais cedo?”.

Em cada maca, um cadáver. Reconheci os rostos de três deles como as vítimas do começo da semana. Estranhamente, nenhum dos corpos estava coberto e dois deles estavam sem cabeça. Dois, não um. Não apenas o corpo de Sebastian Taylor.

O que está...?

Então, quando dei o primeiro passo para dentro do freezer, eu a vi.

Uma mulher, sentada contra a parede do fundo, com os lençóis que faltavam nos outros corpos envoltos em seus ombros e braços. Seus olhos estavam abertos.

Corri até ela, Cheyenne do meu lado.

Quando me inclinei sobre a mulher e senti seu pulso, percebi que já a havia visto antes em uma das cafeterias que visito regularmente. Eu não sabia seu nome, apenas conhecia seu rosto, mas de algum modo, tê-la reconhecido tornou as coisas mais urgentes. Sua pele estava fria ao toque. Seus lábios, azulados, cianóticos, mas ela ainda estava respirando. Senti uma batida de coração fraca.

– Ela está viva – eu disse para Cheyenne.

– Graças a Deus. Vamos tirá-la daqui.

– Senhora – eu disse –, nós vamos ajudá-la. Ela moveu os lábios mas não emitiu nenhum som. Percebi que ela não estava tremendo, o que significava que ela estava nos estágios avançados de uma hipotermia.

Cheyenne deu apoio debaixo do braço dela para levantá-la.

– Cuidado – pelas minhas experiências de alpinismo, eu sabia que carregar pessoas com hipotermia severa podia perturbá-las, fazê-las entrar em choque ou causar arritmia cardíaca, mas eu não queria dizer isso com a mulher ouvindo. – Vou pegá-la.

O mais gentilmente possível, levantei a mulher. Ela era leve, mas ainda assim senti uma pontada de dor na minha lateral, onde Grant havia acertado o cabo do machado nas minhas costelas no dia anterior.

Carreguei-a para a maca vazia na sala de exame e Cheyenne passou correndo por mim, apertou o botão do interfone e pediu que um médico se apresentasse no necrotério, imediatamente!

Coloquei a mulher sobre a maca.

– Vamos tratar de aquecer você.

Enquanto ela permanecer consciente, deve ficar bem.

– Vai ficar tudo bem – Cheyenne disse, mas ela deve ter percebido como a condição da mulher era séria pois ela sussurrou, apenas para os meus ouvidos: – Não acho que podemos esperar por um médico.

– Ela vai ficar bem.

Mas enquanto eu avaliava se deveríamos ou não esperar por um médico ou sair atrás de um, vi os olhos da mulher virarem para trás. Cheyenne deu um tapa firme no rosto dela para mantê-la acordada.

– Fique com a gente – ela disse. – Fique com a gente! – mas a respiração da mulher estava ficando agitada. Cheyenne me chamou. – Pat...

– Eu sei.

A mulher estremeceu. Cheyenne deu um tapa nela novamente, mas dessa vez ela não respondeu.

Agarrei a ponta da maca e empurrei até o corredor.

– Nós temos de aquecê-la. Agora.


26

Assim que passei pela porta, lembrei-me de que o elevador do andar estava fora de serviço.

Não!

Em uma região selvagem, você tiraria as roupas da pessoa e se deitaria ao lado dela para compartilhar o calor do seu corpo, mas imaginei que pudéssemos fazer muito mais que isso aqui no hospital.

Olhei pelo corredor, relembrando as salas pelas quais havíamos passado no caminho para o necrotério.

– A sala de FT – murmurei e comecei a empurrar a maca com a mulher pelo corredor o mais rápido que podia.

– O que é isso? – Cheyenne me alcançou.

– Fisioterapia, nós passamos por ela no caminho para cá. Eles devem ter uma hidromassagem.

Cheyenne correu na minha frente e segurou a porta aberta. Entrei com a maca.

– Nós vamos ajudá-la – eu disse para a mulher. – Está tudo bem.

Gentilmente, peguei-a em meus braços.

Ele a trancou no necrotério.

O assassino tentou matá-la congelada.

A natureza sádica e impiedosa desses crimes me assustava, me dava náuseas.

Ninguém mais estava presente, mas vi Cheyenne gesticular na minha direção do outro lado da sala.

– A hidromassagem fica aqui.

A piscina havia sido construída para dentro do chão e enquanto eu descia os degraus e entrava na água morna, vi Cheyenne ir até o painel de controle.

– Desligue os jatos – eu disse. – Pode ser um choque muito grande para o sistema dela.

– Certo.

Apoiando seu peso, cuidadosamente baixei a mulher para dentro da água, mas ela começou a tremer, pequenos calafrios passando pelo corpo. Levantei-a um pouco, então baixei-a novamente, mais lentamente, enquanto Cheyenne falava com ela, confortando-a, tranquilizando-a ao lado da piscina.

Alguns momentos depois, a mulher tossiu e piscou os olhos rapidamente. A cor estava voltando para o seu rosto.

– Ele... – ela estava falando suavemente, mas pelo menos estava falando. – Ele me deixou na...

– Eu sei – eu disse. – Quem foi? Quem fez isso com você? – ela balançou a cabeça. Ela não sabia. – Qual é o seu nome?

Ela engasgou. Tomou fôlego.

– Kelsey.

– Vamos aquecê-la, Kelsey. Você vai ficar bem.

Ela concordou com a cabeça.

Momentos se passaram. Ondas de vapor morno saíam da água e ser penteavam à nossa volta.

A respiração de Kelsey começou a normalizar, a ficar mais estável.

Então ouvi a correria no corredor.

– É o médico – eu disse para Cheyenne, mas ela já estava indo na direção da porta. Um instante depois, um homem com roupa de médico, uma enfermeira e Lance Rietlin vieram correndo para dentro da sala. – Por aqui!

– gritei, enquanto erguia Kelsey da água e cuidadosamente saía da piscina.

– Vamos colocá-la na maca – Lance disse, então me ajudou a deitá-la.

Ele tocou a mão dela levemente. – Qual é o seu nome?

– O nome dela é Kelsey – Cheyenne disse, então tirou uma mecha de cabelo dos olhos de Kelsey.

– Precisamos tirar essas roupas – a enfermeira disse para Kelsey.

– Pode ser?

Kelsey acenou com a cabeça e Cheyenne e a enfermeira remove ram suas roupas molhadas enquanto Lance buscava algumas toalhas e cobertores do roupeiro. Então ele os entregou para a enfermeira que rapi damente a secou e colocou os cobertores sobre ela.

O médico, um homem careca de uns 50 anos, com uma aparência de preocupação permanente no rosto, verificou os olhos de Kelsey com uma pequena lanterna.

– De quem foi a ideia de aquecê-la na piscina?

– Minha – eu disse. – Não havia outro jeito de aquecê-la. Nenhum médico aqui, nenhum elevador. Ela estava entrando em choque. Precisávamos fazer alguma coisa.

– Nós viemos pelo elevador – ele disse. Soava como uma acusação.

– Eles estavam fora de serviço quando eu os trouxe aqui para baixo – Lance explicou.

Após um momento de reflexão, o médico pareceu aceitar a explicação.

– Tudo bem. Bom, vamos levá-la daqui – então Cheyenne me disse que voltaria a falar comigo em alguns minutos, houve um tumulto de pessoas, ela saiu com a equipe médica e fiquei sozinho na sala.

Peguei uma toalha e passei pelo meu rosto e braços. Agora Kelsey tinha muitas pessoas ajudando-a, então decidi voltar para o necrotério e dar uma olhada, especialmente agora que era uma cena de tentativa de homicídio.

Joguei a toalha em uma pilha. Virei-me na direção do corredor.

Um homem estava parado na soleira da porta.

– Ei, Pat. Bom te ver.

O criador de perfis, agente especial Jake Vanderveld, havia chegado.


27

– Olá, Jake – eu disse.

Ele entrou na sala. Quatro anos mais novo que eu. Bonito. Inteligente.

Em ascensão. Jake tinha cabelos loiros despenteados, olhos azuis intensos e usava seu bigode impecavelmente aparado como um distintivo. Mesmo uma década depois de seu mestrado em psicologia da anormalidade, ele ainda possuía o físico afiado de um nadador de primeira categoria que tinha desde que esteve em Cornell.

– Então, a diretora-assistente Wellington me disse que você precisa de uma mãozinha nesse caso – ele estava olhando para minhas roupas molhadas. – Fiquei feliz por estar disponível – ele estava sorrindo maliciosamente.

– Pensei que você só chegaria hoje à tarde.

– Mudei meus horários. Imaginei que você fosse ficar feliz por ter dois olhos a mais nesse caso. Então, aquela mulher que estavam levando pelo corredor, o que aconteceu?

Enquanto eu resumia, percebi que, na pressa para levarem Kelsey para um quarto, suas roupas haviam ficado jogadas no chão. Jake observou--me pegando-as, e as engrenagens pareciam estar girando na cabeça dele.

– Você a levou para dentro da hidromassagem?

– Sim.

– Eu queria poder ter estado aqui para ajudar.

Imediatamente senti que suas palavras podiam ser entendidas de duas maneiras: tanto como uma expressão genuína de preocupação ou como uma piada idiota e totalmente inapropriada. Seu tom de voz me fez pensar que era a segunda opção, mas antes que eu pudesse responder, meu telefone tocou. Fiquei impressionado por ele não ter sido danificado pela água.

O rosto de Tessa apareceu na tela de identificação e pedi a Jake para aguardar um minuto, então atendi o celular.

– Estou um pouco ocupado, Tessa. Não é uma boa hora para conversar.

– Hum, a agente Jiang ligou, tipo, há meia hora. Ela deixou uma mensagem no meu celular. Disse que tinha tentado ligar no seu primeiro.

Ela deve ter chamado antes de você ter ligado o celular.

– Ela deve estar tentando muito falar com você – Tessa continuou. – Você deveria dar um toque para ela.

Tinha sido ruim o suficiente conversar com Lien-hua perto de Cheyenne; eu definitivamente não queria fazer isso na frente de Jake Vanderveld. Coloquei o telefone contra o peito para abafar o som.

– Ei, você pode me dar alguns minutos? Ligue para a expedição, peça que uma unidade de perícia venha para cá para analisar o necrotério.

Ele deu um pequeno sorriso.

– Te vejo em breve, Pat.

– Tudo bem, Jake.

Então ele saiu, e eu disse a Tessa:

– Eu conversei com a agente Jiang há cerca de 20 minutos.

– E?

– E o quê?

Essa garota era mais observadora que a maioria dos agentes com quem eu trabalhava.

– Está tão evidente assim?

– Eu diria que sim.

– Bom, eu acho, pode dizer que sim, é oficial. Escute, quanto ao almoço...

– Decisão sua ou dela?

– Nem tanto uma decisão, mais uma escolha mútua – andei até o corredor. – Eu preciso cuidar de umas coisas, talvez eu possa te ligar mais tarde.

– Sinto muito, Patrick – parecia que ela realmente sentia muito. – Terminar é uma droga.

– Eu já sou crescido, Raven. Consigo lidar com isso.

– Não importa o quanto crescido você é – ela parou. Escutei-a tomando um gole de alguma coisa. – Ainda assim, é uma droga.

Ali estava eu, recebendo conselhos de relacionamento de uma adolescente. Eu não tinha certeza do que dizer.

– Bom, obrigado.

Como minhas roupas estavam molhadas, depois de ter uma chance de dar uma olhada no necrotério, eu teria de trocá-las, e isso queria dizer voltar para casa.

– O almoço ainda está de pé?

– Sim. Eu estava pensando naquele lugar novo, vegano. Fruition. Você viu, todas aquelas placas, “Venha para o Fruition”, “Você já experimentou Fruition?”.

Que animador. Tofu, espinafre e ervilhas.

– Você ainda está na casa da Pandora?

– Ela me deixou em casa.

– Ok – eu estava quase no necrotério. – Eu consigo estar aí em cerca de meia hora. Você pode se arrumar até eu chegar.

– Bom, na verdade, eu estou bastante ocupada.

– Ah é? Num sábado de manhã? O que você está fazendo?

– Dora me deu um cubo mágico que estou tentando resolver. E, ah é, vou terminar de tomar esse latte médio triplo gelado com três doses de xarope de canela meio a meio com chantilly e aroma de torta de abóbora antes de você chegar aqui – ela falou o nome de sua bebida de uma vez só.

Parei de andar e olhei desfocado para a parede.

– Você está brincando. Por favor, diz pra mim que você está brincando.

– É o favorito da Dora. Decidi experimentar um. É bom. Quer que eu guarde um pouco pra você?

Isso era muito perturbador.

– Admita. Você comprou isso só para me incomodar.

Escutei-a tomando um gole.

– Se foi isso, você merece. Você é fresco com café.

– Fresco não, sou um apreciador. Espera aí. Aroma de torta de abóbora é sazonal. Eles só servem no outono.

– Eles tinham um pouco que sobrou.

– Ah, por favor, você não fez isso.

– Fiz.

– Você está bebendo café produzido em massa e embalado em fábrica que foi torrado e moído há mais de seis meses?

Escutei-a tomar um gole novamente, um gole grande e entusiasmado.

– Ahh. Delícia! Talvez eu vá comprar um pra você.

– Vejo você em meia hora para o almoço. Vá se arrumar. E jogue essa coisa fora antes que alguém me prenda por abuso infantil.

Mais um gole barulhento.

– Até mais.

Cheguei ao necrotério e encontrei o dr. Eric Bender lá dentro, tirando o cadáver sem cabeça ainda não identificado do freezer.

Após uma breve saudação, informei-o sobre a mulher que havíamos acabado de resgatar. Ele ouviu com atenção, ocasionalmente balançando a cabeça, e quando terminei ele disse:

– Você disse que o nome dela é Kelsey?

– Sim.

– Então esse era o marido dela – Eric gesticulou na direção do cadáver na nossa frente. – Travis Nash. Ele foi trazido ontem de manhã. Infarto do miocárdio. Não havia nenhuma autópsia requisitada, tudo apontava para causas naturais – ele pegou uma pasta de arquivo e me mostrou uma foto de Travis antes de ele ter sido decapitado.

– Precisamos descobrir do que esse homem realmente morreu – eu disse. – Mas essa sala de exame é agora uma cena de crime. Tentativa de homicídio. Você terá de tirá-lo daqui ou esperar a perícia chegar.

Eric não parecia feliz com aquilo, mas não discutiu comigo.

– Ok – ele disse.

– Posso dar uma olhada em Taylor?

Eric acenou com a cabeça e eu o segui para dentro do freezer.


28

Olhei para o corpo mutilado e sem cabeça de Taylor. Os arquivos do caso mencionavam que ele havia sido torturado, mas eu não havia entendido o quão extensas as lesões haviam sido.

Eric deve ter percebido que eu observava as lesões.

– Esse homem não morreu rapidamente – ele disse.

Eu estava mentalmente reconstruindo o modo como Sebastian Taylor havia sido atacado; Eric apontou para o osso saliente no braço direito do cadáver.

– Olhe aqui. Sua ulna está fraturada, mas não há nenhuma contusão próxima do local da quebra. Seu pulso também estava fraturado.

– O que isso quer dizer?

– Não posso dizer ao certo apenas com observações externas, mas é muito provável que o assassino tenha usado as próprias mãos – ele apontou para a fratura no antebraço. – Com base no ângulo e na severidade dessa fratura aberta em espiral, o agressor precisaria ser anormalmente forte e ter provavelmente estudado...

– Artes marciais, combate a curta distância ou algum tipo de corpo a corpo.

– Sim.

O assassino encontrou Taylor... desabilitou suas câmeras de segurança...

possivelmente tem habilidades em autodefesa...

Treinamento de inteligência militar?

Experiência nas forças policiais?

– Ok. Mantenha-me informado.

Ele acenou com a cabeça.

– Manterei.

Encontrei Cheyenne de pé ao lado da porta do quarto 228, mandando uma mensagem de texto para alguém. Ela me viu enquanto me aproximava.

– Kelsey está bem melhor.

– Isso é ótimo.

– Eles a colocaram em uma intravenosa salina aquecida para aumentar sua temperatura interna – ela terminou de mandar sua mensagem de texto e guardou o telefone no bolso. – Um policial está a caminho para vigiar o quarto caso o assassino descubra que ela sobreviveu e tente retornar para terminar o que começou.

– Ótimo. Kelsey deu alguma descrição do agressor?

– Ela não quer falar sobre isso. Quando perguntei, ela apenas fechou os olhos e balançou a cabeça.

Algumas vezes, vítimas levam semanas antes de desenvolverem distância emocional para falarem sobre eventos que colocam suas vidas em risco; então, após uma experiência tão traumática quanto ficar trancada em um necrotério, a reação de Kelsey não me surpreendia. Mas não facilitaria em nada o nosso trabalho.

– Vamos acompanhar – Cheyenne disse. – Se ela sentir vontade de falar, vou chamar alguém para fazer um retrato falado. Ah, e o agente Vanderveld passou por aqui.

– Ótimo.

– Ele parece ser um homem muito seguro de si mesmo.

– É um ponto de vista – eu realmente não queria conversar sobre Jake. – Ei, vamos pedir para um policial analisar as câmeras de segurança do hospital para descobrir quando Kelsey chegou. Talvez tenha alguma imagem de seu agressor entrando ou saindo do hospital.

– Vou arrumar alguém para fazer isso.

Eu rapidamente informei Cheyenne sobre o marido de Kelsey. Ela acenou com a cabeça solenemente, então olhou para o relógio.

– Eu nem imagino pelo que ela está passando. Vou ficar por aqui por mais um tempo. Querendo falar ou não, ela precisa de alguém com ela agora.

– Mais uma coisa – eu disse. – Preciso ir para casa me trocar. Posso pegar seu carro emprestado?

– Sempre.

Dei para ela as roupas molhadas de Kelsey, ela me deu as chaves do carro e tomei meu caminho.

Desde que recebeu as flores, cerca de uma hora antes, Amy Lynn Greer procurou por todos os artigos que havia escrito no ano passado, tentando achar ligações com histórias sobre pessoas chamadas John, Jonathan ou Johnson e havia encontrado algumas possibilidades, mas nada que parecesse relevante.

Após ter eliminado os artigos nos quais havia trabalhado pessoalmente, ela expandiu sua busca para incluir artigos de outros jornalistas.

Nada sólido até então.

A frase sobre tratar das lágrimas alheias fez com que ela se sentisse vagamente inquieta e, como uma jornalista investigativa, ela não gostava de mistérios que não conseguia resolver.

Um pensamento que a deixava nervosa começava a se tornar mais e mais invasivo.

Talvez não fosse apenas uma coincidência ela ter recebido as flores enquanto seu marido e o resto da unidade de perícia estavam investigando uma das mais cruéis ondas de crime na história de Denver.

Ela decidiu gastar mais uma hora tentando descobrir alguma coisa sobre a frase “Devemos nós tratar das lágrimas alheias?” e, então, mesmo não devendo, ela ligaria para o marido para descobrir se isso poderia estar relacionado com algum dos casos em que ele estava trabalhando.

Então tá certo. Mais uma hora.


29

Após conversar com Patrick pelo telefone e torturá-lo com o latte de torta de abóbora, Tessa havia passado algum tempo descansando em seu quarto, ouvindo música e mexendo no cubo mágico, mas não conseguia resolvê-lo. Mesmo com os olhos abertos.

E aquilo realmente a incomodava.

Ela havia ligado o iPod em seu aparelho de som e quando a lista de músicas chegou ao CD Audible Sigh do Vigilantes of Love, ela aumentou o volume para ajudá-la a se concentrar. Um pouco retrô, com um estilo de rock meio R.E.M., não tão pesado quanto a maioria das bandas de que ela gostava, mas com letras legais. Bill Mallonee era um gênio com palavras.

Quando Black Cloud O’er Me começou a tocar, ela conseguia evitar pensar na conversa com Patrick. Ele realmente gostava de Lien-hua, e mesmo agindo como se não fosse grande coisa, ele deveria estar bem machucado depois de terminar com ela. Isso sim é nuvem negra.11.

Tessa havia começado a se acostumar com a ideia de os dois estarem juntos, mas havia percebido o relacionamento deles se desintegrando nas últimas semanas, e provavelmente foi melhor que eles encerrassem isso agora, antes que algum deles se machucasse mais ainda. Ela havia visto muita gente na escola arrastar as coisas por tempo demais e então terminar. Não era bonito.

Uma carnificina de corações.

Soava como algo que Bill Mallonee teria escrito.

Então, faça o que Pat pediu. Arrume as coisas. Faça-o ficar mais feliz.


Obviamente, como iriam apenas ficar três meses fora, na Costa Leste, eles não levariam tudo, mas a maioria das coisas em seus quartos teria de ir. Eles haviam esvaziado o armário dele na noite passada. Talvez ela conseguisse terminar essa parte antes que ele chegasse em casa.

Entrar no quarto dele sempre havia sido um pouco estranho para ela, como um tipo de invasão do seu espaço pessoal, mas quanto mais tempo eles viviam juntos, mais normal isso parecia para ela. Coisa que acontece com quem tem uma família. Uma das coisas boas.

Ela entrou. Olhou ao redor.

Lençóis amarrotados sobre a cama. Um exemplar lido parcialmente de

Pensées, de Pascal, na mesa ao lado da cama; equipamentos de escalada jogados no chão sob a janela. Fotos do Half Dome e de El Capitan, de Ansel Adams, dois dos lugares que ele havia escalado, penduradas na parede.

Duas fotos estavam sobre sua cômoda. Uma da família: mamãe, Patrick e ela na Balsa de Staten Island, sua mãe careca por causa da quimioterapia. A outra foto era dele nos Apalaches, quando era guia de turismo ecológico, na faculdade. Ele usava um rabo de cavalo na foto e ela havia se divertido muito com aquela foto.

Espalhadas pelo quarto, cinco caixas de papelão resistente para mudança.

Ela abriu a caixa próxima ao armário e viu que ela estava meio cheia de livros de criminologia com as páginas marcadas e edições antigas do Journal of Environmental Psychology e do Journal of Forensics Sciences,12. e um monte de materiais de escritório jogados por cima: canetas, tesouras, clipes de papel, porta-canetas, cabos USB, elásticos; um par de sapatos e algumas camisas amassadas. Como ele podia ser tão meticuloso em sua vida no FBI e tão desleixado em sua vida de solteiro havia sido sempre um mistério para ela.

Porém, ainda havia espaço na caixa, e ela sabia que eles não tinham um monte de caixas sobrando, então ela abriu o armário e viu que, com exceção de dois pares de tênis de corrida e uma mochila velha, ele estava vazio.

Mas havia uma prateleira próxima do teto em cuja borda dava para ver alguns equipamentos de acampamento.

Ela arrastou uma cadeira até o armário, subiu e puxou para baixo um kit de primeiros socorros e uma pequena mochila.

Só depois de ter tirado um saco de dormir foi que ela viu a caixa de sapato enfiada no fundo, encostada na parede. Entre ela e a caixa havia um oceano de poeira grossa, que era muito, muito nojenta, visto que o corpo humano descarta cerca de dois milhões de células de pele morta a cada hora e aproximadamente 65% da poeira encontrada nas casas é feita de pele humana.

Eca.

Cautelosamente, ela conseguiu pegar a caixa sem tocar a camada de sobras humanas. Então desceu da cadeira, fechou os olhos e soprou a pele morta de cima da caixa.

Olhos abertos de novo, percebeu que era uma velha caixa de sapato da Keds, o que era um pouco estranho, pois Patrick nunca teve filhos, e a caixa não era grande o suficiente para guardar um par dos sapatos dele.

Havia coisas dentro, mas pelo peso ela podia dizer que não era um par de sapatos. Ela pegou uma das camisas de Patrick na cômoda e limpou a caixa.

Percebeu seu nome escrito em caneta hidrográfica preta na extremidade da caixa.

Mas não era a letra de Patrick, era a letra de sua mãe.


30

Tessa sentou-se na cama, com a caixa de sapato no colo.

Abriu-a.

Encontrou uma pequena pilha de cartões-postais, dois canhotos de ingresso para um jogo do Minnesota Twins, três pontas de flecha genuínas, algumas dúzias de cartas guardadas de volta em seus envelopes abertos, uma porção de fotos, um panfleto do Museu do Circo, em Baraboo, Wisconsin, alguns desenhos que Tessa havia feito quando criança, com um grande coração torto e letras em giz de cera que diziam “Eu te amo, Mamãe!!”.

E desenhos de tartarugas.

Oito desenhos de tartarugas.

Ela sempre gostou de desenhar tartarugas quando era criança, prova velmente porque era fácil: era só fazer um grande círculo, então adicionar quatro patas e um círculo menor em cima para a cabeça. Pronto. Uma tartaruga. Quando ela era criança, elas pareciam obras de arte.

Mas agora dava para ver como eram bobas.

Ainda assim, quando ela era uma garotinha, sua mãe sempre encon trava um lugar na porta da geladeira para elas. Sempre.

E quando Tessa viu os desenhos das tartarugas, ela soube que tipo de coleção era aquela. Aquela coleção especial que todo mundo tem de coisas que ninguém mais entenderia. Coisinhas idiotas que não valeriam nem 10 centavos, mas que você voltaria para buscar em uma casa em chamas.

Tessa tinha uma caixa assim também, debaixo de sua cama.

Mas enquanto ela mexia na caixa de memórias de sua mãe (esse foi o nome que ela deu), seu coração pareceu agarrar algo dentro do peito.

Por que Patrick nunca deu isso para você? Ele sabe o quanto a mamãe significa para você. Por que ele esconderia isso de você?

Talvez ele tenha se esquecido disso, empurrou a caixa lá para o fundo um dia e isso fugiu de sua mente.

Mas talvez não.

Sentindo-se um pouco traída, Tessa checou todo o conteúdo da caixa com mais cuidado, pegando os itens um por um e colocando-os na cama.

Ela encontrou uma linha de pipa embolada e imaginou por que sua mãe havia guardado aquilo. Então pegou uma concha que ela se lembrava de ter encontrado durante uma viagem ao Lago Superior quando ela tinha 10 anos. Quando ela colocou a concha sobre a cama, reparou no que estava no fundo da caixa de memórias de sua mãe.

Seus dedos tremeram.

Um teste de gravidez.

E o pequeno sinal de mais ainda estava visível, mesmo depois de 17 anos. Ela o pegou.

Na primeira vez que sua mãe olhou para isso, você já estava cres

cendo dentro dela.

Era uma verdade óbvia, totalmente óbvia, mas naquele momento, para Tessa, parecia profundo.

Ela estava segurando a primeira prova que sua mãe teve de que ela teria um bebê, uma filha que ela chamaria de Tessa Bernice Ellis. Tessa, derivado de Santa Teresa de Ávila, uma mística que era uma de suas escritoras favoritas, e Bernice, o nome da avó de sua mãe.

Enquanto Tessa olhava para o sinal de positivo, ela pensou em como tinha sido para sua mãe olhar para aquilo. Ainda na faculdade, solteira, o cara com quem ela estava saindo se mostrando um grande idiota. Um homem que nunca tomou parte na vida de sua filha, nem sequer a visitou.

Nenhuma vez.

Tessa sentiu a antiga raiva, o antigo ódio, a antiga solidão surgindo novamente.

Mesmo quando ela era criança, ela havia percebido que quase todos os seus amigos tinham um pai próximo de algum jeito. Mesmo em famílias em que os pais era divorciados ou separados, o pai aparecia ocasionalmente. No verão, talvez por algumas semanas, ou nas noites de terça-feira, ou em alguns fins de semana a cada mês. Claro, nem sempre, mas a menos que ele estivesse morto, normalmente era parte de suas vidas.

Então, quando ela tinha 6 ou 7 anos, ela perguntou a sua mãe se seu pai estava morto.

No começo sua mãe não contou a ela, mas Tessa insistiu até que ela finalmente disse:

– Eu não sei, Tess. Eu não o vejo desde o dia em que eu disse a ele que eu ia ter um bebê – então ela abraçou Tessa; ela ainda lembrava disso; e a mãe acrescentou: – Mas só porque seu pai não está aqui não quer dizer que você não é amada. Eu amo você o dobro, pelos dois.

Mas Tessa se afastou dela.

– Mas por que ele foi embora, mamãe? Por que ele não volta? Sua mãe hesitou na hora, então disse:

– O que importa é que eu te amo e nunca vou embora. Eu prometo. Mas então sua mãe foi embora, não de propósito, mas até quando estava morrendo, ela não falou mais nada sobre o pai dela.

Tessa imaginava que a mãe havia provavelmente escondido a verdade sobre a identidade de seu pai biológico porque ela não queria que a filha crescesse com raiva dele.

Bom, se esse era o plano, não deu certo.

Chega disso.

Ela colocou o teste de gravidez de lado, olhou para dentro da caixa de sapato novamente e encontrou um anúncio de revista de alguma empresa imobiliária cuidadosamente dobrado. Tinha sido arrancado de alguma revista e estava faltando metade, mas a parte que estava ali tinha uma foto de uma garota loira, talvez de 4 ou 5 anos de idade, experimentando o que supostamente seriam os sapatos de salto alto e um colar de sua mãe. Parte do texto do anúncio estava faltando, mas as palavras “lares não são apenas” ainda estavam lá. Era isso, “lares não são apenas”... alguma coisa.

Mas o que chamou a atenção de Tessa não foi tanto o texto, mas a caixa de joias que estava na penteadeira atrás da garota da foto.

Espere um minuto.

Ela olhou mais cuidadosamente para a caixa de joias e sentiu o cora

ção começar a disparar. Então ela se levantou e, carregando a imagem, correu para seu quarto.

Para sua penteadeira. Para sua caixa de joias.

Sim, sim.

Era praticamente idêntica à da foto. Sua mãe havia dado a ela quando ela era menina, mais ou menos com a mesma idade da menina no anúncio da revista.

Será que é você? Seria possível? É você nessa foto?

Não, o cabelo era diferente, a garota não parecia muito com ela, e não havia uma pequena verruga do lado do pescoço da menina como havia no dela.

Então por quê? Por que ela daria isso para você? Não pode ser apenas uma coincidência.

Ela voltou para o quarto de Patrick e vasculhou o resto do conteúdo da caixa de sapato procurando uma resposta, mas não achou nenhuma.

No entanto ela encontrou uma última coisa que a deixou exageradamente curiosa: uma chave presa a um molho de chaves com uma etiqueta de plástico com o número 18 escrito de um lado e as palavras “Para Tess” do outro.

Em toda sua vida, apenas uma pessoa a chamou de Tess: sua mãe.

A chave era muito pequena para uma fechadura normal e mesmo sendo do mesmo tamanho da chave da caixa de joias, não era do mesmo formato.

Ela testou, só para garantir, mas não encaixava.

Então ela ouviu a porta da frente abrindo.

Patrick havia chegado para levá-la para almoçar.


31

Assim que Tessa ouviu a porta abrir, ela percebeu que precisaria de mais tempo para ler as cartas na caixa e não queria que Patrick soubesse que ela as havia encontrado, então enfiou tudo de volta na caixa, exceto a chave, que ela colocou no bolso, e rapidamente levou a caixa para seu quarto e a escondeu debaixo da cama, ao lado de sua própria caixa de memórias.

– Tessa, está pronta para ir? – ele perguntou.

– Já vou! – ela gritou pela porta do quarto. – Só um minuto.

Então, devo perguntar a ele sobre isso ou não?

Ela pensou na foto da garotinha, nos itens da caixa, todas as cartas nos envelopes que ela ainda não havia lido.

Ele escondeu isso de você. Ele deveria ter dado a você.

Talvez ele tivesse esquecido.

De qualquer maneira, ela precisava saber a verdade.

Mas ele está tendo um dia difícil, lembra? O término? Uma carnificina

de corações? Não o acuse de esconder algo de você. Não seria certo.

Então, pergunte a ele sobre isso, mas seja discreta.

Sim, acho que não vai ser nenhum problema.


Quando entrei em casa, ouvi Tessa gritar de seu quarto que estaria pronta em um minuto, o que provavelmente significava que eu teria pelo menos dez, o que foi bom porque me deu a chance de me secar e trocar de roupa.

Em parte desejei estar no necrotério procurando por evidências, mas meu trabalho não era analisar cenas de crime individuais, e sim ajudar a direcionar corretamente a investigação.

E isso estava se mostrando mais difícil do que imaginei.

No meu quarto, reparei que uma das caixas da mudança estava aberta mas nada mais havia sido embalado, o que me irritou um pouco, visto que Tessa teve toda a manhã e sabia que iríamos para Washington na quarta-feira.

Resolva isso depois.

Troquei de roupa e, quando estava vestindo o coldre de minha SIG,

pensei em Grant Sikora e na arma que ele havia apontado para minha cabeça havia menos de 24 horas. Ele tinha de algum jeito carregado a arma antes de ela ter sido levada para o tribunal...

Ou arrumou alguém para carregá-la para ele.

Liguei para Ralph.

– E aí? – ele disse.

– Você ainda está em Chicago?

– Sim. Ajudando o escritório local a lidar com o tiroteio, arrumar medidas de segurança melhores para a semana que vem... – a voz dele parecia abafada, suas palavras, atrapalhadas. Parecia que ele estava com alguma coisa na boca.

– Que barulho é esse? Você não está comendo mais daquelas passas com iogurte, né?

Um momento de silêncio. Um fraco som dele engolindo.

– Não.

– Escute, Ralph, sobre o tiroteio; foi por isso que liguei. Você está pensando na sala de evidências, certo?

– Sim – ele disse. – A arma estava vedada em um saco para evidências quando foi trazida para a sala do tribunal. Tudo que alguém precisaria fazer era entrar na sala de evidências, carregar a arma e esperar que ela fosse levada para a sala do tribunal. Afinal, por que alguém verificaria se uma arma que está armazenada em um saco para evidências de um caso de 17 anos atrás estava carregada?

– Exatamente. Converse com o oficial Fohay. Ele estava trabalhando no posto de segurança do tribunal ontem.

– Você sabe alguma coisa sobre ele?

– Não. Mas ele tinha uma opinião muito forte sobre a culpa de Basque e mencionou que trabalha na sala de evidências. Ele teria acesso à arma.

Se tiver qualquer tipo de ligação pessoal entre Sikora e ele...

– Saquei. Mais alguma coisa?

– Estou preocupado com Calvin.

– O quê? Werjonic?

– Sim.

Levei alguns minutos para resumir a conversa da noite anterior com Calvin. Quando terminei, Ralph perguntou o que eu queria que ele fizesse.

– O escritório dele é aí em Chicago. Estava pensando se você podia ficar de olho nele. Estou preocupado que ele possa tentar fazer alguma coisa com Basque no fim de semana.

– Fazer alguma coisa? Você tá brincando?

– Não, não estou.

Uma pausa.

– Basque está seguro. Depois do atentado contra ele, não estão deixando ninguém chegar perto.

– Lembre-se de quem estou falando aqui. Calvin é um dos cientistas criminais mais inteligentes que já existiu. Se ele quiser entrar lá...

– Sim, tudo bem – ele murmurou. – Vou garantir que ele não faça uma visita para o sr. Basque. Não se preocupe.

– Obrigado. – Finalizamos a ligação e, quando saí do quarto, encontrei Tessa me esperando no corredor.

– Pronta? – eu disse.

– Sim – ela respondeu. – Vamos para o Fruition.


32

Tessa sentou-se ao lado de Patrick em uma mesa no fundo do restaurante.

Ela havia pedido uma salada de alfafa Califórnia e Patrick havia pedido um hambúrguer de falafel, provavelmente porque era o que mais se parecia com carne no cardápio.

Ela comeu a salada dela por alguns minutos enquanto ele enchia seu hambúrguer de falafel com ketchup. Entre as mordidas, ele contou que havia conseguido chegar a tempo de salvar a vida de uma mulher mais cedo.

– Sério? O que aconteceu? Espere. Deixe-me adivinhar: você não pode me contar.

– Não, não todos os detalhes. Mas eu posso te dizer que foi muito bom ter chegado a tempo, pra variar.

Ela observou-o comendo por alguns minutos e percebeu que estava orgulhosa dele, do que ele fez por uma vida, por ele ter feito diferença.

– Bom, isso é legal – ela disse. Era um pouco bobo, mas parecia que dava para dizer que ela estava sendo sincera. Finalmente, quando a hora parecia certa, ela perguntou a ele sobre a caixa. – Ei, hum, enquanto eu estava empacotando coisas, eu estava pensando se ainda existem, tipo, algumas das coisas da mamãe – ela bebeu um pouco do refrigerante. – Sabe, alguma coisa que você ainda não tenha me dado.

Patrick estava comendo seu hambúrguer de falafel rápido demais para estar realmente apreciando.

– Não.

– Tem certeza?

Ele engoliu, passou um guardanapo no queixo.

– Absoluta.

– Hum, bom, isso é estranho, porque eu achei a caixa de sapato.

– A caixa de sapato?

– Sim.

– Que caixa de sapato?

– Uma com as coisas da minha mãe, e eu quero saber por que você nunca a deu para mim.


Parei de comer.

– Então? – ela disse.

– Eu esqueci que tinha aquilo.

– Como você pode ter esquecido? São as coisas especiais dela! – todo o clima da refeição havia mudado quase que instantaneamente e eu precisava de alguns segundos para colocar as ideias no lugar.

Tentei explicar que quando nós mudamos para Denver eu havia acabado de enfiar a caixa no armário e empilhei alguns equipamentos de acampamento na frente dela; tentei ajudá-la a entender que tinha sido uma época difícil para mim e eu não havia mais pensado naquilo, mas ela não parecia ter engolido.

Quando terminei, ela mostrou uma chave.

– Encontrei isso também. O que isso abre?

Eu podia estar errado, mas tinha quase certeza de que sabia que chave era aquela.

Tomei um gole da minha Coca-Cola e usei o tempo para ordenar meus pensamentos.

– Então? – Tessa exigiu. – Estou esperando.

Você não precisa contar a ela sobre isso. Você poderia dizer que foi per

dido, ou danificado, ou destruído. Você não precisa deixá-la ler.

Repousei minha bebida.

– Eu não tenho certeza, mas acho que é provavelmente a chave do diário da sua mãe – em vez de elaborar, esperei que ela respondesse. Terminei meu hambúrguer de falafel. Tinha gosto de areia torrada. Nem o ketchup ajudou.

– Diário?

Acenei com a cabeça.

– Ela me deu antes de morrer, mas ela me disse...

– A mamãe tinha um diário?

– Sim, antes de eu conhecê-la. Acho que quando ela estava na faculdade. E ela disse que eu não deveria dá-lo a você até...

– Bom, onde ele está? Eu quero lê-lo.

– Tessa, pare de me interromper. Sua mãe me disse para não dá-lo a você até que fizesse 18 anos.

Um silêncio curto e incômodo.

– Por quê?

– Eu não sei. O ponto é, se eu o desse a você agora, eu estaria quebrando a promessa que eu...

O toque do meu telefone interrompeu-me no meio da frase. Olhei para a tela. Kurt.

– Só um segundo – eu disse a ela.

Ela colocou a chave à sua frente e batucou com os dedos na mesa enquanto eu atendia meu telefone.

– O que foi?

– Acho que temos uma coisa. Alguém mandou flores para uma repórter do Denver News. Ele deixou um bilhete: “Devemos nós tratar das lágrimas alheias?”.

Alguma coisa não fazia sentido para mim.

– E?

– O marido da repórter é um dos técnicos da perícia, Reggie Greer. Você o conheceu hoje de manhã.

Esfreguei minha testa.

– A esposa dele é repórter?

– Não se preocupe. Ele não compartilha nada dos casos dele com ela. Mas é o seguinte: ela ligou para ele perguntando se ele mandou as flores. Ela mandou uma foto das flores e do bilhete, e ele percebeu imediatamente que a letra era a mesma do bilhete que o assassino deixou para você na garagem de Taylor.

Agora ele tinha minha atenção.

– Continue.

– Reggie ainda está terminando o serviço na casa de Taylor. Dois policiais estão dando uma carona para Cheyenne, então ela está a caminho do escritório do jornal agora. Você pode ir para lá? Eu não quero mais ninguém encostando naquelas flores até termos a chance de dar uma olhada nelas. Algo aconteceu com Cheryl, estou em casa agora, mas vou para o centro da cidade assim que puder.

O prédio do Denver News ficava a menos de três quilômetros dali.

– Chego lá em cinco minutos.

– Certo. O nome da repórter é Amy Lynn Greer.

Terminamos a ligação e, antes que eu pudesse dizer uma palavra para Tessa, ela soltou:

– Você tem de me dar o diário.

– Não force as coisas agora, Tessa. E não me dê ordens – levantei-me para ir embora.

– Eu tenho idade suficiente para lê-lo. Vou fazer 18 anos no outono.

– Vamos conversar sobre o diário depois. Eu preciso de um tempo para pensar nisso. Sua mãe insistiu muito...

– Nele diz quem é o meu pai?

A pergunta me pegou de surpresa.

– Eu nunca li o diário. Eu quis respeitar a vontade da sua mãe...

– Nele diz quem é meu pai? – a voz dela havia se tornado algo sólido e frio.

– Tessa, não me interrompa – eu entendia que ela estava chateada, mas eu não estava com cabeça para ser interrompido toda hora que começava uma frase. – Eu prometi a ela que esperaria até você fazer 18 anos e agora você não está me dando nenhuma razão para quebrar essa promessa.

Ela abriu a boca como se fosse responder mas deve ter pensado melhor, pois a fechou novamente sem emitir nenhum som. Seu olhar de raiva estava misturado com algo mais profundo, um senso profundo de tristeza ou desapontamento, e eu me senti mal por ela estar sofrendo.

– Vamos conversar sobre isso depois. Agora, eu preciso ir – eu ainda estava parado ao lado da mesa; ela não havia se movido. – Vamos.

Finalmente, ela se levantou.

– É um caso? Você vai me levar com você até uma cena de crime?

– É apenas algo em que preciso dar uma olhada. Talvez você possa ligar para Dora te pegar quando chegarmos lá.


Durante todo o caminho para o prédio do Denver News, Tessa ficou olhando pela janela, mas ela não estava realmente vendo nada. No geral, ela estava apenas pensando.

Sua mãe mantinha um diário.

Um diário.

E ela queria que você o lesse, mas não até fazer 18 anos.

Mas por que não?

E por que Patrick estava fazendo um grande estardalhaço com isso?

Não era justo fazê-la esperar, especialmente agora que ela sabia sobre ele. Que mal faria ela lê-lo alguns meses mais cedo?

Ela olhou para o relógio.

Dora havia concordado em pegá-la às 13h. Ainda faltavam 20 minutos.

Se Dora a levasse de volta para casa, elas poderiam talvez procurar o diário, mas para isso seria necessário desembalar tudo. E, além disso, Patrick deve tê-lo guardado em seu escritório, só para garantir que ela não o encontrasse acidentalmente.

É isso que ela faria se tivesse uma filha adolescente em casa.

Você precisa ler as coisas da caixa de memória antes de se preocupar

com o diário...

– Tessa.

– Ahn? – Eles haviam chegado ao prédio do jornal, mas ela estava tão distraída pensando na mãe, no diário e na caixa de memória que nem tinha percebido.

– Eu ligo no seu celular quando terminar – sua voz estava tensa e ele certamente estava com pressa, e tudo isso aguçou a curiosidade de Tessa sobre por que eles haviam saído do restaurante tão abruptamente e corrido para lá.

– Ok.

Ele colocou uma placa “Carro federal. Em serviço oficial” sobre o pai nel e então saiu do carro e correu pela calçada.

Ela não era burra. Ela sabia que ele estava em uma força-tarefa com os policiais e ela havia visto as notícias sobre a série de assassinatos nos últimos dias. Não precisava ser um gênio para descobrir em que caso ele estava trabalhando.

Ela olhou para seu relógio. Dora não chegaria nos próximos 15 minutos.

Hum.

Deve ser tempo suficiente.


33

Atravessei o saguão do Denver News, já abrindo minha identificação enquanto passava pela mulher de cabelos encaracolados fazendo as unhas atrás da mesa da recepção, perto dos elevadores.

– O escritório de Amy Lynn Greer – eu disse. – Qual andar?

– Quarto – ela deslizou uma prancheta e um crachá de visitante por cima do balcão para mim. – Você precisa assinar.

Escrevi meu nome, peguei o crachá de cima do balcão e fui para o elevador.

Alguns minutos depois, Cheyenne me encontrou ao lado do elevador no quarto andar.

– Bom te ver – ela disse.

– Você também. – Ela me conduziu pelo corredor até depois de um santuário de placas e prêmios de jornalismo que o jornal aparentemente havia ganhado. – Alguma novidade sobre a situação de Kelsey? – perguntei.

– Ela está se recuperando. A temperatura do corpo dela havia subido sete graus quando saí de lá. Estava quase normal. Acho que vai dar tudo certo. Porém, ela não está falando. Ainda está muito traumatizada. Mas perguntei a ela se o homem que a atacou era oriental, negro, caucasiano; então ela me parou nessa palavra e acenou com a cabeça. Então até agora é o que temos.

– Nós sabemos por que ela foi até o necrotério na noite passada?

– Não, mas as câmeras de vigilância do hospital mostram que ela chegou às 20h19; nada sobre o cara que a atacou, porém. Ele conseguiu evitar ser pego nas filmagens.

Considerei as implicações.

Passamos pela sala de recreação dos funcionários e Cheyenne disse:

– Esqueci de mencionar: o agente Vanderveld está vindo para cá. Deve chegar em 15 minutos.

– Maravilha.

Então, com seu jeito brusco mas amável, ela perguntou:

– Qual é o problema entre vocês dois, afinal?

Eu estava prestes a fugir da pergunta quando percebi que teria de explicar as coisas uma hora, então eu já poderia me livrar logo daquilo.

– Há seis anos eu estava criando um perfil geográfico de um caso em Albuquerque. Garotos adolescentes estavam desaparecendo; três corpos haviam sido encontrados e três outros garotos estavam desaparecidos.

– Acho que me lembro de ouvir falar disso. Eles estavam sendo sequestrados de suas casas depois da escola.

– Sim. Enquanto seus pais ainda estavam no trabalho. O departamento do xerife estava, vamos dizer, pouco entusiasmado com minhas técnicas.

– Quem diria.

– Pois é.

O corredor abriu-se para um grande espaço de trabalho e Cheyenne me guiou através de um labirinto de cubículos. Como era sábado, eu não esperava que a sala estivesse cheia, então fiquei surpreso em ver cerca de duas dúzias de funcionários digitando, navegando na internet e mexendo em seus celulares.

– De qualquer forma, o Bureau decidiu enviar um criador de perfis comportamentais, e escolheram Jake; decidiram me realocar para uma série de tiroteios em Nova York.

– Você foi tirado do caso?

– Sim.

– E então, o que aconteceu? Vanderveld estragou as coisas?

– Após dois dias no local, ele estava convencido de que deveríamos procurar por um homem de 24 a 27 anos, caucasiano, solteiro, que nunca tinha se casado e homossexual, com um histórico de trabalho com crianças e que podia ganhar a confiança delas com facilidade. Um professor de escola, talvez um professor de educação física, alguém desse tipo.

– Deixe-me adivinhar – ela parou de andar por um momento. – Foram feitos de tolos.

– Nas três semanas seguintes, mais dois garotos desapareceram antes que uma testemunha visse um garoto de 13 anos entrar em um carro com o comissário de 48 anos, divorciado e hispânico.

– Então as únicas coisas que Vanderveld havia acertado em seu perfil foram o sexo e a orientação sexual do assassino?

– Sim.

– O que era bastante evidente, considerando a escolha das vítimas.

– Exatamente.

Começamos a andar novamente.

– O comissário morava perto do centro da zona de perigo. Se a polícia tivesse me ouvido, aqueles dois garotos ainda poderiam estar vivos.

Tentei disfarçar a raiva que ainda carregava comigo.

– Mas, então, vem a melhor parte: Vanderveld deu uma entrevista coletiva e explicou como o caso se resolveu tão rápido depois da chegada dele. Ele se deleitou com a atenção da mídia o máximo que pôde. Ele sequer deu crédito para a polícia local. Ele adora atenção e, quando consegue, não larga mais.

– Mas não é só isso, é?

– Não.

– O que mais?

– Vamos dizer que eu não confio nele e ficamos por isso mesmo.

Logo depois do bebedouro, chegamos a uma fila de policiais ao longo da parede lateral. Duas das portas estavam abertas e pude ver que cada escritório tinha uma vista panorâmica da cidade. Imaginei que eram os escritórios executivos ou, pelo menos, as salas dos jornalistas mais importantes.

– Obrigada por me contar – Cheyenne disse, então bateu em uma porta que tinha uma pequena placa de metal: Benjamin Rhodes, Vice--Presidente-Assistente, Editorial.

– Entre – um homem respondeu.

Duas pessoas estavam nos esperando dentro do escritório. O homem, que assumi ser Rhodes, parecia ter quase 40 anos. Cabeça raspada. Cavanhaque levemente grisalho. Camisa de gola alta preta, jeans azuis, sapatos pretos.

Ergui minha mão.

– Agente especial Bowers. Sou do FBI. Estamos trabalhando juntamente com o Departamento de Polícia de Denver nesse caso.

– Benjamin Rhodes – nos cumprimentamos e ele gesticulou na direção da mulher, que não parecia feliz em me ver. – E essa é Amy Lynn Greer. Uma das nossas melhores repórteres investigativas.

Próxima dos 30 anos, com cara de quem dormiu pouco, bonita. Ela tinha os cabelos castanhos encaracolados de um jeito diferente e usava um colar de cânhamo, blusa azul, sapatos elegantes. Eu reconheci o rosto dela da foto que acompanhava uma coluna política semanal que agora eu percebia ser dela.

– É um prazer conhecê-la, sra. Greer – eu disse. – Conheci seu marido hoje de manhã.

– Pode me chamar de Amy Lynn – seus modos eram bruscos. – Vi sua foto. Algo a ver com o tiroteio em Chicago ontem?

– Sim. Foi trágico – não era algo sobre o qual eu gostaria de ser lembrado. Meus olhos dirigiram-se para sua mesa. – Essas são as flores?

Amy Lynn e Benjamin acenaram com a cabeça.

Cheyenne ficou quieta ao nosso lado. Concluí que ela já tivesse pas sado pelas apresentações e tido um tempo para inspecionar as flores.

A planta tinha finas torres de flores brancas arroxeadas e folhas grossas. Me inclinei para perto e senti um forte odor mentolado misturado com o cheiro da terra do vaso.

– Nós sabemos que tipo de flores são essas?

Benjamin trocou olhares com Amy Lynn.

– Não temos certeza. Nós íamos chamar alguém, ver se alguém no prédio era jardineiro, mas quando Amy Lynn contou para Reggie sobre o bilhete...

– Ele me pediu para manter segredo – ela disse.

– Bom – falei.

Mais cedo naquele mesmo dia, no caminho para a casa de Taylor,

Cheyenne havia mencionado que tanto Heather Fain quanto Ahmed Mohammed Shokr haviam morrido de envenenamento por cloreto de potássio. Eu não sabia que tipo de flores eram aquelas ou com o que elas poderiam estar cobertas, mas não queria correr riscos.

– Algum de vocês dois tocou a planta?

– Eu toquei, um pouco – Amy Lynn respondeu. – Por quê? Eu não queria assustá-la.

– Provavelmente é melhor você lavar as mãos.

Ela olhou para mim nervosa, então saiu da sala e perguntei para Benjamin:

– Quantas pessoas manusearam o vaso?

– Bom – ele parecia um pouco nervoso também. – Amy Lynn, é claro. Brett, uma de nossas secretárias. O entregador de flores que as deixou aqui. Fui eu que as trouxe para cá.

– Cheyenne – eu disse. – Você poderia levar o sr. Rhodes e conversar com Brett, ver se ela pode nos descrever o homem que entregou as flores? Descubra se ele disse ou fez algo incomum.

Ela abriu sua caderneta e acenou na direção da porta.

– Sr. Rhodes?

– Claro.

– E as mãos – eu disse. – Faça com que todos lavem suas...

– Entendi – Cheyenne disse.

Eles saíram para o corredor; peguei um par de luvas de látex que carre gava comigo e cuidadosamente investiguei as pétalas, analisando os caules para ver se havia algo diferente sobre as flores. Como não encontrei nada, cutuquei suavemente a terra, procurando por um dispositivo de gravação preto como aquele que havia encontrado na boca de Heather Fain.

Nada.

Ouvi Amy Lynn retornar.

– Onde está o bilhete? – perguntei.

Ela apontou para o canto da mesa.

– Está ali. Está assinado como John.

Pegando o bilhete, li o que estava escrito; então o virei e analisei o papel-cartão. Não parecia ter nenhuma marca especial ou única. Seria difícil de rastrear.

– Joguei a frase no Google – Amy Lynn disse. – “Devemos nós tratar das lágrimas alheias?”. Não encontrei nada.

– Tudo bem – coloquei o bilhete de lado. – Algum amigo chamado John? Algum John em algum história em que você esteja trabalhando?

– Eu procurei por isso também – ela soava impaciente. – O único que pude pensar foi John Beyer, o arremessador do Colorado Rockies. Estou fazendo um artigo sobre uso de esteroides, mas não consigo imaginar como isso poderia estar relacionado com as flores.

Parecia algo muito vago para mim, mas poderíamos mandar um policial ir falar com ele.

Cuidadosamente, levantei o vaso para investigar a parte de baixo; não encontrei nada incomum. Então tateei em volta da borda do vaso. Eu estava dando a volta pela circunferência com meu dedo quando ouvi a porta abrir atrás de mim. Concluí que fossem Cheyenne e Benjamin voltando.

Me peguei verbalizando meus pensamentos:

– Quem é você, John? Por que mandar essas flores?

E alguém disse:

– Isso é manjericão.

Mas não era a voz de Cheyenne, nem de Benjamin.

Era a voz de Tessa.

Virei-me.

– O que você está fazendo aqui em cima?

Os olhos dela estavam cravados nas flores.

– Eles estavam tentando guinchar o carro.

– O quê? Sério? Não, não estavam.

– Ok, você me pegou, eles não estavam. Mas você disse “John”? Há um segundo? – ela entrou no escritório.

– Você não deveria estar aqui – coloquei o vaso de volta. – Você precisa descer.

– Você disse que é manjericão? – Amy Lynn perguntou.

Dei a volta na mesa na direção de Tessa. Ela estava olhando para mim,

seus olhos se arregalando.

– Sério, você disse John, certo? “Quem é você, John?”

– Sim.

– Desculpa – Amy Lynn disse. – Mas você é...?

– Essa é minha enteada, Tessa – eu disse. Como essa evidência estava aparentemente ligada aos assassinatos, eu queria tirar Tessa dali o mais rápido possível. – Vamos – eu disse a ela. – Estamos indo embora.

– É um vaso de manjericão, e o bilhete é de John... – Tessa disse suavemente. O sangue havia sumido do seu rosto.

Olhei para ela intrigado.

– Você sabe algo sobre isso?

– Eu preciso ir.

– O que foi? – perguntei.

– É um vaso de manjericão – ela repetiu, recuando para a porta.

– Um vaso de manjericão – eu disse. – Sim. Ok. E daí?

Ela começou a balançar a cabeça lentamente.

– Você não entende. Eu preciso ir. Vou passar mal.

Cheyenne e Benjamin apareceram atrás dela, mas ela os empurrou e correu na direção da redação do jornal.

– Era a Tessa? – Cheyenne perguntou.

– Sim – eu estava a caminho da porta.

– Ela está bem?

– Não tenho certeza – passei por ela. – Eu já volto. Não deixe mais ninguém entrar nessa sala.


34

Alcancei Tessa nos elevadores. Ela estava apertando o botão para descer freneticamente, com a mão trêmula.

– Não – ela murmurou. – Não, não está. Não pode estar.

– Tessa, você sabe quem mandou aquelas flores?

Ela balançou a cabeça negativamente.

– Uh-uh.

– Então o que há de errado?

– Keats.

Reparei em uma lata de lixo ao lado dela. Arranquei as luvas de látex que ainda estava usando e as enfiei lá dentro.

– Keats?

As portas abriram e ela correu para dentro do elevador. Eu a acompanhei.

Ela apertou o térreo quatro vezes e começou a murmurar:

– Sim... eu acho que Keats, ou talvez Alexander.

– Tessa...

– Mas não importa – as portas se fecharam e ela ficou olhando-as, ansiosa, aterrorizada. – Dá no mesmo.

Sua reação intensa estava começando a me preocupar de verdade.

– Acalme-se por um minuto e apenas diga o que você está pensando.

Ela estava batucando com os dedos uns nos outros rapidamente.

– Você não acha que é... mas então, por que alguém...?

Coloquei as mãos gentilmente nos ombros dela, e quando o fiz, ela me olhou nos olhos.

– Por favor – eu disse –, diga o que está acontecendo.

Finalmente, ela respirou profundamente, ainda tremendo, e disse:

– Havia um artista, certo? John White Alexander. Ele pintou um quadro em, tipo, 1896 ou 1897, é um quadro famoso chamado Isabella e o Vaso de Manjericão. John White Alexander, entendeu? Por isso que John se refere a ele.

– Ok, então...

– Mas ele baseou sua pintura em um poema de Keats, John Keats. Então tanto faz, é John. Você conhece Keats, o poeta?

– Sim.

– O poema é sobre uma mulher. O amante dela é morto e...

Pensei em Kelsey, em seu marido, em tudo que havia acontecido nos

últimos dois dias.

– Ela o desenterra e...

O necrotério.

Os corpos.

Oh.

Senti um calafrio. De repente, entendi o que Tessa estava dizendo,

percebi por que ela reagiu tão excessivamente.

– É o suficiente. Eu posso procurar...

– A mulher, ela... – chegamos ao térreo e o elevador apitou.

– Eu entendo. Você não precisa dizer mais nada.

Mas Tessa não estava me ouvindo. Ela estava olhando para o vazio.

– Eles o tiram dela. O vaso, e daí...

– Está bem. Shhhh...

As portas do elevador abriram, mas Tessa não saiu; ela olhou para mim e mordeu o lábio inferior.

– Não me conte, tá? Quando você procurar. Não me conte. Eu não quero saber se estou certa.

– Tudo bem, prometo.

Tessa acenou com a cabeça e olhou para além de mim.

– Dora chegou.

Eu sabia que Tessa estava terrivelmente incomodada e eu queria estar ao lado dela, mas também precisava voltar lá para cima, especialmente se ela estivesse certa sobre o vaso.

– Você quer que eu vá para casa com você?

– Não. Eu estou bem.

Encontramos Pandora Bender no saguão, perto da porta da frente, e ela me garantiu que ficaria com Tessa.

– Ela vai ficar bem comigo, sr. Bowers. Não se preocupe.

– Obrigado, Dora – eu disse, então me virei para Tessa. – Tem certeza de que não precisa de mim?

Ela acenou com a cabeça.

– Sim. Estou bem.

Toquei o braço dela suavemente.

– Ligue-me, tudo bem? É só você falar que eu vou para casa.

– Eu sei – Dora andou na direção da porta e Tessa cochichou para mim: – Não me conte.

– Não contarei.

Elas saíram e eu as observei pelas janelas escuras até que desapare cessem virando a esquina do prédio. Então, retornei para o quarto andar.

Para procurar dentro do vaso.


35

Apenas Cheyenne e Amy Lynn estavam no escritório quando cheguei. Cheyenne explicou que Rhodes tinha ido se encontrar com dois membros da diretoria, e eu não tinha certeza se fiquei feliz por saber disso. Suspeitei que estavam discutindo como lidar com a divulgação de informações relativas às flores, mas eu não estava com tempo para tratar de nada disso agora.

Apenas um olhar para o vaso entregou que ele era do tamanho certo. Eu sabia que precisávamos levá-lo para o laboratório, mas primeiro eu queria descobrir se o palpite de Tessa estava certo, e às vezes eu não sou tão paciente como deveria ser.

– Amy Lynn, você pode nos dar alguns minutos?

Ela hesitou.

– Por favor, vá lavar suas mãos minuciosamente.

– Mas eu já lavei.

– Acredite em mim – eu não tinha outro par de luvas, mas com a parte de trás da minha mão, empurrei o vaso para o meio da mesa de Rhodes, para além de seu MacBook e seu protetor de tela de aquário. – Esta planta deve ter substâncias que você não ia querer ingerir acidentalmente.

Após um último olhar descontente, ela saiu, e Cheyenne disse:

– O que está acontecendo? Tessa está bem?

Cuidadosamente, empurrei as flores para o lado e observei que a terra em volta da base da planta estava solta.

– Você pode trancar a porta?

– Pat, o que...

– Por favor.

Peguei minha TSAVO-Wraith e abri a lâmina.

– Ela está bem – eu disse. – Obrigado por perguntar – deslizei a ponta da faca suavemente para dentro da terra.

Cheyenne trancou a porta e então voltou para o meu lado.

– O que você está fazendo?

Empurrei para o lado um pequeno triângulo de terra úmida. Com base no tamanho do vaso, eu não achava que ia precisar cavar muito fundo.

– Tem uma pintura.

Tirei mais terra do lugar. Deslizei a lâmina da faca cerca de cinco centímetros para dentro da terra.

– E um poema de Keats... mas o ponto é...

Enquanto pressionava, senti a ponta da lâmina tocar algo que não era terra.

– ...tem uma mulher que desenterra...

Fechando a lâmina da faca, coloquei-a de volta no meu bolso e então enfiei meus dedos para gentilmente tirar a terra do caminho.

– ...o corpo de seu amante.

Sob meu dedo, senti algo macio, frio e carnudo.

Cheyenne estava olhando para o lugar no vaso onde eu estava cavando.

– Pat, você não está dizendo que...

Empurrei mais terra para o lado e o cheiro de manjericão não era o odor mais forte na sala.

O conteúdo do vaso estava suficientemente visível.

Tessa estava certa.

– Oh... – a voz de Cheyenne se perdeu.

– Sim – eu disse. – É Travis Nash.


36

43 minutos depois

O vaso e a terra estavam na ponta da mesa de aço para exame.

A cabeça de Travis Nash estava colocada à nossa frente.

Depois de entregar o vaso na central, Cheyenne havia me levado em casa para que eu pudesse pegar meu carro e ver como estava Tessa, mas ela e Dora ainda não haviam chegado. Então, voltamos para a central da polícia em nossos respectivos carros, estacionamos na garagem do subsolo e corremos para nos juntar à equipe no laboratório.

Agora, dois especialistas forenses estavam analisando a cabeça, cuidadosamente usando escovas de dente para tirar a terra dos olhos abertos.

Jake estava falando baixo com um terceiro funcionário do laboratório no canto da sala. A porta se abriu e Kurt entrou.

– O Reggie já chegou? – ele perguntou.

Balancei minha cabeça.

– Não.

– A perícia encontrou algo no necrotério? – Cheyenne perguntou.

Kurt andou em nossa direção. Ele olhou sombriamente para a mesa de exame.

– Ele usou a pia, sabemos disso. Não deixou nenhuma impressão digital nas maçanetas e conseguiu entrar e sair do prédio sem aparecer em nenhuma câmera de segurança do hospital. Eu coloquei um policial para comparar a lista de suspeitos com o quadro dos funcionários do hospital para ver se conseguimos alguma coisa.

– Ótimo – respondi, porém, não estava certo se a lista de suspeitos ajudaria muito.

Quando investigações assim progridem e as pessoas acrescentam pistas, nomes são adicionados à lista de prováveis suspeitos gerada pelos aspectos das evidências de cada cena do crime. A lista normalmente cresce exponencialmente com o tempo. Quando li os arquivos do caso no caminho para a casa de Taylor de manhã, já havia 180 nomes na lista. Eu já tinha trabalhado em casos com dezenas, até centenas de milhares de nomes na lista e eu tinha um pressentimento de que o número de suspeitos desse caso ia crescer bastante antes de começar a reduzir. Às vezes as listas são vantajosas, mas muitas vezes o nome do assassino nunca aparece ou, se aparece, está tão enterrado na pilha que ninguém repara.

Reggie chegou e Kurt começou a conversar com ele no canto mais distante da sala.

Enquanto via os técnicos forenses trabalharem, comecei a me sentir inútil ali, de pé, ansioso para dar continuidade nesse caso. E agora, pelo menos, havia algumas pistas específicas para pesquisar.

Aquela mensagem: devemos nós tratar das lágrimas alheias?

O vaso de manjericão.

A ligação entre Keats e Alexander.

Ouvi o papo entre Kurt e Reggie ficando mais alto, mas eu só conse guia ouvir fragmentos da conversa. Era algo sobre a esposa de Reggie, Amy Lynn.

Então Reggie aumentou a voz.

– Eu sei, mas eu posso ficar com ela.

– Isso não é suficiente – o tom de Kurt era vigoroso e forte. – Faremos o que for necessário para protegê-la.

– Estou ciente disso. Mas Amy Lynn...

Antes que ele pudesse terminar, Kurt levou-o até o corredor para continuar a conversa longe de todo mundo. Obviamente os dois não estavam concordando em como proteger melhor a esposa de Reggie agora que o assassino havia mandado para ela o manjericão, marcando-a como uma potencial vítima.

Precisávamos dar continuidade no caso antes que o assassino tivesse chance de tornar isso realidade.

– Tudo bem – eu disse para Jake e Cheyenne. – É minha hora de ir.

– Pra fazer o quê? – Jake perguntou.

– Acho que deveríamos começar com o poema de Keats e as pinturas de John Alexander. As vítimas até agora foram colocadas em pose, suas mortes foram tão incomuns que estou imaginando se talvez o assassino não esteja reencenando outros poemas violentos ou retratando outras pinturas.

– Hum – Jake disse. – Para criar um tipo de galeria de retratos dos mortos.

– Talvez.

Cheyenne olhou pela sala.

– Bom, no momento não tem mais nada para fazermos aqui. Podemos usar a sala de conferência no sexto andar. Os computadores lá não têm nem uma década ainda.

– Eu também vou – Jake disse. – Deem-me só um minuto – ele estava olhando para a cabeça. – Então eu subo.

Cheyenne e eu saímos e encontramos Kurt logo do lado de fora da porta, sozinho. Reggie já estava no meio do corredor. Observei-o por um momento, e deixei meu olhar ser a pergunta para Kurt.

– Ele quer que Amy Lynn continue trabalhando – ele disse. – Nós designamos um policial para acompanhá-la, mas eu acho que deveríamos colocá-la sob proteção. O bilhete, o vaso, eles a ligam ao caso. Não gosto disso – ele parou. – Quero que ela fique segura.

– Você precisa perguntar para Amy Lynn – Cheyenne disse. – Não para o marido dela. Não é uma escolha sua ou de Reggie. É dela.

Ela estava certa, é claro, mas pelo meu breve encontro com Amy Lynn, eu não tinha a sensação de que ela fosse do tipo cauteloso. Eu não conseguia vê-la preferindo a custódia de proteção.

Kurt deu um suspiro.

– Você tem razão.

Cheyenne disse a Kurt aonde estávamos indo, e ele disse que se junta ria a nós assim que tivesse falado com Amy Lynn.

Então, assim que saímos, olhei de volta para o laboratório forense e vi Jake Vanderveld se inclinando, olhando intensamente nos olhos sem vida de Travis Nash. Parecia que ele estava cochichando para ele mesmo.

Mas talvez ele estivesse cochichando para os ouvidos do morto.

E eu não podia deixar de pensar no que ele poderia estar dizendo.


Amy Lynn Greer não gostava do fato de ninguém dizer a ela por que a polícia e o FBI estavam com tanta pressa para remover as flores depois que a garota adolescente disse a eles que era um vaso de manjericão, ou por que eles haviam colocado um policial bem na frente da porta dela, e contou isso a Benjamin Rhodes.

– Você não pode se envolver com isso – ele disse. – Não com a posição de seu marido.

– Eu já estou envolvida. As flores foram enviadas para mim. – Rhodes parecia que estava prestes a responder, mas antes que pudesse, ela acrescentou: – Olha, eu passei a manhã inteira acompanhando isso. Eu sei mais sobre isso do que qualquer um. E você está me dizendo que estar bem informada me desqualifica para escrever sobre isso? Que tipo de...

– Amy Lynn, sossegue. Vamos ver o que a polícia descobre primeiro

– Rhodes contornou sua mesa e parou ao lado da janela, as mãos juntas em suas costas. – O conselho executivo acha que se caminharmos rápido demais com isso, podemos sofrer implicações legais. Eles querem que fiquemos quietos até termos algo mais sólido.

– Mas você não vê? – ela disse. – É mais um motivo para investigar isso agora, para que possamos estar preparados para lançar uma história quando a hora chegar.

Se o vaso de manjericão estava relacionado com os assassinatos anteriores da semana, ela já podia enxergar essa história tomando forma como um verdadeiro livro policial. Essa era a chance dela de ter uma grande história, um furo, e ela não iria deixar isso escapar pelos seus dedos só porque o conselho queria jogar seguro.

– Não – Rhodes disse. – Sinto muito.

Amy Lynn estava prestes a deixá-lo saber o que ela pensava sobre ele e o conselho executivo, mas segurou a língua e simplesmente disse:

– Tudo bem.

– Termine o artigo sobre os esteroides e coloque sua coluna semanal na minha mesa. Você tem até 16h, então veremos.

– Sim. Tudo bem. Obrigada – ela saiu da sala, passou pelo policial que a esperava no corredor e foi para sua mesa.

Não, ela não ia passar o resto do dia escrevendo sobre um jogador de beisebol.

Ela ia encontrar John.


37

Nós dividimos a pesquisa.

Cheyenne ficou com as pinturas de Alexander, eu vasculhei a internet procurando poemas de Keats que pudessem ter alguma semelhança com os assassinatos e Jake procurava por outras referências literárias a vasos de manjericão ou à mensagem sobre tratar das lágrimas alheias.

Mesmo Cheyenne tendo sugerido que usássemos a sala de conferência do sexto andar por causa dos computadores, não demorei a perceber que eles eram dinossauros comparados aos laptops que o Bureau fornecia. Preferi usar meu computador e, cinco minutos depois, percebi que Jake havia feito o mesmo.

Cada um de nós sentou em um canto separado da sala e mergulhou em sua pesquisa e, como se por um acordo unânime e não declarado, trabalhamos silenciosamente por cerca de 25 minutos, digitando, navegando e rabiscando anotações até que Jake quebrou o silêncio.

– Bem, vamos ver o que conseguimos.

Levantei os olhos e o vi olhando de mim para Cheyenne.

– Claro, eu vou primeiro – Cheyenne se ofereceu, mas ela soava frustrada. – Procurei por todo o portfólio on-line de Alexander e, tirando duas imagens que vagamente lembram a vista das montanhas próximas da mina onde encontramos o corpo de Heather, não estou encontrando nenhuma pintura que tenha uma conexão com as outras mortes. Nada sólido mesmo.

Inclinei a tela do meu laptop para que eu pudesse ler com mais facilidade.

– Bom, eu não tenho muito também. Apenas uma coisa. Uma parte de um poema de Keats.

Então li em voz alta:

Oh Melancolia, seus olhos afastaria!

Oh Música, Música, respira desesperada!

Oh Eco, Eco, em algum outro dia,

Das Ilhas Leteanas, lamentamos – Oh lamento!

Espíritos do pesar, não cantem como quem lamuria!

Pois Isabel, doce Isabel, morrerá;

Morrerá uma morte solitária e incompleta,

Agora que o doce manjericão tomaram dela.

Resumi:

– O tema de desespero está presente em quase todas as linhas: melancolia, desespero, espíritos de pesar, a falta de canto e então uma morte solitária, do mesmo jeito que o assassino quis que Kelsey sentisse no necrotério.

– Mas ela está segura agora – Jake disse.

Pensei por um momento.

– Eu não acho que esse assassino vai desistir tão fácil – virei-me para Cheyenne. – Tem um policial com ela agora, no hospital?

– Sim.

– Mantenha-o com ela até pegarmos esse cara.

– Tudo bem – ela escreveu algo na caderneta. – Falarei com Kurt.

– Mais uma coisa. Keats menciona “Ilhas Leteanas”. Fiz uma pesquisa: o rio Lete era um dos rios no Hades. Se você bebesse dele, esqueceria sua vida na Terra. Você esqueceria tudo.

– Ilhas Leteanas – Jake olhava para a parede pensativamente. – Talvez o UNSUB esteja cometendo esses crimes para esquecer alguma coisa de seu passado, para seguir em frente, podemos dizer.

Ótimo. UNSUB: sigla em inglês para sujeito desconhecido em uma investigação. Talvez seja o acrônimo mais idiota já criado na história do FBI. E olha que a briga não é fácil.

Jake, é claro, adorava o termo.

Ele continuou:

– Talvez ele esteja tentando se livrar de seu próprio desespero, de seu próprio pesar.

Não havia modo de provar ou refutar sua hipótese, e mesmo assim, não havia estratégias específicas de investigação. Afinal, quem nunca lidou com pesar? Quem não quer esquecer as lembranças dolorosas? A maioria das 2,8 milhões de pessoas na região metropolitana de Denver se encaixaria nesse perfil.

Ainda assim, deixei suas palavras passarem sem comentário.

– Eu só consegui olhar cerca de 30 poemas de Keats, mas não encontrei nada útil nos que li – então, mesmo não querendo, admiti o inevitável: – É possível que estejamos em um caminho completamente errado.

Jake olhou para a tela de seu computador.

– Não tenho certeza – ele gesticulou na direção da televisão de tela plana na parede da sala de conferência. – Tem algum jeito de a gente...?

Cheyenne decifrou sua pergunta e levantou-se.

– Vou providenciar – ela ligou a televisão presa à parede e pegou um cabo USB em uma gaveta em um console próximo.

Jake levou um momento para conectar seu computador à porta USB na mesa e assim que a imagem de seu laptop apareceu na tela, Kurt entrou na sala e sentou-se.

– Amy Lynn quis ficar em custódia de proteção – ele disse, então olhou para mim. – Alguns de seus rapazes no escritório local levaram-na para um lugar seguro. E Reggie não está feliz.

– Então ela está a salvo – Cheyenne disse. – Isso é bom. Uma coisa a menos para se preocupar.

Algo não parecia certo, mas eu não queria mexer com isso. Jake abriu um website e ele apareceu na tela na parede.

– Mais uma coisa – Kurt acrescentou. – A informação que você queria da vitimologia, Pat. Tudo que temos até agora foi colocado nos arquivos on-line do caso.

– Ótimo – eu informei a ele sobre o que Cheyenne, Jake e eu estávamos discutindo e então gesticulei para Jake concluir.

– Isso é o que tenho – Jake apontou o cursor para o meio da página.

– Não achei nada relativo à frase sobre as lágrimas, mas encontrei mais sobre o vaso de manjericão. O poema de Keats era, na verdade, baseado em uma história do século XIV sobre uma mulher chamada Isabel, que exuma o corpo de seu amante, corta a cabeça e a coloca em um vaso, então planta manjericão em cima. – Jake fez uma pausa, então acrescentou: – A história aparece em um livro que foi condenado pela Igreja. É chamado Decamerão.

Inclinei-me para a frente.

– Um livro condenado? – Cheyenne disse.

– Sim. É de um autor italiano chamado Giovanni Boccaccio – ele rolou o artigo para baixo. – E, a propósito, Giovanni é a forma italiana de...

– John – eu disse.

– Sim.

– Inacreditável – Kurt murmurou.

John Alexander.

John Keats.

John Boccaccio.

Todos esses três homens haviam contado a história de uma cabeça exumada em um vaso de manjericão: o primeiro através de uma pintura, o segundo através da poesia e o terceiro através da prosa.

E agora, aqui em Denver, tínhamos um assassino que se chamava John e havia reencenado a história de um quarto modo: na vida real.

Quando assinou o bilhete como “John” e enviou o vaso de manjericão para uma repórter, o assassino deveria saber que faríamos a ligação com Keats, Alexander ou Boccaccio. Eu não tinha certeza se eu deveria me sentir impressionado por essa meticulosidade ou insultado por ela.

Tudo um jogo elaborado e doentio.

Jake continuou:

– Aparentemente, o Decamerão tornou-se uma fonte de material literário para outros autores, incluindo... – ele olhou em suas anotações.

– Faulkner, Tennyson, Longfellow, Shakespeare, Chaucer, e claro, Keats, só para mencionar alguns. Na verdade, um quarto das histórias em Os Contos da Cantuária, assim como sua estrutura literária, é baseado em histórias do Decamerão.

Eu mal podia acreditar.

– Chaucer, Longfellow, Shakespeare: todos tiveram histórias baseadas no livro de Boccaccio? Eu nunca havia ouvido falar dele.

Jake balançou a cabeça.

– Nem eu.

– Esperem – Cheyenne disse, de um jeito impaciente. – Você disse que o livro foi condenado pela Igreja?

Jake rolou a página para baixo.

– Em 1370, um monge chamado Pietro Petroni escreveu para Boccaccio alertando que ele seria amaldiçoado eternamente a menos que renunciasse ao livro. Boccaccio mais tarde revisou o livro, mas nunca se retratou. Logo depois disso, o papa, vamos ver...

Ele deslizou o cursor pela tela até encontrar o lugar.

– Sim, papa Paulo IV oficialmente condenou o livro e ele foi proibido de ser distribuído e lido. Mas parece que isso apenas fez com que ficasse mais popular.

– Nenhuma surpresa – Kurt disse. – O melhor jeito de vender um livro é fazer com quem alguém o proíba.

– Ele está no Index Librorum Prohibitorum até hoje – Jake concluiu.

– O Índice de Livros Proibidos – Cheyenne disse suavemente. Ela me pegou olhando para ela intrigado. – Escola católica.

– Tá certo – eu disse para Jake. – Então esse livro deve conter algo herético, ou talvez satânico. O que o site diz sobre o conteúdo do livro?

Ele olhou para as anotações que havia feito em um bloco de notas ao lado do teclado.

– O livro é sobre dez pessoas, sete mulheres e três homens que estão tentando escapar da peste negra no século XIV. Na história, a praga havia infectado Florença e os dez viajantes estavam tentando chegar às colinas de Fiésole, onde poderiam ficar em segurança.

Eu estava impressionado com o quanto ele havia conseguido descobrir em apenas 25 minutos.

Depois de recuperar o fôlego, ele continuou.

– Durante a viagem de dez dias, eles combinam que, a cada dia, cada um deles vai contar uma história. E é daí que o título Decamerão vem: duas palavras gregas, deka e haemeron, que querem dizer “dez” e “dias”, respectivamente.

Dez viajantes. Dez histórias. Dez dias.

Dez velas cercando o corpo de Heather Fain.

Meu coração acelerou.

Cheyenne batucava impacientemente na mesa.

– Jake, volte para a pergunta de Pat por um minuto. Se a Igreja condenou o livro, que tipo de histórias essas pessoas contaram?

Pelo tom dela, percebi que investigar um livro condenado pela Igreja na qual ela havia crescido estava incomodando-a mais do que só um pouco.

– Bom, um desses índices lista... – Jake olhou para seu computador, e eu vi uma nova página aparecer na tela da parede. – Sim. Aqui. Parece que as histórias são basicamente sobre tópicos do dia a dia: relacionamentos, política, religião, corrupção, tristeza e amor...

– Então, o cotidiano – Kurt disse.

– Basicamente.

Eu ainda não entendia por que a Igreja teria condenado o livro, mas por enquanto, pelo menos, as razões específicas da Igreja para tê-lo banido não importavam tanto quanto a ligação que ele poderia ter com o caso.

– Nós precisamos descobrir o máximo que pudermos sobre as histórias contidas no Decamerão – eu disse.

Jake balançou a cabeça.

– Essas histórias não são curtas e existem centenas delas. Nós levaríamos, sei lá, pelo menos alguns dias para percorrer todas...

– Não – eu disse. – Lembre-se das pistas anônimas sobre os corpos:

“O quarto dia termina na quarta-feira”. Podemos pular os outros dias por enquanto e apenas nos focarmos nas histórias contadas no quarto dia. E precisamos correr. O anoitecer está próximo.


38

Nós quatro baixamos o texto do Decamerão da internet, então Jake se ofereceu para investigar as três primeiras histórias que eram contadas no quarto dia, Cheyenne pegou as histórias de quatro a seis, Kurt, sete e oito e eu concordei em analisar as últimas duas.

Kurt sugeriu que nos reuníssemos novamente em uma hora, às 15h30. Percebi que a Biblioteca Pública de Denver, que ficava a apenas alguns quarteirões dali, provavelmente teria comentários que poderiam incluir detalhes adicionais e um pano de fundo para as histórias que estávamos estudando, então, quando nós quatro nos dispersamos para fazer nossas pesquisas, peguei meu laptop e saí pela calçada.


Desde que Tessa e Dora haviam chegado em casa, elas ficaram descansando na cama de Tessa, mexendo nos itens da caixa de memória de sua mãe, e Tessa contava à sua amiga histórias sobre os objetos dos quais ela lembrava.

As garotas estavam prestes a começar a leitura das cartas quando Dora avisou que não havia almoçado e estava faminta; precisava comer algo ou provavelmente ela iria desmaiar e morrer.

Que seja.

Mas Tessa percebeu que estava com muita fome também.

Então, para a cozinha.

Dora abriu a geladeira, pegou um refrigerante para ela e um para Tessa.

– Então ele não vai deixar você nem ver o diário?

– Não, ainda não – Tessa colocou um pouco de nachos em uma vasilha gigante. Colocou-a no balcão perto de uma vasilha menor com molho. – Preciso arrumar um jeito de convencê-lo a dar o diário para mim.

Dora fechou a geladeira.

– Como você vai fazer isso?

Tessa encolheu os ombros e pegou a vasilha de nachos para levar de volta ao quarto.

– Eu não sei – então ela percebeu que a vasilha era quase tão grande quanto o vaso de manjericão.

Um calafrio.

Ela soltou a vasilha.

Ok. Pense em alguma outra coisa.

Ela pegou então duas vasilhas de cereal, passou os nachos para elas e enfiou a vasilha grande de volta no armário. Ela não havia contado a Dora sobre o vaso de flores e o que tinha provavelmente – quase certamente – dentro dele. Ela não queria nem pensar naquilo.

– Vamos – ela disse. – Vamos ler aquelas cartas.

Elas pegaram seus salgadinhos e voltaram para o quarto. Mas Tessa per cebeu que não estava nem com metade da fome de alguns minutos atrás.

Encontrei as coleções das obras de Boccaccio no 853s, no terceiro andar da Biblioteca Pública de Denver, espremidas entre outros volumes de prosa italiana.

Dos 16 livros sobre Boccaccio ou sobre o Decamerão, 12 eram traduções, dois eram estudos de literatura comparada entre as obras de Boccaccio e Chaucer, e dois focados em outros trabalhos de Boccaccio.

Nenhum dos cinco livros de comentários da biblioteca sobre o Deca-merão estava na prateleira.

Verifiquei o catálogo computadorizado e descobri que todos os cinco estavam emprestados, mas quando perguntei à diretora da biblioteca quem os emprestara, ela me disse que não poderia fornecer a informação.

– Sim, você pode – mostrei a ela meu distintivo do FBI. – E vou precisar de uma lista de todos os que os pegaram nos últimos 12 meses.

Ela balançou a cabeça negativamente.

– Isso é uma investigação federal.

– E isso é uma biblioteca pública – a mulher cruzou os braços. Ela tinha um corte de cabelo do qual apenas uma bibliotecária poderia gostar. – Existem leis para proteger o direito das pessoas à privacidade, sabia?

Tecnicamente, ela estava correta, mas o direito à privacidade não é um direito constitucional, é apenas um direito imputado, e pode, portanto, ser sobreposto por coisas como ataques terroristas, segurança nacional ou ameaça iminente.

– As vidas de pessoas estão em perigo – eu disse a ela.

– Os direitos das pessoas também – ela respondeu duramente. – Volte com um mandado e ficaremos felizes em ajudá-lo.

Endureci minha mandíbula. Nos últimos anos, eu havia requisitado mais do que minha cota de mandados de busca, e eu sabia que ainda não tínhamos informações suficientes para conseguir um para registros de biblioteca. Além disso, levaria uma hora só para preencher a papelada.

Esqueça. Você pode acompanhar isso depois. Vá tratar das histórias.

Voltei para o 835s e escolhi a tradução com mais notas de rodapé – a tradução do italiano para o inglês de John Payne, de 1947, em vez da tradução de 1942 que havíamos baixado da internet.

Então, comecei a ler a nona e a décima história do livro condenado que havia, ao que tudo indicava, inspirado um homem a matar pelo menos sete pessoas até agora, nesta semana.

Giovanni sentou-se à sua mesa e pensou nas próximas seis horas.

Pensou no homem que estava prestes a sequestrar e na maneira bastante perturbadora como ele iria morrer na história número seis: o conto do galgo e do convento e do lençol de seda que seria coberto com pétalas de rosa delicadas e graciosas da cor da luz do sol avermelhada.

E então.

Giovanni estava com a navalha e as agulhas hipodérmicas.

Ele conferiu a hora: 14h53.

Thomas Bennett sairia do trabalho em menos de duas horas.

E estaria morto em menos de 12.

Foi perfeito.

Quando as autoridades ofereceram a Amy Lynn Greer a chance de ficar isolada em um lugar seguro pelo resto do dia, longe dos olhos curiosos de Benjamin Rhodes, foi uma oferta boa demais para ser desperdiçada.

Ela levou o filho junto, claro, mas isso não era um problema. O esconderijo estava abastecido com muitos filmes infantis e brinquedos.

E ela estava com seu computador.

Isso era tudo de que precisava.

Mais cedo, no escritório de Rhodes, a garota que o agente Bowers identificou como sua enteada havia ficado perturbada quando ligou o vaso de manjericão com o nome John e, logo depois disso, as autoridades levaram o vaso embora, então Amy Lynn havia passado a última hora pesquisando as ligações entre o nome “John” e o tempero “manjericão” enquanto o filho brincava com Lego e assistia TV no quarto ao lado.

E quando ela encontrou um poema de Keats sobre uma cabeça que estava escondida dentro de um vaso de manjericão, ela decidiu que isso tinha de estar relacionado ao fato de o governador Taylor ter sido decapitado na quinta-feira à noite.

Ela mal podia acreditar no quanto essa história era grande. Apesar da morte de Sebastian Taylor receber cobertura ininterrupta da mídia, até onde ela sabia, ninguém mais havia feito a ligação com o vaso de manjericão.

O vaso havia sido enviado para ela.

O assassino havia entrado em contato com ela.

Havia escolhido ela.

Ela poderia escrever a história que ninguém mais podia.

Mas ela precisava de só mais um pouco de informações para isso.

Uma comentarista de notícias havia mencionado que houve duas ligações anônimas relatando o local dos corpos.

Amy Lynn sabia que às vezes arquivos de áudio das ligações para a polícia eram postados na internet, então ela levou alguns minutos para procurá-los, mas não encontrou nada. Isso queria dizer que, se ela quisesse descobrir o que as ligações diziam, ela teria de entrar em contato com sua fonte no departamento de polícia.

Não seu marido. Não. Ela não podia utilizá-lo. O homem no qual ela estava pensando trabalhava no escritório de expedição do Serviço Médico Emergencial.

Era uma amizade sobre a qual ela nunca havia tido tempo de contar ao marido. Não era nada sério, eles haviam saído para beber algumas vezes, se encontraram para tomar café, nada comprometedor, mas tinha valido a pena para ela em três histórias anteriores.

Com o burburinho no departamento de emergência médica, quem sabe o que ele pode ter ouvido?

Ela fechou a porta do quarto do esconderijo para garantir que o agente federal assistindo TV com seu filho na sala de estar não ouviria sua conversa. Então pegou uma caderneta e ligou para o celular do contato.

Ele atendeu depois de um toque.

– Ari.

– Ari. É a Amy Lynn.

Uma breve pausa.

– Amy Lynn.

O dr. Bryant, seu professor de jornalismo, havia ensinado a ela que sempre começasse a se relacionar como pessoa antes de se relacionar como repórter.

– Caso contrário, sua fonte pode pensar que você está mais interessada na história do que nela – ele havia dito à classe, então tinha feito uma pausa e sorrido. Ela ainda lembrava disso. – É claro, você está mais interessado na história, mas obter a informação que você quer sem deixar que as pessoas percebam que você as está usando é a diferença entre bons jornalistas e ótimos.

– Tudo bem contigo, Ari? – ela perguntou carinhosamente. Considerando a personalidade tímida dele, ela sempre achou irônico que seu nome significasse “Leão” em hebreu.

– Estou bem – ele fez uma pausa. – Como estão você e Jayson?

Ela percebeu que ele não havia perguntado do marido, apenas do filho, mas decidiu não lembrar a ele que era uma mulher casada.

– Acabou de fazer três anos. Ele já está falando agora. Está uma gracinha. Sim, estamos bem.

– Isso é ótimo.

– Sim.

– Então, como você consegue fazer tudo isso? Trabalhar, ser mãe, tudo – era um elogio sutil, beirando o flerte, e ela percebeu.

– Uso muito a creche – volte para o caso. Pergunte a ele sobre as denúncias. – Ei, ouvi falar sobre essas ligações nos últimos dias. Os homicídios.

Que alguém deu pistas para a polícia.

Silêncio.

– Por baixo do pano, eu estava imaginando...

– Amy Lynn, eu não deveria...

– Eu sei, eu sei. Mas não vou usar seu nome. Só vou dizer “uma fonte anônima”, do mesmo jeito que fizemos da última vez.

– Sim, mas da última vez eles quase descobriram – ele havia baixado a voz. – Eu posso perder meu emprego. Eles estão muito preocupados com vazamentos dessa vez. Ele tem matado duas pessoas todo dia... – ele interrompeu o que falava.

– Duas pessoas por dia? – ela rabiscou as palavras “número crescente de mortos choca a cidade” em sua caderneta. – Então eles acham que ele vai matar de novo antes de amanhã? – ela falou sem pensar, assumindo o lado repórter.

– Eu não disse isso – ele estava um pouco defensivo. Isso não era bom.

– Claro que não. Não, você não disse nada.

– Talvez eu devesse desligar.

Rápido.

– Você está certo, Ari. Sério, olhe, me desculpe. Eu não deveria ter ligado.

A última coisa que quero que aconteça é que você se meta em encrenca.

Espere. Espere.

– Não se preocupe com a história. Sério. Eu posso... não é nada de mais. Espere.

Mais um pouquinho.

– Foi bom falar contigo, pelo menos. Bom ouvir sua voz. Eu deveria desligar. Espere.

– Tchau, Ari...

– Calma.

Sim.

– Uma coisa – ele falou mais suavemente ainda do que antes. – Mas eu não te contei nada. Você tem de prometer.

Isso é bom. Muito bom.

– Não, claro que não. Você não disse uma palavra.

– Eu não peguei nenhuma das denúncias que o cara fez, mas ouvi as pessoas falando.

Ela esperou, a caneta pronta sobre a caderneta.

– Ele disse que o anoitecer estava chegando, que o quarto dia acabaria logo, que ele não iria parar até que terminasse a história. Eu não sei o que isso quer dizer. Ninguém sabe. É isso. Mas não publique isso, ok? Apenas diga algo como “a polícia está investigando as ligações”.

– Eu prometo, não vou publicar – era uma promessa que ela não tinha certeza de que poderia cumprir, mas era a coisa certa a dizer no momento. – Eu não ia querer fazer algo que estragasse nossa amizade. Você sabe disso.

– Sim, obrigado... hum. Ei, eu tenho tido vontade de te ligar. Faz tempo desde que... Talvez pudéssemos nos encontrar para jantar.

– Sim, sim. Seria ótimo – ela precisava acabar com aquilo. Ela olhou para a porta fechada do quarto onde estava. – Espere, meu editor está vindo. Preciso desligar. Tudo bem? Eu te ligo.

– Ok...

Ela apressadamente se despediu, finalizou a ligação e olhou para suas anotações: anoitecer... quarto dia... ele está contando uma história... duas vítimas a cada dia.

Talvez o bilhete que John deixou no vaso de manjericão tenha algo a ver com a história que o assassino está contando.

Lentamente ela escreveu as palavras na caderneta, pensando cuidadosamente em cada uma delas: devemos nós tratar das lágrimas alheias? Por favor, sra. Greer, tenha coração.

Espere.

Ela não havia reparado em uma palavra antes. Uma palavra crucial: nós. “Nós tratamos das lágrimas alheias”.

Seu coração acelerou.

Talvez John estivesse também na imprensa.

Ele é um de nós.

Ela abriu a lista de funcionários do Denver News em seu computador e começou a procurar por alguém que possa ter escrito recentemente uma história sobre anoitecer, ou o quarto dia de alguma coisa, ou alguém que estivesse de folga na hora dos assassinatos.

Ela começaria ali. Então passaria para outros meios de comunicação até encontrar o homem que havia enviado as flores.


Eu estava profundamente perturbado pelas duas histórias que li no Decamerão.

Se o assassino estava realmente reencenando as histórias contadas no quarto dia, quando ele chegasse ao nono conto, ele cometeria um dos crimes mais chocantes do qual se tem conhecimento.

O décimo conto era menos terrível, mas deixava a porta aberta para ainda mais crimes.

Meu tempo estava se esgotando.

Peguei emprestada a cópia da tradução de 1947 do Decamerão e corri de volta para a central da polícia.

Mesmo estando ansioso para compartilhar o que havia descoberto sobre a história número nove, eu sabia que, para entender o contexto geral da ligação do Decamerão, nós precisaríamos começar com a primeira história contada no quarto dia.

Essa era a história de Jake e ele já estava esperando na sala de conferência quando entrei.

Kurt e Cheyenne chegaram menos de um minto depois, e a reunião começou.


39

15h34

Kurt colocou as coisas no trilho.

– Esse cara vem crescendo e temos muito o que fazer ainda. Vamos ser minuciosos, mas também concisos – ele acenou para Jake. – Conte-nos.

Jake olhou para suas anotações.

– Na introdução para a primeira história, a narradora Fiammetta diz: “Nós devemos tratar das lágrimas alheias”, em referência ao objetivo que eles têm de contar histórias trágicas nesse dia. John apenas inverteu as duas primeiras palavras para tornar a frase uma pergunta dirigida a Amy Lynn.

– Como as palavras não estavam em ordem, uma ferramenta de procura on-line não encontraria a frase – Cheyenne disse. – Esperto.

Se ainda houvesse qualquer dúvida, essa referência confirmava a ligação entre os assassinatos e o Decamerão.

Peguei-me batucando meu dedo contra a mesa. Parei.

Jake continuou:

– Essa primeira história é sobre um pai que tem o amante da filha estrangulado por alguns homens. Ele envia para ela o coração do homem morto em uma tigela de ouro; ela derrama veneno sobre ele, bebe e morre.

– E eu aposto que ela é encontrada segurando o coração dele contra o seu – eu disse.

Jake não precisou checar suas anotações.

– Sim.

Tive um pensamento horrível, mas que não pude evitar: John fez Heather beber uma tigela de veneno que continha o coração do namorado dela.

– Espere – Cheyenne disse. – A ligação anônima disse que o quarto dia terminava na quarta-feira. Isso é dez dias após Heather e Chris terem desaparecido. E existem dez histórias sobre as lágrimas alheias. Então isso quer dizer...

– Ele está reencenando todas as dez histórias – Kurt disse.

O silêncio pairou sobre a sala.

– Bem – Jake disse finalmente. – Não tenho certeza como ele vai reencenar a segunda história: é sobre um padre que finge ser o anjo Gabriel para conseguir fazer sexo com uma mulher que é bonita, mas não muito esperta.

– O que acontece com o padre? – Kurt perguntou.

– Ele é pego, humilhado e mandado para a prisão.

– Ele não é morto? – eu disse.

Jake balançou a cabeça.

– Ele é deixado por um tempo na floresta, acorrentado a uma árvore, com uma máscara presa ao rosto para que não pudesse pedir socorro.

– E a mulher? – perguntou Cheyenne.

– Ela sobrevive também.

Kurt olhou pensativamente para a parede por um momento e então disse:

– Eu não sei de nenhum padre da área que tenha sido pego recentemente em algum escândalo sexual, mas vou verificar com o tenente Kaison, da divisão de crimes sexuais, e vou dar uma ligada para a seção de pessoas desaparecidas – ele fez algumas anotações em seu bloco.

– Certo – Jake continuou. – A terceira história: essa soa como uma novela medieval. Ela trata de um triângulo amoroso que dá errado. Realmente complicado. No final, porém, um homem é envenenado e uma mulher é morta com uma espada.

– Então esses devem ser o envenenamento de Ahmed Mohammed Shokr e o esfaqueamento de Tatum Maroukas na quarta-feira – Cheyenne disse.

– Essas são minhas três histórias – Jake concluiu.

Era a vez de Cheyenne. Ela levantou-se.

– A quarta história obviamente relaciona-se com Sebastian Taylor e Brigitte Marcello: uma mulher é desmembrada enquanto o amante assiste, e então é jogada ao mar, ou, nesse caso, na Represa Cherry Creek.

No final, o amante dela é decapitado.

– Então – Jake disse reflexivamente –, o UNSUB joga os corpos onde podem ser encontrados com rapidez, deixa pistas, bilhetes – ele fez uma pausa, olhou em torno da sala. – Ele é um contador de histórias. Ele quer uma audiência; precisa tratar com alguém das lágrimas alheias.

– Parece isso – Cheyenne disse. – A história cinco é sobre o vaso de manjericão.

Algo não estava encaixando. O horário dos crimes não estava certo.

– Calma – eu disse. – Heather e Chris desapareceram na segunda-feira, mas foram encontrados na quinta. Se o assassino está reencenando os crimes na ordem, eles deveriam ter sido encontrados primeiro... Espere...

– O que foi? – Jake perguntou.

– Lembram da temperatura na mina? A perícia a mediu em 5 °C quando testaram as velas. A temperatura baixa preservou o corpo e o coração.

– Então eles devem ter sido mortos na segunda-feira – Cheyenne disse.

– Sim. Por enquanto, vamos chamar o assassino de John. Se ele realmente está recontando as histórias em ordem, e se o padre não morre na segunda história...

– Ele ainda deve estar vivo – Kurt completou meu pensamento.

– Certo.

Senti um pequeno calafrio.

Kurt levantou-se.

– Vou botar isso em prática agora; ver se encontramos algo incomum, qualquer coisa, envolvendo padres nesta semana – ele deixou a sala.

– Espere um pouco, Pat – era Jake. – A primeira denúncia anônima foi feita numa quinta-feira; se John matou Heather e Chris na segunda, por que esperar três dias antes de chamar nossa atenção para o crime?

– Quem sabe? – eu disse. – Talvez ele tenha esperado para dar a si mesmo uma vantagem. Não vamos nos preocupar em ler a mente dele, vamos nos focar em pegá-lo. O primeiro crime aconteceu na segunda-feira; hoje é sábado. Isso significa que ele vai reencenar a história número seis hoje.

Jake e eu desviamos nossa atenção para Cheyenne.

Ela começou a circular a mesa.

– Essa é sobre um homem chamado Gabriotto, que morre do que Boccaccio chama de “abscesso cheio de pus” estourando perto de seu coração. Mas lembrem-se: isso foi no século XIV, então estou imaginando talvez um ataque cardíaco; é difícil saber a que Boccaccio podia estar se referindo.

– Um ataque cardíaco? – balancei a cabeça. – Nada bom.

– Por quê? – ela perguntou.

– Dado o número de vítimas de ataque cardíaco na região metropolitana de Denver, será quase impossível rastrear. É muito vago.

Pensei por um momento.

– Esse assassino, ele gosta de um espetáculo, certo? O que você disse, Jake, que ele é um contador de histórias que quer uma audiência?

Ele acenou com a cabeça.

– Então ele faria algo mais dramático do que apenas deixar um homem morrer de ataque cardíaco. Cheyenne, tem mais alguma coisa na história que ele poderia usar? Algo mais incomum, mais chocante?

Ela havia parado de andar e agora percebi seu rosto ficando pálido.

– Antes de o homem morrer, ele tem um sonho no qual um galgo preto o ataca e come seu coração enquanto ele ainda está batendo em seu peito.


40

Um calafrio.

Nós três estávamos quietos.

Por um momento deixamos o impacto das palavras dela passar, e finalmente perguntei a Cheyenne:

– E quanto à amante do homem?

Ela consultou suas anotações.

– Ela sobrevive. Após repousar o corpo dele em um lençol de seda coberto de pétalas de rosas, ela entra para um convento. Então, não tenho certeza se isso nos ajuda muito. A ligação com o galgo, porém, acho que é sólida.

Acenei com a cabeça.

– Eu também acho. Antes de avançarmos mais, precisamos colocar alguns policiais atrás disso. Donos de galgos, veterinários, canis, pistas de corrida. Vamos ver se alguém perdeu um cão, ou se houve recentemente algum ataque. Se estivermos certos, John vai cometer seu crime hoje...

– então fiz uma pausa. Eu não queria acrescentar as próximas quatro palavras, mas senti que deveria. – Talvez já tenha cometido.

– Certo – Cheyenne disse. – Vou conversar com Kurt e o capitão Terrell – ela foi na direção da porta.

Ofereci-me para me juntar a ela, mas ela disse por cima do ombro:

– Eu volto logo. Dê-me cinco minutos.


Após Cheyenne deixar a sala, Jake foi ate a máquina de salgadinhos no final do corredor. Eu levei um momento para anotar os nomes das vítimas e os detalhes da história dos crimes que conhecíamos até então; peguei meu telefone, verifiquei minhas mensagens de voz, não encontrei nenhuma, mas então me lembrei que havia prometido ligar para Calvin.

Tentei seu número.

Sem resposta. Deixei uma mensagem para ele retornar minha ligação.

Os fatos do caso ficavam tropeçando dentro da minha cabeça: os des membramentos, os envenenamentos, as decapitações, a progressão das histórias de um a cinco, o vaso de manjericão. Os horários e a progressão...

Eu ainda não havia falado com Tessa desde que ela tinha ido com Dora. Liguei para ela.

– Sim – ela disse.

– Sou eu. Como você...

– Então, estava lá?

– O que você está dizendo?

– O vaso. Estava no vaso?

– Você disse que não queria que eu contasse.

– Eu sei, mas eu estou só pensando, tipo, estava lá ou... espere. Não me conte, ok?

– Ok – eu disse.

– Mas estava lá, certo? A cabeça.

– Não vamos conversar sobre isso.

– Sim, não, eu sei. Mas...

– Tessa, chega. A Dora ainda está aí?

– Estamos lendo as coisas da caixa de sapato da minha mãe. É muito legal – disse, fazendo uma pausa e completando: – Mas seria melhor se eu tivesse o diário.

– Discutimos isso depois. Quanto tempo Dora vai ficar aí?

– Ela precisa ir embora em mais ou menos uma hora, mas eu acho que vamos sair mais tarde, à noite, imagino. Sair para jantar. Assistir a um filme ou algo do tipo.

– Bem, se eu não te ver hoje à tarde, divirta-se. E quero você de volta à meia-noite.

Outra pausa.

– Sim.

– Ok, nos falamos depois.

– Então você vai me dar o diário?

– Não se você ficar perguntando sobre ele.

– Isso não é justo. Como eu posso conseguir o que quero se não posso falar sobre ele?

– Tchau, Raven.

Silêncio.

– Eu disse “tchau” – repeti.

Nenhuma resposta. Esperei e finalmente percebi que ela havia desligado.

Ótimo.

Eu estava guardando meu celular quando Kurt apareceu junto à porta.


41

Seu rosto estava contraído e mostrava traços de uma tristeza cansada.

– Você está bem? – perguntei.

Ele acenou com a cabeça e me disse que estava bem e que havia colo cado policiais atrás de todas as pistas, mas dava para ver que havia algo a mais pesando em sua cabeça.

– Não é só o caso, né? – eu disse.

Após uma pausa embaraçosa, ele disse:

– É a Cheryl... mas vai ficar tudo bem. As coisas estão apenas, você

sabe, um pouco tensas no momento.

Ver seu casamento se desintegrando havia sido uma das coisas mais dolorosas para mim nos últimos cinco meses.

– Talvez você deva tirar um tempo de folga, para cuidar dos problemas – eu disse.

Ele discordou da sugestão.

– Vai ficar tudo bem.

– Se tiver algo que eu possa fazer... – mas então Cheyenne e Jake entraram na sala, e achei melhor não entrar em mais detalhes.

– Obrigado – Kurt disse. – É bom saber disso.

Quando todos tomaram seus lugares, eu disse:

– Antes de continuarmos, vamos tomar um minuto para ver o que temos até agora. Resumir a progressão dos crimes.

Peguei emprestado o computador de Jake, que ainda estava ligado à televisão na parede, e digitei:

Vítimas:

Segunda-feira – Heather Fain e Chris Arlington (encontrados na quinta-feira) Terça-feira – Desconhecida. Um padre? Ainda vivo?

Quarta-feira – Tatum Maroukas e Ahmed Mohammed Shokr Quinta-feira – Sebastian Taylor e Brigitte Marcello

Sexta-feira – Kelsey Nash (sobrevivente) e Travis Nash

Sábado – ?

Olhamos todos para a lista.

– Fica pesado quando a gente faz uma lista desse jeito – Cheyenne disse, replicando meus pensamentos.

Ninguém disse nada e senti uma urgência centrada se abater sobre a sala.

Após levar alguns minutos para revisar as causas das mortes des critas em cada uma das histórias de Boccaccio até então, nossos olhos voltaram-se para Kurt.

– Bem – ele disse –, vou dar-lhes a versão resumida: na história sete, dois amantes morrem por esfregar veneno de sapos em suas gengivas, e na história oito, dois ex-amantes morrem de tristeza. O homem morre quando percebe que a mulher que ele ama está casada e feliz com outra pessoa; a mulher, quando vai ao seu funeral.

Ele acrescentou mais alguns detalhes mas manteve a sinopse breve.

Então era a minha vez.

– O nono conto me lembrou de uma história de horror gótica – decidi ser bem direto. – Quando a esposa de Sir Guillaume de Roussillon dorme com outro homem, ele o mata, arranca seu coração e então dá para o cozinheiro preparar o jantar.

– Por favor, não me diga que ele acabam comendo ele – Cheyenne disse suavemente.

Apanhei a cópia do Decamerão que havia pegado na biblioteca.

– Talvez fosse melhor se eu lesse essa parte da história.

A senhora, que de modo algum era melindrosa, provando-o e achando-o saboroso, comeu tudo; o que, quando o cavaleiro viu, disse a ela:

– Esposa, o que você achou deste prato?

– De bom gosto, meu senhor – respondeu ela –, me agradou por sobremaneira.

Pelo que:

– Pois com a ajuda de Deus – disse Roussillon – eu realmente creio em você, e nem me admiro que tenha lhe agradado, morto, aquilo que, vivo, deu-te prazer mais do que todas as outras coisas.

Um silêncio profundo.

– Não estou surpreso que te agrade morto – Jake disse – aquilo que te agradou mais do que tudo quando vivo. Isso é frio. É brutal. Como a história termina?

– A mulher se mata pulando de uma janela.

– Amor e lágrimas – Jake murmurou. – Encaixa-se perfeitamente.

– No que você está pensando? – Kurt perguntou.

– É a obsessão de John – Jake disse, improvisadamente criando o perfil do assassino. – Todas essas histórias são as consequências trágicas do amor; todos contos cruéis e fatais sobre amor e perda. É a isso que a frase se refere: devemos nós tratar das lágrimas alheias? Através de seus crimes, John está reencenando as lágrimas dos amantes.

Ninguém disse nada. Fosse verdade ou não, fazia sentido.

Kurt olhou para mim.

– E quanto à última história?

– Essa talvez seja a única que não é cheia de lágrimas – eu disse. – Na verdade, quando eu a estava lendo, fiquei pensando se Boccaccio não a acrescentou apenas para aliviar o clima, e talvez fazer a transição para os contos do dia seguinte. De qualquer modo, ninguém morre na última história; no entanto, um homem é dopado e fechado dentro de uma grande caixa.

– Enterrado vivo? – Cheyenne perguntou.

– Não, mas do jeito que está escrito, você começa a pensar que é o que vai acontecer. Mas no final, não acontece nenhuma tragédia.

– Apenas lições – Jake refletiu. – Sobre amor e morte.

– Isso mesmo – enquanto concordava com ele, eu imaginava se o nosso assassino se contentaria com aquele final. Eu duvidava. – Isso nos dá muitos detalhes para continuarmos – eu disse. – Os galgos, os sapos venenosos, o padre.

As coisas estavam funcionando.

Tantos crimes. Tantas peças de um quebra-cabeça.

– Kurt – eu disse –, vamos arrumar um mandado para procurar nos registros da biblioteca e ver quem andou pegando emprestado os livros de Boccaccio. Também, vamos identificar quais faculdades oferecem cursos sobre Boccaccio ou sobre esse livro, o Decamerão. Comece pela Universidade de Denver e Universidade de Colorado, e continue a partir daí. Nosso cara deve ter estudado tudo isso por conta própria, mas podemos pelo menos comparar as listas de alunos com a lista de suspeitos.

– Procuraremos por todo o país, se for necessário – ele disse.

– E ainda precisamos descobrir quem é o dono da mina onde encontramos o corpo de Heather. Pode nos dar alguma indicação para encontrarmos John.

– Jameson está vendo isso – ele disse balançando a cabeça. – Mas existem centenas de minas abandonadas lá em cima e a maioria dos registros do Condado de Clear Creek ainda não foi digitalizada. É uma bagunça.

Ele está em Idaho Springs agora, procurando nos registros de propriedade, um por um.

Ficamos quietos.

– Jameson sabe o que está fazendo – ele acrescentou. – Se houver alguma coisa, ele vai descobrir.

Jake bateu na mesa com os nós dos dedos e levantou-se.

– Vou trabalhar no perfil psicológico do UNSUB.

Cheyenne também se levantou.

– Todas as histórias até agora têm a ver com pessoas casadas ou casos amorosos, e as vítimas são sempre casais. Estou pensando no seguinte: o cara está escolhendo as vítimas de algum jeito, mas não há uma ligação óbvia entre cada um dos casais, certo?

– Não que saibamos de algo até agora – eu disse.

– E, Jake, o que você disse? Contos fatais de amor e perda?

– Isso mesmo.

– Bom, quem mais lida com o amor e a perda de um casal? Sabe sobre suas solidões, suas tristezas, seus interesses e casos amorosos?

– Sim, ótimo – eu disse. – Um terapeuta. Ou um conselheiro matrimonial.

– Exatamente – ela disse. – Uma lista de clientes de um conselheiro é confidencial; em alguns casos, mesmo membros da família ou cônjuges não sabem que a pessoa estava frequentando um conselheiro matrimonial, e isso dificultaria muito para nós fazermos a ligação com as vítimas.

Parecia uma boa perspectiva para mim.

– Verifique isso. Pode ser uma ligação óbvia demais para esse cara, mas talvez ele não seja tão esperto quanto acha que é – recolhi minhas coisas.

– E quanto a você? – Jake perguntou.

– O perfil geográfico – fui na direção do corredor. – Vou descobrir onde John vive.


22 minutos depois
16h41

Giovanni olhava fixamente as janelas escuras e manchadas do Infiniti FX50 cinza de Thomas Bennett estacionado no segundo andar do estacionamento da 18th Street. Por causa dos vidros escuros, ele não podia ver o interior do carro, nem os bancos da frente, nem os de trás.

Perfeito.

Desse jeito ele não teria de esperar debaixo do veículo, ele poderia esperar dentro dele.

Mesmo com o sistema de segurança avançado do Infiniti, Giovanni levou menos de 30 segundos para abrir a trava da porta.

E menos de três minutos para desabilitar o rastreamento e o mapeamento do GPS do veículo.

Sentou-se no banco de trás, fechou a porta e parou um momento para ajustar o espelho retrovisor para que pudesse ver o rosto de Bennett quando ele entrasse no carro.

Ele colocou as duas agulhas que usaria sobre o assento ao lado.

Era uma caminhada curta do edifício Wells Fargo, onde Thomas Bennett trabalhava, até o estacionamento, então Giovanni não achava que precisaria esperar muito até o sr. Bennett chegar.


42

16h46

Eu estava sentado à minha mesa em meu escritório no 18° andar do Prédio Federal Byron G. Rogers, trabalhando no perfil geográfico.

E ficando mais e mais frustrado.

A equipe de Kurt havia feito um bom trabalho compilando infor mações de vitimologia: os endereços das vítimas, locais de trabalho e recreação, assim como locais conhecidos do sequestro e o local onde cada corpo havia sido encontrado. Eles haviam analisado também o uso de cartões de crédito e, baseados na frequência das compras das vítimas, identificaram os locais dos postos de gasolina, mercados, casas noturnas e farmácias que as pessoas preferiam frequentar.

Ainda assim, na primeira vez que inseri os dados no meu FALCON, a Rede de Operação Secreta e Localizador Aeroespacial Federal, os resultados foram inconclusivos. Avançados como eram os algoritmos e programas de mapeamento geoespacial do FALCON, consegui apenas limitar a zona de perigo para cerca de 22% do Condado de Denver. Não era exatamente uma precisão incrível.

Eu estava avaliando de que formas o conjunto de ruas de mão única poderia desviar a percepção das distâncias do assassino entre os locais dos crimes quando meu celular tocou. Olhei para o identificador de chamadas enquanto atendia.

Diretora-assistente Margaret Wellington.

Ótimo.

Atendi.

– Margaret, não estou com muito tempo agora...

– É um sinal de respeito se dirigir a alguém pelo seu título.

Meus dedos se apertaram em volta do telefone.

– Estou um pouco ocupado agora, diretora-executiva-assistente Margaret Wellington – eu podia imaginá-la sentada à sua mesa no quartel-general do FBI: terno feminino, lábios finos, olhos penetrantes, cabelo claro.

– Estou esperando que um relatório completo resumindo o tiroteio de ontem no tribunal esteja na minha mesa às 8h segunda-feira de manhã.

– Parece razoável. Agora...

– Também vou pedir uma investigação completa do incidente.

Uma perda de tempo. O Departamento de Polícia de Chicago já tinha depoimentos de dúzias de testemunhas. A única investigação que precisava ser feita era sobre como Sikora, ou seu cúmplice, havia conseguido carregar a arma antes que ela fosse levada para a sala do tribunal.

– Obrigado por me avisar.

– Jake já chegou? – ela perguntou secamente.

– Jake chegou hoje de manhã – como poderia dizer aquilo? – e ele já está sendo um estimável reforço para a investigação – percebi que as palavras estimável e inestimável poderiam querer dizer a mesma coisa, mas eu me senti melhor descrevendo as contribuições de Jake como estimáveis.

Ela fez uma pausa, sem dúvida tentando ler as entrelinhas de minhas palavras.

– Não seja condescendente comigo, dr. Bowers. Eu posso fazer sua vida ficar terrível.

Quem sou eu para discutir isso?

– Margaret, preciso desligar.

– Estou ansiosa para ver você lecionando na Academia nesse verão – o desprezo era ressaltado em cada uma das palavras. – Pense nisso, vamos nos ver todos os dias por três meses.

– Eu mal posso imaginar como será isso.

Antes que ela pudesse responder, finalizei a ligação e tirei Margaret e sua obsessão pela papelada burocrática da cabeça.

Decidi mudar as estratégias no perfil geográfico. Talvez, se eu não podia encontrar a base de John, eu pudesse pelo menos diminuir o número de rotas que ele usou para localizar e então transportar suas vítimas.

Para isso, reorganizei os dados e comecei a estudar as locações mais prováveis onde os padrões de locomoção das vítimas possam ter se cruzado com os do assassino.

E os minutos se passavam.


Thomas Bennett saiu do elevador e Giovanni abaixou-se dentro das sombras escuras do banco de trás do Infiniti, para garantir que não seria visto.

Ele colocou sua máscara de esqui, abriu a navalha e ouviu o som do alarme quando Bennett destravou as portas com o controle remoto.

O homem sentou-se no banco do motorista.

Fechou a porta.

Lentamente, Giovanni sentou-se e olhou para o rosto de Thomas no espelho retrovisor. Ele era um homem de mandíbula estreita, com olhos nervosos, e estava tão ocupado com a chave que ainda não tinha percebido que havia uma pessoa observando-o pelo espelho. Giovanni esperou. Ele queria que Thomas visse que não estava sozinho no carro.

Finalmente, quando Thomas deslizou a chave pela ignição, seus olhos instintivamente encontraram o espelho retrovisor.

– Mas o que...

Mas antes que ele pudesse terminar a frase, Giovanni já havia passado o braço em torno do encosto de cabeça e pressionado a lâmina da navalha contra a parte da frente do pescoço de Bennett.

– Olá, Thomas.

Os lábios do homem começaram a tremer.

– Quem...

– Essa lâmina é muito afiada, então vou ter de pedir para você ficar parado e não se agitar. Se você se mexer muito, vai fazer uma bagunça. Acredite em mim. Se você me entendeu, acene com a cabeça lentamente.

Giovanni afastou a lâmina levemente do pescoço de Thomas enquanto o homem assentiu firme com a cabeça.

– Certo. Vou dar a você algo para ajudá-lo a relaxar.

Seus olhos estavam arregalados de medo.

– Pode levar minha carteira, eu...

– Não estou interessado em seu dinheiro – Giovanni segurou a lâmina da navalha firmemente contra o pescoço de Bennett nova-

mente para encorajá-lo a permanecer imóvel. – Agora, por favor, fique parado por um momento.

Então, observando-o cuidadosamente no espelho e segurando firme a lâmina, Giovanni pegou a primeira seringa com a mão livre e colocou a ponta contra o lado esquerdo do pescoço de Thomas Bennett.

– Não – Bennett implorou. – Por favor.

– Shhhh.

Pressionou o êmbolo.

Alguns segundos depois, após Thomas ter perdido a consciência,

Giovanni desceu do carro, colocou-o no banco de trás e desabotoou a camisa do homem para revelar seu peito.

Então cuidadosamente aplicou a segunda injeção, reabotoou a camisa, foi para trás do volante e partiu para o rancho.


43

Desde a hora da minha conversa com Margaret, cerca de 45 minutos antes, fiquei fazendo o que costumava achar que fazia melhor.

Eu não estava mais tão certo disso.

Não importava o quanto refizesse o perfil geográfico, eu não conse guia um resultado sólido e minhas ideias estavam acabando.

Apesar de odiar admitir isso, eu começava a acreditar que John poderia ter distorcido os resultados selecionando sua vítimas e locais dos crimes aleatoriamente.

Esfreguei os olhos.

Afastei-me da mesa e levantei. Alonguei as costas.

Meu escritório no 18° andar dava vista para a cidade de Denver; apoiei minha mão contra o vidro e deixei os olhos passearem pelo labirinto de hotéis e bancos espelhados que formavam o centro de Denver.

John morava ali, em algum lugar.

Ou talvez não morasse. Talvez ele fosse itinerante e estivesse apenas de passagem.

Os músculos em meu braço, meu ombro e meu pescoço endureceram de frustração e raiva.

Você tem de encontrá-lo, Pat. Você tem de atraí-lo.

Visualizei o tribunal original de Denver logo do outro lado da rua do meu escritório. Ele havia sido construído em 1910 como um exemplo em primeira mão da arquitetura da virada do século e como um atestado à justiça no Oeste. Mesmo tendo apenas quatro andares de altura, ele era imponente, monumental e tomava um quarteirão inteiro da cidade.

Da minha janela eu podia ler a inscrição em letras maiúsculas, no friso, de lado a lado do prédio, logo abaixo do telhado: “Nulli Negabimus, Nulli Differemus, Jutitiam”.

Tessa havia estudado latim no Ensino Fundamental, então alguns meses atrás eu a trouxe ao centro da cidade para dar a ela a chance de mostrar suas habilidades com a língua. Assim que passamos pelo prédio eu olhei para cima e disse:

– Olha, não é latim?

Mas ela já havia reparado nas palavras e estava trabalhando na tradução.

– Sim, mas é meio difícil de traduzir – ela parecia frustrada, e eu estava feliz por ser pelo menos um pequeno desafio para ela. – Acho que poderia ser: “Para ninguém nós negaremos, para ninguém nós adiaremos a justiça”. Mas differemus pode ser traduzido por “discriminar”. Então, basicamente está dizendo que eles não vão negar justiça para ninguém e nem discriminá-los – e então ela murmurou: – Claro. Talvez se você for rico.

O comentário dela pareceu ter vindo do nada, e eu tive a sensação de que eu deveria discordar dela, mas percebi que ela estava certa em partes. Então, em vez de comentar, eu a conduzi em torno do prédio para o lado sudoeste, para mostrar a segunda inscrição em latim, mas antes que eu pudesse, ela apontou com raiva para o prédio.

– Dá para acreditar nisso?

Ela não estava apontando para a frase em latim.

– No quê? – perguntei.

– Lá.

Ela pressionou um dedo leve contra meu queixo e virou minha cabeça na direção da inscrição de mármore sobre uma passagem de pedra ornamentada perto do canto do prédio. A placa dizia: “Entrada de Juizes”.

– Isso está ali faz uns 100 anos – ela disse.

– E daí? É por onde os juízes entram.

– Tá brincando? Isso não te incomoda?

– Por que incomodaria?

– Está faltando um acento.

Ok.

Enquanto eu tentava descobrir como responder àquilo, ela leu a frase pela qual eu a havia levado para aquele lado do prédio:

– Ok, essa daí é de Cícero. É bem mais comum. Aprendemos na aula de latim. Quer dizer: “A lei não produz injustiça contra ninguém, não é desleal com ninguém”.

Injustiça com ninguém.

Então agora, enquanto apoiava minha mão contra o vidro e pensava naquele dia com Tessa, as palavras de Calvin ontem à noite ecoaram em minha mente: “Nosso sistema judiciário está mais preocupado com acusações e absolvições do que com a verdade ou a justiça. Você sabe que é verdade. Ficamos reticentes quando deveríamos admitir”.

Tessa pode não ter concordado com a primeira inscrição, mas eu estava começando a duvidar da verdade da segunda.

Porque às vezes a lei é injusta.

Às vezes a justiça não é feita.

Enquanto ponderava sobre isso, ouvi uma batida na porta do meu escritório.

Virei-me.

– Entre.

Mas a porta já estava aberta.

Cheyenne invadiu a sala e largou uma pasta de papel pardo sobre minha mesa.

– Sabemos quem é o dono da mina.


44

– Seu nome é Thomas Bennett – ela disse. – Ele mora aqui em Denver; trabalha como auditor de fim de semana no banco Wells Fargo. Ele saiu do trabalho há cerca de 45 minutos. Seu celular ou está desligado ou ele não está atendendo. Pode não ser nada, mas também não estamos conseguindo rastrear o GPS do seu carro. Sua esposa diz que ele nunca desliga o telefone e que já deveria estar em casa a essa hora.

Posicionei-me em frente ao meu teclado.

– Você tem o endereço dele?

– Claro.

– Vamos colocá-lo aqui, ver se ele mora na zona de perigo.

Ela me passou o endereço e enquanto eu atualizava o perfil geográfico,

ela me disse que não havia conseguido nada com a ideia dos terapeutas ou conselheiros matrimoniais.

– E você? – ela estudou a tela. – Alguma coisa?

– Não muito.

Usando uma cor diferente para a rota de movimentação de cada uma das vítimas, sobrepus os dados em um mapa tridimensional da região metropolitana de Denver. O resultado parecia um prato de espaguete multicolorido.

Ela colocou uma cadeira ao meu lado, talvez mais perto do que o necessário, mas não disse nada.

– Então me diga – ela disse. – O que estou vendo?

Lembrei-me de que ela estava um pouco familiarizada com minha pesquisa, mas eu também sabia que investigação geoespacial não era a especialidade dela, então apontei para o emaranhado de cores sobrepostas e disse:

– Estou tentando encontrar a base de John, então inseri as ruas mais movimentadas de Denver baseado no congestionamento padrão de veículos diário nas horas dos crimes, depois comparei isso com os padrões de movimentação típicos das vítimas, mas até agora, mesmo com o endereço de Bennett, não parece que os dados estão suficientemente completos para termos o que precisamos.

– Ok – ela batucou com os dedos na mesa. – Vamos pensar nisso. Localização e horário, certo?

– Sim.

– Sabemos quando as denúncias anônimas foram feitas.

– Certo. E na maioria dos crimes até agora, sabemos os horários e localizações dos sequestros ou das mortes. Já inseri esses dados.

Ela levantou-se. Caminhou até minha estante.

– E por causa das câmeras da entrada do hospital, sabemos quando Kelsey Nash chegou ao necrotério...

– Sabemos quando Brigitte Marcello comprou a comida chinesa que levou para a casa de Taylor.

– E – ela acrescentou – sabemos que John voou para Chicago em algum momento depois de se livrar do corpo de Brigitte Marcello, e que quando ele voltou para Denver dirigiu do aeroporto até o necrotério.

Eu estava para dizer alguma coisa, mas fiz uma pausa.

– O quê?

– Bem, quero dizer, não com certeza, mas pelo menos é provável. Com base na mensagem de áudio na mina, podemos supor que John viajou para Chicago após descartar o corpo de Brigitte Marcello.

– Eu não gosto de supor.

– Mas você está supondo. Você está trabalhando com a premissa de que John não foi para Chicago. Não faz sentido executar seus dados pelo menos uma vez supondo que ele tenha ido?

Olhei para ela por um momento.

Percebi que apesar de não fazer parte do Bureau e de nós termos tra balhado juntos em apenas uma dúzia de casos no último ano, começava a parecer que ela era minha parceira. E eu gostava da sensação.

– Você pode ter razão – eu disse.

– Dói em você ter de dizer isso, não é?

– Você não faz ideia.

Pensamentos sobre os casos nos quais eu havia trabalhado com Lien-hua tentaram brotar na minha cabeça, mas deixei de lado e baixei os arquivos da agenda de chegada e partida da FAA13. dos últimos três dias para descobrir qual aeroporto John pode ter usado.


O rancho ficava na borda sul do Condado de Clear Creek, a 50 minutos de Denver e 915 metros mais alto nas Montanhas Rochosas do que a Mile-High City.14.

A propriedade continha campos ondulados, pontilhados por pinheiros, e era cercada por espessas florestas e desfiladeiros inclinados e rochosos. Terras com florestas nacionais faziam divisa com o rancho em três lados.

Elwin Daniels havia sido dono daquela terra até três semanas atrás, quando ele a deixou para o homem que estava observando o sangue jorrar de seu pescoço.

A luz avermelhada do sol tomava conta do ar.

E como a propriedade ficava no fim de uma estrada de terra remota e não registrada, e as boas pessoas do Condado de Clear Creek tinham a tendência de não se meterem na vida dos outros, Giovanni não havia tido problema com vizinhos passando para conversar com o rancheiro recluso que ele havia matado.

Ele virou na Piney Oaks Road.

Cerca de oito quilômetros até o rancho.


Só levou alguns minutos para analisar os horários dos voos do Aeroporto Internacional de Denver e do Aeroporto Colorado Springs. Enquanto eu fazia isso, Cheyenne pegou um enorme mapa do Condado de Denver e desdobrou-o na outra ponta da minha mesa.

Comparando os horários de chegada e partida com a hora da denúncia anônima sobre a localização do corpo de Sebastian Taylor, percebi que John teria de ter pegado o voo no Aeroporto Internacional de Denver em vez de no Colorado Springs.

Para cobrir todas as bases, comparei os nomes da lista de suspeitos com as listas de passageiros e, considerando o quanto John havia sido cuidadoso até então, não fiquei surpreso quando não encontrei nenhum nome correspondente.

Com base nas teorias atuais de declínio de distância, reorganizei os dados e calculei as rotas de viagem mais prováveis da Mina Bearcroft até a casa de Taylor, da Represa Cherry Creek até o aeroporto e do aeroporto até o Hospital Memorial Batista nos horários do dia em que John estaria viajando.

Pressionei “Enter”.

A zona de perigo deslocou-se para o oeste da cidade.

Senti a emoção familiar de estar no meio de um caso quando as coisas começam a esquentar.

– Você tem a lista de donos de galgos?

– Deixe-me ver com Kreger; ele estava cuidando disso.

Ela mexia em seu telefone enquanto eu acessava a imagem da região metropolitana de Denver. Um instante depois, ouvia-a identificar-se para alguém do outro lado da linha.

– Pergunte sobre os galgos – eu disse. – Se alguém do Condado de Clear Creek recentemente comprou algum.

Ela repassou a pergunta, acenou com a cabeça para mim enquanto ouvia a resposta, então afastou o telefone e disse:

– Um homem chamado Elwin Daniels. Dez dias atrás. Pagou com MasterCard. Ele mora em um rancho na parte sul do condado.

O local ficava a pouco mais de três quilômetros da zona de perigo recalculada.

Digitei seu nome. Peguei seu endereço. Dei zoom usando o FALCON.

Fazia três minutos desde a passagem do último satélite, mas tínha mos a imagem de um carro a meio caminho da estrada de terra para o rancho. O Infiniti tinha janelas escuras, então era impossível ver o rosto do motorista. Focalizei no para-choque traseiro para tentar ler o número da placa.

Cheyenne falou ao telefone e depois me disse:

– De acordo com os registros de trânsito de Elwin, ele tem 72 anos.

Então, provavelmente não é nosso assassino.

Você precisa chegar nesse rancho, Pat.

– Cheyenne – congelei a cena. Aumentei a imagem. – Arrume um helicóptero.

Aumentei a resolução.

Sim.

Consegui.

Peguei a imagem da placa do carro, ampliei-a e depois digitei no meu teclado para pesquisar o número.

Ao meu lado, Cheyenne estava requisitando um helicóptero. A expedição deve ter sugerido Cody Howard, o piloto de helicóptero chefe do departamento, mas ela disse a eles de um jeito brusco:

– Já falei isso antes: eu não voo com Cody. Chame o coronel Freeman – seu tom afiado me surpreendeu, mas então o nome do homem que possuía o veículo surgiu em minha tela e parei de me preocupar sobre por que Cheyenne preferia voar com o coronel.

O Infiniti pertencia a Thomas Bennett.

O dono da Mina Bearcroft.

Derrubei minha cadeira para trás quando me levantei.

– Vamos.

Quando corria para o saguão, peguei meu celular e liguei para a expe dição para mandar alguns carros e uma ambulância para a casa de Elwin Daniels.


45

O coronel Cliff Freeman acionou o helicóptero enquanto Cheyenne e eu colocávamos nossos fones de ouvido com microfones para que pudéssemos nos comunicar no caminho.

Quando decolamos, usei o celular para baixar as fotos do departamento de trânsito de Thomas Bennett e Elwin Daniels, para que pudéssemos identificar visualmente os dois homens se algum deles estivesse no rancho.

Quando olhei para a frente, já estávamos sobrevoando o sopé das montanhas, indo na direção das Montanhas Rochosas.


Giovanni arrastou o corpo inconsciente de Thomas Bennett para o celeiro e deitou-o sobre o chão coberto de feno.

Ele levou um momento para fechar e travar as portas deslizantes de três metros e meio de altura, de modo que elas pudessem ser abertas apenas pela parte de dentro. O único outro jeito de entrar no celeiro era pelo quartinho das selas.

Com as portas fechadas, o celeiro era iluminado apenas pelas lâmpadas esparsas penduradas nas vigas altas e pelas quatro pequenas janelas no lado leste.

O cheiro familiar de esterco seco e feno empoeirado o cercava, mas agora estava misturado com o fedor da urina seca no chão da jaula do galgo.

A jaula estava pendurada no meio do celeiro, a cerca de oito metros de distância, suspensa um metro acima do chão por quatro correntes presas nas vigas acima.

Giovanni havia chamado o galgo preto lustroso de Nadine, em homenagem à avó em quem ele havia enfiado a faca quando tinha 11 anos. E agora, que ele não havia alimentado o cão por quatro dias, ele sabia que ela estaria motivada a comer qualquer tipo de carne que fosse oferecido.

Mesmo se ainda estivesse se mexendo.

Uma cadeira de rodas estava ao lado da jaula, mas o chão do celeiro era muito esburacado e tinha muitas tábuas soltas para empurrar Thomas na cadeira, então Giovanni pegou as pernas do homem e o puxou pelo meio do feno.

Ao passar pelos estábulos dos cavalos, um appaloosa e uma égua preta, os únicos dois cavalos que estavam no celeiro, observaram-no de seus portões.

O appaloosa relinchou e pisou no feno quando ele passou, mas ele o ignorou.

Ele chegou até a jaula personalizada de Nadine: 1,20m de largura, 2,40m de comprimento e com altura suficiente para ela ficar de pé. Por causa de seu peso, a gaiola mal balançava enquanto Nadine andava impacientemente para a frente e para trás.

Ele colocou Bennett na cadeira de rodas.

De dentro de sua jaula, Nadine soltou uma rajada de latidos furiosos que entregou o fato de ela ter sido criada em casa.

Ela parou e fixou os olhos em Giovanni. Rosnou.

Ele esperava que ela estivesse de péssimo humor, mas o som feroz e grave vindo da garganta dela o surpreendeu. As anfetaminas que ele havia injetado nela durante a semana devem tê-la tornado mais agressiva do que ele havia previsto.

– Calma, garota – ele disse. – O jantar está quase pronto.

O corpo mole de Bennett desabou na cadeira de rodas e Giovanni levou um momento para endireitá-lo.

Então, ele pegou um rolo de fita adesiva de uma prateleira perto do quartinho das selas e voltou para a cadeira de rodas para começar a preparação.


Passei o voo revisando o que eu sabia sobre o caso, tentando discernir se Thomas Bennett era mais provavelmente a vítima ou o assassino, mas eu não tinha dados suficientes para confirmar ou refutar qualquer das possibilidades.

Chegamos ao rancho em menos de nove minutos.

– Ali! – Cheyenne apontou para o Infiniti FX50 cinza estacionado ao lado do celeiro. Um campo se esticava entre a casa e o celeiro, mas tinha tantos pinheiros espalhados e o terreno era tão irregular que eu não conseguia ver nenhum local bom para pouso.

Perguntei a Cliff:

– O que você acha?

Ele balançou a cabeça.

– O mais perto que consigo chegar é naquele campo no sudeste – ele apontou para um prado que ficava a cerca de 600 ou 700 metros da casa.

Eu não tinha certeza do quão rápido Cheyenne podia correr, mas ela certamente parecia em forma. E mesmo não tendo praticado muito desde o último inverno, quando havia tomado um tiro na perna, eu tinha me recuperado muito bem e imaginei que podia chegar ao rancho em menos de três minutos.

– Que tal uma corrida? – perguntei a ela.

Um brilho em seus olhos.

– Só se for uma corrida.

Eu gostava dessa mulher. Gostava muito dela. Bati no ombro de Cliff.

– Leve-nos para baixo.

Ele acenou com a cabeça e mirou o helicóptero na direção de uma clareira nas árvores.


46

Giovanni terminou de prender com fita adesiva o pulso esquerdo de Tho-mas na cadeira de rodas. Prendeu forte. Cortou-a. Colocou o rolo de lado.

Pronto. Os pulsos e os tornozelos estavam seguros. Thomas não escaparia daquela cadeira.

Os espaços entre as barras da jaula de Nadine só eram largos o suficiente para seu focinho, mas isso não a impedia de atacar o ar com ferocidade a menos de 60 centímetros do braço de Giovanni enquanto ele estava parado lá perto.

Ele sentiu a saliva quente espirrando em seu braço.

– Está quase na hora – ele disse, tomando cuidado para não chegar muito perto dela. – Você foi mais do que paciente. Só mais alguns minutos.

Confiante de que Thomas não poderia se soltar, ele andou para além da jaula para pegar a bolsa esportiva e o balde de pétalas de rosas das prateleiras próximas ao labirinto de fardos de feno redondos no canto oeste do celeiro.

Ele carregou a bolsa esportiva e as rosas de volta para a cadeira de rodas, colocou-as no chão e olhou para Nadine.

A parte de cima da jaula podia ser destravada e possuía uma abertura através da qual Giovanni havia descido o cão tranquilizado uma semana e meia antes. A única outra porta da jaula ficava na ponta, a alguns centímetros do corpo inconsciente de Thomas Bennett. Quando destrancada, essa segunda abertura não era suficiente para o corpo do cão, mas era grande o suficiente para sua cabeça.

Essa era a porta de alimentação.

Galgos são inteligentes, então não levou muito tempo para que Gio-

vanni condicionasse Nadine a comer qualquer coisa que fosse colocada em frente à porta de alimentação.

Ele abriu a bolsa esportiva e tirou um lençol de seda; depois o esticou sobre o chão.

Ele precisaria daquilo para o corpo.


Cheyenne ganhou de mim correndo até a casa do rancho, mas não por muito.

O celeiro ficava 100 metros depois da casa, do outro lado do campo.

Sacamos nossas armas.

– Você fica com a casa – tentei disfarçar o quanto eu havia perdido o fôlego. – Eu fico com o celeiro.

Um rápido aceno com a cabeça e então ela estava a caminho do alpendre da casa.

Rolei por debaixo de um trecho de cerca de arame farpado e corri na direção do celeiro.


Giovanni enfiou a mão no balde, acariciando as pétalas de rosa. Suaves. Aveludadas.

Perfumadas.

Ele pegou um punhado e as lançou sobre o lençol de seda, e elas caí

ram em delicados giros que o fizeram pensar em grandes flocos de neve carmesim. Vermelho sobre branco. Pétalas da cor do sangue pousando em um campo sedoso de neve.


Impulsionado pela adrenalina, cheguei ao celeiro feito de tábuas de madeiras secas pelo sol do Colorado.

Avalie a situação.

Avalie e reaja.

Verifiquei o Infiniti.

Vazio.

Então virei-me para o celeiro.

A maneira mais fácil de morrer é chegar apressado a uma situação,

no estilo Rambo. Conheci muitos agentes e policiais que haviam morrido em serviço porque reagiram antes de antecipar a situação.

Tome cuidado. Seja esperto.

Corri em torno do canto sudeste e tentei imaginar como era dentro.

Eu havia crescido em uma fazenda no Wisconsin, então conhecia celeiros e esse provavelmente tinha um quartinho de selas, um quartinho de sementes, estábulos, fardos de feno, equipamentos agrícolas encostados. Esse celeiro tinha cerca de 25 metros de comprimento e 20 de largura – mais largo do que eu havia pensado de primeira.

Procurando uma entrada, circulei o lado sul e vi que as portas deslizantes de metal de quatro metros de altura estavam fechadas. Tentei abri-las deslizando-as.

Trancadas.

Dentro do celeiro, um cão estava latindo. Louco. Feroz. Não sou espe cialista em cães, então não sabia como um galgo soava, mas aquele soava mais como um cão de ataque do que de corrida.

Nenhum sinal de ninguém fora do celeiro.

O cão rosnou, então latiu novamente.

Enquanto corria em torno do celeiro, percebi uma porta de tamanho padrão no lado oposto do celeiro. Provavelmente dava para o quartinho de sementes ou de selas. Ou talvez para uma oficina. Ou para a área de armazenamento de feno. Seja para onde levasse, eu iria entrar.

O latido agitado do cão me disse que ele não estava sozinho no celeiro.

Corri na direção da porta.


47

Giovanni ainda estava espalhando pétalas de rosas quando ouviu Thomas Bennett se mexer.

Ele pegou a máscara de esqui do bolso e a vestiu.

– Onde estou... – a voz de Bennett era ininteligível. Ele ainda estava acordando. – O que está acontecendo?

– Eu esperava que você estivesse dormindo durante isso, Thomas – Giovanni estava mentindo, mas tentou soar o mais convincente possível. Ele esvaziou as mãos, deixando cair as pétalas, e então encarou seu prisioneiro. – Acho que será um pouco mais angustiante para você desse jeito.


A porta estava trancada.

Espiei pelo canto do celeiro e não vi outras portas, apenas uma linha de pequenas janelas.

De volta para a porta, então. Eu poderia atirar na fechadura, mas se o assassino estivesse no celeiro com Thomas, o barulho do tiro o alertaria e colocaria Bennett mais em perigo ainda.

É claro, ele deve ter ouvido o helicóptero.

Mas com todos aqueles latidos, talvez não.

Pelo menos por enquanto, decidi não anunciar ainda minha presença.

Em vez disso, peguei meu chaveiro, abri meu conjunto de abrir fechaduras e deslizei uma das lâminas no buraco da chave.


Thomas ainda estava desorientado. Giovanni o viu olhar vagamente em sua direção, mas um momento depois, quando Nadine latiu e trombou contra as barras, o barulho do impacto pareceu acordá-lo com uma sacudida. Ele olhou para o cão, então inclinou a cabeça para baixo e percebeu a cadeira de rodas e a fita adesiva. Tentou se desvencilhar.

Fracassou.

Tentou novamente, mas estava bem preso.

Seus olhos se arregalaram confusos e com medo.

– O que você está fazendo? Onde estou?

Giovanni colocou o balde de pétalas de rosas no chão.

– Como eu estava um momento atrás? Quando eu disse que não esperava que você estivesse acordado. Consegui convencer você? É importante que eu saiba; tenho trabalhado duro na minha atuação.

– O quê? – ele disse com um tremor na voz.

– A verdade é que eu estava esperando você acordar.

Thomas deixou seu olhar percorrer o celeiro e então parar no cão.

– O que está acontecendo? Quem é você?

– Meu nome é Giovanni e eu mato pessoas; você está prestes a se tornar minha próxima vítima.

Thomas ficou descontrolado. Lutou inutilmente para se livrar.

– Me tire daqui!

Giovanni andou até a cadeira de rodas e soltou as travas das rodas.

Seu prisioneiro tentou desesperadamente libertar braços e pernas, mas a fita adesiva ficava mais apertada quanto mais ele lutava contra ela.

Ele posicionou a cadeira de rodas de modo que os joelhos do homem ficassem sob a jaula e seu peito estivesse a menos de 30 centímetros da abertura da porta de alimentação.

Nadine parecia satisfeita.

– Não – Thomas gritou novamente. – Por favor, pare. Por favor.

– Na quinta-feira à noite eu dei a um homem que estava prestes a morrer a opção de usar uma mordaça – Giovanni disse. – Eu gostaria de estender a mesma cortesia para você, embora eu provavelmente deva dizer que não espero que sua situação dure tanto quanto a dele, então isso pode nem valer muito a pena.

Nadine enfiou o focinho pelas barras e rosnou.

– Por que você está fazendo isso? – a voz de Thomas estava ficando estridente, afeminada.

– Ainda assim, eu trouxe uma – Giovanni disse, ignorando a pergunta de Thomas –, caso seja necessário, e ficarei feliz em atendê-lo, se você desejar.

– O que você quer? – a voz de Thomas tinha ido de um guincho para um apelo sussurrado. – Por favor, não faça isso. Você não tem de fazer isso. O que você quer? Dinheiro? Eu consigo dinheiro para você. Um milhão. Eu juro.

Giovanni entendeu isso como um não, a respeito da mordaça. Então, dois a dois. Talvez suas vítimas não o estivessem levando suficientemente a sério. Da próxima vez ele iria garantir que estivesse sendo inequivocamente claro sobre a situação delas. Ele prendeu as travas das rodas para que a cadeira não rolasse para longe da jaula quando as coisas começassem.

Então deu um passo para trás.

– Agora, na história de Pamfilo, após sua morte, sua esposa deveria entrar para um convento e viver uma vida piedosa e de abstinência, mas na cultura de hoje, isso parece improvável. Eu decido, portanto, que eu a ajudaria com a parte da abstinência. A cirurgia é relativamente simples. Irei visitar Marianne assim que acabarmos aqui. Prometo não fazê-la sofrer muito. Isso seria um bom conforto para você.

– Não, por favor...

Ele colocou uma mão gentilmente no ombro de Bennett.

– Eu quero que você olhe cuidadosamente para esse cão. É muito importante para mim que você visualize o que está para acontecer – então ele desabotoou a camisa de Thomas para revelar seu peito nu.

Para facilitar a refeição de Nadine.


A fechadura me deu mais trabalho do que pensei e quando ouvi os gritos vindos do celeiro, eu estava me preparando para atirar nela, afinal.

Um clique.

Finalmente.

Arma pronta, empurrei a porta e verifiquei a sala. Um cheiro limpo e almiscarado de couro.

Selas, cabrestos e rédeas pendurados nas paredes. Dois jogos com spray para moscas, linimentos e escovas.

O quartinho das celas.

Nada.

Ninguém.

A porta na parede oposta.

Corri na direção dela, abri lentamente e penetrei na luz empoeirada e silenciosa do celeiro.

Uma rede de sombras se esticava pela parede. Bem à minha direita, uma escada grossa de madeira levava para o palheiro acima, que escurecia esse canto do celeiro mais ainda. Eu estava fora do campo de visão. Ótimo.

Meu coração estava acelerado.

Virei pelo canto de um estábulo vazio e visualizei o celeiro.

À esquerda, filas de fardos de feno e dois estábulos. Equipamentos agrícolas enferrujados. Um trator. Alguns tanques de gasolina. À direita, mais quatro estábulos. Lonas. Tábuas, rolos de barbante. Diversos baldes, dois contendo água, um contendo ração e o quarto vazio. Algumas rédeas penduradas em ganchos em uma parede próxima.

Um celeiro típico.

Com exceção da jaula pendurada.

E do cão.

Dois homens estavam ao lado da jaula. Um na cadeira de rodas, o outro de costas para mim.

John.

Cerca de 1,80m, 1,85m. Estrutura corporal média. Jeans. Moletom preto. Máscara de esqui preta.

Não era muito para eu poder continuar, poderia ser praticamente qualquer um.

Eu podia ver a lateral do rosto da vítima e o reconheci por sua foto no Departamento de Trânsito como Thomas Bennett. Eu não podia ver as mãos do suspeito. Tinha de presumir que ele estava armado.

Se eu gritasse para o assassino se afastar, ele poderia matar o homem. Eu precisava chegar até ele, mas precisava fazer isso direito.

Nadine rosnou de novo, um fogo esverdeado saindo de seus olhos.

– Bom, então – Giovanni disse, alcançando a trava da porta de alimentação. – Vamos começar.

Quando ouvi as palavras, soube que não poderia esperar. Saí das sombras.

– Pare! – mirei minha arma para o centro de massa do suspeito. – Coloque as mãos para o lado e afaste-se da jaula.

Giovanni congelou. Ele reconheceu a voz.

Bowers.

Impressionante.

Pontualidade impecável.

O suspeito não se moveu. Suas costas ainda estavam viradas para mim. Eu me aproximei.

– Coloque as mãos para os lados e vire-se. Agora, ou vou atirar. Mostre as mãos, agora!

Ele não se moveu.

– Ele vai me matar! – Thomas Bennett berrou.

– Mostre as mãos! – então ouvi um estalo metálico, o suspeito ergueu os braços, e foi quando Thomas Bennett começou a gritar.


48

Os dois segundos seguintes passaram como um borrão.

O suspeito mergulhou na direção do amontoado confuso de fardos de feno, e eu vi o cão enfiar a cabeça por uma pequena porta na jaula, lançando-se contra o peito de Thomas Bennett.

Não!

Mirei minha SIG no cão.

Giovanni estava rolando sobre o portão de um estábulo vazio quando ouviu o tiro.

Antes que eu pudesse puxar o gatilho, um tiro ricocheteou pelo celeiro e o cão desabou contra a lateral da jaula, o sangue escuro jorrando de um ferimento aberto na parte de trás da cabeça. Uma das pequenas janelas do lado oposto do celeiro estava estilhaçada.

Cheyenne.

Ela havia atirado através do vidro, mandando a bala entre as barras da jaula, e acertou o cão no olho, em meio ao ataque, a 15 metros.

Um tiro brilhante.

Elogie-a mais tarde.

Corri até Bennett, mas mantive a arma apontada para os fardos de feno.

– Você está ferido? – ele estava olhando fixamente para o cão morto.

– Sr. Bennett, você está bem?

Finalmente ele acenou com a cabeça. Engoliu. Acenou novamente. Nós estávamos muito expostos. Não havia tempo de soltá-lo.

Não havia tempo.

Tentei empurrar a cadeira até algum lugar seguro, mas as rodas esta vam travadas.

Rápido. Rápido.

Com um olho nos fardos de feno, soltei as travas e empurrei a cadeira de rodas pelo chão do celeiro, forçando-a sobre as tábuas e para dentro de um estábulo vazio em um canto sombrio do celeiro. Se o suspeito estivesse armado, o portão do estábulo ofereceria pelo menos um pouco de proteção.

Cheyenne estava do lado de fora. Ela poderia cobrir a porta caso John tentasse escapar.

A menos que houvesse outra saída.

– Já volto – eu disse para Bennett.

– Não me deixe aqui.

– Eu voltarei.

– Solte-me!

Parti para os fardos de feno enquanto Cheyenne abria a porta do quartinho de selas.

– Ele está atrás dos fardos – gritei para ela, e ela deslizou para a posição do lado leste dos fardos. Bennett continuou gritando por ajuda, mas por enquanto o ignorei. Eu precisava encontrar John.

– Saia daí agora! – gritei.

Vi uma movimentação em algum lugar na escuridão, mas não podia ver o suspeito.

– Mãos para o alto! – sinalizei para Cheyenne que eu estava avançando e ela se abaixou por trás do trator para me dar cobertura.

Giovanni deitou imóvel e em silêncio ao lado dos tanques de gasolina e olhou pela mira de sua Wilson Combat Elite Professional .45 ACP para as costas da detetive Warren.

Ele tinha uma visão perfeita dela. Sim. Ele poderia atirar nela agora e então pegar Bowers quando ele viesse correndo para ajudá-la, mas não queria fazer isso. Não depois de todo o planejamento, de toda a preparação.

Giovanni considerou suas opções.

Ele duvidava que o FBI ou o Departamento de Polícia de Denver pudessem oferecer a ele adversários melhores que esses dois.

Bem, só havia um jeito de descobrir o quanto eles eram bons.

O som de um tiro me mandou girando para trás de um dos estábulos. Olhei para Bennett e vi que ele ainda estava lutando para ficar livre.

– Você está bem?

– Ele está atirando em mim! – ele não soava como se tivesse sido atingido.

Cheyenne ainda estava agachada atrás do trator. Perguntei a ela:

– Cheyenne, você está...

– Estou bem.

Então vi que a bala havia destruído um balde perto do portão e lan

çou pétalas de rosa sobre um lençol de seda esticado no feno.

– Largue a arma! – gritei.

Acabe com isso agora.

Acenei na direção de Cheyenne e ela ergueu a arma. Dei a volta no estábulo e entrei no labirinto de fardos de feno.

Nada.

O coração batendo.

Contornei outro fardo.

Ninguém.

Onde ele está?

Espiei em volta da segunda fila de fardos perto da parede do celeiro. Ainda nada. Ainda silencioso.

Talvez tenha outra saída.

Então, o cheiro de gasolina.

E daí, uma linha de chamas, pulsando, ganhando vida a partir do feno seco perto do estábulo do appaloosa. O fogo correu pelo chão até uma das vigas de suporte do celeiro. Na iluminação confusa, vi uma figura disparar na direção do quartinho de selas, fora da linha de fogo de Cheyenne.

Mirei.

– Parado! FBI!

Identifique o sujeito. Confirme que é...

Esse homem vestia uma camisa polo cinza, não um moletom preto. Não atire! Não atire!

– Tem dois deles! – gritei para Cheyenne. Avancei correndo.

Ele deslizou pela porta do quartinho de selas. Um momento depois cheguei e agarrei a maçaneta.

Trancada.

Atirei na fechadura, depois bati com o ombro contra a porta, mas ela não se movia. Bati novamente, mas ela se manteve firme. Ele deve ter apoiado algo contra o outro lado da porta.

O fogo estava se espalhando rápido ao meu redor, devorando o feno em grandes tragos, serpenteando pelo perímetro do celeiro.

A fumaça subiu em ondas na direção do teto.

Mudança de prioridades.

Tirar Thomas e Cheyenne de dentro do celeiro. Agora.


49

Guardei minha arma no coldre e corri na direção de Bennett enquanto Cheyenne lutava contra as portas deslizantes de metal no lado oposto do celeiro.

– Vai aumentar o incêndio se eu abrir a porta? – ela gritou.

Eu não tinha certeza. A corrente de oxigênio podia fazer com que o celeiro se enchesse de chamas, mas não tínhamos nenhuma outra opção.

– Vai dar tudo certo. Abra!

Ao lado de um dos estábulos, reparei no moletom preto. Ele mudou de roupa para que não atirássemos nele! Cara, esse sujeito era esperto. Muito esperto.

Era isso, ou havia dois homens...

– Socorro! – Thomas gritou. Cheguei até ele e agarrei a cadeira de rodas, mas rapidamente percebi que o incêndio estava se espalhando muito rápido para empurrá-lo o caminho todo pelo celeiro. Eu precisava soltá-lo. Abri a lâmina da minha Wraith e cortei a fita que prendia seu braço direito.

Cheyenne abriu a porta deslizante.

O celeiro não explodiu em chamas, felizmente.

– Saia daqui! – gritei para ela, mas ela correu na direção dos estábulos para soltar os cavalos.

Cortei a fita do braço esquerdo de Thomas. Inclinei-me para soltar suas pernas.

A fumaça começou a acumular no teto. Os dois cavalos circulavam em seus estábulos, bufando, pisando forte. Agitando as cabeças.

– Rápido! – Bennett gritou para mim.

Como esse incêndio está se espalhando tão rápido?

Assim que cortei a fita de sua perna esquerda, dei uma rápida olhada ao redor do celeiro. Quase que imediatamente, eu podia ver que o feno e as tábuas não haviam sido espalhados aleatoriamente pelo chão, mas foram colocados cuidadosamente em fileiras cruzadas. Todas arrumadas para bloquear a saída com chamas.

John estava pronto para nós. Ele estava preparado.

Cortei a fita da outra perna de Bennett. Guardei a faca.

– Você consegue se levantar?

– Não sei – ele tentou, mas caiu para trás. Balançou a cabeça. – Ele me dopou. Me apagou.

Uma rápida verificada no celeiro.

Nada bom.

O fogo já barrava a saída e estava movendo-se constantemente em nossa direção, nos prendendo no canto do celeiro que ficava mais longe das portas deslizantes. Eu não conseguiria carregar Thomas pelo caminho de chamas. Nós nunca conseguiríamos.

Cheyenne destrancou um dos portões dos cavalos. Um cavalo preto recuou, então disparou a esmo, pulando por cima do cume do fogo de 60 centímetros que circulava o perímetro do celeiro, e desapareceu pela porta.

Cheyenne foi agora para o portão do appaloosa e eu tive uma ideia.

– Espere! – gritei.

Ergui Bennett com o ombro e peguei uma rédea de um gancho na parede. Mesmo se eu não pudesse tirar Bennett dali, Cheyenne podia.


50

Ela deve ter lido minha mente, pois agarrou o cabresto do cavalo para estabilizá-lo.

– Leve Thomas! – gritei.

– E quanto a você?

– Não se preocupe comigo – baixei Thomas e passei um braço ao redor dele para apoiá-lo.

O cavalo ficou tenso e relinchou, mas Cheyenne tratou de acalmá-lo. Então ela gritou para mim.

– Não vou deixar você!

Duas das paredes foram completamente consumidas. Agarrei o braço de Cheyenne.

– Você precisa ir.

– Tire-me daqui! – Thomas berrou.

Passei a rédea para Cheyenne, mas ela a jogou de lado, agarrou um punhado da crina e pulou para as costas do cavalo.

– Vou voltar para te buscar – ela disse.

– Vou esperar ansioso.

Com uma onda de adrenalina e a ajuda de Cheyenne, ergui Thomas até o cavalo, onde ele envolveu os braços trêmulos ao redor da cintura dela e se inclinou para a frente. Eu só esperava que ele estivesse lúcido o suficiente para ficar em cima do cavalo.

O fogo subia pela parede à minha esquerda, na direção do palheiro.

Analisei o celeiro, mas não podia ver nenhum jeito de sair dali. Eu sabia que o cavalo podia galopar pelo feno queimando, mas eu teria sorte se conseguisse sequer chegar até a jaula.

Alcancei a tranca e analisei as correntes que seguravam a jaula.

A abertura das portas deslizantes tem aproximadamente três metros

de altura...

O cavalo pisou e circulou.

– Abra o portão! – Cheyenne gritou.

Você não consegue acertar esse tiro, Pat. Não daqui.

Não, mas Cheyenne consegue.

Apontei para a parte da corrente presa ao canto da jaula mais próximo a mim.

– Atire na base da corrente!

– O quê?

– A corrente. A que está mais perto. Atire na base dela! – me segurar não seria fácil, mas seria muito mais fácil do que rastejar de cabeça para baixo pelo teto da minha garagem.

Ela me olhou intrigada, então eu apontei para o fogo serpenteando pela parede na direção do palheiro e finalmente ela entendeu. E sacou a arma.

– Abra a trava!

– Mas...

– Faça!

Abri o portão, mas em vez de mirar, ela atiçou o cavalo que saiu a galope. Não!

Agora eu nunca vou conseguir...

Quando o appaloosa correu pelo meio do fogo, Cheyenne girou sua arma para a direita e disparou quatro tiros na corrente assim que passaram pela jaula.

Um som estridente.

A ponta da jaula caiu no chão e a corrente perto de mim balançou livre. Aquela mulher sabia atirar.

A corrente estaria muito quente para encostar e provavelmente muito curta para alcançar a base da escada, então agarrei um dos cobertores de cavalo e parti em direção à jaula.


51

Alcancei a jaula e enrolei a ponta do cobertor de cavalo em volta da corrente. Segurei firme e corri de volta para o palheiro puxando a corrente comigo.

Segurando o cobertor, subi pela escada. As chamas que estavam serpenteando pela parede disputaram uma corrida comigo até o palheiro.

Cheguei atrapalhado sobre a plataforma e levantei-me. Olhei por todo o celeiro.

Eu tinha uma passagem reta da plataforma alta até as portas deslizantes, e a abertura era alta o suficiente, mas eu precisaria evitar acertar as outras correntes e manter meus pés acima das chamas furiosas pelo chão.

Mas eu conseguiria.

Talvez.

As chamas começaram a aparecer pelas bordas do palheiro e lambiam o feno aos meus pés.

Você precisa ir. Agora.

Mudei o cobertor para um lugar mais alto na corrente. Segurei firme. Respirei fundo.

E pulei.


52

Balancei pelo meio do celeiro.

Medi o meu tempo. Esperei.

Arremessei meu corpo na direção da abertura.

E soltei.

Caí com força sobre meu lado esquerdo, logo além da borda das cha mas, e rolei para fora da porta, pela terra. Rolei, rolei para longe do fogo até que finalmente levantei e cambaleei pelo campo.

O calor me perseguiu, mas com cada passo ele ficava menos feroz, menos intenso.

Uma respirada rápida.

Outra.

Com o canto dos olhos vi o celeiro desabar em uma bola de fogo em forma de cogumelo sob o céu azul profundo do Colorado. Uma rajada de calor passou por mim e tive de cobrir o rosto com o braço e virar de costas para o fogo.

Quando olhei para a frente, vi Cheyenne a cerca de cinco metros de distância, correndo em minha direção, conduzindo o appaloosa. Ela havia tirado Thomas do cavalo e ele estava apoiado em uma cerca próxima.

– Pat! – ela chamou. – Você está bem?

– Estou bem. – Olhando em direção ao celeiro, vi que o Infiniti cinza havia sumido. – E você?

Ela acenou com a cabeça e soltou o cabresto. O cavalo partiu e se juntou a seu parceiro, que já estava mais interessado em mordiscar a grama do que em assistir o celeiro queimando. Apesar de os dois terem chamuscado os pelos, felizmente nenhum parecia seriamente ferido.

Sirenes de polícia ecoaram pelos desfiladeiros vizinhos.

Se John estivesse no Infiniti, poderíamos pegá-lo deixando a propriedade. Peguei meu celular, mas descobri que ele estava quebrado e apagado.

Devo tê-lo esmagado quando caí e rolei para longe do fogo. Cheyenne percebeu e me emprestou o dela.

– Obrigado – disquei o número de Kurt e me afastei de Bennett para poder falar com privacidade.

Kurt respondeu antes que eu pudesse dizer uma palavra.

– Cheyenne, estamos a caminho.

– É o Pat – expliquei. – Cheyenne está aqui comigo. Escute, estamos procurando por um homem caucasiano, estatura mediana, vestido com jeans azuis e uma camisa cinza – dei a ele o número da placa do Infiniti.

– Anotei. Vou providenciar.

Então, um pensamento.

– Espere. Ele trocou de roupa uma vez. Ele pode ter trocado novamente. E é possível que sejam dois homens.

– Ok.

Dirigi-me para o terreno íngreme com densas florestas que cerca vam o rancho e ponderei sobre as mais recentes pesquisas sobre padrões racionais de escolha em suspeitos fugitivos.

– Se ele estiver a pé – eu disse a Kurt –, ele tende a manter à direita e a favorecer as encostas do sul. Ele vai seguir descendo a montanha. Se ele ainda estiver de carro, diga a seus policiais para procurarem por ele seguindo à esquerda na Piney Oaks Road e então virando duas vezes à direita. Ele vai evitar o primeiro acesso à autoestrada...

– Pat – ele disse e parecia um pouco incomodado –, cuidaremos disso.

– Peça para o coronel Freeman circular a área. E quanto a bloqueios nas estradas e suporte aéreo?

– Já providenciei.

Olhei para o celeiro.

– E mande um caminhão dos bombeiros. Ele queimou o celeiro. Nenhuma fatalidade até agora. – Enquanto eu falava as palavras, percebi que quando os bombeiros chegassem, seria tarde demais para se fazer algo útil. Ainda assim, parecia melhor ter um caminhão dos bombeiros no lugar só para garantir. – E peça para a estação florestal de Arapaho mandar uma unidade de combate a incêndios caso esse fogo decida se espalhar.

– Vou chamá-los – Kurt disse. – Vejo você em um minuto – finalizamos a ligação e devolvi o telefone a Cheyenne.

– Eu ia voltar para te buscar – ela disse suavemente. Ela estava perto o suficiente, de modo que eu podia ver a preocupação intensa em seu rosto. – Eu pensei que você talvez...

– Ele tentou me matar – Thomas gritou em nossa direção.

Fomos até ele e, enquanto eu andava, percebi que ter caído sobre minha lateral não havia ajudado minhas costelas machucadas a ficarem melhor, mas eu me tranquilizei, pois certamente machucou muito menos que ser queimado vivo.

Ajoelhando-me ao lado dele, percebi que ele havia sofrido queimaduras de primeiro e segundo graus no lado direito do rosto, pescoço e braço, mas ele não parecia ter nenhuma queimadura de terceiro grau ou ferimentos letais.

– Você está bem? – perguntei.

Ele acenou com a cabeça duramente.

– Você está seguro agora. O socorro chegará em breve.

Ele olhou para mim com um ar de quem estava suspeitando de algo.

– Você é policial?

– FBI. Sou o agente especial Bowers. Você conseguiu ver o homem que o atacou?

As luzes giratórias das viaturas e de diversas ambulâncias apareceram na estrada esburacada que levava até o rancho.

Thomas balançou a cabeça.

– Ele usou uma máscara – sua voz estava tensa. – Ele estava lá dentro? Ele morreu?

Não, o carro sumiu.

– Não tenho certeza – eu disse. – Escute-me, Thomas, é possível que fossem dois homens?

Ele pensou por um momento, então balançou a cabeça.

– Não. Acho que não – sua mão estava tremendo. Ele virou-se para Cheyenne. – Minha esposa. Tem certeza de que ela está segura?

– A polícia está a caminho da sua casa. Ela vai ficar bem.

– Não se preocupe – eu disse a ele. – Vamos pegar o homem que fez isso. Cheyenne se afastou para assinalar às viaturas onde estávamos.

– Ele ia me matar – Thomas murmurou. – Ele me dopou. Me apagou. Ele parecia estar falando comigo de outro lugar.

– Thomas, ele disse algo sobre as drogas que usou em você? Você sabe quais eram?

Thomas balançou a cabeça negativamente e repetiu:

– Ele ia me matar.

Dei um tapinha em seu ombro.

– Não se preocupe. Os paramédicos estarão aqui em um minuto.

Ele tomou fôlego agitado e acenou com a cabeça, vendo os veículos de emergência vindo em nossa direção.

Cheyenne voltou e eu gesticulei na direção de um pinheiro próximo.

– Ei, podemos conversar um minuto? – Garanti a Thomas que estaríamos de volta logo e ele acenou com a cabeça para mim, mas sua atenção já estava nas ambulâncias que se aproximavam.

– O carro já tinha sumido quando você chegou aqui fora?

– Sim. Mas nós o pegaremos, Pat. Ele não pode ter ido longe. Suor e fuligem escura cobriam o rosto de Cheyenne.

– Tem certeza de que você está bem? – perguntei a ela suavemente.

– Estou bem – ela pegou meus pulsos em suas mãos e gentilmente os virou de modo que as palmas de minhas mãos ficassem para cima. – E você?

Só então percebi as queimaduras em meus antebraços, não muito graves. Provavelmente de primeiro grau. Pareciam fortes queimaduras de sol.

– Eu vou ficar bem.

Ela ainda estava segurando meus pulsos. Não liguei.

– Você precisa lavar – ela disse. – E de um bom banho frio. E bastante aloe vera.

– Obrigado, mãe.

Finalmente ela soltou e senti minhas mãos caírem para os lados.

– Aquele tiro foi incrível – eu disse. – Na corrente. Obrigado – eu queria perguntar a ela sobre aquele tiro, algo estava me incomodando em relação a isso, mas decidi que podia esperar até as coisas se acalmarem um pouco.

Ela balançou a cabeça, obviamente frustrada consigo mesma.

– Eu precisei de quatro tiros – ela tirou o feno queimado que havia no meu ombro.

Sua voz era tão gentil quanto seu toque, e meu relacionamento conturbado com Lien-hua parecia algo que havia acabado muito tempo atrás.

Cheyenne deixou a mão parar ao lado do meu pescoço.

– Estou feliz por você ter conseguido escapar, agente Bowers.

– Estou feliz que você tenha escapado também – olhei em seus olhos e vi o fogo do celeiro sendo refletido neles, dançando dentro deles.

– Você mandou eu sair primeiro – ela cochichou. – Você estava disposto a ficar para trás, para...

– Shhhh – eu disse.

Finalmente ela deixou a mão se afastar do meu pescoço.

E então ficamos quietos por alguns momentos, mas nossos olhos con tinuaram conversando entre si.

A primeira ambulância parou ao lado de Thomas. Dois paramédicos saltaram e correram até ele. Do outro lado do campo, três homens usando jaquetas da perícia estavam indo na direção da casa.

Eu queria ter ficado ali parado olhando para os olhos profundos de Cheyenne, mas sabia que precisava voltar ao trabalho.

– Vou dar uma olhada rápida lá de volta antes que as coisas fiquem malucas.

– Certo – ela disse, sua voz perdendo a suavidade, voltando ao normal. Estávamos trabalhando no caso novamente. Éramos profissionais.

– John gosta de cobras – ela acrescentou, e eu me lembrei de que ela havia revistado a casa rapidamente logo que chegamos ao rancho.

– Ele gosta de cobras?

– Ele tem meia dúzia de aquários cheios delas. E um dos cômodos da casa está trancado, eu não entrei nele. Ouvi os latidos e vim te ajudar no celeiro.

– Vou verificar.

– Vou ver se consigo uma descrição mais detalhada do suspeito com Bennett.

– Ótimo – eu disse.

– Certo.

Uma pausa desconfortável. Era difícil desviar o olhar dela.

– Então, te vejo em alguns minutos – eu disse.

– Ok.

Então, simultaneamente, eu saí para a direita e ela para a esquerda, de modo que ficamos cara a cara novamente.

– Hum – ela disse. – Grandes mentes... – ela agarrou meus braços, segurou-me gentilmente no lugar e passou por mim pelo lado direito.

Não era fácil redirecionar meus pensamentos para o caso, mas fechei os olhos, respirei fundo duas vezes, então os abri e parti para a casa.

Fuligem e cinzas se agitavam pelo ar ao meu redor.

Pensei no coração repousado no peito de Heather... na larga man cha de sangue no chão da garagem de Taylor... Kelsey Nash encolhida no chão, deixada para morrer no freezer... Thomas Bennett amarrado na cadeira de rodas ao lado da jaula...

Considerando a natureza assustadora dos crimes que John já havia cometido, imaginei que tipo de evidências descobriríamos dentro da casa do rancho.


53

Enquanto eu me aproximava da casa, lembrei a mim mesmo que ainda que eu não tivesse pegado John ainda, estávamos muito próximos e cada vez mais perto.

Helicópteros.

Bloqueios nas estradas.

A rede estava se fechando.

Eu vou te pegar, John, pensei. Você é meu.

Mas logo que o pensamento passou pela minha cabeça, outro tam bém surgiu: Não tenha tanta certeza.

Olhei novamente para os escombros fumegantes do celeiro e pensei em como John havia estado pronto para nós, como ele havia preparado uma armadilha que quase queimou Cheyenne, Thomas e eu vivos. Pensei em como ele havia conseguido entrar e sair do necrotério sem aparecer em nenhuma câmera de segurança... em como ele havia sido capaz de encontrar Sebastian Taylor, um dos homens mais elusivos a figurar a lista de procurados do FBI...

E, então, enquanto eu pensava na gravação na mina e no bilhete escrito à mão que ele havia deixado para mim na garagem de Sebastian Taylor, todos os fatos, tudo, tive uma ideia perturbadora que eu gostaria de desconsiderar, mas que não conseguia ignorar. Talvez não seja você que está se aproximando dele, Pat; talvez seja ele que está se aproximando de você.

Mas então cheguei até a casa e meus pensamentos foram interrompidos pelos gritos que vieram de um dos membros da perícia que estava lá dentro.

Um policial parado ao lado da porta da frente correu para dentro e eu corri pelos degraus logo atrás dele.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o calor. Cerca de 30 °C, talvez mais. Alguém deve ter colocado o termostato no máximo. Todas as luzes estavam apagadas e, quando pressionei o interruptor perto da porta, nada aconteceu. O corredor estava praticamente negro.

Ligando minha lanterna, passei pelo policial de cara confusa que bloqueava meu caminho.

Dois técnicos da perícia estavam parados no fim do corredor olhando para a cozinha:

– Calma, Reggie. Calma – um deles disse. – Onde está Harwood com aquela pá?

– O que foi? – perguntei.

– Cascavel – o homem disse sussurrando, como se dizer a palavra suavemente faria de algum modo a cobra ficar menos perigosa. A janela encardida da cozinha deixava apenas uma névoa tênue de luz entrar no ambiente, e quando passei por ele, o feixe da minha lanterna encontrou a cobra: uma cascavel do Texas, enrolada no meio da cozinha, chacoalhando sua cauda.

Encurralado entre a cobra e a pia, estava Reggie Greer.

– Esqueça a pá – o cara ao meu lado disse. – Atire nela.

– Não com Reggie atrás dela – eu disse. – Se errarmos a cobra, a bala pode ricochetear e acertá-lo.

– É, não atirem nela – Reggie disse.

– Há outras maneiras... – fazia quase duas décadas que eu havia trabalhado como guia ecológico e tinha sido treinado para lidar com cobras venenosas, mas percebi que podia pelo menos lembrar o suficiente para tirar a cobra da casa com segurança.

– Tem outra no banheiro! – alguém gritou.

Ouvi os policiais ao meu redor recuando. Mas percebi os passos de alguém se aproximando. Uma mulher de cabelos escuros e aparentando cautela apareceu ao meu lado. A oficial Linda Harwood. Ela carregava uma pá e uma enxada.

– Permita-me – eu disse.

Peguei a pá e me aventurei a entrar na cozinha, enquanto ela recuou com a enxada.

A cobra ondulou a cabeça na direção de Reggie, depois encolheu o corpo em um círculo apertado.

Balançou seu chocalho.

– Ela vai atacar – Linda sussurrou.

– Shhhh – baixei a lâmina da pá na frente da cabeça da cobra; a cascavel mudou sua atenção para a pá e rastreou seu movimento. Reggie deu um passo nervoso na direção da geladeira. – Fique parado – eu disse. – Elas são atraídas pelo movimento.

Ele ficou imóvel.

A cobra estava agora focada na pá. Lentamente, levei a lâmina na direção de sua cabeça e então, girei o cabo, enganchando o pescoço da cobra no cabo, do mesmo jeito que seria feito com um pegador de cobras. Lentamente girei a pá, confiando na inclinação natural da cascavel para se enrolar e se segurar.

Levantei-a.

– Afastem-se – eu disse às pessoas no corredor. – Deixem-me passar. Elas pareceram concordar imediatamente.

Na hora em que me virei, o corredor estava livre.

Carregando a cobra, saí da casa e andei até uma cerca próxima. Mesmo sabendo que muitas pessoas não gostam de cobras e a teriam matado logo, eu lido o suficiente com a morte na minha vida e não sou a favor de matar coisas que não merecem morrer. Assim, cuidadosamente baixei a cascavel até o chão, balancei a pá até ela se soltar e voltei para trás. A cobra foi se proteger debaixo de um pinheiro, onde se enrolou novamente e de lá me olhou.

– Onde você aprendeu a fazer isso tudo? – um dos policiais perguntou.

– Eu assisto ao Animal Planet – eu disse.

– Por que você não a matou? – ele perguntou.

– Não era a hora daquela cobra morrer.

– Tem uma porção de aquários quebrados em um dos quartos – um policial gritou dos degraus na frente da casa. – Tem cobra pra todo o lado aqui!

Então ficou claro para mim por que o suspeito havia desativado as luzes e aumentado o termostato: ele sabia que revistaríamos a casa e havia confiado a seus bichos de estimação a tarefa de nos atrasar. O calor tinha deixado as cobras agitadas.

Esse cara tinha algo a mais.

Percebi Kurt andando em minha direção.

– Todos estão fora? – ele gritou.

Um olhar da oficial Harwood me fez esperar. Ela contou rapidamente.

– Sim.

– Certo, isso é tudo – Kurt gritou. – Ninguém mais volta para dentro. Vamos trazer o centro de controle animal aqui. Vamos começar analisando as portas externas e o alpendre.

Quando as pessoas começaram a se dispersar para fazerem seus trabalhos, fui até Kurt.

– Alguma notícia sobre John?

Ele balançou a cabeça.

– Ainda não encontramos o carro. Estamos verificando todas as rotas possíveis que saem daqui.

– Escute – eu disse. – Vou voltar para dentro da casa. Deve haver alguma coisa lá que pode nos levar a ele.

– Não, Pat. Não podemos deixar ninguém ser picado. Não se preocupe, vou pedir para a perícia trabalhar com o controle animal para garantir que eles não contaminem a cena.

Eu entendia que ele não queria colocar ninguém em perigo, mas eu estava decidido.

– Kurt, se houver uma mínima chance de encontrarmos alguma pista da localização do suspeito, ou de possíveis colaboradores, precisamos tratar disso agora – apontei para a cascavel que havia removido da casa. – Eu sou bom com cobras. Vou entrar sozinho. Tomarei cuidado.

Ele pensou por alguns segundos e disse afinal:

– Tudo bem. Vá.

– Deixe-me usar seu telefone.

Ele me olhou curiosamente.

– Vídeo – eu disse. – O meu foi inutilizado.

Ele entregou-me seu celular.

– Tome cuidado.

– Tomarei.

E, então, armado com a pá e a lanterna, entrei na casa infestada de cobras.


54

As cobras agitadas deslizavam pelas sombras ao meu redor, o som de seus chocalhos finos e secos me advertindo para tomar cuidado onde pisava.

Atendi ao aviso.

Com a casa deserta, as cobras pareciam à vontade explorando o cor redor. Enquanto deslizavam pelo feixe de luz da minha lanterna, a luz fazia suas escamas brilharem e seus corpos pareciam estar molhados e reluzentes, em vez de secos e ásperos.

E, mesmo sabendo o quanto as cascavéis eram perigosas, não podia deixar de admirar os elegantes desenhos em forma de diamantes enquanto se moviam com uma graça bela e mortal pelo carpete. Lembrei-me de que elas não queriam problemas comigo do mesmo jeito que eu não queria problemas com ela, mas isso não acalmou meu coração acelerado.

Percorri o caminho passando pela cozinha, pela sala de estar e pela sala de jantar. Mais cedo, Cheyenne havia me dito que o dono do rancho, Elwin Daniels, tinha seus 70 e poucos anos, e agora eu via que os móveis antigos, as bugigangas e as fotos da parede demonstravam isso.

Quando cheguei ao quarto que continha os aquários, eu tinha contado mais de uma dúzia de cascavéis e duas vezes tive de tirar cobras do meu caminho com a pá.

Os aquários estavam quebrados pelo chão. Mais 10 cobras rastejavam entre os cacos de vidro ou se encolhiam contra a parede.

Cuidadosamente, filmei o quarto, mostrando a perspectiva de quatro lugares diferentes.

Em seguida, o banheiro.

No balcão ao lado da pia havia uma escova de dentes, um aparelho de barbear e quatro tubos de pasta de dente. Abri o armário de remédios e encontrei-o vazio, com exceção de seis seringas hipodérmicas esterilizadas. Filmei tudo e fui para o próximo cômodo, que ficava no final do corredor.

O cômodo que ainda estava trancado.

Apoiei a pá contra a parede e saquei minha SIG e o conjunto para abrir fechaduras.

Levei só um momento para destrancar a porta.

Abri a porta lentamente. Uma rápida olhada pelo quarto me disse que não havia ninguém lá. Apenas mais algumas cascavéis.

Mas quando meus olhos encontraram a cama, um calafrio percorreu minhas costas.

Apoiada em um travesseiro e olhando sem piscar para a parede leste estava a cabeça decepada de Sebastian Taylor.

Insetos haviam chegado até ela e estavam fazendo seu trabalho.

Mas eu ainda podia identificar de quem havia sido a cabeça.

O cheiro embrulhou meu estômago.

Tirei os olhos da cena e virei-os na direção da parede para onde o rosto estava voltado.

Dúzias de recortes de jornais haviam sido presas na parede, e a posição da cabeça dava a ilusão de que seus olhos estavam lendo os artigos.

Assassinos adoram fantasiar, reviver seus assassinatos, seja lendo sobre eles, assistindo aos noticiários ou gravando os crimes por conta própria e depois assistindo aos vídeos, então não fiquei surpreso em ver os artigos. O choque veio quando direcionei minha lanterna para eles e percebi que aqueles não eram artigos sobre os crimes que John havia cometido no Colorado.

Não.

Cada um dos recortes era sobre os crimes terríveis cometidos por Richard Devin Basque há 13 anos no Meio-Oeste americano.


55

Verifiquei debaixo da cama, depois dentro do armário e confirmei que ninguém estava planejando uma emboscada dentro do quarto.

Então, evitando as duas cascavéis perto da cama, me aproximei da parede com os artigos.

Reconheci cada uma das fotos das 16 vítimas.

Seus nomes flutuavam em minha cabeça: Sylvia Padilla, Juanita Worthy, Celeste Sikora...

“Por que, Patrick?”

“Por quê?”

John havia guardado recortes do Milwaukee Sentinel, do Chicago Sun-

-Times, do Wisconsin State Journal e até alguns dos jornais locais menores de Wisconsin, como o Janesville Gazette, criando um memorial jornalístico dos assassinatos de Richard Devin Basque.

Um santuário.

Desde a hora em que eu havia ouvido a gravação na mina na quinta-feira

à noite, me parecia evidente que o assassino no Colorado tinha algum tipo de ligação com o julgamento de Basque em Chicago. Eu não havia visto como os dois casos podiam estar relacionados antes, mas percebia agora.

Richard Devin Basque tinha um fã.

Finalmente, encontrei 14 artigos que cobriam a prisão de Basque por mim. Em cada um deles, os repórteres incluíram uma foto minha. Um dos artigos, escrito por um jornalista chamado Zak Logan, que havia me perseguido por três semanas para conseguir uma exclusiva, me descreveu como “o corajoso detetive que localizou e capturou sozinho o homem suspeito de ser o responsável pelos assassinatos brutais de pelo menos uma dúzia de mulheres”.

Lembrei-me dele agora, e o quanto fiquei incomodado por ele ter escrito que peguei Basque sozinho, como se os outros policiais da minha equipe sequer existissem.

E em todos os recortes contendo minha foto, meu rosto havia sido circulado com uma caneta vermelha.

Então, talvez Basque não fosse o único a ter um fã.

Talvez eu tivesse um também.


56

Fazer a filmagem levou mais tempo do que eu imaginava, mas finalmente saí da casa e reparei em três membros da unidade de perícia reunidos em torno de Jake Vanderveld, que estava de pé ao lado do pinheiro onde eu havia soltado a cascavel. Ele havia arrastado a cobra para a parte desmatada e estava segurando a pá verticalmente, cabo para cima, lâmina para baixo.

Parti na direção dele, mas antes que eu pudesse pará-lo, ele levantou a pá e desceu com ela decisivamente, enfiando a lâmina pelo pescoço da cobra e para dentro da terra. A cabeça, juntamente com cerca de oito centímetros do pescoço, rolou pelo chão perto do corpo da cascavel, que se contorceu e se enrolou na terra.

– Ei! – percorri o espaço entre nós dois e tomei a pá de sua mão. – O que você está fazendo?

O corpo da cobra se contorcia ao lado do meu pé.

– É uma cascavel – Jake respondeu, como se isso explicasse alguma coisa. Ele estava olhando para a cabeça, que ainda estava sibilando, com as presas para fora. – É perigosa.

A oficial Harwood olhou para a cabeça.

– Ainda está viva.

– Reflexos de réptil – Vanderveld disse. – Ela pode continuar viva por uns 90 minutos. Cuidado. A cabeça ainda consegue morder. Ainda solta veneno.

Talvez a visão de Tessa sobre direitos dos animais tivesse sido passada para mim mais do que eu havia reparado porque, quando vi que nenhum dos membros da perícia parecia incomodado por Vanderveld ter acabado de matar aquela cobra sem motivo nenhum, fiquei ainda mais irritado.

– Afaste-se, Jake.

Ele deu um passo para trás. Olhou para mim friamente.

Pelo canto dos olhos, vi a cabeça da cobra levantar-se em seu curto pedaço e morder o ar, e enquanto ela fazia isso, me imaginei agarrando Jake e abaixando-o na direção da cabeça. A ambulância ainda está aqui. Os paramédicos poderiam retirar o veneno. Não o mataria, só seria doloroso demais para se sentar por um mês ou mais.

Pensamentos ruins.

Pensamentos ruins.

Mas meio divertidos, mesmo assim.

Finalmente, Jake apenas disse, com uma voz de quem era meu grande amigo de tempos:

– Fica frio, Pat. É só uma cobra. Não vamos perder o foco e esquecer quem é o vilão da história.

– Eu não perdi o foco.

Ele parecia que ia responder, mas permaneceu em silêncio e caminhou na direção da casa. O corpo da cobra ainda estava se contorcendo e se enrolando, deixando manchas escuras na terra na ponta cortada que sangrava. A cabeça, com olhos que não piscavam, balançou sua língua para fora e sentiu o ar.

Tentei imaginar quanta dor as cobras podiam sentir. A cabeça estava obviamente ainda alerta. Talvez estivesse sofrendo, e se Jake estivesse certo sobre ela viver por 90 minutos, iria sofrer por mais uma hora e meia. Pensei em Tessa novamente e em seu amor pelos animais, sua visão progressiva sobre direitos dos animais e a santidade de toda vida, e no que ela diria se soubesse que deixei a cobra ali daquele jeito...

Finalmente, mesmo não sabendo se a cobra morta ainda estava sentindo dor, peguei a pá e acertei-a quatro vezes, acabando com qualquer dúvida.

Quando virei as costas para os restos da cobra, vi Kurt se aproximar de mim.

– Localizamos o Infiniti em uma antiga estrada de mina a cerca de uma milha daqui. Nenhum sinal de John – seus olhos encontraram a lâmina sangrenta da pá. – O que está acontecendo?

– Nada – joguei a pá de lado. – Alguma indicação de qual direção ele tomou?

– Não – Kurt estava olhando para os restos destruídos da cobra. Ficamos quietos por alguns segundos, então ele disse: – Pat, faça uma pausa. Vamos encontrar John. Estamos vasculhando completamente esse lado das montanhas. Saia daqui. Temos mais três helicópteros aqui em cima. Freeman pode te levar de volta para Denver. O dia já foi longo o suficiente – e então ele fez uma pausa enquanto um nó de tensão atravessava sua voz. – Para nós dois.

Reparei que ele estava esfregando a aliança com firmeza entre os dedos.

– Você está bem?

Não parecia que ele fosse me responder, mas então ele disse silen ciosamente:

– Você sabe quantos casamentos sobrevivem à morte de uma criança? Era uma daquelas perguntas que você não responde com palavras.

Coloquei a mão em seu ombro, mas ele balançou a cabeça e disse:

– Esqueça isso – então ele afastou minha mão e levou um momento para enterrar suas emoções. – Então, o que você viu na casa?

– Kurt, podemos conversar sobre...

– A casa, Pat – sua voz havia se tornado nervosa e dura, e eu soube que devia recuar.

– Ok – levei um minuto para contar a ele sobre a cabeça de Taylor e os artigos de jornal.

Ele me ouviu e pareceu ter ficado mais interessado nos recortes de jornal do que na cabeça cortada do governador.

– Você disse que teve a sensação de que John fosse um fã de Basque? – sua voz ainda mantinha um traço da dor que havia acompanhado os comentários sobre seu casamento.

Acenei com a cabeça.

– Mas Grant Sikora tentou matar Basque – ele disse. – Então, se John estivesse envolvido de algum jeito na coordenação daquilo, ele estava tentando se livrar de Basque, e não honrá-lo como seu herói – Kurt balançou a cabeça. – Eu não acho que esses artigos sejam um tributo para Basque.

– O que você acha que são?

– Talvez um relatório de observação.

Eu tinha de deixar aquilo assentar.

Ele circulou sua foto, Pat. Talvez ele esteja observando...

– Ei – era Cheyenne. Eu não havia notado ela vindo em nossa direção.

– O que nós sabemos?

– John ainda está foragido – eu disse.

A 100 metros de distância, vi que os paramédicos haviam colocado Tho-

mas Bennett em uma maca e estavam levando-o na direção da ambulância.

– Como está Bennett? – Kurt perguntou.

– Parece que está tudo bem – ela disse. – Mas ele está muito abalado. Eles querem mantê-lo no hospital esta noite para observação. Ainda não sabemos com o que ele foi drogado.

– Ele falou mais alguma coisa sobre o sequestrador? – perguntei. Ela balançou a cabeça.

– Não. Ele falou que o cara falava sussurrando baixo; ele não acha que será capaz de reconhecer a voz se a ouvir novamente.

Kurt rabiscou alguns lembretes em sua caderneta.

– Vou garantir que tenha um policial esperando no hospital para protegê-lo quando ele chegar.

– Mais uma coisa – ela disse. – O assassino disse a Thomas que estava indo atrás da esposa dele, Marianne. Fiz uma ligação e a expedição já mandou um carro para a casa dela, mas estou pensando se poderíamos mandar uma policial feminina disfarçada para lá e colocar Marianne sob proteção caso John decida ir atrás dela.

– Hum... pode ser bom – Kurt murmurou. – Contanto que ela não se torne uma isca – ele pensou por um momento. – Deixe-me fazer algumas ligações – e estendeu a mão para mim.

– O quê?

– Meu telefone.

– Ah, sim – entreguei-o para ele. – Tem vídeos da maior parte da casa. Envie-os por e-mail para mim.

– Enviarei – então ele se afastou de mim e de Cheyenne, mas falou por cima do ombro: – Agora, saiam daqui e descansem. Vocês dois estão com cara de... – sua última palavra foi abafada enquanto ele ia embora, mas acho que sabia o que era.

E então, Cheyenne e eu ficamos a sós.


57

O sol dirigiu-se para trás das altas montanhas que se erguiam contra o céu. As Montanhas Rochosas estavam roubando minutos do dia.

– Ele deixou as cobras soltas – eu disse a ela. Então informei-a sobre a cabeça de Taylor e os recortes de jornal no quarto trancado.

Ela deixou tudo assentar.

– Não podemos divulgar essa informação sobre a cabeça de Taylor para a imprensa – ela disse. – Se a mídia souber disso, só vai causar mais pânico, mais obstáculos para a investigação.

Eu não tinha nenhum argumento contra aquilo.

Passamos alguns minutos revisando tudo que havia acontecido durante o dia, conversando sobre os fatos, pistas e conexões, mas eu tinha a sensação de que ambos estávamos esperando que a conversa se direcionasse para algo mesmo relacionado ao trabalho.

Enquanto conversávamos, vi que Cliff havia encontrado espaço sufi-ciente para pousar no campo perto da casa. Eu não me lembro de ouvi-lo chegando. Ele estava ao lado da cabine, olhando para seu relógio. Imaginei quanto tempo fazia que ele estava ali.

– Vou voltar com Bennett – Cheyenne disse. Ela gesticulou na direção da ambulância ainda parada perto do celeiro. – Acho que ele precisa de alguém com ele agora. Talvez quando se acalmar ele possa nos informar algo mais específico.

– Acho que vou fazer companhia para Cliff no helicóptero – fiz uma leve pausa. – Bom trabalho hoje, Cheyenne.

– Obrigada – ela colocou de lado uma mecha de cabelo solta que havia caído na frente do olho.

– Então – eu disse.

– Então.

O crepúsculo surgiu por cima das montanhas. Por todo lado, à nossa volta, o dia estava se esvaindo. A ambulância começou a vir lentamente em nossa direção pela estrada esburacada.

– Você vai fazer alguma coisa mais tarde? – ela perguntou.

– Provavelmente vou trabalhar um pouco, recalculando o perfil geográfico agora que sabemos que o assassino usava esse local. Talvez seguir sua sugestão: tomar um bom banho frio. Passar aloe vera. Isso tudo.

Parecia que talvez houvesse mais a dizer, mas eu não sabia o que poderia ser.

– Bem, ok – eu disse. – Boa noite. Te vejo amanhã. Obrigado novamente por atirar na corrente.

– O prazer foi meu.

Segui na direção do helicóptero mas havia dado apenas alguns passos quando ela me chamou de volta.

– Espere.

Virei-me.

– Sim?

Uma leve pausa, então:

– Venha jantar comigo.

Senti uma onda tanto de excitação quanto de apreensão.

– Não tenho certeza se posso...

– Ah, você já tem planos.

– Não, eu... – Tessa havia me dito que ia sair com Dora para jantar e ir ao cinema hoje à noite, então eu ficaria em casa sozinho e provavelmente acabaria pedindo uma pizza. Não era exatamente o que pensei que Cheyenne queria dizer com a palavra planos, mas ainda assim...

– Ah, me desculpe – a voz de Cheyenne murchou. – Você está saindo com alguém, eu...

– Não, não. Não é isso. Não estou saindo com ninguém, eu só...

– A mulher com quem falou ao telefone hoje mais cedo? Cara, ela era boa.

– Lien-hua? Não, isso acabou – as palavras tiveram um gosto amargo em minha boca.

– Então você não está saindo com ninguém – Cheyenne disse decisivamente, e eu imaginei se ela não estaria tentando me convencer de que aquilo era verdade. – E eu também não, e nós dois estamos com fome e estamos livres para o jantar. Então, tudo que estou dizendo é: venha comer comigo.

Reparei em Reggie Greer andando na direção dos restos da cobra, não muito longe da gente.

– Eu não sei, Cheyenne...

– Eu não estou te pedindo em casamento, apenas para ir comer comigo em algum lugar na minha vizinhança.

A ambulância andou até parar a 10 metros de distância. Reggie pegou a pá e a usou para se livrar dos restos da cobra.

– Agente Bowers – ele chamou –, obrigado por me ajudar lá na cozinha – ele lançou a cobra morta para o meio do mato, fora de nossa vista.

– Por nada – enquanto respondia para Reggie, eu ainda estava tentando pensar no que falar para Cheyenne.

– Então? – ela disse.

Uma abordagem diferente. Abaixei minha voz, esperando que Reggie não ouvisse.

– Talvez eu seja antiquado, mas sempre pensei que era responsabilidade do cara chamar a garota para sair.

E, então, antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, ela disse:

– Bom, obrigada, dr. Bowers. Seria uma honra me juntar a você para jantar.

– Eu não estava... – Às 20h então? – Às 20h...

– Perfeito. Eu conheço uma churrascaria que tem uma carne ótima, perto da Union Station, aonde você pode me levar – ela colocou a mão no meu braço e deu uma leve apertada. – Dessa vez, você pode me buscar – então ela me falou seu endereço e partiu para a ambulância.

Peguei Reggie Greer sorrindo para mim.

– O quê? – eu disse.

– Essa foi boa.

– Do que você está falando?

– Me desculpe. Não pude deixar de ouvir. Ser chamado para sair pela detetive Warren e, então, inverter a situação para que ela não se sentisse desconfortável por ter tomado a iniciativa... bom. Muito bom.

– Ah, claro, uau – murmurei. – Obrigado.

– E você é um homem corajoso por topar um encontro com ela. Eu não tinha muita certeza de como entender aquilo.

– Não é um encontro.

Cheyenne desapareceu dentro da ambulância. Eu estava torcendo para que ela não tivesse ouvido nada daquilo.

– Ah – ele piscou para mim. – Saquei – as portas da ambulância se fecharam. Cruzei os braços.

– Só vou comer com ela nas redondezas de onde ela mora.

– Claro. Entendi.

Isso não ia chegar a lugar algum.

– Estou indo. Tchau.

Fui na direção do helicóptero, enquanto a ambulância ia embora.

E, quando pensei na noite próxima, lembrei-me do quanto Tessa ficara incomodada com o vaso de manjericão.

Peguei emprestado o celular de Cliff e, quando Tessa não atendeu, deixei uma mensagem de voz dizendo para ela se divertir no cinema e que eu jantaria mais tarde e a veria quando ela chegasse em casa. Expliquei que meu celular estava quebrado, deixei o número de Cheyenne e disse a ela para “somente ligar para aquele número se precisasse entrar em contato comigo”.

Ela não sabia que era o número de uma mulher.

Então Cliff e eu subimos a bordo do helicóptero e alguns momentos depois estávamos sobrevoando as montanhas que escureciam, voando para o leste na direção de Denver, onde a Lua já estava começando a surgir.

Tessa estava emocionalmente arrasada.

Depois de ter mexido na caixa de memória a tarde inteira com Dora e de perceber o quanto ela não conhecia sobre a vida da mãe, decidiu que precisava de um tempo para relaxar antes de sair novamente à noite.

Então, após Dora ter saído para cuidar de algumas coisas em casa, ela começou a mexer no cubo novamente e finalmente conseguiu resolvê-lo uma vez, mas ainda não estava nem perto de fazê-lo com os olhos fechados.

Ela estava trabalhando nele havia alguns minutos quando o telefone começou a tocar, distraindo-a completamente.

Mas ela continuou com os olhos fechados. Tentava se concentrar.

Toque genérico. Continuou tocando.

Irritante, irritante, irritante.

Finalmente parou, mas aí já era tarde demais. Ela havia perdido com pletamente a noção de onde as cores estavam. Frustrada, abriu os olhos e foi ver se quem havia ligado tinha deixado alguma mensagem.

Encontrou uma mensagem de voz de Patrick.

Na mensagem ele explicou que estava a 25 minutos da cidade e que era para ela se divertir no cinema e não se preocupar com ele porque ele iria jantar mais tarde; que ele a amava e era para ligar para um número de telefone se houvesse algum problema.

E quando ela ouviu sua voz, ela se lembrou da última conversa nada cordial entre eles.

Ok, então ter desligado na cara dele talvez não tenha sido a melhor coisa a se fazer, especialmente num dia em que ele estava obviamente estressado com o julgamento e o vaso de manjericão, ah, isso sim era perturbador demais, e com o término do relacionamento com a agente Jiang. Desligar daquele jeito provavelmente não havia ajudado a convencê-lo a lhe dar o diário.

Hum. Então, ok.

Ele iria jantar mais tarde, né? Isso significava que ainda não havia comido. E, pensando nisso, com exceção dos salgadinhos e do molho que ela havia comido com Dora, ela não tinha comido também.

E isso deu a ela uma ideia. Talvez, apenas talvez, se ela parasse de agir como uma pirralha reclamona, forçando a barra para ele dar a ela o diário, ele poderia mudar de ideia em relação a isso. Se ela mostrasse a ele que ela podia realmente ser madura e responsável...

Jantar.

Sim.

Não havia muita coisa que tanto ela quanto Patrick gostavam de comer, mas espaguete com molho sem carne era uma delas. Perfeito.

Mas, de acordo com sua mensagem de voz, ela tinha menos de 25 minutos para preparar tudo.

Ela ligou para Dora e cancelou o passeio delas, pegou um saco de espaguete na prateleira e encheu uma panela com água. Então, colocou-a no fogo e começou a preparar uma salada enquanto esperava a água ferver.


58

Senti cheiro de molho de espaguete quando entrei pela porta da frente.

– Tessa? – coloquei minha bolsa do computador ao lado do sofá.

Ela apareceu na porta da cozinha segurando uma concha que pin gava molho de tomate e vestindo o avental de churrasco que a esposa de Ralph, Brineesha, havia me dado no Dia dos Pais do ano passado, onde estava escrito “Rei do Carvão”.

– Bem-vindo – ela disse. – O jantar está na mesa.

– O que você está fazendo?

– Cozinhando.

– Cozinhando?

– Sim – ela disse. – Entre.

– Você está cozinhando?

– Uh-huh. Você quer uma taça de vinho ou alguma outra coisa para acompanhar?

Juntei-me a ela na cozinha e vi que minha mesa estava arrumada para dois. Nossas melhores louças. Uma taça de vinho, uma lata de refrigerante.

– Tessa, o que está acontecendo?

Ela piscou.

– Eu fiz o jantar.

– Você odeia cozinhar.

– Estou ampliando meus interesses – ela segurava duas garrafas de vinho. – Tinto ou branco?

Olhei pela cozinha, tentei entender tudo. A salada. O molho fervendo. A tigela de macarrão.

– Pensei que você e Dora iam sair para jantar e depois ver um filme.

– Cancelamos – ela apontou com a concha para o fogão, lançando gotas de molho vermelho pelos azulejos. – Deixei o molho fervendo para mantê-lo quente.

Eu não fazia ideia do que dizer.

– Isso é ótimo mesmo, mas já tenho planos para o jantar.

– Como assim?

– Prometi para alguém que os encontraria para jantar.

– Ah – ela baixou a concha. Soltou-a. – Ok – lentamente, ela virou-se na direção do fogão e então desligou a boca que estava aquecendo o molho.

– Não, escute. Estou impressionado que você tenha feito o jantar. Quero dizer, parece ótimo, mesmo.

Ela estava de costas para mim.

– Não, não é nada de mais. Sério.

Oh, não.

– Ei, olhe. Vou cancelar. Está tudo bem. Vou só ligar para minha amiga e dizer a ela...

– É uma mulher? – Tessa ainda não havia virado de volta.

– Isso não... isso não importa. O que quero dizer é que eu disse a ele, a ela, seja lá quem for, que eu iria jantar perto da casa deles.

Tessa me encarou.

– Da casa deles?

– Sim.

– Você pode não ter reparado, mas você fica mudando o pronome pessoal do singular para o plural, usando “eles” e “deles” para se referir a alguém. Você não faria isso se estivesse saindo para comer com um dos caras, então estou chutando que você vai jantar com uma mulher – ela cruzou os braços. – Estou certa, não estou?

– É uma colega de trabalho.

– Do sexo feminino.

– Bom, é...

– É um encontro?

– Não é um encontro.

– O que é?

– Um jantar.

– Um encontro para jantar.

– Não.

Ela inclinou a cabeça.

– Tem certeza?

– Sim, tenho certeza. Não é um encontro.

– Bom – ela tirou o avental e o pendurou sobre o encosto de uma das cadeiras ao lado da mesa. – Então eu posso ir também.

– Hum, talvez seja um encontro.

– Tarde demais. Vou junto. Me dá um segundo para eu pegar minha bolsa. Ela desapareceu no outro quarto.

Que diabos aconteceu aqui?

– Tessa, vou cancelar! – falei.

– Não, está tudo bem. Eu não ligo de comer fora – ela gritou de volta.

– Podemos comer espaguete amanhã.

– Não é disso que estou falando...

– Então, quem é? – ela estava gritando para mim de trás da porta de seu quarto. – É aquela ruiva bonita que estava no escritório do jornal?

Esfreguei a testa. Isso não pode estar acontecendo.

– Estou falando sério, vou ligar para ela e...

– Isso é falta de educação. Mantenha sua palavra. Vá para o seu encontro. Não é um encontro!

Ok, as opções eram (1) cancelar o jantar nas redondezas de Cheyenne;

(2) impor a lei com Tessa, dizer a ela que ia sair e que ela precisa ficar aqui, mas isso significaria deixá-la aqui sozinha com suas memórias daquele vaso de manjericão. Além disso, nós havíamos discutido mais cedo sobre o diário, e seria bom passar um tempo com ela hoje à noite explicando que eu não estava bravo com ela.

Fui para o meu quarto.

– Tudo bem, você pode ir – eu disse na direção da porta dela. – Saímos em 20 minutos.

– Beleza.

– Vou tomar um banho rápido para me limpar. Quase fui queimado vivo essa tarde.

– Legal.

Parei e olhei para a porta.

– É legal que eu quase tenha sido queimado vivo?

– Que você quase foi queimado vivo – a porta abriu uma fresta e a cabeça dela apareceu. – Se você tivesse sido queimado vivo, teria sido uma droga.

Ah, sendo assim.

Ela voltou para dentro.

Tomei um banho, troquei de roupa e quando voltei para a cozi nha, descobri que Tessa havia guardado a comida. Então saímos para pegar Cheyenne.


59

Bati na porta de Cheyenne.

No caminho, peguei emprestado o telefone de Tessa e liguei para Cheyenne para contar a ela sobre a pequena mudança de planos, mas ela não atendeu. Deixei duas mensagens de voz, mas ela não retornou nenhuma delas.

Ela abriu a porta.

– Oi.

Eu mal pude reconhecê-la. Ela usava um vestido preto estonteante que acentuava todas a partes certas de sua silhueta de todas as maneiras certas. Eu não me lembrava de vê-la com maquiagem antes, mas talvez ela tenha pensado que aquela era uma ocasião especial. Ela estava deslumbrante.

– Uau! – eu disse. – Eu não sabia que cowgirls se vestiam assim.

– Já te disse, sou difícil de classificar. Como estão seus braços?

– Como é?

– As queimaduras.

– Ah, sim. Bem – eu disse. – Ei, hum, você recebeu meu recado?

– Recado?

– Mensagem de voz. Liguei para você faz... bom, não importa. Eu só estava tentando dizer a você que meus planos haviam mudado um pouco – dei um passo ao lado e apontei para o carro. Tessa abriu a janela do banco de trás e ergueu dois dedos para nós. – Temos companhia.

– É Tessa.

Tentei decifrar seu tom de voz, mas não podia dizer o que ela poderia estar pensando.

– Escute – eu disse. – É uma longa história. Se não for dar certo, tudo bem. Podemos adiar...

– Não, não, tudo bem – Cheyenne saiu pela porta e a fechou atrás dela. Dirigiu-se para o carro. – Como você disse para Reggie, não é um encontro.

E a noite começava de maneira brilhante.

A caminho do restaurante, Tessa mencionou que era vegetariana e acabou perguntando se o lugar que iríamos comer servia bezerros recém-assassinados ou outro animal tratado desumanamente e morto brutalmente, porque caso servisse, isso faria, e ela sentia muito, mas isso faria com que ela se sentisse totalmente enjoada.

– Vamos deixar a detetive Warren escolher o restaurante – eu disse a Tessa, lembrando que Cheyenne havia me dito que queria ir a uma churrascaria perto da Union Station. – Então, em qualquer lugar que ela quiser ir, nós vamos. E não acho que vegetariano esteja no cardápio.

 

CONTINUA

Você não sabe como o treinador de tigres faz? Ele não ousa dar ao tigre nenhuma coisa viva para comer, com medo de que ele possa conhecer o gosto da fúria ao matá-la. Ele não ousa dar a ele nenhuma coisa inteira para comer, com medo de que ele possa conhecer o gosto da fúria ao despedaçá-la.
Ele mede o estado do apetite do tigre e compreende completamente sua disposição feroz. Tigres são de uma raça diferente dos homens... os homens que acabam mortos são os que vão contra eles.
– Chuang Tzu, filósofo chinês, 351 a.C.

Para melhor compreensão da história, é necessário que se faça uma observação acerca de seu título. O autor, Steven James, criou a série de histórias do agente especial Patrick Bowers seguindo um padrão: cada livro é intitulado de acordo com o nome das peças do jogo de xadrez. Depois de O Peão e A Torre, este terceiro volume recebeu o título em português de O Cavalo, como a peça do jogo.
Porém, é necessário lembrar, para que certas partes do enredo façam maior sentido, que o nome original da história, assim como o da peça de xadrez em inglês, é The Knight, que, traduzido literalmente para o português, seria O Cavaleiro. A alteração do título se dá apenas para seguir o padrão dos nomes das peças, desejado originalmente pelo autor.

 


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1

Quinta-feira, 15 de maio
Mina de Bearcroft
Montanhas Rochosas, 65 quilômetros a oeste de Denver
17h19

O cheiro triste e maturado da morte emanava da entrada da mina abandonada.

Alguns agentes do FBI acostumam-se com esse cheiro em momentos como esse e, depois de um tempo, ele se torna parte da rotina diária.

Isso não aconteceu comigo.

Minha lanterna emitia um feixe estreito de luz através da escuridão, mas iluminava o suficiente para mostrar que a mulher ainda estava vestida, sem sinais de abuso sexual. Dez velas grossas a cercavam, suas chamas dançando e lambendo o ar empoeirado, conferindo ao túnel uma sensação fantasmagórica e transcendental. Ela estava a cerca de 10 metros de distância e deitada como se estivesse dormindo, com as mãos no peito. E em suas mãos estava o motivo pelo qual eu havia sido chamado.

Um coração humano em lento processo de decomposição. Nenhum sinal da segunda vítima.

E as velas tremeluziam ao redor dela no escuro.

Parte dos meus deveres no escritório local do FBI de Denver inclui trabalhar com o Departamento de Polícia de Denver em uma força-tarefa conjunta que investiga os infratores criminosos mais violentos da região metropolitana de Denver, ajudando a analisar evidências e sugerir estratégias de investigação. Como esse crime parecia estar ligado a outro duplo homicídio cometido no dia anterior, em Littleton, o tenente Kurt Mason pediu minha ajuda.

Porém, alguns oficiais da força policial local tendem a ser territorialistas e, no momento em que pisei fora do helicóptero da força-tarefa, percebi o quanto os quatro homens da perícia ficaram animados por eu estar lá. Provavelmente não faria diferença informar que Kurt queria que eu analisasse a cena com ele antes de me conduzirem ao túnel.

A mina mal tinha altura suficiente para que eu ficasse de pé e era estreita, de modo que eu podia tocar os dois lados ao mesmo tempo. A cada cinco ou 10 metros, grossas vigas escoravam as paredes e o teto, evitando desmoronamentos.

Um trilho enferrujado que havia sido usado por mineradores para conduzir vagonetes de minério pela mina corria pelo chão e desaparecia na escuridão em algum lugar além do corpo da mulher.

Enquanto dava alguns passos para dentro do túnel, verifiquei se meus tênis deixavam pegadas, mas vi que o chão era muito duro. Então, era improvável que também tivéssemos impressões de pegadas do assassino.

A cada passo, a temperatura diminuía, aproximando-se dos 5 °C. A hora da morte ainda era desconhecida, mas o ar frio teria tornado a decomposição mais lenta e ajudado a preservar o corpo. A mulher poderia estar lá há dois ou três dias.

Uma das velas se apagou.

Por que você a trouxe aqui? Por que hoje? Por que essa mina? De quem é aquele coração nas mãos dela?

A voz de um dos membros da perícia cortou o silêncio escuro.

– Sim, o agente especial Bowers entrou. Ele não está com pressa.

– Eu espero que não – era o tenente Mason, e fiquei feliz por ele estar ali. Ele esteve ao telefone desde que eu havia chegado, e agora parei e esperei que se juntasse a mim.

Um feixe de luz passou por mim quando ele ligou sua lanterna e logo depois ele estava ao meu lado.

– Obrigado por aparecer, Pat – ele falou em voz baixa, um pequeno gesto de respeito com a morta. – Eu sei que você está partindo para lecionar na Academia semana que vem. Espero que...

– Posso dar consultoria lá de Quântico, se for preciso.

Ele fez um pequeno aceno com a cabeça.

Com 41 anos de idade, óculos estilosos de aro fino e olhos rápidos e inteligentes, Kurt parecia mais um banqueiro de investimentos do que um detetive experiente, mas era um dos melhores investigadores de homicídios que eu já havia conhecido. Havia sido um ano difícil para ele, porém, e isso estava estampado em seu rosto. Cinco anos atrás, quando ele e a esposa Cheryl tinham saído, a filha deles, Hannah, de um ano e três meses, afogou-se na banheira enquanto a babá estava na sala de estar enviando uma mensagem de texto para um amigo. Kurt e eu nos conhecíamos há apenas alguns meses, quando sua filha morreu, mas eu havia perdido recentemente minha esposa e, de certo modo, a noção de tragédia compartilhada tinha aprofundado nossa amizade.

Silenciosamente, colocamos luvas de látex. Começamos a andar em direção ao corpo da mulher.

– O nome dela é Heather Fain – sua voz soava solitária e oca dentro do túnel. – Acabei de ficar sabendo. Desapareceu de seu apartamento em Aurora na segunda-feira. Ninguém viu o namorado dela desde então, um cara chamado Chris Arlington. Estávamos de olho nele... até... – sua voz foi sumindo. Estava observando o coração.

Olhei para o corpo de Heather, ainda a cinco metros de distância, e deixei seu nome caminhar em minha mente.

Heather.

Heather Fain.

Isso não era apenas um cadáver, eram os restos mortais trágicos de uma

jovem mulher que tinha um namorado, sonhos e uma vida em Aurora, Colorado. Uma jovem mulher com paixões, esperanças e angústias.

Até esta semana.

A tristeza me penetrou como uma faca.

O comentário de Kurt me fez pensar que ele poderia ter um motivo

para acreditar que aquele era o coração de Chris Arlington.

– Nós sabemos a identidade da segunda vítima? – perguntei. – Se é ou não Chris?

– Ainda não – um nervosismo tomou conta de sua voz. – E eu sei o que você está pensando, Pat: não suponha, examine.

– Não se preocupe. Vou examinar.

– Eu sei.

– Temos de começar de algum lugar.

Focalizei o feixe de luz no coração.

– Sim, temos mesmo.

Juntos, nos aproximamos do corpo.


2

As velas emitiam um cheiro de baunilha que se misturava com o cheiro de carne em decomposição e o forte odor de enxofre vindo das profundezas da mina. Imaginei se as velas eram a maneira que o assassino encontrou para mascarar o cheiro do corpo quando este começasse a se decompor; imaginei onde ele poderia tê-las comprado, e há quanto tempo estavam queimando.

Detalhes.

Tempo.

– Eu devo te contar – Kurt disse – que o capitão Terrell não está feliz pelo fato de isso estar nas mãos da força-tarefa. Ele quer que fique totalmente com a polícia local.

– Obrigado por avisar – mesmo a três metros de distância eu podia ver as veias carnudas e intrincadas do coração. – A gente resolve isso depois.

Chegamos ao corpo de Heather.

Caucasiana. Por volta de 25 anos, corpo mediano, cabelo castanho

empoeirado. Batom fresco. Imaginei-a viva, se mexendo, respirando, rindo. Tomando por base a estrutura óssea do rosto, ela devia ter um sorriso tímido e adorável.

Sua pele estava marcada e manchada, e houve certa atividade de insetos, mas a temperatura baixa fez com que fosse mínima.

Analisei por um momento o coração, preto-avermelhado e preso nas mãos dela. Parecia muito escuro, e terrível, apoiado em seu peito.

Então minha visão voltou-se para as velas. Através dos anos descobri que ter um entendimento claro do local e da relação de tempo de um crime é o ponto mais importante para se começar uma investigação. Olhei o relógio e então assoprei as cinco velas em volta das pernas dela.

– Anote 17h28.

Kurt escreveu os números em sua caderneta.

– Fluxo de cera?

– Sim – mais tarde, faríamos com que os técnicos forenses queimassem velas dessa marca nessa altitude e nessa temperatura e comparassem a taxa de derretimento e a quantidade do fluxo de cera para determinar por quanto tempo as velas ficaram queimando. Isso nos diria quando foi a última vez que o assassino esteve ali. Eu não precisava dizer nada disso para Kurt; nós estávamos na mesma sintonia.

Analisei a posição do corpo em relação ao modo como o túnel se curvava para a esquerda, seguindo o veio mineral que penetrava a montanha. Parecia que o corpo de Heather não havia sido colocado a esmo na mina. O assassino havia centralizado o corpo entre duas vigas de suporte.

Ele queria que a víssemos assim que entrássemos na mina. Ele a emoldurou. Como uma foto.

– Só mais alguns minutos – Kurt disse, tirando-me dos meus pensamentos. – Então terei de deixar os caras da perícia entrarem.

Inclinei-me sobre o corpo.

Os olhos dela estavam fechados.

Nenhuma tatuagem visível.

Nenhuma roupa rasgada, nenhum sinal de luta. Calça preta, botas

de couro marrom, uma blusa florida amarela e laranja com uma mancha

escura de sangue que havia escorrido do coração.

Empurrei uma mecha de cabelo que cobria sua orelha esquerda e vi que ela era furada em três lugares, mas ela não usava nenhum brinco. Verifiquei a outra orelha. Nenhuma joia.

– Vamos descobrir se ela estava usando brincos no dia em que foi sequestrada. Se ela estava, verifique com o ViCAP1. sobre outros casos de assassinos que levam brincos como troféus de seus assassinatos.

Ele escreveu na caderneta.

– Kurt, além de você, quantos policiais estiveram aqui?

– Apenas dois – ele apontou sua luz na direção de um túnel em uma interseção que levava para o leste. – Verifiquei os túneis antes de eles chegarem aqui. Está limpo. Nenhum outro corpo.

Pingava água em algum lugar fora da vista no fundo da mina. Ecos molhados rastejando em minha direção.

– Nós sabemos quem é o dono dessa mina?

Ele balançou a cabeça.

– Aqui em cima, os direitos sobre os minérios mudam muito de mãos. São herdados, revendidos. É difícil rastrear. Jameson está trabalhando nisso.

Voltei minha atenção para Heather novamente.

Nenhuma contusão na face, nem sangue no cabelo, nem marcas no

pescoço. Como ele te matou, Heather? Segurou um travesseiro contra seu rosto? Te afogou? Te envenenou?

– Vamos fazer um exame toxicológico.

– O médico forense está a caminho para dar continuidade à investigação. A vela ao lado do ombro direito dela piscou.

Movimentei meu feixe de luz para além do coração e o direcionei para as leves dobras e rugas de sua roupa.

Kurt se inclinou ao meu lado, apontando primeiro para os ombros dela, então para os tornozelos.

– Não há aglomeração ou aglutinação nas roupas dela – ele disse. – Ele não a arrastou para cá; ele a carregou.

– É o que parece. Mesmo assim, ele gastou um tempo para alisar sua roupa, pentear seus cabelos. Ele passou um tempo com ela. Preparando-a. Garantindo que tudo estava certo.

Senti uma tristeza renovada diante da morte dela e da pessoa cujo coração agora descansava em seu peito. Movimentando o feixe de luz sobre o corpo, pensei em quantos assassinos retornavam para o local de descarte de suas vítimas para violar seus restos, para reviver a emoção do assassinato, mas não havia sinais de que ele tivesse corrompido o corpo. E eu estava grato por isso acima de tudo.

Por que aqui? Por que você a trouxe aqui? Quando estou no meio de uma investigação tenho a mania de conversar comigo mesmo, e não percebi que havia feito mais do que apenas pensar minhas duas perguntas até ouvir uma voz de mulher atrás de mim:

– Ele está nos mandando uma mensagem.

Então, passos, rápidos, firmes, com propósito. Com cuidado para não direcionar o feixe de luz em seus olhos, virei minha lanterna na direção da mulher que se aproximava de nós. No canto da luz, pude ver seu rosto de cowgirl naturalmente bonito e seus cabelos loiros avermelhados.

– Detetive Warren – eu disse.

– Agente Bowers.

Aos 29 anos, Cheyenne foi a mulher mais jovem a ser promovida a detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Denver. Ela era inteligente, tinha os pés no chão, era dedicada e eu gostava dela. Eu havia trabalhado com ela em seis casos da força-tarefa no último ano, e a cada vez ficava mais impressionado.

Mesmo sendo sete anos mais velho, com certeza havia química entre nós, e ela havia tomado a dianteira e me chamado duas vezes para sair, mas aconteceram alguns desencontros. No entanto, à luz dos problemas que eu estava tendo em meu relacionamento atual, esses dois casos vieram à minha cabeça.

Os olhos dela passaram por mim e encontraram o corpo iluminado pela lanterna de Kurt.

– Posicionamento ritualístico – ela disse. – Ele levou um tempo para deixar tudo certo.

– Sim – focalizei minha luz em Heather novamente.

Um dos membros da perícia chamou Kurt em voz alta. Vi sua mandí

bula tensa; ele ficou um momento em uma ponderação silenciosa, então entregou para Cheyenne a lanterna, pediu licença e saiu.

Voltei minha atenção para Heather e, quando me inclinei para perto de seu rosto, percebi algo em sua boca. Gentilmente, puxei seu lábio inferior para ver dentro.

Um dispositivo preto do tamanho de um chiclete em tira dobrado estava em sua língua.

Cheyenne também viu. Ajoelhou-se ao meu lado. A maior parte da minha atenção permaneceu na cena do crime, mas um pouco voltou-se para ela, para o suave toque do seu braço contra o meu.

Ambos examinamos o objeto.

– O que é isso? – ela perguntou.

– Não sei.

– Já volto – ela saiu da mina enquanto eu usava meu celular para tirar fotos do rosto de Heather e do posicionamento do objeto em sua boca.

Cheyenne retornou com pinças plásticas e um saco para coleta de evidências.

– A perícia ficou emocionada em passar isso para a frente.

– Tenho certeza de que ficaram.

Ela me deu a pinça e eu a deslizei cuidadosamente para dentro da boca de Heather. Apertei o objeto para removê-lo.

E ouvi uma voz.

“Vejo você...”

Caí para trás.

“...em Chicago...”

Uma gravação.

“...agente Bowers.”

Recuperei o fôlego.

Senti meu coração disparar.

Olhei para a pinça e para o pequeno dispositivo de gravação. Parecia um daqueles que você encontra em alguns tipos de cartão de festas. A pressão dos lados o ativou.

– Ok – Cheyenne soltou um suspiro fino e comprido. – Eu não estava preparada para isso.

Meu coração ainda estava martelando.

– Nem eu.

A mensagem se repetiu. “Vejo você em Chicago, agente Bowers.” Esperei para ver se havia mais alguma coisa, mas aquelas seis palavras se repetiam a cada seis segundos. Cuidadosamente, coloquei o disposi

tivo de gravação no saco para evidências.

– Ele sabe sobre Chicago – Cheyenne disse, pegando o saco comigo.

– Sobre o julgamento de Basque.

No dia seguinte de manhã eu iria para Chicago para depor no segundo julgamento de um assassino em série chamado Richard Devin Basque, um homem que eu havia detido 13 anos atrás, no começo da minha carreira como investigador. Ele fora declarado culpado e estava preso desde então, mas recentemente novas evidências surgiram e, agora, era possível que fosse solto.

Eu não queria pensar naquilo agora.

A gravação continuava tocando: “Vejo você em Chicago, agente Bowers”. O som distante de água pingando.

Por um momento, ouvi o túnel. Meus pensamentos.

Quem quer que tenha deixado a gravação não apenas sabia que eu estaria em Chicago amanhã, mas sabia também que eu estaria aqui, nesta cena de crime, hoje.

Mas como?

E como este assassinato está ligado ao julgamento de Basque?

Outra vela se apagou. A escuridão rastejou em nossa direção das pro

fundezas da mina, e o coração ao qual Heather estava agarrada não mais apresentava a cor vermelha: estava completamente preto.

Vozes atrás de mim. Kurt e a unidade de perícia.

– Tudo bem – Cheyenne disse. – Aí vêm eles.

A gravação continuava repetindo a mensagem. Eu queria saber como desligá-la.

Enquanto a equipe se aproximava, deixei minha luz afastar-se do corpo de Heather e caminhar pela parede do túnel, onde analisei o brilho emitido pelos minerais incorporados na montanha. Fissuras e fendas ocasionais de apenas alguns centímetros de largura atravessavam a rocha.

Uma antiga escada de madeira tosca desaparecia por um poço a quatro metros do corpo. Andei até ela e mirei minha lanterna para baixo. O poço era tão estreito que mal permitia que uma pessoa descesse. Cerca de 10 metros abaixo, ele terminava em outro túnel.

– Alguma ideia do tamanho dessa mina? – perguntei para Cheyenne.

– Ainda não, mas algumas dessas antigas minas de ouro percorriam quilômetros.

Então a perícia chegou. Nós deixamos o dispositivo de gravação com eles e Cheyenne e eu fomos para a entrada da mina.

Quando passei pelos homens a caminho da saída, cumprimentei-os discretamente, mas Kurt foi o único que respondeu.


3

Cheyenne andava ao meu lado.

– Você acha que foi Taylor que deixou a mensagem? – ela perguntou.

Sebastian Taylor era um ex-assassino na lista dos mais procurados do FBI que havia tomado especial interesse por mim alguns meses atrás e havia começado a me mandar cartas provocativas e fotos de pessoas da minha família. Ele assinava todos os bilhetes como “Shade”, o codinome que uma dupla de assassinos tinha usado em San Diego em um caso no qual trabalhei em fevereiro. O exame de DNA realizado em um dos envelopes nos mostrou que era Taylor quem estava mandando as mensagens e que ele era, na verdade, o pai de um daqueles assassinos.

Duas semanas atrás, um policial havia encontrado marcas de pneu na lama próximas a uma caixa de correio rural que Taylor havia usado para enviar um envelope. Nós não sabíamos ainda se as marcas de pneu eram do veículo dele, mas pareciam uma boa pista. A equipe de Kurt estava encarregada disso.

– Isso não parece o tipo de crime de Taylor – eu disse para Cheyenne.

– E todas as suas mensagens anteriores para mim haviam sido escritas à mão, e não gravadas.

– Algum outro assassino com o hábito de mandar mensagens pessoais para você?

– No momento, não.

Se Taylor fosse o assassino e estivesse realmente planejando me ver em Chicago, eu queria estar pronto para ele. Então, quando Cheyenne e eu nos aproximamos da entrada, peguei meu celular.

– Vou ligar para um amigo meu do Bureau para fazer algumas coisas acontecerem.

– Cuidado, Pat – sua voz carregava uma profunda preocupação. Mais profunda do que a preocupação de uma colega de trabalho. – Isso é diferente. Eu não gosto disso. De nada disso.

– Eu entendo – um leve desconforto passou-se entre nós, e ela, então, voltou para a mina, e eu disquei o número de Ralph.


O agente especial Ralph Hawkins não era apenas o diretor interino do National Center for the Analysis of Violent Crime2. do FBI, ou NCAVC, mas era também um dos meus amigos mais próximos. Apesar de ele estar em Washington, no quartel-general do FBI, eu sabia que se tinha alguém que podia colocar uma equipe de prontidão no tribunal de Chicago amanhã, esse alguém seria ele.

Enquanto esperava que ele atendesse, percebi que o sol havia se escondido quase totalmente atrás das montanhas e que o dia começava a desaparecer. Logo após o trecho plano de terra onde o helicóptero estava pousado, florestas selvagens de abetos se espalhavam pelas encostas. Além delas, picos irregulares cobertos de neve projetavam-se para o céu.

O sinal do meu celular desapareceu, e segui em direção ao helicóptero. Tentei novamente.

Próximo dali, um carro parou na estrada esburacada que levava até a mina e o dr. Eric Bender, médico forense de Denver, saiu do veículo. Óculos grossos. Rosto sereno. Eric tinha quase 1,95m, era magro e tinha um andar inclinado que fazia parecer que ele estava sempre levemente desequilibrado. Ele deve ter percebido que eu estava ao telefone, pois, em vez de me cumprimentar com palavras, apenas acenou para mim.

Acenei de volta. Conheci Eric no ano passado, um mês depois de ter me mudado para Denver com minha enteada. Tessa não fazia amigos facilmente, então fiquei grato quando descobri que a filha dele, Dora, também estava no Ensino Médio, e fiquei mais grato ainda quando as duas garotas se deram bem.

Eric desapareceu dentro da mina na hora em que Ralph atendeu. Informei a ele sobre a mensagem gravada e da possibilidade de ser Taylor.

– Tudo bem – ele disse. – Vou fazer algumas ligações. Eu mesmo irei para Chicago. Quando você depõe?

– Às 13h. Calvin vai me buscar no aeroporto.

– Werjonic?

– Sim.

– Encontro com você no tribunal – Ralph raramente falava mais do que o necessário. – Se for Taylor, nós o pegaremos – e finalizou a ligação.

Poderíamos colocar mais pessoas vigiando os aeroportos da região, mas eu tinha a sensação de que, se Taylor quisesse chegar em Chicago, ele encontraria um jeito. Ainda assim, liguei para meu supervisor no escritório local do FBI em Denver e pedi a ele para enviar um alerta para todos os aeroportos do Oeste e Meio-Oeste.

O piloto do helicóptero da força-tarefa que havia me trazido da central de polícia estava inclinado contra a cabine. Ele tirou os olhos da edição do Wall Street Journal que lia e me olhou.

– Pronto?

– Só mais um minuto.

O tenente-coronel Cliff Freeman havia se aposentado da Força Aérea ano passado, aos 44 anos, e agora pilotava helicópteros em meio período para o governo federal. Um homem de família com dois filhos gêmeos de 11 anos, ele tinha o cabelo cortado curto, ainda estava em boa forma e tinha uma habilidade especial sobre o mercado de ações de alta tecnologia.

Voltei para o túnel para dar uma última olhada no corpo de Heather e, em seguida, me juntei a Cliff na cabine do helicóptero.

Assim que decolamos, reparei nas trilhas escassas e nas estradas de terra que desciam as montanhas íngremes e atravessavam a Floresta Nacional de Arapaho. A rota de saída que o assassino provavelmente usou não deveria ser difícil de descobrir. Analisei a topografia da área. Memorizei-a.

Então o sol deslizou para trás das montanhas, e a noite começou a rastejar pelas Montanhas Rochosas.

A mensagem gravada ecoava em minha cabeça: “Vejo você em Chicago, agente Bowers”.

– Verei você também – eu disse para mim mesmo.

E sobrevoamos as montanhas em direção a Denver para que eu pudesse fazer as malas e pegar meu voo.


4

27 quilômetros a sudeste da Mina de Bearcroft
20h12

Com o passar dos anos, Sebastian Taylor aprendeu a tomar cuidado.

Tomar cuidado enquanto ele trabalhava para a CIA encontrando maneiras permanentes para lidar com pessoas problemáticas; tomar cuidado na década seguinte, para manter sua antiga linha de trabalho em segredo enquanto lançava sua carreira política; tomar mais cuidado ainda durante seus quatro anos como governador da Carolina do Norte, armando terreno para concorrer futuramente à presidência. Tomar cuidado, tomar cuidado. Sempre tomar cuidado.

Ele saiu do chuveiro e se enxugou; depois pegou sua Glock da bancada ao lado da pia e abriu a porta para o quarto.

Sempre tomando cuidado.

Mas além de tudo, ele havia tomado cuidado durante os últimos sete meses após sua queda, depois de assassinar um ex-associado e ir parar na lista dos mais procurados do FBI.

Por décadas, Sebastian havia feito apenas o que era melhor para os Estados Unidos. Mas, desde que seu país havia se virado contra ele em outubro passado e começado a caçá-lo como um procurado, ele encontrou espaço em sua consciência para um tipo diferente de lealdade e descobriu que dinheiro podia ser um motivo pelo menos tão satisfatório quanto o patriotismo.

Sebastian pensou nessas coisas enquanto terminava de se vestir, se armava e calçava seu sapato Oxford Taryn Rose Chester feito à mão. Sapatos italianos eram os mais bem-feitos do mundo, e mesmo tendo consciência de que deveria ser discreto com suas aquisições, ele ainda se permitia alguns luxos. Um toque das coisas mais finas da vida.

Nos últimos poucos meses ele havia construído uma nova identidade, escolhido uma casa isolada nas montanhas 50 quilômetros a oeste de Denver e então, cuidadosamente, cobriu seus rastros enquanto planejava seu próximo passo contra um certo agente do FBI problemático que parecia surgir sempre no lugar errado na hora errada.

O agente especial Patrick Bowers.

Sebastian terminou de amarrar os sapatos, levantou-se e alisou o paletó Anderson & Sheppard costurado à mão para cobrir seu coldre de ombro. Sim. As coisas mais finas.

E era por isso que ele estava indo ver Brigitte Marcello novamente, essa noite.

Mesmo já tendo passado dos 50 anos, Sebastian mantinha-se em uma forma impecável, o que era útil para alguém que preferia mulheres mais jovens. E, aos 27 anos, Brigitte ainda não tinha começado a ceder à ação do tempo. Ela ainda estava inteira. Ainda estava linda. Ainda era digna de sua atenção.

Depois de fazer amor em uma noite no mês passado, ela disse a ele suave e amavelmente:

– Eu não acredito que estou fazendo isso. Você tem idade suficiente para ser meu pai.

– E você tem idade suficiente – ele disse enquanto a puxava para perto de si – para ser meu verdadeiro amor – e então ela se derreteu em seus braços e eles fizeram sexo novamente. Sim, para conseguir o que você quer das pessoas, você simplesmente tem de dizer a elas o que querem ouvir.

Ele pegou o envelope de papel pardo contendo as fotos da enteada de Bowers, Tessa. Colocou-o dentro de sua maleta.

Uma rápida olhada no relógio: 20h22.

Tempo suficiente para enviar as fotos pelo correio antes de buscar Brigitte às 21h. Depois de oito envelopes, o FBI com certeza havia instalado câmeras de segurança para reconhecimento de rostos nos correios da área de Denver. Muito melhor deixar que os federais rastreiem suas cartas até casas escolhidas aleatoriamente pela cidade – era só encontrar uma bandeira de caixa de correio virada para cima na casa de alguém tolo o suficiente para colocar suas cartas na caixa durante a noite em vez de fazer isso pela manhã, e então enfiar o envelope dentro da caixa.

Tomando cuidado.

Alerta.

Sebastian Taylor não era o tipo de homem com quem se brinca.

Ele entrou na garagem, ligou as luzes e foi até seu Lexus RX, correta

mente chamado de veículo utilitário de luxo em vez de veículo utilitário esportivo. Abriu a porta do motorista.

E sentiu a lâmina, fria e veloz, morder seu tendão de Aquiles direito...Sentiu a força em sua perna ir embora enquanto o intruso cortava o tendão de sua perna esquerda também, ainda mais profundamente.

E mesmo que Sebastian tenha sido treinado para lidar com a dor, ele involuntariamente engasgou enquanto desabava no chão.

Mas quando chegou ao chão, ele já havia sacado sua Glock.

Ele girou, de barriga para baixo, e mirou, mas percebeu tarde demais que o homem havia dado a volta por trás do Lexus, e antes que pudesse virar e atirar o intruso estava sobre ele, forçando um joelho contra suas costas, pressionando seu peito contra o concreto e agarrando seu pulso e seu antebraço direitos.

Não.

Sebastian reconheceu a posição das mãos do homem e soube o que estava prestes a acontecer.

Não.

Mas por causa do ângulo estranho, ele era incapaz de impedir.

Não!

Com uma força rápida e precisa, o homem se inclinou para a frente enquanto simultaneamente girava as duas mãos.

Houve um estalo úmido e grave quando os ossos do pulso direito de Sebastian se quebraram.

O homem tirou a Glock de sua mão mole e lançou-a para longe do alcance, em direção à porta da cozinha.

E, por um momento, Sebastian sentiu apenas a dor subindo pelo seu braço e por sua perna. Ele ficou parado, tentando controlá-la.

Não conseguiu.

Agora de pé, o homem tinha recuperado a navalha que devia ter der

rubado depois de cortar os dois tendões de Aquiles de Sebastian.

– Desculpe pelo pulso, governador. Você sacou sua arma mais rápido do que imaginei. Você realmente é bom no que faz.

Sebastian se virou para ver seu agressor.

Máscara de esqui preta. Blusa preta. Jeans. Luvas de couro marrom.

A navalha que ele segurava pingava sangue vermelho e brilhante no concreto. Mas quem? Quem era ele?

Alguém do seu passado?

Um alvo que ele não havia acertado?

Controle a dor. Controle a dor.

Não, ele sempre havia cumprido suas tarefas à risca. Nunca deixava nenhuma ponta solta.

– Quem é você? – Sebastian perguntou, escondendo qualquer sinal de dor de sua voz.

Por um momento, o homem o observou como se ele fosse um animal em exposição, e não um ser humano.

– Você pode me chamar de Giovanni. Vamos fazer desse jeito esta noite, o que você acha, Shade?

Como ele sabe quem você é?

Sebastian apertou os olhos.

– Por que a máscara de esqui? Só covardes se escondem por trás de máscaras.

– Você é um homem esperto. Eu localizei e desabilitei três de suas câmeras de vigilância, mas é possível que você tenha mais. Eu não podia me arriscar a ser identificado pela polícia depois que você estiver morto.

Sebastian deixou a ameaça de morte pairar sobre ele. Ele não ia morrer naquela noite.

O homem que preferia ser chamado de Giovanni analisou a crescente poça de sangue aos pés de Sebastian, então sacou um lenço branco do bolso e começou a limpar a navalha.

– Esse pulso deve estar doendo mesmo. Os tendões de Aquiles também. Ouvi falar que apenas partos e fraturas no fêmur são mais dolorosos que ter esses tendões cortados.

Sebastian sabia que xingar, implorar, chorar não ajudaria em uma situação daquelas. Então, apesar da dor estonteante, ele se manteve quieto. Apenas ouviu e planejou. Preparou-se para responder.

O homem terminou de limpar a lâmina, dobrou a navalha e deslizou-a para dentro do bolso da calça.

Sebastian podia sentir as contrações em suas pernas. Ele tentou controlá-las, interromper os tremores involuntários, mas não conseguia, e Giovanni deve ter percebido.

– Não tenha vergonha – Sebastian percebeu um toque de admiração na voz do homem. – Sério. Você está lidando com a dor incrivelmente bem.

Lentamente, Sebastian pressionou a mão esquerda contra o concreto frio. Ele precisava de apenas um momento para deslizar a mão até a arma reserva.

Com cuidado. Sim, agora era uma hora em que ele era grato por ser cuidadoso.

A Smith and Wesson M&P 340, com armação de escândio, calibre .357 de cano curto localizada em seu coldre de tornozelo era uma das mais poderosas armas de cano curto que a S&W já havia feito.

As coisas mais finas.

Não era um homem com quem se brinca.

Giovanni pegou a maleta que Sebastian havia derrubado quando caiu e colocou-a na bancada situada ao longo da lateral da garagem.

– Governador, você não ouviu as histórias? Sobre o louco que espera debaixo dos carros das pessoas em suas garagens e em estacionamentos de shoppings e então, quando estão prestes a entrar no carro, corta os tendões para incapacitá-las? Você deveria ter verificado debaixo do seu carro.

Sebastian o viu abrir a maleta e remover o envelope contendo as fotos de Tessa Bernice Ellis. Ele pegou uma caneta hidrográfica preta do bolso e escreveu algo que Sebastian não pôde ler no envelope.

Pegue a arma. Apenas pegue a arma.

Giovanni pegou uma bolsa esportiva preta debaixo do Lexus onde ele aparentemente havia se escondido mais cedo.

– Você conhece a história sobre como o tendão de Aquiles recebeu esse nome, não é? – ele colocou a bolsa no chão, fora do alcance de Sebas-tian. – Aquiles. O maior guerreiro da Grécia, mas ele tinha uma fraqueza.

Paciência. Paciência.

– Existia somente um lugar onde ele era vulnerável. Aquele tendão na parte de trás da perna, logo acima do calcanhar. Sua única pequena fraqueza. E você sabe qual foi a sua? Orgulho. Soberba. Você encobriu seus rastros, mas nunca realmente achou que podia ser encontrado.

Com o pulso quebrado, Sebastian só poderia usar a mão esquerda. Mas ele sabia que ainda poderia disparar uma arma.

Lentamente, ele começou a arrastar a perna pelo concreto em direção à sua mão.

– Você foi cauteloso, mas não se manteve atento. Mas não se sinta mal. Todo mundo tem isso. Aquele lugarzinho onde a flecha vai perfurar.

Giovanni abriu a bolsa esportiva e olhou para seu relógio.

– Eu gostaria de poder dizer que nosso tempo juntos será prazeroso, mas infelizmente as coisas vão ficar um pouco bagunçadas.

Sebastian puxou a perna mais alguns centímetros na direção de sua mão. Só mais um pouco e você consegue.

Mais um pouco.

Giovanni pegou um cortador de tapetes. Abriu a lâmina. Colocou-o sobre a bancada.

Enquanto Sebastian mexia a perna, o calcanhar raspava no chão, abrindo o corte em seu tendão de Aquiles. Ele respirou fundo para calar a dor. Descansou a perna. Estabilizou-se. De algum modo, conseguiu não gritar.

Giovanni sacou dois rolos de corda da bolsa e os colocou organizadamente à sua frente na bancada.

Então, um alicate.

Depois, uma faca de caça.

Sebastian sabia que não tinha muito tempo.

Ele agarrou a perna, puxou-a para cima e o ferimento abriu. Sua perna se contorceu em espasmos, e uma tontura escura passou por ele, mas ele não gritou. Apenas alcançou a arma.

Tudo em um instante, Sebastian instintivamente abriu o coldre, pegou a arma de cano curto e girou-a em direção a Giovanni.

– Eu tenho uma .357 mirada para suas costas – ele estava surpreso com sua calma, considerando a tremenda dor que sentia.

Giovanni congelou.

O jogo havia mudado.

– Tente qualquer coisa e eu atiro – mas antes de Sebastian matá-lo, ele queria saber quem era aquele homem. – Agora, mãos para o alto, ou vou garantir que você morra muito, muito lentamente. Afinal, como vocêdisse antes, eu sou bom no que faço.

O homem que preferia ser chamado de Giovanni não se moveu. Sebastian não queria matá-lo até ter algumas respostas, mas se o homem não obedecesse, ele apertaria o gatilho e não deixaria isso incomodá-lo nem por um instante.

– Estou te falando, você não quer abusar da sorte. Coloque as mãos para o alto e vire-se para mim.

Giovanni lentamente levantou as mãos e começou a virar.

– Quem te mandou?

Nenhuma resposta.

– Eu perguntei: quem te mandou? Como você me encontrou? Quando Giovanni finalmente o encarou, Sebastian pôde ver uma tremida levemente visível descer pela garganta do homem. Ainda sem resposta.

– Essa enrolação vai te custar caro – Sebastian disse. – Agora, tire a máscara.

Giovanni deixou seus olhos se moverem rapidamente na direção da Glock de Sebastian caída no chão perto da porta da cozinha. Mas aquela olhada entregou tudo.

Assim que ele pulou na direção da arma, Sebastian apertou o gatilho da sua .357.

Um clique.

Nada mais.

Giovanni tropeçou pela garagem. Sebastian atirou novamente.

Um clique.

Nada. De novo.

Como poderia a arma estar vazia? Você sempre a mantém carregada. Sempre! Giovanni levantou-se, segurando a Glock. Encarou Sebastian.

– Como eu estava, um momento atrás? – ele perguntou. – Eu pareci com medo? Eu ensaiei, sabe, em frente ao espelho. Eu não sou um ator tão bom, e não achei que seria convincente se eu improvisasse. Mas eu enganei você, não foi? Parece que sim.

Ele mirou a Glock no rosto de Sebastian.

Não!

Sebastian respirou fundo.

Giovanni atirou.

Nada.

O homem observou friamente Sebastian e balançou a cabeça, desapontado.

– Governador, por favor. Você realmente acha que eu deixaria você entrar na garagem com alguma de suas armas carregada? Você é um homem muito perigoso. Isso não seria muito esperto da minha parte. Você não deveria deixar a arma em sua cama. Ou, ainda, deixar sua Glock sobre a bancada do seu banheiro. Alguém poderia entrar na sua casa e esvaziá-las enquanto você está tomando banho.

– Quem é você? – Sebastian ouviu sua voz indo da confiança para o medo.

A única resposta de Giovanni foi pegar uma das cordas da bancada e, com a rapidez de um gato, correr em direção a Sebastian. Antes que ele pudesse sair do caminho, Giovanni enrolou a corda em torno do seu pulso não machucado e torceu o braço de Sebastian na direção da bancada. Um instante depois, ele havia amarrado o pulso a uma das pernas da bancada.

Agora ele estava de pé, pegando a outra corda.

Sebastian sabia que não podia deixar Giovanni amarrar sua outra mão. Se ele fizesse isso, ficaria completamente desamparado. Tudo acabaria. Ele rolou na direção do pulso amarrado e tentou puxar a corda, tentou desamarrá-la, mas como o pulso estava quebrado, ele não tinha forças para fazer isso.

Então Giovanni veio em direção a ele novamente. Sebastian tentou lutar contra ele, mas seu agressor torceu seu braço com força, e um dos ossos em seu antebraço arrebentou-se. Dessa vez Sebastian não pôde evitar e soltou um grito agudo de dor. A estranha protuberância na manga do paletó mostrou que o osso do braço havia atravessado a pele.

– Está tudo bem – Giovanni estava puxando seu braço na direção do carro. – A maioria dos homens já estaria chorando agora. Eu tenho enorme respeito por você – ele soava genuinamente impressionado. – Você está fazendo um trabalho admirável!

Sebastian puxou seu pulso amarrado, mas o nó que Giovanni havia feito só ficava mais apertado. Com um último surto de força, ele tentou empurrar Giovanni, mas falhou.

Em poucos segundos, Giovanni havia amarrado o pulso quebrado de Sebastian nas rodas de liga de alumínio de 18 polegadas e sete raios de seu veículo utilitário de luxo, o Lexus RX de cem mil dólares, e Sebastian Taylor estava indefeso, com os braços esticados, um para cada lado, os dois pulsos amarrados.

Giovanni examinou as cordas para garantir que eram seguras.

– Pronto – então ele se levantou, andou na direção da bolsa esportiva e pegou um serrote.

– Tudo bem se você gritar, de verdade, não vou pensar menos de você – ele mexeu novamente na bolsa e pegou uma tira grossa de tecido.

– Agora, eu posso te amordaçar até acabarmos, se você quiser. Pode tornar as coisas mais fáceis. Baseado no que eu vejo, morder uma mordaça parece ajudar as pessoas a lidar com a dor. Para mim, tanto faz. Deixo a escolha com você.

Sebastian estava cansado de ser legal. Ele soltou uma enxurrada de xingamentos e terminou dizendo:

– Você é um homem morto. Não faz ideia de com quem está lidando. Giovanni colocou a mordaça de volta na bolsa esportiva.

– Tudo bem, então. Vamos começar.

Carregando o serrote, ele se ajoelhou e posicionou a lâmina contra o joelho esquerdo de Sebastian, logo abaixo da patela. Então segurou a perna com força contra o concreto com a outra mão.

– Nós temos uma noite longa à nossa frente. Eu não vou muito fundo nesse primeiro corte, então sugiro que você não se mexa demais. Só vai fazer mais bagunça e me obrigar a demorar mais. Eu acho que você não ia gostar. Mas, novamente, a escolha é sua.

Sebastian sentiu o medo, bruto e profundo, atravessá-lo. Ele cerrou os dentes, tentou se preparar para o que estava por vir, sentiu um grito se aproximando, mas então, antes que o homem pudesse começar a serrar, ele ouviu o barulho do cascalho na parte de fora da garagem.

Um carro.

E um pequeno brilho de esperança. Talvez, só talvez, ele ainda pudesse sair dessa vivo.

Giovanni correu para o interruptor de luz e desligou-o. Apenas o leve brilho dos faróis e do luar pela janela permaneceram.

Ele pegou a mordaça.

– Parece que isso não é mais opcional...

Sebastian começou a pedir socorro, mas seu grito foi rapidamente interrompido quando Giovanni colocou o tecido grosso em sua boca e amarrou atrás da cabeça.

Fora da janela, os faróis piscaram e uma porta de carro se abriu e depois se fechou.

Giovanni levantou-se.

– Deve ser Brigitte. Muito pontual. Muito solícita. Depois de receber aquela mensagem de texto que mandei para ela mais cedo em seu nome, ela deve ter decidido se apressar – Giovanni pegou outro pedaço de corda da bolsa esportiva. – Acredito que você disse a ela que houve uma mudança de planos. Que você planejou uma noite inesquecível e se ela poderia, por favor, trazer comida chinesa. Achei que seria mais fácil desse jeito, ter vocês dois no mesmo lugar, e, além do mais, eu gosto de comida chinesa e tenho certeza de que no fim dessa noite eu vou estar faminto. É conveniente para todo mundo.

Sebastian tentou gritar, tentou tirar a mordaça de sua boca, mas não era possível.

Na luz fraca da garagem, ele viu Giovanni sacar a navalha.

– Sabe, de acordo com a história, eu preciso matá-la primeiro, deixar você assistir, então é assim que vamos fazer – ele parou e olhou para baixo, para Sebastian, com simpatia. – Bom, tudo bem, então. Eu já volto – e desapareceu pela porta que levava para a casa.

Sebastian Taylor, o ex-assassino que chamava a si mesmo de Shade, não acreditava no Todo-Poderoso. Se ele acreditasse, teria rezado, teria implorado por piedade divina por tudo que ele havia feito em seu passado secreto, mas, em vez disso, ele apenas pôde xingar seu captor, e o mundo e sua própria falta de cuidado. E lutou sem esperança contra suas amarras enquanto seus tendões rasgados escoavam sangue no chão da garagem, marchando permanentemente os saltos de seus sapatos de couro italiano de 495 dólares.

Ele ouviu a porta da frente se abrindo.

Brigitte havia chegado.

A longa e última noite havia começado.


5

Sexta-feira, 16 de maio
Denver, Colorado

6h32

Acordei.

Tomei banho.

Me vesti.

Encontrei meu celular e vi que Cheyenne havia deixado uma mensagem de voz: o laboratório forense havia ligado o DNA de Chris Arlington ao do coração.

– Então, para ser franca – ela não soava insensível, apenas foi direto ao assunto –, ele não é mais um suspeito. – Ontem parecia bem possível que Chris fosse a segunda vítima, então a mensagem dela não me surpreendeu.

E agora, o desafio: encontrar uma maneira de concentrar meus pensamentos no julgamento vindouro em vez de deixar minha atenção ser desviada para as mortes no Colorado. Eu sempre trabalho em múltiplos casos simultaneamente, mas tirar um deles da minha cabeça enquanto trabalho em outro é uma luta constante.

Levei um momento para revisar minhas anotações sobre o caso de Basque, então terminei de arrumar minha mala e fiz um pouco de café para conseguir sobreviver à manhã. Eu estava na metade de uma xícara de Sana’ani – um grão encorpado e robusto do Iêmen – quando minha enteada Tessa apareceu na porta da cozinha, colocando seu piercing da sobrancelha para ir para a escola.

– Oi – ela disse. Ela vestia jeans desbotados, tênis de lona e uma camiseta que dizia “Viva o Verde ou Morra”. A linha de cicatrizes finas que ela havia feito em si mesma nos meses após a morte da mãe era visível em seu braço direito, e a ponta de sua tatuagem de corvo aparecia por debaixo de sua manga esquerda. A sombra de olho, o batom e o esmalte das unhas combinavam com o cabelo preto e davam personalidade às suas feições delicadas, fazendo-a parecer bonita, mas também levemente ameaçadora. Do jeito que ela gostava.

– Bom dia – eu disse.

– Eu sei que você não vai me dizer onde é esse julgamento, mas eu vou perguntar mesmo assim – ela pegou uma blusa do cabide na parede e jogou o cachecol prateado que eu havia comprado para ela na minha última viagem para a Índia em torno do pescoço. – Onde é o julgamento, Patrick?

Por causa de seus cabelos negros e espírito livre, peguei a mania de chamá-la de Raven3. às vezes – parte do motivo pelo qual ela havia escolhido aquela imagem para sua tatuagem – e agora eu disse:

– Eu não posso te contar sobre o julgamento, Raven. Você sabe que minha vida profissional e minha vida familiar têm de estar...

– Separadas. Eu sei. Só pensei em perguntar.

Ela andou entre as caixas de mudança e serviu-se de uma xícara de café. Nenhum de nós sabia quem era o pai biológico dela, e ela não tinha nenhum parente próximo, então, após a mãe ter morrido, nós dois sofremos juntos, lutamos juntos e finalmente acabamos nos amando de um jeito que me fazia sentir como seu verdadeiro pai.

Olhei o relógio. Com minha permissão do FBI eu poderia ir direto para o portão de embarque do aeroporto, então a segurança não seria problema, mas o trânsito poderia ser.

– Escute, eu preciso...

– Esse é diferente, não é? – ela estava olhando para seu café e girando uma colher dentro dele, apesar de eu não me lembrar de ela ter colocado nada dentro da caneca.

Pensei que eu sabia aonde ela estava querendo chegar com a pergunta, mas esperava estar errado.

– O que você quer dizer?

– Tipo, quando você estava se preparando pra isso e tal – ela não levantou o olhar da xícara de café. – Eu observei você. Dava pra ver. É...

Ela deve ter parado para procurar pela palavra certa, mas por mais brilhante que ela fosse, eu duvidei. Suspeitei que ela estava esperando para que eu completasse o espaço vazio – provavelmente com a palavra pessoal –, mas em vez disso, eu apenas disse:

– Sim. Esse é diferente.

Uma pequena pausa. Ela pegou a xícara e passou andando por mim em direção ao quarto dela.

– Vamos. Me ajude com meu colar. Eu nunca consigo fazer esse fecho funcionar.

Chegar ao aeroporto na hora seria difícil, mas eu podia ver que algo mais importante além do colar estava na cabeça dela. Eu decidi me dar mais alguns minutos.

Quando cheguei ao quarto dela, ela já havia colocado o café sobre a cômoda e estava procurando em sua caixa de joias.

– Quem é? Esse cara, esse julgamento. Pelo menos me diz o nome dele.

– Tessa, você sabe que eu não posso falar sobre meu...

– Só o nome.

– Ele é um assassino, Tessa, é tudo que você precisa saber. Fui eu que o peguei, há muito tempo. Antes mesmo de conhecer sua mãe.

– Então o que ele fazia com suas vítimas?

– Ele as matava.

– Ele fazia mais que isso, ou não te incomodaria tanto.

– Tessa...

– Vamos. Você sempre faz isso, você toca no assunto e daí não quer terminar de falar sobre ele.

Pisquei.

– Eu não toquei no assunto, você que tocou.

Ela pegou o colar de turmalina negra que eu havia dado para ela em outubro passado, no seu aniversário.

– Pare de discutir – ela me deu o colar, sentou-se na cama e me observou pelo espelho do quarto.

– Não estou discutindo – passei o colar em torno do pescoço dela. Tentei travar o fecho.

– Está, sim.

– Não estou.

– Eu digo que você está discutindo.

– E eu digo que...

Ela sorriu e levantou suavemente a sobrancelha.

– Olhe – adolescentes não deviam poder fazer isso. Devia existir uma regra. – Conversamos sobre isso depois.

– Agora você está evitando minha pergunta.

Eu ainda estava brigando com o fecho. Ela estava certa, era complicado.

– Tessa, você odeia ouvir sobre cadáveres. Sangue, todo esse tipo de coisa. Aliás, a propósito – apontei para os pôsteres da banda favorita dela, Death Nail 13, e a foto emoldurada de Edgar Allan Poe, seus olhos escuros e perturbadores olhando para mim através do quarto –, o que acontece com você e essas bandas, e Poe? Quero dizer, tudo que ele escreve é sobre a morte e o macabro.

– Apenas uma das minhas incoerências cativantes, parte do que me faz ser tão adorável.

Incoerências cativantes.

Ótimo.

– Você escuta death metal e dorme com um ursinho de pelúcia.

– Você está tentando mudar de assunto, e não vai funcionar. Apenas resuma para mim. Em linhas gerais.

Resolvi o problema do colar. Tentei pensar em um jeito apropriado de descrever para uma garota de 17 anos o que Basque havia feito, e finalmente acabei dizendo:

– Esse homem, ele fez muitas coisas ruins.

– Ah, jura? Um assassino que faz coisas ruins? Que coisa estranha – ela ainda estava me observando pelo espelho. – Eu nunca teria imaginado isso – então, após um momento, quando eu não respondi, sua voz ficou mais fina, mais séria. Uma ponta de apreensão. – Quão ruins?

Uma pausa.

– Ruins tipo Silêncio dos Inocentes – eu disse finalmente. Ela olhou para mim pelo espelho.

– Você está com medo dele?

– Olha, podemos parar com isso? Eu preciso ir para o aeroporto...

– Você está? – ela virou-se e me olhou diretamente nos olhos.

Admitir que eu estava com medo de alguém não parecia coisa de um

“valoroso agente do FBI”, mas percebi que ela saberia se eu não fosse sincero com ela. Tomei um pouco de ar.

– O que ele fez para aquelas mulheres... Ele me fez questionar certas coisas. Sobre a quantidade de maldade que somos capazes de fazer, sobre o que cada um de nós é...

Ela me observou imóvel por um momento, e eu podia ver sua curiosidade insaciável lutando contra sua aversão sobre a morte.

– Então – ela disse afinal –, você está com medo dele.

Eu disse a ela a verdade.

– Sim.

Ela ficou quieta por um longo tempo.

– Bom – ela disse finalmente. – Fico feliz.

Eu não estava certo sobre o que dizer.

Um momento sombrio se estabeleceu à nossa volta, e ainda que eu precisasse ir embora, não queria deixá-la sozinha pensando sobre assassinos e morte.

– Boa sorte nas suas provas.

– Elas só começam segunda-feira.

– Saquei. E você vai passar a noite na Dora hoje, certo? – quando ela acenou com a cabeça, acrescentei: – Não atrapalhem a noite de sono do dr. Bender.

– Certo.

Quando viajo, Tessa normalmente fica com meus pais, que moram a cerca de 15 minutos, nos arredores de Denver. Essa semana, meu pai estava em uma viagem de pescaria em Wisconsin com meu irmão Sean, mas minha mãe ainda estava em casa.

– Ligue para Martha se tiver algum problema.

– Ligo – ela pegou um chapéu de lona cinza do mancebo e colocou na cabeça. O chapéu parecia ter sido atropelado uma dúzia de vezes por um caminhão.

– Quando você voltar para casa de manhã, empacote algumas coisas, ok? Ela resmungou e virou os olhos.

– Eu não entendo por que temos de levar tanta coisa. Nós só vamos passar o verão, não é como se...

– Empacote algumas coisas, ok?

– Tanto faz.

– Que na verdade é o seu jeito de dizer “eu te amo e ficarei feliz em fazer isso para você, Patrick”. Não é?

Um pequeno sorriso.

– Possivelmente.

Deixamos o quarto dela e no meu caminho pela casa, peguei minha mala e a bolsa do computador no meu quarto e então a encontrei na porta da frente.

– Tudo bem. Eu devo voltar amanhã por volta do meio-dia. Podemos almoçar juntos – coloquei minha bagagem no chão e dei um pequeno abraço nela. – Preciso ir.

– Espere – ela me segurou pelo braço. – Existe alguma chance de ele ser solto?

– Sempre tem uma chance.

Ela me olhou de um jeito inquieto e solene.

– Se ele te assusta... Quer dizer... Tem uma... Só faça um bom trabalho, ok? Tudo que posso fazer é dizer a verdade.

– Ok – eu disse.

Então beijei-a na testa, peguei minhas malas e parti para Chicago.


6

Tribunal Criminal do Condado de Cook

Esquina da West 26th com a South California Avenue

Chicago, Illinois

11h52 no fuso horário central americano

Com o número de manifestantes a favor e contra a pena de morte cercando o tribunal, a South California Avenue havia sido fechada, então o dr. Calvin Werjonic e eu estacionamos a um quarteirão de distância. Saímos do carro dele e protegi os olhos da chuva torrencial.

Apesar da tempestade, havia atiradores posicionados por toda a volta do tribunal.

Por causa da possibilidade de Sebastian Taylor aparecer, Ralph coordenou esforços com o Departamento de Polícia de Chicago e o U.S. Marshals Service4. para fornecer proteção. Mas mesmo com a ajuda deles, eu não tinha certeza de que conseguiríamos localizar Taylor. Ele era um dos homens mais esquivos e perigosos que eu já havia conhecido, e eu não conhecia muitas pessoas que fossem boas o bastante para detê-lo.

A mensagem gravada na mina não continha nenhuma ameaça específica contra mim, mas se Taylor estivesse aqui, eu queria pegá-lo, então, mesmo tendo um estacionamento seguro no subsolo do tribunal, eu insisti que não o usássemos.

Eu queria estar em um local aberto, onde ele pudesse me encontrar. Agora, enquanto eu procurava algum trocado nos bolsos, Calvin, que tinha perto de 75 anos e parecia estar prestes a ser carregado pelo vento, apertou o casaco londrino contra si mesmo.

– Te encontro lá dentro, garoto – seu leve sotaque inglês dava sabor a cada palavra.

– Tudo bem.

Quando ele desapareceu pela chuva escura, relâmpagos serpenteavam pelo céu, deixando o soar dos trovões pelo caminho. Coloquei algumas moedas no parquímetro.

Calvin Werjonic, Ph.D, doutor em Jurisprudência, havia sido meu orientador nove anos atrás, quando comecei meu programa de doutorado em criminologia ambiental. Esse também foi o ano em que passei de detetive do Departamento de Polícia de Milwaukee a agente do FBI.

Pelos próximos quatro anos me enterrei nos meus estudos de pós--graduação, enquanto ainda trabalhava em tempo integral para o National Center for the Analysis of Violent Crime do FBI. Anos difíceis. Muito pouca vida pessoal. Apenas alguns poucos amigos, mas quando eu finalmente terminei meus estudos, Calvin deixou de ser meu professor para se tornar um deles.

Parquímetro alimentado, atravessei a rua em direção ao tribunal, de olho nos manifestantes. Eu pensei que as tempestades iriam mantê-los longe, mas apesar do tempo ruim, parecia que 300 ou 400 pessoas haviam aparecido.


Imaginei quais delas poderiam ser agentes do FBI ou policiais disfarçados. Enquanto caminhava para o prédio, cogitei a possibilidade de Taylor não ser quem deixou o dispositivo de gravação na boca de Heather. Na verdade, poderia ter sido praticamente qualquer uma daquelas pessoas na multidão.

Procurei por rostos familiares, por qualquer um que estivesse fazendo contato visual desnecessário comigo, ou propositalmente evitando-o, mas não vi nada de anormal.

Havia pelo menos 150 apoiadores da pena de morte, alguns carregando placas com fotos ampliadas das vítimas, outros segurando cartazes que diziam “Olho por olho. Vida por vida”.

As pessoas reunidas do outro lado da rua seguravam cartazes com “A morte Não é Igual à Justiça” e “Recuperar Para Não Matar”. Os dois grupos tentavam gritar mais alto que o outro.

Duas visões de justiça.

Dois lados da equação.

Felizmente, a polícia havia liberado um caminho e o bloqueou com cavaletes de madeira, portanto pude chegar à escadaria do tribunal. Subi com o vento rasgando pelo canal entre o prédio administrativo vizinho e o tribunal, fazendo a chuva jorrar em meu rosto.


7

Calvin estava secando a chuva do casaco quando o encontrei no saguão de entrada.

– Que cena lá fora – ele disse.

– Não estou surpreso – enxuguei o cabelo. – Considerando quem está sendo julgado. – Mesmo estando na parte de dentro, a temperatura não havia mudado. O sistema de ar central não deveria estar funcionado apropriadamente. Imaginei que estava fazendo em torno de 16 °C. Talvez mais frio.

Calvin ficou em silêncio por um momento e, então, disse:

– Estou um pouco surpreso por eles não terem reconhecido você, garoto.

– Faz 13 anos.

– Sim – ele disse pensativo. – Acho que sim.

Eu estava examinando os rostos dos repórteres e dos transeuntes no saguão, tentando não parecer que estava olhando. Alguns membros das famílias das vítimas usavam faixas pretas nos braços.

– Além do mais, assassinos são muito mais memoráveis do que os caras que os pegam. Ninguém faz figurinhas de agentes do FBI ou de policiais, mas três companhias diferentes fazem com assassinos em série.

– Isso é um pouco perturbador.

– Mais do que só um pouco.

Um conjunto de repórteres olhou em nossa direção e aparentemente reconheceu Calvin, pois eles começaram a vir até nós como um rebanho, os olhos fixos nele. Ele estava acostumado com a atenção da mídia, sendo um dos especialistas em criminologia mais acionados pela CNN, então não me surpreendeu, mas eu gosto de entrevistas da mídia tanto quanto gosto de café de beira de estrada, e acho que Calvin sabia disso, pois passou por mim para interceptá-los.

– Te vejo na sala do tribunal – ele disse.

Agradeci e fui em direção ao posto de segurança onde seis poli ciais estavam de guarda ao lado de três detectores de metal. Um dos policiais, um homem atarracado com uma cabeça incomum coberta por cabelos cortados bem rente, acenou para que eu desse um passo à frente. Demorou um pouco para que eu esvaziasse meus bolsos e colocasse minhas chaves com minhas lâminas de abrir fechaduras, junto com minha minilanterna de LED e alguns trocados, na máquina de raio X.

Antes que o policial pudesse pedir, dei a ele minha identificação e disse:

– FBI.

Então removi minha SIG P229 .357 e a faca que Ralph havia me dado

– uma Randall King TSAVO-Wraith preta, automática – e entreguei a eles também.

A Wraith não era o tipo de faca que eu teria escolhido por minha conta, mas Ralph havia me dito que eu precisava de uma faca boa e tinha me dado aquela mês passado. Tessa disse que a Wraith era “animal”.

O que era na verdade uma descrição muito boa.

O policial, cujo distintivo dizia Jamel Fohay, colocou a arma e a faca em uma mesa ao lado dele, então olhou para minha identificação enquanto eu colocava a bolsa do computador na esteira transportadora.

– Federal, é? – ele disse. – Um cara grande passou por aqui há alguns minutos.

Deveria ser Ralph.

– Agente Hawkins.

– Vocês dois estão aqui para depor?

– Ele depôs mês passado. Eu vou agora.

Ele não pareceu ter pressa para devolver minha identificação, e a fila de repórteres esperando para entrar no tribunal estava crescendo rapidamente atrás de mim, então tomei minha identificação da mão dele e ele se afastou para que eu passasse.

Ele gesticulou em direção à minha Wraith.

– 75 gramas. Lâmina de aço inoxidável ATS-34. Feita nos Estados Unidos da América. Ótima escolha.

– Você conhece bem facas.

– Eu trabalho na sala de evidências – ele explicou – sempre que não fico preso sendo babá dessa máquina de raio X. Vejo um monte de facas passando. Sempre é bom ver uma Randall King. Vai ter de deixá-la aqui, no entanto. A SIG também. Você conhece o procedimento – ele as colocou dentro de um armário de metal preso à parede. Fechou com uma chave. Deu-a para mim.

Depois de todas as vezes que havia sido convocado como testemunha especialista, eu estava bem familiarizado com os procedimentos e o protocolo do tribunal. Mesmo variando entre jurisdições, eu sabia que aqui em Illinois ninguém podia portar armas no tribunal com exceção dos dois policiais que ficam de guarda na porta principal. Alguns estados permitem que juízes tenham armas escondidas sob a mesa.

Mas não Illinois.

Enquanto pegava meus objetos pessoais, vi a atenção do oficial Fohay mudar para a fila de repórteres se formando no posto de segurança.

– Quando você depuser – ele disse –, lembre-se daquelas mulheres. Eu lembro delas todos os dias, pensei.

Mas em vez de responder, peguei minhas coisas e me dirigi para os elevadores.

Sim, eu me lembro delas; e agora mais do que nunca, pois um erro que cometi quando prendi o assassino pode ser suficiente para libertá-lo.


8

Basque usava um matadouro abandonado.

Era para lá que ele levava as mulheres. Era onde ele as torturava, sempre tomando cuidado para mantê-las vivas o suficiente para que o vissem remover cirurgicamente e comer pedaços de seus pulmões.

Baseado nos relatórios do médico forense, às vezes ele conseguia manter as vítimas vivas por mais de 12 horas – um fato que ainda me causava calafrios.

Quando o encontrei no matadouro, ele estava de pé sobre Sylvia Padilla, segurando um bisturi.

Gritei para ele largar a faca e ele tentou fugir, atirando em mim com uma Smith & Wesson Sigma, acertando meu ombro esquerdo. Quando minha arma falhou, corri na direção dele e lancei um gancho de carne em seu rosto. Ele se esquivou e consegui derrubá-lo e algemá-lo. Então corri para tentar salvar Sylvia.

E quando fiz isso, ele caçoou dela enquanto ela sofria.

E quando o sofrimento dela acabou, ele caçoou dela enquanto ela morria.

Então, o meu erro.

Eu acertei ele. Forte. Duas vezes. Mesmo ele estando algemado, e sem ter tentado fugir ou resistir à prisão. E em um momento escuro de fúria pelo que ele havia feito, peguei o bisturi para usar nele, mas felizmente consegui me controlar. Seja como for, eu apenas quebrei sua mandíbula.

Mais tarde, por alguma razão que nunca consegui adivinhar, ele disse aos oficiais que o interrogaram que ele havia quebrado a mandíbula quando o gancho de carne o acertou, mesmo nunca tendo acertado.

Naquele momento, eu não queria que nada comprometesse o caso, então, no meu relatório oficial, não esclareci as coisas cuidadosamente como deveria ter feito.

– Houve um confronto – escrevi. – Mais tarde foi descoberto que a mandíbula do suspeito foi quebrada em algum momento durante sua prisão – era verdade, só não era toda a verdade. As evidências físicas eram suficientes para condená-lo, e a defesa não ligou muito para a mandíbula quebrada, especialmente porque o próprio Basque alegou ter sido um acidente. As circunstâncias acerca da luta nunca foram tratadas no julgamento. Ele foi condenado, sentenciado, e acabou assim.

Mas não acabou assim.

Eu ainda carregava a lembrança comigo. Eu havia atacado fisicamente um suspeito e, depois, omitido informações pertinentes no meu relatório. Era um segredo do qual não me orgulhava. E Basque sabia disso. E quando alguém conhece seus segredos, ele tem poder sobre você.

Mais do que tudo, psicopatas anseiam por poder e controle. Então talvez fosse isso. Talvez fosse por isso que ele se manteve quieto por todos esses anos. Não tinha como saber.

Mas uma coisa eu sabia: eu não gostava do fato de Basque ter poder sobre alguém. Especialmente sobre mim.

Encontrei Ralph me esperando ao lado do elevador.

Mesmo ele não sendo tão alto quanto eu, ele ainda tinha mais de 1,80m,

e, com seus ombros largos, ele parecia preencher todo o corredor. Ultimamente, ele vem tentando voltar a levantar pesos como fazia quando era um Army Ranger,5. antes de entrar para o FBI. Talvez fosse uma crise de meia-idade, não sei. Pelo que ouvi, ele estava fazendo repetições com 100 quilos – o que queria dizer que ele provavelmente conseguiria levantar um máximo de 180 quilos. Nada mau para um cara com quase 40 anos.

– Vamos subir pelo caminho de trás – ele disse. Ele estava comendo algum tipo de petisco branco do tamanho de um M&M. Empurrou uma porta próxima e eu o segui através de um corredor estreito em direção às escadas dos fundos.

– Alguma coisa sobre o Taylor? – perguntei.

– Nada ainda. Se ele estiver aqui, é um fantasma.

Passamos por uma janela e eu vi a Cadeia do Condado de Cook envolta por cercas de arame farpado logo do outro lado de um beco. Era ali que estavam mantendo Basque.

Quando eu ainda era detetive no Departamento de Polícia de Milwaukee, trabalhando no caso de Basque, Ralph havia me encorajado a entrar para a academia do FBI. Foi alguns anos antes de eu aceitar o convite dele, mas no fim aceitei, e nos tornamos grandes amigos desde então.

Ralph tinha raspado a cabeça desde a última vez que eu o havia visto, e decidi que isso era digno de um comentário.

– Belo corte de cabelo – eu disse.

– Ideia da Brineesha – ele resmungou, esfregando uma enorme pata por sua cabeça. – Disse que fico sexy. Eu me sinto como uma bola de sinuca.

– Eu concordo com sua esposa. Ficou bem em você, amigo.

Mesmo com algumas pessoas cruzando no final do corredor, nós acabamos em uma parte relativamente deserta do prédio. Talvez Ralph tivesse escolhido esse caminho de propósito para que pudéssemos conversar sem ninguém ouvisse nosso papo.

Ele comeu mais do petisco que segurava.

– Lien-hua vai ficar com ciúme quando eu contar a ela que você dis se isso.

Senti uma pontada de arrependimento quando ele mencionou o nome dela. Lien-hua era a mulher com quem eu vinha saindo nos últimos quatro meses, uma colega do FBI, criadora de perfis. Ralph não sabia que nosso relacionamento estava dando seus últimos suspiros, e não parecia o melhor momento para contar para ele, então decidi mudar de assunto.

– O que você está comendo?

A escada que era usada para transferir prisioneiros da cadeia para o tribunal estava bem à frente.

– Passas cobertas com iogurte – ele deslizou a mão para dentro do bolso e sacou outro punhado. Atirou em sua boca.

– Você tá brincando.

– Brineesha me fez ficar viciado nisso semana passada – ele estava falando com a boca cheia. – Você já experimentou? É incrível.

Ele me ofereceu um punhado de seu bolso. Uma bola de fiapos de pano veio junto.

– Não, obrigado – eu disse. – Eu não sou um grande fã de iogurte.

– Como quiser – ele lançou o punhado todo na boca, com fiapo e tudo. – Você não sabe o que está perdendo.

– Nem quero saber.

Passamos por um bebedouro e ele acenou na direção de um banheiro próximo à escada.

– Ei, preciso mijar.

Pensei em como eu teria de ficar preso na sala do tribunal pelas próximas horas e decidi que deveria passar no banheiro também.

Ralph parou no bebedouro para tomar água, então passei por ele, empurrei a porta do banheiro masculino e parei no meio do caminho.

Encarando-me, a um metro de distância e ladeado por um par de enormes policiais do Departamento do Xerife do Condado de Cook, estava Richard Devin Basque.


9

Assim que vi Basque, senti um aperto no peito, um surto agudo de raiva e arrependimento, o passado me soterrando. Se você tivesse mantido a calma após Sylvia ter morrido... Se você tivesse chegado ao matadouro mais cedo, ela poderia estar viva... Se você tivesse desvendado o caso um dia antes...

Ele sorriu para mim.

– Detetive Bowers – por alguma razão, percebi que seus dentes estavam todos no lugar, impecáveis. Sua mandíbula parecia perfeita também; os cirurgiões fizeram um bom trabalho. – Não, espere... é dr. Bowers agora, não é? Um agente do FBI? Como o tempo voa. É bom vê-lo novamente.

Eu não respondi.

Ralph apareceu ao meu lado na porta, bloqueando o caminho.

– Vamos – latiu um dos policiais, conduzindo Basque na direção da porta. – Vamos embora – mas Ralph colocou sua mão no ombro do homem. Na hora, parecia que o cara ia empurrar a mão dali, mas então ele percebeu os músculos no antebraço de Ralph e parou.

– Tudo bem, cara. Deixa ele – Ralph tirou sua mão quando achou que deveria. – Nós podemos conversar por um minuto. Estamos aqui apenas para mijar – mas Ralph não entrou no banheiro, apenas ficou barrando a porta.

Comecei a imaginar o que ele tinha na cabeça; eu tinha a sensação de que ele esperava que Basque tentasse algo para que ele pudesse derrubá-lo. Com força. Eu esperava que não fosse para isso que as coisas caminhariam.

– Só para deixar registrado, então – Basque disse –, eu renuncio a todos os meus direitos de ter um advogado presente. Um papo cairia bem.

– Viram? – Ralph disse para os policiais. – Pronto.

Ambos mediram Ralph e ninguém se moveu. Eles recuaram e todos nós nos encaramos.

Por motivo de segurança, decidi que não falaria com Basque antes de depor para não correr o risco de ter problemas no julgamento.

Ele olhou para mim. Ele quase não havia mudado em 13 anos na prisão. Ainda tinha a aparência confiante e bonita de um galã de cinema, o olhar incisivo e o sorriso de baixar as defesas que tanto serviram a ele para atrair suas vítimas para seu carro. Assim como Ted Bundy e tantos outros assassinos, Basque havia usado charme e carisma como sua arma mais eficaz.

Com a aparência intacta, o tempo que passou na prisão havia servido apenas para endurecer suas feições, emprestar alguns vincos ao lado de seus olhos e envolvê-lo em uma espessa camada de músculos esculpidos que se flexionavam contra o terno de grife que seus advogados sem dúvida haviam comprado para o julgamento. No geral, ele parecia tão arrojado, confiável e elegante como sempre. Talvez até mais.

Um assassino canibal bonito e de aparência respeitável.

Eu costuma ficar chocado quando me encontrava com pessoas que cometiam os mais apavorantes crimes – torturar e eviscerar suas vítimas, comer ou estuprar cadáveres em decomposição – porque os infratores quase nunca têm a aparência que você imagina. Em vez de parecerem monstros, eles se parecem com técnicos de times infantis, professores de faculdade, presbíteros de igreja ou com aquele cara que mora na sua rua – porque na maioria das vezes, é exatamente quem eles são.

Basque mudou sua atenção para Ralph. Mostrou a ele um largo sorriso.

– Agente especial Hawkins. Eu gostei do seu depoimento mês passado. Muito persuasivo, eu achei. E como está Brineesha? Esse é o nome dela, né? Uma gracinha. Está cuidando bem dela, eu espero.

O rosto de Ralph ficou sombrio. Ele deu um passo à frente.

– Assim não – eu pedi a ele silenciosamente, mas tenho certeza de que Basque e os policiais me ouviram. – Não aqui – dirigi-me aos dois homens escoltando Basque. – Leve-o daqui.

Um deles agarrou o braço de Basque, mas ele continuou firme no lugar. Após 13 anos puxando ferro todos os dias, precisaria dos dois para movê-lo dali. Para piorar a situação, Ralph ainda bloqueava a porta.

Eu podia sentir o ar ficando pesado à nossa volta.

– Vamos – eu disse para Ralph, mas ele não se moveu. Nem Basque, e nem os policiais.

Basque olhou para mim novamente. Um sorriso suave e charmoso.

– Todos esses anos eu esperei que você me visitasse na prisão, Patrick. Mas você tem tantos casos para resolver, eu imagino. Eu li sobre vários deles no jornal. Você tem andado ocupado – ele molhou os lábios. – Mas senti falta de te ver.

Ralph estalou o pescoço e disse:

– É, pode ficar muito solitário lá dentro. Tenho de certeza de que você

achou vários...

– Às vezes solitário, robusto amigo, mas nunca sozinho – ele virou-se para encarar Ralph. – Não com o bom Deus ao meu lado.

Ah, eu quase havia me esquecido. Sete meses atrás na prisão, Richard Basque havia encontrado Jesus, assim como tantos condenados diante de uma audiência de condicional ou de um novo julgamento parecem fazer. A perspectiva de liberdade deve ser um forte incentivo para se fazer as pazes com Deus.

Os olhos de Ralph endureceram. Coloquei minha mão em seu ombro para puxá-lo, mas se Ralph quisesse fazer alguma coisa com Basque, eu não imaginava como conseguiria impedi-lo. Os policiais escoltando Basque ficaram tensos também. Tudo estava indo pelo caminho errado. Basque deixou seus olhos escuros se banquetearem na raiva crescente de Ralph.

– Até onde eu saiba – Ralph disse, com os punhos cerrados –, Deus está do lado das ovelhas, e não dos lobos. Alguém como você vai queimar no...

– Ninguém está além da redenção, agente Hawkins.

Agarrei o braço de Ralph.

– Vamos. Preciso ir para a sala do tribunal.

Finalmente, Ralph saiu de lado e os policiais rapidamente direcio naram Basque para o corredor. Enquanto saíam, ele disse por sobre o ombro para mim:

– Patrick, quando isso acabar, espero que possamos nos encontrar novamente em uma situação menos desconfortável, talvez repartirmos o pão juntos. Partilhar do corpo e do sangue.

Suas palavras do corpo e do sangue ecoaram pelo corredor enquanto a porta se fechava e Ralph enchia o lugar de palavras que eu duvidava que Basque poderia encontrar em sua Bíblia recém-desempoeirada.

Olhei para meu relógio. O tempo havia evaporado. Eu precisava correr.

Fizemos o que tínhamos de fazer no banheiro, corremos pelas esca das e chegamos à sala do tribunal bem na hora em que a policial feminina com rosto sério estava se preparando para fechar as portas.


10

12h25

Todos na sala estavam se ajeitando em seus lugares.

Eu nunca havia estado nessa sala do tribunal antes e não pude deixar de pensar que, com suas paredes revestidas, colunas de mármore falso e cadeiras retas de madeira, ela era remanescente dos dias em que o prédio havia sido construído, há cerca de 100 anos.

Sob a luz moderada, tudo parecia imponente – a escrivaninha ampla do juiz, a bancada das testemunhas que se erguia a cerca de dois metros do piso da sala, assentos para mais de 200 pessoas nas galerias. O cheiro de pó e livros antigos preenchia o ar.

Na mesa da defesa, do outro lado da sala, uma mulher esguia e intensa, com seus 40 e poucos anos, estava sentada conversando com Basque. Ela tinha os lábios apertados e dedos finos e estava vestindo o mesmo terno feminino cinza-escuro que havia escolhido para uma entrevista na Fox News semana passada. Eu a reconheci imediatamente: srta. Priscilla Eldridge-Gorman, a advogada principal de Richard Basque. Sua equipe de advogados estava sentada ao lado dela.

Há 13 anos, Basque havia sido julgado e condenado no Condado de Delafield, Wisconsin. Desde então, ele havia sempre afirmado sua inocência e chegou a convencer um professor de direito da Michigan State University a dar uma olhada em seu caso. Por três anos, a professora Renée Lebreau fez seus estudantes de graduação revisarem os procedimentos e transcrições do julgamento, e acabaram encontrando discrepâncias na evidência de DNA e no depoimento de uma das testemunhas oculares que afirmou ter visto Basque deixando a cena de um dos assassinatos. A srta. Priscilla Eldridge-Gorman exigiu que a sentença de Basque fosse reduzida, mas após uma revisão judicial cuidadosa, a Corte do Sétimo Distrito decidiu a favor de um novo julgamento.

E, então, aqui estávamos.

Um homem hispânico muito bem vestido, chegando aos 40 anos,

atravessou apressadamente a sala e escorregou para a cadeira ao meu lado, interrompendo meus pensamentos.

– Bom te ver, Pat.

– Emilio – eu conhecia o procurador-assistente Emilio Vandez de uma rápida reunião que tivemos no mês anterior para nos prepararmos para o julgamento.

Ele pegou uma pilha de pastas de arquivo de sua maleta e colocou-a em nossa frente. Levou um bom tempo ajeitando-as.

– Parece que estamos bem para hoje.

– Fico feliz em saber disso.

Emilio colocou dois lápis ao lado da pilha e, então, cuidadosamente os posicionou em paralelo um com o outro. Respirou profundamente.

– Eu não sei o que há de errado com esse ar-condicionado. Eu deveria ter trazido um suéter – então olhou ao redor da sala como se estivesse procurando pelo motivo de estar tão frio.

Eu tinha ouvido falar que Priscilla Eldridge-Gorman era boa, muito boa, e comecei a imaginar se Emilio Vandez era páreo para ela.

Então, o oficial de justiça pediu a todos que se levantassem, o juiz entrou, e o julgamento de Richard Devin Basque foi retomado.


Vinte minutos antes, escondido e invisível no meio da multidão de manifestantes, Giovanni observou Patrick Bowers entrar no tribunal. Agora, ele voltava para seu carro alugado estacionado a uma quadra da barreira policial.

Ele havia chegado de avião e alugado o carro sob um nome falso, e usava um disfarce enquanto balançava seu cartaz de “A morte Não é Igual à Justiça”.

Ninguém sabia que ele estava lá.

Ele dirigiu até um beco próximo, ligou para o departamento de expedição de Denver e fez uma denúncia anônima reportando o local dos corpos de Sebastian Taylor e Brigitte Marcello. Então lançou o celular pré-pago em uma lixeira.

E, então, tudo estava no lugar.

Por meio de seus contatos, ele sabia que Sebastian Taylor havia tentado subornar membros do júri para que Basque fosse solto. Ele ainda não sabia por que Taylor queria que Basque fosse absolvido, e o governador havia ficado notavelmente de bico fechado a noite toda em relação a seus motivos, até quando as coisas progrediram para mais e mais desconforto. Mas isso não importava. Nada disso importava. O júri sequer daria um veredicto.

Não, Giovanni havia dado seus próprios passos.

Ele ligou o rádio de polícia que havia trazido consigo para monitorar os eventos da tarde.

E aguardou que a história se desenrolasse.


11

O julgamento, que havia sido marcado para começar no fim do outono passado, havia ficado atolado em um lamaçal jurídico por meses – adiado cinco vezes por revisões jurídicas e uma série de recessos e interrupções.

No entanto, isso foi uma boa notícia para mim porque queria dizer que eu não teria de passar por uma fase interminável de declarações de abertura, argumentos e contra-argumentos. Nós poderíamos ir direto ao assunto. E após os rituais preliminares do julgamento e uma hora de interrogatório de Emilio, a srta. Eldridge-Gorman caminhou até o meio da sala e parou por um momento ao lado da mesa contendo os sacos, fotos, esboços e outras evidências físicas para começar seu exame cruzado.

Ela lentamente virou o rosto para o júri.

– Antes de começarmos, eu gostaria de lembrar ao júri que consultamos três dos melhores analistas de DNA do país, e cada um deles corroborou a inocência do meu cliente. O sr. Basque é uma vítima do sistema que passou os últimos 13 anos em...

– Protesto, meritíssimo! – Emilio Vandez estava de pé antes que Priscilla pudesse terminar a frase. – Aqui vamos nós de novo. Ela vai interrogar a testemunha ou apenas reapresentar o caso?

O juiz, um homem de cabelos brancos chamado Lawrence Craddock, olhou primeiro para Vandez, então para Priscilla Eldridge-Gorman.

– Faça logo suas perguntas. Nós já sabemos como você se sente em relação ao réu. Você esclareceu abundantemente nos últimos quatro meses – ele respirou longamente de modo que parecia ter puxado metade do ar dentro da sala do tribunal. Eu tive a impressão de que ele fosse falar mais, mas ele parou.

Ela acenou com a cabeça. Ela provavelmente estava esperando a objeção e estava apenas tirando vantagem da oportunidade para reiterar sua afirmação sobre a inocência de Basque. Só mais um artifício para manipular o sistema a favor de seu cliente. Eu odiava esses jogos de pose e exibicionismo. Com muita frequência eles obscurecem fatos e evidências e acabam comprometendo a justiça.

– Dr. Bowers – a srta. Eldridge-Gorman prosseguiu –, por favor, diga seu nome e função para a corte.

– Agente especial Patrick Bowers. Sou um criminologista ambiental do National Center for the Analysis of Violent Crime do FBI. Atualmente, estou em serviço no escritório local em Denver e, quando necessário, sirvo em uma força-tarefa para crimes violentos em conjunto com o Departamento de Polícia de Denver.

– Mas você já foi detetive.

– Sim. No Departamento de Polícia de Milwaukee, por seis anos. Fui eu que fiz a prisão do réu.

– Sim – ela disse rigidamente. – Foi você. Mas chegaremos lá em um instante. Você poderia gentilmente citar suas qualificações?

Eu já tinha passado por tudo isso com Emilio, mas é típico da defesa pedir a você para repetir suas qualificações para que eles possam sabotar seu depoimento diminuindo-as ou desacreditando-as aos olhos dos jurados.

Repetir meu currículo era a última coisa que eu queria fazer, mas eu não queria que nada interferisse no caso da promotoria, então decidi acabar logo com aquilo. – Estou na divisão de crimes violentos do FBI há nove anos e, como mencionei, fui detetive de homicídios por seis anos. Durante os últimos 15 anos, fui assistente ou investigador principal de 618 casos e sete países, e servi como testemunha especialista em 91 julgamentos criminais e civis. Tenho bacharelado em justiça criminal pela University of Wisconsin-River Falls, um mestrado em criminologia e direito pela Marquette University e um Ph.D em criminologia ambiental pela Simon Fraser University. Também trabalhei como consultor para o National Law Enforcement and Corrections Technology Center6. em Denver, Colorado, estive no conselho da American Academy of Forensic Sciences7. e servi como contato entre a National Geospatial-Intelligence Agency8. e o FBI para ajudar a integrar a pesquisa geoespacial militar com a pesquisa da comunidade policial.

Pronto. Feito. Chega disso.

A srta. Eldridge-Gorman caminhou firme em minha direção. O baru lho forte de seus saltos confiantes ricocheteavam como tiros pela sala.

– E não é verdade, dr. Bowers, que cinco anos atrás você ganhou a Condecoração Presidencial de Serviço Exemplar por Inovação Policial e escreveu dois livros sobre investigação geoespacial, um dos quais ganhou o Prêmio Distintivo de Prata por Excelência em Crimes Verídicos?

– Sim, está correto.

– E, não seja modesto agora, você é um dos maiores especialistas em criminologia ambiental e investigação geoespacial do mundo.

Eu não estava gostando disso.

– Essas são minhas áreas de especialidade.

– Seu currículo é impressionante, doutor – presumi que ela estivesse me chamando de doutor sempre que tinha chance para tentar me fazer parecer CDF. Outra tática. Mais jogos. Ela saboreou um momento de silêncio e então acrescentou: – Parabéns!

– Obrigado – nunca é um bom sinal quando o advogado de defesa começa parabenizando você por suas conquistas. Ela me deu um sorriso artificial e percebi que ela não estava apenas buscando informações, mas já havia me colocado na boca de uma armadilha verbal.

– Como um investigador geoespacial, você estuda horário, local e progressão de crimes, correto?

– Sim.

– E usando modelos computadorizados e análise geoespacial, você cria o que é chamado de “perfil geográfico” para ajudar a diminuir o número de suspeitos ou focar a investigação em uma localização específica?

– Se o caso justifica a criação de um perfil geográfico, sim. Está correto. Olhando além dela vi Calvin no fundo da sala. Ele não estava ali para depor, apenas para observar, e ele deve ter notado algo, pois estava rabiscando ocupadamente em uma caderneta de papel.

– E você usa informações de satélites de defesa para estudar esses locais – ela consultou suas anotações. – Um sistema chamado FALCON.

– Sim: a sigla em inglês para Rede de Operação Secreta e Localizador Aeroespacial Federal.9. É o programa de mapeamento digital geoespacial mais avançado do mundo.

O tom dela mudou da cortesia para a condescendência.

– É justo mencionar, porém, que sua abordagem é de certo modo controversa, não é, dr. Bowers?

– Protesto! – Vandez gritou. – As técnicas de investigação do dr. Bowers não estão sendo julgadas aqui. O sr. Basque está.

– A pergunta dela é relevante – respondeu severamente o juiz Craddock.

– Uma técnica pode ser controversa mas ainda assim eficaz e bem estabelecida – ele olhou para ela. – Mas a srta. Eldridge-Gorman deve se certificar de que não vai insultar ou importunar a testemunha.

– É claro, meritíssimo – ela pensou por um momento. – Deixe-me refazer a pergunta. Suas estratégias investigativas são consideradas por alguns como não convencionais...?

– Investigações deveriam ser mais focadas em descobrir a verdade – eu disse – do que em seguir a convenção.

– E você não procura por motivo?

– Não.

– Nem usa criação de perfil psicológico ou comportamental?

– Não.

– De fato – ela olhou para suas anotações –, você chegou até a escrever, e eu cito: “Eu não ligo para o porquê de alguém cometer o crime. Eu prefiro pegá-lo do que ficar tentando analisá-lo psicologicamente”.

Na verdade, eu tinha orgulho daquela frase.

– Sim. Eu escrevi isso, e o resto do parágrafo também: “Investigadores precisam parar de se perguntar ‘por que?’ e começar a perguntar ‘onde?’. Não importa por que o infrator cometeu o crime, nosso objetivo é descobrir onde ele está”.

– E você até ridicularizou o uso de análise de DNA. Não é verdade?

– Eu nunca ridicularizei, eu apenas não dependo disso. Criminosos assistem demais a CSI. Não é incomum eles deixarem sangue, cabelo, saliva, até sêmen de outras pessoas em cenas de crimes, para desorientar investigações. Eles estão usando o sistema contra nós. E são bons nisso.

– Então, você prefere a criação de perfil geográfico – ela não disse isso como uma pergunta.

– É uma das ferramentas mais eficazes que conheço para diminuir a lista de suspeitos em casos envolvendo infratores seriais.

– Mas dr. Bowers – ela saboreava suas palavras com um sarcasmo que aumentava lentamente –, a criação de perfil geográfico não seria útil apenas se houver cinco ou mais locais de crime? Esse não é o número mínimo necessário para um perfil geográfico preciso?

– Quanto mais casos ligados, mais precisos conseguimos ser, sim. Dados 12 ou mais lugares, nós podemos chegar a 97% de acerto em diminuir a lisa de locais prováveis para a base de ação do infrator.

Agora, ela fingia ignorância.

– Mas como você sabe que uma série de crimes estão ligados? Se vocêtiver, digamos, 16 assassinatos em dois estados por dois anos, como você pode dizer que todos foram cometidos pelo mesmo criminoso?

– A análise de ligação – eu disse –, também conhecida por Análise de Caso Comparativo, é normalmente responsabilidade da polícia local. A ACC é feita através de uma cuidadosa revisão de ligação iniciada pelo infrator, descrições de testemunhas oculares, localização das cenas dos crimes, vitimologia, ou seja, características ou relacionamentos das vítimas que apontam para uma ligação entre os crimes, e evidências físicas encontradas nas cenas dos crimes. Com relação aos 16 crimes pelos quais o sr. Basque é acusado, eu mesmo analisei os dados e tive a certeza de que os homicídios foram cometidos pela mesma pessoa.

– Mas você poderia ter errado?

Olhei para além dela, para as fotografias mórbidas espalhadas pela mesa de evidências.

– É possível. Todas as investigações trabalham com a hipótese de probabilidades, não de certezas.

Pensei que ela fosse se prender ao que falei, mas ela disse:

– E para seu método investigativo funcionar, não é verdade que o infrator deve ter um ponto de estadia estável? Não estar apenas passando pela região?

Ela havia feito uma pesquisa, eu tinha de dar esse crédito a ela. Ela estava citando quase que diretamente do capítulo 15 do meu livro Entendendo o crime e o espaço.

– Está certo – eu disse. – Infratores transitórios distorcem os resultados. Imagine uma pessoa dentro de um armário, pintando as paredes com tinta spray enquanto gira em um círculo. Se ela sair no meio do trabalho, é possível encontrar o local exato onde havia estado se analisarmos os padrões e a densidade das gotículas de tinta nas paredes. Mas seria obviamente impossível fazer o mesmo se ela andasse pelo armário enquanto estivesse pintando.

– Sim, mas e se essa pessoa estiver mesmo se movendo, dr. Bowers? E se o infrator for um viajante, vamos dizer assim? Ele dirige até a cidade, comete seu crime e então retorna para sua casa no subúrbio logo após. Isso é possível, não é? E isso faria o perfil geográfico ser completamente inútil, ou, na melhor das hipóteses, impreciso, correto?

Eu já tinha ouvido todas essas objeções antes, lidado com elas em profundidade no meu livro, abordado algumas delas anteriormente nos procedimentos durante a análise de Emilio.

– Assim como qualquer técnica investigativa, a criação de perfis geográficos tem suas limitações.

A srta. Eldridge-Gorman abriu a boca, mas antes que ela pudesse responder, eu adicionei:

– Mas é assim com qualquer método. Antes de comparar DNA você precisa encontrar algum DNA. É o mesmo com análise de impressões digitais, ou de cabelo, ou de marcas de mordida.

Após uma rápida tomada de fôlego, continuei:

– Nos softwares mais avançados de criação de perfis geográficos, estamos eliminando alguns dos problemas que você acabou de mencionar. Nós incluímos análises de movimento espaço-temporal que calculam o centro médio dos crimes baseado na sequência dos crimes e não apenas no local. Isso nos ajuda a ver se o ponto de ancoragem dos crimes está mudando. Topografias temporais virtuais aprimoradas revelam as mudanças sincrônicas e diacrônicas de padrões de crimes dentro de localidades especificadas. Além disso, adicionamos um modelo Bayesiano que incorpora as pesquisas atuais sobre...

Percebi os olhos vidrados dos membros do júri.

Oh. Isso foi ótimo, Dr. CDF. Brilhante.

Talvez eu devesse ter tratado do uso das estatísticas multivariadas também. Isso teria sido bom. Ou análise de densidade espacial e o uso de rotinas suavizadoras para reduzir os efeitos das barreiras psicológicas associadas a mapas mentais. Tenho certeza de que isso teria impressionado também.

Priscilla parecia satisfeita por ter me induzido a usar jargão técnico.

– Então, em termos leigos – ela disse –, você tem melhorado a tecnologia e refinado seu método desde a prisão de meu cliente há 13 anos.

– Correto.

– Então você admite que quando meu cliente foi preso, sua estratégia investigativa precisava de melhorias.

– Não é exatamente isso...

Um leve sorriso.

– De volta à minha pergunta. Se essa técnica só funciona com um infrator que possui um ponto de ancoragem estável ou uma moradia-base – ela levantou as mãos em uma demonstração dramática de espanto –, como você sabe que ele não é um viajante antes de pegá-lo? – então ela me deu um sorriso de mentira. – A resposta é: você não sabe, não é, dr. Bowers?

– Não...

– Então, suas conclusões podem ser completamente...

Eu estava cansado daquilo.

– Toda investigação é um processo global. Você continuamente avalia as provas e revisa sua estratégia investigativa quando necessário – minha voz havia ficado severa, argumentativa, e isso provavelmente era o que ela estava tentando conseguir. Tentei diminuir o tom. – A criação de perfis geográficos é apenas uma faceta de uma investigação bem-feita.

Quando disse as palavras “investigação bem-feita”, olhei novamente para as evidências colocadas na mesa. A blusa rosa desbotada de Juanita Worthy, salpicada de manchas escuras... o bisturi que Richard Devin Basque estava segurando quando o prendi... as fotos ampliadas da Asso-ciated Press das 16 vítimas conhecidas... um mapa do Meio-Oeste com as localidades de cada crime marcadas com tachinhas vermelhas... uma machadinha ainda manchada de sangue...

A srta. Eldridge-Gorman continuou, mas as evidências haviam tomado minha atenção e eu estava ouvindo-a apenas parcialmente.

– Não é verdade – ela estava andando de um jeito teatral na frente do júri – que quando você estava investigando os crimes para os quais meu cliente era... – ela hesitou, procurando pela frase correta – uma pessoa de interesse... que você comparou o horário dos crimes com os horários de trabalho dos suspeitos para tentar diminuir a relação de suspeitos?

Voltei minha atenção para ela.

– Sim. A natureza desses crimes exigia que o infrator estivesse presente enquanto ocorriam.

Mas na minha cabeça, eu estava pensando nos itens sobre a mesa, agora removidos dos sacos plásticos de evidência: a Smith & Wesson Sigma com a qual Basque atirou em mim... a chave do freezer do matadouro onde ele havia mantido quatro dos pulmões das mulheres...

Alguma coisa no posicionamento das evidências sobre a mesa não parecia certa.

– Dr. Bowers – Priscilla Eldridge-Gorman atravessou a sala do tribunal em minha direção –, você acha que a justiça é feita quando um homem é condenado por assassinato em primeiro grau baseado em seus dias de folga do trabalho?

Ela estava distorcendo minha pesquisa, tentando fazê-la soar ridícula. E mesmo eu não acreditando que júri algum daria crédito à linha de questionamento dela, pelo jeito que os jurados estavam me olhando, parecia que pelo menos alguns deles dariam.

A sala ainda não havia esquentado.

Ainda estava fria.

As evidências.

Algo com as evidências.

– Dados os horários e os locais dos crimes – eu disse –, os horários do sr. Basque teriam permitido que ele estivesse presente no local de cada um dos assassinatos.

A srta. Eldridge-Gorman segurou uma pasta de arquivo.

– E assim também poderiam estar seis outros empregados da firma de aquisições onde ele trabalhava – ela bateu a pasta na mesa, fazendo um barulho alto. – Eu verifiquei. E essa é apenas uma companhia. Milhares de pessoas poderiam ter cometido aqueles crimes.

A mensagem gravada no Colorado disse: “Vejo você em Chicago”.

Será que o assassino de Heather Fain e Chris Arlington estava na sala

do tribunal?

Deixei meus olhos se distanciarem da mesa de evidências e irem para os rostos das pessoas na sala, mas Priscilla Eldridge-Gorman andou até a minha frente, bloqueando minha visão.

– Você realmente testemunhou meu cliente atacando Sylvia Padilla? Um dos homens na galeria fez contato visual comigo e então rapida mente olhou para outro lado.

– Não. O sr. Basque estava inclinado sobre o corpo dela quando cheguei. O homem estava usando uma faixa preta no braço, o que significava que ele era um membro da família de uma vítima. Mas qual delas? Qual vítima?

– Então você admite – a srta. Eldridge-Gorman disse – que é possível que meu cliente tenha ouvido os gritos de Sylvia Padilla, foi oferecer ajuda, como qualquer cidadão consciente faria, e estava se inclinando para ajudar a pobre mulher quando você correu na direção dele – ela olhou para mim com simpatia. – Sem dúvida com a simples intenção de cumprir seu dever como um oficial da lei, e então quando você mirou sua arma nele, ele compreensivelmente temeu por sua vida e foi forçado a se defender atirando com sua arma legalmente registrada. Isso é possível, não é?

– Ele estava segurando o bisturi.

O homem com a faixa no braço ainda estava evitando o contato visual.

– Meu cliente encontrou-o caído sobre o peito da mulher e removeu-o para que pudesse ajudar a parar o sangramento.

Senti minha paciência me abandonando novamente.

– Ele caçoou dela quando ela morreu.

Ela levantou uma pasta de arquivo.

– De acordo com o relatório de polícia que você preencheu, meu cliente disse: “Parece que vamos precisar de uma ambulância, detetive”. E então: “Parece que não vamos precisar daquela ambulância, afinal”. Ele estava simplesmente mostrando preocupação por ela.

Aquilo era ridículo.

Mentalmente visualizei os rostos dos membros das famílias das víti mas. Fazia 13 anos, e o homem que eu observava estava ocultando o rosto, olhando para o relógio.

Se eu conseguisse uma vista desobstruída do seu rosto...

– Dr. Bowers – Priscilla disse, novamente interrompendo minha linha de raciocínio. – É possível que você tenha capturado o homem errado?

– Tenho certeza de que acertamos...

– Mas é possível?

– É possível – eu disse impacientemente. – Sim.

O homem com a faixa no braço finalmente olhou na minha direção. Sim. Eu o reconhecia. Ele era o pai de Celeste Sikora, a penúltima vítima conhecida, uma das mulheres que eu poderia ter salvo se tivesse desvendado as coisas um pouco mais rápido.

– Mas – eu disse, elaborando minha resposta, tentando calar a frustração crescente na minha voz –, como eu disse há pouco, todas as investigações lidam com probabilidade, e não certeza. Nós não vivemos em um mundo perfeito. Não é pedido ao júri para determinar a culpa de uma pessoa com absoluta certeza, mas sim para além de qualquer dúvida razoável...

– Estou ciente dos requisitos legais da jurisprudência americana, dr. Bowers.

Sim, o pai de Celeste, Grant.

Ex-militar. Eu me lembro porque ele reagiu tão violentamente quando o informei que os ferimentos da filha foram fatais que ele teve de ser sedado.

O julgamento, Pat. Concentre-se no julgamento.

– Mas como eu estava dizendo... – continuei falando, mas minha atenção estava dividida. – As evidências apoiam fortemente a conclusão de que Richard Basque era...

– Dr. Bowers – a voz dela ficou gelada –, você agrediu fisicamente o meu cliente?

A sala girou ao meu redor. Tonto. Um redemoinho de cores. Então tudo se focalizou.

Ela diminuiu o espaço entre nós.

– Lá no matadouro, após ele ter sido algemado.

Então Basque contou a ela. Ela sabe.

Grant Sikora olhou para o relógio na parede. Uma gota de suor bri lhou em sua testa.

Você jurou contar a verdade, toda a verdade e nada além da verdade.

– Você quebrou a mandíbula de Richard Basque com o punho? – ela perguntou. – Você o agrediu após ele estar algemado?

Você não pode deixar Basque escapar. Você sabe disso, Pat. Você não pode admitir que bateu nele.

O tempo desacelerou.

Suor? Por que Sikora está suando?

Olhei de Grant Sikora para Priscilla. Além dela, vi Basque sorrindo,

como se o momento pelo qual ele estava esperando todos esses anos tivesse finalmente chegado. Se eu falasse a verdade, ele poderia escapar, mas se eu mentisse, estaria cometendo perjúrio e indo contra tudo pelo qual eu havia trabalhado todos esses anos.

Outra gota de suor se formou na testa de Sikora.

Está frio demais na sala do tribunal para se estar suando. Frio demais. A menos que...

– Dr. Bowers! – a srta. Eldridge-Gorman havia parado na minha frente e agora plantava as mãos na cintura, seus dois cotovelos protuberantes como asas. – Você está tendo problemas para se lembrar daquela noite no matadouro?

Grant Sikora começou a seguir discretamente o caminho na direção da passagem lateral. Não é incomum pessoas saírem de um tribunal enquanto um julgamento está acontecendo, então ninguém mais pareceu perceber. Os olhos dele estavam cravados em mim.

A mesa de evidências.

A machadinha... a faca... a pistola... uma arma... ele está atrás de uma arma?

– Vou perguntar uma última vez – suas palavras eram como pedras frias caindo uma por uma sobre a sala imóvel. – Você agrediu fisicamente Richard Devin Basque após ele estar sob sua custódia no matadouro?

Nada além da verdade.

Responda a ela, Pat. Você tem de responder a pergunta.

Meus olhos passaram pela mesa de evidências, analisando, exami nando o posicionamento dos itens. Reparei no furo de segurança da Sigma, a pequena ranhura que permite ao operador observar a capa de bronze das balas se houver alguma emperrada.

A voz da srta. Eldridge-Gorman soou:

– Juiz Craddock, por favor, ordene à testemunha que responda! Dentro do furo de segurança vi um brilho da cor de bronze...

– Dr. Bowers, eu o aconselho a responder a pergunta da defesa. Aquele brilho poderia significar apenas uma coisa.

A srta. Eldridge-Gorman levantou as mãos.

Aquela arma estava carregada.

– Você vai responder à pergunta da defesa? – o juiz disse. Sikora está atrás da arma!

– Não – murmurei.

– Não? – o juiz gritou.

Grant Sikora chegou à passagem lateral e correu na direção da mesa de evidências.

Você não pode deixá-lo pegar a arma.

Impeça-o, Pat. Você tem de impedi-lo!

Agarrei o corrimão da bancada de testemunhas e me lancei por sobre a borda.


12

Meus sapatos escorregaram quando pousei. Bati no chão e quando consegui me levantar, a mão de Grant Sikora havia encontrado a arma.

Os três segundos seguintes pareceram durar uma eternidade e tudo aconteceu de uma só vez.

Corri na direção dele. O tempo ruiu e então se expandiu. Uma série de pensamentos terríveis percorreram minha mente. A arma está carregada. Ele é o pai de Celeste. Ele vai atrás de Basque.

Sikora ergueu a arma e os dois policiais de guarda na porta principal da sala do tribunal sacaram suas armas.

Eu instintivamente procurei por minha SIG. Encontrei apenas o coldre vazio.

Por toda minha volta, sons irreconhecíveis, palavras elásticas que de algum modo desaceleraram-se enquanto se moviam pelo ar entre os vincos do tempo. Gritos... berros... o movimento frenético de pessoas buscando proteção... Me senti como em uma cena de um filme onde as balas deslizam em câmera lenta pelo ar, só que dessa vez a bala ainda não havia sido atirada. E eu tinha chance de pará-la.

O juiz havia desaparecido atrás da mesa e Richard Basque havia levantado de seu assento e se virado na direção de Sikora. Imóvel como a morte, ele assistiu Grant girar a pistola em direção aos policiais que estavam gritando com ele para largar a arma.

Pelo canto dos olhos vi Ralph a caminho do atirador, atropelando uma multidão de pessoas sentadas na galeria. Mas eu estava mais perto. Muito mais perto.

A voz estridente de Priscilla Eldridge-Gorman atravessou a sala dizendo para Basque se abaixar. Abaixe-se! Ela se jogou para debaixo da mesa, mas ele não se moveu. Apenas ficou firme e imóvel.

Eu estava quase em Sikora.

Os dois policiais ergueram suas armas. Um deles atirou e a bala zum biu pelo meu rosto e arrebentou o corrimão de madeira da bancada de testemunhas atrás de mim.

Alcancei Sikora, mas antes que eu pudesse agarrá-lo ele atirou, e um dos policiais sofreu um arranque para trás e com um grito agudo caiu no chão. A policial feminina que havia fechado as portas da sala do tribunal mais cedo hesitou, olhando rapidamente para seu parceiro.

Grant Sikora olhou para o cano da arma, parecendo aturdido por ter realmente puxado o gatilho.

E, então, cheguei até ele.

Agarrei seu braço e busquei a arma, mas ele se desvencilhou, girou e a levantou até meu rosto.

– Saia da frente.

O tempo alcançou a realidade e congelou. Eu já tive armas apontadas para meu rosto antes, mas não importa quantas vezes isso acontece, você nunca se acostuma. Senti meu coração martelando contra meu peito. Calma, Pat. Calma. Levantei as mãos para mostrar que eu não era uma ameaça.

– Largue sua arma! – a policial que não havia sido atingida gritou. Só então percebi que eu estava em sua linha de fogo. Ela não tinha uma visão desimpedida de Sikora, apenas de mim.

Pelo canto dos olhos eu podia ver o outro policial caído no chão, o sangue do ferimento à bala ensopando a manga de sua camisa, mas era apenas seu braço. Não parecia letal. Isso é bom. Vai nos fazer ganhar tempo.

– Largue a arma!

– Cale a boca – Grant berrou. – Todos calem a boca! – ele deu um passo na minha direção. O policial no chão estava lentamente sacando sua arma. – Larguem suas armas – Sikora gritou para os policiais. – Ou o agente do FBI morre.

Três metros à minha esquerda, Ralph silenciosamente posicionou-se ao lado da mesa do promotor. Todas as outras pessoas, com exceção de

Basque, ou estavam deitadas no chão ou ajoelhavam-se abaixadas. Algumas pessoas espiavam sobre as bordas das cadeiras e mesas para assistir aos acontecimentos. Nenhum dos policiais largou a arma. Basque ainda estava parado, calmamente assistindo tudo acontecer.

– Larguem as armas! – Grant gritou. – Joguem todas para cá!

Vi o dedo dele no gatilho e senti meu coração se contorcer. Ele nunca erraria dessa distância. De jeito nenhum.

– Larguem as armas! – Ralph ordenou. – Agora!

Sikora não pareceu se importar que mais alguém tenha gritado aque las palavras, ele apenas manteve os olhos grudados em mim. Manteve a arma imóvel.

Os dois policiais avaliaram a situação por um momento e finalmente ambos lançaram suas armas em nossa direção.

– Ninguém mais se mexe! – Sikora gritou, então olhou na direção de Ralph. – E você, afaste-se. Agora!

– Calma – Ralph ergueu a mão e deu um passo para trás, na direção da parede. – Estou me afastando, ok?

– Mais longe!

– Já estou – mais um passo.

– Continue.

Dois passos.

Sikora olhou para a policial de pé ao lado do parceiro.

– Saiam pela porta! Ninguém entra aqui. Se alguém tentar, qualquer um que for, se aquela porta se abrir, Bowers morre – ele balançou a cabeça para a esquerda. – O oficial de justiça e o juiz vão com ela. Agora!

Após um momento, o juiz apareceu atrás de sua mesa, onde esteve escondido. Seu rosto estava marcado pela raiva, mas não disse nada. Ele e o oficial de justiça seguiram a policial pela porta, e então a fecharam atrás deles.

Ralph e eu ainda tínhamos uma chance de consertar as coisas, mas apenas se conseguíssemos chegar perto o suficiente de Sikora para derrubá-lo, mas para fazer isso eu precisava concentrar a atenção do homem em mim.

– É Grant, né? – eu disse. – Seu nome é Grant Sikora? Conheci você após a morte de sua filha.

Ele olhou para mim, sem responder. Respirou duas vezes agitadamente.

Apontei.

– O policial em quem você atirou, ele vai ficar bem – eu falava lentamente, tentando acalmá-lo. – Acabe com isso agora. Eu entendo que você está nervoso...

– Não.

– Você tem direito de estar nervoso...

– Não!

– Mas atirar em pessoas não vai ajudar a...

– Quieto! – havia raiva em sua voz, mas o queixo estava tremendo. Uma lágrima escapou pelo canto do olho.

Ele está arrependido, muito arrependido.

– Ninguém mais precisa se machucar – me inclinei na direção dele. – Você não é um assassino.

Ele balançou a cabeça violentamente.

– Ele a matou. Ele matou minha Celeste.

Tem outros agentes aqui? Onde eles estão?

Sikora gritou para além de mim, na direção de Richard Basque:

– Você matou minha filha, seu filho da...

– Ela acreditava? – perguntou Basque, interrompendo Grant.

– O quê?

– O Senhor disse que aqueles que vivem e acreditam Nele nunca morrerão. Sua filha acreditava?

– Cale a boca – Grant estava tremendo, tomado pela tristeza e pelo ódio. – Cale a boca, cale a boca, cale a boca!

Seus olhos travaram em Basque novamente. Ele havia tomado sua decisão.

Moveu a arma na direção do homem que havia torturado, matado e devorado sua filha.

Minha chance. Minha única chance.

Agora ou nunca.

Agora.


13

Atirei-me na direção de Sikora e agarrei a arma, travando os dedos em torno de seu pulso e girando ao mesmo tempo. Puxei o cano para longe da direção da multidão e apontei para a parede vazia do lado norte. E dessa vez, garanti que Grant Sikora não pudesse me empurrar.

Ele deve ter escorregado o dedo do gatilho porque a Sigma não disparou. Com a força movida pela adrenalina, ele tentou se livrar de mim novamente. Torci o braço dele para trás, tentando controlá-lo, desarmá--lo, mas com sua outra mão ele agarrou algo da mesa de evidências e acertou-me do lado; um calor de esmagamento, uma rajada de dor me atravessou e imaginei se não teria me quebrado uma costela.

Com o que quer que ele tinha me batido, Grant me acertou do lado novamente, mas eu não iria soltar.

Um rápido movimento – Ralph no caminho em nossa direção, mas demoraria alguns segundos até que ele pudesse me ajudar.

Então percebi que Grant estava segurando a machadinha que Basque havia usado em três de suas vítimas. Felizmente, ele só havia conseguido acertar o cabo em mim, e não a lâmina, mas ainda assim, doía o suficiente para que eu perdesse o fôlego.

Quando ele rumou para acertar o cabo da machadinha em mim novamente, prendi a respiração e acertei seu antebraço, mandando a machadinha para o chão.

Agora, a arma.

Nós estávamos nos encarando com a Sigma entre nós. Enquanto lutávamos por ela, Grant girou e caímos sobre a bancada de testemunhas.

– Largue a arma! – Ralph virou a mesa de evidências, espalhando o que estava sobre ela. Correu em nossa direção.

O rosto de Grant Sikora estava cheio de determinação e percebi que se Basque tivesse assassinado alguém que eu amava, eu estaria tão determinado quanto ele, com tanto ódio quanto ele.

– Ele... – seus dentes estavam cerrados pelo esforço de lutar comigo, mas ele conseguiu falar mesmo assim. – Ele... a... matou.

– Por favor – eu disse. Minha lateral estava latejando tanto que era difícil respirar. – Não...

– Ele a devorou – Grant disse. – Devorou minha Celeste...

Senti o cano da arma sendo pressionado contra minhas costelas machucadas. Tentei afastá-la, mas Sikora pendeu para o lado. As solas de seus sapatos escorregaram e juntos trombamos com a parede.

Foi quando a arma disparou.


14

Tudo pode mudar em um instante.

Senti o coice da arma passando pelo meu braço e acertando meu ombro. Então é isso.

O tempo acelerou.

Após todos esses anos, isso termina assim.

Esperei a dor do impacto da bala tomar conta de mim.

Não senti nada.

E então vi o rosto do sr. Sikora.

Não.

Seus olhos perdendo o foco, seu aperto em meu braço ficando fraco. Não, por favor, não!

O líquido quente se espalhou pelo meu abdômen, mas o ferimento não era meu.

Ralph estava do meu lado.

– Chamem uma ambulância – eu disse. Ele apalpou os bolsos procurando seu telefone enquanto eu colocava o sr. Sikora no chão deitado de costas.

Depois de tirar a arma da mão dele e jogá-la para longe de nós, apoiei sua cabeça gentilmente enquanto aplicava pressão sobre o ferimento à bala com a outra mão.

Mas eu não podia estancar o sangramento.

– Não o deixe... – Grant tossiu, lutando para respirar.

Eu queria dizer a ele que tudo ia ficar bem, que ele não precisava se preocupar, que o tiro não tinha sido perigoso, mas não sou bom mentiroso.

– Relaxe – eu disse suavemente. Nada além da verdade. – O socorro está chegando.

Ele puxou o ar engasgando, mas não disse nada.

O sangue no peito de Grant era espumoso e brilhante, o que queria dizer que a bala tinha acertado seu pulmão, possivelmente raspado em seu coração. Mesmo que os paramédicos chegassem nos próximos minutos, não achava que ele sobreviveria.

– Os paramédicos estão chegando – eu disse. Considerando a mensagem gravada no Colorado e a forte segurança aqui, duvidei que ele mesmo tivesse carregado a arma. – Quem carregou a arma para você, Grant?

Ele lutou para respirar.

– Ar....

– Eles estão vindo. Me diga um nome. Quem foi?

Ele engoliu, respirando com muita dificuldade.

– Você precisa pegar... ar...

Quatro policiais entraram com tudo pela porta e nos cercaram. Um deles pegou a S & W do chão, os outros três miraram as armas para o rosto do sr. Sikora.

– Afastem-se – eu disse. – Deem espaço para ele.

Eles hesitaram.

– Afastem-se!

Quando recuaram, Grant Sikora me puxou para perto.

– Por favor – ele tossiu e borrifou um pouco de sangue na minha bochecha. Eu tinha certeza de que era o único que podia ouvi-lo.

– Prometa-me que você não vai deixá-lo fazer isso de novo.

– Grant, você precisa...

– Prometa-me – urgência. Desespero. – Por ela. Por Celeste.

Eu precisava dizer algo.

– Eu prometo – eu disse suavemente. – Eu prometo que não vou deixá-lo fazer novamente. Agora, por favor, diga-me quem carregou a arma. Um nome.

Mas ele não me ouviu concluir meu pedido. Enquanto eu falava, ele fechou os olhos, sua mão caiu do meu braço e Grant Sikora morreu.

Não!

Se fôssemos tentar trazê-lo de volta, eu precisava manter seu sangue circulando. Comecei a fazer compressões no peito, mas após alguns minutos, quando os paramédicos ainda não haviam chegado, senti a presença de Ralph ao meu lado, sua mão no meu ombro.

– Ele se foi – a voz de Ralph era o mais gentil possível. – Pat – ele se ajoelhou ao meu lado e colocou a mão no meu ombro. – Ele se foi.

Eu continuei. Talvez ele estivesse errado.

Mais duas compressões, mais três, mais quatro, mas não eram sufi-

cientes, nunca seriam suficientes. Uma equipe de paramédicos entrou na sala do tribunal e quando assumiram as tentativas de reviver Grant, eu me inclinei para trás, sem fôlego. Meu coração estava acelerado.

Tentei relaxar, acalmar minha respiração, mas parecia não conseguir.

Pela sala do tribunal, os espectadores e membros do júri estavam emergindo de seus esconderijos. Richard Basque estava próximo, me observando. Seus olhos profundos e tocantes me encontraram, fizeram uma varredura, uma mistura psicopata de frieza e calor.

– Obrigado, dr. Bowers – ele falou alto o suficiente para que eu ouvisse, então deixou um sorriso tomar seus lábios. – Devo minha vida a você.

Chega.

Levantei-me e fui na direção dele.

Dessa vez foi a hora de Ralph me segurar.

– Esquece isso, Pat – lutei para me livrar, mas ele não me soltou. – Como você disse antes, assim não.

– Eu estou bem.

Tentei tirar as mãos dele de mim. Finalmente, ele soltou por conta própria e estudou meu rosto.

– Eu estou. Estou bem.

– Isso é bom – ele disse suavemente. – Porque agora você precisa mesmo estar. – Ele se manteve perto de mim.

O corpo e o sangue.

Ainda tenso. Ainda com raiva.

Os paramédicos estavam usando um desfibrilador em Grant, mas pela cara do chefe dos paramédicos, dava para ver que esse era um paciente que eles não esperavam conseguir trazer de volta.

Um pai de luto estava morto, um assassino sem remorso estava vivo e eu havia feito uma promessa que não tinha certeza se poderia cumprir.

Tudo pode mudar em um instante.


6 minutos depois

Giovanni observou a ambulância sair do tribunal.

Por estar ouvindo o rádio da polícia, ele sabia que a ambulância carre gava o corpo de Grant Sikora em vez de Richard Basque. E ele tinha usado suas credenciais para descobrir de um dos delegados fora do prédio que o agente especial Patrick Bowers era quem o havia impedido.

Bem.

Giovanni esperava, é claro, que Sikora fosse levado dali dentro de um saco preto, mas ele pensou que, com o passado dele como sargento de artilharia dos Fuzileiros Navais, ele seria capaz de completar sua missão primeiro. De todos os membros de família das vítimas, ele tinha sido a melhor escolha.

Mas ele não havia sido bom o suficiente para passar por Bowers, o que pelo menos confirmou o que Giovanni já suspeitava – que o agente especial Bowers era a escolha perfeita para a história número dez.

Parecia que uma pequena mudança de planos aconteceria.

Hora de voltar para Denver.

Para contar o conto número cinco.


15

A lateral do meu corpo doía.

Meu coração doía.

E Grant Sikora não sobreviveu.

Ele foi dado como morto ao chegar ao St. Francis Medical Center 30

minutos atrás. O policial em quem ele atirou precisaria de férias e fisioterapia para se recuperar, mas voltaria a usar normalmente o braço, então parecia que mesmo uma tragédia tendo acontecido, uma outra fora evitada.

Duas, se você considerar Basque escapando com vida.

A sala do tribunal onde estávamos havia se tornado uma cena de crime, por isso o oficial de justiça tinha levado os jurados para a sala do júri e todos os membros da mídia e parentes das vítimas haviam sido conduzidos para o saguão. A equipe médica e o pessoal da polícia, além de algumas pessoas como eu mesmo, que estiveram envolvidas no julgamento, foram movidos para uma sala menor do outro lado do corredor.

Localizei um dos detetives da polícia de Chicago e dei a ele meu depoimento, porém, com mais de uma centena de testemunhas na sala do tribunal, não havia muita ambiguidade sobre o que havia acabado de acontecer.

Mesmo não sendo a hora ou o lugar para conversarmos sobre todos os problemas que precisávamos discutir, após eu ter estado tão perto de ser atingido por um tiro, senti a necessidade de conversar com Lien-hua, de ouvir sua voz. Disquei o número dela, mas ela não atendeu.

Decidi não deixar nenhuma mensagem.

Deixei minha camisa, ainda ensopada com o sangue de Grant Sikora, com dois investigadores, e enquanto Ralph foi procurar Calvin para pegar uma troca de roupa na minha mala, no porta-malas do carro, pedi para um dos paramédicos dar uma olhada nos ferimentos na lateral do meu corpo.

Um exame rápido foi suficiente.

– Você vai precisar de um raio X para ver se as costelas estão quebradas – ele disse.

Eu não era novo em brigas, então já sabia que o tratamento para costelas machucadas e costelas quebradas era praticamente o mesmo: mantê-las presas com gaze, evitar esforços e tomar muito analgésico. Concluí que esperaria para ver o quanto elas me incomodariam antes de fazer um raio X.

– Obrigado – eu disse.

Ele enrolou confortavelmente uma gaze em volta do meu peito e me deu um saco de gelo para reduzir o inchaço.

– Cuide disso, ok?

– Cuidarei. – Quando ele foi embora, vi Ralph se aproximando, me trazendo uma camisa limpa e uma calça jeans. Aceitei as roupas, agradeci a ele e fui procurar um banheiro para me limpar e me trocar.

Alguns minutos mais tarde, quando estava afivelando meu cinto, meu telefone tocou e imaginei que Lien-hua deveria ter visto minha chamada perdida. Atendi. – Oi.

– Alô, Pat? – era a detetive Cheyenne Warren. – Fiquei sabendo do que aconteceu aí. Estou feliz por você estar bem.

– Somos dois, então – percebi que não fiquei desapontado por ser Cheyenne em vez de Lien-hua.

Ela foi direto ao assunto.

– Parece que não foi Taylor que deixou a gravação na mina.

– O quê? Como você sabe?

– Nós o encontramos hoje de manhã, morto, junto de sua mulher. Devo dizer que só achamos que é uma mulher. É difícil dizer.

Suas palavras só poderiam querer dizer uma coisa.

– Desmembrada?

– Sim. O assassino deixou-a na água na represa do Parque Estadual Cherry Creek. Porém, matou-a na casa de Taylor; nós comparamos o sangue nos dois locais.

Digeri suas palavras enquanto retornava para a sala do tribunal.

– Taylor tinha uma casa na região de Denver?

– Nas montanhas. Perto de Evergreen. Foi onde ele foi decapitado, não antes de ser torturado. Ainda estamos procurando a cabeça.

Inacreditável.

Os envelopes haviam sido todos enviados de dentro da área metro politana de Denver, então eu suspeitava que Taylor poderia estar vivendo na região, mas ainda assim, era desconcertante ouvir que ele havia estado tão perto de nós e nós não o encontramos.

– Suspeitos? – perguntei.

– Ainda não.

Eu estava pensando em tudo que ela havia acabado de me contar quando o oficial de justiça conduziu os jurados até a sala. Eu só tinha tempo para algumas perguntas rápidas.

– Além dos desmembramentos – perguntei –, existe alguma evidência ligada à morte de Heather Fain?

– Nenhuma evidência física ainda, mas houve uma denúncia anônima, do mesmo jeito que com o corpo de Heather.

O juiz Craddock e os dois advogados principais emergiram da entrada do juiz.

Tentei pensar em algum criminoso com o qual eu já houvesse me deparado que poderia ter encontrado, subjugado e assassinado Taylor, mas nenhum veio à mente.

– Mais alguma coisa?

– Nós vamos até a casa de Taylor de manhã para terminar de analisar a cena. Cedo: 7 da manhã. Fica a meia hora do centro da cidade; talvez você possa ir de carona comigo, para reduzir nossa emissão de carbono.

Normalmente, me irrita quando as pessoas tentam soar “sustentáveis” e “verdes” usando o clichê da “emissão de carbono”, mas vindo de Cheyenne, parecia natural.

– Eu iria – eu disse –, mas não devo chegar em Denver antes do meio--dia de amanhã.

– Então mude seu voo. Volte hoje à noite.

Era uma possibilidade.

Suspeitei que o juiz fosse pedir a anulação do julgamento, mas só

saberia em alguns minutos.

– Vou mudar se eu conseguir. Eu te ligo de volta quando souber mais.

– O juiz Craddock colocou-se atrás de sua mesa e pediu ordem. Eu preci-

sava sair do telefone. – Faça-me um favor. Mande uma mensagem para o agente Ralph Hawkins por mim. Informe-o sobre o assunto.

– Tudo bem.

Dei a ela o número de Ralph, finalizei a ligação e desliguei o celular.

Após todos terem tomado seus lugares, o juiz Craddock encarou os jurados e limpou a garganta.

– Esse incidente envolvendo o sr. Sikora não é de nenhuma relevância para o julgamento em questão. Estamos conduzindo um julgamento que diz respeito ao réu Richard Devin Basque, e não a esse homem que acabou de tentar matá-lo. Se for permitido que esse evento perturbe o processo judicial, nosso sistema de justiça se tornaria muito frágil e facilmente manipulável, deixando de ser eficaz. – Ele respirou profundamente. – Portanto, considerando todos esses fatores, não pedirei a anulação do julgamento. Vocês ficarão isolados até segunda-feira. Sem meios de comunicação. Sem contato externo. Durante o fim de semana forneceremos psicólogos independentes apontados pela corte para conduzir, sem qualquer custo, sessões de aconselhamento confidencial para qualquer membro do júri que desejar discutir seus sentimentos em relação ao ocorrido. Retomaremos os procedimentos segunda-feira às 9 horas em ponto, quando o dr. Bowers retornará para a bancada.

Eu mal podia acreditar em suas palavras, e pelo olhar dos membros do júri, nenhum deles acreditava também. Eu não tinha certeza do que seria normal em uma situação como essa, mas retomar o julgamento na segunda-feira...

– Não vou deixar esse evento atroz descarrilar o processo judicial. Não no meu tribunal – ele passou os olhos por cada um dos membros do júri. – Esse julgamento vai avançar. Vamos continuar e chegar a um veredicto, e a justiça será feita.

Mesmo estando surpreso por sua decisão, quanto mais eu pensava sobre ela, mais entendia sua lógica. As ações de Grant Sikora não eram o assunto ali e não deveriam afetar o resultado do julgamento. E quanto mais esperássemos, mais provavelmente os jurados lembrariam do atirador e esqueceriam dos detalhes do julgamento.

Esperei que a srta. Eldridge-Gorman se opusesse à decisão do juiz, o que realmente fez, com bastante veemência. Ela certamente apelaria se Basque fosse condenado, e o Estado faria o mesmo se ele fosse absolvido. Que bagunça.

– Objeção negada – o juiz Craddock guinchou. – Dispensados! – ele bateu o martelo, levantou-se e já tinha tirado metade de sua veste quando entrou em sua sala.

Assim como eu, o júri deve ter pensado que ele pediria a anulação do julgamento, pois ficaram sentados em silêncio, chocados, a maioria deles com o olhar perdido na direção da porta da sala do juiz, que agora estava se fechando lentamente.

Tirei um momento para pensar.

Eu realmente queria dar uma olhada na cena do crime onde Taylor havia sido morto. Ainda não eram nem 17h, assim eu provavelmente conseguiria pegar um voo mais cedo e ainda chegar em casa hoje à noite, e, então, voltar para Chicago domingo à noite.

Uma ligação rápida para a companhia aérea me informou que havia um voo que chegaria em Denver logo após às 22h, e eu ainda tinha 90 minutos antes da hora de partida, de modo que, mesmo com o trânsito de sexta-feira, imaginei que daria certo.

Confirmei a reserva de assento e estava terminando a ligação quando a srta. Eldridge-Gorman atravessou a sala em minha direção. Ela chegou perto e falou em voz baixa, apenas para que eu ouvisse.

– Eu sei o que você fez no matadouro, dr. Bowers. Segunda-feira de manhã pedirei que você responda por desacato ao tribunal por se recusar a responder à pergunta de hoje.

Ela devia estar me testando para ver se eu diria algo que ela pudesse usar contra mim quando eu retornasse para a bancada na semana seguinte. Não respondi.

– Se você disser a verdade, o júri irá descartar seu depoimento e simpatizar com meu cliente – um terrível senso de satisfação permeava cada uma de suas palavras. – E se você mentir, cometerá perjúrio. De qualquer jeito, Richard será libertado, dr. Bowers, e graças a você.

Tudo havia repentinamente se tornado mais complicado ainda.

– Tenha um bom fim de semana, srta. Eldridge-Gorman – eu disse a ela.

– Terei – ela pegou sua pasta e me deu um meio sorriso. – E estou ansiosa para vê-lo segunda-feira.

Ela caminhou para longe e percebi que Ralph esteve nos observando. Ele veio até mim, e após ela estar fora do alcance de sua voz, perguntou:

– O que foi isso?

– Um mal-entendido – eu nunca havia contado a ele o que tinha acontecido no matadouro, e agora não era a hora de tratar daquilo.

Sua voz grave ficou mais baixa ainda do que o normal.

– Algo que você queira me contar, amigo?

Considerei minhas opções, sua amizade, o caso, meu futuro... e decidi deixar as coisas como estavam por enquanto.

– Não. Não é nada – gesticulei na direção da porta. – Você está saindo?

– Preciso dar uma declaração para a imprensa. Sendo o agente sênior no local... você sabe.

– Entendi.

Ele murmurou algumas palavras especiais sobre como estava animado em conversar com os repórteres. Quando parou para respirar, eu disse:

– Reservei um voo mais cedo. Preciso ir para o aeroporto.

– Falo com você amanhã.

Acenei com a cabeça, ele foi embora, e depois de pegar minha faca e minha SIG, fui na direção da porta dos fundos para evitar os parasitas da mídia em torno da entrada do tribunal. No caminho, liguei para Cheyenne e disse a ela que conseguiria me encontrar com ela às 7h na manhã do dia seguinte.

– Eu pego você na sua casa por volta das 6h30 – eu disse.

– Que tal se eu dirigisse? Quer dizer, a não ser que você tenha problemas com uma mulher no banco do motorista.

Eu tinha a sensação de que ela não estava apenas conversando sobre caronas, mas decidi não mexer com isso.

– Tudo bem. Você pode me pegar – só depois de dizer as palavras que percebi que elas continham pelo menos tanto duplo sentido quando as dela.

– Está ótimo pra mim – ela disse, um sorriso em sua voz. – Te vejo às 6h30.

Ela nunca havia ido até minha casa antes, então passei para ela meu endereço antes de desligarmos. Liguei para Calvin para avisar que eu pegaria um táxi para o aeroporto e que ele poderia ficar com minha mala até segunda-feira. Enquanto esperava que ele atendesse, saí pela porta dos fundos do tribunal.

Encontrei-o parado nos degraus, protegido da garoa por uma marquise ampla acima dele, vasculhando os bolsos, à procura de seu telefone que tocava.

– Oh, aí está você, garoto, estava esperando por você – ele encontrou o telefone, olhou para a tela e então para mim. – Devemos conversar pessoalmente ou pelo celular?

Olhei para ele.

– Como você sabia que eu estava vindo nessa direção?

– Eu sei o quanto você gosta de aparecer na TV. Venha comigo. Eu te dou uma carona para o aeroporto – ele ajeitou o casaco e saiu pela chuva.

Mas eu hesitei.

– Eu acabei de mudar meu voo, há menos de cinco minutos. Como você...?

– Meu garoto, eu não posso revelar todos os meus segredos – ele pegou as chaves do carro. – Venha comigo, tem algo que quero perguntar para você no caminho.


16

Por cerca de 20 minutos, Calvin enfrentou o tráfego sem falar. Talvez ele estivesse tentando me dar uma oportunidade de lidar com a morte de Sikora. Difícil saber.

A chuva estava parando, mas as nuvens se penduravam pesadas e cinzentas sobre nós. Eu sabia que o sol não ia se pôr por algumas horas, mas o dia já parecia estar caminhando para a noite.

Entramos na Kennedy.

Mais tempo se passou.

Um carro nos fechou e o motorista mostrou a Calvin um gesto bastante elaborado que eu havia visto apenas algumas vezes nas ruas de Nova York. Por um momento isso fez com que me lembrasse de quando vivi naquela cidade, e de Christie, a mulher que eu havia conhecido lá, pela qual havia me apaixonado, com quem havia me casado e que havia enterrado lá.

Morte.

Ao meu redor.

Tocando minha vida não importa onde fosse.

E agora essa semana, mais dela: as duas vítimas na quarta-feira, no dia anterior a eu me juntar ao caso... Heather Fain e Chris Arlington ontem...Sebastian Taylor e a mulher não identificada, e agora Grant Sikora...

Tanta morte em meu passado, em meu presente. Eu havia escolhido essa carreira, essa vida para mim, mas às vezes...

– Ouvi alguns dos repórteres conversando – Calvin disse suavemente, interrompendo meus pensamentos – enquanto você estava dando seu depoimento para a polícia. A mídia já está te chamando de herói, garoto. Eles querem dar a você uma medalha.

– Eu não sou herói, Calvin.

– Você salvou a vida de um homem.

– Quem? – isso era a última coisa sobre a qual eu queria conversar.

– Basque? Ele merecia morrer. Sikora merecia viver. Como isso faz de mim um herói?

Calvin pensou por um momento. Ele escolheu não responder, e eu senti que seu silêncio era algum tipo de contestação.

– Fiquei orgulhoso de você hoje – ele disse finalmente. – Orgulhoso de ter sido seu professor.

Suas palavras pareciam conclusivas, como se ele estivesse finalizando uma de suas palestras em vez de simplesmente estar comentando sobre o dia. Me senti desconfortável.

– O que está havendo?

Mais uma vez ele escolheu não responder, o que não era costume dele.

Agora, ele definitivamente tinha minha atenção.

Um caminhão de lixo na nossa frente expeliu um vapor de chorume.

Calvin passou para a pista da esquerda para ultrapassar.

O silêncio aumentava entre a gente, e finalmente, quando percebi que ele não iria responder minha pergunta, tentei adivinhar o que ele estava querendo falar comigo.

– Foi algo que eu falei na bancada que... – procurei pela palavra certa. – Que você achou impreciso ou não representativo de...

Ele balançou a mão no ar desdenhosamente.

– Não seja ridículo, garoto. Claro que não. Nada desse tipo – esperei que ele continuasse, mas novamente recebi apenas silêncio.

Eu nunca havia conhecido ninguém que escolhesse suas palavras mais cuidadosamente ou mais precisamente do que o dr. Calvin Werjonic, mas agora ele estava sendo evasivo. Eu não queria pressioná-lo, mas eu queria descobrir o que estava acontecendo.

– Patrick, governos quebram diariamente leis e tratados buscando defender os interesses de suas nações. E isso é necessário porque leis são estabelecidas para servir a algo maior do que eles mesmos.

– A justiça – eu disse.

– Sim.

Pensei nessas palavras à luz dos eventos do dia.

– Mas Calvin, a justiça é um problema para as cortes resolverem.

– Sim, sim, claro. A resposta correta. A resposta de livro.

Eu não havia reparado ainda, mas agora, sob o dia escurecido pelas nuvens, percebi que ele parecia frágil e cansado, como um poderoso penhasco finalmente cedendo à erosão do tempo.

– Mas não é a sua resposta?

– A busca pela justiça não leva a uma resposta, mas a um dilema: até onde alguém está disposto a ir para vê-la ser realizada? – Calvin passou de volta para a pista da direita.

Eu estava começando a ver como suas palavras poderiam estar relacionadas ao julgamento. Eu esperava estar errado.

– Nós não juramos dizer “a verdade, toda a verdade e nada além da verdade”? A justiça não é feita quando a verdade é censurada.

– Sim, precisamente.

Mais uma resposta surpreendente.

– Mas?

– Mas você percebeu que os advogados tanto da acusação quanto da defesa não são obrigados a fazer esse mesmo juramento? Em vez de jurarem dizer toda a verdade, é esperado que, digamos, eles façam o contrário. A obrigação legal deles é dizer apenas a versão da verdade que sustente seus casos. Apenas as testemunhas, e não os advogados, precisam jurar dizer toda a verdade. E ainda assim, como você percebeu há um momento, a justiça não é feita quando a verdade é censurada.

Eu não sabia o que dizer. O tráfego carregado se fechou ao nosso redor. Horário de pico.

– Nós perdemos de vista o objetivo, Patrick. Nosso sistema judiciário está mais preocupado com acusações e absolvições do que com a verdade ou a justiça. Você sabe que é verdade. Ficamos reticentes quando deveríamos admitir.

Ele estava certo nos dois casos: era verdade, e eu não gostava de admitir. Tanto a acusação quanto a defesa se prendem a evidências e testemunhas que apoiem seus casos. Se eles descobrissem provas que ajudariam o outro lado, eles não as colocariam em julgamento, mesmo que isso significasse impedir um homem inocente de ir para a prisão ou garantir que um assassino brutal fosse trancafiado na cadeia. É isso que acontece quando um sistema legal valoriza direitos individuais acima da busca pela verdade ou pela administração da justiça.

Calvin continuou:

– Mas ver a justiça sendo feita, não foi para isso que entramos nessa área em primeiro lugar? Isso não é mais importante do que ganhar um caso?

– Você não está justificando...

Um suspiro cansado.

– Eu tenho 76 anos, garoto. Eu não tenho tempo sobrando para justificar ou condenar, apenas para raciocinar e, enquanto for capaz, agir.

Era estranho ouvir Calvin dizer essas coisas. Com o passar dos anos, eu mesmo havia questionado aspectos do sistema judiciário, mas nunca havia articulado minhas desconfianças para ninguém.

– Sim – eu disse, voltando para a pergunta. – Foi por isso que entrei nessa área.

Estávamos nos aproximando da saída para o aeroporto O’Hare e senti que ainda não havíamos chegado ao ponto crucial de nossa conversa.

– Calvin, no tribunal você disse que queria me fazer uma pergunta.

– Sim, claro – ele disse. – Agora, por favor, entenda que eu tenho todo o respeito quando fizer referência à sua enteada no meu exemplo hipotético.

– Continue.

– Imagine que um homem está sendo julgado por agressão sexual de primeiro grau. Você é chamado como testemunha e você sabe que ele é culpado e que seu depoimento vai fazer a diferença no veredicto.

Comecei a me sentir desconfortável.

– Tudo bem.

– Porém, as evidências não são suficientes para uma condenação e você sabe que se você relatar apenas os fatos do caso, ele vai ser absolvido e vai atacar sexualmente Tessa, ou talvez outra garota da idade dela. No entanto, se você esconder a verdade em seu depoimento em relação à culpa dele, ele será condenado. O que você faria?

Essa situação hipotética não me deixou quase nenhum espaço de manobra.

– Assumindo que meu depoimento fosse o único fator decisivo – senti minha garganta apertada –, eu mentiria para protegê-la – finalmente, como uma lente entrando em foco lentamente, percebi o que Calvin estava dizendo e como isso se relacionava com os eventos anteriores no dia.

– Sim – ele acenou com a cabeça gentilmente. – Porque proteger os inocentes é mais importante do que qualquer outra coisa.

Ele virou a cabeça e olhou para mim. Apesar da idade, seus olhos estavam alertas e incisivos como nunca, e dessa vez ele foi direto ao assunto.

– Você acredita que Richard Basque é culpado daqueles assassinatos? Não havia dúvida na minha cabeça.

– Sim, ele é. E provavelmente mais do que sabemos.

– Eu revisei o caso, como você sabe. E estou convencido disso também. Chegamos à saída para o aeroporto. Calvin seguiu por ela.

Um pensamento.

Não, não poderia ser.

Mas talvez fosse.

– Calvin, você carregou a arma, não foi?

Ele balançou a cabeça negativamente.

– Desculpe-me por te decepcionar. Deve existir mais alguém por aí pensando do mesmo jeito que eu.

Talvez eu não devesse ter acreditado nele, mas acreditei. Afinal, alguma outra pessoa tinha matado Heather e Chris e havia deixado a mensagem provocativa na mina. Então, os comentários de Calvin poderiam significar apenas uma coisa:

– Você acha que eu não deveria ter impedido Sikora.

Ele foi rápido com a resposta.

– Não, não. Não estou questionando nada do que você fez. Acho que você fez a coisa mais nobre, uma coisa heroica.

– Mas não a coisa certa?

– Se você não tivesse reagido tão rápido como reagiu, duas pessoas estariam mortas em vez de uma. Eles não teriam levado o sr. Sikora com vida, você sabe disso.

Percebi que ele não havia respondido minha pergunta.

– Mas se você não está questionando o que fiz, o que você está fazendo?

– Me explicando.

Ele parou o carro na frente do Terminal 1.

– Do que você está falando?

Calvin deixou o carro em ponto morto.

– Há mais de cinco décadas eu conto a verdade e observo pessoas que eu sabia serem assassinos, estupradores e pedófilos serem libertadas – seus dedos tremeram suavemente. Ele os apoiou no volante, provavelmente para que eu não percebesse. Mas percebi. – E eles cometeram crimes novamente – ele disse. – Eles estupraram de novo, assassinaram de novo. Tantas vidas foram destruídas porque eu acreditava que se eu relatasse os fatos, a justiça aconteceria. Mas não acontecia. E agora, o sofrimento dos inocentes pesa demais sobre minha consciência.

Ele olhou para mim, um fogo acinzentado queimava em seus olhos, uma única e terrível lágrima escorria por sua bochecha.

– Talvez eu pudesse ter feito mais para ajudá-los.

– Mas talvez não.

– Verdade – ele reconheceu. – Mas mesmo assim, é tarde demais para mudar o que foi feito. Só podemos mudar o que é e o que será.

Um policial se aproximou do carro. Ou nós saíamos dali ou eu pegava minha maleta e ia para o balcão de check in. Eu poderia ter me identificado como agente federal, mas minha carteira estava na bolsa do computador no porta-malas e eu não queria ter todo esse trabalho. Eu só queria terminar aquela conversa.

– Você não tem mais certeza se fez a coisa certa ao ter falado a verdade todos esses anos.

Calvin olhou pela janela para a chuva. Seu silêncio era toda a resposta de que eu precisava.

Me lembrei de sua pergunta hipotética sobre o estuprador: “Se você esconder a verdade em seu depoimento em relação à culpa dele, ele será condenado. O que você faria?”

Verdade e justiça sempre lutaram entre si em nossas cortes. Por todos esses anos eu havia escolhido o lado da verdade. Calvin também. Talvez tivéssemos escolhido o lado errado.

“Prometa-me”, o sr. Sikora disse.

“Eu prometo”, eu disse a ele.

Eu podia sentir algo mudando dentro de mim. A confiança que sem pre tive no sistema judiciário repentinamente parecia ingênua e otimista demais.

– Você acredita que Basque vai matar novamente se for libertado? – Calvin perguntou.

– Sim.

– Eu também.

O policial bateu com a mão contra o vidro. Levantei um dedo para pedir a ele mais um instante, então perguntei a Calvin:

– Você vai fazer algo, não vai?

Silêncio.

– O que é? O que você vai fazer?

Ele juntou as mãos em cima do volante.

– Vou observar cuidadosamente – suas palavras eram decisivas. Firmes. – E ver o que acontece a seguir.

Procurei o que dizer. O policial bateu na porta e começou a exigir que eu saísse do carro, o que finalmente fiz. Ele apontou para Calvin.

– Ele precisa ir embora.

Saí do carro e Calvin abriu a janela.

– Eu ligo pra você – eu disse.

– Sim, ligue.

Então peguei minhas malas e observei Calvin ir embora, as luzes traseiras de seu carro brilhando no asfalto molhado. Um reflexo embaçado, distorcido.

O policial estava parado ao meu lado, e quando não me movi, ele disse:

– Está tudo bem?

Não. Não está. E pode não ficar nunca mais.

– Sim – eu disse. – Está tudo bem.

Então entrei no terminal, imaginando se eu deveria ter deixado Sikora matar Richard Basque, ou se talvez eu devesse tê-lo ajudado a mirar a arma.

As palavras de Calvin me assombravam enquanto eu caminhava pelo aeroporto: “Vou observar cuidadosamente e ver o que acontece a seguir”.

Bom, eu também.


17

Hospital Memorial Batista
Denver, Colorado
19h51, fuso horário das montanhas

Disfarçado e vestido como um zelador, Giovanni passou pelo nível inferior do Hospital Memorial Batista em direção ao necrotério. Ele carregava uma bolsa esportiva preta à prova d’água e tomava cuidado para evitar os corredores que possuíam câmeras de segurança.

Seu voo chegara havia cerca de uma hora, o que lhe dera bastante tempo para ele se preparar.

Agora, ele arrombou a fechadura do necrotério, entrou na sala e fechou a porta atrás de si. Colocou no chão sua bolsa esportiva. Abriu-a.

Então, seguiu para a área de armazenamento a frio onde ficavam os recém-chegados.


Giovanni nunca havia ido para a cadeia por assassinato, o que era um pouco surpreendente, considerando quantos deles ele já havia cometido.

E considerando que ele havia até confessado um deles.

Mas nenhum crime, nem aquele primeiro, aparecia em sua ficha porque ele tinha apenas 11 anos quando confessou, e a corte decidiu que ele era jovem demais para compreender suas ações, que ele era apenas um garoto.

Em vez de passar um tempo na cadeia, ele havia passado seis meses em um hospital especial e então foi para um internato e se encontrava com um orientador três vezes por semana para conversar sobre seus sentimentos.

Mas nem seu orientador, nem nenhum de seus advogados, ou juízes, ou defensores apontados pela corte haviam entendido que ele realmente sabia o que estava fazendo quando matou a avó dois dias antes de seu aniversário de 12 anos. Ele sabia muito bem. E mesmo agora, todos esses anos depois, tudo ainda parecia bastante fresco em sua memória.


Ele destravou a porta de metal que levava aos cadáveres e sentiu o sopro de ar frio no rosto e nos braços quando entrou. Apenas alguns graus mais frio que a mina, frio o suficiente para armazenar os corpos por alguns dias, mas não para chegar a congelá-los.

Ele era responsável por oito mortes ocorridas durante a semana passada, ou possivelmente sete, se o padre ainda estivesse vivo, então reconheceu alguns dos corpos na área de armazenamento a frio, mas os notou sem qualquer emoção ou mesmo satisfação. Eles haviam sido apenas personagens na épica história que ele estava contando, nada além disso.

Giovanni levou a maca contendo o cadáver de Travis Nash para a sala de autópsia e fechou a porta do freezer.

Um lençol branco cobria o cadáver, e ele o descobriu, revelando o corpo nu e cor de argila do homem que ele havia assassinado 12 horas antes, no que havia sido interpretado por todo mundo como um ataque cardíaco. Nenhuma autópsia havia sido requisitada.

Giovanni percebeu que se ele fosse manter estritamente o enredo, seria necessário que a esposa de Travis exumasse o corpo e cortasse sua cabeça com uma faca, mas as práticas funerárias haviam mudado um pouco desde o século XIV e, considerando que a cremação de Travis estava marcada para a manhã seguinte, levar seu corpo do necrotério era o mais próximo possível de uma exumação.

Desde sua morte mais cedo naquele dia, o sangue de Travis Nash estaria acumulado em sua cavidade corporal; portanto, não haveria muita sujeira, apenas um pequeno escorrimento.

Ele abriu a bolsa esportiva, pegou o serrote que havia usado em Brigitte e no governador, colocou a lâmina contra o pescoço inchado e frio do sr. Nash e começou o serviço.


Giovanni se lembrou da noite em que sua avó morreu.

Ele ainda podia vê-la parada na cozinha, inclinada sobre a pia, seus dedos frágeis esfregando os pratos, esfregando, esfregando, esfregando, e sua voz delicada como papel pedindo a ele por favor para colocar os copos na cristaleira, ao lado dos pratos, e perguntando se ele gostava de passar o verão com ela e se estava pronto para voltar para seu pai na terça-feira seguinte, e então o lembrando de não esquecer sua cópia de Os contos da Cantuária que ele estava lendo durante todo o verão, pois ela havia visto o livro mais cedo na varanda.

Ela estava usando um avental branco com a foto de um buquê de lírios desbotado bordado na frente, e havia manchas amarelas de caldo de frango ao lado das flores de quando ela havia limpado os dedos no avental.

Sim, ele lembrava de tudo: a brisa silenciosa do Kansas soprando pela janela aberta sobre a pia, o som dos grilos cantando nas sombras orvalhadas lá fora, o cheiro do perfume de velha de sua avó se misturando com o detergente com cheiro de limão, e o cheiro fraco de sopa de frango que ela havia feito pois era a sua favorita.

Sim, e ele se lembrou da faca repousada pacientemente no balcão ao lado dela.

E a voz de sua avó novamente:

– Por favor, veja se esses copos estão secos antes de guardá-los, querido. Você sabe que eles ficam cheios de germes se ainda estiverem molhados.

“– E a avó dele gritava com ele? Abusava verbalmente dele?”

“– Não que eu saiba, meritíssimo.”

“– E quanto à vida cotidiana dele com o pai? Ele era negligenciado de

alguma maneira?”

– “Ele parece ter tido uma criação normal e estável, meritíssimo. A mãe dele morreu durante o parto, mas não existe nenhum sinal de abuso físico ou mental por parte dos familiares.”

O cabo da faca era tão brilhante, suave e convidativo.

Ele se lembrava disso. E se lembrava de envolver a faca com os dedos e levantá-la, sentindo seu peso estável e balanceado.

Ele girou a faca de modo que a luz da cozinha refletia e dançava pela lâmina, onde brilhou, brilhou, brilhou, e então permaneceu ali por um momento antes de deslizar pela borda e desaparecer no ar ao seu redor.

A faca estava muito confortável em sua mão.

Sim, ele lembrava.

E então sua avó virou-se e o viu segurando a faca; ela limpou as mãos no avental e perguntou o que ele estava fazendo e se ele poderia por favor largar a faca porque facas são perigosas e não devem ser manuseadas sem cuidado, e ele deveria saber disso, um garoto daquela idade.

E ele lembrava como ficou feliz por ela ter se virado, pois não queria mesmo enfiar a faca nas costas dela, e desse jeito poderia ver o rosto dela quando acontecesse.

“– Meritíssimo, o garoto é muito jovem para entender suas ações. Não existe precedente para uma criança menor de 14 anos de idade ser condenada por homicídio em primeiro grau. Ele é um jovem profundamente perturbado que precisa de ajuda psicológica. A ele deveria ser oferecida orientação, e não encarceramento.”

Tudo estava claro.

Quando a avó viu que ele não ia largar a faca, deu um passo hesitante para trás, pressionando-se contra a pia. Ela ainda estava segurando um pano de prato, e água com sabão pingava dele e formava uma poça irregular aos seus pés sobre o chão xadrez de linóleo.

Ele se lembrava disso, mesmo após todos esses anos.


Giovanni terminou o serviço no pescoço de Travis e colocou a cabeça loira de cabelos encaracolados em um saco plástico; depois a embrulhou cuidadosamente em um grande lençol branco de linho e a colocou na bolsa esportiva.

Ele levou apenas um momento para se lavar e depois colocar as roupas de médico que havia trazido com ele. Enfiou as roupas de zelador na bolsa, cobriu o corpo novamente e colocou-o de volta no freezer.

Kelsey chegaria em menos de 10 minutos.

Ótimo.

Ele foi até a pia para enxaguar o serrote e preparar a agulha.


Por algum motivo, quando Giovanni deu um passo em direção à sua avó, os grilos pararam de cantar. Talvez eles soubessem. Talvez de algum modo eles pudessem saber o que estava prestes a acontecer.

Os olhos da avó se arregalaram, e então ela deixou cair o pano de prato e tentou empurrá-lo para longe, mas ele era forte para sua idade, mais forte que ela, e ela não conseguiu freá-lo. Não mesmo.

Giovanni já havia cortado carne; ele sabia que cortar carne não era fácil, e que o corpo da avó teria carne, o corpo de todo mundo tem, então ele esperava que fosse difícil enfiar a faca na barriga dela, esperava que houvesse mais resistência, mas foi muito mais fácil do que ele havia pensado que seria. Fácil até demais, na verdade. E tirar a faca foi mais fácil ainda do que enfiá-la porque ela estava escorregadia e brilhante com o sangue e outros líquidos que ele não reconheceu.

Ela não gritou nem chorou, apenas tossiu suavemente. Uma tosse úmida, e ela tremeu um pouco, e então inclinou-se mais contra o balcão ao lado da pia, caindo no chão.

Giovanni se inclinou sobre ela, e toda vez que ele enfiava a faca, fi-cava mais e mais fácil, especialmente quando ela parou de tremer tanto. E foi mais silencioso também, após ela parar de fazer aqueles barulhos estranhos vindos do fundo de sua garganta.


Giovanni ouviu uma batida na porta do necrotério e, então, com a expressão sombria e empática de um médico preocupado, ele a abriu e encontrou Kelsey Nash no corredor.

Ele disse a ela o quanto sentia por sua perda e desculpou-se por ter ligado para ela tão tarde, mas então explicou que precisava fazer algumas perguntas sobre o marido dela, agora, essa noite, antes da cremação, porque poderia ajudar a esclarecer algumas questões que haviam surgido em relação às circunstâncias da morte do marido.

Kelsey enxugou uma lágrima perdida, mas não entrou no necrotério. Ele acrescentou que a polícia temia que Travis pudesse ter sido assassi nado e que, novamente, ele sentia muito sobre todo o sofrimento, mas que isso levaria apenas um minuto e então ninguém mais a perturbaria de novo.

E por fim ela entrou hesitantemente na sala.


Quando Giovanni devolveu a faca ao balcão, ouviu os grilos lentamente voltarem a cantar. E ele gostou daquilo. Gostou que o mundo lá fora ainda estivesse normal; que, realmente, nada de mais havia mudado.

Com a exceção de sua avó, que estava caída imóvel em uma poça crescente de sangue que estava começando a encontrar as frestas no linóleo, fazendo linhas retas e brilhantes no chão da cozinha enquanto se distanciava dela.

Isso era algo sobre o qual ele gostava de pensar. As linhas vermelhas se distanciando dela como os raios de sol que ele fazia quando desenhava um sol no canto de um papel, na escola.

Ele observou o sangue deslizar pelas ranhuras do chão brilhante, observou a luz do sol escapar do corpo da avó.

“– Giovanni, seu pai já tocou você?”

“– Tocou-me?”

“– Sim. Em algum lugar ruim. Algum lugar que sua roupa de nadar

cubra. No seu bumbum ou...

“– Isso é um lugar ruim?”

“– Não, não. É que... talvez um professor de educação física ou alguém

do tipo? O professor Simons tocou em você lá? Ou sua avó?

“– No lugar ruim?”

“– Onde o calção de banho cobre.”

“– Não. Ahn-ahn. Ninguém. Só em lugares bons. Só bons abraços. Nada

no lugar ruim.”


Giovanni movimentou-se em direção ao freezer.

– O corpo dele está logo ali, senhora.

Kelsey parecia tão frágil e destruída pela morte recente do marido.

Ela deu um passo e parou.

– Eu sei como isso deve ser difícil para você – ele colocou uma mão cheia de compaixão sobre o ombro dela, para que ela não ficasse com medo.

– Eu prometo, vou fazer com que isso seja o menos doloroso possível.

Com a mão esquerda, ele tirou a seringa hipodérmica do bolso.


Ele se inclinou para que pudesse ver os olhos da avó. Eles pareciam tão estranhos, olhando para cima, para a luz da cozinha, sem piscar, e eram tão redondos e brilhantes que pareciam grandes bolas de gude que poderiam rolar da cabeça dela a qualquer momento.

– Como foi, vovó? – sua voz soou alta, forte e adulta dentro da cozinha vazia. Ele gostava do som adulto de sua voz e repetiu a pergunta, mesmo sabendo que ela não responderia. Não mais.

Ele observou aqueles olhos vítreos por um momento, imaginando se talvez eles piscariam, porque, mesmo ele tendo só 11 anos, havia ouvido falar que, às vezes, coisas desse tipo aconteciam depois de as pessoas terem morrido. Reflexos.

Mas não. Não sua avó. Mesmo ele tendo esperado até o sangue parar de se espalhar e começar a ficar escuro e com uma cara feia, mesmo então sua avó não piscou.

Ele colocou um dedo levemente contra o sangue que secava e descobriu que ele tinha ficado grudento e grosso e não parecia em nada com os raios mornos e macios do sol que tocaram seu rosto por todo o verão.

Seu cheiro era morno e acobreado.

E ele gostava da sensação que causava em sua pele.


Giovanni baixou Kelsey gentilmente até o chão.

O relaxante muscular a fez ficar mole, mas a deixou consciente, e ele podia ver seus olhos se movendo, dizendo que ela estava ciente do que estava acontecendo. Seus lábios sussurravam sílabas silenciosas. Palavras que nunca tomavam forma.

Ele tirou o cadáver de seu marido do freezer e removeu o lençol que o cobria.

– Oficialmente, você deveria morrer de tristeza – ele disse. Ela estava imóvel, com exceção dos olhos, dos lábios e do peito: seus olhos, alertas, o seguindo, seus lábios tremendo levemente, seu peito subindo e descendo, subindo e descendo com a respiração. Ele imaginou como seria estar consciente mas incapaz de se mover, capaz apenas de antecipar o que estaria para acontecer. Ele imaginou se ela conseguiria chorar mais. Não tinha certeza.

Ternamente, ele deslizou uma mão sob suas costas e a outra sob suas pernas, para que pudesse levantá-la sem machucá-la.

– Tentei achar um jeito melhor de fazer isso, mas não consegui pensar em nenhum – ele a colocou na maca, do lado do corpo sem cabeça. – Acho que isso foi a melhor coisa possível.

Ela não conseguia oferecer nenhuma resistência, estava maleável e era fácil para ele posicioná-la de lado e colocar uma das mãos dela sobre o peito do marido.

Ele virou o rosto dela para a direção em que a cabeça de Travis estaria. Sua bochecha esquerda estava apoiada sobre uma poça de sangue congelado que havia escorrido do coto úmido.

– Você tem se mantido em muito boa forma, então isso deve ajudar. Não há gordura corporal suficiente para isolá-la. Você estará com Travis em breve.

Apesar de sua paralisia, ela foi capaz de emitir um som engasgado que deve ter sido uma fraca tentativa de pedir socorro.

Os sons lembravam a Giovanni aqueles que sua avó havia emitido tantos anos atrás. Naquele dia, na cozinha.


Depois de terminar de lavar a louça, ele havia chamado a polícia e pedido a eles para virem, pois sua avó não estava se mexendo, e ele havia contado que achava que podia tê-la matado com a faca e que havia muito sangue no chão, escorrendo dela.

Enquanto os esperava, ele cuidadosamente secou os copos e os guardou do jeito que a avó havia pedido para ele fazer antes de ele ter enfiado a faca em sua barriga e ela ter caído se contorcendo no chão.

“– Ele não demonstra ameaça iminente para ele mesmo nem para ninguém, meritíssimo. Nós recomendamos que o garoto receba orientação e seja monitorado até seu décimo oitavo aniversário, e se ele aparentar estar mentalmente estável, que ele seja solto sob sua própria responsabilidade. Isso é tudo, meritíssimo.”

“– Algum comentário final da acusação?”

“– Nós insistimos que o garoto é extremamente perturbado e aceitamos

que ele seja institucionalizado e receba os cuidados psiquiátricos necessários, mas neste estado há uma sentença obrigatória por assassinato em

primeiro grau. Pedimos que, no caso de sua liberação dos cuidados psiquiátricos, ele sirva o restante da sentença na prisão por esse crime hediondo.”

“– Tudo bem. Faremos um breve recesso e então anunciarei minha decisão quando voltarmos, às 13h. Declaro a corte em recesso.”

Pelos próximos anos, os advogados de Giovanni, os juízes e todos os médicos e orientadores disseram a ele repetidamente que ele realmente não entendia o que estava fazendo naquele dia na cozinha de sua avó. E depois de um tempo ele quase começou a acreditar neles.

Mas na verdade, lá no fundo, ele sabia que eles estavam errados. Ele entendia.

Sim, ele entendia


Ele havia matado a avó porque queria ver como seria assistir alguém morrer. Ver se o incomodaria, se o faria se sentir triste ou não.

E não tinha feito.


Enquanto Giovanni pegava o lençol que estava cobrindo Travis e o colocava sobre Kelsey também, ajeitando-o em seu pescoço, ele pensou com carinho naquele verão que havia passado no Kansas quando tinha 11 anos. A luz do sol, os grilos e as lembranças. Os livros que havia lido. As histórias que havia aprendido.

Ele empurrou a maca até o freezer e parou para arrumar uma mecha de cabelo que estava no rosto de Kelsey.

Por um momento, ele ouviu os barulhos úmidos vindos da garganta dela, sons que o lembravam de sua avó, então ele saiu do freezer e fechou a porta atrás dele.

Depois de se trocar novamente, voltando a usar o uniforme de zelador, e de colocar as roupas de médico na bolsa esportiva, Giovanni dirigiu até sua casa, cuidadosamente evitando todas as câmeras de semáforos.

Amanhã seria um dia cheio.


18

Sábado, 17 de maio
1833 Cherry Street Denver, Colorado
4h59 da manhã

Não tive sonhos agradáveis.

Vi a mim mesmo no matadouro novamente, perseguindo Basque. O cheiro duro de sangue no ar. A goteira distante em um cano que vazava ecoando pela escuridão.

Ganchos de carne estavam pendurados ao meu redor. Balançando, retinindo, mesmo sem haver vento.

No sonho, penetrei o ar escuro com minha lanterna e, quando o fiz, uma mulher surgiu. Ela deu um passo e então parou e me fitou com olhos frios e sem vida. Eu a reconheci como a última vítima de Basque, Sylvia Padilla. Seu dorso estava cortado do mesmo jeito que quando a encontrei. Seu rosto muito pálido, o sangue drenado pela morte e a cor do rosto lavada pela luz da lanterna.

– Por que você não me salvou, Patrick? – ela apenas mexia os lábios, mas no sonho eu ouvia as palavras como se ela estivesse falando alto.

Lábios frios.

Sussurrando.

– Por que, Patrick?

E então, passos atrás de mim. Virei-me e minha lanterna iluminou os rostos de mais mortos ambulantes, todos se aproximando de mim.

– Por que, Patrick?

Cercando-me, tentando me alcançar.

– Por quê?

Empurrei-os para o lado, senti minhas mãos se sujarem em suas feridas quentes e úmidas e comecei a correr no escuro, minha lanterna balançando loucamente, as sombras se estilhaçando e depois se formando novamente, e daí se estilhaçando à minha volta de novo.

E então eu estava correndo por um campo e através do tempo, e eu estava no túnel da mina de ouro novamente, e estava me inclinando sobre o corpo de Heather e ela abriu os olhos, e depois deu um sorriso morto e entregou o terrível coração para mim.

Seus lábios, lábios frios.

– Pra você.

Mas então não era mais o rosto de Heather, mas o de Lien-hua, e estava me oferecendo o coração.

– Aqui está meu coração, Patrick. Pra você.

O coração tinha o cheiro da morte.

– Não – gritei em meu sonho.

Tropecei para trás.

Ela levantou-se e juntou-se aos cadáveres.

– Não!

E todos chamavam por mim, suas palavras no ritmo da batida do coração negro, dentro da minha cabeça.

– Por que, Patrick? Por quê?

E então acordei com um fraco manto de luz penetrando as cortinas do meu quarto.

Tentei relaxar, deixar o sonho desaparecer, mas ele se recusava a ir embora. Olhei para o relógio e apesar de já ter acabado de passar das 5h, eu não queria voltar a dormir e correr o risco de sonhar novamente, então levantei-me da cama.

As imagens continuavam passando como um filme na minha cabeça. Coloquei uma roupa para fazer exercícios e meu tênis de escalada e fui para a gruta de pedra que eu havia construído em nossa garagem – uma pequena academia de escalada com suportes chumbados nas paredes e pelo teto.

Como Tessa estava dormindo na casa de sua amiga Dora Bender, eu não precisava me preocupar em não acordá-la, então peguei meu aparelho de som de uns 20 anos, coloquei um U2, aumentei o volume o suficiente para me ajudar a esquecer o sonho, botei meu carro para fora e espalhei alguns colchões sobre o concreto para que eu não me machucasse mais do que o necessário quando caísse.

Depois de percorrer as paredes por 10 minutos para me aquecer, comecei a cruzar o teto, me pendurando de cabeça para baixo, os dedos agarrados nos suportes, os dedos dos pés enfiados em pequenas rachaduras ou pressionados contra os suportes por onde eu já havia passado.

Cruzando o teto e voltando.

Os braços bombeavam. O abdômen gritava. A lateral do meu corpo latejava pelas pancadas do cabo do machado de ontem, mas não estava tão dolorido quanto imaginei que fosse estar, então imaginei que nenhuma costela tinha se quebrado. No entanto, ainda doía, especialmente quando eu perdia o apoio e caía do teto de costas.

Os colchões ajudavam um pouco, mas eu certamente sentia o impacto.

Fiz o percurso por 45 minutos, mas por mais que me concentrasse nos movimentos, não conseguia espairecer. Então, finalmente, desisti e subi a escada para me aprontar para me encontrar com Cheyenne.


Algumas pessoas pensam que um investigador é imediatamente transferido para outro caso quando um assassino menciona seu nome enquanto se comunica com as autoridades ou quando faz algo que ameace ele ou sua família.

E mesmo esse cenário sendo um ótimo enredo para um romance policial ou filmes de policiais parceiros, não é assim que as coisas funcionam na vida real. Quando você começa um caso, especialmente um caso de alto nível com um assassino em série, você fica nele, independentemente de quantas ligações com ameaças, fotografias ou mensagens gravadas você receba do assassino.

Tem de ser desse jeito; de outro modo, assim que um investigador começasse a se aproximar, o assassino poderia simplesmente deixar uma mensagem ameaçadora ou fazer uma ligação provocativa e voilà!, a única pessoa que tinha chance de pegá-lo seria realocada. Não é desse jeito que funciona.

Seria fácil demais para os vilões.

No entanto, é verdade que se eles mencionam seu nome, a coisa se torna pessoal.

Havia sido pessoal com Taylor e com Basque, e agora eu sentia a mesma pontada, a mesma raiva íntima com esse novo assassino que havia deixado a mensagem gravada para mim na boca de Heather Fain.

Enquanto saía do chuveiro, trocava de roupa e tomava café da manhã, a mensagem ficava se repetindo na minha cabeça, tornando o caso mais e mais pessoal a cada vez que se repetia.

“Vejo você em Chicago, agente Bowers.”

Talvez um pouco de café ajudasse. Me deixaria agitado. Me ajudaria a pensar em uma nova direção.

Escolhi um hondurenho, torrado à francesa. Afinal, se a detetive Warren ia me carregar por aí pela manhã toda, o mínimo que eu podia fazer era oferecer a ela 470 ml de um café de primeira classe. Moí o suficiente para 940 ml, coei o café com perfeição, enchi duas canecas para viagem, adicionando um pouco de creme e mel no meu, e havia acabado de tomar uma tigela de mingau de aveia quando ela parou no meio-fio.


Carregando a bolsa do computador e agarrando as duas canecas para viagem contra o peito, saí pela porta. Eu nunca havia pegado carona com ela antes, e agora vi que ela dirigia um Saturn sedã 2002. Marrom. Riscado, sujo de lama. Aconchegante.

Mesmo ainda sendo muito cedo, o céu já estava limpo e azul, com uma única faixa de nuvens em camadas altas no oeste. Uma brisa leve e fria passava pela vizinhança, mas, tirando isso, o dia passava uma sensação de sólido e imóvel.

Cheyenne abriu a janela.

– Bom dia, Pat.

– Bom dia – coloquei as canecas sobre o teto e dei um tapinha no carro. – Tenho de dizer que imaginava você como o tipo de garota que dirige uma caminhonete.

– Difícil eu ser classificada assim. Coloque suas coisas no banco de trás.

Abri a porta e percebi que não seria fácil seguir suas instruções. O assento e o assoalho estavam empilhados com papéis, as sobras de pelo menos quatro visitas ao KFC, três alvos de tiro amassados, um par de cabos de chupeta enferrujados, uma roda de bicicleta, um par muito velho de botas de cowboy masculinas sobre as quais achei melhor não perguntar e um manual de voo de helicóptero. Apontei para ele.

– Eu não sabia que você pilotava.

– Ainda não terminei minhas aulas. Só falta tirar a licença.

A fim de arrumar espaço para minha bolsa do computador, empurrei os alvos para o lado. Eles continham agrupamentos no centro dos mais precisos que eu já havia visto; então, enquanto colocava minha bolsa no assento, perguntei a ela:

– Com que frequência você atira?

– Às segundas e terças-feiras. Tento não pular nenhuma semana.

Após fechar a porta, agarrei as canecas de viagem do teto e me juntei a ela no banco da frente.

– Parece que você também tenta não errar a mosca.

– É normal para quem cresceu em um rancho. Você precisa ser capaz de acertar coiotes no meio de cavalos.

– Não conte isso à minha enteada. Ela não gosta de caça: “Nada com um rosto deveria ser morto” – ofereci a ela uma das canecas de viagem. – Café?

– Não. Não gosto nem de ver.

– Ah, mas é um ótimo café.

– Isso é um paradoxo – ela disse.

Ok, isso foi inesperado.

– E eu que pensei que você fosse uma mulher de gosto exigente.

Ela me olhou furtivamente.

– Eu sou. Mas com certas coisas.

Ok. Essa mulher não era sutil.

Antes que eu pudesse dar alguma resposta inteligente, ela deslizou uma pasta de papel pardo pelo painel em minha direção.

– Um pouco de leitura para o passeio.

– Obrigado.

Assim que peguei a pasta, percebi um pingente de São Francisco de Assis pendurado no espelho retrovisor. Eu nunca imaginei que ela fosse do tipo religioso.

Ela realmente era difícil de ser classificada.

Cheyenne seguiu em frente e pegou a I-70.

– Aliás – ela disse –, Heather Fain foi envenenada. Era o mesmo veneno com o qual Ahmed Mohammed Shokr morreu na quarta-feira.

Ahmed era uma das vítimas do duplo homicídio na quarta-feira. Sua namorada, Tatum Maroukas, havia sido morta com uma espada.

Existem apenas quatro maneiras de envenenar alguém: inalação, ingestão, injeção e absorção. Então perguntei a Cheyenne:

– Sabemos como o veneno foi administrado?

– Injetado. Cloreto de potássio.

– Então – murmurei – eles encontraram excesso de potássio nas veias mas sem potássio no humor vítreo – era mais uma observação do que uma pergunta.

Ela me olhou intrigada.

– Como você sabia?

– É uma grande pista que aponta para cloreto de potássio. Mas tam bém uma pista óbvia. O assassino deveria saber que encontraríamos.

– Você acha? Eu não acho que muitos assassinos saberiam de algo assim.

– Esse saberia. Ele nos quer na cola dele.

– Como você sabe que ele não cometeu apenas um erro?

– Como você disse na mina no outro dia: ele está deixando uma mensagem. Ele não está tentando cobrir seus rastros, ele está propositalmente escolhendo deixá-los.

Ela demorou um pouco para responder.

– Mais uma coisa. Foi só uma mulher na Represa Cherry Creek.

– Pelo menos isso de boas notícias.

Cheyenne ficou em silêncio por um momento e parecia estar perdida em pensamentos profundos; então disse suavemente:

– Uma menina de 10 anos de idade encontrou as partes do corpo antes de o assassino ligar avisando do local.

Senti a garganta apertada. E bem lá no fundo, no lugar mais importante, jurei pegar esse cara.

Abri a pasta e comecei a analisar os arquivos.


19

6h45

Tessa teria dormido por pelo menos mais duas horas se o alarme idiota de Dora não tivesse tocado.

Quando Dora apenas rolou na cama e o ignorou, Tessa o desligou, então voltou para a bicama e olhou para a escrivaninha de Dora. Para o computador dela. Para a parede.

A respiração de Dora ficou estável novamente.

Nos últimos meses, sua amiga não vinha descansando o suficiente.

Então Tessa deixou-a dormir. Ela precisava.

No inverno passado, os pais de Dora haviam saído para um encontro com um dos amigos do pai dela, o tenente Mason e sua esposa. A garota, que havia ficado de babá na casa dos Mason, mandou uma mensagem de texto a Dora pedindo para ela descobrir quando eles iriam voltar, e Dora respondeu. Enquanto elas trocavam mensagens, a babá deixou a bebê sozinha na banheira. E a garotinha havia escorregado para dentro d’água.

Pensar nisso ainda dava calafrios em Tessa.

Apenas algumas pessoas sabiam que era Dora que estava trocando mensagens com Melissa, e até onde Tessa sabia, ela era a única pessoa com quem Dora tinha falado sobre isso.

– Se eu não estivesse trocando mensagens com ela – ela havia dito a

Tessa uma vez –, Melissa estaria prestando atenção na bebê.

– Que bobagem – Tessa havia dito. – Não é sua culpa – mas isso não ajudou muito. Nada que ela havia dito tinha ajudado, então finalmente ela não tocou mais no assunto.

Por um momento, Tessa ficou deitada assistindo o protetor de tela no computador de Tessa passando fotos da família dela. Tessa nunca havia tido pai e mãe por perto, exceto se você considerar os poucos meses antes de sua mãe morrer, quando Patrick estava com elas.

E tudo isso fazia com que fosse difícil olhar para as fotos de Dora com os pais felizes.

Tessa pegou seu celular, abriu a galeria de fotos, selecionou o álbum desejado e deslizou pelas fotos de sua mãe, esperando que aquilo a fizesse se sentir melhor, mas foi justamente o contrário. Finalmente ela guardou o telefone, virou para o lado, olhou para a parede e ficou esperando a amiga acordar.


Cheyenne estava quieta enquanto dirigia em direção à casa de Sebas-tian Taylor, e agradeci pelo silêncio, pois isso me dava chance de revisar os arquivos do caso profundamente.

As velas cercando o corpo de Heather eram Chantel, uma marca encontrada em praticamente qualquer loja de departamentos; então, tentar rastrear o comprador seria provavelmente um beco sem saída.

Além disso, o dispositivo de gravação podia ter sido comprado em qualquer loja de eletrônicos; então, assim como as velas, seria quase impossível de rastrear. Não havia nenhuma impressão digital nas velas nem no dispositivo.

A equipe forense havia conseguido determinar que as velas estavam queimando havia cerca de duas horas.

O espaço de tempo entre o acendimento das velas e a denúncia anônima daria ao assassino tempo suficiente para dirigir para praticamente qualquer lugar na região metropolitana de Denver.

A denúncia anônima na sexta-feira, aquela que relatava o local dos corpos de Sebastian Taylor e Brigitte Marcello, havia sido feita enquanto eu estava no tribunal.

O Serviço Médico de Emergência não foi capaz de rastrear o local de onde nenhuma das duas denúncias foram feitas.

Esses arquivos de casos incluíam transcrições de ambas as ligações anônimas; nos dois casos, quem ligou havia dito algo que chamou minha atenção: “O anoitecer está chegando. O quarto dia termina na quarta-feira”.

As frases repetidas certamente ligavam os homicídios duplos na quinta e na sexta-feira, e também despertaram minha curiosidade.

O anoitecer está chegando...

O quarto dia termina na quarta-feira...

Anoitecer... Uma metáfora para a morte? Um prazo final?

Quarto dia... Dias do mês? A duração da onda de crimes? Dias da cria

ção, talvez? O que a Bíblia diz que Deus criou no quarto dia? Teria alguma coisa a ver com isso?

Eu não sabia. Era algo que eu deveria pesquisar.

Enquanto ponderava as coisas, encontrei a página com as informa

ções sobre os assassinatos na casa de Sebastian Taylor.

Ele tinha um sistema de segurança de ponta, com cinco câmeras de vigilância, três das quais haviam sido desativadas. As outras duas apenas mostravam breves vislumbres de um homem de estatura mediana usando uma máscara de esqui.

E o assassino havia tornado aquilo pessoal novamente: ele deixou um bilhete para mim na bancada da garagem de Sebastian Taylor: “Shade não vai mais te incomodar, agente Bowers”. Então o assassino sabia que Taylor chamava a si mesmo de Shade, e ele sabia que Taylor vinha me enviando mensagens.

Mas como? Nada daquilo fora revelado ao público. E como ele encontrou Taylor?

Virei a página.

Após matá-los, o assassino havia transportado as partes do corpo de Brigitte para o lago, mas deixou o corpo de Sebastian Taylor na garagem. E, apesar de o cenário me perturbar em um nível pessoal, profissionalmente ele me intrigava.

Normalmente assassinos apenas transportam partes de corpos para se livrar deles ou para levar para casa como lembranças. Então, por que deixar um corpo na casa e levar o outro cruzando a cidade e então largá--lo em uma praia pública?

Considerei o seguinte: baseado nas duas mensagens que ele havia deixado para mim, o assassino sabia quem eu era, sabia que eu estaria na cena do crime na quinta à tarde e sabia que eu iria depor em Chicago. Então era provável que ele também soubesse sobre meu trabalho.

Se esse fosse o caso, ou ele era muito estúpido, deixando para mim diversas indicações de locais, cuja combinação me ajudaria a rastreá-lo, ou era muito inteligente, talvez escolhendo a mina abandonada e a praia pública por nenhuma outra razão a não ser atrapalhar a investigação.

E como ele havia sido capaz de localizar Sebastian Taylor, algo que nenhuma outra agência policial no país havia conseguido, eu não achava que esse assassino fosse burro.

Não, não mesmo.

Conforme Cheyenne seguia com o carro cada vez mais alto pelas montanhas na direção da casa de Taylor, terminei meu café e percebi que, se ela fosse decidir experimentar o dela mais tarde, ele não estaria mais fresco e, consequentemente, ela não iria gostar, e poderia nunca mais se apaixonar pela bebida mais perfeita do mundo. Então, fazendo-lhe um favor, bebi o café dela também.

– Vamos chegar lá em cerca de 10 minutos – ela disse.

Voltei para a lista de possíveis suspeitos.


Tessa ouviu Dora se mexendo na cama, mas esperou para ver se ela estava pronta para levantar.

O nome verdadeiro de sua amiga era Pandora, mas ela não gostava de ficar sendo constantemente lembrada da história sobre a garota que abriu a caixa e libertou todo o mal no mundo. Isso não era exatamente a coisa mais legal para alguém se sentir responsável. Então praticamente todo mundo a chamava apenas de Dora.

Ela tinha os cabelos avermelhados, olhos castanho-escuros tímidos e um tipo de rosto normal, facilmente esquecível. As duas garotas tinham se dado bem desde a primeira vez que se encontraram, mesmo não tendo nada em comum.

Ah! Exceto que, como o pai de Dora era o médico legista, os pais das duas lidavam com cadáveres o tempo todo.

Então pelo menos havia isso.

Finalmente Dora se inclinou na beirada da cama.

– Tessa, você acordou?

– Uh-hum.

– Dormiu bem?

– Sim, e você?

Uma pausa, e então:

– Eu fiquei acordando, pensando em... você sabe.

– Sim – Tessa tentou pensar em algo que tirasse a cabeça de Dora da morte da bebê. – Ei, eu ouvi falar bem de um vídeo novo do Syrup Dive. Nós deveríamos vê-lo.

Dora olhou para ela intrigada.

– Pensei que você odiasse Syrup Dive. Você me falou que a música deles era pangelo...

– Panglossiana – Tessa encolheu os ombros. – Bom, talvez eu tenha mudado de opinião. Vamos, ouvi falar que o vídeo é legal.

E então, mesmo que Tessa realmente achasse que a música do Syrup Dive fosse inocentemente otimista, ela foi até o computador de Dora e abriu o YouTube.

Mais uma vantagem: você não vai precisar mais ficar vendo fotos dos pais sorridentes de Dora.

– Panglossiano – Dora colocou os pés no chão. – É grego?

– Latim. Eu nunca estudei grego. Só latim. E um pouco de francês.

Dora se juntou a ela ao lado do computador.

– Tem alguma coisa que você não sabe?

– Eu não consigo descobrir por que eu não dou risada quando me faço cócegas.

Ela encontrou o vídeo.

– E – sua amiga disse – minha história, a Caixa de Pandora. Você não conhece. Eu ainda não acredito que você nunca a leu. Considerando o tanto que você lê.

Tessa nunca foi muito interessada em mitologia grega.

– Acho que conheço a história muito bem: Pandora era curiosa. Ela abriu a caixa e dela vieram toda a dor, pestilência e doenças do mundo.

– Sim, mas isso não é tudo – Dora bocejou. – Tem um final surpreendente.

– Vou dar uma olhada nesse fim de semana, prometo.

E então ela apertou play.


Eu tinha acabado de tomar o café de Cheyenne e havia lido cerca de dois terços dos arquivos do caso, quando ela quebrou o silêncio.

– Chegamos.

Tirando os olhos dos papéis, vi que estávamos virando pela longa entrada de cascalho que levava até a casa de Sebastian Taylor.


20

Taylor havia escolhido viver em uma rua sem saída, o que parecia tragicamente irônico para mim, considerando as circunstâncias.

Rústica, mas ainda assim sofisticada, a casa bege e marrom não era pretensiosa o suficiente para atrair atenções indesejadas, embora esbanjasse riqueza e abundância exatamente como eu tinha certeza de que Taylor gostaria.

Além do carro de Brigitte Marcello, que ainda estava parado na entrada, duas viaturas e dois carros civis, incluindo o de Kurt, estavam estacionados na frente da casa.

Depois de mostrarmos nossas identificações para o sonolento policial de guarda, Cheyenne e eu entramos na sala de estar de Sebastian Taylor.

Tapete de luxo. Mobília de couro. Apetrechos da Guerra Civil. Pinturas art nouveau que devem ter custado uma fortuna. Percebi que as paredes não possuíam nenhuma foto nem das ex-mulheres de Taylor, nem de nenhum dos seus quatro filhos, e nada disso me surpreendeu. Um armário de bebidas bem abastecido ficava perto da porta que dava para a sala de jantar.

Um dos policiais da perícia estava coletando impressões digitais na sala de jantar, e imaginei que os outros membros da unidade estivessem provavelmente na garagem, onde os assassinatos aconteceram. Quando estou trabalhando em um caso normalmente carrego um par de luvas de látex no bolso de trás da minha calça, mas encontrei algumas nos esperando sobre a mesa de centro, então Cheyenne e eu as colocamos.

– Vamos começar no andar de cima – ela disse.

Acenei com a cabeça e, então, subimos.

No meio do caminho, na escada, ela limpou a garganta discretamente.

– Você está terrivelmente quieto desde que saímos de sua casa, Pat. O que está passando por essa sua cabeça?

Levei um segundo para reunir meus pensamentos. Então disse:

– Em 15 anos como investigador eu nunca havia me deparado com um duplo homicídio no qual o assassino desmembrou as duas vítimas, então transportou uma delas para uma cena secundária onde seria facilmente encontrada e identificada dentro de horas.

– Verdade – ela disse pensativamente. – Normalmente ele teria deixado as duas vítimas, ou ido com as duas.

Chegamos ao andar superior.

– Exatamente.

O andar de cima da casa de Taylor era pequeno. Apenas um quarto principal com um banheiro anexo, um quarto extra que ele havia deixado completamente vazio, um banheiro comum e um patamar que ele havia transformado em um espaço para o computador. Tanto o corredor quanto os quartos eram decorados com tons de terra que eram cuidadosamente coordenados para combinar com o carpete.

Ela seguiu o caminho para o quarto principal.

– O que você acha que o assassino estava querendo nos dizer levando apenas um corpo?

– Eu não sei o que ele estava tentando nos dizer – respondi –, mas considerando os fatos até agora, ele conseguiu me dizer uma coisa.

– E o que é?

O carpete do quarto principal estava recém-aspirado, provavelmente pela perícia procurando por evidências. O quarto parecia intocado, nada fora do lugar.

– Que ele é único no jeito que pensa – me ajoelhei e vasculhei debaixo da cama. Não encontrei nada. Levantei-me e olhei para ela.

– Em outras palavras – ela disse –, difícil de classificar.

– Isso parece estar ficando popular.

– Me faz pensar em uma coisa que li uma vez: é essencial para um investigador entender o intelecto, o treinamento e a aptidão de seu oponente, e então responder de acordo.

Fiz uma pausa.

– É do meu artigo do mês passado.

– Sim. Foi um dos seus melhores este ano – os olhos dela eram como planetas delicados orbitando o quarto em uma simetria precisa. Às vezes ela movia os lábios levemente, mas então estreitava os olhos e balançava a cabeça de modo suave, como se estivesse tendo uma discussão silenciosa com ela mesma. – Eu não concordei com todas as suas conclusões, mas concordei com a parte sobre não esperar que uma pessoa de intelecto superior ou inferior aja de maneiras convencionais.

Entramos no banheiro.

– Bom, essa é a parte pela qual não posso levar crédito – creme de barbear e uma lâmina estavam sobre a bancada. Uma cesta de roupas sujas ficava no canto. Levantei a toalha que estava por cima e gentilmente segurei contra minha bochecha. Ainda estava levemente úmida. – Não é uma citação direta, mas o conceito vem da abordagem de C. Auguste Dupin em A carta roubada. Eu o creditei nas notas finais.

– Eu sei – ela disse. – Eu as li.

Esse sim era meu tipo de mulher.

Eu sabia pelos arquivos do caso que a perícia havia encontrado fios de cabelo de Taylor no ralo do banheiro. Não vi mais nada relevante na área do chuveiro.

– Mas – ela disse – fiquei surpresa por você ter citado uma história fictícia.

– Bem, minha filha, quero dizer, enteada, ela é uma grande fã de Poe. Ela me convenceu a ler três de suas histórias de detetives. Na verdade, não são ruins.

– Vou ter de conferi-las.

Levamos um tempo explorando os quartos do andar superior e então fomos para o primeiro andar onde encontramos o tenente Kurt Mason mandando uns dos membros da perícia examinar o carro de Brigitte.

Assim que ele saiu, Cheyenne se aproximou do armário de bebidas de Taylor e apontou para uma garrafa de vinho pela metade.

– Brunello di Montalcino, 1997. Bom. Esse homem conhecia vinhos – ela gesticulou na direção do conjunto de garrafas. – Mas tem muita coisa potente aqui. Você acha que ele tinha problema com bebidas?

Kurt balançou a cabeça.

– Alguém com problema com bebidas não deixa garrafas pela metade por aí, nem mantém um armário cheio de álcool tão visível. Ele esconde as garrafas, em armários, debaixo da cama ou no meio das roupas. – talvez sem nem perceber, Kurt foi falando mais baixo a cada palavra. Ele se ajoelhou e olhou para uma garrafa de vodca. – Não. Taylor não tinha um problema. Ele tinha um hobby.

Cheyenne e eu trocamos olhares. Eu tinha bastante certeza de que Kurt não bebia, mas eu sabia que sua esposa Cheryl havia adquirido esse hábito após a morte da filha deles no inverno passado. E, mesmo tendo tantas vezes visitado a casa deles desde que ele havia me convidado para me unir à força-tarefa em janeiro passado, eu nunca havia visto nenhuma garrafa pela metade por lá.

Hora de mudar de assunto.

– Impressões e DNA – eu disse. – Alguma coisa?

Kurt levantou-se e balançou a cabeça.

– Nada.

Dei uma olhada na lixeira da cozinha: uma caixa de granola, alguns guardanapos amassados, cascas de laranja. Fechei a lixeira.

– Escute, estive pensando que devemos dar uma olhada melhor na vitimologia.

Cheyenne falou, espelhando meus pensamentos:

– Quanto mais você sabe sobre o estilo de vida da vítima, sua história e seus hábitos, mais você vai saber sobre o assassino.

– Sim – ela obviamente havia lido um dos meus artigos do ano passado também. Impressionante. – Como ele as escolhe? Como sua vida se mistura com a delas? Vamos mais fundo. Não apenas as coisas típicas como conhecidos em comum, local de trabalho, endereço de casa, filiações a clubes. Eu quero saber qual caminho nossas vítimas faziam para ir para o trabalho, onde alugavam seus filmes, onde colocavam gasolina.

Percebi que estava dando ordens e me segurei.

– Me desculpem. Eu quero dizer que é essa a abordagem que devemos tomar.

– Vamos colocar Robinson e Kipler nisso – Kurt disse. Ele não parecia incomodado pelo meu tom.

– Preciso falar com Kipler mesmo – Cheyenne interrompeu. – Vou ligar para eles – ela pegou o celular e foi para a sala de jantar.

Quando ela saiu, Kurt olhou para a porta no outro lado da cozinha.

– Você viu a garagem?

– Ainda não.

– Vamos, é bom você dar uma olhada.


21

A garagem de Taylor era um santuário brilhante para sua SUV Lexus recém-encerada, que ficava perfeitamente centralizada entre as paredes. Uma bancada contornava o lado oeste. O lugar parecia imaculado, não fosse pela larga faixa de sangue onde o assassino havia feito seu trabalho.

A maioria das evidências já havia sido removida da garagem e levada para o laboratório, incluindo as cordas que amarravam Taylor, a mordaça e o próprio cadáver; mas o envelope pardo com a mensagem escrita manualmente pelo assassino para mim ainda estava sobre a bancada: “Shade não vai mais te incomodar, agente Bowers”.

Tirei as fotos do envelope e descobri que eram fotos instantâneas de Tessa saindo do colégio. Taylor havia incluído um bilhete que dizia: “Ela seria um alvo tão fácil! Você deveria cuidar melhor dela. – Shade”.

Meus dedos ficaram tensos e, quando coloquei de volta as fotos, percebi que, apesar do valor que eu dava para a vida humana, eu estava feliz por Sebastian Taylor estar morto.

De acordo com os arquivos do caso, as marcas de pneus encontradas duas semanas antes ao lado de uma das caixas de correio que Shade havia usado combinavam com os padrões da SUV de Taylor. Perguntei para Kurt:

– As duas armas de Taylor estão no laboratório?

– Sim.

– E nenhuma foi disparada? Nenhuma estava carregada?

– Isso mesmo.

A porta para a casa se abriu e Cheyenne se juntou a nós de novo.

– Acho que o cara esvaziou as armas enquanto Taylor tomava banho – eu disse. – Foi tudo um jogo elaborado e doentio.

Cheyenne parecia um pouco confusa.

– Fale mais sobre isso.

– Taylor era muito bem treinado. Ele nunca teria andado com uma arma sem um cartucho e é quase certo que ele teria atirado no invasor se alguma de suas armas estivesse carregada. Estou achando que o assassino entrou na casa de Taylor, encontrou as armas e as esvaziou antes de Taylor entrar na garagem. A hora perfeita para esvaziar as armas teria sido enquanto Taylor tomava banho.

Um dos membros da perícia parou de coletar impressões digitais na maçaneta e veio em nossa direção. Cabelo castanho. Cerca de 30 e poucos anos. Rosto inquisitivo. Eu o reconheci como um dos homens que estavam esperando fora da mina quando investigamos o corpo de Heather na quinta-feira. Nós ainda não nos conhecíamos, então imaginei que ele fosse novo na unidade. Estiquei minha mão.

– Agente especial Bowers.

– Reggie Greer.

Apertamos as mãos e então me ajoelhei ao lado da porta do moto rista. Ele agachou-se ao meu lado.

– Vê o sangue aqui, debaixo do carro? Taylor deve ter se aproximado do veículo e estava abrindo a porta quando o assassino, que estava escondido sob o carro, atacou.

Gesticulei com a mão, imitando o movimento de corte da lâmina do assassino.

– Um, dois. Primeiro a perna direita. Vê o respingo ali? – Kurt e Cheyenne acenaram com a cabeça. Reggie analisou as manchas de sangue.

Com meu dedo, tracei o limite do sangue espirrado.

– Taylor já estava a caminho do chão quando o assassino cortou seu tendão de Aquiles esquerdo. Dá para ver como o sangue espirrado da perna direita começa perpendicular ao veículo e termina paralelo a ele, então Taylor girou no sentido anti-horário caindo no chão. Provavelmente caiu de costas. Não tenho certeza sobre isso, porém. Análise de manchas de sangue não é minha especialidade.

Levantei e olhei ao redor.

Reggie estava olhando para mim

– Sangue espirrado não é sua especialidade?

– Isso mesmo – eu estava estudando as linhas de visão da janela do carro de Brigitte. Se as luzes estivessem desligadas dentro da garagem, os faróis dela teriam iluminado parcialmente o local.

Reggie devia ter ouvido minha conversa com Kurt alguns momentos antes, porque disse:

– Mas se o assassino se esgueirou para dentro da casa e descarregou as armas, por que não matou Taylor enquanto ele estava indefeso no chuveiro? Por que esperar?

– Talvez isso não fosse só uma questão de matá-lo. Eu não acho que ele quisesse que acabasse rápido: prendê-lo na garagem, incapacitá-lo, mas deixar para ele as armas para que ele pensasse que conseguiria escapar. Como um gato brincando com um rato.

– A morte não é suficiente – Cheyenne disse suavemente. – Ele quer vê-los se contorcendo antes.

Ouvi um toque de celular e tanto Kurt quanto eu apalpamos nossos bolsos. Quando peguei meu telefone, percebi que havia esquecido de ligá-lo. Kurt mostrou seu celular.

– Preciso atender.

Ele se distanciou. Liguei meu celular, e Reggie continuou coletando impressões digitais na maçaneta. Cheyenne ficou ao meu lado silenciosamente por um instante, e depois disse:

– Você chegou à página da lista de evidências nos arquivos do caso? Guardei meu telefone.

– Não.

Ela apontou para um recibo na outra ponta da bancada.

– É de comida chinesa. A perícia encontrou três caixas de comida vazias.

– Você tá brincando – verifiquei a hora no recibo. Havia sido emitida às 20h18.

– Não. Brigitte pegou a comida vindo para cá, mas não havia nada no estômago dela – e ela acrescentou sombriamente, sem dúvida se referindo ao desmembramento de Brigitte. – Nós nem precisamos de autópsia para descobrir isso.

Mas Taylor havia tomado banho, se trocado e estava prestes a entrar no carro quando foi atacado... Ele não estava esperando comer em casa, ele ia sair...

Nós poderíamos verificar as chamadas recebidas e as mensagens de texto no celular de Brigitte mas, por enquanto, me parecia que o assassino havia de alguma forma entrado em contato com ela e a convencido a trazer comida.

E as caixas de comida estavam vazias quando a perícia as encontrou.

O que queria dizer que ele comeu a comida chinesa enquanto matava e desmembrava aquelas duas pessoas.

Esse cara não estava para brincadeira. Era frio e perturbado o quanto podia.

– O dr. Bender já terminou a autópsia em Taylor? – perguntei para Cheyenne.

Ela balançou a cabeça.

– Não sei.

Disquei o número dele e, quando Eric atendeu, pedi desculpas por ter ligado tão cedo, então perguntei como estava a visita de Tessa.

– Boa – ele disse. – As meninas estão no quarto da Dora agora, no computador.

Fiquei surpreso por Tessa já ter acordado, mas me mantive no caso.

– Eric, para quando a autópsia de Sebastian Taylor está marcada?

– Estou indo para o hospital em meia hora – então ele adicionou com sobriedade: –, pois essa semana foi cheia. Eu mal consegui acompanhar tudo. Pretendo começar às 10h.

Eu não sou fã de acompanhar autópsias. Olhei no meu relógio: 9h09.

Me ocorreu que em menos de 48 horas eu estaria de volta na bancada de testemunhas em Chicago. Decidi não pensar sobre isso.

– Tudo bem se eu der uma passada para ver o corpo antes de você começar?

– Claro. Vou pedir para Lance Rietlin se encontrar com você. Ele é o meu residente esse ano. Ele te levará para onde for preciso. Está procurando por algo específico?

– Eu tenho algumas perguntas sobre os ferimentos, como ele foi atacado. Vejo você lá.

– Ok. Até mais.

Guardando o telefone no bolso, virei-me para Cheyenne.

– Podemos deixar a perícia terminar aqui. Se sairmos agora, acho que teremos tempo suficiente para inspecionar o cadáver antes de o dr. Bender começar.

Ela pegou as chaves.

– Deixe-me dar só mais uma olhada por aqui. Encontro você no carro.


22

Tessa e Dora deram uma pausa nos vídeos para tomar banho, se vestir e comer pizza fria de café da manhã antes de voltarem para o computador para checarem suas páginas do Facebook.

Após 10 minutos, Dora deu um tapa na escrivaninha.

– Acabei de lembrar de um vídeo que queria te mostrar – cada palavra dela soava meio espremida por causa do chiclete de morango que ela havia colocado na boca alguns minutos antes. – Você viu aqueles dos meninos resolvendo um cubo mágico vendados?

– Não – Tessa havia ouvido falar sobre os vídeos de cubo mágico e sabia que eles existiam há algum tempo, mas não havia se interessado por eles. Mas agora parecia que isso faria Dora feliz, faria com que ela não pensasse na razão pela qual não tinha conseguido dormir bem, então ela agiu como se estivesse interessada. – Claro, sim, vamos vê-los.

– É muito louco – Dora estava digitando no teclado. – Já tentou resolver um?

– Não.

– Sério?

– Sim, por quê?

Dora encolheu os ombros.

– Não sei. É que você gosta tanto de quebra-cabeças e coisas do tipo – ela rolou a tela até uma imagem congelada de uma menina chinesa mais ou menos da idade delas segurando um cubo mágico. – Esse é o melhor. Ela resolve em menos de um minuto.

Ela apertou play e Tessa viu a garota no vídeo estudar o cubo, esperar alguém vir vendá-la e então girar os lados até que, apenas 57 segundos depois, o cubo estava totalmente resolvido. Então ela largou-o, tirou a venda e sorriu.

– Incrível, né? – Dora pegou seu próprio cubo mágico da estante e deu para Tessa. Todos os lados estavam embaralhados. – Primeiro eu achei que ela memorizava os movimentos, mas não sei, ela deve ter girado os lados umas 40 ou 50 vezes.

– Vamos assistir de novo.

Elas assistiram.

– Setenta e duas – Tessa disse.

– Setenta e duas o quê?

– Ela girou o cubo 72 vezes.

Com o braço por cima do teclado, Tessa arrastou o cursor para o ícone de play e clicou com o mouse. Dora aproveitou a oportunidade para olhar no espelho e mexer no cabelo.

Quando o vídeo terminou, Tessa começou a analisar o cubo que Dora havia dado a ela.

– É maluco, né? – Dora disse. – Eu não consigo fazer. Existem bilhões de combinações diferentes.

Tessa considerou que... seis lados... nove quadrados de cada lado...

– Provavelmente mais que isso – ela murmurou.

– Então, viu!? – Dora disse. – É por isso que é tão incrível esses meninos resolvendo o cubo vendados.

– Acho que consigo fazer isso.

– Fazer o que? Resolver?

– Sim – Tessa disse. Ela já estava treinando girar os lados, sentindo como o cubo funcionava, a maneira como uma girada afetaria as combinações de cores nos outros lados.

– Bom, sim, se você treinar...

O pai de Dora chamou-a de um outro quarto e ela agitou um dedo no ar.

– Só um instante.

Enquanto a amiga saía do quarto, Tessa examinou o cubo. Havia pelo menos três maneiras de resolvê-lo. Primeiro, trapacear. Olhar a solução na internet. Talvez com um vídeo de instruções.

Não era a praia dela.

Segundo, mexer no cubo até que você instintivamente conheça os padrões, como quando digitamos ou aprendemos a tocar um instrumento musical. Mas isso levaria dias, semanas. Talvez mais.

Não, para resolvê-lo rapidamente, seria necessária uma abordagem diferente.

Então, matemática. Atribuindo um número diferente para cada um dos 54 quadrados, resolver o cubo se tornava nada mais do que uma simples – Ok, talvez não tão simples – equação algébrica tridimensional. E como as peças do meio não se moviam, e cada um dos outros quadrados era fixo em relação ao quadrado do lado no lado adjacente do cubo, o número de giros necessários para resolver diminuía exponencialmente.

Ela concluiu que não importava quanto os lados estivessem embaralhados, o cubo poderia sempre ser resolvido em menos de 40 giros.

Provavelmente menos de 30.

A garota no vídeo não havia sido eficiente o suficiente em sua solução. Dora voltou e se jogou na cama ao lado de Tessa.

– Meu pai está totalmente perdido essa semana sem minha mãe por perto.

– Onde ela está mesmo?

– Alguma convenção imobiliária em Seattle. Volta na quarta. De qualquer forma, ele precisa ir ao hospital fazer uma autópsia e precisa que eu faça algumas tarefas. Então vou ter de te deixar na sua casa umas 10h.

Isso dava a elas meia hora.

– Sem problema – Tessa atribuiu mentalmente números para cada um dos 54 ladrilhos no cubo. – Estou pronta.

– Se você está dizendo – Dora segurou sua mão. – Deixe-me misturar.

– Já está misturado.

– Vou misturar mais.

Tessa segurou-se para não revirar os olhos.

– Tanto faz – ela deu o cubo para Dora.

Dora virou-se de costas e Tessa podia ouvir os lados sendo girados. Na verdade, misturar os quadrados do cubo seria como embaralhar um conjunto de cartas de baralho, onde três vezes não se diferenciavam de 20 vezes. O grau de aleatoriedade introduzido na ordem das cartas era estatisticamente idêntico; você poderia girar e misturar o cubo por cinco minutos, cinco horas ou cinco dias e realmente não alteraria o número de giros necessários para resolvê-lo.

Após cerca de 30 segundos, Dora virou-se e entregou a Tessa o cubo.

Ela o analisou. Rodou-o por 360 graus. Memorizou as combinações de cores.

– Marque meu tempo – disse, e então fechou os olhos.

– Você não tá falando sério.

Tessa abriu os olhos.

– O quê?

– Com os olhos fechados?

– A menina chinesa fez assim.

– Ela provavelmente praticou a vida inteira.

– Talvez ela não tenha praticado nada. Quem sabe? Eu consigo fazer.

– De jeito nenhum.

– Ok, que tal apostarmos um latte? Se você conseguir resolver, você me paga um a caminho de casa.

Dora encolheu os ombros. Mascou seu chiclete.

– Ok. E vice-versa. Preciso pegar uma venda para você ou posso confiar? Tessa fechou os olhos novamente.

– Pode confiar em mim.

– Tudo bem, garota – então uma pausa. Tessa imaginou que Dora estava checando o relógio. – Preparar... atenção... vai!

Ela levou um momento para revisar mentalmente a relação entre os 54 números.

– Já estou contando o tempo – Dora disse.

– Shhhh – Tessa começou a girar os lados do cubo, reorientando os números em sua cabeça a cada girada, visualizando-os girando e se alterando em torno uns dos outros como se o cubo fosse transparente e todos os quadrados tivessem os números escritos neles. Calculando, recalculando suas posições, seus movimentos, seus padrões. Não era tão difícil quanto ela pensou que seria.

– Trinta segundos.

– Quieta.

Em sua mente, ela via os lados se formando, o lado vermelho com pleto, o lado branco faltando apenas uma parte. Ela parou. Pensou. Girou.

Pronto. Dois lados.

Quase.

Ela trabalhava metodicamente no cubo. Sistematicamente.

– Cinquenta segundos.

– Dora, shhhh!

Gira, gira.

Gira.

Sim. Todos os números alinhados.

Pronto. Ela colocou o cubo sobre a cama e abriu os olhos.

– Tempo!

– Um minuto e quatro segundos – Dora disse. Elas estavam ambas olhando para o cubo, que estava pelo menos tão embaralhado quanto antes. – Uau! – Dora usou um tipo de sarcasmo amigável. – Impressionante. Acho que vou querer um latte grande.

– Droga – Tessa murmurou. – Isso deveria ter funcionado.

– Tome – Dora enfiou o cubo na sacola que Tessa usava como uma bolsa. – Pegue. É seu.

– Não, tá maluca?

– Sério. Essa coisa é difícil demais para mim – ela esperou até Tessa pegá-lo. – Vai. Tá tudo bem.

Finalmente Tessa aceitou.

– Legal. Obrigada.

– Ah! – Dora disse. – Você não vai acreditar nisso. Vamos arrumar um cachorro!

Dora era a rainha das coisas aleatórias.

– Um cachorro? – Tessa sequer tentou disfarçar seu desdém.

– Sim. Meu pai falou que acha que vai ajudar. As coisas têm sido difíceis, sabe, desde...

– Sim, eu sei.

– Eu sei que parece meio estranho arrumar um cachorro quando...

– Não-não-não-não – Tessa espremeu todos os nãos juntos em uma só palavra. Ela sabia que lidar com tristeza e culpa não era fácil, mesmo quando a culpa não era sua. Ultimamente ela havia se dedicado a escrever em seu diário e fazer poesias para lidar melhor com seus sentimentos, mas logo após a mãe morrer, ela tinha se dedicado a se cortar, machucando seu próprio braço, para suportar a dor e a solidão. Arrumar um animal de estimação era algo muito melhor do que isso.

– Você não precisa explicar. Mas é só um cachorro? Vamos, em vez disso arrume um gato.

Dora pareceu desapontada.

– O que há de errado com um cachorro? Eles são os melhores amigos do homem.

– Bom, eu tenho uma regra: sempre que meu melhor amigo começa a cheirar minha bunda e comer seu próprio vômito, é hora de achar um novo melhor amigo.

– Ah – Dora disse. – Uau! Obrigada pela imagem.

– Sem problema.

– Talvez devêssemos pegar um gato.

– Boa escolha.

E então Dora partiu para uma explicação sobre como a prima dela havia arrumado um gato quando ela a estivera visitando, no verão passado em Orlando, e que ela a havia apresentado para aquele garoto muito lindo que trabalhava na Disney World, e então Dora suspirou e começou a falar sobre o quanto ela ia sentir falta de Tessa enquanto estivesse em Washington, no verão, e como ela queria arrumar um emprego no Elitch Gardens10. depois de fazer as provas finais, para as quais ela não estava mesmo preparada...

Mas a atenção de Tessa havia voltado para o protetor de tela de Dora. Ela desviou os olhos e fingiu ouvir a amiga.


Eu estava do lado de fora da casa de Taylor esperando por Cheyenne quando Kurt se aproximou de mim. Ele não parecia feliz.

– Aquela ligação que recebi há alguns minutos... – ele disse – era o capitão. Tem algo que preciso te contar.

Pelo tom de voz de Kurt, eu estava certo de que o capitão não havia nos convidado para tomar uma cerveja com ele depois do trabalho.

– O que foi?

– Você sabe como ele não gosta muito das suas técnicas...

Lá vamos nós.

– Sim?

– Bom, na noite passada ele conversou com sua supervisora no Bu reau, a diretora-assistente Wellington.

Ótimo.

Desde que dei um depoimento alguns anos atrás que atrasou tem porariamente os planos de carreira dela, Margaret Wellington vinha me atacando com tudo que fosse possível. Preparei-me para más notícias.

– Ela disse ao capitão Terrell que, com o julgamento de Basque e o tiroteio de ontem, ela teme que você possa estar distraído, sem poder realizar o seu melhor.

Eu podia sentir minha temperatura subindo.

– O meu melhor.

– Palavras dela, não minhas. Ela está enviando outra pessoa para trabalhar no caso com a gente. O capitão Terrell já aprovou. Ele é um grande fã desses programas de criação de perfis na TV, então ele...

– Ela está mandando um criador de perfil? – se Margaret estivesse mandando Lien-hua, as coisas iam ficar desconfortáveis muito rápido.

– Sim.

– Ela falou quem? É a agente especial Jiang? Lien-hua Jiang?

– Não. Um cara chamado Vanderveld. Não falou o primeiro nome.

Ah, isso era muito pior.

– Jake Vanderveld.

– Então você o conhece?

– Sim. Fomos apresentados.

Kurt olhou para mim por um momento, sem dúvida tentando deci frar o que se escondia em minhas palavras.

– Algo que eu deva saber?

Margaret sabia como eu me sentia em relação a Jake. Provavelmente por isso ela o colocou no caso.

– Você já percebeu que eu não sou exatamente o maior fã de criadores de perfil?

– Eu já devo ter percebido.

– Bom, ele é o motivo – vi Cheyenne sentando no banco do motorista. – Eu te conto tudo depois. Quando ele chega aqui?

– Ele deve chegar em algum momento próximo ao meio-dia. Acho que ele vai querer se informar sobre tudo esta tarde na central de polícia. Eu te aviso quando souber mais.

Cheyenne abriu a janela e colocou a chave na ignição.

– O que está havendo? – ela perguntou.

– Te conto no caminho – abri a porta do carro. – Vamos visitar o necrotério.


23

Sala 404, Conjunto de Jornalismo Investigativo Prédio do Denver News

Centro de Denver

9h22

Amy Lynn Greer suspirou.

Seu marido Reggie estava trabalhando em uma cena de crime, então foi ela que havia deixado o filho de 3 anos na creche meia hora atrás, mesmo tendo dois artigos para seu editor até o meio-dia.

Ela adoraria cobrir os assassinatos que Reggie estava investigando, em vez de escrever sua coluna sobre política local ou o acompanhamento do artigo sobre a quantidade de uso de medicamentos em filhos de jogadores profissionais de beisebol que usam esteroides, mas seu chefe se recusava a colocá-la em artigos relacionados aos casos de Reggie.

Assim que Reggie conseguiu o emprego, ela pensou que, pela linha de trabalho dela, estar casada com um dos peritos forenses de Denver teria suas vantagens, mas Reggie estava sob o olhar examinador do tenente Kurt Mason, que o havia informado quando arrumou o emprego que, se ele alguma vez soltasse qualquer detalhe sobre qualquer investigação para sua esposa, ficaria sem emprego e iria para o tribunal enfrentar acusações criminais antes que a história dela fosse publicada. Ponto final. Ela conhecia o tenente Mason e podia dizer que ele era um homem de palavra.

Ela fez uma pequena pausa no esboço da história dos esteroides, checou seu e-mail e encontrou cinco cartas, uma de cada agente literário para os quais ela havia enviado sua proposta de livro, todas rejeitando-o.

Cinco em um dia.

Isso deve ser um novo recorde.

Uma batida na porta interrompeu seus pensamentos.

– Sim?

A porta se abriu e uma voz feminina vagamente familiar disse:

– Eu tenho algo para você.

Amy Lynn olhou e viu uma das secretárias, uma mulher de cabelos cor de areia e pulsos grossos de quem ela nunca lembrava o nome, de pé na soleira da porta, segurando um enorme vaso de cerâmica com uma planta de folhas brilhantes, de onde nascia um cacho de flores brancas arroxeadas. O vaso era tão grande que ela precisava usar as duas mãos.

– O que é isso?

– Flores – a mulher explicou como se Amy Lynn não soubesse. Sua voz estava tensa pelo esforço de segurar o vaso enorme. – Posso colocá--las na mesa?

– Claro – Amy Lynn tirou alguns papéis do caminho. Ela tentou se lembrar do nome da mulher mas não conseguiu. Ela pensou ser talvez Britt ou Brenda ou Brett ou algo formal e feminino assim.

A secretária apoiou o vaso na mesa.

– Então, qual é a ocasião especial?

Amy Lynn olhou para as flores.

– Não tem nenhuma ocasião especial.

Flores?

Quem mandaria flores? Reggie nunca faria isso.

Pequenos cachos de estame apareciam no centro de cada uma das flores brancas. As folhas se sobrepunham e cresciam em camadas, cada conjunto de duas folhas em um ângulo perpendicular às folhas que estavam abaixo. O cheiro forte mentolado era de certo modo familiar, mas também desconhecido ao mesmo tempo.

Ela sabia como identificar alguns tipos de flores, mas na maioria aquelas que todo mundo conhece: lírios, margaridas e rosas. Ela não fazia ideia de que tipo de flores eram aquelas.

Mas ela estava mais curiosa sobre quem deveria ter mandado as flores do que com o tipo delas.

– Tem algum bilhete?

A secretária com o nome esquecível pescou um pequeno envelope de onde ele tinha caído no meio das folhas.

O envelope era branco e tinha apenas quatro palavras escritas à mão na parte da frente: “Para Amy Lynn Greer”.

Ela imediatamente percebeu que não era a letra do marido, e que se ele houvesse mandado as flores, não teria incluído o sobrenome dela.

Mas se não foi Reggie, quem foi? Ela tinha algumas fontes que eram homens e alguns amigos que eram um pouco mais que amigos, mas nenhum deles seria impetuoso o suficiente para mandar flores para ela. Pelo menos é o que ela pensava.

A secretária estava na espreita.

– Eu não abri – ela apontou para o envelope.

– Obrigada... hum, espere, desculpa. Qual é o seu nome mesmo? A mulher pareceu ofendida com a pergunta.

– Brett Neilson. Eu trabalho aqui desde...

– Obrigada, Brett, sim. Desculpe-me. Eu não sou muito boa com nomes.

– Tudo bem – Brett disse, mas ela não saiu, apenas ficou olhando para as flores. – Meu marido nunca me manda flores.

Amy Lynn não sabia o que dizer. Finalmente, ela apenas murmurou: – É. Homens. Você sabe – soou patético quando ela disse, mas de algum modo isso parecia satisfazer Brett Neilson, que deu a ela um meio sorriso e saiu da sala, fechando a porta atrás dela.

Após Brett ir embora, Amy Lynn analisou as flores novamente. Elas tinham uma qualidade formal, funcional, em vez de serem românticas e sedutoras. E aquele cheiro. Era de alguma especiaria?

E quem as enviou?

Ela não fazia ideia.

O bilhete.

Rasgando o envelope, ela encontrou um pequeno pedaço de papel-cartão com uma mensagem curta e enigmática escrita à mão:

Devemos nós tratar das lágrimas alheias? Por favor, sra. Greer, tenha coração.

– John.

John?

Que John?

Ela não reconhecia a letra manuscrita.

Amy Lynn pensou em todos os Johns que ela conhecia e quase ime diatamente eliminou todos eles da lista de pessoas que poderiam mandar flores para ela, especialmente essas com um odor enigmático.

Talvez fosse uma referência a alguma história que havia escrito? Algo sobre tristeza? Tragédia? A morte de alguém?

Amy Lynn voltou para seu computador e sentiu a excitação se manifestando dentro dela pela primeira vez naquela manhã.

Descobrir quem enviou as flores para ela era muito mais interessante do que analisar a política local ou escrever sobre as famílias de jogadores de beisebol drogados. Seu editor ia ter de esperar.

Ela empurrou suas anotações para o lado, digitou em seu teclado e começou a procurar pelos artigos que havia escrito, buscando referências a qualquer pessoa chamada John.


24

Cheyenne e eu chegamos ao Hospital Memorial Batista, um dos hospitais mais antigos e respeitados do estado do Colorado, às 9h46.

A administração do hospital vinha reformando a ala leste nos últimos seis meses e dava para ver que ainda faltava muita coisa. A cobertura da imprensa local havia enfatizado como “o atendimento aos pacientes não havia sido comprometido pelo menos” durante a reforma, mas no decorrer dos anos eu tinha visto a quantidade de informações tendenciosas que acabam saindo na imprensa, não estava de todo convencido das declarações cuidadosamente preparadas pelo administrador do hospital.

Eu estava saindo do carro quando meu celular tocou:

– Como nós fazíamos antes do celular? – Cheyenne disse com bom humor.

– Sofríamos menos acidentes de carro – olhei para a foto de identifi-cação de quem estava ligando.

Lien-hua Jiang.

Muito bem, isso sim era inconveniente. Cheyenne olhou para mim.

– Dê-me licença um minuto, por favor – eu disse.

– Claro – ela começou a atravessar o estacionamento, esperei até que estivesse fora do alcance do som.

– Oi – eu disse para Lien-hua.

– Alô, Pat? Como você está?

– Bem. Está tudo bem, muito bem – uma resposta dura e sem conteúdo. Comecei a seguir Cheyenne, mas me certificando de estar distante o suficiente para que ela não ouvisse minha conversa. – Como você está?

– Estou bem, obrigada por perguntar.

– Que bom.

– Sim – uma pausa que gritava alto. – Pat, você sabe por que estou ligando, eu acho.

Uau! Bom, ela não queria perder tempo, não é?

– Acho que talvez eu saiba – as palavras tinham um tom afiado, e eu sabia, mas deixei que saíssem assim mesmo.

– Por favor, isso já é muito difícil de se fazer pelo telefone. Você não precisa fazer ficar pior.

– Eu não estou tentando... – eu realmente não queria fazer isso. Não aqui, não agora. A 20 metros de mim, Cheyenne estava entrando no hospital. – Olhe, podemos falar sobre isso depois, talvez hoje mais tarde?

– Estou saindo para um serviço em Boston e não quero ficar com isso na minha cabeça. Não é nada contra você, Pat. Você sabe disso – eu podia ouvir dor na voz dela, mas nenhuma condenação. Ela ainda gostava de mim, não estava me culpando. E isso só tornava tudo mais difícil. – É que... – ela disse – ... as coisas não andam... Não está dando certo.

Por mais de um mês as coisas vinham se deteriorando, e ambos ficamos dançando em torno do problema, evitando dizer aquilo que nós dois sabíamos que era necessário.

– Sério, Lien-hua, não é uma boa...

– Acabou, Pat.

Senti uma pontada, uma sensação profunda de fim e arrependimento.

– Não, vamos conversar sobre isso depois. Talvez quando eu for para Washington mais no final da semana nós possamos...

– Não. Por favor. Seria duro demais para mim – sua voz não era rude, mas firme.

Uma longa pausa seguiu suas palavras. Eu não fazia ideia do que dizer. Tentei formular as palavras certas, mas elas me escaparam:

– Então...

– Sim.

Cheguei até as portas automáticas do hospital e elas se abriram desli zando. Eu mal estava ciente de estar entrando.

Em um dia melhor, tanto Lien-hua quanto eu teríamos encontrado algo útil ou agradável para dizer antes de finalizar a ligação, mas nesse dia, nenhum de nós disse nada. Instantes de silêncio desconfortável se passaram até que finalmente ela disse adeus, eu disse adeus e, então, a conversa terminou. Muito antes de eu estar pronto para isso.

As portas deslizantes se fecharam atrás de mim e fiquei parado com o olhar perdido na direção do telefone até que senti a presença de Cheyenne ao meu lado.

– Está tudo bem?

– Sim – menti.

Coloquei o telefone de volta no bolso e o senti estranho e desconfor tável. Peguei-o de volta e o enfiei novamente no bolso, com mais força.

Ela olhou para mim com compreensão e preocupação.

– Não, não está.

– Eu estou bem – eu disse, mas não a olhei nos olhos. – Vamos.

Alguns minutos depois, estávamos sendo escoltados pelo corredor por Lance Rietlin, um homem inquieto com seus quase 30 anos, que passou todo o tempo contando para Cheyenne o quanto ele apreciava poder trabalhar sob a tutela de alguém tão experiente e respeitado quanto o dr. Bender, mas eu não estava ouvindo na verdade. Em vez disso, estava tentando convencer a mim mesmo de que Lien-hua e eu ainda poderíamos ser amigos, que seríamos capazes de colocar de lado o sentimento profundo que tivemos um pelo outro e voltar a nos relacionarmos amigavelmente como fazíamos antes de começarmos a sair juntos, pois é isso que você diz a si mesmo nessas horas.

Você diz essas coisas, você se esconde atrás da ingenuidade, porque a verdade é muito dolorosa para ser admitida.

E a verdade era: de agora em diante seria difícil trabalhar com Lien--hua; eu sentiria ciúmes da atenção que ela daria para outros homens e sempre ficaria imaginando se nós, ou eu, poderíamos ter feito mais para salvar nosso relacionamento.

Lance nos conduziu descendo uma escada até o nível inferior do hospital, para além de uma série de armários de suprimentos e da sala de fisioterapia.

– Eles estão fazendo algum tipo de manutenção nos elevadores – explicou enquanto passávamos pelas placas de “fora de serviço” coladas nas portas. – Eles devem estar funcionando daqui a uma hora ou mais. Mas eu não contaria com isso.

Enquanto meus pensamentos voltavam para Lien-hua, percebi que falar abertamente sobre essas coisas foi um tipo de alívio, mesmo que cada um seguir seu caminho não fosse algo que eu quisesse.

Chegamos ao necrotério, e Lance destrancou a porta.

– Está bem cheio por aqui nesta semana. O dr. Bender e eu estivemos... Bem.

Ele não precisava dizer mais nada.

– Fiquem à vontade – ele abriu a porta. O cheiro muito forte de desinfetante hospitalar preencheu o ar. – Eric deve chegar em cerca de 10 minutos.

Percebi Cheyenne olhar para o relógio.

– Estarei no andar de cima – Lance disse. – A menos que queiram que eu fique.

– Não – respondi. – Ficaremos bem.

Ele me fez um leve aceno com a cabeça.

– Se precisarem de alguma coisa, é só ligar para o departamento de admissão. Eles me avisam – ele me passou o número, eu agradeci e, após ele ter ido embora, Cheyenne e eu entramos na câmara branca e estéril onde a morte é dissecada e estudada.

A sala se parecia com a maioria dos necrotérios que eu já havia visitado nos últimos 15 anos: balcões de aço inoxidável, luzes brancas fluorescentes, microscópios, balanças, unidades de eliminação sanitária, bandejas de instrumentos. Uma maca vazia.

E, é claro, as serras elétricas vibratórias para cortar crânios sem destruir a matéria cerebral delicada, agulhas Hagedorn para costurar as cavidades corporais, cinzéis para o crânio, serras de osso, cortadores de costelas.

Instrumentos do ofício.

As macas com os mortos deviam estar no freezer.

Ao atravessar a sala, pensei em como os necrotérios são projetados para serem impessoais e institucionais o máximo possível. Apesar de cadáveres serem sujos e nauseantes, o lugar onde os analisamos é impecavelmente limpo e cuidadosamente desinfetado para sobrepor o cheiro de podridão.

Talvez seja a nossa maneira de lidar com a morte, de ajudar a esquecer a risada, as lágrimas e os sorrisos das pessoas que estamos dissecando.

Talvez seja uma coisa boa, ser capaz de esquecer.

Chegamos ao freezer e fiquei olhando para a porta por um momento.

– Tá certo – disse suavemente. – Vamos dar uma olhada no governador.


25

Destravei a porta do freezer do necrotério. Abri-a.

Um redemoinho de ar gelado escapou e me rodeou. Eu podia ver cinco macas dentro.

Lábios mortos sussurravam para mim: “Por quê? Por que você não fez alguma coisa? Por que você não veio mais cedo?”.

Em cada maca, um cadáver. Reconheci os rostos de três deles como as vítimas do começo da semana. Estranhamente, nenhum dos corpos estava coberto e dois deles estavam sem cabeça. Dois, não um. Não apenas o corpo de Sebastian Taylor.

O que está...?

Então, quando dei o primeiro passo para dentro do freezer, eu a vi.

Uma mulher, sentada contra a parede do fundo, com os lençóis que faltavam nos outros corpos envoltos em seus ombros e braços. Seus olhos estavam abertos.

Corri até ela, Cheyenne do meu lado.

Quando me inclinei sobre a mulher e senti seu pulso, percebi que já a havia visto antes em uma das cafeterias que visito regularmente. Eu não sabia seu nome, apenas conhecia seu rosto, mas de algum modo, tê-la reconhecido tornou as coisas mais urgentes. Sua pele estava fria ao toque. Seus lábios, azulados, cianóticos, mas ela ainda estava respirando. Senti uma batida de coração fraca.

– Ela está viva – eu disse para Cheyenne.

– Graças a Deus. Vamos tirá-la daqui.

– Senhora – eu disse –, nós vamos ajudá-la. Ela moveu os lábios mas não emitiu nenhum som. Percebi que ela não estava tremendo, o que significava que ela estava nos estágios avançados de uma hipotermia.

Cheyenne deu apoio debaixo do braço dela para levantá-la.

– Cuidado – pelas minhas experiências de alpinismo, eu sabia que carregar pessoas com hipotermia severa podia perturbá-las, fazê-las entrar em choque ou causar arritmia cardíaca, mas eu não queria dizer isso com a mulher ouvindo. – Vou pegá-la.

O mais gentilmente possível, levantei a mulher. Ela era leve, mas ainda assim senti uma pontada de dor na minha lateral, onde Grant havia acertado o cabo do machado nas minhas costelas no dia anterior.

Carreguei-a para a maca vazia na sala de exame e Cheyenne passou correndo por mim, apertou o botão do interfone e pediu que um médico se apresentasse no necrotério, imediatamente!

Coloquei a mulher sobre a maca.

– Vamos tratar de aquecer você.

Enquanto ela permanecer consciente, deve ficar bem.

– Vai ficar tudo bem – Cheyenne disse, mas ela deve ter percebido como a condição da mulher era séria pois ela sussurrou, apenas para os meus ouvidos: – Não acho que podemos esperar por um médico.

– Ela vai ficar bem.

Mas enquanto eu avaliava se deveríamos ou não esperar por um médico ou sair atrás de um, vi os olhos da mulher virarem para trás. Cheyenne deu um tapa firme no rosto dela para mantê-la acordada.

– Fique com a gente – ela disse. – Fique com a gente! – mas a respiração da mulher estava ficando agitada. Cheyenne me chamou. – Pat...

– Eu sei.

A mulher estremeceu. Cheyenne deu um tapa nela novamente, mas dessa vez ela não respondeu.

Agarrei a ponta da maca e empurrei até o corredor.

– Nós temos de aquecê-la. Agora.


26

Assim que passei pela porta, lembrei-me de que o elevador do andar estava fora de serviço.

Não!

Em uma região selvagem, você tiraria as roupas da pessoa e se deitaria ao lado dela para compartilhar o calor do seu corpo, mas imaginei que pudéssemos fazer muito mais que isso aqui no hospital.

Olhei pelo corredor, relembrando as salas pelas quais havíamos passado no caminho para o necrotério.

– A sala de FT – murmurei e comecei a empurrar a maca com a mulher pelo corredor o mais rápido que podia.

– O que é isso? – Cheyenne me alcançou.

– Fisioterapia, nós passamos por ela no caminho para cá. Eles devem ter uma hidromassagem.

Cheyenne correu na minha frente e segurou a porta aberta. Entrei com a maca.

– Nós vamos ajudá-la – eu disse para a mulher. – Está tudo bem.

Gentilmente, peguei-a em meus braços.

Ele a trancou no necrotério.

O assassino tentou matá-la congelada.

A natureza sádica e impiedosa desses crimes me assustava, me dava náuseas.

Ninguém mais estava presente, mas vi Cheyenne gesticular na minha direção do outro lado da sala.

– A hidromassagem fica aqui.

A piscina havia sido construída para dentro do chão e enquanto eu descia os degraus e entrava na água morna, vi Cheyenne ir até o painel de controle.

– Desligue os jatos – eu disse. – Pode ser um choque muito grande para o sistema dela.

– Certo.

Apoiando seu peso, cuidadosamente baixei a mulher para dentro da água, mas ela começou a tremer, pequenos calafrios passando pelo corpo. Levantei-a um pouco, então baixei-a novamente, mais lentamente, enquanto Cheyenne falava com ela, confortando-a, tranquilizando-a ao lado da piscina.

Alguns momentos depois, a mulher tossiu e piscou os olhos rapidamente. A cor estava voltando para o seu rosto.

– Ele... – ela estava falando suavemente, mas pelo menos estava falando. – Ele me deixou na...

– Eu sei – eu disse. – Quem foi? Quem fez isso com você? – ela balançou a cabeça. Ela não sabia. – Qual é o seu nome?

Ela engasgou. Tomou fôlego.

– Kelsey.

– Vamos aquecê-la, Kelsey. Você vai ficar bem.

Ela concordou com a cabeça.

Momentos se passaram. Ondas de vapor morno saíam da água e ser penteavam à nossa volta.

A respiração de Kelsey começou a normalizar, a ficar mais estável.

Então ouvi a correria no corredor.

– É o médico – eu disse para Cheyenne, mas ela já estava indo na direção da porta. Um instante depois, um homem com roupa de médico, uma enfermeira e Lance Rietlin vieram correndo para dentro da sala. – Por aqui!

– gritei, enquanto erguia Kelsey da água e cuidadosamente saía da piscina.

– Vamos colocá-la na maca – Lance disse, então me ajudou a deitá-la.

Ele tocou a mão dela levemente. – Qual é o seu nome?

– O nome dela é Kelsey – Cheyenne disse, então tirou uma mecha de cabelo dos olhos de Kelsey.

– Precisamos tirar essas roupas – a enfermeira disse para Kelsey.

– Pode ser?

Kelsey acenou com a cabeça e Cheyenne e a enfermeira remove ram suas roupas molhadas enquanto Lance buscava algumas toalhas e cobertores do roupeiro. Então ele os entregou para a enfermeira que rapi damente a secou e colocou os cobertores sobre ela.

O médico, um homem careca de uns 50 anos, com uma aparência de preocupação permanente no rosto, verificou os olhos de Kelsey com uma pequena lanterna.

– De quem foi a ideia de aquecê-la na piscina?

– Minha – eu disse. – Não havia outro jeito de aquecê-la. Nenhum médico aqui, nenhum elevador. Ela estava entrando em choque. Precisávamos fazer alguma coisa.

– Nós viemos pelo elevador – ele disse. Soava como uma acusação.

– Eles estavam fora de serviço quando eu os trouxe aqui para baixo – Lance explicou.

Após um momento de reflexão, o médico pareceu aceitar a explicação.

– Tudo bem. Bom, vamos levá-la daqui – então Cheyenne me disse que voltaria a falar comigo em alguns minutos, houve um tumulto de pessoas, ela saiu com a equipe médica e fiquei sozinho na sala.

Peguei uma toalha e passei pelo meu rosto e braços. Agora Kelsey tinha muitas pessoas ajudando-a, então decidi voltar para o necrotério e dar uma olhada, especialmente agora que era uma cena de tentativa de homicídio.

Joguei a toalha em uma pilha. Virei-me na direção do corredor.

Um homem estava parado na soleira da porta.

– Ei, Pat. Bom te ver.

O criador de perfis, agente especial Jake Vanderveld, havia chegado.


27

– Olá, Jake – eu disse.

Ele entrou na sala. Quatro anos mais novo que eu. Bonito. Inteligente.

Em ascensão. Jake tinha cabelos loiros despenteados, olhos azuis intensos e usava seu bigode impecavelmente aparado como um distintivo. Mesmo uma década depois de seu mestrado em psicologia da anormalidade, ele ainda possuía o físico afiado de um nadador de primeira categoria que tinha desde que esteve em Cornell.

– Então, a diretora-assistente Wellington me disse que você precisa de uma mãozinha nesse caso – ele estava olhando para minhas roupas molhadas. – Fiquei feliz por estar disponível – ele estava sorrindo maliciosamente.

– Pensei que você só chegaria hoje à tarde.

– Mudei meus horários. Imaginei que você fosse ficar feliz por ter dois olhos a mais nesse caso. Então, aquela mulher que estavam levando pelo corredor, o que aconteceu?

Enquanto eu resumia, percebi que, na pressa para levarem Kelsey para um quarto, suas roupas haviam ficado jogadas no chão. Jake observou--me pegando-as, e as engrenagens pareciam estar girando na cabeça dele.

– Você a levou para dentro da hidromassagem?

– Sim.

– Eu queria poder ter estado aqui para ajudar.

Imediatamente senti que suas palavras podiam ser entendidas de duas maneiras: tanto como uma expressão genuína de preocupação ou como uma piada idiota e totalmente inapropriada. Seu tom de voz me fez pensar que era a segunda opção, mas antes que eu pudesse responder, meu telefone tocou. Fiquei impressionado por ele não ter sido danificado pela água.

O rosto de Tessa apareceu na tela de identificação e pedi a Jake para aguardar um minuto, então atendi o celular.

– Estou um pouco ocupado, Tessa. Não é uma boa hora para conversar.

– Hum, a agente Jiang ligou, tipo, há meia hora. Ela deixou uma mensagem no meu celular. Disse que tinha tentado ligar no seu primeiro.

Ela deve ter chamado antes de você ter ligado o celular.

– Ela deve estar tentando muito falar com você – Tessa continuou. – Você deveria dar um toque para ela.

Tinha sido ruim o suficiente conversar com Lien-hua perto de Cheyenne; eu definitivamente não queria fazer isso na frente de Jake Vanderveld. Coloquei o telefone contra o peito para abafar o som.

– Ei, você pode me dar alguns minutos? Ligue para a expedição, peça que uma unidade de perícia venha para cá para analisar o necrotério.

Ele deu um pequeno sorriso.

– Te vejo em breve, Pat.

– Tudo bem, Jake.

Então ele saiu, e eu disse a Tessa:

– Eu conversei com a agente Jiang há cerca de 20 minutos.

– E?

– E o quê?

Essa garota era mais observadora que a maioria dos agentes com quem eu trabalhava.

– Está tão evidente assim?

– Eu diria que sim.

– Bom, eu acho, pode dizer que sim, é oficial. Escute, quanto ao almoço...

– Decisão sua ou dela?

– Nem tanto uma decisão, mais uma escolha mútua – andei até o corredor. – Eu preciso cuidar de umas coisas, talvez eu possa te ligar mais tarde.

– Sinto muito, Patrick – parecia que ela realmente sentia muito. – Terminar é uma droga.

– Eu já sou crescido, Raven. Consigo lidar com isso.

– Não importa o quanto crescido você é – ela parou. Escutei-a tomando um gole de alguma coisa. – Ainda assim, é uma droga.

Ali estava eu, recebendo conselhos de relacionamento de uma adolescente. Eu não tinha certeza do que dizer.

– Bom, obrigado.

Como minhas roupas estavam molhadas, depois de ter uma chance de dar uma olhada no necrotério, eu teria de trocá-las, e isso queria dizer voltar para casa.

– O almoço ainda está de pé?

– Sim. Eu estava pensando naquele lugar novo, vegano. Fruition. Você viu, todas aquelas placas, “Venha para o Fruition”, “Você já experimentou Fruition?”.

Que animador. Tofu, espinafre e ervilhas.

– Você ainda está na casa da Pandora?

– Ela me deixou em casa.

– Ok – eu estava quase no necrotério. – Eu consigo estar aí em cerca de meia hora. Você pode se arrumar até eu chegar.

– Bom, na verdade, eu estou bastante ocupada.

– Ah é? Num sábado de manhã? O que você está fazendo?

– Dora me deu um cubo mágico que estou tentando resolver. E, ah é, vou terminar de tomar esse latte médio triplo gelado com três doses de xarope de canela meio a meio com chantilly e aroma de torta de abóbora antes de você chegar aqui – ela falou o nome de sua bebida de uma vez só.

Parei de andar e olhei desfocado para a parede.

– Você está brincando. Por favor, diz pra mim que você está brincando.

– É o favorito da Dora. Decidi experimentar um. É bom. Quer que eu guarde um pouco pra você?

Isso era muito perturbador.

– Admita. Você comprou isso só para me incomodar.

Escutei-a tomando um gole.

– Se foi isso, você merece. Você é fresco com café.

– Fresco não, sou um apreciador. Espera aí. Aroma de torta de abóbora é sazonal. Eles só servem no outono.

– Eles tinham um pouco que sobrou.

– Ah, por favor, você não fez isso.

– Fiz.

– Você está bebendo café produzido em massa e embalado em fábrica que foi torrado e moído há mais de seis meses?

Escutei-a tomar um gole novamente, um gole grande e entusiasmado.

– Ahh. Delícia! Talvez eu vá comprar um pra você.

– Vejo você em meia hora para o almoço. Vá se arrumar. E jogue essa coisa fora antes que alguém me prenda por abuso infantil.

Mais um gole barulhento.

– Até mais.

Cheguei ao necrotério e encontrei o dr. Eric Bender lá dentro, tirando o cadáver sem cabeça ainda não identificado do freezer.

Após uma breve saudação, informei-o sobre a mulher que havíamos acabado de resgatar. Ele ouviu com atenção, ocasionalmente balançando a cabeça, e quando terminei ele disse:

– Você disse que o nome dela é Kelsey?

– Sim.

– Então esse era o marido dela – Eric gesticulou na direção do cadáver na nossa frente. – Travis Nash. Ele foi trazido ontem de manhã. Infarto do miocárdio. Não havia nenhuma autópsia requisitada, tudo apontava para causas naturais – ele pegou uma pasta de arquivo e me mostrou uma foto de Travis antes de ele ter sido decapitado.

– Precisamos descobrir do que esse homem realmente morreu – eu disse. – Mas essa sala de exame é agora uma cena de crime. Tentativa de homicídio. Você terá de tirá-lo daqui ou esperar a perícia chegar.

Eric não parecia feliz com aquilo, mas não discutiu comigo.

– Ok – ele disse.

– Posso dar uma olhada em Taylor?

Eric acenou com a cabeça e eu o segui para dentro do freezer.


28

Olhei para o corpo mutilado e sem cabeça de Taylor. Os arquivos do caso mencionavam que ele havia sido torturado, mas eu não havia entendido o quão extensas as lesões haviam sido.

Eric deve ter percebido que eu observava as lesões.

– Esse homem não morreu rapidamente – ele disse.

Eu estava mentalmente reconstruindo o modo como Sebastian Taylor havia sido atacado; Eric apontou para o osso saliente no braço direito do cadáver.

– Olhe aqui. Sua ulna está fraturada, mas não há nenhuma contusão próxima do local da quebra. Seu pulso também estava fraturado.

– O que isso quer dizer?

– Não posso dizer ao certo apenas com observações externas, mas é muito provável que o assassino tenha usado as próprias mãos – ele apontou para a fratura no antebraço. – Com base no ângulo e na severidade dessa fratura aberta em espiral, o agressor precisaria ser anormalmente forte e ter provavelmente estudado...

– Artes marciais, combate a curta distância ou algum tipo de corpo a corpo.

– Sim.

O assassino encontrou Taylor... desabilitou suas câmeras de segurança...

possivelmente tem habilidades em autodefesa...

Treinamento de inteligência militar?

Experiência nas forças policiais?

– Ok. Mantenha-me informado.

Ele acenou com a cabeça.

– Manterei.

Encontrei Cheyenne de pé ao lado da porta do quarto 228, mandando uma mensagem de texto para alguém. Ela me viu enquanto me aproximava.

– Kelsey está bem melhor.

– Isso é ótimo.

– Eles a colocaram em uma intravenosa salina aquecida para aumentar sua temperatura interna – ela terminou de mandar sua mensagem de texto e guardou o telefone no bolso. – Um policial está a caminho para vigiar o quarto caso o assassino descubra que ela sobreviveu e tente retornar para terminar o que começou.

– Ótimo. Kelsey deu alguma descrição do agressor?

– Ela não quer falar sobre isso. Quando perguntei, ela apenas fechou os olhos e balançou a cabeça.

Algumas vezes, vítimas levam semanas antes de desenvolverem distância emocional para falarem sobre eventos que colocam suas vidas em risco; então, após uma experiência tão traumática quanto ficar trancada em um necrotério, a reação de Kelsey não me surpreendia. Mas não facilitaria em nada o nosso trabalho.

– Vamos acompanhar – Cheyenne disse. – Se ela sentir vontade de falar, vou chamar alguém para fazer um retrato falado. Ah, e o agente Vanderveld passou por aqui.

– Ótimo.

– Ele parece ser um homem muito seguro de si mesmo.

– É um ponto de vista – eu realmente não queria conversar sobre Jake. – Ei, vamos pedir para um policial analisar as câmeras de segurança do hospital para descobrir quando Kelsey chegou. Talvez tenha alguma imagem de seu agressor entrando ou saindo do hospital.

– Vou arrumar alguém para fazer isso.

Eu rapidamente informei Cheyenne sobre o marido de Kelsey. Ela acenou com a cabeça solenemente, então olhou para o relógio.

– Eu nem imagino pelo que ela está passando. Vou ficar por aqui por mais um tempo. Querendo falar ou não, ela precisa de alguém com ela agora.

– Mais uma coisa – eu disse. – Preciso ir para casa me trocar. Posso pegar seu carro emprestado?

– Sempre.

Dei para ela as roupas molhadas de Kelsey, ela me deu as chaves do carro e tomei meu caminho.

Desde que recebeu as flores, cerca de uma hora antes, Amy Lynn Greer procurou por todos os artigos que havia escrito no ano passado, tentando achar ligações com histórias sobre pessoas chamadas John, Jonathan ou Johnson e havia encontrado algumas possibilidades, mas nada que parecesse relevante.

Após ter eliminado os artigos nos quais havia trabalhado pessoalmente, ela expandiu sua busca para incluir artigos de outros jornalistas.

Nada sólido até então.

A frase sobre tratar das lágrimas alheias fez com que ela se sentisse vagamente inquieta e, como uma jornalista investigativa, ela não gostava de mistérios que não conseguia resolver.

Um pensamento que a deixava nervosa começava a se tornar mais e mais invasivo.

Talvez não fosse apenas uma coincidência ela ter recebido as flores enquanto seu marido e o resto da unidade de perícia estavam investigando uma das mais cruéis ondas de crime na história de Denver.

Ela decidiu gastar mais uma hora tentando descobrir alguma coisa sobre a frase “Devemos nós tratar das lágrimas alheias?” e, então, mesmo não devendo, ela ligaria para o marido para descobrir se isso poderia estar relacionado com algum dos casos em que ele estava trabalhando.

Então tá certo. Mais uma hora.


29

Após conversar com Patrick pelo telefone e torturá-lo com o latte de torta de abóbora, Tessa havia passado algum tempo descansando em seu quarto, ouvindo música e mexendo no cubo mágico, mas não conseguia resolvê-lo. Mesmo com os olhos abertos.

E aquilo realmente a incomodava.

Ela havia ligado o iPod em seu aparelho de som e quando a lista de músicas chegou ao CD Audible Sigh do Vigilantes of Love, ela aumentou o volume para ajudá-la a se concentrar. Um pouco retrô, com um estilo de rock meio R.E.M., não tão pesado quanto a maioria das bandas de que ela gostava, mas com letras legais. Bill Mallonee era um gênio com palavras.

Quando Black Cloud O’er Me começou a tocar, ela conseguia evitar pensar na conversa com Patrick. Ele realmente gostava de Lien-hua, e mesmo agindo como se não fosse grande coisa, ele deveria estar bem machucado depois de terminar com ela. Isso sim é nuvem negra.11.

Tessa havia começado a se acostumar com a ideia de os dois estarem juntos, mas havia percebido o relacionamento deles se desintegrando nas últimas semanas, e provavelmente foi melhor que eles encerrassem isso agora, antes que algum deles se machucasse mais ainda. Ela havia visto muita gente na escola arrastar as coisas por tempo demais e então terminar. Não era bonito.

Uma carnificina de corações.

Soava como algo que Bill Mallonee teria escrito.

Então, faça o que Pat pediu. Arrume as coisas. Faça-o ficar mais feliz.


Obviamente, como iriam apenas ficar três meses fora, na Costa Leste, eles não levariam tudo, mas a maioria das coisas em seus quartos teria de ir. Eles haviam esvaziado o armário dele na noite passada. Talvez ela conseguisse terminar essa parte antes que ele chegasse em casa.

Entrar no quarto dele sempre havia sido um pouco estranho para ela, como um tipo de invasão do seu espaço pessoal, mas quanto mais tempo eles viviam juntos, mais normal isso parecia para ela. Coisa que acontece com quem tem uma família. Uma das coisas boas.

Ela entrou. Olhou ao redor.

Lençóis amarrotados sobre a cama. Um exemplar lido parcialmente de

Pensées, de Pascal, na mesa ao lado da cama; equipamentos de escalada jogados no chão sob a janela. Fotos do Half Dome e de El Capitan, de Ansel Adams, dois dos lugares que ele havia escalado, penduradas na parede.

Duas fotos estavam sobre sua cômoda. Uma da família: mamãe, Patrick e ela na Balsa de Staten Island, sua mãe careca por causa da quimioterapia. A outra foto era dele nos Apalaches, quando era guia de turismo ecológico, na faculdade. Ele usava um rabo de cavalo na foto e ela havia se divertido muito com aquela foto.

Espalhadas pelo quarto, cinco caixas de papelão resistente para mudança.

Ela abriu a caixa próxima ao armário e viu que ela estava meio cheia de livros de criminologia com as páginas marcadas e edições antigas do Journal of Environmental Psychology e do Journal of Forensics Sciences,12. e um monte de materiais de escritório jogados por cima: canetas, tesouras, clipes de papel, porta-canetas, cabos USB, elásticos; um par de sapatos e algumas camisas amassadas. Como ele podia ser tão meticuloso em sua vida no FBI e tão desleixado em sua vida de solteiro havia sido sempre um mistério para ela.

Porém, ainda havia espaço na caixa, e ela sabia que eles não tinham um monte de caixas sobrando, então ela abriu o armário e viu que, com exceção de dois pares de tênis de corrida e uma mochila velha, ele estava vazio.

Mas havia uma prateleira próxima do teto em cuja borda dava para ver alguns equipamentos de acampamento.

Ela arrastou uma cadeira até o armário, subiu e puxou para baixo um kit de primeiros socorros e uma pequena mochila.

Só depois de ter tirado um saco de dormir foi que ela viu a caixa de sapato enfiada no fundo, encostada na parede. Entre ela e a caixa havia um oceano de poeira grossa, que era muito, muito nojenta, visto que o corpo humano descarta cerca de dois milhões de células de pele morta a cada hora e aproximadamente 65% da poeira encontrada nas casas é feita de pele humana.

Eca.

Cautelosamente, ela conseguiu pegar a caixa sem tocar a camada de sobras humanas. Então desceu da cadeira, fechou os olhos e soprou a pele morta de cima da caixa.

Olhos abertos de novo, percebeu que era uma velha caixa de sapato da Keds, o que era um pouco estranho, pois Patrick nunca teve filhos, e a caixa não era grande o suficiente para guardar um par dos sapatos dele.

Havia coisas dentro, mas pelo peso ela podia dizer que não era um par de sapatos. Ela pegou uma das camisas de Patrick na cômoda e limpou a caixa.

Percebeu seu nome escrito em caneta hidrográfica preta na extremidade da caixa.

Mas não era a letra de Patrick, era a letra de sua mãe.


30

Tessa sentou-se na cama, com a caixa de sapato no colo.

Abriu-a.

Encontrou uma pequena pilha de cartões-postais, dois canhotos de ingresso para um jogo do Minnesota Twins, três pontas de flecha genuínas, algumas dúzias de cartas guardadas de volta em seus envelopes abertos, uma porção de fotos, um panfleto do Museu do Circo, em Baraboo, Wisconsin, alguns desenhos que Tessa havia feito quando criança, com um grande coração torto e letras em giz de cera que diziam “Eu te amo, Mamãe!!”.

E desenhos de tartarugas.

Oito desenhos de tartarugas.

Ela sempre gostou de desenhar tartarugas quando era criança, prova velmente porque era fácil: era só fazer um grande círculo, então adicionar quatro patas e um círculo menor em cima para a cabeça. Pronto. Uma tartaruga. Quando ela era criança, elas pareciam obras de arte.

Mas agora dava para ver como eram bobas.

Ainda assim, quando ela era uma garotinha, sua mãe sempre encon trava um lugar na porta da geladeira para elas. Sempre.

E quando Tessa viu os desenhos das tartarugas, ela soube que tipo de coleção era aquela. Aquela coleção especial que todo mundo tem de coisas que ninguém mais entenderia. Coisinhas idiotas que não valeriam nem 10 centavos, mas que você voltaria para buscar em uma casa em chamas.

Tessa tinha uma caixa assim também, debaixo de sua cama.

Mas enquanto ela mexia na caixa de memórias de sua mãe (esse foi o nome que ela deu), seu coração pareceu agarrar algo dentro do peito.

Por que Patrick nunca deu isso para você? Ele sabe o quanto a mamãe significa para você. Por que ele esconderia isso de você?

Talvez ele tenha se esquecido disso, empurrou a caixa lá para o fundo um dia e isso fugiu de sua mente.

Mas talvez não.

Sentindo-se um pouco traída, Tessa checou todo o conteúdo da caixa com mais cuidado, pegando os itens um por um e colocando-os na cama.

Ela encontrou uma linha de pipa embolada e imaginou por que sua mãe havia guardado aquilo. Então pegou uma concha que ela se lembrava de ter encontrado durante uma viagem ao Lago Superior quando ela tinha 10 anos. Quando ela colocou a concha sobre a cama, reparou no que estava no fundo da caixa de memórias de sua mãe.

Seus dedos tremeram.

Um teste de gravidez.

E o pequeno sinal de mais ainda estava visível, mesmo depois de 17 anos. Ela o pegou.

Na primeira vez que sua mãe olhou para isso, você já estava cres

cendo dentro dela.

Era uma verdade óbvia, totalmente óbvia, mas naquele momento, para Tessa, parecia profundo.

Ela estava segurando a primeira prova que sua mãe teve de que ela teria um bebê, uma filha que ela chamaria de Tessa Bernice Ellis. Tessa, derivado de Santa Teresa de Ávila, uma mística que era uma de suas escritoras favoritas, e Bernice, o nome da avó de sua mãe.

Enquanto Tessa olhava para o sinal de positivo, ela pensou em como tinha sido para sua mãe olhar para aquilo. Ainda na faculdade, solteira, o cara com quem ela estava saindo se mostrando um grande idiota. Um homem que nunca tomou parte na vida de sua filha, nem sequer a visitou.

Nenhuma vez.

Tessa sentiu a antiga raiva, o antigo ódio, a antiga solidão surgindo novamente.

Mesmo quando ela era criança, ela havia percebido que quase todos os seus amigos tinham um pai próximo de algum jeito. Mesmo em famílias em que os pais era divorciados ou separados, o pai aparecia ocasionalmente. No verão, talvez por algumas semanas, ou nas noites de terça-feira, ou em alguns fins de semana a cada mês. Claro, nem sempre, mas a menos que ele estivesse morto, normalmente era parte de suas vidas.

Então, quando ela tinha 6 ou 7 anos, ela perguntou a sua mãe se seu pai estava morto.

No começo sua mãe não contou a ela, mas Tessa insistiu até que ela finalmente disse:

– Eu não sei, Tess. Eu não o vejo desde o dia em que eu disse a ele que eu ia ter um bebê – então ela abraçou Tessa; ela ainda lembrava disso; e a mãe acrescentou: – Mas só porque seu pai não está aqui não quer dizer que você não é amada. Eu amo você o dobro, pelos dois.

Mas Tessa se afastou dela.

– Mas por que ele foi embora, mamãe? Por que ele não volta? Sua mãe hesitou na hora, então disse:

– O que importa é que eu te amo e nunca vou embora. Eu prometo. Mas então sua mãe foi embora, não de propósito, mas até quando estava morrendo, ela não falou mais nada sobre o pai dela.

Tessa imaginava que a mãe havia provavelmente escondido a verdade sobre a identidade de seu pai biológico porque ela não queria que a filha crescesse com raiva dele.

Bom, se esse era o plano, não deu certo.

Chega disso.

Ela colocou o teste de gravidez de lado, olhou para dentro da caixa de sapato novamente e encontrou um anúncio de revista de alguma empresa imobiliária cuidadosamente dobrado. Tinha sido arrancado de alguma revista e estava faltando metade, mas a parte que estava ali tinha uma foto de uma garota loira, talvez de 4 ou 5 anos de idade, experimentando o que supostamente seriam os sapatos de salto alto e um colar de sua mãe. Parte do texto do anúncio estava faltando, mas as palavras “lares não são apenas” ainda estavam lá. Era isso, “lares não são apenas”... alguma coisa.

Mas o que chamou a atenção de Tessa não foi tanto o texto, mas a caixa de joias que estava na penteadeira atrás da garota da foto.

Espere um minuto.

Ela olhou mais cuidadosamente para a caixa de joias e sentiu o cora

ção começar a disparar. Então ela se levantou e, carregando a imagem, correu para seu quarto.

Para sua penteadeira. Para sua caixa de joias.

Sim, sim.

Era praticamente idêntica à da foto. Sua mãe havia dado a ela quando ela era menina, mais ou menos com a mesma idade da menina no anúncio da revista.

Será que é você? Seria possível? É você nessa foto?

Não, o cabelo era diferente, a garota não parecia muito com ela, e não havia uma pequena verruga do lado do pescoço da menina como havia no dela.

Então por quê? Por que ela daria isso para você? Não pode ser apenas uma coincidência.

Ela voltou para o quarto de Patrick e vasculhou o resto do conteúdo da caixa de sapato procurando uma resposta, mas não achou nenhuma.

No entanto ela encontrou uma última coisa que a deixou exageradamente curiosa: uma chave presa a um molho de chaves com uma etiqueta de plástico com o número 18 escrito de um lado e as palavras “Para Tess” do outro.

Em toda sua vida, apenas uma pessoa a chamou de Tess: sua mãe.

A chave era muito pequena para uma fechadura normal e mesmo sendo do mesmo tamanho da chave da caixa de joias, não era do mesmo formato.

Ela testou, só para garantir, mas não encaixava.

Então ela ouviu a porta da frente abrindo.

Patrick havia chegado para levá-la para almoçar.


31

Assim que Tessa ouviu a porta abrir, ela percebeu que precisaria de mais tempo para ler as cartas na caixa e não queria que Patrick soubesse que ela as havia encontrado, então enfiou tudo de volta na caixa, exceto a chave, que ela colocou no bolso, e rapidamente levou a caixa para seu quarto e a escondeu debaixo da cama, ao lado de sua própria caixa de memórias.

– Tessa, está pronta para ir? – ele perguntou.

– Já vou! – ela gritou pela porta do quarto. – Só um minuto.

Então, devo perguntar a ele sobre isso ou não?

Ela pensou na foto da garotinha, nos itens da caixa, todas as cartas nos envelopes que ela ainda não havia lido.

Ele escondeu isso de você. Ele deveria ter dado a você.

Talvez ele tivesse esquecido.

De qualquer maneira, ela precisava saber a verdade.

Mas ele está tendo um dia difícil, lembra? O término? Uma carnificina

de corações? Não o acuse de esconder algo de você. Não seria certo.

Então, pergunte a ele sobre isso, mas seja discreta.

Sim, acho que não vai ser nenhum problema.


Quando entrei em casa, ouvi Tessa gritar de seu quarto que estaria pronta em um minuto, o que provavelmente significava que eu teria pelo menos dez, o que foi bom porque me deu a chance de me secar e trocar de roupa.

Em parte desejei estar no necrotério procurando por evidências, mas meu trabalho não era analisar cenas de crime individuais, e sim ajudar a direcionar corretamente a investigação.

E isso estava se mostrando mais difícil do que imaginei.

No meu quarto, reparei que uma das caixas da mudança estava aberta mas nada mais havia sido embalado, o que me irritou um pouco, visto que Tessa teve toda a manhã e sabia que iríamos para Washington na quarta-feira.

Resolva isso depois.

Troquei de roupa e, quando estava vestindo o coldre de minha SIG,

pensei em Grant Sikora e na arma que ele havia apontado para minha cabeça havia menos de 24 horas. Ele tinha de algum jeito carregado a arma antes de ela ter sido levada para o tribunal...

Ou arrumou alguém para carregá-la para ele.

Liguei para Ralph.

– E aí? – ele disse.

– Você ainda está em Chicago?

– Sim. Ajudando o escritório local a lidar com o tiroteio, arrumar medidas de segurança melhores para a semana que vem... – a voz dele parecia abafada, suas palavras, atrapalhadas. Parecia que ele estava com alguma coisa na boca.

– Que barulho é esse? Você não está comendo mais daquelas passas com iogurte, né?

Um momento de silêncio. Um fraco som dele engolindo.

– Não.

– Escute, Ralph, sobre o tiroteio; foi por isso que liguei. Você está pensando na sala de evidências, certo?

– Sim – ele disse. – A arma estava vedada em um saco para evidências quando foi trazida para a sala do tribunal. Tudo que alguém precisaria fazer era entrar na sala de evidências, carregar a arma e esperar que ela fosse levada para a sala do tribunal. Afinal, por que alguém verificaria se uma arma que está armazenada em um saco para evidências de um caso de 17 anos atrás estava carregada?

– Exatamente. Converse com o oficial Fohay. Ele estava trabalhando no posto de segurança do tribunal ontem.

– Você sabe alguma coisa sobre ele?

– Não. Mas ele tinha uma opinião muito forte sobre a culpa de Basque e mencionou que trabalha na sala de evidências. Ele teria acesso à arma.

Se tiver qualquer tipo de ligação pessoal entre Sikora e ele...

– Saquei. Mais alguma coisa?

– Estou preocupado com Calvin.

– O quê? Werjonic?

– Sim.

Levei alguns minutos para resumir a conversa da noite anterior com Calvin. Quando terminei, Ralph perguntou o que eu queria que ele fizesse.

– O escritório dele é aí em Chicago. Estava pensando se você podia ficar de olho nele. Estou preocupado que ele possa tentar fazer alguma coisa com Basque no fim de semana.

– Fazer alguma coisa? Você tá brincando?

– Não, não estou.

Uma pausa.

– Basque está seguro. Depois do atentado contra ele, não estão deixando ninguém chegar perto.

– Lembre-se de quem estou falando aqui. Calvin é um dos cientistas criminais mais inteligentes que já existiu. Se ele quiser entrar lá...

– Sim, tudo bem – ele murmurou. – Vou garantir que ele não faça uma visita para o sr. Basque. Não se preocupe.

– Obrigado. – Finalizamos a ligação e, quando saí do quarto, encontrei Tessa me esperando no corredor.

– Pronta? – eu disse.

– Sim – ela respondeu. – Vamos para o Fruition.


32

Tessa sentou-se ao lado de Patrick em uma mesa no fundo do restaurante.

Ela havia pedido uma salada de alfafa Califórnia e Patrick havia pedido um hambúrguer de falafel, provavelmente porque era o que mais se parecia com carne no cardápio.

Ela comeu a salada dela por alguns minutos enquanto ele enchia seu hambúrguer de falafel com ketchup. Entre as mordidas, ele contou que havia conseguido chegar a tempo de salvar a vida de uma mulher mais cedo.

– Sério? O que aconteceu? Espere. Deixe-me adivinhar: você não pode me contar.

– Não, não todos os detalhes. Mas eu posso te dizer que foi muito bom ter chegado a tempo, pra variar.

Ela observou-o comendo por alguns minutos e percebeu que estava orgulhosa dele, do que ele fez por uma vida, por ele ter feito diferença.

– Bom, isso é legal – ela disse. Era um pouco bobo, mas parecia que dava para dizer que ela estava sendo sincera. Finalmente, quando a hora parecia certa, ela perguntou a ele sobre a caixa. – Ei, hum, enquanto eu estava empacotando coisas, eu estava pensando se ainda existem, tipo, algumas das coisas da mamãe – ela bebeu um pouco do refrigerante. – Sabe, alguma coisa que você ainda não tenha me dado.

Patrick estava comendo seu hambúrguer de falafel rápido demais para estar realmente apreciando.

– Não.

– Tem certeza?

Ele engoliu, passou um guardanapo no queixo.

– Absoluta.

– Hum, bom, isso é estranho, porque eu achei a caixa de sapato.

– A caixa de sapato?

– Sim.

– Que caixa de sapato?

– Uma com as coisas da minha mãe, e eu quero saber por que você nunca a deu para mim.


Parei de comer.

– Então? – ela disse.

– Eu esqueci que tinha aquilo.

– Como você pode ter esquecido? São as coisas especiais dela! – todo o clima da refeição havia mudado quase que instantaneamente e eu precisava de alguns segundos para colocar as ideias no lugar.

Tentei explicar que quando nós mudamos para Denver eu havia acabado de enfiar a caixa no armário e empilhei alguns equipamentos de acampamento na frente dela; tentei ajudá-la a entender que tinha sido uma época difícil para mim e eu não havia mais pensado naquilo, mas ela não parecia ter engolido.

Quando terminei, ela mostrou uma chave.

– Encontrei isso também. O que isso abre?

Eu podia estar errado, mas tinha quase certeza de que sabia que chave era aquela.

Tomei um gole da minha Coca-Cola e usei o tempo para ordenar meus pensamentos.

– Então? – Tessa exigiu. – Estou esperando.

Você não precisa contar a ela sobre isso. Você poderia dizer que foi per

dido, ou danificado, ou destruído. Você não precisa deixá-la ler.

Repousei minha bebida.

– Eu não tenho certeza, mas acho que é provavelmente a chave do diário da sua mãe – em vez de elaborar, esperei que ela respondesse. Terminei meu hambúrguer de falafel. Tinha gosto de areia torrada. Nem o ketchup ajudou.

– Diário?

Acenei com a cabeça.

– Ela me deu antes de morrer, mas ela me disse...

– A mamãe tinha um diário?

– Sim, antes de eu conhecê-la. Acho que quando ela estava na faculdade. E ela disse que eu não deveria dá-lo a você até...

– Bom, onde ele está? Eu quero lê-lo.

– Tessa, pare de me interromper. Sua mãe me disse para não dá-lo a você até que fizesse 18 anos.

Um silêncio curto e incômodo.

– Por quê?

– Eu não sei. O ponto é, se eu o desse a você agora, eu estaria quebrando a promessa que eu...

O toque do meu telefone interrompeu-me no meio da frase. Olhei para a tela. Kurt.

– Só um segundo – eu disse a ela.

Ela colocou a chave à sua frente e batucou com os dedos na mesa enquanto eu atendia meu telefone.

– O que foi?

– Acho que temos uma coisa. Alguém mandou flores para uma repórter do Denver News. Ele deixou um bilhete: “Devemos nós tratar das lágrimas alheias?”.

Alguma coisa não fazia sentido para mim.

– E?

– O marido da repórter é um dos técnicos da perícia, Reggie Greer. Você o conheceu hoje de manhã.

Esfreguei minha testa.

– A esposa dele é repórter?

– Não se preocupe. Ele não compartilha nada dos casos dele com ela. Mas é o seguinte: ela ligou para ele perguntando se ele mandou as flores. Ela mandou uma foto das flores e do bilhete, e ele percebeu imediatamente que a letra era a mesma do bilhete que o assassino deixou para você na garagem de Taylor.

Agora ele tinha minha atenção.

– Continue.

– Reggie ainda está terminando o serviço na casa de Taylor. Dois policiais estão dando uma carona para Cheyenne, então ela está a caminho do escritório do jornal agora. Você pode ir para lá? Eu não quero mais ninguém encostando naquelas flores até termos a chance de dar uma olhada nelas. Algo aconteceu com Cheryl, estou em casa agora, mas vou para o centro da cidade assim que puder.

O prédio do Denver News ficava a menos de três quilômetros dali.

– Chego lá em cinco minutos.

– Certo. O nome da repórter é Amy Lynn Greer.

Terminamos a ligação e, antes que eu pudesse dizer uma palavra para Tessa, ela soltou:

– Você tem de me dar o diário.

– Não force as coisas agora, Tessa. E não me dê ordens – levantei-me para ir embora.

– Eu tenho idade suficiente para lê-lo. Vou fazer 18 anos no outono.

– Vamos conversar sobre o diário depois. Eu preciso de um tempo para pensar nisso. Sua mãe insistiu muito...

– Nele diz quem é o meu pai?

A pergunta me pegou de surpresa.

– Eu nunca li o diário. Eu quis respeitar a vontade da sua mãe...

– Nele diz quem é meu pai? – a voz dela havia se tornado algo sólido e frio.

– Tessa, não me interrompa – eu entendia que ela estava chateada, mas eu não estava com cabeça para ser interrompido toda hora que começava uma frase. – Eu prometi a ela que esperaria até você fazer 18 anos e agora você não está me dando nenhuma razão para quebrar essa promessa.

Ela abriu a boca como se fosse responder mas deve ter pensado melhor, pois a fechou novamente sem emitir nenhum som. Seu olhar de raiva estava misturado com algo mais profundo, um senso profundo de tristeza ou desapontamento, e eu me senti mal por ela estar sofrendo.

– Vamos conversar sobre isso depois. Agora, eu preciso ir – eu ainda estava parado ao lado da mesa; ela não havia se movido. – Vamos.

Finalmente, ela se levantou.

– É um caso? Você vai me levar com você até uma cena de crime?

– É apenas algo em que preciso dar uma olhada. Talvez você possa ligar para Dora te pegar quando chegarmos lá.


Durante todo o caminho para o prédio do Denver News, Tessa ficou olhando pela janela, mas ela não estava realmente vendo nada. No geral, ela estava apenas pensando.

Sua mãe mantinha um diário.

Um diário.

E ela queria que você o lesse, mas não até fazer 18 anos.

Mas por que não?

E por que Patrick estava fazendo um grande estardalhaço com isso?

Não era justo fazê-la esperar, especialmente agora que ela sabia sobre ele. Que mal faria ela lê-lo alguns meses mais cedo?

Ela olhou para o relógio.

Dora havia concordado em pegá-la às 13h. Ainda faltavam 20 minutos.

Se Dora a levasse de volta para casa, elas poderiam talvez procurar o diário, mas para isso seria necessário desembalar tudo. E, além disso, Patrick deve tê-lo guardado em seu escritório, só para garantir que ela não o encontrasse acidentalmente.

É isso que ela faria se tivesse uma filha adolescente em casa.

Você precisa ler as coisas da caixa de memória antes de se preocupar

com o diário...

– Tessa.

– Ahn? – Eles haviam chegado ao prédio do jornal, mas ela estava tão distraída pensando na mãe, no diário e na caixa de memória que nem tinha percebido.

– Eu ligo no seu celular quando terminar – sua voz estava tensa e ele certamente estava com pressa, e tudo isso aguçou a curiosidade de Tessa sobre por que eles haviam saído do restaurante tão abruptamente e corrido para lá.

– Ok.

Ele colocou uma placa “Carro federal. Em serviço oficial” sobre o pai nel e então saiu do carro e correu pela calçada.

Ela não era burra. Ela sabia que ele estava em uma força-tarefa com os policiais e ela havia visto as notícias sobre a série de assassinatos nos últimos dias. Não precisava ser um gênio para descobrir em que caso ele estava trabalhando.

Ela olhou para seu relógio. Dora não chegaria nos próximos 15 minutos.

Hum.

Deve ser tempo suficiente.


33

Atravessei o saguão do Denver News, já abrindo minha identificação enquanto passava pela mulher de cabelos encaracolados fazendo as unhas atrás da mesa da recepção, perto dos elevadores.

– O escritório de Amy Lynn Greer – eu disse. – Qual andar?

– Quarto – ela deslizou uma prancheta e um crachá de visitante por cima do balcão para mim. – Você precisa assinar.

Escrevi meu nome, peguei o crachá de cima do balcão e fui para o elevador.

Alguns minutos depois, Cheyenne me encontrou ao lado do elevador no quarto andar.

– Bom te ver – ela disse.

– Você também. – Ela me conduziu pelo corredor até depois de um santuário de placas e prêmios de jornalismo que o jornal aparentemente havia ganhado. – Alguma novidade sobre a situação de Kelsey? – perguntei.

– Ela está se recuperando. A temperatura do corpo dela havia subido sete graus quando saí de lá. Estava quase normal. Acho que vai dar tudo certo. Porém, ela não está falando. Ainda está muito traumatizada. Mas perguntei a ela se o homem que a atacou era oriental, negro, caucasiano; então ela me parou nessa palavra e acenou com a cabeça. Então até agora é o que temos.

– Nós sabemos por que ela foi até o necrotério na noite passada?

– Não, mas as câmeras de vigilância do hospital mostram que ela chegou às 20h19; nada sobre o cara que a atacou, porém. Ele conseguiu evitar ser pego nas filmagens.

Considerei as implicações.

Passamos pela sala de recreação dos funcionários e Cheyenne disse:

– Esqueci de mencionar: o agente Vanderveld está vindo para cá. Deve chegar em 15 minutos.

– Maravilha.

Então, com seu jeito brusco mas amável, ela perguntou:

– Qual é o problema entre vocês dois, afinal?

Eu estava prestes a fugir da pergunta quando percebi que teria de explicar as coisas uma hora, então eu já poderia me livrar logo daquilo.

– Há seis anos eu estava criando um perfil geográfico de um caso em Albuquerque. Garotos adolescentes estavam desaparecendo; três corpos haviam sido encontrados e três outros garotos estavam desaparecidos.

– Acho que me lembro de ouvir falar disso. Eles estavam sendo sequestrados de suas casas depois da escola.

– Sim. Enquanto seus pais ainda estavam no trabalho. O departamento do xerife estava, vamos dizer, pouco entusiasmado com minhas técnicas.

– Quem diria.

– Pois é.

O corredor abriu-se para um grande espaço de trabalho e Cheyenne me guiou através de um labirinto de cubículos. Como era sábado, eu não esperava que a sala estivesse cheia, então fiquei surpreso em ver cerca de duas dúzias de funcionários digitando, navegando na internet e mexendo em seus celulares.

– De qualquer forma, o Bureau decidiu enviar um criador de perfis comportamentais, e escolheram Jake; decidiram me realocar para uma série de tiroteios em Nova York.

– Você foi tirado do caso?

– Sim.

– E então, o que aconteceu? Vanderveld estragou as coisas?

– Após dois dias no local, ele estava convencido de que deveríamos procurar por um homem de 24 a 27 anos, caucasiano, solteiro, que nunca tinha se casado e homossexual, com um histórico de trabalho com crianças e que podia ganhar a confiança delas com facilidade. Um professor de escola, talvez um professor de educação física, alguém desse tipo.

– Deixe-me adivinhar – ela parou de andar por um momento. – Foram feitos de tolos.

– Nas três semanas seguintes, mais dois garotos desapareceram antes que uma testemunha visse um garoto de 13 anos entrar em um carro com o comissário de 48 anos, divorciado e hispânico.

– Então as únicas coisas que Vanderveld havia acertado em seu perfil foram o sexo e a orientação sexual do assassino?

– Sim.

– O que era bastante evidente, considerando a escolha das vítimas.

– Exatamente.

Começamos a andar novamente.

– O comissário morava perto do centro da zona de perigo. Se a polícia tivesse me ouvido, aqueles dois garotos ainda poderiam estar vivos.

Tentei disfarçar a raiva que ainda carregava comigo.

– Mas, então, vem a melhor parte: Vanderveld deu uma entrevista coletiva e explicou como o caso se resolveu tão rápido depois da chegada dele. Ele se deleitou com a atenção da mídia o máximo que pôde. Ele sequer deu crédito para a polícia local. Ele adora atenção e, quando consegue, não larga mais.

– Mas não é só isso, é?

– Não.

– O que mais?

– Vamos dizer que eu não confio nele e ficamos por isso mesmo.

Logo depois do bebedouro, chegamos a uma fila de policiais ao longo da parede lateral. Duas das portas estavam abertas e pude ver que cada escritório tinha uma vista panorâmica da cidade. Imaginei que eram os escritórios executivos ou, pelo menos, as salas dos jornalistas mais importantes.

– Obrigada por me contar – Cheyenne disse, então bateu em uma porta que tinha uma pequena placa de metal: Benjamin Rhodes, Vice--Presidente-Assistente, Editorial.

– Entre – um homem respondeu.

Duas pessoas estavam nos esperando dentro do escritório. O homem, que assumi ser Rhodes, parecia ter quase 40 anos. Cabeça raspada. Cavanhaque levemente grisalho. Camisa de gola alta preta, jeans azuis, sapatos pretos.

Ergui minha mão.

– Agente especial Bowers. Sou do FBI. Estamos trabalhando juntamente com o Departamento de Polícia de Denver nesse caso.

– Benjamin Rhodes – nos cumprimentamos e ele gesticulou na direção da mulher, que não parecia feliz em me ver. – E essa é Amy Lynn Greer. Uma das nossas melhores repórteres investigativas.

Próxima dos 30 anos, com cara de quem dormiu pouco, bonita. Ela tinha os cabelos castanhos encaracolados de um jeito diferente e usava um colar de cânhamo, blusa azul, sapatos elegantes. Eu reconheci o rosto dela da foto que acompanhava uma coluna política semanal que agora eu percebia ser dela.

– É um prazer conhecê-la, sra. Greer – eu disse. – Conheci seu marido hoje de manhã.

– Pode me chamar de Amy Lynn – seus modos eram bruscos. – Vi sua foto. Algo a ver com o tiroteio em Chicago ontem?

– Sim. Foi trágico – não era algo sobre o qual eu gostaria de ser lembrado. Meus olhos dirigiram-se para sua mesa. – Essas são as flores?

Amy Lynn e Benjamin acenaram com a cabeça.

Cheyenne ficou quieta ao nosso lado. Concluí que ela já tivesse pas sado pelas apresentações e tido um tempo para inspecionar as flores.

A planta tinha finas torres de flores brancas arroxeadas e folhas grossas. Me inclinei para perto e senti um forte odor mentolado misturado com o cheiro da terra do vaso.

– Nós sabemos que tipo de flores são essas?

Benjamin trocou olhares com Amy Lynn.

– Não temos certeza. Nós íamos chamar alguém, ver se alguém no prédio era jardineiro, mas quando Amy Lynn contou para Reggie sobre o bilhete...

– Ele me pediu para manter segredo – ela disse.

– Bom – falei.

Mais cedo naquele mesmo dia, no caminho para a casa de Taylor,

Cheyenne havia mencionado que tanto Heather Fain quanto Ahmed Mohammed Shokr haviam morrido de envenenamento por cloreto de potássio. Eu não sabia que tipo de flores eram aquelas ou com o que elas poderiam estar cobertas, mas não queria correr riscos.

– Algum de vocês dois tocou a planta?

– Eu toquei, um pouco – Amy Lynn respondeu. – Por quê? Eu não queria assustá-la.

– Provavelmente é melhor você lavar as mãos.

Ela olhou para mim nervosa, então saiu da sala e perguntei para Benjamin:

– Quantas pessoas manusearam o vaso?

– Bom – ele parecia um pouco nervoso também. – Amy Lynn, é claro. Brett, uma de nossas secretárias. O entregador de flores que as deixou aqui. Fui eu que as trouxe para cá.

– Cheyenne – eu disse. – Você poderia levar o sr. Rhodes e conversar com Brett, ver se ela pode nos descrever o homem que entregou as flores? Descubra se ele disse ou fez algo incomum.

Ela abriu sua caderneta e acenou na direção da porta.

– Sr. Rhodes?

– Claro.

– E as mãos – eu disse. – Faça com que todos lavem suas...

– Entendi – Cheyenne disse.

Eles saíram para o corredor; peguei um par de luvas de látex que carre gava comigo e cuidadosamente investiguei as pétalas, analisando os caules para ver se havia algo diferente sobre as flores. Como não encontrei nada, cutuquei suavemente a terra, procurando por um dispositivo de gravação preto como aquele que havia encontrado na boca de Heather Fain.

Nada.

Ouvi Amy Lynn retornar.

– Onde está o bilhete? – perguntei.

Ela apontou para o canto da mesa.

– Está ali. Está assinado como John.

Pegando o bilhete, li o que estava escrito; então o virei e analisei o papel-cartão. Não parecia ter nenhuma marca especial ou única. Seria difícil de rastrear.

– Joguei a frase no Google – Amy Lynn disse. – “Devemos nós tratar das lágrimas alheias?”. Não encontrei nada.

– Tudo bem – coloquei o bilhete de lado. – Algum amigo chamado John? Algum John em algum história em que você esteja trabalhando?

– Eu procurei por isso também – ela soava impaciente. – O único que pude pensar foi John Beyer, o arremessador do Colorado Rockies. Estou fazendo um artigo sobre uso de esteroides, mas não consigo imaginar como isso poderia estar relacionado com as flores.

Parecia algo muito vago para mim, mas poderíamos mandar um policial ir falar com ele.

Cuidadosamente, levantei o vaso para investigar a parte de baixo; não encontrei nada incomum. Então tateei em volta da borda do vaso. Eu estava dando a volta pela circunferência com meu dedo quando ouvi a porta abrir atrás de mim. Concluí que fossem Cheyenne e Benjamin voltando.

Me peguei verbalizando meus pensamentos:

– Quem é você, John? Por que mandar essas flores?

E alguém disse:

– Isso é manjericão.

Mas não era a voz de Cheyenne, nem de Benjamin.

Era a voz de Tessa.

Virei-me.

– O que você está fazendo aqui em cima?

Os olhos dela estavam cravados nas flores.

– Eles estavam tentando guinchar o carro.

– O quê? Sério? Não, não estavam.

– Ok, você me pegou, eles não estavam. Mas você disse “John”? Há um segundo? – ela entrou no escritório.

– Você não deveria estar aqui – coloquei o vaso de volta. – Você precisa descer.

– Você disse que é manjericão? – Amy Lynn perguntou.

Dei a volta na mesa na direção de Tessa. Ela estava olhando para mim,

seus olhos se arregalando.

– Sério, você disse John, certo? “Quem é você, John?”

– Sim.

– Desculpa – Amy Lynn disse. – Mas você é...?

– Essa é minha enteada, Tessa – eu disse. Como essa evidência estava aparentemente ligada aos assassinatos, eu queria tirar Tessa dali o mais rápido possível. – Vamos – eu disse a ela. – Estamos indo embora.

– É um vaso de manjericão, e o bilhete é de John... – Tessa disse suavemente. O sangue havia sumido do seu rosto.

Olhei para ela intrigado.

– Você sabe algo sobre isso?

– Eu preciso ir.

– O que foi? – perguntei.

– É um vaso de manjericão – ela repetiu, recuando para a porta.

– Um vaso de manjericão – eu disse. – Sim. Ok. E daí?

Ela começou a balançar a cabeça lentamente.

– Você não entende. Eu preciso ir. Vou passar mal.

Cheyenne e Benjamin apareceram atrás dela, mas ela os empurrou e correu na direção da redação do jornal.

– Era a Tessa? – Cheyenne perguntou.

– Sim – eu estava a caminho da porta.

– Ela está bem?

– Não tenho certeza – passei por ela. – Eu já volto. Não deixe mais ninguém entrar nessa sala.


34

Alcancei Tessa nos elevadores. Ela estava apertando o botão para descer freneticamente, com a mão trêmula.

– Não – ela murmurou. – Não, não está. Não pode estar.

– Tessa, você sabe quem mandou aquelas flores?

Ela balançou a cabeça negativamente.

– Uh-uh.

– Então o que há de errado?

– Keats.

Reparei em uma lata de lixo ao lado dela. Arranquei as luvas de látex que ainda estava usando e as enfiei lá dentro.

– Keats?

As portas abriram e ela correu para dentro do elevador. Eu a acompanhei.

Ela apertou o térreo quatro vezes e começou a murmurar:

– Sim... eu acho que Keats, ou talvez Alexander.

– Tessa...

– Mas não importa – as portas se fecharam e ela ficou olhando-as, ansiosa, aterrorizada. – Dá no mesmo.

Sua reação intensa estava começando a me preocupar de verdade.

– Acalme-se por um minuto e apenas diga o que você está pensando.

Ela estava batucando com os dedos uns nos outros rapidamente.

– Você não acha que é... mas então, por que alguém...?

Coloquei as mãos gentilmente nos ombros dela, e quando o fiz, ela me olhou nos olhos.

– Por favor – eu disse –, diga o que está acontecendo.

Finalmente, ela respirou profundamente, ainda tremendo, e disse:

– Havia um artista, certo? John White Alexander. Ele pintou um quadro em, tipo, 1896 ou 1897, é um quadro famoso chamado Isabella e o Vaso de Manjericão. John White Alexander, entendeu? Por isso que John se refere a ele.

– Ok, então...

– Mas ele baseou sua pintura em um poema de Keats, John Keats. Então tanto faz, é John. Você conhece Keats, o poeta?

– Sim.

– O poema é sobre uma mulher. O amante dela é morto e...

Pensei em Kelsey, em seu marido, em tudo que havia acontecido nos

últimos dois dias.

– Ela o desenterra e...

O necrotério.

Os corpos.

Oh.

Senti um calafrio. De repente, entendi o que Tessa estava dizendo,

percebi por que ela reagiu tão excessivamente.

– É o suficiente. Eu posso procurar...

– A mulher, ela... – chegamos ao térreo e o elevador apitou.

– Eu entendo. Você não precisa dizer mais nada.

Mas Tessa não estava me ouvindo. Ela estava olhando para o vazio.

– Eles o tiram dela. O vaso, e daí...

– Está bem. Shhhh...

As portas do elevador abriram, mas Tessa não saiu; ela olhou para mim e mordeu o lábio inferior.

– Não me conte, tá? Quando você procurar. Não me conte. Eu não quero saber se estou certa.

– Tudo bem, prometo.

Tessa acenou com a cabeça e olhou para além de mim.

– Dora chegou.

Eu sabia que Tessa estava terrivelmente incomodada e eu queria estar ao lado dela, mas também precisava voltar lá para cima, especialmente se ela estivesse certa sobre o vaso.

– Você quer que eu vá para casa com você?

– Não. Eu estou bem.

Encontramos Pandora Bender no saguão, perto da porta da frente, e ela me garantiu que ficaria com Tessa.

– Ela vai ficar bem comigo, sr. Bowers. Não se preocupe.

– Obrigado, Dora – eu disse, então me virei para Tessa. – Tem certeza de que não precisa de mim?

Ela acenou com a cabeça.

– Sim. Estou bem.

Toquei o braço dela suavemente.

– Ligue-me, tudo bem? É só você falar que eu vou para casa.

– Eu sei – Dora andou na direção da porta e Tessa cochichou para mim: – Não me conte.

– Não contarei.

Elas saíram e eu as observei pelas janelas escuras até que desapare cessem virando a esquina do prédio. Então, retornei para o quarto andar.

Para procurar dentro do vaso.


35

Apenas Cheyenne e Amy Lynn estavam no escritório quando cheguei. Cheyenne explicou que Rhodes tinha ido se encontrar com dois membros da diretoria, e eu não tinha certeza se fiquei feliz por saber disso. Suspeitei que estavam discutindo como lidar com a divulgação de informações relativas às flores, mas eu não estava com tempo para tratar de nada disso agora.

Apenas um olhar para o vaso entregou que ele era do tamanho certo. Eu sabia que precisávamos levá-lo para o laboratório, mas primeiro eu queria descobrir se o palpite de Tessa estava certo, e às vezes eu não sou tão paciente como deveria ser.

– Amy Lynn, você pode nos dar alguns minutos?

Ela hesitou.

– Por favor, vá lavar suas mãos minuciosamente.

– Mas eu já lavei.

– Acredite em mim – eu não tinha outro par de luvas, mas com a parte de trás da minha mão, empurrei o vaso para o meio da mesa de Rhodes, para além de seu MacBook e seu protetor de tela de aquário. – Esta planta deve ter substâncias que você não ia querer ingerir acidentalmente.

Após um último olhar descontente, ela saiu, e Cheyenne disse:

– O que está acontecendo? Tessa está bem?

Cuidadosamente, empurrei as flores para o lado e observei que a terra em volta da base da planta estava solta.

– Você pode trancar a porta?

– Pat, o que...

– Por favor.

Peguei minha TSAVO-Wraith e abri a lâmina.

– Ela está bem – eu disse. – Obrigado por perguntar – deslizei a ponta da faca suavemente para dentro da terra.

Cheyenne trancou a porta e então voltou para o meu lado.

– O que você está fazendo?

Empurrei para o lado um pequeno triângulo de terra úmida. Com base no tamanho do vaso, eu não achava que ia precisar cavar muito fundo.

– Tem uma pintura.

Tirei mais terra do lugar. Deslizei a lâmina da faca cerca de cinco centímetros para dentro da terra.

– E um poema de Keats... mas o ponto é...

Enquanto pressionava, senti a ponta da lâmina tocar algo que não era terra.

– ...tem uma mulher que desenterra...

Fechando a lâmina da faca, coloquei-a de volta no meu bolso e então enfiei meus dedos para gentilmente tirar a terra do caminho.

– ...o corpo de seu amante.

Sob meu dedo, senti algo macio, frio e carnudo.

Cheyenne estava olhando para o lugar no vaso onde eu estava cavando.

– Pat, você não está dizendo que...

Empurrei mais terra para o lado e o cheiro de manjericão não era o odor mais forte na sala.

O conteúdo do vaso estava suficientemente visível.

Tessa estava certa.

– Oh... – a voz de Cheyenne se perdeu.

– Sim – eu disse. – É Travis Nash.


36

43 minutos depois

O vaso e a terra estavam na ponta da mesa de aço para exame.

A cabeça de Travis Nash estava colocada à nossa frente.

Depois de entregar o vaso na central, Cheyenne havia me levado em casa para que eu pudesse pegar meu carro e ver como estava Tessa, mas ela e Dora ainda não haviam chegado. Então, voltamos para a central da polícia em nossos respectivos carros, estacionamos na garagem do subsolo e corremos para nos juntar à equipe no laboratório.

Agora, dois especialistas forenses estavam analisando a cabeça, cuidadosamente usando escovas de dente para tirar a terra dos olhos abertos.

Jake estava falando baixo com um terceiro funcionário do laboratório no canto da sala. A porta se abriu e Kurt entrou.

– O Reggie já chegou? – ele perguntou.

Balancei minha cabeça.

– Não.

– A perícia encontrou algo no necrotério? – Cheyenne perguntou.

Kurt andou em nossa direção. Ele olhou sombriamente para a mesa de exame.

– Ele usou a pia, sabemos disso. Não deixou nenhuma impressão digital nas maçanetas e conseguiu entrar e sair do prédio sem aparecer em nenhuma câmera de segurança do hospital. Eu coloquei um policial para comparar a lista de suspeitos com o quadro dos funcionários do hospital para ver se conseguimos alguma coisa.

– Ótimo – respondi, porém, não estava certo se a lista de suspeitos ajudaria muito.

Quando investigações assim progridem e as pessoas acrescentam pistas, nomes são adicionados à lista de prováveis suspeitos gerada pelos aspectos das evidências de cada cena do crime. A lista normalmente cresce exponencialmente com o tempo. Quando li os arquivos do caso no caminho para a casa de Taylor de manhã, já havia 180 nomes na lista. Eu já tinha trabalhado em casos com dezenas, até centenas de milhares de nomes na lista e eu tinha um pressentimento de que o número de suspeitos desse caso ia crescer bastante antes de começar a reduzir. Às vezes as listas são vantajosas, mas muitas vezes o nome do assassino nunca aparece ou, se aparece, está tão enterrado na pilha que ninguém repara.

Reggie chegou e Kurt começou a conversar com ele no canto mais distante da sala.

Enquanto via os técnicos forenses trabalharem, comecei a me sentir inútil ali, de pé, ansioso para dar continuidade nesse caso. E agora, pelo menos, havia algumas pistas específicas para pesquisar.

Aquela mensagem: devemos nós tratar das lágrimas alheias?

O vaso de manjericão.

A ligação entre Keats e Alexander.

Ouvi o papo entre Kurt e Reggie ficando mais alto, mas eu só conse guia ouvir fragmentos da conversa. Era algo sobre a esposa de Reggie, Amy Lynn.

Então Reggie aumentou a voz.

– Eu sei, mas eu posso ficar com ela.

– Isso não é suficiente – o tom de Kurt era vigoroso e forte. – Faremos o que for necessário para protegê-la.

– Estou ciente disso. Mas Amy Lynn...

Antes que ele pudesse terminar, Kurt levou-o até o corredor para continuar a conversa longe de todo mundo. Obviamente os dois não estavam concordando em como proteger melhor a esposa de Reggie agora que o assassino havia mandado para ela o manjericão, marcando-a como uma potencial vítima.

Precisávamos dar continuidade no caso antes que o assassino tivesse chance de tornar isso realidade.

– Tudo bem – eu disse para Jake e Cheyenne. – É minha hora de ir.

– Pra fazer o quê? – Jake perguntou.

– Acho que deveríamos começar com o poema de Keats e as pinturas de John Alexander. As vítimas até agora foram colocadas em pose, suas mortes foram tão incomuns que estou imaginando se talvez o assassino não esteja reencenando outros poemas violentos ou retratando outras pinturas.

– Hum – Jake disse. – Para criar um tipo de galeria de retratos dos mortos.

– Talvez.

Cheyenne olhou pela sala.

– Bom, no momento não tem mais nada para fazermos aqui. Podemos usar a sala de conferência no sexto andar. Os computadores lá não têm nem uma década ainda.

– Eu também vou – Jake disse. – Deem-me só um minuto – ele estava olhando para a cabeça. – Então eu subo.

Cheyenne e eu saímos e encontramos Kurt logo do lado de fora da porta, sozinho. Reggie já estava no meio do corredor. Observei-o por um momento, e deixei meu olhar ser a pergunta para Kurt.

– Ele quer que Amy Lynn continue trabalhando – ele disse. – Nós designamos um policial para acompanhá-la, mas eu acho que deveríamos colocá-la sob proteção. O bilhete, o vaso, eles a ligam ao caso. Não gosto disso – ele parou. – Quero que ela fique segura.

– Você precisa perguntar para Amy Lynn – Cheyenne disse. – Não para o marido dela. Não é uma escolha sua ou de Reggie. É dela.

Ela estava certa, é claro, mas pelo meu breve encontro com Amy Lynn, eu não tinha a sensação de que ela fosse do tipo cauteloso. Eu não conseguia vê-la preferindo a custódia de proteção.

Kurt deu um suspiro.

– Você tem razão.

Cheyenne disse a Kurt aonde estávamos indo, e ele disse que se junta ria a nós assim que tivesse falado com Amy Lynn.

Então, assim que saímos, olhei de volta para o laboratório forense e vi Jake Vanderveld se inclinando, olhando intensamente nos olhos sem vida de Travis Nash. Parecia que ele estava cochichando para ele mesmo.

Mas talvez ele estivesse cochichando para os ouvidos do morto.

E eu não podia deixar de pensar no que ele poderia estar dizendo.


Amy Lynn Greer não gostava do fato de ninguém dizer a ela por que a polícia e o FBI estavam com tanta pressa para remover as flores depois que a garota adolescente disse a eles que era um vaso de manjericão, ou por que eles haviam colocado um policial bem na frente da porta dela, e contou isso a Benjamin Rhodes.

– Você não pode se envolver com isso – ele disse. – Não com a posição de seu marido.

– Eu já estou envolvida. As flores foram enviadas para mim. – Rhodes parecia que estava prestes a responder, mas antes que pudesse, ela acrescentou: – Olha, eu passei a manhã inteira acompanhando isso. Eu sei mais sobre isso do que qualquer um. E você está me dizendo que estar bem informada me desqualifica para escrever sobre isso? Que tipo de...

– Amy Lynn, sossegue. Vamos ver o que a polícia descobre primeiro

– Rhodes contornou sua mesa e parou ao lado da janela, as mãos juntas em suas costas. – O conselho executivo acha que se caminharmos rápido demais com isso, podemos sofrer implicações legais. Eles querem que fiquemos quietos até termos algo mais sólido.

– Mas você não vê? – ela disse. – É mais um motivo para investigar isso agora, para que possamos estar preparados para lançar uma história quando a hora chegar.

Se o vaso de manjericão estava relacionado com os assassinatos anteriores da semana, ela já podia enxergar essa história tomando forma como um verdadeiro livro policial. Essa era a chance dela de ter uma grande história, um furo, e ela não iria deixar isso escapar pelos seus dedos só porque o conselho queria jogar seguro.

– Não – Rhodes disse. – Sinto muito.

Amy Lynn estava prestes a deixá-lo saber o que ela pensava sobre ele e o conselho executivo, mas segurou a língua e simplesmente disse:

– Tudo bem.

– Termine o artigo sobre os esteroides e coloque sua coluna semanal na minha mesa. Você tem até 16h, então veremos.

– Sim. Tudo bem. Obrigada – ela saiu da sala, passou pelo policial que a esperava no corredor e foi para sua mesa.

Não, ela não ia passar o resto do dia escrevendo sobre um jogador de beisebol.

Ela ia encontrar John.


37

Nós dividimos a pesquisa.

Cheyenne ficou com as pinturas de Alexander, eu vasculhei a internet procurando poemas de Keats que pudessem ter alguma semelhança com os assassinatos e Jake procurava por outras referências literárias a vasos de manjericão ou à mensagem sobre tratar das lágrimas alheias.

Mesmo Cheyenne tendo sugerido que usássemos a sala de conferência do sexto andar por causa dos computadores, não demorei a perceber que eles eram dinossauros comparados aos laptops que o Bureau fornecia. Preferi usar meu computador e, cinco minutos depois, percebi que Jake havia feito o mesmo.

Cada um de nós sentou em um canto separado da sala e mergulhou em sua pesquisa e, como se por um acordo unânime e não declarado, trabalhamos silenciosamente por cerca de 25 minutos, digitando, navegando e rabiscando anotações até que Jake quebrou o silêncio.

– Bem, vamos ver o que conseguimos.

Levantei os olhos e o vi olhando de mim para Cheyenne.

– Claro, eu vou primeiro – Cheyenne se ofereceu, mas ela soava frustrada. – Procurei por todo o portfólio on-line de Alexander e, tirando duas imagens que vagamente lembram a vista das montanhas próximas da mina onde encontramos o corpo de Heather, não estou encontrando nenhuma pintura que tenha uma conexão com as outras mortes. Nada sólido mesmo.

Inclinei a tela do meu laptop para que eu pudesse ler com mais facilidade.

– Bom, eu não tenho muito também. Apenas uma coisa. Uma parte de um poema de Keats.

Então li em voz alta:

Oh Melancolia, seus olhos afastaria!

Oh Música, Música, respira desesperada!

Oh Eco, Eco, em algum outro dia,

Das Ilhas Leteanas, lamentamos – Oh lamento!

Espíritos do pesar, não cantem como quem lamuria!

Pois Isabel, doce Isabel, morrerá;

Morrerá uma morte solitária e incompleta,

Agora que o doce manjericão tomaram dela.

Resumi:

– O tema de desespero está presente em quase todas as linhas: melancolia, desespero, espíritos de pesar, a falta de canto e então uma morte solitária, do mesmo jeito que o assassino quis que Kelsey sentisse no necrotério.

– Mas ela está segura agora – Jake disse.

Pensei por um momento.

– Eu não acho que esse assassino vai desistir tão fácil – virei-me para Cheyenne. – Tem um policial com ela agora, no hospital?

– Sim.

– Mantenha-o com ela até pegarmos esse cara.

– Tudo bem – ela escreveu algo na caderneta. – Falarei com Kurt.

– Mais uma coisa. Keats menciona “Ilhas Leteanas”. Fiz uma pesquisa: o rio Lete era um dos rios no Hades. Se você bebesse dele, esqueceria sua vida na Terra. Você esqueceria tudo.

– Ilhas Leteanas – Jake olhava para a parede pensativamente. – Talvez o UNSUB esteja cometendo esses crimes para esquecer alguma coisa de seu passado, para seguir em frente, podemos dizer.

Ótimo. UNSUB: sigla em inglês para sujeito desconhecido em uma investigação. Talvez seja o acrônimo mais idiota já criado na história do FBI. E olha que a briga não é fácil.

Jake, é claro, adorava o termo.

Ele continuou:

– Talvez ele esteja tentando se livrar de seu próprio desespero, de seu próprio pesar.

Não havia modo de provar ou refutar sua hipótese, e mesmo assim, não havia estratégias específicas de investigação. Afinal, quem nunca lidou com pesar? Quem não quer esquecer as lembranças dolorosas? A maioria das 2,8 milhões de pessoas na região metropolitana de Denver se encaixaria nesse perfil.

Ainda assim, deixei suas palavras passarem sem comentário.

– Eu só consegui olhar cerca de 30 poemas de Keats, mas não encontrei nada útil nos que li – então, mesmo não querendo, admiti o inevitável: – É possível que estejamos em um caminho completamente errado.

Jake olhou para a tela de seu computador.

– Não tenho certeza – ele gesticulou na direção da televisão de tela plana na parede da sala de conferência. – Tem algum jeito de a gente...?

Cheyenne decifrou sua pergunta e levantou-se.

– Vou providenciar – ela ligou a televisão presa à parede e pegou um cabo USB em uma gaveta em um console próximo.

Jake levou um momento para conectar seu computador à porta USB na mesa e assim que a imagem de seu laptop apareceu na tela, Kurt entrou na sala e sentou-se.

– Amy Lynn quis ficar em custódia de proteção – ele disse, então olhou para mim. – Alguns de seus rapazes no escritório local levaram-na para um lugar seguro. E Reggie não está feliz.

– Então ela está a salvo – Cheyenne disse. – Isso é bom. Uma coisa a menos para se preocupar.

Algo não parecia certo, mas eu não queria mexer com isso. Jake abriu um website e ele apareceu na tela na parede.

– Mais uma coisa – Kurt acrescentou. – A informação que você queria da vitimologia, Pat. Tudo que temos até agora foi colocado nos arquivos on-line do caso.

– Ótimo – eu informei a ele sobre o que Cheyenne, Jake e eu estávamos discutindo e então gesticulei para Jake concluir.

– Isso é o que tenho – Jake apontou o cursor para o meio da página.

– Não achei nada relativo à frase sobre as lágrimas, mas encontrei mais sobre o vaso de manjericão. O poema de Keats era, na verdade, baseado em uma história do século XIV sobre uma mulher chamada Isabel, que exuma o corpo de seu amante, corta a cabeça e a coloca em um vaso, então planta manjericão em cima. – Jake fez uma pausa, então acrescentou: – A história aparece em um livro que foi condenado pela Igreja. É chamado Decamerão.

Inclinei-me para a frente.

– Um livro condenado? – Cheyenne disse.

– Sim. É de um autor italiano chamado Giovanni Boccaccio – ele rolou o artigo para baixo. – E, a propósito, Giovanni é a forma italiana de...

– John – eu disse.

– Sim.

– Inacreditável – Kurt murmurou.

John Alexander.

John Keats.

John Boccaccio.

Todos esses três homens haviam contado a história de uma cabeça exumada em um vaso de manjericão: o primeiro através de uma pintura, o segundo através da poesia e o terceiro através da prosa.

E agora, aqui em Denver, tínhamos um assassino que se chamava John e havia reencenado a história de um quarto modo: na vida real.

Quando assinou o bilhete como “John” e enviou o vaso de manjericão para uma repórter, o assassino deveria saber que faríamos a ligação com Keats, Alexander ou Boccaccio. Eu não tinha certeza se eu deveria me sentir impressionado por essa meticulosidade ou insultado por ela.

Tudo um jogo elaborado e doentio.

Jake continuou:

– Aparentemente, o Decamerão tornou-se uma fonte de material literário para outros autores, incluindo... – ele olhou em suas anotações.

– Faulkner, Tennyson, Longfellow, Shakespeare, Chaucer, e claro, Keats, só para mencionar alguns. Na verdade, um quarto das histórias em Os Contos da Cantuária, assim como sua estrutura literária, é baseado em histórias do Decamerão.

Eu mal podia acreditar.

– Chaucer, Longfellow, Shakespeare: todos tiveram histórias baseadas no livro de Boccaccio? Eu nunca havia ouvido falar dele.

Jake balançou a cabeça.

– Nem eu.

– Esperem – Cheyenne disse, de um jeito impaciente. – Você disse que o livro foi condenado pela Igreja?

Jake rolou a página para baixo.

– Em 1370, um monge chamado Pietro Petroni escreveu para Boccaccio alertando que ele seria amaldiçoado eternamente a menos que renunciasse ao livro. Boccaccio mais tarde revisou o livro, mas nunca se retratou. Logo depois disso, o papa, vamos ver...

Ele deslizou o cursor pela tela até encontrar o lugar.

– Sim, papa Paulo IV oficialmente condenou o livro e ele foi proibido de ser distribuído e lido. Mas parece que isso apenas fez com que ficasse mais popular.

– Nenhuma surpresa – Kurt disse. – O melhor jeito de vender um livro é fazer com quem alguém o proíba.

– Ele está no Index Librorum Prohibitorum até hoje – Jake concluiu.

– O Índice de Livros Proibidos – Cheyenne disse suavemente. Ela me pegou olhando para ela intrigado. – Escola católica.

– Tá certo – eu disse para Jake. – Então esse livro deve conter algo herético, ou talvez satânico. O que o site diz sobre o conteúdo do livro?

Ele olhou para as anotações que havia feito em um bloco de notas ao lado do teclado.

– O livro é sobre dez pessoas, sete mulheres e três homens que estão tentando escapar da peste negra no século XIV. Na história, a praga havia infectado Florença e os dez viajantes estavam tentando chegar às colinas de Fiésole, onde poderiam ficar em segurança.

Eu estava impressionado com o quanto ele havia conseguido descobrir em apenas 25 minutos.

Depois de recuperar o fôlego, ele continuou.

– Durante a viagem de dez dias, eles combinam que, a cada dia, cada um deles vai contar uma história. E é daí que o título Decamerão vem: duas palavras gregas, deka e haemeron, que querem dizer “dez” e “dias”, respectivamente.

Dez viajantes. Dez histórias. Dez dias.

Dez velas cercando o corpo de Heather Fain.

Meu coração acelerou.

Cheyenne batucava impacientemente na mesa.

– Jake, volte para a pergunta de Pat por um minuto. Se a Igreja condenou o livro, que tipo de histórias essas pessoas contaram?

Pelo tom dela, percebi que investigar um livro condenado pela Igreja na qual ela havia crescido estava incomodando-a mais do que só um pouco.

– Bom, um desses índices lista... – Jake olhou para seu computador, e eu vi uma nova página aparecer na tela da parede. – Sim. Aqui. Parece que as histórias são basicamente sobre tópicos do dia a dia: relacionamentos, política, religião, corrupção, tristeza e amor...

– Então, o cotidiano – Kurt disse.

– Basicamente.

Eu ainda não entendia por que a Igreja teria condenado o livro, mas por enquanto, pelo menos, as razões específicas da Igreja para tê-lo banido não importavam tanto quanto a ligação que ele poderia ter com o caso.

– Nós precisamos descobrir o máximo que pudermos sobre as histórias contidas no Decamerão – eu disse.

Jake balançou a cabeça.

– Essas histórias não são curtas e existem centenas delas. Nós levaríamos, sei lá, pelo menos alguns dias para percorrer todas...

– Não – eu disse. – Lembre-se das pistas anônimas sobre os corpos:

“O quarto dia termina na quarta-feira”. Podemos pular os outros dias por enquanto e apenas nos focarmos nas histórias contadas no quarto dia. E precisamos correr. O anoitecer está próximo.


38

Nós quatro baixamos o texto do Decamerão da internet, então Jake se ofereceu para investigar as três primeiras histórias que eram contadas no quarto dia, Cheyenne pegou as histórias de quatro a seis, Kurt, sete e oito e eu concordei em analisar as últimas duas.

Kurt sugeriu que nos reuníssemos novamente em uma hora, às 15h30. Percebi que a Biblioteca Pública de Denver, que ficava a apenas alguns quarteirões dali, provavelmente teria comentários que poderiam incluir detalhes adicionais e um pano de fundo para as histórias que estávamos estudando, então, quando nós quatro nos dispersamos para fazer nossas pesquisas, peguei meu laptop e saí pela calçada.


Desde que Tessa e Dora haviam chegado em casa, elas ficaram descansando na cama de Tessa, mexendo nos itens da caixa de memória de sua mãe, e Tessa contava à sua amiga histórias sobre os objetos dos quais ela lembrava.

As garotas estavam prestes a começar a leitura das cartas quando Dora avisou que não havia almoçado e estava faminta; precisava comer algo ou provavelmente ela iria desmaiar e morrer.

Que seja.

Mas Tessa percebeu que estava com muita fome também.

Então, para a cozinha.

Dora abriu a geladeira, pegou um refrigerante para ela e um para Tessa.

– Então ele não vai deixar você nem ver o diário?

– Não, ainda não – Tessa colocou um pouco de nachos em uma vasilha gigante. Colocou-a no balcão perto de uma vasilha menor com molho. – Preciso arrumar um jeito de convencê-lo a dar o diário para mim.

Dora fechou a geladeira.

– Como você vai fazer isso?

Tessa encolheu os ombros e pegou a vasilha de nachos para levar de volta ao quarto.

– Eu não sei – então ela percebeu que a vasilha era quase tão grande quanto o vaso de manjericão.

Um calafrio.

Ela soltou a vasilha.

Ok. Pense em alguma outra coisa.

Ela pegou então duas vasilhas de cereal, passou os nachos para elas e enfiou a vasilha grande de volta no armário. Ela não havia contado a Dora sobre o vaso de flores e o que tinha provavelmente – quase certamente – dentro dele. Ela não queria nem pensar naquilo.

– Vamos – ela disse. – Vamos ler aquelas cartas.

Elas pegaram seus salgadinhos e voltaram para o quarto. Mas Tessa per cebeu que não estava nem com metade da fome de alguns minutos atrás.

Encontrei as coleções das obras de Boccaccio no 853s, no terceiro andar da Biblioteca Pública de Denver, espremidas entre outros volumes de prosa italiana.

Dos 16 livros sobre Boccaccio ou sobre o Decamerão, 12 eram traduções, dois eram estudos de literatura comparada entre as obras de Boccaccio e Chaucer, e dois focados em outros trabalhos de Boccaccio.

Nenhum dos cinco livros de comentários da biblioteca sobre o Deca-merão estava na prateleira.

Verifiquei o catálogo computadorizado e descobri que todos os cinco estavam emprestados, mas quando perguntei à diretora da biblioteca quem os emprestara, ela me disse que não poderia fornecer a informação.

– Sim, você pode – mostrei a ela meu distintivo do FBI. – E vou precisar de uma lista de todos os que os pegaram nos últimos 12 meses.

Ela balançou a cabeça negativamente.

– Isso é uma investigação federal.

– E isso é uma biblioteca pública – a mulher cruzou os braços. Ela tinha um corte de cabelo do qual apenas uma bibliotecária poderia gostar. – Existem leis para proteger o direito das pessoas à privacidade, sabia?

Tecnicamente, ela estava correta, mas o direito à privacidade não é um direito constitucional, é apenas um direito imputado, e pode, portanto, ser sobreposto por coisas como ataques terroristas, segurança nacional ou ameaça iminente.

– As vidas de pessoas estão em perigo – eu disse a ela.

– Os direitos das pessoas também – ela respondeu duramente. – Volte com um mandado e ficaremos felizes em ajudá-lo.

Endureci minha mandíbula. Nos últimos anos, eu havia requisitado mais do que minha cota de mandados de busca, e eu sabia que ainda não tínhamos informações suficientes para conseguir um para registros de biblioteca. Além disso, levaria uma hora só para preencher a papelada.

Esqueça. Você pode acompanhar isso depois. Vá tratar das histórias.

Voltei para o 835s e escolhi a tradução com mais notas de rodapé – a tradução do italiano para o inglês de John Payne, de 1947, em vez da tradução de 1942 que havíamos baixado da internet.

Então, comecei a ler a nona e a décima história do livro condenado que havia, ao que tudo indicava, inspirado um homem a matar pelo menos sete pessoas até agora, nesta semana.

Giovanni sentou-se à sua mesa e pensou nas próximas seis horas.

Pensou no homem que estava prestes a sequestrar e na maneira bastante perturbadora como ele iria morrer na história número seis: o conto do galgo e do convento e do lençol de seda que seria coberto com pétalas de rosa delicadas e graciosas da cor da luz do sol avermelhada.

E então.

Giovanni estava com a navalha e as agulhas hipodérmicas.

Ele conferiu a hora: 14h53.

Thomas Bennett sairia do trabalho em menos de duas horas.

E estaria morto em menos de 12.

Foi perfeito.

Quando as autoridades ofereceram a Amy Lynn Greer a chance de ficar isolada em um lugar seguro pelo resto do dia, longe dos olhos curiosos de Benjamin Rhodes, foi uma oferta boa demais para ser desperdiçada.

Ela levou o filho junto, claro, mas isso não era um problema. O esconderijo estava abastecido com muitos filmes infantis e brinquedos.

E ela estava com seu computador.

Isso era tudo de que precisava.

Mais cedo, no escritório de Rhodes, a garota que o agente Bowers identificou como sua enteada havia ficado perturbada quando ligou o vaso de manjericão com o nome John e, logo depois disso, as autoridades levaram o vaso embora, então Amy Lynn havia passado a última hora pesquisando as ligações entre o nome “John” e o tempero “manjericão” enquanto o filho brincava com Lego e assistia TV no quarto ao lado.

E quando ela encontrou um poema de Keats sobre uma cabeça que estava escondida dentro de um vaso de manjericão, ela decidiu que isso tinha de estar relacionado ao fato de o governador Taylor ter sido decapitado na quinta-feira à noite.

Ela mal podia acreditar no quanto essa história era grande. Apesar da morte de Sebastian Taylor receber cobertura ininterrupta da mídia, até onde ela sabia, ninguém mais havia feito a ligação com o vaso de manjericão.

O vaso havia sido enviado para ela.

O assassino havia entrado em contato com ela.

Havia escolhido ela.

Ela poderia escrever a história que ninguém mais podia.

Mas ela precisava de só mais um pouco de informações para isso.

Uma comentarista de notícias havia mencionado que houve duas ligações anônimas relatando o local dos corpos.

Amy Lynn sabia que às vezes arquivos de áudio das ligações para a polícia eram postados na internet, então ela levou alguns minutos para procurá-los, mas não encontrou nada. Isso queria dizer que, se ela quisesse descobrir o que as ligações diziam, ela teria de entrar em contato com sua fonte no departamento de polícia.

Não seu marido. Não. Ela não podia utilizá-lo. O homem no qual ela estava pensando trabalhava no escritório de expedição do Serviço Médico Emergencial.

Era uma amizade sobre a qual ela nunca havia tido tempo de contar ao marido. Não era nada sério, eles haviam saído para beber algumas vezes, se encontraram para tomar café, nada comprometedor, mas tinha valido a pena para ela em três histórias anteriores.

Com o burburinho no departamento de emergência médica, quem sabe o que ele pode ter ouvido?

Ela fechou a porta do quarto do esconderijo para garantir que o agente federal assistindo TV com seu filho na sala de estar não ouviria sua conversa. Então pegou uma caderneta e ligou para o celular do contato.

Ele atendeu depois de um toque.

– Ari.

– Ari. É a Amy Lynn.

Uma breve pausa.

– Amy Lynn.

O dr. Bryant, seu professor de jornalismo, havia ensinado a ela que sempre começasse a se relacionar como pessoa antes de se relacionar como repórter.

– Caso contrário, sua fonte pode pensar que você está mais interessada na história do que nela – ele havia dito à classe, então tinha feito uma pausa e sorrido. Ela ainda lembrava disso. – É claro, você está mais interessado na história, mas obter a informação que você quer sem deixar que as pessoas percebam que você as está usando é a diferença entre bons jornalistas e ótimos.

– Tudo bem contigo, Ari? – ela perguntou carinhosamente. Considerando a personalidade tímida dele, ela sempre achou irônico que seu nome significasse “Leão” em hebreu.

– Estou bem – ele fez uma pausa. – Como estão você e Jayson?

Ela percebeu que ele não havia perguntado do marido, apenas do filho, mas decidiu não lembrar a ele que era uma mulher casada.

– Acabou de fazer três anos. Ele já está falando agora. Está uma gracinha. Sim, estamos bem.

– Isso é ótimo.

– Sim.

– Então, como você consegue fazer tudo isso? Trabalhar, ser mãe, tudo – era um elogio sutil, beirando o flerte, e ela percebeu.

– Uso muito a creche – volte para o caso. Pergunte a ele sobre as denúncias. – Ei, ouvi falar sobre essas ligações nos últimos dias. Os homicídios.

Que alguém deu pistas para a polícia.

Silêncio.

– Por baixo do pano, eu estava imaginando...

– Amy Lynn, eu não deveria...

– Eu sei, eu sei. Mas não vou usar seu nome. Só vou dizer “uma fonte anônima”, do mesmo jeito que fizemos da última vez.

– Sim, mas da última vez eles quase descobriram – ele havia baixado a voz. – Eu posso perder meu emprego. Eles estão muito preocupados com vazamentos dessa vez. Ele tem matado duas pessoas todo dia... – ele interrompeu o que falava.

– Duas pessoas por dia? – ela rabiscou as palavras “número crescente de mortos choca a cidade” em sua caderneta. – Então eles acham que ele vai matar de novo antes de amanhã? – ela falou sem pensar, assumindo o lado repórter.

– Eu não disse isso – ele estava um pouco defensivo. Isso não era bom.

– Claro que não. Não, você não disse nada.

– Talvez eu devesse desligar.

Rápido.

– Você está certo, Ari. Sério, olhe, me desculpe. Eu não deveria ter ligado.

A última coisa que quero que aconteça é que você se meta em encrenca.

Espere. Espere.

– Não se preocupe com a história. Sério. Eu posso... não é nada de mais. Espere.

Mais um pouquinho.

– Foi bom falar contigo, pelo menos. Bom ouvir sua voz. Eu deveria desligar. Espere.

– Tchau, Ari...

– Calma.

Sim.

– Uma coisa – ele falou mais suavemente ainda do que antes. – Mas eu não te contei nada. Você tem de prometer.

Isso é bom. Muito bom.

– Não, claro que não. Você não disse uma palavra.

– Eu não peguei nenhuma das denúncias que o cara fez, mas ouvi as pessoas falando.

Ela esperou, a caneta pronta sobre a caderneta.

– Ele disse que o anoitecer estava chegando, que o quarto dia acabaria logo, que ele não iria parar até que terminasse a história. Eu não sei o que isso quer dizer. Ninguém sabe. É isso. Mas não publique isso, ok? Apenas diga algo como “a polícia está investigando as ligações”.

– Eu prometo, não vou publicar – era uma promessa que ela não tinha certeza de que poderia cumprir, mas era a coisa certa a dizer no momento. – Eu não ia querer fazer algo que estragasse nossa amizade. Você sabe disso.

– Sim, obrigado... hum. Ei, eu tenho tido vontade de te ligar. Faz tempo desde que... Talvez pudéssemos nos encontrar para jantar.

– Sim, sim. Seria ótimo – ela precisava acabar com aquilo. Ela olhou para a porta fechada do quarto onde estava. – Espere, meu editor está vindo. Preciso desligar. Tudo bem? Eu te ligo.

– Ok...

Ela apressadamente se despediu, finalizou a ligação e olhou para suas anotações: anoitecer... quarto dia... ele está contando uma história... duas vítimas a cada dia.

Talvez o bilhete que John deixou no vaso de manjericão tenha algo a ver com a história que o assassino está contando.

Lentamente ela escreveu as palavras na caderneta, pensando cuidadosamente em cada uma delas: devemos nós tratar das lágrimas alheias? Por favor, sra. Greer, tenha coração.

Espere.

Ela não havia reparado em uma palavra antes. Uma palavra crucial: nós. “Nós tratamos das lágrimas alheias”.

Seu coração acelerou.

Talvez John estivesse também na imprensa.

Ele é um de nós.

Ela abriu a lista de funcionários do Denver News em seu computador e começou a procurar por alguém que possa ter escrito recentemente uma história sobre anoitecer, ou o quarto dia de alguma coisa, ou alguém que estivesse de folga na hora dos assassinatos.

Ela começaria ali. Então passaria para outros meios de comunicação até encontrar o homem que havia enviado as flores.


Eu estava profundamente perturbado pelas duas histórias que li no Decamerão.

Se o assassino estava realmente reencenando as histórias contadas no quarto dia, quando ele chegasse ao nono conto, ele cometeria um dos crimes mais chocantes do qual se tem conhecimento.

O décimo conto era menos terrível, mas deixava a porta aberta para ainda mais crimes.

Meu tempo estava se esgotando.

Peguei emprestada a cópia da tradução de 1947 do Decamerão e corri de volta para a central da polícia.

Mesmo estando ansioso para compartilhar o que havia descoberto sobre a história número nove, eu sabia que, para entender o contexto geral da ligação do Decamerão, nós precisaríamos começar com a primeira história contada no quarto dia.

Essa era a história de Jake e ele já estava esperando na sala de conferência quando entrei.

Kurt e Cheyenne chegaram menos de um minto depois, e a reunião começou.


39

15h34

Kurt colocou as coisas no trilho.

– Esse cara vem crescendo e temos muito o que fazer ainda. Vamos ser minuciosos, mas também concisos – ele acenou para Jake. – Conte-nos.

Jake olhou para suas anotações.

– Na introdução para a primeira história, a narradora Fiammetta diz: “Nós devemos tratar das lágrimas alheias”, em referência ao objetivo que eles têm de contar histórias trágicas nesse dia. John apenas inverteu as duas primeiras palavras para tornar a frase uma pergunta dirigida a Amy Lynn.

– Como as palavras não estavam em ordem, uma ferramenta de procura on-line não encontraria a frase – Cheyenne disse. – Esperto.

Se ainda houvesse qualquer dúvida, essa referência confirmava a ligação entre os assassinatos e o Decamerão.

Peguei-me batucando meu dedo contra a mesa. Parei.

Jake continuou:

– Essa primeira história é sobre um pai que tem o amante da filha estrangulado por alguns homens. Ele envia para ela o coração do homem morto em uma tigela de ouro; ela derrama veneno sobre ele, bebe e morre.

– E eu aposto que ela é encontrada segurando o coração dele contra o seu – eu disse.

Jake não precisou checar suas anotações.

– Sim.

Tive um pensamento horrível, mas que não pude evitar: John fez Heather beber uma tigela de veneno que continha o coração do namorado dela.

– Espere – Cheyenne disse. – A ligação anônima disse que o quarto dia terminava na quarta-feira. Isso é dez dias após Heather e Chris terem desaparecido. E existem dez histórias sobre as lágrimas alheias. Então isso quer dizer...

– Ele está reencenando todas as dez histórias – Kurt disse.

O silêncio pairou sobre a sala.

– Bem – Jake disse finalmente. – Não tenho certeza como ele vai reencenar a segunda história: é sobre um padre que finge ser o anjo Gabriel para conseguir fazer sexo com uma mulher que é bonita, mas não muito esperta.

– O que acontece com o padre? – Kurt perguntou.

– Ele é pego, humilhado e mandado para a prisão.

– Ele não é morto? – eu disse.

Jake balançou a cabeça.

– Ele é deixado por um tempo na floresta, acorrentado a uma árvore, com uma máscara presa ao rosto para que não pudesse pedir socorro.

– E a mulher? – perguntou Cheyenne.

– Ela sobrevive também.

Kurt olhou pensativamente para a parede por um momento e então disse:

– Eu não sei de nenhum padre da área que tenha sido pego recentemente em algum escândalo sexual, mas vou verificar com o tenente Kaison, da divisão de crimes sexuais, e vou dar uma ligada para a seção de pessoas desaparecidas – ele fez algumas anotações em seu bloco.

– Certo – Jake continuou. – A terceira história: essa soa como uma novela medieval. Ela trata de um triângulo amoroso que dá errado. Realmente complicado. No final, porém, um homem é envenenado e uma mulher é morta com uma espada.

– Então esses devem ser o envenenamento de Ahmed Mohammed Shokr e o esfaqueamento de Tatum Maroukas na quarta-feira – Cheyenne disse.

– Essas são minhas três histórias – Jake concluiu.

Era a vez de Cheyenne. Ela levantou-se.

– A quarta história obviamente relaciona-se com Sebastian Taylor e Brigitte Marcello: uma mulher é desmembrada enquanto o amante assiste, e então é jogada ao mar, ou, nesse caso, na Represa Cherry Creek.

No final, o amante dela é decapitado.

– Então – Jake disse reflexivamente –, o UNSUB joga os corpos onde podem ser encontrados com rapidez, deixa pistas, bilhetes – ele fez uma pausa, olhou em torno da sala. – Ele é um contador de histórias. Ele quer uma audiência; precisa tratar com alguém das lágrimas alheias.

– Parece isso – Cheyenne disse. – A história cinco é sobre o vaso de manjericão.

Algo não estava encaixando. O horário dos crimes não estava certo.

– Calma – eu disse. – Heather e Chris desapareceram na segunda-feira, mas foram encontrados na quinta. Se o assassino está reencenando os crimes na ordem, eles deveriam ter sido encontrados primeiro... Espere...

– O que foi? – Jake perguntou.

– Lembram da temperatura na mina? A perícia a mediu em 5 °C quando testaram as velas. A temperatura baixa preservou o corpo e o coração.

– Então eles devem ter sido mortos na segunda-feira – Cheyenne disse.

– Sim. Por enquanto, vamos chamar o assassino de John. Se ele realmente está recontando as histórias em ordem, e se o padre não morre na segunda história...

– Ele ainda deve estar vivo – Kurt completou meu pensamento.

– Certo.

Senti um pequeno calafrio.

Kurt levantou-se.

– Vou botar isso em prática agora; ver se encontramos algo incomum, qualquer coisa, envolvendo padres nesta semana – ele deixou a sala.

– Espere um pouco, Pat – era Jake. – A primeira denúncia anônima foi feita numa quinta-feira; se John matou Heather e Chris na segunda, por que esperar três dias antes de chamar nossa atenção para o crime?

– Quem sabe? – eu disse. – Talvez ele tenha esperado para dar a si mesmo uma vantagem. Não vamos nos preocupar em ler a mente dele, vamos nos focar em pegá-lo. O primeiro crime aconteceu na segunda-feira; hoje é sábado. Isso significa que ele vai reencenar a história número seis hoje.

Jake e eu desviamos nossa atenção para Cheyenne.

Ela começou a circular a mesa.

– Essa é sobre um homem chamado Gabriotto, que morre do que Boccaccio chama de “abscesso cheio de pus” estourando perto de seu coração. Mas lembrem-se: isso foi no século XIV, então estou imaginando talvez um ataque cardíaco; é difícil saber a que Boccaccio podia estar se referindo.

– Um ataque cardíaco? – balancei a cabeça. – Nada bom.

– Por quê? – ela perguntou.

– Dado o número de vítimas de ataque cardíaco na região metropolitana de Denver, será quase impossível rastrear. É muito vago.

Pensei por um momento.

– Esse assassino, ele gosta de um espetáculo, certo? O que você disse, Jake, que ele é um contador de histórias que quer uma audiência?

Ele acenou com a cabeça.

– Então ele faria algo mais dramático do que apenas deixar um homem morrer de ataque cardíaco. Cheyenne, tem mais alguma coisa na história que ele poderia usar? Algo mais incomum, mais chocante?

Ela havia parado de andar e agora percebi seu rosto ficando pálido.

– Antes de o homem morrer, ele tem um sonho no qual um galgo preto o ataca e come seu coração enquanto ele ainda está batendo em seu peito.


40

Um calafrio.

Nós três estávamos quietos.

Por um momento deixamos o impacto das palavras dela passar, e finalmente perguntei a Cheyenne:

– E quanto à amante do homem?

Ela consultou suas anotações.

– Ela sobrevive. Após repousar o corpo dele em um lençol de seda coberto de pétalas de rosas, ela entra para um convento. Então, não tenho certeza se isso nos ajuda muito. A ligação com o galgo, porém, acho que é sólida.

Acenei com a cabeça.

– Eu também acho. Antes de avançarmos mais, precisamos colocar alguns policiais atrás disso. Donos de galgos, veterinários, canis, pistas de corrida. Vamos ver se alguém perdeu um cão, ou se houve recentemente algum ataque. Se estivermos certos, John vai cometer seu crime hoje...

– então fiz uma pausa. Eu não queria acrescentar as próximas quatro palavras, mas senti que deveria. – Talvez já tenha cometido.

– Certo – Cheyenne disse. – Vou conversar com Kurt e o capitão Terrell – ela foi na direção da porta.

Ofereci-me para me juntar a ela, mas ela disse por cima do ombro:

– Eu volto logo. Dê-me cinco minutos.


Após Cheyenne deixar a sala, Jake foi ate a máquina de salgadinhos no final do corredor. Eu levei um momento para anotar os nomes das vítimas e os detalhes da história dos crimes que conhecíamos até então; peguei meu telefone, verifiquei minhas mensagens de voz, não encontrei nenhuma, mas então me lembrei que havia prometido ligar para Calvin.

Tentei seu número.

Sem resposta. Deixei uma mensagem para ele retornar minha ligação.

Os fatos do caso ficavam tropeçando dentro da minha cabeça: os des membramentos, os envenenamentos, as decapitações, a progressão das histórias de um a cinco, o vaso de manjericão. Os horários e a progressão...

Eu ainda não havia falado com Tessa desde que ela tinha ido com Dora. Liguei para ela.

– Sim – ela disse.

– Sou eu. Como você...

– Então, estava lá?

– O que você está dizendo?

– O vaso. Estava no vaso?

– Você disse que não queria que eu contasse.

– Eu sei, mas eu estou só pensando, tipo, estava lá ou... espere. Não me conte, ok?

– Ok – eu disse.

– Mas estava lá, certo? A cabeça.

– Não vamos conversar sobre isso.

– Sim, não, eu sei. Mas...

– Tessa, chega. A Dora ainda está aí?

– Estamos lendo as coisas da caixa de sapato da minha mãe. É muito legal – disse, fazendo uma pausa e completando: – Mas seria melhor se eu tivesse o diário.

– Discutimos isso depois. Quanto tempo Dora vai ficar aí?

– Ela precisa ir embora em mais ou menos uma hora, mas eu acho que vamos sair mais tarde, à noite, imagino. Sair para jantar. Assistir a um filme ou algo do tipo.

– Bem, se eu não te ver hoje à tarde, divirta-se. E quero você de volta à meia-noite.

Outra pausa.

– Sim.

– Ok, nos falamos depois.

– Então você vai me dar o diário?

– Não se você ficar perguntando sobre ele.

– Isso não é justo. Como eu posso conseguir o que quero se não posso falar sobre ele?

– Tchau, Raven.

Silêncio.

– Eu disse “tchau” – repeti.

Nenhuma resposta. Esperei e finalmente percebi que ela havia desligado.

Ótimo.

Eu estava guardando meu celular quando Kurt apareceu junto à porta.


41

Seu rosto estava contraído e mostrava traços de uma tristeza cansada.

– Você está bem? – perguntei.

Ele acenou com a cabeça e me disse que estava bem e que havia colo cado policiais atrás de todas as pistas, mas dava para ver que havia algo a mais pesando em sua cabeça.

– Não é só o caso, né? – eu disse.

Após uma pausa embaraçosa, ele disse:

– É a Cheryl... mas vai ficar tudo bem. As coisas estão apenas, você

sabe, um pouco tensas no momento.

Ver seu casamento se desintegrando havia sido uma das coisas mais dolorosas para mim nos últimos cinco meses.

– Talvez você deva tirar um tempo de folga, para cuidar dos problemas – eu disse.

Ele discordou da sugestão.

– Vai ficar tudo bem.

– Se tiver algo que eu possa fazer... – mas então Cheyenne e Jake entraram na sala, e achei melhor não entrar em mais detalhes.

– Obrigado – Kurt disse. – É bom saber disso.

Quando todos tomaram seus lugares, eu disse:

– Antes de continuarmos, vamos tomar um minuto para ver o que temos até agora. Resumir a progressão dos crimes.

Peguei emprestado o computador de Jake, que ainda estava ligado à televisão na parede, e digitei:

Vítimas:

Segunda-feira – Heather Fain e Chris Arlington (encontrados na quinta-feira) Terça-feira – Desconhecida. Um padre? Ainda vivo?

Quarta-feira – Tatum Maroukas e Ahmed Mohammed Shokr Quinta-feira – Sebastian Taylor e Brigitte Marcello

Sexta-feira – Kelsey Nash (sobrevivente) e Travis Nash

Sábado – ?

Olhamos todos para a lista.

– Fica pesado quando a gente faz uma lista desse jeito – Cheyenne disse, replicando meus pensamentos.

Ninguém disse nada e senti uma urgência centrada se abater sobre a sala.

Após levar alguns minutos para revisar as causas das mortes des critas em cada uma das histórias de Boccaccio até então, nossos olhos voltaram-se para Kurt.

– Bem – ele disse –, vou dar-lhes a versão resumida: na história sete, dois amantes morrem por esfregar veneno de sapos em suas gengivas, e na história oito, dois ex-amantes morrem de tristeza. O homem morre quando percebe que a mulher que ele ama está casada e feliz com outra pessoa; a mulher, quando vai ao seu funeral.

Ele acrescentou mais alguns detalhes mas manteve a sinopse breve.

Então era a minha vez.

– O nono conto me lembrou de uma história de horror gótica – decidi ser bem direto. – Quando a esposa de Sir Guillaume de Roussillon dorme com outro homem, ele o mata, arranca seu coração e então dá para o cozinheiro preparar o jantar.

– Por favor, não me diga que ele acabam comendo ele – Cheyenne disse suavemente.

Apanhei a cópia do Decamerão que havia pegado na biblioteca.

– Talvez fosse melhor se eu lesse essa parte da história.

A senhora, que de modo algum era melindrosa, provando-o e achando-o saboroso, comeu tudo; o que, quando o cavaleiro viu, disse a ela:

– Esposa, o que você achou deste prato?

– De bom gosto, meu senhor – respondeu ela –, me agradou por sobremaneira.

Pelo que:

– Pois com a ajuda de Deus – disse Roussillon – eu realmente creio em você, e nem me admiro que tenha lhe agradado, morto, aquilo que, vivo, deu-te prazer mais do que todas as outras coisas.

Um silêncio profundo.

– Não estou surpreso que te agrade morto – Jake disse – aquilo que te agradou mais do que tudo quando vivo. Isso é frio. É brutal. Como a história termina?

– A mulher se mata pulando de uma janela.

– Amor e lágrimas – Jake murmurou. – Encaixa-se perfeitamente.

– No que você está pensando? – Kurt perguntou.

– É a obsessão de John – Jake disse, improvisadamente criando o perfil do assassino. – Todas essas histórias são as consequências trágicas do amor; todos contos cruéis e fatais sobre amor e perda. É a isso que a frase se refere: devemos nós tratar das lágrimas alheias? Através de seus crimes, John está reencenando as lágrimas dos amantes.

Ninguém disse nada. Fosse verdade ou não, fazia sentido.

Kurt olhou para mim.

– E quanto à última história?

– Essa talvez seja a única que não é cheia de lágrimas – eu disse. – Na verdade, quando eu a estava lendo, fiquei pensando se Boccaccio não a acrescentou apenas para aliviar o clima, e talvez fazer a transição para os contos do dia seguinte. De qualquer modo, ninguém morre na última história; no entanto, um homem é dopado e fechado dentro de uma grande caixa.

– Enterrado vivo? – Cheyenne perguntou.

– Não, mas do jeito que está escrito, você começa a pensar que é o que vai acontecer. Mas no final, não acontece nenhuma tragédia.

– Apenas lições – Jake refletiu. – Sobre amor e morte.

– Isso mesmo – enquanto concordava com ele, eu imaginava se o nosso assassino se contentaria com aquele final. Eu duvidava. – Isso nos dá muitos detalhes para continuarmos – eu disse. – Os galgos, os sapos venenosos, o padre.

As coisas estavam funcionando.

Tantos crimes. Tantas peças de um quebra-cabeça.

– Kurt – eu disse –, vamos arrumar um mandado para procurar nos registros da biblioteca e ver quem andou pegando emprestado os livros de Boccaccio. Também, vamos identificar quais faculdades oferecem cursos sobre Boccaccio ou sobre esse livro, o Decamerão. Comece pela Universidade de Denver e Universidade de Colorado, e continue a partir daí. Nosso cara deve ter estudado tudo isso por conta própria, mas podemos pelo menos comparar as listas de alunos com a lista de suspeitos.

– Procuraremos por todo o país, se for necessário – ele disse.

– E ainda precisamos descobrir quem é o dono da mina onde encontramos o corpo de Heather. Pode nos dar alguma indicação para encontrarmos John.

– Jameson está vendo isso – ele disse balançando a cabeça. – Mas existem centenas de minas abandonadas lá em cima e a maioria dos registros do Condado de Clear Creek ainda não foi digitalizada. É uma bagunça.

Ele está em Idaho Springs agora, procurando nos registros de propriedade, um por um.

Ficamos quietos.

– Jameson sabe o que está fazendo – ele acrescentou. – Se houver alguma coisa, ele vai descobrir.

Jake bateu na mesa com os nós dos dedos e levantou-se.

– Vou trabalhar no perfil psicológico do UNSUB.

Cheyenne também se levantou.

– Todas as histórias até agora têm a ver com pessoas casadas ou casos amorosos, e as vítimas são sempre casais. Estou pensando no seguinte: o cara está escolhendo as vítimas de algum jeito, mas não há uma ligação óbvia entre cada um dos casais, certo?

– Não que saibamos de algo até agora – eu disse.

– E, Jake, o que você disse? Contos fatais de amor e perda?

– Isso mesmo.

– Bom, quem mais lida com o amor e a perda de um casal? Sabe sobre suas solidões, suas tristezas, seus interesses e casos amorosos?

– Sim, ótimo – eu disse. – Um terapeuta. Ou um conselheiro matrimonial.

– Exatamente – ela disse. – Uma lista de clientes de um conselheiro é confidencial; em alguns casos, mesmo membros da família ou cônjuges não sabem que a pessoa estava frequentando um conselheiro matrimonial, e isso dificultaria muito para nós fazermos a ligação com as vítimas.

Parecia uma boa perspectiva para mim.

– Verifique isso. Pode ser uma ligação óbvia demais para esse cara, mas talvez ele não seja tão esperto quanto acha que é – recolhi minhas coisas.

– E quanto a você? – Jake perguntou.

– O perfil geográfico – fui na direção do corredor. – Vou descobrir onde John vive.


22 minutos depois
16h41

Giovanni olhava fixamente as janelas escuras e manchadas do Infiniti FX50 cinza de Thomas Bennett estacionado no segundo andar do estacionamento da 18th Street. Por causa dos vidros escuros, ele não podia ver o interior do carro, nem os bancos da frente, nem os de trás.

Perfeito.

Desse jeito ele não teria de esperar debaixo do veículo, ele poderia esperar dentro dele.

Mesmo com o sistema de segurança avançado do Infiniti, Giovanni levou menos de 30 segundos para abrir a trava da porta.

E menos de três minutos para desabilitar o rastreamento e o mapeamento do GPS do veículo.

Sentou-se no banco de trás, fechou a porta e parou um momento para ajustar o espelho retrovisor para que pudesse ver o rosto de Bennett quando ele entrasse no carro.

Ele colocou as duas agulhas que usaria sobre o assento ao lado.

Era uma caminhada curta do edifício Wells Fargo, onde Thomas Bennett trabalhava, até o estacionamento, então Giovanni não achava que precisaria esperar muito até o sr. Bennett chegar.


42

16h46

Eu estava sentado à minha mesa em meu escritório no 18° andar do Prédio Federal Byron G. Rogers, trabalhando no perfil geográfico.

E ficando mais e mais frustrado.

A equipe de Kurt havia feito um bom trabalho compilando infor mações de vitimologia: os endereços das vítimas, locais de trabalho e recreação, assim como locais conhecidos do sequestro e o local onde cada corpo havia sido encontrado. Eles haviam analisado também o uso de cartões de crédito e, baseados na frequência das compras das vítimas, identificaram os locais dos postos de gasolina, mercados, casas noturnas e farmácias que as pessoas preferiam frequentar.

Ainda assim, na primeira vez que inseri os dados no meu FALCON, a Rede de Operação Secreta e Localizador Aeroespacial Federal, os resultados foram inconclusivos. Avançados como eram os algoritmos e programas de mapeamento geoespacial do FALCON, consegui apenas limitar a zona de perigo para cerca de 22% do Condado de Denver. Não era exatamente uma precisão incrível.

Eu estava avaliando de que formas o conjunto de ruas de mão única poderia desviar a percepção das distâncias do assassino entre os locais dos crimes quando meu celular tocou. Olhei para o identificador de chamadas enquanto atendia.

Diretora-assistente Margaret Wellington.

Ótimo.

Atendi.

– Margaret, não estou com muito tempo agora...

– É um sinal de respeito se dirigir a alguém pelo seu título.

Meus dedos se apertaram em volta do telefone.

– Estou um pouco ocupado agora, diretora-executiva-assistente Margaret Wellington – eu podia imaginá-la sentada à sua mesa no quartel-general do FBI: terno feminino, lábios finos, olhos penetrantes, cabelo claro.

– Estou esperando que um relatório completo resumindo o tiroteio de ontem no tribunal esteja na minha mesa às 8h segunda-feira de manhã.

– Parece razoável. Agora...

– Também vou pedir uma investigação completa do incidente.

Uma perda de tempo. O Departamento de Polícia de Chicago já tinha depoimentos de dúzias de testemunhas. A única investigação que precisava ser feita era sobre como Sikora, ou seu cúmplice, havia conseguido carregar a arma antes que ela fosse levada para a sala do tribunal.

– Obrigado por me avisar.

– Jake já chegou? – ela perguntou secamente.

– Jake chegou hoje de manhã – como poderia dizer aquilo? – e ele já está sendo um estimável reforço para a investigação – percebi que as palavras estimável e inestimável poderiam querer dizer a mesma coisa, mas eu me senti melhor descrevendo as contribuições de Jake como estimáveis.

Ela fez uma pausa, sem dúvida tentando ler as entrelinhas de minhas palavras.

– Não seja condescendente comigo, dr. Bowers. Eu posso fazer sua vida ficar terrível.

Quem sou eu para discutir isso?

– Margaret, preciso desligar.

– Estou ansiosa para ver você lecionando na Academia nesse verão – o desprezo era ressaltado em cada uma das palavras. – Pense nisso, vamos nos ver todos os dias por três meses.

– Eu mal posso imaginar como será isso.

Antes que ela pudesse responder, finalizei a ligação e tirei Margaret e sua obsessão pela papelada burocrática da cabeça.

Decidi mudar as estratégias no perfil geográfico. Talvez, se eu não podia encontrar a base de John, eu pudesse pelo menos diminuir o número de rotas que ele usou para localizar e então transportar suas vítimas.

Para isso, reorganizei os dados e comecei a estudar as locações mais prováveis onde os padrões de locomoção das vítimas possam ter se cruzado com os do assassino.

E os minutos se passavam.


Thomas Bennett saiu do elevador e Giovanni abaixou-se dentro das sombras escuras do banco de trás do Infiniti, para garantir que não seria visto.

Ele colocou sua máscara de esqui, abriu a navalha e ouviu o som do alarme quando Bennett destravou as portas com o controle remoto.

O homem sentou-se no banco do motorista.

Fechou a porta.

Lentamente, Giovanni sentou-se e olhou para o rosto de Thomas no espelho retrovisor. Ele era um homem de mandíbula estreita, com olhos nervosos, e estava tão ocupado com a chave que ainda não tinha percebido que havia uma pessoa observando-o pelo espelho. Giovanni esperou. Ele queria que Thomas visse que não estava sozinho no carro.

Finalmente, quando Thomas deslizou a chave pela ignição, seus olhos instintivamente encontraram o espelho retrovisor.

– Mas o que...

Mas antes que ele pudesse terminar a frase, Giovanni já havia passado o braço em torno do encosto de cabeça e pressionado a lâmina da navalha contra a parte da frente do pescoço de Bennett.

– Olá, Thomas.

Os lábios do homem começaram a tremer.

– Quem...

– Essa lâmina é muito afiada, então vou ter de pedir para você ficar parado e não se agitar. Se você se mexer muito, vai fazer uma bagunça. Acredite em mim. Se você me entendeu, acene com a cabeça lentamente.

Giovanni afastou a lâmina levemente do pescoço de Thomas enquanto o homem assentiu firme com a cabeça.

– Certo. Vou dar a você algo para ajudá-lo a relaxar.

Seus olhos estavam arregalados de medo.

– Pode levar minha carteira, eu...

– Não estou interessado em seu dinheiro – Giovanni segurou a lâmina da navalha firmemente contra o pescoço de Bennett nova-

mente para encorajá-lo a permanecer imóvel. – Agora, por favor, fique parado por um momento.

Então, observando-o cuidadosamente no espelho e segurando firme a lâmina, Giovanni pegou a primeira seringa com a mão livre e colocou a ponta contra o lado esquerdo do pescoço de Thomas Bennett.

– Não – Bennett implorou. – Por favor.

– Shhhh.

Pressionou o êmbolo.

Alguns segundos depois, após Thomas ter perdido a consciência,

Giovanni desceu do carro, colocou-o no banco de trás e desabotoou a camisa do homem para revelar seu peito.

Então cuidadosamente aplicou a segunda injeção, reabotoou a camisa, foi para trás do volante e partiu para o rancho.


43

Desde a hora da minha conversa com Margaret, cerca de 45 minutos antes, fiquei fazendo o que costumava achar que fazia melhor.

Eu não estava mais tão certo disso.

Não importava o quanto refizesse o perfil geográfico, eu não conse guia um resultado sólido e minhas ideias estavam acabando.

Apesar de odiar admitir isso, eu começava a acreditar que John poderia ter distorcido os resultados selecionando sua vítimas e locais dos crimes aleatoriamente.

Esfreguei os olhos.

Afastei-me da mesa e levantei. Alonguei as costas.

Meu escritório no 18° andar dava vista para a cidade de Denver; apoiei minha mão contra o vidro e deixei os olhos passearem pelo labirinto de hotéis e bancos espelhados que formavam o centro de Denver.

John morava ali, em algum lugar.

Ou talvez não morasse. Talvez ele fosse itinerante e estivesse apenas de passagem.

Os músculos em meu braço, meu ombro e meu pescoço endureceram de frustração e raiva.

Você tem de encontrá-lo, Pat. Você tem de atraí-lo.

Visualizei o tribunal original de Denver logo do outro lado da rua do meu escritório. Ele havia sido construído em 1910 como um exemplo em primeira mão da arquitetura da virada do século e como um atestado à justiça no Oeste. Mesmo tendo apenas quatro andares de altura, ele era imponente, monumental e tomava um quarteirão inteiro da cidade.

Da minha janela eu podia ler a inscrição em letras maiúsculas, no friso, de lado a lado do prédio, logo abaixo do telhado: “Nulli Negabimus, Nulli Differemus, Jutitiam”.

Tessa havia estudado latim no Ensino Fundamental, então alguns meses atrás eu a trouxe ao centro da cidade para dar a ela a chance de mostrar suas habilidades com a língua. Assim que passamos pelo prédio eu olhei para cima e disse:

– Olha, não é latim?

Mas ela já havia reparado nas palavras e estava trabalhando na tradução.

– Sim, mas é meio difícil de traduzir – ela parecia frustrada, e eu estava feliz por ser pelo menos um pequeno desafio para ela. – Acho que poderia ser: “Para ninguém nós negaremos, para ninguém nós adiaremos a justiça”. Mas differemus pode ser traduzido por “discriminar”. Então, basicamente está dizendo que eles não vão negar justiça para ninguém e nem discriminá-los – e então ela murmurou: – Claro. Talvez se você for rico.

O comentário dela pareceu ter vindo do nada, e eu tive a sensação de que eu deveria discordar dela, mas percebi que ela estava certa em partes. Então, em vez de comentar, eu a conduzi em torno do prédio para o lado sudoeste, para mostrar a segunda inscrição em latim, mas antes que eu pudesse, ela apontou com raiva para o prédio.

– Dá para acreditar nisso?

Ela não estava apontando para a frase em latim.

– No quê? – perguntei.

– Lá.

Ela pressionou um dedo leve contra meu queixo e virou minha cabeça na direção da inscrição de mármore sobre uma passagem de pedra ornamentada perto do canto do prédio. A placa dizia: “Entrada de Juizes”.

– Isso está ali faz uns 100 anos – ela disse.

– E daí? É por onde os juízes entram.

– Tá brincando? Isso não te incomoda?

– Por que incomodaria?

– Está faltando um acento.

Ok.

Enquanto eu tentava descobrir como responder àquilo, ela leu a frase pela qual eu a havia levado para aquele lado do prédio:

– Ok, essa daí é de Cícero. É bem mais comum. Aprendemos na aula de latim. Quer dizer: “A lei não produz injustiça contra ninguém, não é desleal com ninguém”.

Injustiça com ninguém.

Então agora, enquanto apoiava minha mão contra o vidro e pensava naquele dia com Tessa, as palavras de Calvin ontem à noite ecoaram em minha mente: “Nosso sistema judiciário está mais preocupado com acusações e absolvições do que com a verdade ou a justiça. Você sabe que é verdade. Ficamos reticentes quando deveríamos admitir”.

Tessa pode não ter concordado com a primeira inscrição, mas eu estava começando a duvidar da verdade da segunda.

Porque às vezes a lei é injusta.

Às vezes a justiça não é feita.

Enquanto ponderava sobre isso, ouvi uma batida na porta do meu escritório.

Virei-me.

– Entre.

Mas a porta já estava aberta.

Cheyenne invadiu a sala e largou uma pasta de papel pardo sobre minha mesa.

– Sabemos quem é o dono da mina.


44

– Seu nome é Thomas Bennett – ela disse. – Ele mora aqui em Denver; trabalha como auditor de fim de semana no banco Wells Fargo. Ele saiu do trabalho há cerca de 45 minutos. Seu celular ou está desligado ou ele não está atendendo. Pode não ser nada, mas também não estamos conseguindo rastrear o GPS do seu carro. Sua esposa diz que ele nunca desliga o telefone e que já deveria estar em casa a essa hora.

Posicionei-me em frente ao meu teclado.

– Você tem o endereço dele?

– Claro.

– Vamos colocá-lo aqui, ver se ele mora na zona de perigo.

Ela me passou o endereço e enquanto eu atualizava o perfil geográfico,

ela me disse que não havia conseguido nada com a ideia dos terapeutas ou conselheiros matrimoniais.

– E você? – ela estudou a tela. – Alguma coisa?

– Não muito.

Usando uma cor diferente para a rota de movimentação de cada uma das vítimas, sobrepus os dados em um mapa tridimensional da região metropolitana de Denver. O resultado parecia um prato de espaguete multicolorido.

Ela colocou uma cadeira ao meu lado, talvez mais perto do que o necessário, mas não disse nada.

– Então me diga – ela disse. – O que estou vendo?

Lembrei-me de que ela estava um pouco familiarizada com minha pesquisa, mas eu também sabia que investigação geoespacial não era a especialidade dela, então apontei para o emaranhado de cores sobrepostas e disse:

– Estou tentando encontrar a base de John, então inseri as ruas mais movimentadas de Denver baseado no congestionamento padrão de veículos diário nas horas dos crimes, depois comparei isso com os padrões de movimentação típicos das vítimas, mas até agora, mesmo com o endereço de Bennett, não parece que os dados estão suficientemente completos para termos o que precisamos.

– Ok – ela batucou com os dedos na mesa. – Vamos pensar nisso. Localização e horário, certo?

– Sim.

– Sabemos quando as denúncias anônimas foram feitas.

– Certo. E na maioria dos crimes até agora, sabemos os horários e localizações dos sequestros ou das mortes. Já inseri esses dados.

Ela levantou-se. Caminhou até minha estante.

– E por causa das câmeras da entrada do hospital, sabemos quando Kelsey Nash chegou ao necrotério...

– Sabemos quando Brigitte Marcello comprou a comida chinesa que levou para a casa de Taylor.

– E – ela acrescentou – sabemos que John voou para Chicago em algum momento depois de se livrar do corpo de Brigitte Marcello, e que quando ele voltou para Denver dirigiu do aeroporto até o necrotério.

Eu estava para dizer alguma coisa, mas fiz uma pausa.

– O quê?

– Bem, quero dizer, não com certeza, mas pelo menos é provável. Com base na mensagem de áudio na mina, podemos supor que John viajou para Chicago após descartar o corpo de Brigitte Marcello.

– Eu não gosto de supor.

– Mas você está supondo. Você está trabalhando com a premissa de que John não foi para Chicago. Não faz sentido executar seus dados pelo menos uma vez supondo que ele tenha ido?

Olhei para ela por um momento.

Percebi que apesar de não fazer parte do Bureau e de nós termos tra balhado juntos em apenas uma dúzia de casos no último ano, começava a parecer que ela era minha parceira. E eu gostava da sensação.

– Você pode ter razão – eu disse.

– Dói em você ter de dizer isso, não é?

– Você não faz ideia.

Pensamentos sobre os casos nos quais eu havia trabalhado com Lien-hua tentaram brotar na minha cabeça, mas deixei de lado e baixei os arquivos da agenda de chegada e partida da FAA13. dos últimos três dias para descobrir qual aeroporto John pode ter usado.


O rancho ficava na borda sul do Condado de Clear Creek, a 50 minutos de Denver e 915 metros mais alto nas Montanhas Rochosas do que a Mile-High City.14.

A propriedade continha campos ondulados, pontilhados por pinheiros, e era cercada por espessas florestas e desfiladeiros inclinados e rochosos. Terras com florestas nacionais faziam divisa com o rancho em três lados.

Elwin Daniels havia sido dono daquela terra até três semanas atrás, quando ele a deixou para o homem que estava observando o sangue jorrar de seu pescoço.

A luz avermelhada do sol tomava conta do ar.

E como a propriedade ficava no fim de uma estrada de terra remota e não registrada, e as boas pessoas do Condado de Clear Creek tinham a tendência de não se meterem na vida dos outros, Giovanni não havia tido problema com vizinhos passando para conversar com o rancheiro recluso que ele havia matado.

Ele virou na Piney Oaks Road.

Cerca de oito quilômetros até o rancho.


Só levou alguns minutos para analisar os horários dos voos do Aeroporto Internacional de Denver e do Aeroporto Colorado Springs. Enquanto eu fazia isso, Cheyenne pegou um enorme mapa do Condado de Denver e desdobrou-o na outra ponta da minha mesa.

Comparando os horários de chegada e partida com a hora da denúncia anônima sobre a localização do corpo de Sebastian Taylor, percebi que John teria de ter pegado o voo no Aeroporto Internacional de Denver em vez de no Colorado Springs.

Para cobrir todas as bases, comparei os nomes da lista de suspeitos com as listas de passageiros e, considerando o quanto John havia sido cuidadoso até então, não fiquei surpreso quando não encontrei nenhum nome correspondente.

Com base nas teorias atuais de declínio de distância, reorganizei os dados e calculei as rotas de viagem mais prováveis da Mina Bearcroft até a casa de Taylor, da Represa Cherry Creek até o aeroporto e do aeroporto até o Hospital Memorial Batista nos horários do dia em que John estaria viajando.

Pressionei “Enter”.

A zona de perigo deslocou-se para o oeste da cidade.

Senti a emoção familiar de estar no meio de um caso quando as coisas começam a esquentar.

– Você tem a lista de donos de galgos?

– Deixe-me ver com Kreger; ele estava cuidando disso.

Ela mexia em seu telefone enquanto eu acessava a imagem da região metropolitana de Denver. Um instante depois, ouvia-a identificar-se para alguém do outro lado da linha.

– Pergunte sobre os galgos – eu disse. – Se alguém do Condado de Clear Creek recentemente comprou algum.

Ela repassou a pergunta, acenou com a cabeça para mim enquanto ouvia a resposta, então afastou o telefone e disse:

– Um homem chamado Elwin Daniels. Dez dias atrás. Pagou com MasterCard. Ele mora em um rancho na parte sul do condado.

O local ficava a pouco mais de três quilômetros da zona de perigo recalculada.

Digitei seu nome. Peguei seu endereço. Dei zoom usando o FALCON.

Fazia três minutos desde a passagem do último satélite, mas tínha mos a imagem de um carro a meio caminho da estrada de terra para o rancho. O Infiniti tinha janelas escuras, então era impossível ver o rosto do motorista. Focalizei no para-choque traseiro para tentar ler o número da placa.

Cheyenne falou ao telefone e depois me disse:

– De acordo com os registros de trânsito de Elwin, ele tem 72 anos.

Então, provavelmente não é nosso assassino.

Você precisa chegar nesse rancho, Pat.

– Cheyenne – congelei a cena. Aumentei a imagem. – Arrume um helicóptero.

Aumentei a resolução.

Sim.

Consegui.

Peguei a imagem da placa do carro, ampliei-a e depois digitei no meu teclado para pesquisar o número.

Ao meu lado, Cheyenne estava requisitando um helicóptero. A expedição deve ter sugerido Cody Howard, o piloto de helicóptero chefe do departamento, mas ela disse a eles de um jeito brusco:

– Já falei isso antes: eu não voo com Cody. Chame o coronel Freeman – seu tom afiado me surpreendeu, mas então o nome do homem que possuía o veículo surgiu em minha tela e parei de me preocupar sobre por que Cheyenne preferia voar com o coronel.

O Infiniti pertencia a Thomas Bennett.

O dono da Mina Bearcroft.

Derrubei minha cadeira para trás quando me levantei.

– Vamos.

Quando corria para o saguão, peguei meu celular e liguei para a expe dição para mandar alguns carros e uma ambulância para a casa de Elwin Daniels.


45

O coronel Cliff Freeman acionou o helicóptero enquanto Cheyenne e eu colocávamos nossos fones de ouvido com microfones para que pudéssemos nos comunicar no caminho.

Quando decolamos, usei o celular para baixar as fotos do departamento de trânsito de Thomas Bennett e Elwin Daniels, para que pudéssemos identificar visualmente os dois homens se algum deles estivesse no rancho.

Quando olhei para a frente, já estávamos sobrevoando o sopé das montanhas, indo na direção das Montanhas Rochosas.


Giovanni arrastou o corpo inconsciente de Thomas Bennett para o celeiro e deitou-o sobre o chão coberto de feno.

Ele levou um momento para fechar e travar as portas deslizantes de três metros e meio de altura, de modo que elas pudessem ser abertas apenas pela parte de dentro. O único outro jeito de entrar no celeiro era pelo quartinho das selas.

Com as portas fechadas, o celeiro era iluminado apenas pelas lâmpadas esparsas penduradas nas vigas altas e pelas quatro pequenas janelas no lado leste.

O cheiro familiar de esterco seco e feno empoeirado o cercava, mas agora estava misturado com o fedor da urina seca no chão da jaula do galgo.

A jaula estava pendurada no meio do celeiro, a cerca de oito metros de distância, suspensa um metro acima do chão por quatro correntes presas nas vigas acima.

Giovanni havia chamado o galgo preto lustroso de Nadine, em homenagem à avó em quem ele havia enfiado a faca quando tinha 11 anos. E agora, que ele não havia alimentado o cão por quatro dias, ele sabia que ela estaria motivada a comer qualquer tipo de carne que fosse oferecido.

Mesmo se ainda estivesse se mexendo.

Uma cadeira de rodas estava ao lado da jaula, mas o chão do celeiro era muito esburacado e tinha muitas tábuas soltas para empurrar Thomas na cadeira, então Giovanni pegou as pernas do homem e o puxou pelo meio do feno.

Ao passar pelos estábulos dos cavalos, um appaloosa e uma égua preta, os únicos dois cavalos que estavam no celeiro, observaram-no de seus portões.

O appaloosa relinchou e pisou no feno quando ele passou, mas ele o ignorou.

Ele chegou até a jaula personalizada de Nadine: 1,20m de largura, 2,40m de comprimento e com altura suficiente para ela ficar de pé. Por causa de seu peso, a gaiola mal balançava enquanto Nadine andava impacientemente para a frente e para trás.

Ele colocou Bennett na cadeira de rodas.

De dentro de sua jaula, Nadine soltou uma rajada de latidos furiosos que entregou o fato de ela ter sido criada em casa.

Ela parou e fixou os olhos em Giovanni. Rosnou.

Ele esperava que ela estivesse de péssimo humor, mas o som feroz e grave vindo da garganta dela o surpreendeu. As anfetaminas que ele havia injetado nela durante a semana devem tê-la tornado mais agressiva do que ele havia previsto.

– Calma, garota – ele disse. – O jantar está quase pronto.

O corpo mole de Bennett desabou na cadeira de rodas e Giovanni levou um momento para endireitá-lo.

Então, ele pegou um rolo de fita adesiva de uma prateleira perto do quartinho das selas e voltou para a cadeira de rodas para começar a preparação.


Passei o voo revisando o que eu sabia sobre o caso, tentando discernir se Thomas Bennett era mais provavelmente a vítima ou o assassino, mas eu não tinha dados suficientes para confirmar ou refutar qualquer das possibilidades.

Chegamos ao rancho em menos de nove minutos.

– Ali! – Cheyenne apontou para o Infiniti FX50 cinza estacionado ao lado do celeiro. Um campo se esticava entre a casa e o celeiro, mas tinha tantos pinheiros espalhados e o terreno era tão irregular que eu não conseguia ver nenhum local bom para pouso.

Perguntei a Cliff:

– O que você acha?

Ele balançou a cabeça.

– O mais perto que consigo chegar é naquele campo no sudeste – ele apontou para um prado que ficava a cerca de 600 ou 700 metros da casa.

Eu não tinha certeza do quão rápido Cheyenne podia correr, mas ela certamente parecia em forma. E mesmo não tendo praticado muito desde o último inverno, quando havia tomado um tiro na perna, eu tinha me recuperado muito bem e imaginei que podia chegar ao rancho em menos de três minutos.

– Que tal uma corrida? – perguntei a ela.

Um brilho em seus olhos.

– Só se for uma corrida.

Eu gostava dessa mulher. Gostava muito dela. Bati no ombro de Cliff.

– Leve-nos para baixo.

Ele acenou com a cabeça e mirou o helicóptero na direção de uma clareira nas árvores.


46

Giovanni terminou de prender com fita adesiva o pulso esquerdo de Tho-mas na cadeira de rodas. Prendeu forte. Cortou-a. Colocou o rolo de lado.

Pronto. Os pulsos e os tornozelos estavam seguros. Thomas não escaparia daquela cadeira.

Os espaços entre as barras da jaula de Nadine só eram largos o suficiente para seu focinho, mas isso não a impedia de atacar o ar com ferocidade a menos de 60 centímetros do braço de Giovanni enquanto ele estava parado lá perto.

Ele sentiu a saliva quente espirrando em seu braço.

– Está quase na hora – ele disse, tomando cuidado para não chegar muito perto dela. – Você foi mais do que paciente. Só mais alguns minutos.

Confiante de que Thomas não poderia se soltar, ele andou para além da jaula para pegar a bolsa esportiva e o balde de pétalas de rosas das prateleiras próximas ao labirinto de fardos de feno redondos no canto oeste do celeiro.

Ele carregou a bolsa esportiva e as rosas de volta para a cadeira de rodas, colocou-as no chão e olhou para Nadine.

A parte de cima da jaula podia ser destravada e possuía uma abertura através da qual Giovanni havia descido o cão tranquilizado uma semana e meia antes. A única outra porta da jaula ficava na ponta, a alguns centímetros do corpo inconsciente de Thomas Bennett. Quando destrancada, essa segunda abertura não era suficiente para o corpo do cão, mas era grande o suficiente para sua cabeça.

Essa era a porta de alimentação.

Galgos são inteligentes, então não levou muito tempo para que Gio-

vanni condicionasse Nadine a comer qualquer coisa que fosse colocada em frente à porta de alimentação.

Ele abriu a bolsa esportiva e tirou um lençol de seda; depois o esticou sobre o chão.

Ele precisaria daquilo para o corpo.


Cheyenne ganhou de mim correndo até a casa do rancho, mas não por muito.

O celeiro ficava 100 metros depois da casa, do outro lado do campo.

Sacamos nossas armas.

– Você fica com a casa – tentei disfarçar o quanto eu havia perdido o fôlego. – Eu fico com o celeiro.

Um rápido aceno com a cabeça e então ela estava a caminho do alpendre da casa.

Rolei por debaixo de um trecho de cerca de arame farpado e corri na direção do celeiro.


Giovanni enfiou a mão no balde, acariciando as pétalas de rosa. Suaves. Aveludadas.

Perfumadas.

Ele pegou um punhado e as lançou sobre o lençol de seda, e elas caí

ram em delicados giros que o fizeram pensar em grandes flocos de neve carmesim. Vermelho sobre branco. Pétalas da cor do sangue pousando em um campo sedoso de neve.


Impulsionado pela adrenalina, cheguei ao celeiro feito de tábuas de madeiras secas pelo sol do Colorado.

Avalie a situação.

Avalie e reaja.

Verifiquei o Infiniti.

Vazio.

Então virei-me para o celeiro.

A maneira mais fácil de morrer é chegar apressado a uma situação,

no estilo Rambo. Conheci muitos agentes e policiais que haviam morrido em serviço porque reagiram antes de antecipar a situação.

Tome cuidado. Seja esperto.

Corri em torno do canto sudeste e tentei imaginar como era dentro.

Eu havia crescido em uma fazenda no Wisconsin, então conhecia celeiros e esse provavelmente tinha um quartinho de selas, um quartinho de sementes, estábulos, fardos de feno, equipamentos agrícolas encostados. Esse celeiro tinha cerca de 25 metros de comprimento e 20 de largura – mais largo do que eu havia pensado de primeira.

Procurando uma entrada, circulei o lado sul e vi que as portas deslizantes de metal de quatro metros de altura estavam fechadas. Tentei abri-las deslizando-as.

Trancadas.

Dentro do celeiro, um cão estava latindo. Louco. Feroz. Não sou espe cialista em cães, então não sabia como um galgo soava, mas aquele soava mais como um cão de ataque do que de corrida.

Nenhum sinal de ninguém fora do celeiro.

O cão rosnou, então latiu novamente.

Enquanto corria em torno do celeiro, percebi uma porta de tamanho padrão no lado oposto do celeiro. Provavelmente dava para o quartinho de sementes ou de selas. Ou talvez para uma oficina. Ou para a área de armazenamento de feno. Seja para onde levasse, eu iria entrar.

O latido agitado do cão me disse que ele não estava sozinho no celeiro.

Corri na direção da porta.


47

Giovanni ainda estava espalhando pétalas de rosas quando ouviu Thomas Bennett se mexer.

Ele pegou a máscara de esqui do bolso e a vestiu.

– Onde estou... – a voz de Bennett era ininteligível. Ele ainda estava acordando. – O que está acontecendo?

– Eu esperava que você estivesse dormindo durante isso, Thomas – Giovanni estava mentindo, mas tentou soar o mais convincente possível. Ele esvaziou as mãos, deixando cair as pétalas, e então encarou seu prisioneiro. – Acho que será um pouco mais angustiante para você desse jeito.


A porta estava trancada.

Espiei pelo canto do celeiro e não vi outras portas, apenas uma linha de pequenas janelas.

De volta para a porta, então. Eu poderia atirar na fechadura, mas se o assassino estivesse no celeiro com Thomas, o barulho do tiro o alertaria e colocaria Bennett mais em perigo ainda.

É claro, ele deve ter ouvido o helicóptero.

Mas com todos aqueles latidos, talvez não.

Pelo menos por enquanto, decidi não anunciar ainda minha presença.

Em vez disso, peguei meu chaveiro, abri meu conjunto de abrir fechaduras e deslizei uma das lâminas no buraco da chave.


Thomas ainda estava desorientado. Giovanni o viu olhar vagamente em sua direção, mas um momento depois, quando Nadine latiu e trombou contra as barras, o barulho do impacto pareceu acordá-lo com uma sacudida. Ele olhou para o cão, então inclinou a cabeça para baixo e percebeu a cadeira de rodas e a fita adesiva. Tentou se desvencilhar.

Fracassou.

Tentou novamente, mas estava bem preso.

Seus olhos se arregalaram confusos e com medo.

– O que você está fazendo? Onde estou?

Giovanni colocou o balde de pétalas de rosas no chão.

– Como eu estava um momento atrás? Quando eu disse que não esperava que você estivesse acordado. Consegui convencer você? É importante que eu saiba; tenho trabalhado duro na minha atuação.

– O quê? – ele disse com um tremor na voz.

– A verdade é que eu estava esperando você acordar.

Thomas deixou seu olhar percorrer o celeiro e então parar no cão.

– O que está acontecendo? Quem é você?

– Meu nome é Giovanni e eu mato pessoas; você está prestes a se tornar minha próxima vítima.

Thomas ficou descontrolado. Lutou inutilmente para se livrar.

– Me tire daqui!

Giovanni andou até a cadeira de rodas e soltou as travas das rodas.

Seu prisioneiro tentou desesperadamente libertar braços e pernas, mas a fita adesiva ficava mais apertada quanto mais ele lutava contra ela.

Ele posicionou a cadeira de rodas de modo que os joelhos do homem ficassem sob a jaula e seu peito estivesse a menos de 30 centímetros da abertura da porta de alimentação.

Nadine parecia satisfeita.

– Não – Thomas gritou novamente. – Por favor, pare. Por favor.

– Na quinta-feira à noite eu dei a um homem que estava prestes a morrer a opção de usar uma mordaça – Giovanni disse. – Eu gostaria de estender a mesma cortesia para você, embora eu provavelmente deva dizer que não espero que sua situação dure tanto quanto a dele, então isso pode nem valer muito a pena.

Nadine enfiou o focinho pelas barras e rosnou.

– Por que você está fazendo isso? – a voz de Thomas estava ficando estridente, afeminada.

– Ainda assim, eu trouxe uma – Giovanni disse, ignorando a pergunta de Thomas –, caso seja necessário, e ficarei feliz em atendê-lo, se você desejar.

– O que você quer? – a voz de Thomas tinha ido de um guincho para um apelo sussurrado. – Por favor, não faça isso. Você não tem de fazer isso. O que você quer? Dinheiro? Eu consigo dinheiro para você. Um milhão. Eu juro.

Giovanni entendeu isso como um não, a respeito da mordaça. Então, dois a dois. Talvez suas vítimas não o estivessem levando suficientemente a sério. Da próxima vez ele iria garantir que estivesse sendo inequivocamente claro sobre a situação delas. Ele prendeu as travas das rodas para que a cadeira não rolasse para longe da jaula quando as coisas começassem.

Então deu um passo para trás.

– Agora, na história de Pamfilo, após sua morte, sua esposa deveria entrar para um convento e viver uma vida piedosa e de abstinência, mas na cultura de hoje, isso parece improvável. Eu decido, portanto, que eu a ajudaria com a parte da abstinência. A cirurgia é relativamente simples. Irei visitar Marianne assim que acabarmos aqui. Prometo não fazê-la sofrer muito. Isso seria um bom conforto para você.

– Não, por favor...

Ele colocou uma mão gentilmente no ombro de Bennett.

– Eu quero que você olhe cuidadosamente para esse cão. É muito importante para mim que você visualize o que está para acontecer – então ele desabotoou a camisa de Thomas para revelar seu peito nu.

Para facilitar a refeição de Nadine.


A fechadura me deu mais trabalho do que pensei e quando ouvi os gritos vindos do celeiro, eu estava me preparando para atirar nela, afinal.

Um clique.

Finalmente.

Arma pronta, empurrei a porta e verifiquei a sala. Um cheiro limpo e almiscarado de couro.

Selas, cabrestos e rédeas pendurados nas paredes. Dois jogos com spray para moscas, linimentos e escovas.

O quartinho das celas.

Nada.

Ninguém.

A porta na parede oposta.

Corri na direção dela, abri lentamente e penetrei na luz empoeirada e silenciosa do celeiro.

Uma rede de sombras se esticava pela parede. Bem à minha direita, uma escada grossa de madeira levava para o palheiro acima, que escurecia esse canto do celeiro mais ainda. Eu estava fora do campo de visão. Ótimo.

Meu coração estava acelerado.

Virei pelo canto de um estábulo vazio e visualizei o celeiro.

À esquerda, filas de fardos de feno e dois estábulos. Equipamentos agrícolas enferrujados. Um trator. Alguns tanques de gasolina. À direita, mais quatro estábulos. Lonas. Tábuas, rolos de barbante. Diversos baldes, dois contendo água, um contendo ração e o quarto vazio. Algumas rédeas penduradas em ganchos em uma parede próxima.

Um celeiro típico.

Com exceção da jaula pendurada.

E do cão.

Dois homens estavam ao lado da jaula. Um na cadeira de rodas, o outro de costas para mim.

John.

Cerca de 1,80m, 1,85m. Estrutura corporal média. Jeans. Moletom preto. Máscara de esqui preta.

Não era muito para eu poder continuar, poderia ser praticamente qualquer um.

Eu podia ver a lateral do rosto da vítima e o reconheci por sua foto no Departamento de Trânsito como Thomas Bennett. Eu não podia ver as mãos do suspeito. Tinha de presumir que ele estava armado.

Se eu gritasse para o assassino se afastar, ele poderia matar o homem. Eu precisava chegar até ele, mas precisava fazer isso direito.

Nadine rosnou de novo, um fogo esverdeado saindo de seus olhos.

– Bom, então – Giovanni disse, alcançando a trava da porta de alimentação. – Vamos começar.

Quando ouvi as palavras, soube que não poderia esperar. Saí das sombras.

– Pare! – mirei minha arma para o centro de massa do suspeito. – Coloque as mãos para o lado e afaste-se da jaula.

Giovanni congelou. Ele reconheceu a voz.

Bowers.

Impressionante.

Pontualidade impecável.

O suspeito não se moveu. Suas costas ainda estavam viradas para mim. Eu me aproximei.

– Coloque as mãos para os lados e vire-se. Agora, ou vou atirar. Mostre as mãos, agora!

Ele não se moveu.

– Ele vai me matar! – Thomas Bennett berrou.

– Mostre as mãos! – então ouvi um estalo metálico, o suspeito ergueu os braços, e foi quando Thomas Bennett começou a gritar.


48

Os dois segundos seguintes passaram como um borrão.

O suspeito mergulhou na direção do amontoado confuso de fardos de feno, e eu vi o cão enfiar a cabeça por uma pequena porta na jaula, lançando-se contra o peito de Thomas Bennett.

Não!

Mirei minha SIG no cão.

Giovanni estava rolando sobre o portão de um estábulo vazio quando ouviu o tiro.

Antes que eu pudesse puxar o gatilho, um tiro ricocheteou pelo celeiro e o cão desabou contra a lateral da jaula, o sangue escuro jorrando de um ferimento aberto na parte de trás da cabeça. Uma das pequenas janelas do lado oposto do celeiro estava estilhaçada.

Cheyenne.

Ela havia atirado através do vidro, mandando a bala entre as barras da jaula, e acertou o cão no olho, em meio ao ataque, a 15 metros.

Um tiro brilhante.

Elogie-a mais tarde.

Corri até Bennett, mas mantive a arma apontada para os fardos de feno.

– Você está ferido? – ele estava olhando fixamente para o cão morto.

– Sr. Bennett, você está bem?

Finalmente ele acenou com a cabeça. Engoliu. Acenou novamente. Nós estávamos muito expostos. Não havia tempo de soltá-lo.

Não havia tempo.

Tentei empurrar a cadeira até algum lugar seguro, mas as rodas esta vam travadas.

Rápido. Rápido.

Com um olho nos fardos de feno, soltei as travas e empurrei a cadeira de rodas pelo chão do celeiro, forçando-a sobre as tábuas e para dentro de um estábulo vazio em um canto sombrio do celeiro. Se o suspeito estivesse armado, o portão do estábulo ofereceria pelo menos um pouco de proteção.

Cheyenne estava do lado de fora. Ela poderia cobrir a porta caso John tentasse escapar.

A menos que houvesse outra saída.

– Já volto – eu disse para Bennett.

– Não me deixe aqui.

– Eu voltarei.

– Solte-me!

Parti para os fardos de feno enquanto Cheyenne abria a porta do quartinho de selas.

– Ele está atrás dos fardos – gritei para ela, e ela deslizou para a posição do lado leste dos fardos. Bennett continuou gritando por ajuda, mas por enquanto o ignorei. Eu precisava encontrar John.

– Saia daí agora! – gritei.

Vi uma movimentação em algum lugar na escuridão, mas não podia ver o suspeito.

– Mãos para o alto! – sinalizei para Cheyenne que eu estava avançando e ela se abaixou por trás do trator para me dar cobertura.

Giovanni deitou imóvel e em silêncio ao lado dos tanques de gasolina e olhou pela mira de sua Wilson Combat Elite Professional .45 ACP para as costas da detetive Warren.

Ele tinha uma visão perfeita dela. Sim. Ele poderia atirar nela agora e então pegar Bowers quando ele viesse correndo para ajudá-la, mas não queria fazer isso. Não depois de todo o planejamento, de toda a preparação.

Giovanni considerou suas opções.

Ele duvidava que o FBI ou o Departamento de Polícia de Denver pudessem oferecer a ele adversários melhores que esses dois.

Bem, só havia um jeito de descobrir o quanto eles eram bons.

O som de um tiro me mandou girando para trás de um dos estábulos. Olhei para Bennett e vi que ele ainda estava lutando para ficar livre.

– Você está bem?

– Ele está atirando em mim! – ele não soava como se tivesse sido atingido.

Cheyenne ainda estava agachada atrás do trator. Perguntei a ela:

– Cheyenne, você está...

– Estou bem.

Então vi que a bala havia destruído um balde perto do portão e lan

çou pétalas de rosa sobre um lençol de seda esticado no feno.

– Largue a arma! – gritei.

Acabe com isso agora.

Acenei na direção de Cheyenne e ela ergueu a arma. Dei a volta no estábulo e entrei no labirinto de fardos de feno.

Nada.

O coração batendo.

Contornei outro fardo.

Ninguém.

Onde ele está?

Espiei em volta da segunda fila de fardos perto da parede do celeiro. Ainda nada. Ainda silencioso.

Talvez tenha outra saída.

Então, o cheiro de gasolina.

E daí, uma linha de chamas, pulsando, ganhando vida a partir do feno seco perto do estábulo do appaloosa. O fogo correu pelo chão até uma das vigas de suporte do celeiro. Na iluminação confusa, vi uma figura disparar na direção do quartinho de selas, fora da linha de fogo de Cheyenne.

Mirei.

– Parado! FBI!

Identifique o sujeito. Confirme que é...

Esse homem vestia uma camisa polo cinza, não um moletom preto. Não atire! Não atire!

– Tem dois deles! – gritei para Cheyenne. Avancei correndo.

Ele deslizou pela porta do quartinho de selas. Um momento depois cheguei e agarrei a maçaneta.

Trancada.

Atirei na fechadura, depois bati com o ombro contra a porta, mas ela não se movia. Bati novamente, mas ela se manteve firme. Ele deve ter apoiado algo contra o outro lado da porta.

O fogo estava se espalhando rápido ao meu redor, devorando o feno em grandes tragos, serpenteando pelo perímetro do celeiro.

A fumaça subiu em ondas na direção do teto.

Mudança de prioridades.

Tirar Thomas e Cheyenne de dentro do celeiro. Agora.


49

Guardei minha arma no coldre e corri na direção de Bennett enquanto Cheyenne lutava contra as portas deslizantes de metal no lado oposto do celeiro.

– Vai aumentar o incêndio se eu abrir a porta? – ela gritou.

Eu não tinha certeza. A corrente de oxigênio podia fazer com que o celeiro se enchesse de chamas, mas não tínhamos nenhuma outra opção.

– Vai dar tudo certo. Abra!

Ao lado de um dos estábulos, reparei no moletom preto. Ele mudou de roupa para que não atirássemos nele! Cara, esse sujeito era esperto. Muito esperto.

Era isso, ou havia dois homens...

– Socorro! – Thomas gritou. Cheguei até ele e agarrei a cadeira de rodas, mas rapidamente percebi que o incêndio estava se espalhando muito rápido para empurrá-lo o caminho todo pelo celeiro. Eu precisava soltá-lo. Abri a lâmina da minha Wraith e cortei a fita que prendia seu braço direito.

Cheyenne abriu a porta deslizante.

O celeiro não explodiu em chamas, felizmente.

– Saia daqui! – gritei para ela, mas ela correu na direção dos estábulos para soltar os cavalos.

Cortei a fita do braço esquerdo de Thomas. Inclinei-me para soltar suas pernas.

A fumaça começou a acumular no teto. Os dois cavalos circulavam em seus estábulos, bufando, pisando forte. Agitando as cabeças.

– Rápido! – Bennett gritou para mim.

Como esse incêndio está se espalhando tão rápido?

Assim que cortei a fita de sua perna esquerda, dei uma rápida olhada ao redor do celeiro. Quase que imediatamente, eu podia ver que o feno e as tábuas não haviam sido espalhados aleatoriamente pelo chão, mas foram colocados cuidadosamente em fileiras cruzadas. Todas arrumadas para bloquear a saída com chamas.

John estava pronto para nós. Ele estava preparado.

Cortei a fita da outra perna de Bennett. Guardei a faca.

– Você consegue se levantar?

– Não sei – ele tentou, mas caiu para trás. Balançou a cabeça. – Ele me dopou. Me apagou.

Uma rápida verificada no celeiro.

Nada bom.

O fogo já barrava a saída e estava movendo-se constantemente em nossa direção, nos prendendo no canto do celeiro que ficava mais longe das portas deslizantes. Eu não conseguiria carregar Thomas pelo caminho de chamas. Nós nunca conseguiríamos.

Cheyenne destrancou um dos portões dos cavalos. Um cavalo preto recuou, então disparou a esmo, pulando por cima do cume do fogo de 60 centímetros que circulava o perímetro do celeiro, e desapareceu pela porta.

Cheyenne foi agora para o portão do appaloosa e eu tive uma ideia.

– Espere! – gritei.

Ergui Bennett com o ombro e peguei uma rédea de um gancho na parede. Mesmo se eu não pudesse tirar Bennett dali, Cheyenne podia.


50

Ela deve ter lido minha mente, pois agarrou o cabresto do cavalo para estabilizá-lo.

– Leve Thomas! – gritei.

– E quanto a você?

– Não se preocupe comigo – baixei Thomas e passei um braço ao redor dele para apoiá-lo.

O cavalo ficou tenso e relinchou, mas Cheyenne tratou de acalmá-lo. Então ela gritou para mim.

– Não vou deixar você!

Duas das paredes foram completamente consumidas. Agarrei o braço de Cheyenne.

– Você precisa ir.

– Tire-me daqui! – Thomas berrou.

Passei a rédea para Cheyenne, mas ela a jogou de lado, agarrou um punhado da crina e pulou para as costas do cavalo.

– Vou voltar para te buscar – ela disse.

– Vou esperar ansioso.

Com uma onda de adrenalina e a ajuda de Cheyenne, ergui Thomas até o cavalo, onde ele envolveu os braços trêmulos ao redor da cintura dela e se inclinou para a frente. Eu só esperava que ele estivesse lúcido o suficiente para ficar em cima do cavalo.

O fogo subia pela parede à minha esquerda, na direção do palheiro.

Analisei o celeiro, mas não podia ver nenhum jeito de sair dali. Eu sabia que o cavalo podia galopar pelo feno queimando, mas eu teria sorte se conseguisse sequer chegar até a jaula.

Alcancei a tranca e analisei as correntes que seguravam a jaula.

A abertura das portas deslizantes tem aproximadamente três metros

de altura...

O cavalo pisou e circulou.

– Abra o portão! – Cheyenne gritou.

Você não consegue acertar esse tiro, Pat. Não daqui.

Não, mas Cheyenne consegue.

Apontei para a parte da corrente presa ao canto da jaula mais próximo a mim.

– Atire na base da corrente!

– O quê?

– A corrente. A que está mais perto. Atire na base dela! – me segurar não seria fácil, mas seria muito mais fácil do que rastejar de cabeça para baixo pelo teto da minha garagem.

Ela me olhou intrigada, então eu apontei para o fogo serpenteando pela parede na direção do palheiro e finalmente ela entendeu. E sacou a arma.

– Abra a trava!

– Mas...

– Faça!

Abri o portão, mas em vez de mirar, ela atiçou o cavalo que saiu a galope. Não!

Agora eu nunca vou conseguir...

Quando o appaloosa correu pelo meio do fogo, Cheyenne girou sua arma para a direita e disparou quatro tiros na corrente assim que passaram pela jaula.

Um som estridente.

A ponta da jaula caiu no chão e a corrente perto de mim balançou livre. Aquela mulher sabia atirar.

A corrente estaria muito quente para encostar e provavelmente muito curta para alcançar a base da escada, então agarrei um dos cobertores de cavalo e parti em direção à jaula.


51

Alcancei a jaula e enrolei a ponta do cobertor de cavalo em volta da corrente. Segurei firme e corri de volta para o palheiro puxando a corrente comigo.

Segurando o cobertor, subi pela escada. As chamas que estavam serpenteando pela parede disputaram uma corrida comigo até o palheiro.

Cheguei atrapalhado sobre a plataforma e levantei-me. Olhei por todo o celeiro.

Eu tinha uma passagem reta da plataforma alta até as portas deslizantes, e a abertura era alta o suficiente, mas eu precisaria evitar acertar as outras correntes e manter meus pés acima das chamas furiosas pelo chão.

Mas eu conseguiria.

Talvez.

As chamas começaram a aparecer pelas bordas do palheiro e lambiam o feno aos meus pés.

Você precisa ir. Agora.

Mudei o cobertor para um lugar mais alto na corrente. Segurei firme. Respirei fundo.

E pulei.


52

Balancei pelo meio do celeiro.

Medi o meu tempo. Esperei.

Arremessei meu corpo na direção da abertura.

E soltei.

Caí com força sobre meu lado esquerdo, logo além da borda das cha mas, e rolei para fora da porta, pela terra. Rolei, rolei para longe do fogo até que finalmente levantei e cambaleei pelo campo.

O calor me perseguiu, mas com cada passo ele ficava menos feroz, menos intenso.

Uma respirada rápida.

Outra.

Com o canto dos olhos vi o celeiro desabar em uma bola de fogo em forma de cogumelo sob o céu azul profundo do Colorado. Uma rajada de calor passou por mim e tive de cobrir o rosto com o braço e virar de costas para o fogo.

Quando olhei para a frente, vi Cheyenne a cerca de cinco metros de distância, correndo em minha direção, conduzindo o appaloosa. Ela havia tirado Thomas do cavalo e ele estava apoiado em uma cerca próxima.

– Pat! – ela chamou. – Você está bem?

– Estou bem. – Olhando em direção ao celeiro, vi que o Infiniti cinza havia sumido. – E você?

Ela acenou com a cabeça e soltou o cabresto. O cavalo partiu e se juntou a seu parceiro, que já estava mais interessado em mordiscar a grama do que em assistir o celeiro queimando. Apesar de os dois terem chamuscado os pelos, felizmente nenhum parecia seriamente ferido.

Sirenes de polícia ecoaram pelos desfiladeiros vizinhos.

Se John estivesse no Infiniti, poderíamos pegá-lo deixando a propriedade. Peguei meu celular, mas descobri que ele estava quebrado e apagado.

Devo tê-lo esmagado quando caí e rolei para longe do fogo. Cheyenne percebeu e me emprestou o dela.

– Obrigado – disquei o número de Kurt e me afastei de Bennett para poder falar com privacidade.

Kurt respondeu antes que eu pudesse dizer uma palavra.

– Cheyenne, estamos a caminho.

– É o Pat – expliquei. – Cheyenne está aqui comigo. Escute, estamos procurando por um homem caucasiano, estatura mediana, vestido com jeans azuis e uma camisa cinza – dei a ele o número da placa do Infiniti.

– Anotei. Vou providenciar.

Então, um pensamento.

– Espere. Ele trocou de roupa uma vez. Ele pode ter trocado novamente. E é possível que sejam dois homens.

– Ok.

Dirigi-me para o terreno íngreme com densas florestas que cerca vam o rancho e ponderei sobre as mais recentes pesquisas sobre padrões racionais de escolha em suspeitos fugitivos.

– Se ele estiver a pé – eu disse a Kurt –, ele tende a manter à direita e a favorecer as encostas do sul. Ele vai seguir descendo a montanha. Se ele ainda estiver de carro, diga a seus policiais para procurarem por ele seguindo à esquerda na Piney Oaks Road e então virando duas vezes à direita. Ele vai evitar o primeiro acesso à autoestrada...

– Pat – ele disse e parecia um pouco incomodado –, cuidaremos disso.

– Peça para o coronel Freeman circular a área. E quanto a bloqueios nas estradas e suporte aéreo?

– Já providenciei.

Olhei para o celeiro.

– E mande um caminhão dos bombeiros. Ele queimou o celeiro. Nenhuma fatalidade até agora. – Enquanto eu falava as palavras, percebi que quando os bombeiros chegassem, seria tarde demais para se fazer algo útil. Ainda assim, parecia melhor ter um caminhão dos bombeiros no lugar só para garantir. – E peça para a estação florestal de Arapaho mandar uma unidade de combate a incêndios caso esse fogo decida se espalhar.

– Vou chamá-los – Kurt disse. – Vejo você em um minuto – finalizamos a ligação e devolvi o telefone a Cheyenne.

– Eu ia voltar para te buscar – ela disse suavemente. Ela estava perto o suficiente, de modo que eu podia ver a preocupação intensa em seu rosto. – Eu pensei que você talvez...

– Ele tentou me matar – Thomas gritou em nossa direção.

Fomos até ele e, enquanto eu andava, percebi que ter caído sobre minha lateral não havia ajudado minhas costelas machucadas a ficarem melhor, mas eu me tranquilizei, pois certamente machucou muito menos que ser queimado vivo.

Ajoelhando-me ao lado dele, percebi que ele havia sofrido queimaduras de primeiro e segundo graus no lado direito do rosto, pescoço e braço, mas ele não parecia ter nenhuma queimadura de terceiro grau ou ferimentos letais.

– Você está bem? – perguntei.

Ele acenou com a cabeça duramente.

– Você está seguro agora. O socorro chegará em breve.

Ele olhou para mim com um ar de quem estava suspeitando de algo.

– Você é policial?

– FBI. Sou o agente especial Bowers. Você conseguiu ver o homem que o atacou?

As luzes giratórias das viaturas e de diversas ambulâncias apareceram na estrada esburacada que levava até o rancho.

Thomas balançou a cabeça.

– Ele usou uma máscara – sua voz estava tensa. – Ele estava lá dentro? Ele morreu?

Não, o carro sumiu.

– Não tenho certeza – eu disse. – Escute-me, Thomas, é possível que fossem dois homens?

Ele pensou por um momento, então balançou a cabeça.

– Não. Acho que não – sua mão estava tremendo. Ele virou-se para Cheyenne. – Minha esposa. Tem certeza de que ela está segura?

– A polícia está a caminho da sua casa. Ela vai ficar bem.

– Não se preocupe – eu disse a ele. – Vamos pegar o homem que fez isso. Cheyenne se afastou para assinalar às viaturas onde estávamos.

– Ele ia me matar – Thomas murmurou. – Ele me dopou. Me apagou. Ele parecia estar falando comigo de outro lugar.

– Thomas, ele disse algo sobre as drogas que usou em você? Você sabe quais eram?

Thomas balançou a cabeça negativamente e repetiu:

– Ele ia me matar.

Dei um tapinha em seu ombro.

– Não se preocupe. Os paramédicos estarão aqui em um minuto.

Ele tomou fôlego agitado e acenou com a cabeça, vendo os veículos de emergência vindo em nossa direção.

Cheyenne voltou e eu gesticulei na direção de um pinheiro próximo.

– Ei, podemos conversar um minuto? – Garanti a Thomas que estaríamos de volta logo e ele acenou com a cabeça para mim, mas sua atenção já estava nas ambulâncias que se aproximavam.

– O carro já tinha sumido quando você chegou aqui fora?

– Sim. Mas nós o pegaremos, Pat. Ele não pode ter ido longe. Suor e fuligem escura cobriam o rosto de Cheyenne.

– Tem certeza de que você está bem? – perguntei a ela suavemente.

– Estou bem – ela pegou meus pulsos em suas mãos e gentilmente os virou de modo que as palmas de minhas mãos ficassem para cima. – E você?

Só então percebi as queimaduras em meus antebraços, não muito graves. Provavelmente de primeiro grau. Pareciam fortes queimaduras de sol.

– Eu vou ficar bem.

Ela ainda estava segurando meus pulsos. Não liguei.

– Você precisa lavar – ela disse. – E de um bom banho frio. E bastante aloe vera.

– Obrigado, mãe.

Finalmente ela soltou e senti minhas mãos caírem para os lados.

– Aquele tiro foi incrível – eu disse. – Na corrente. Obrigado – eu queria perguntar a ela sobre aquele tiro, algo estava me incomodando em relação a isso, mas decidi que podia esperar até as coisas se acalmarem um pouco.

Ela balançou a cabeça, obviamente frustrada consigo mesma.

– Eu precisei de quatro tiros – ela tirou o feno queimado que havia no meu ombro.

Sua voz era tão gentil quanto seu toque, e meu relacionamento conturbado com Lien-hua parecia algo que havia acabado muito tempo atrás.

Cheyenne deixou a mão parar ao lado do meu pescoço.

– Estou feliz por você ter conseguido escapar, agente Bowers.

– Estou feliz que você tenha escapado também – olhei em seus olhos e vi o fogo do celeiro sendo refletido neles, dançando dentro deles.

– Você mandou eu sair primeiro – ela cochichou. – Você estava disposto a ficar para trás, para...

– Shhhh – eu disse.

Finalmente ela deixou a mão se afastar do meu pescoço.

E então ficamos quietos por alguns momentos, mas nossos olhos con tinuaram conversando entre si.

A primeira ambulância parou ao lado de Thomas. Dois paramédicos saltaram e correram até ele. Do outro lado do campo, três homens usando jaquetas da perícia estavam indo na direção da casa.

Eu queria ter ficado ali parado olhando para os olhos profundos de Cheyenne, mas sabia que precisava voltar ao trabalho.

– Vou dar uma olhada rápida lá de volta antes que as coisas fiquem malucas.

– Certo – ela disse, sua voz perdendo a suavidade, voltando ao normal. Estávamos trabalhando no caso novamente. Éramos profissionais.

– John gosta de cobras – ela acrescentou, e eu me lembrei de que ela havia revistado a casa rapidamente logo que chegamos ao rancho.

– Ele gosta de cobras?

– Ele tem meia dúzia de aquários cheios delas. E um dos cômodos da casa está trancado, eu não entrei nele. Ouvi os latidos e vim te ajudar no celeiro.

– Vou verificar.

– Vou ver se consigo uma descrição mais detalhada do suspeito com Bennett.

– Ótimo – eu disse.

– Certo.

Uma pausa desconfortável. Era difícil desviar o olhar dela.

– Então, te vejo em alguns minutos – eu disse.

– Ok.

Então, simultaneamente, eu saí para a direita e ela para a esquerda, de modo que ficamos cara a cara novamente.

– Hum – ela disse. – Grandes mentes... – ela agarrou meus braços, segurou-me gentilmente no lugar e passou por mim pelo lado direito.

Não era fácil redirecionar meus pensamentos para o caso, mas fechei os olhos, respirei fundo duas vezes, então os abri e parti para a casa.

Fuligem e cinzas se agitavam pelo ar ao meu redor.

Pensei no coração repousado no peito de Heather... na larga man cha de sangue no chão da garagem de Taylor... Kelsey Nash encolhida no chão, deixada para morrer no freezer... Thomas Bennett amarrado na cadeira de rodas ao lado da jaula...

Considerando a natureza assustadora dos crimes que John já havia cometido, imaginei que tipo de evidências descobriríamos dentro da casa do rancho.


53

Enquanto eu me aproximava da casa, lembrei a mim mesmo que ainda que eu não tivesse pegado John ainda, estávamos muito próximos e cada vez mais perto.

Helicópteros.

Bloqueios nas estradas.

A rede estava se fechando.

Eu vou te pegar, John, pensei. Você é meu.

Mas logo que o pensamento passou pela minha cabeça, outro tam bém surgiu: Não tenha tanta certeza.

Olhei novamente para os escombros fumegantes do celeiro e pensei em como John havia estado pronto para nós, como ele havia preparado uma armadilha que quase queimou Cheyenne, Thomas e eu vivos. Pensei em como ele havia conseguido entrar e sair do necrotério sem aparecer em nenhuma câmera de segurança... em como ele havia sido capaz de encontrar Sebastian Taylor, um dos homens mais elusivos a figurar a lista de procurados do FBI...

E, então, enquanto eu pensava na gravação na mina e no bilhete escrito à mão que ele havia deixado para mim na garagem de Sebastian Taylor, todos os fatos, tudo, tive uma ideia perturbadora que eu gostaria de desconsiderar, mas que não conseguia ignorar. Talvez não seja você que está se aproximando dele, Pat; talvez seja ele que está se aproximando de você.

Mas então cheguei até a casa e meus pensamentos foram interrompidos pelos gritos que vieram de um dos membros da perícia que estava lá dentro.

Um policial parado ao lado da porta da frente correu para dentro e eu corri pelos degraus logo atrás dele.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o calor. Cerca de 30 °C, talvez mais. Alguém deve ter colocado o termostato no máximo. Todas as luzes estavam apagadas e, quando pressionei o interruptor perto da porta, nada aconteceu. O corredor estava praticamente negro.

Ligando minha lanterna, passei pelo policial de cara confusa que bloqueava meu caminho.

Dois técnicos da perícia estavam parados no fim do corredor olhando para a cozinha:

– Calma, Reggie. Calma – um deles disse. – Onde está Harwood com aquela pá?

– O que foi? – perguntei.

– Cascavel – o homem disse sussurrando, como se dizer a palavra suavemente faria de algum modo a cobra ficar menos perigosa. A janela encardida da cozinha deixava apenas uma névoa tênue de luz entrar no ambiente, e quando passei por ele, o feixe da minha lanterna encontrou a cobra: uma cascavel do Texas, enrolada no meio da cozinha, chacoalhando sua cauda.

Encurralado entre a cobra e a pia, estava Reggie Greer.

– Esqueça a pá – o cara ao meu lado disse. – Atire nela.

– Não com Reggie atrás dela – eu disse. – Se errarmos a cobra, a bala pode ricochetear e acertá-lo.

– É, não atirem nela – Reggie disse.

– Há outras maneiras... – fazia quase duas décadas que eu havia trabalhado como guia ecológico e tinha sido treinado para lidar com cobras venenosas, mas percebi que podia pelo menos lembrar o suficiente para tirar a cobra da casa com segurança.

– Tem outra no banheiro! – alguém gritou.

Ouvi os policiais ao meu redor recuando. Mas percebi os passos de alguém se aproximando. Uma mulher de cabelos escuros e aparentando cautela apareceu ao meu lado. A oficial Linda Harwood. Ela carregava uma pá e uma enxada.

– Permita-me – eu disse.

Peguei a pá e me aventurei a entrar na cozinha, enquanto ela recuou com a enxada.

A cobra ondulou a cabeça na direção de Reggie, depois encolheu o corpo em um círculo apertado.

Balançou seu chocalho.

– Ela vai atacar – Linda sussurrou.

– Shhhh – baixei a lâmina da pá na frente da cabeça da cobra; a cascavel mudou sua atenção para a pá e rastreou seu movimento. Reggie deu um passo nervoso na direção da geladeira. – Fique parado – eu disse. – Elas são atraídas pelo movimento.

Ele ficou imóvel.

A cobra estava agora focada na pá. Lentamente, levei a lâmina na direção de sua cabeça e então, girei o cabo, enganchando o pescoço da cobra no cabo, do mesmo jeito que seria feito com um pegador de cobras. Lentamente girei a pá, confiando na inclinação natural da cascavel para se enrolar e se segurar.

Levantei-a.

– Afastem-se – eu disse às pessoas no corredor. – Deixem-me passar. Elas pareceram concordar imediatamente.

Na hora em que me virei, o corredor estava livre.

Carregando a cobra, saí da casa e andei até uma cerca próxima. Mesmo sabendo que muitas pessoas não gostam de cobras e a teriam matado logo, eu lido o suficiente com a morte na minha vida e não sou a favor de matar coisas que não merecem morrer. Assim, cuidadosamente baixei a cascavel até o chão, balancei a pá até ela se soltar e voltei para trás. A cobra foi se proteger debaixo de um pinheiro, onde se enrolou novamente e de lá me olhou.

– Onde você aprendeu a fazer isso tudo? – um dos policiais perguntou.

– Eu assisto ao Animal Planet – eu disse.

– Por que você não a matou? – ele perguntou.

– Não era a hora daquela cobra morrer.

– Tem uma porção de aquários quebrados em um dos quartos – um policial gritou dos degraus na frente da casa. – Tem cobra pra todo o lado aqui!

Então ficou claro para mim por que o suspeito havia desativado as luzes e aumentado o termostato: ele sabia que revistaríamos a casa e havia confiado a seus bichos de estimação a tarefa de nos atrasar. O calor tinha deixado as cobras agitadas.

Esse cara tinha algo a mais.

Percebi Kurt andando em minha direção.

– Todos estão fora? – ele gritou.

Um olhar da oficial Harwood me fez esperar. Ela contou rapidamente.

– Sim.

– Certo, isso é tudo – Kurt gritou. – Ninguém mais volta para dentro. Vamos trazer o centro de controle animal aqui. Vamos começar analisando as portas externas e o alpendre.

Quando as pessoas começaram a se dispersar para fazerem seus trabalhos, fui até Kurt.

– Alguma notícia sobre John?

Ele balançou a cabeça.

– Ainda não encontramos o carro. Estamos verificando todas as rotas possíveis que saem daqui.

– Escute – eu disse. – Vou voltar para dentro da casa. Deve haver alguma coisa lá que pode nos levar a ele.

– Não, Pat. Não podemos deixar ninguém ser picado. Não se preocupe, vou pedir para a perícia trabalhar com o controle animal para garantir que eles não contaminem a cena.

Eu entendia que ele não queria colocar ninguém em perigo, mas eu estava decidido.

– Kurt, se houver uma mínima chance de encontrarmos alguma pista da localização do suspeito, ou de possíveis colaboradores, precisamos tratar disso agora – apontei para a cascavel que havia removido da casa. – Eu sou bom com cobras. Vou entrar sozinho. Tomarei cuidado.

Ele pensou por alguns segundos e disse afinal:

– Tudo bem. Vá.

– Deixe-me usar seu telefone.

Ele me olhou curiosamente.

– Vídeo – eu disse. – O meu foi inutilizado.

Ele entregou-me seu celular.

– Tome cuidado.

– Tomarei.

E, então, armado com a pá e a lanterna, entrei na casa infestada de cobras.


54

As cobras agitadas deslizavam pelas sombras ao meu redor, o som de seus chocalhos finos e secos me advertindo para tomar cuidado onde pisava.

Atendi ao aviso.

Com a casa deserta, as cobras pareciam à vontade explorando o cor redor. Enquanto deslizavam pelo feixe de luz da minha lanterna, a luz fazia suas escamas brilharem e seus corpos pareciam estar molhados e reluzentes, em vez de secos e ásperos.

E, mesmo sabendo o quanto as cascavéis eram perigosas, não podia deixar de admirar os elegantes desenhos em forma de diamantes enquanto se moviam com uma graça bela e mortal pelo carpete. Lembrei-me de que elas não queriam problemas comigo do mesmo jeito que eu não queria problemas com ela, mas isso não acalmou meu coração acelerado.

Percorri o caminho passando pela cozinha, pela sala de estar e pela sala de jantar. Mais cedo, Cheyenne havia me dito que o dono do rancho, Elwin Daniels, tinha seus 70 e poucos anos, e agora eu via que os móveis antigos, as bugigangas e as fotos da parede demonstravam isso.

Quando cheguei ao quarto que continha os aquários, eu tinha contado mais de uma dúzia de cascavéis e duas vezes tive de tirar cobras do meu caminho com a pá.

Os aquários estavam quebrados pelo chão. Mais 10 cobras rastejavam entre os cacos de vidro ou se encolhiam contra a parede.

Cuidadosamente, filmei o quarto, mostrando a perspectiva de quatro lugares diferentes.

Em seguida, o banheiro.

No balcão ao lado da pia havia uma escova de dentes, um aparelho de barbear e quatro tubos de pasta de dente. Abri o armário de remédios e encontrei-o vazio, com exceção de seis seringas hipodérmicas esterilizadas. Filmei tudo e fui para o próximo cômodo, que ficava no final do corredor.

O cômodo que ainda estava trancado.

Apoiei a pá contra a parede e saquei minha SIG e o conjunto para abrir fechaduras.

Levei só um momento para destrancar a porta.

Abri a porta lentamente. Uma rápida olhada pelo quarto me disse que não havia ninguém lá. Apenas mais algumas cascavéis.

Mas quando meus olhos encontraram a cama, um calafrio percorreu minhas costas.

Apoiada em um travesseiro e olhando sem piscar para a parede leste estava a cabeça decepada de Sebastian Taylor.

Insetos haviam chegado até ela e estavam fazendo seu trabalho.

Mas eu ainda podia identificar de quem havia sido a cabeça.

O cheiro embrulhou meu estômago.

Tirei os olhos da cena e virei-os na direção da parede para onde o rosto estava voltado.

Dúzias de recortes de jornais haviam sido presas na parede, e a posição da cabeça dava a ilusão de que seus olhos estavam lendo os artigos.

Assassinos adoram fantasiar, reviver seus assassinatos, seja lendo sobre eles, assistindo aos noticiários ou gravando os crimes por conta própria e depois assistindo aos vídeos, então não fiquei surpreso em ver os artigos. O choque veio quando direcionei minha lanterna para eles e percebi que aqueles não eram artigos sobre os crimes que John havia cometido no Colorado.

Não.

Cada um dos recortes era sobre os crimes terríveis cometidos por Richard Devin Basque há 13 anos no Meio-Oeste americano.


55

Verifiquei debaixo da cama, depois dentro do armário e confirmei que ninguém estava planejando uma emboscada dentro do quarto.

Então, evitando as duas cascavéis perto da cama, me aproximei da parede com os artigos.

Reconheci cada uma das fotos das 16 vítimas.

Seus nomes flutuavam em minha cabeça: Sylvia Padilla, Juanita Worthy, Celeste Sikora...

“Por que, Patrick?”

“Por quê?”

John havia guardado recortes do Milwaukee Sentinel, do Chicago Sun-

-Times, do Wisconsin State Journal e até alguns dos jornais locais menores de Wisconsin, como o Janesville Gazette, criando um memorial jornalístico dos assassinatos de Richard Devin Basque.

Um santuário.

Desde a hora em que eu havia ouvido a gravação na mina na quinta-feira

à noite, me parecia evidente que o assassino no Colorado tinha algum tipo de ligação com o julgamento de Basque em Chicago. Eu não havia visto como os dois casos podiam estar relacionados antes, mas percebia agora.

Richard Devin Basque tinha um fã.

Finalmente, encontrei 14 artigos que cobriam a prisão de Basque por mim. Em cada um deles, os repórteres incluíram uma foto minha. Um dos artigos, escrito por um jornalista chamado Zak Logan, que havia me perseguido por três semanas para conseguir uma exclusiva, me descreveu como “o corajoso detetive que localizou e capturou sozinho o homem suspeito de ser o responsável pelos assassinatos brutais de pelo menos uma dúzia de mulheres”.

Lembrei-me dele agora, e o quanto fiquei incomodado por ele ter escrito que peguei Basque sozinho, como se os outros policiais da minha equipe sequer existissem.

E em todos os recortes contendo minha foto, meu rosto havia sido circulado com uma caneta vermelha.

Então, talvez Basque não fosse o único a ter um fã.

Talvez eu tivesse um também.


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Fazer a filmagem levou mais tempo do que eu imaginava, mas finalmente saí da casa e reparei em três membros da unidade de perícia reunidos em torno de Jake Vanderveld, que estava de pé ao lado do pinheiro onde eu havia soltado a cascavel. Ele havia arrastado a cobra para a parte desmatada e estava segurando a pá verticalmente, cabo para cima, lâmina para baixo.

Parti na direção dele, mas antes que eu pudesse pará-lo, ele levantou a pá e desceu com ela decisivamente, enfiando a lâmina pelo pescoço da cobra e para dentro da terra. A cabeça, juntamente com cerca de oito centímetros do pescoço, rolou pelo chão perto do corpo da cascavel, que se contorceu e se enrolou na terra.

– Ei! – percorri o espaço entre nós dois e tomei a pá de sua mão. – O que você está fazendo?

O corpo da cobra se contorcia ao lado do meu pé.

– É uma cascavel – Jake respondeu, como se isso explicasse alguma coisa. Ele estava olhando para a cabeça, que ainda estava sibilando, com as presas para fora. – É perigosa.

A oficial Harwood olhou para a cabeça.

– Ainda está viva.

– Reflexos de réptil – Vanderveld disse. – Ela pode continuar viva por uns 90 minutos. Cuidado. A cabeça ainda consegue morder. Ainda solta veneno.

Talvez a visão de Tessa sobre direitos dos animais tivesse sido passada para mim mais do que eu havia reparado porque, quando vi que nenhum dos membros da perícia parecia incomodado por Vanderveld ter acabado de matar aquela cobra sem motivo nenhum, fiquei ainda mais irritado.

– Afaste-se, Jake.

Ele deu um passo para trás. Olhou para mim friamente.

Pelo canto dos olhos, vi a cabeça da cobra levantar-se em seu curto pedaço e morder o ar, e enquanto ela fazia isso, me imaginei agarrando Jake e abaixando-o na direção da cabeça. A ambulância ainda está aqui. Os paramédicos poderiam retirar o veneno. Não o mataria, só seria doloroso demais para se sentar por um mês ou mais.

Pensamentos ruins.

Pensamentos ruins.

Mas meio divertidos, mesmo assim.

Finalmente, Jake apenas disse, com uma voz de quem era meu grande amigo de tempos:

– Fica frio, Pat. É só uma cobra. Não vamos perder o foco e esquecer quem é o vilão da história.

– Eu não perdi o foco.

Ele parecia que ia responder, mas permaneceu em silêncio e caminhou na direção da casa. O corpo da cobra ainda estava se contorcendo e se enrolando, deixando manchas escuras na terra na ponta cortada que sangrava. A cabeça, com olhos que não piscavam, balançou sua língua para fora e sentiu o ar.

Tentei imaginar quanta dor as cobras podiam sentir. A cabeça estava obviamente ainda alerta. Talvez estivesse sofrendo, e se Jake estivesse certo sobre ela viver por 90 minutos, iria sofrer por mais uma hora e meia. Pensei em Tessa novamente e em seu amor pelos animais, sua visão progressiva sobre direitos dos animais e a santidade de toda vida, e no que ela diria se soubesse que deixei a cobra ali daquele jeito...

Finalmente, mesmo não sabendo se a cobra morta ainda estava sentindo dor, peguei a pá e acertei-a quatro vezes, acabando com qualquer dúvida.

Quando virei as costas para os restos da cobra, vi Kurt se aproximar de mim.

– Localizamos o Infiniti em uma antiga estrada de mina a cerca de uma milha daqui. Nenhum sinal de John – seus olhos encontraram a lâmina sangrenta da pá. – O que está acontecendo?

– Nada – joguei a pá de lado. – Alguma indicação de qual direção ele tomou?

– Não – Kurt estava olhando para os restos destruídos da cobra. Ficamos quietos por alguns segundos, então ele disse: – Pat, faça uma pausa. Vamos encontrar John. Estamos vasculhando completamente esse lado das montanhas. Saia daqui. Temos mais três helicópteros aqui em cima. Freeman pode te levar de volta para Denver. O dia já foi longo o suficiente – e então ele fez uma pausa enquanto um nó de tensão atravessava sua voz. – Para nós dois.

Reparei que ele estava esfregando a aliança com firmeza entre os dedos.

– Você está bem?

Não parecia que ele fosse me responder, mas então ele disse silen ciosamente:

– Você sabe quantos casamentos sobrevivem à morte de uma criança? Era uma daquelas perguntas que você não responde com palavras.

Coloquei a mão em seu ombro, mas ele balançou a cabeça e disse:

– Esqueça isso – então ele afastou minha mão e levou um momento para enterrar suas emoções. – Então, o que você viu na casa?

– Kurt, podemos conversar sobre...

– A casa, Pat – sua voz havia se tornado nervosa e dura, e eu soube que devia recuar.

– Ok – levei um minuto para contar a ele sobre a cabeça de Taylor e os artigos de jornal.

Ele me ouviu e pareceu ter ficado mais interessado nos recortes de jornal do que na cabeça cortada do governador.

– Você disse que teve a sensação de que John fosse um fã de Basque? – sua voz ainda mantinha um traço da dor que havia acompanhado os comentários sobre seu casamento.

Acenei com a cabeça.

– Mas Grant Sikora tentou matar Basque – ele disse. – Então, se John estivesse envolvido de algum jeito na coordenação daquilo, ele estava tentando se livrar de Basque, e não honrá-lo como seu herói – Kurt balançou a cabeça. – Eu não acho que esses artigos sejam um tributo para Basque.

– O que você acha que são?

– Talvez um relatório de observação.

Eu tinha de deixar aquilo assentar.

Ele circulou sua foto, Pat. Talvez ele esteja observando...

– Ei – era Cheyenne. Eu não havia notado ela vindo em nossa direção.

– O que nós sabemos?

– John ainda está foragido – eu disse.

A 100 metros de distância, vi que os paramédicos haviam colocado Tho-

mas Bennett em uma maca e estavam levando-o na direção da ambulância.

– Como está Bennett? – Kurt perguntou.

– Parece que está tudo bem – ela disse. – Mas ele está muito abalado. Eles querem mantê-lo no hospital esta noite para observação. Ainda não sabemos com o que ele foi drogado.

– Ele falou mais alguma coisa sobre o sequestrador? – perguntei. Ela balançou a cabeça.

– Não. Ele falou que o cara falava sussurrando baixo; ele não acha que será capaz de reconhecer a voz se a ouvir novamente.

Kurt rabiscou alguns lembretes em sua caderneta.

– Vou garantir que tenha um policial esperando no hospital para protegê-lo quando ele chegar.

– Mais uma coisa – ela disse. – O assassino disse a Thomas que estava indo atrás da esposa dele, Marianne. Fiz uma ligação e a expedição já mandou um carro para a casa dela, mas estou pensando se poderíamos mandar uma policial feminina disfarçada para lá e colocar Marianne sob proteção caso John decida ir atrás dela.

– Hum... pode ser bom – Kurt murmurou. – Contanto que ela não se torne uma isca – ele pensou por um momento. – Deixe-me fazer algumas ligações – e estendeu a mão para mim.

– O quê?

– Meu telefone.

– Ah, sim – entreguei-o para ele. – Tem vídeos da maior parte da casa. Envie-os por e-mail para mim.

– Enviarei – então ele se afastou de mim e de Cheyenne, mas falou por cima do ombro: – Agora, saiam daqui e descansem. Vocês dois estão com cara de... – sua última palavra foi abafada enquanto ele ia embora, mas acho que sabia o que era.

E então, Cheyenne e eu ficamos a sós.


57

O sol dirigiu-se para trás das altas montanhas que se erguiam contra o céu. As Montanhas Rochosas estavam roubando minutos do dia.

– Ele deixou as cobras soltas – eu disse a ela. Então informei-a sobre a cabeça de Taylor e os recortes de jornal no quarto trancado.

Ela deixou tudo assentar.

– Não podemos divulgar essa informação sobre a cabeça de Taylor para a imprensa – ela disse. – Se a mídia souber disso, só vai causar mais pânico, mais obstáculos para a investigação.

Eu não tinha nenhum argumento contra aquilo.

Passamos alguns minutos revisando tudo que havia acontecido durante o dia, conversando sobre os fatos, pistas e conexões, mas eu tinha a sensação de que ambos estávamos esperando que a conversa se direcionasse para algo mesmo relacionado ao trabalho.

Enquanto conversávamos, vi que Cliff havia encontrado espaço sufi-ciente para pousar no campo perto da casa. Eu não me lembro de ouvi-lo chegando. Ele estava ao lado da cabine, olhando para seu relógio. Imaginei quanto tempo fazia que ele estava ali.

– Vou voltar com Bennett – Cheyenne disse. Ela gesticulou na direção da ambulância ainda parada perto do celeiro. – Acho que ele precisa de alguém com ele agora. Talvez quando se acalmar ele possa nos informar algo mais específico.

– Acho que vou fazer companhia para Cliff no helicóptero – fiz uma leve pausa. – Bom trabalho hoje, Cheyenne.

– Obrigada – ela colocou de lado uma mecha de cabelo solta que havia caído na frente do olho.

– Então – eu disse.

– Então.

O crepúsculo surgiu por cima das montanhas. Por todo lado, à nossa volta, o dia estava se esvaindo. A ambulância começou a vir lentamente em nossa direção pela estrada esburacada.

– Você vai fazer alguma coisa mais tarde? – ela perguntou.

– Provavelmente vou trabalhar um pouco, recalculando o perfil geográfico agora que sabemos que o assassino usava esse local. Talvez seguir sua sugestão: tomar um bom banho frio. Passar aloe vera. Isso tudo.

Parecia que talvez houvesse mais a dizer, mas eu não sabia o que poderia ser.

– Bem, ok – eu disse. – Boa noite. Te vejo amanhã. Obrigado novamente por atirar na corrente.

– O prazer foi meu.

Segui na direção do helicóptero mas havia dado apenas alguns passos quando ela me chamou de volta.

– Espere.

Virei-me.

– Sim?

Uma leve pausa, então:

– Venha jantar comigo.

Senti uma onda tanto de excitação quanto de apreensão.

– Não tenho certeza se posso...

– Ah, você já tem planos.

– Não, eu... – Tessa havia me dito que ia sair com Dora para jantar e ir ao cinema hoje à noite, então eu ficaria em casa sozinho e provavelmente acabaria pedindo uma pizza. Não era exatamente o que pensei que Cheyenne queria dizer com a palavra planos, mas ainda assim...

– Ah, me desculpe – a voz de Cheyenne murchou. – Você está saindo com alguém, eu...

– Não, não. Não é isso. Não estou saindo com ninguém, eu só...

– A mulher com quem falou ao telefone hoje mais cedo? Cara, ela era boa.

– Lien-hua? Não, isso acabou – as palavras tiveram um gosto amargo em minha boca.

– Então você não está saindo com ninguém – Cheyenne disse decisivamente, e eu imaginei se ela não estaria tentando me convencer de que aquilo era verdade. – E eu também não, e nós dois estamos com fome e estamos livres para o jantar. Então, tudo que estou dizendo é: venha comer comigo.

Reparei em Reggie Greer andando na direção dos restos da cobra, não muito longe da gente.

– Eu não sei, Cheyenne...

– Eu não estou te pedindo em casamento, apenas para ir comer comigo em algum lugar na minha vizinhança.

A ambulância andou até parar a 10 metros de distância. Reggie pegou a pá e a usou para se livrar dos restos da cobra.

– Agente Bowers – ele chamou –, obrigado por me ajudar lá na cozinha – ele lançou a cobra morta para o meio do mato, fora de nossa vista.

– Por nada – enquanto respondia para Reggie, eu ainda estava tentando pensar no que falar para Cheyenne.

– Então? – ela disse.

Uma abordagem diferente. Abaixei minha voz, esperando que Reggie não ouvisse.

– Talvez eu seja antiquado, mas sempre pensei que era responsabilidade do cara chamar a garota para sair.

E, então, antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, ela disse:

– Bom, obrigada, dr. Bowers. Seria uma honra me juntar a você para jantar.

– Eu não estava... – Às 20h então? – Às 20h...

– Perfeito. Eu conheço uma churrascaria que tem uma carne ótima, perto da Union Station, aonde você pode me levar – ela colocou a mão no meu braço e deu uma leve apertada. – Dessa vez, você pode me buscar – então ela me falou seu endereço e partiu para a ambulância.

Peguei Reggie Greer sorrindo para mim.

– O quê? – eu disse.

– Essa foi boa.

– Do que você está falando?

– Me desculpe. Não pude deixar de ouvir. Ser chamado para sair pela detetive Warren e, então, inverter a situação para que ela não se sentisse desconfortável por ter tomado a iniciativa... bom. Muito bom.

– Ah, claro, uau – murmurei. – Obrigado.

– E você é um homem corajoso por topar um encontro com ela. Eu não tinha muita certeza de como entender aquilo.

– Não é um encontro.

Cheyenne desapareceu dentro da ambulância. Eu estava torcendo para que ela não tivesse ouvido nada daquilo.

– Ah – ele piscou para mim. – Saquei – as portas da ambulância se fecharam. Cruzei os braços.

– Só vou comer com ela nas redondezas de onde ela mora.

– Claro. Entendi.

Isso não ia chegar a lugar algum.

– Estou indo. Tchau.

Fui na direção do helicóptero, enquanto a ambulância ia embora.

E, quando pensei na noite próxima, lembrei-me do quanto Tessa ficara incomodada com o vaso de manjericão.

Peguei emprestado o celular de Cliff e, quando Tessa não atendeu, deixei uma mensagem de voz dizendo para ela se divertir no cinema e que eu jantaria mais tarde e a veria quando ela chegasse em casa. Expliquei que meu celular estava quebrado, deixei o número de Cheyenne e disse a ela para “somente ligar para aquele número se precisasse entrar em contato comigo”.

Ela não sabia que era o número de uma mulher.

Então Cliff e eu subimos a bordo do helicóptero e alguns momentos depois estávamos sobrevoando as montanhas que escureciam, voando para o leste na direção de Denver, onde a Lua já estava começando a surgir.

Tessa estava emocionalmente arrasada.

Depois de ter mexido na caixa de memória a tarde inteira com Dora e de perceber o quanto ela não conhecia sobre a vida da mãe, decidiu que precisava de um tempo para relaxar antes de sair novamente à noite.

Então, após Dora ter saído para cuidar de algumas coisas em casa, ela começou a mexer no cubo novamente e finalmente conseguiu resolvê-lo uma vez, mas ainda não estava nem perto de fazê-lo com os olhos fechados.

Ela estava trabalhando nele havia alguns minutos quando o telefone começou a tocar, distraindo-a completamente.

Mas ela continuou com os olhos fechados. Tentava se concentrar.

Toque genérico. Continuou tocando.

Irritante, irritante, irritante.

Finalmente parou, mas aí já era tarde demais. Ela havia perdido com pletamente a noção de onde as cores estavam. Frustrada, abriu os olhos e foi ver se quem havia ligado tinha deixado alguma mensagem.

Encontrou uma mensagem de voz de Patrick.

Na mensagem ele explicou que estava a 25 minutos da cidade e que era para ela se divertir no cinema e não se preocupar com ele porque ele iria jantar mais tarde; que ele a amava e era para ligar para um número de telefone se houvesse algum problema.

E quando ela ouviu sua voz, ela se lembrou da última conversa nada cordial entre eles.

Ok, então ter desligado na cara dele talvez não tenha sido a melhor coisa a se fazer, especialmente num dia em que ele estava obviamente estressado com o julgamento e o vaso de manjericão, ah, isso sim era perturbador demais, e com o término do relacionamento com a agente Jiang. Desligar daquele jeito provavelmente não havia ajudado a convencê-lo a lhe dar o diário.

Hum. Então, ok.

Ele iria jantar mais tarde, né? Isso significava que ainda não havia comido. E, pensando nisso, com exceção dos salgadinhos e do molho que ela havia comido com Dora, ela não tinha comido também.

E isso deu a ela uma ideia. Talvez, apenas talvez, se ela parasse de agir como uma pirralha reclamona, forçando a barra para ele dar a ela o diário, ele poderia mudar de ideia em relação a isso. Se ela mostrasse a ele que ela podia realmente ser madura e responsável...

Jantar.

Sim.

Não havia muita coisa que tanto ela quanto Patrick gostavam de comer, mas espaguete com molho sem carne era uma delas. Perfeito.

Mas, de acordo com sua mensagem de voz, ela tinha menos de 25 minutos para preparar tudo.

Ela ligou para Dora e cancelou o passeio delas, pegou um saco de espaguete na prateleira e encheu uma panela com água. Então, colocou-a no fogo e começou a preparar uma salada enquanto esperava a água ferver.


58

Senti cheiro de molho de espaguete quando entrei pela porta da frente.

– Tessa? – coloquei minha bolsa do computador ao lado do sofá.

Ela apareceu na porta da cozinha segurando uma concha que pin gava molho de tomate e vestindo o avental de churrasco que a esposa de Ralph, Brineesha, havia me dado no Dia dos Pais do ano passado, onde estava escrito “Rei do Carvão”.

– Bem-vindo – ela disse. – O jantar está na mesa.

– O que você está fazendo?

– Cozinhando.

– Cozinhando?

– Sim – ela disse. – Entre.

– Você está cozinhando?

– Uh-huh. Você quer uma taça de vinho ou alguma outra coisa para acompanhar?

Juntei-me a ela na cozinha e vi que minha mesa estava arrumada para dois. Nossas melhores louças. Uma taça de vinho, uma lata de refrigerante.

– Tessa, o que está acontecendo?

Ela piscou.

– Eu fiz o jantar.

– Você odeia cozinhar.

– Estou ampliando meus interesses – ela segurava duas garrafas de vinho. – Tinto ou branco?

Olhei pela cozinha, tentei entender tudo. A salada. O molho fervendo. A tigela de macarrão.

– Pensei que você e Dora iam sair para jantar e depois ver um filme.

– Cancelamos – ela apontou com a concha para o fogão, lançando gotas de molho vermelho pelos azulejos. – Deixei o molho fervendo para mantê-lo quente.

Eu não fazia ideia do que dizer.

– Isso é ótimo mesmo, mas já tenho planos para o jantar.

– Como assim?

– Prometi para alguém que os encontraria para jantar.

– Ah – ela baixou a concha. Soltou-a. – Ok – lentamente, ela virou-se na direção do fogão e então desligou a boca que estava aquecendo o molho.

– Não, escute. Estou impressionado que você tenha feito o jantar. Quero dizer, parece ótimo, mesmo.

Ela estava de costas para mim.

– Não, não é nada de mais. Sério.

Oh, não.

– Ei, olhe. Vou cancelar. Está tudo bem. Vou só ligar para minha amiga e dizer a ela...

– É uma mulher? – Tessa ainda não havia virado de volta.

– Isso não... isso não importa. O que quero dizer é que eu disse a ele, a ela, seja lá quem for, que eu iria jantar perto da casa deles.

Tessa me encarou.

– Da casa deles?

– Sim.

– Você pode não ter reparado, mas você fica mudando o pronome pessoal do singular para o plural, usando “eles” e “deles” para se referir a alguém. Você não faria isso se estivesse saindo para comer com um dos caras, então estou chutando que você vai jantar com uma mulher – ela cruzou os braços. – Estou certa, não estou?

– É uma colega de trabalho.

– Do sexo feminino.

– Bom, é...

– É um encontro?

– Não é um encontro.

– O que é?

– Um jantar.

– Um encontro para jantar.

– Não.

Ela inclinou a cabeça.

– Tem certeza?

– Sim, tenho certeza. Não é um encontro.

– Bom – ela tirou o avental e o pendurou sobre o encosto de uma das cadeiras ao lado da mesa. – Então eu posso ir também.

– Hum, talvez seja um encontro.

– Tarde demais. Vou junto. Me dá um segundo para eu pegar minha bolsa. Ela desapareceu no outro quarto.

Que diabos aconteceu aqui?

– Tessa, vou cancelar! – falei.

– Não, está tudo bem. Eu não ligo de comer fora – ela gritou de volta.

– Podemos comer espaguete amanhã.

– Não é disso que estou falando...

– Então, quem é? – ela estava gritando para mim de trás da porta de seu quarto. – É aquela ruiva bonita que estava no escritório do jornal?

Esfreguei a testa. Isso não pode estar acontecendo.

– Estou falando sério, vou ligar para ela e...

– Isso é falta de educação. Mantenha sua palavra. Vá para o seu encontro. Não é um encontro!

Ok, as opções eram (1) cancelar o jantar nas redondezas de Cheyenne;

(2) impor a lei com Tessa, dizer a ela que ia sair e que ela precisa ficar aqui, mas isso significaria deixá-la aqui sozinha com suas memórias daquele vaso de manjericão. Além disso, nós havíamos discutido mais cedo sobre o diário, e seria bom passar um tempo com ela hoje à noite explicando que eu não estava bravo com ela.

Fui para o meu quarto.

– Tudo bem, você pode ir – eu disse na direção da porta dela. – Saímos em 20 minutos.

– Beleza.

– Vou tomar um banho rápido para me limpar. Quase fui queimado vivo essa tarde.

– Legal.

Parei e olhei para a porta.

– É legal que eu quase tenha sido queimado vivo?

– Que você quase foi queimado vivo – a porta abriu uma fresta e a cabeça dela apareceu. – Se você tivesse sido queimado vivo, teria sido uma droga.

Ah, sendo assim.

Ela voltou para dentro.

Tomei um banho, troquei de roupa e quando voltei para a cozi nha, descobri que Tessa havia guardado a comida. Então saímos para pegar Cheyenne.


59

Bati na porta de Cheyenne.

No caminho, peguei emprestado o telefone de Tessa e liguei para Cheyenne para contar a ela sobre a pequena mudança de planos, mas ela não atendeu. Deixei duas mensagens de voz, mas ela não retornou nenhuma delas.

Ela abriu a porta.

– Oi.

Eu mal pude reconhecê-la. Ela usava um vestido preto estonteante que acentuava todas a partes certas de sua silhueta de todas as maneiras certas. Eu não me lembrava de vê-la com maquiagem antes, mas talvez ela tenha pensado que aquela era uma ocasião especial. Ela estava deslumbrante.

– Uau! – eu disse. – Eu não sabia que cowgirls se vestiam assim.

– Já te disse, sou difícil de classificar. Como estão seus braços?

– Como é?

– As queimaduras.

– Ah, sim. Bem – eu disse. – Ei, hum, você recebeu meu recado?

– Recado?

– Mensagem de voz. Liguei para você faz... bom, não importa. Eu só estava tentando dizer a você que meus planos haviam mudado um pouco – dei um passo ao lado e apontei para o carro. Tessa abriu a janela do banco de trás e ergueu dois dedos para nós. – Temos companhia.

– É Tessa.

Tentei decifrar seu tom de voz, mas não podia dizer o que ela poderia estar pensando.

– Escute – eu disse. – É uma longa história. Se não for dar certo, tudo bem. Podemos adiar...

– Não, não, tudo bem – Cheyenne saiu pela porta e a fechou atrás dela. Dirigiu-se para o carro. – Como você disse para Reggie, não é um encontro.

E a noite começava de maneira brilhante.

A caminho do restaurante, Tessa mencionou que era vegetariana e acabou perguntando se o lugar que iríamos comer servia bezerros recém-assassinados ou outro animal tratado desumanamente e morto brutalmente, porque caso servisse, isso faria, e ela sentia muito, mas isso faria com que ela se sentisse totalmente enjoada.

– Vamos deixar a detetive Warren escolher o restaurante – eu disse a Tessa, lembrando que Cheyenne havia me dito que queria ir a uma churrascaria perto da Union Station. – Então, em qualquer lugar que ela quiser ir, nós vamos. E não acho que vegetariano esteja no cardápio.

 

 

 

 

CONTINUA