Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O CEMITÉRIO DOS BARCOS SEM NOME
Primeira Parte
Observemos a noite. É quase perfeita, com a Estrela Polar visível na sua posição exacta, cinco vezes para a direita do enfiamento formado por Merak e Dubhé. A Estrela Polar vai continuar na mesma posição durante os próximos vinte mil anos e qualquer navegante que a contemplar sentir-se-á consolado ao vê-la no firmamento, porque é bom alguma coisa continuar imutável algures, enquanto as pessoas precisarem de traçar rumos sobre uma carta de navegação ou sobre a paisagem difusa de uma vida. Se continuarmos a prestar atenção às estrelas, acharemos Orion sem dificuldade, e depois Perseu e as Plêiades. Isso é fácil porque a noite está muito limpa e não há nuvens; nem sequer um sopro de brisa. O vento de sudoeste caiu ao pôr do Sol, e a doca é um espelho negro que reflecte as luzes das gruas do porto, os castelos iluminados sobre as montanhas e os relâmpagos — verde à esquerda e vermelho à direita — dos faróis de San Pedro e Navidad.
Aproximemo-nos agora do homem. Está imóvel, apoiado ao cimo da muralha. Olha para o céu, que se anuncia mais escuro para leste, e pensa que no dia seguinte soprará de novo o levante, levantando vaga lá para fora. Parece também sorrir de uma forma estranha. Se alguém conseguisse ver o seu rosto, iluminado a partir de baixo pela claridade do porto, concluiria que existem sorrisos melhores do que aquele, mais esperançados e menos amargos. Mas nós sabemos a causa. Sabemos que, durante as últimas semanas, mar adentro e a poucas milhas daqui, o vento e a ondulação foram decisivos na vida deste homem. Embora já não tenham qualquer importância.
Não o percamos de vista, pois vamos contar a sua história. Olhando com ele para o porto, veremos as luzes de um barco que se afasta vagarosamente do molhe. O barulho das suas máquinas chega até nós amortecido pela distância e pelos sons da cidade, com a trepidação das hélices que batem na água negra, enquanto os tripulantes metem a bordo os últimos metros de amarras. E quando, da muralha, observa este barco, o homem sente dois tipos diferentes de dor: um é na boca do estômago, feito da mesma tristeza que lhe vem aos lábios com a careta que parece — depressa compreenderemos que apenas parece — um sorriso. Mas há outra dor mais concreta e aguda que vai e vem sobre o lado direito, ali onde a humidade fria lhe cola a camisa ao corpo, o sangue goteja até à anca e empapa as calças por dentro, a cada batimento do coração e a cada estremecimento das veias.
Felizmente, pensa o homem, esta noite o meu coração bate muito devagar.
O LOTE 307
Poderíamos chamá-lo Ismael, mas na verdade chamava-se Coy. Encontrei-o no penúltimo acto desta história, quando estava prestes a converter-se noutro náufrago, desses que flutuam sobre um caixão enquanto o baleeiro Raquel procura filhos perdidos. Nessa altura estava à deriva há já algum tempo, incluindo a tarde em que acorreu à leiloeira Claymore, em Barcelona, com a intenção de passar o tempo. Tinha muito pouco dinheiro no bolso e, no quarto de uma pensão próxima das Ramblas, alguns livros, um sextante e um título de primeiro-piloto que, há quatro meses, a direcção-geral da marinha mercante tinha suspendido por dois anos, depois de o Islã Negra, um porta-contentores de 40 000 toneladas, ficar encalhado no oceano Índico, às quatro e vinte da madrugada e durante o seu quarto de serviço.
Coy gostava dos leilões de objectos navais, embora nessa época não pudesse permitir-se licitar. Mas Claymore, situada num primeiro andar da Calle Consell de Cent, dispunha de ar condicionado, serviam uma bebida no fim, e a rapariga encarregada da recepção tinha longas pernas e um sorriso bonito. Quanto aos objectos do leilão, gostava de vê-los e de imaginar os naufrágios que os tinham levado daqui para ali até encalharem na última praia. Durante toda a sessão, sentado com as mãos nos bolsos do seu casaco azul-escuro de bombazina, permanecia atento a quem levava os seus favoritos. O passatempo era, com frequência, decepcionante: um magnífico escafandro de mergulhador, cujo cobre amachucado e cheio de cicatrizes gloriosas fazia pensar em naufrágios, bancos de esponjas e filmes de Negulesco, com lulas gigantes e com Sofia Loren saindo da água moldada pela blusa húmida, foi adquirido por um antiquário a quem nem sequer tremeu o pulso ao levantar o cartão com o seu número. E um compasso de distâncias Browne & Son, antigo, em boas condições e dentro da sua caixa original, pelo qual Coy teria dado a alma nos seus tempos de estudante de náutica, acabou adjudicado, sem ultrapassar a base de licitação, a um indivíduo com aspecto de ignorar tudo sobre o mar, excepto o facto de aquela peça poder ser vendida por dez vezes o seu valor, se colocada numa montra de qualquer marina desportiva de luxo.
O caso é que nessa tarde o leiloeiro rematou o lote 306 — um cronometro Ulysse Nardin da Real Marinha italiana, ao preço base de licitação — e consultou as suas notas ajustando os óculos com o indicador. Era um tipo de maneiras suaves, gravata um pouco atrevida e camisa cor de salmão. Entre cada licitação, bebia uns golinhos de água, de um copo que tinha ao pé.
— Lote seguinte: Atlas Marítimo das Costas de Espanha, de Urrutia Salcedo. Número trezentos e sete.
Tinha acompanhado o anúncio com um sorriso discreto que, Coy sabia-o à força de o observar, reservava para as peças cuja importância pretendia destacar. Jóia cartográfica do século XVIII, acrescentou após a pausa adequada, sublinhando «jóia» como se lhe custasse desfazer-se dela. O seu ajudante, um jovem vestido com um guarda-pó azul, ergueu um pouco o volume de folhas grandes, para que o vissem na sala, e Coy olhou-o com uma nota de melancolia: segundo o catálogo da Claymore não era fácil encontrá-lo à venda, pois a maior parte dos exemplares estavam em bibliotecas e museus. Aquele continuava em perfeitas condições e o mais provável era nunca ter estado a bordo de um barco, onde a humidade, as marcas de lápis e o trabalho sobre as suas cartas de navegação deixavam vestígios irreparáveis.
O leiloeiro abria já a licitação, com um valor que teria sido suficiente para Coy viver meio ano razoavelmente folgado.
Um homem de costas largas, testa alta e cabelo comprido e grisalho apanhado num rabicho, que estava sentado na primeira fila e cujo telemóvel tocara três vezes para irritação da sala, mostrou um cartãozinho com o número onze. Outras mãos se ergueram, enquanto a atenção do leiloeiro, que tinha o martelinho de madeira levantado, ia de uns para outros e a sua voz educada repetia cada uma das ofertas, sugerindo a seguinte com monotonia profissional. O preço base de licitação estava prestes a duplicar e os aspirantes ao lote 307 iam ficando pelo caminho. Mantinham-se na liça o indivíduo corpulento de rabicho grisalho, outro, magro e barbudo, uma mulher, a quem só conseguia ver um cabelo louro de corte médio e a mão que levantava o cartão, e um homem careca e muito bem vestido. Quando a mulher duplicou o preço inicial, o homem do rabicho grisalho voltou um pouco o tronco, olhando na sua direcção com uma expressão irritada, e Coy pôde ver uns olhos esverdeados e um perfil agressivo, um nariz grande e um ar arrogante. A mão que levantava o cartão tinha vários anéis de ouro. Não parecia estar habituado a que lhe disputassem peças de leilão e, com um gesto brusco, acabou por se virar para a direita, onde uma jovem morena bastante pintada que, sussurrando, atendia o telefone cada vez que tocava, sofreu as consequências do seu mau humor quando se pôs a repreendê-la asperamente, em voz baixa.
— Alguém cobre a oferta?
O homem do rabicho grisalho ergueu a mão e a mulher loura contra-atacou levantando o seu cartão, que tinha o número setenta e quatro. Isto aumentou a tensão na sala. O homem magro e barbudo preferiu retirar-se da licitação e, após dois novos lances, o homem careca e bem vestido começou a titubear. O homem do rabicho subiu a oferta, provocando carrancas à sua volta quando o telefone se pôs novamente a tocar e ele o tirou das mãos da secretária, encaixando-o entre o ombro e o ouvido, a outra mão erguendo-se a tempo de cobrir a oferta que a mulher loura acabava de fazer. Nesta altura da licitação, a sala inteira estava ao lado da loura, desejando que o do rabicho ficasse sem fundos ou sem bateria do telefone. O Urrutia tinha triplicado o preço base, e Coy trocou um olhar divertido com o seu vizinho de cadeira, um homenzinho moreno de bigode espesso e escuro e cabelo muito esticado para trás com gel. O outro devolveu-lhe o olhar com um sorriso cortês, as mãos cruzadas placidamente no regaço, rodando os polegares, um sobre o outro. Era pequeno e enfatuado, quase janota, com um laço de pintas vermelhas e um casaco híbrido, entre príncipe-de-gales e escocês, que lhe dava o ar extravagantemente britânico de um turco vestido na Burberrys. Tinha os olhos melancólicos, simpáticos, um pouco salientes, como as rãzinhas das histórias.
— Desejam subir a oferta?
O leiloeiro mantinha o martelo levantado e o seu olhar inquisi-tivo apontava para o indivíduo do rabicho, que tinha devolvido o telemóvel à secretária e o olhava contrariado. A última oferta, exactamente o triplo do valor inicial, fora coberta pela mulher loura, cujo rosto Coy não conseguia ver por mais que, curioso, espreitasse entre as cabeças que tinha à frente. Tornava-se difícil garantir se era o montante da licitação que desconcertava o do rabicho ou a concorrência encarniçada da mulher.
— Senhoras e senhores, ninguém oferece mais? — perguntou o leiloeiro, com muita calma.
Dirigia-se ao do rabicho, sem obter resposta. Toda a sala olhava na mesma direcção, expectante. Incluindo Coy.
— Temos então este preço, que parece ser definitivo, um... Este preço dois...
O do cabelo grisalho ergueu o cartão, com um gesto tão violento como se empunhasse uma arma. Enquanto um murmúrio se espalhava pela sala, Coy tornou a olhar para a mulher loura. O cartão dela já estava no ar, cobrindo a oferta. Isso fez disparar novamente a tensão e, como se de um combate de vida ou de morte se tratasse, os presentes assistiram durante os dois minutos seguintes a um rápido duelo a cujo ritmo intenso — o cartão número onze ainda não tinha baixado já o setenta e quatro estava levantado — nem o leiloeiro conseguiu furtar-se, tendo de fazer algumas pausas para levar aos lábios o copo de água pousado junto do atril.
— Mais alguma oferta?
O Atlas de Urrutia atingira cinco vezes o seu preço base, quando o número onze cometeu um erro. Talvez os nervos lhe tenham cedido, embora o erro possa ter sido cometido pela secretária, cujo telemóvel tocou com insistência, levando-a a passá-lo num momento crítico, quando o leiloeiro estava com o martelo levantado esperando uma nova oferta e o homem do rabicho grisalho hesitava como se reformulasse a questão. O erro, se é que existiu, também podia ser atribuído ao leiloeiro, que teria interpretado o gesto brusco do outro, voltado para a secretária, como sendo de despeito e de abandono da licitação. Ou talvez não tenha havido erro, porque os leiloeiros, como qualquer outro cidadão, têm as suas simpatias e as suas fobias. E aquele pode ter-se sentido inclinado a favorecer a parte contrária. O caso é que três segundos bastaram para que o martelo caísse sobre o atril e o Atlas de Urrutia fosse arrematado pela mulher loura, cujo rosto Coy continuava sem conseguir ver.
O lote 307 era dos últimos e o resto da sessão prosseguiu sem novas emoções e incidências, excepto o homem do rabicho não ter voltado a licitar e, antes do fim, se ter levantado e abandonado a sala, seguido pelo precipitado ruído dos tacões da secretária, não sem antes dirigir um olhar furioso na direcção da loura. Esta também não voltou a levantar o seu cartão. O indivíduo magro de barba acabou adquirindo um telescópio marítimo muito bonito, e um cavalheiro de ar seco e unhas sujas, sentado diante de Coy, conseguiu, por pouco mais que o preço base, uma miniatura do San Juan Nepomuceno, com quase um metro de comprimento e em muito bom estado. O último lote, um conjunto de velhas cartas do Almirantado britânico, ficou por rematar. Depois, o leiloeiro deu por terminada a sessão e toda a gente se levantou, passando à salinha onde Claymore oferecia aos seus clientes uma taça de champanhe.
Coy procurou a mulher loura. Noutras circunstâncias teria dedicado mais atenção ao sorriso da jovem recepcionista, que se aproximou de bandeja na mão oferecendo-lhe uma taça. A recepcionista conhecia-o de outros leilões e, apesar de saber que nunca licitava nada, era sem dúvida sensível às suas desbotadas calças de ganga e às sapatilhas desportivas brancas que usava como complemento do casaco azul-escuro de oficial da marinha, guarnecido por duas filas paralelas de botões que noutros tempos tinham sido dourados, com a âncora da marinha mercante, e que agora eram pretos, de massa, mais discretos. Os punhos também revelavam as marcas dos galões de oficial que tinham ostentado. Apesar disso, Coy gostava muito daquele casaco. Talvez porque ao usá-lo se sentisse vinculado ao mar. Sobretudo ao cair da tarde, quando rondava pelas imediações do porto, sonhando com tempos em que ainda era possível procurar desta forma um barco onde alistar-se e em que existiam ilhas longínquas que davam asilo a um homem: repúblicas justas que ignoravam tudo sobre suspensões por dois anos e onde nunca chegavam citações de tribunais marítimos nem mandatos de captura. Tinham-lhe feito o casaco à medida, com o boné e as calças correspondentes, em Sucesores de Rafael Valls, há quinze anos, ao aprovar no exame de segundo-piloto; e com ele navegou todo o tempo, usando-o nas ocasiões, cada vez mais raras na vida de um oficial da marinha mercante, em que ainda era preciso vestir-se correctamente. Chamava àquela velha peça de vestuário o seu casaco de Lord Jim — um nome bastante apropriado na sua situação actual — desde o início daquela etapa que ele, leitor obstinado de literatura náutica, definia como a sua época Conrad. Quanto a isso, Coy tivera anteriormente uma época Stevenson e uma época Melville. E, das três, em torno das quais ordenava a sua vida quando decidia dar uma vista de olhos à esteira que qualquer homem deixa à popa, aquela era a mais infeliz. Acabava de fazer trinta e oito anos, tinha pela frente vinte meses de suspensão e um exame de capitão adiado indefinidamente, estava encalhado em terra por um motivo que fazia franzir o sobrolho a qualquer armador cujo umbral pisasse, e a pensão próxima das Ramblas e a comida diária da Casa Teresa acabavam sem piedade com as suas últimas poupanças. Mais algumas semanas e teria de aceitar qualquer trabalho como simples marinheiro a bordo de um desses barcos enferrujados, de tripulação ucraniana, capitão grego e bandeira das Antilhas, que os armadores, para receberem o seguro, deixavam afundar de vez em quando, muitas vezes com carga fictícia e sem nos darem tempo de fazer as malas. Isso, ou renunciar ao mar e tentar a vida em terra firme, ideia cuja simples consideração lhe dava náuseas, pois Coy
— embora a bordo do Islã Negra não lhe tivesse servido de muito
— possuía em alto grau a principal virtude de qualquer marinheiro: um certo sentido de insegurança, entendido como desconfiança, compreensível apenas por quem no golfo da Biscaia vê um barómetro baixar cinco milibares em três horas, ou se encontra no estreito de Ormuz atrás de um petroleiro de 500 000 toneladas e quatrocentos metros de comprimento que, pouco a pouco, fecha a passagem. Era a mesma sensação imprecisa, esse sexto sentido que o acordava à noite por uma alteração no regime das máquinas, que o inquietava diante do aparecimento de uma longínqua nuvem negra no horizonte, ou fazia que, de improviso, sem causa justificada, o capitão resolvesse dar uma volta pela ponte, olhando para aqui e para ali, como quem não quer a coisa. Situação comum, por outro lado, numa profissão cujo gesto habitual de vigilância consiste em comparar a toda a hora a girobússola com a agulha magnética. Ou, dito de outra forma, verificar um falso norte mediante um norte que também não é o verdadeiro. E no que a Coy se refere, esse sentimento de insegurança acentuava-se, paradoxalmente, assim que deixava de pisar o convés de um barco. Tinha a infelicidade, ou a sorte, de ser um desses homens para quem o único lugar habitável se encontra a dez milhas da costa mais próxima.
Bebeu um gole da taça que a recepcionista, coquete, lhe acabava de oferecer. Não era um tipo atraente: a sua estatura, pouco mais que mediana, fazia sobressair excessivamente a largura dos ombros, que eram vigorosos, e as mãos largas e duras, herdadas do pai, comerciante de artigos navais com pouca sorte e que, à falta de dinheiro, lhe tinha deixado aquela forma de andar bamboleante, quase desajeitada, de quem não está convencido de que a terra que pisa seja digna de confiança. Mas as linhas toscas da sua boca ampla e do seu nariz grande, agressivo, eram suavizadas por uns olhos tranquilos, escuros e doces, que lembravam certos cães de caça quando olham para os seus donos. Tinha também um sorriso tímido, sincero, quase infantil, que por vezes lhe assomava aos lábios, reforçando o efeito daquele olhar leal, um pouco triste, recompensado pela taça e pelo gesto amável da recepcionista, que se afastava já entre os clientes, com a inevitável saia sobre as pernas certas, julgando sentir nelas o olhar de Coy.
Julgando. Porque nesse momento, ao mesmo tempo que levava a taça aos lábios, ele dava uma vista de olhos em redor à procura da mulher loura. Por um instante, deteve-se no homem baixinho dos olhos melancólicos e do casaco aos quadrados, que lhe fez uma inclinação de cabeça cortês. Depois, continuou a inspeccionar a sala até encontrá-la: continuava de costas, a meio das pessoas, conversando com o leiloeiro, e tinha uma taça na mão. Vestia um casaco de camurça, saia escura e sapatos de tacão baixo. Aproximou-se dela pouco a pouco, curioso, observando o cabelo dourado e liso, cortado rente à nuca, mas caindo depois aos lados em direcção ao queixo, em duas linhas diagonais assimétricas e, no entanto, perfeitas. Enquanto conversava, o cabelo da mulher oscilava suavemente, com as pontas a roçar-lhe a cara que só podia apreciar-se por trás, em perspectiva. E após franquear dois terços da distância que o separava dela, verificou que a linha despida do seu pescoço estava coberta de sardas: centenas de minúsculas pintinhas ligeiramente mais escuras que o pigmento da pele, não muito clara, apesar do cabelo louro, com um tom que revelava sol, céu aberto e vida ao ar livre. E então, quando se encontrava apenas a dois passos e se preparava para a contornar disfarçadamente a fim de lhe ver a cara, a mulher despediu-se do leiloeiro e deu a volta, ficando alguns segundos de frente para Coy; o tempo necessário para pousar sobre uma mesa a taça que tinha na mão, esquivá-lo com um leve movimento de ombros e de cintura e afastar-se dali. Os seus olhos cruzaram-se nesse breve instante, e ele teve tempo de reter uns insólitos olhos escuros de reflexos azulados. Ou talvez fosse o contrário: olhos azuis de reflexos escuros, íris azul-marinho que resvalaram sobre Coy sem prestar atenção, enquanto ele comprovava que ela também tinha sardas na testa, no rosto, no pescoço e nas mãos; que estava coberta de sardas e que isso lhe dava uma aparência singular, atraente e quase adolescente, apesar de já dever rondar os vinte e muitos anos. Pôde ver que usava no pulso direito um relógio de homem em aço, grande e de mostrador preto. Também que era meio palmo mais alta do que ele e que era muito bonita.
Cinco minutos mais tarde, Coy dirigiu-se para a rua. A claridade da cidade iluminava nuvens que corriam para sudeste pelo céu escuro, e ele soube que o vento ia soprar e que talvez chovesse naquela noite. Estava diante da entrada, com as mãos nos bolsos do casaco, enquanto decidia se devia dirigir-se para a esquerda ou para a direita, o que supunha a diferença entre uma sanduíche num bar próximo, ou um passeio até à Plaza Real e dois Bombay azuis com muita água tónica. Ou talvez um, rectificou rapidamente, recordando-se do estado lastimável do seu porta-moedas. Havia pouco trânsito na rua e, entre as folhas das árvores, uma prolongada linha de semáforos ia passando do amarelo ao vermelho até perder de vista.
Depois de reflectir por alguns segundos, justamente no momento em que o último semáforo ficou vermelho e o mais próximo mudou novamente para verde, pôs-se a andar para a direita. Esse foi o seu primeiro erro dessa noite.
LENC: Lei dos Encontros Nada Casuais. Baseando-se na conhecida lei de Murphy — da qual tivera sérias confirmações nos últimos tempos — Coy tendia a estabelecer, para consumo interno, uma série de leis pitorescas que baptizava com absoluta solenidade técnica. LDMF: Lei de Dançar com a Mais Feia, por exemplo; ou LTCSMB: Lei da Torrada que Cai Sempre com a Manteiga para Baixo; e outros princípios mais ou menos aplicáveis às funestas vicissitudes da sua vida recente. Aquilo não servia de nada, evidentemente, a não ser às vezes para sorrir. Sorrir de si próprio. De qualquer forma, sorrisos à parte, Coy estava convencido de que, na estranha ordenação do Universo, tal como no jazz — era um adepto fervoroso do jazz — aconteciam acasos, improvisações tão matemáticas que uma pessoa perguntava a si própria se não estariam escritas em qualquer lado. Era aí que situava a sua recém-enunciada LENC. Porque, à medida que se aproximava da esquina, viu primeiro um carro cinzento metalizado, grande, estacionado junto do passeio com uma das portas aberta. Depois, à luz de um candeeiro, conseguiu ver um pouco mais longe um homem que conversava com uma mulher. Reconheceu primeiro o homem, que estava de frente e, a poucos passos, quando conseguiu distinguir a sua expressão furiosa, compreendeu que discutia com a mulher, que agora deixava de estar escondida pelo candeeiro e era loura, com o cabelo cortado na nuca, vestida com um casaco de camurça e uma saia escura. Sentiu um formigueiro no estômago enquanto se ria, surpreendido, para consigo. Às vezes, disse para si próprio, a vida, de tão imprevisível, torna-se previsível. Hesitou um pouco antes de acrescentar: ou vice-versa. Depois calculou a proa e o abatimento. Se estava habituado a alguma coisa era a calcular por instinto esse tipo de coisas; embora na última vez que se tinha ocupado em traçar uma derrota — nunca tão acertado, isso da derrota — esta o tivesse conduzido directamente a um tribunal marítimo. De qualquer forma, alterou o seu rumo dez graus, a fim de passar o mais perto possível do casal. Aquele foi o seu segundo erro: estava de relações cortadas com o bom-senso de qualquer marinheiro, que aconselha manter a distância de resguardo de qualquer costa ou perigo.
O homem do rabicho grisalho parecia furioso. Ao princípio, não conseguiu ouvir as suas palavras, porque falava em voz baixa, mas viu que tinha uma mão levantada e um dedo apontado à mulher, que se mantinha imóvel diante dele. Por fim, o dedo mexeu-se, batendo-lhe no ombro com mais cólera que violência, e ela retrocedeu um passo, como se aquilo a assustasse.
— ...as consequências. — Coy conseguiu ouvir o do rabicho dizer — Compreende?... Todas as consequências.
Levantava o dedo, disposto a dar outra pancadinha no ombro, ela afastou-se ainda mais e o tipo pareceu pensar melhor, pois o que fez foi agarrá-la por um braço. Talvez não de modo violento, antes persuasivo, intimidativo. Mas parecia tão irritado que, ao sentir a mão dele no braço, a mulher deu um salto, assustada, e retrocedeu novamente, livrando-se dele. Então o homem quis agarrá-la outra vez, embora não tenha podido, porque Coy estava entre ele e ela, olhando-o de muito perto; e o outro ficou com a mão no ar, uma mão com anéis que brilhavam à luz do candeeiro, e com a boca aberta, porque se preparava para dizer qualquer coisa à mulher. nesse instante, ou porque não sabia de onde saíra aquele fulano com casaco de oficial da marinha, ténis, ombros compactos e mãos largas e duras que pendiam num falso abandono de ambos os lados, ao longo das pernas de umas calças de ganga coçadas.
— Desculpe? — disse o do rabicho.
Tinha um leve sotaque indefinido, entre andaluz e estrangeiro. Olhava para Coy surpreendido, curioso, como se tentasse, sem êxito, situá-lo em tudo aquilo. A sua expressão já não era de irritação, mas de estupefacção. Sobretudo quando pareceu compreender que o intruso lhe era desconhecido. Era mais alto que Coy — quase toda a gente o era naquela noite — e este viu-o dar uma olhadela por cima dele, na direcção da mulher, como se esperasse um esclarecimento a respeito de semelhante variante no programa. Coy não conseguia vê-la, porque esta permanecia atrás de si sem se mexer e sem dizer uma palavra.
— Que diacho...? — começou o do rabicho e interrompeu de chofre, com a cara tão fúnebre como se tivessem acabado de lhe dar uma má notícia. De pé à frente dele, com a boca fechada e as mãos pendendo aos lados, Coy calculou as possibilidades do assunto. Apesar de estar furioso, o outro tinha uma voz educada. Vestia um fato caro, gravata e casaco, estava bem calçado e, na mão esquerda, que era a dos anéis, ostentava um relógio caríssimo de ouro maciço e design ultramoderno. Este indivíduo levanta dez quilos de ouro cada vez que faz o nó da gravata, pensou Coy. Tinha bom aspecto, com bons ombros e ar desportivo; mas não era o tipo de próximo, concluiu, que anda aos murros a meio da rua, à porta dos leilões Claymore.
Continuava sem ver a mulher, que permanecia atrás dele, embora pressentisse o seu olhar. Espero ao menos, disse para consigo, que não desate a correr e tenha tempo de agradecer, se não me partirem a cara. Mesmo se ma partirem. Por outro lado, o do rabicho voltara-se para a sua esquerda, olhando para a montra de uma loja de modas, como se esperasse que alguém saísse dali com uma explicação numa carteira Armani. À luz do candeeiro e da montra, Coy verificou que o homem tinha os olhos pardos; aquilo surpreendeu-o um pouco, por recordá-los anteriormente esverdeados, no leilão. Depois, o homem voltou o rosto na direcção contrária, da calçada, e pôde verificar que tinha um olho de cada cor, pardo o direito, verde o esquerdo: bombordo e estibordo. Também viu algo mais inquietante que a cor dos seus olhos: a porta aberta do carro, que era um Audi enorme, iluminava o interior, onde a secretária assistia à cena fumando um cigarro; e também iluminava o motorista, um homenzarrão de cabelo bastante frisado, vestido de fato e gravata, que nesse momento abandonava o assento, ficando de pé junto à berma. O motorista não era elegante nem tinha ar de ter a voz educada como o do rabicho: o nariz era achatado, como o dos lutadores de boxe, e pareciam ter-lhe cosido e voltado a coser a cara meia dúzia de vezes, deixando alguns bocados de fora. Tinha uns laivos citrinos, quase berberes. Coy lembrava-se de ter visto rufiões daquela catadura como porteiros de bordéis em Beirute ou em salas de festa panamenses. Costumavam usar a navalha de ponta e mola escondida na meia direita.
Aquilo não podia acabar bem, reflectiu resignado. LMAPD: Lei de Muito Apanha e Pouco Dá. A ele iam partir-lhe alguns ossos imprescindíveis e, enquanto isso, a rapariga fugiria a correr, como a Gata Borralheira, ou como a Branca de Neve — Coy confundia sempre estas duas histórias, porque não havia barcos — e nunca mais tornaria a vê-la. Mas por agora continuava ali e sentia os olhos azuis com reflexos escuros; ou talvez o contrário, recordou, escuros com reflexos azuis. Sentia-os cravados nas suas costas. Não deixava de ter uma graça mórbida estarem prestes a dar-lhe um enxerto por causa de uma mulher a quem vira a cara durante dois segundos.
— Porque se mete no que não é chamado? — perguntou o do rabicho.
Era uma boa pergunta. O seu tom de voz já não era furioso mas concentrado, muito mais tranquilo e cheio de curiosidade. Pelo menos, foi o que pareceu a Coy, que também não perdia de vista o motorista pelo rabinho do olho.
— Isto é... Valha-me Deus! — concluiu o outro, ao ver que ele se mantinha em silêncio. — Desapareça daqui.
Agora ela vai dizer a mesma coisa, imaginou Coy. Agora ela fica de acordo com este indivíduo e pergunta-me quem me mandou aparecer sem ser convidado e pede para eu ir à minha vida e não meter o focinho onde não sou chamado. E eu gaguejo uma resposta com as orelhas a arder, vou embora, dobro a esquina e corto os pulsos, por bronco. Agora ela vai e diz que...
Mas a mulher não disse nada. Estava tão silenciosa como o próprio Coy. Como se já não estivesse ali e tivesse fugido há que tempos; e ele continuou quieto e sem dizer nada, entre os dois, vendo os olhos bicolores que tinha adiante, um passo à sua frente e dois palmos acima dos seus. Também não lhe ocorria mais nada e, se falasse, ia perder a pequena vantagem que conservava. Sabia, por experiência, que um homem calado intimida mais que um falador, porque é difícil adivinhar o que lhe passa pela cabeça. Talvez o do rabicho fosse da mesma opinião, porque olhava para ele pensativo. No fim, Coy julgou vislumbrar incerteza nos seus olhos de dálmata.
— Vejam lá — disse o outro. — Saiu-nos... não é verdade? Um herói da série B.
Coy continuou a olhar para ele sem dar um pio. Se me despachasse, pensava, poderia dar-lhe um pontapé na bissectriz antes de tentar a sorte com o berbere. A questão é ela. Interrogo-me que diacho fará ela.
O do rabicho expirou ar de repente, com uma espécie de suspiro que parecia um riso amargo, exagerado.
— Isto é ridículo — disse.
Parecia sinceramente confuso com aquela situação, fosse qual fosse. Coy ergueu devagar a mão esquerda para coçar o nariz, onde estava com comichão; fazia sempre isso quando reflectia. O joelho, pensava. Direi qualquer coisa para o distrair e, antes de acabar, dou-lhe uma joelhada nos tomates. O problema vai ser o outro, que ficará prevenido. E com muito mau feitio.
Pela rua, passou uma ambulância com clarões cor de laranja. Pensando que rapidamente precisaria de outra para si próprio, Coy deu uma discreta vista de olhos em seu redor, sem encontrar nada a que deitar a mão. De modo que aproximou os dedos do bolso das calças de ganga, roçando com o polegar o volume das chaves da pensão. Podia sempre tentar fazer ao motorista um corte na cara com as chaves, como tinha feito uma vez a um alemão bêbado à porta do clube Mamma Silvana de La Spezia, olá e adeus, quando o viu vir para cima de si. Porque este filho da puta de certeza que lhe viria para cima.
Então, o homem que tinha à sua frente levou uma mão à testa, passando-a para trás, como se quisesse alisar ainda mais o cabelo apanhado no rabicho, antes de balançar novamente a cabeça de um lado para o outro. Tinha um sorriso estranho e pesaroso na boca, e Coy decidiu que lhe agradava muito mais quando estava sério.
— Terá notícias minhas — disse à mulher por cima do ombro de Coy. — ...Tê-las-á, evidentemente.
No mesmo instante olhou para o motorista, que já dava uns passos na direcção deles. Como se aquilo fosse uma ordem, o outro parou. E Coy, que pressentira o movimento e contraíra os músculos bombeando adrenalina, descontraiu-se com disfarçado alívio. O do rabicho olhou novamente para ele com muita atenção, como se quisesse gravá-lo na memória: um olhar sinistro com legendas em espanhol. Levantou a mão dos anéis e apontou-lhe o indicador ao peito, da mesma forma que fizera anteriormente com a mulher, mas sem chegar a tocá-lo. Limitou-se a deixar o dedo assim, apontado no ar como uma ameaça. Depois deu meia volta e foi embora, como se tivesse acabado de se lembrar que tinha um encontro urgente.
Depois, tudo se resolveu numa breve sucessão de imagens que Coy observou atentamente: um olhar da secretária do assento traseiro do carro, o cigarro desta que descreveu um arco antes de cair no passeio, o bater da porta do homem do rabicho ao sentar-se ao lado dela e o último olhar do motorista, de pé na berma: um olhar que lhe dirigiu, longo e prometedor, mais eloquente que o do seu chefe, antes do bater de outra porta e do ronronar suave do motor de arranque. Só com o que este carro gasta ao arrancar, pensou Coy tristemente, eu poderia comer comida quente por alguns dias.
— Obrigada — disse uma voz de mulher atrás dele.
Apesar das aparências, Coy não era um tipo pessimista. Para o ser é imprescindível ver-se despojado da fé na condição humana, e ele tinha nascido já sem aquela fé. Limitava-se a contemplar o mundo da terra firme como um espectáculo instável, lamentável e inevitável; a sua única preocupação era manter-se longe para limitar os danos. Apesar de tudo, havia ainda nele uma certa inocência, naquela altura, uma inocência parcial, referente às coisas e aos territórios alheios à sua profissão. Quatro meses em doca seca não bastavam para lhe arrebatar uma certa candura, própria do seu mundo aquático: o distanciamento absorto, um pouco ausente, que alguns marinheiros mantêm relativamente às pessoas que sentem terra firme sob os seus pés. Nessa altura, ele ainda olhava para determinadas coisas à distância, ou de fora, com uma ingénua capacidade de surpresa parecida à que, em criança, o levava a colar o nariz nas montras das lojas de brinquedos nas vésperas do Natal. Mas, agora com a certeza, mais próxima do alívio que da decepção, de que nenhuma daquelas inquietantes maravilhas lhe estava destinada. No seu caso, saber-se fora do circuito, conhecer a ausência do seu nome na lista dos Reis Magos(1), tranquilizava-o. Era bom não esperar nada
*1. Em Espanha, são os Reis Magos e não o Pai Natal quem dá as prendas às crianças, que as recebem no dia 6 de Janeiro, dia de Reis. (N. da T.)
das pessoas e ter o saco de viagem suficientemente leve para o pôr ao ombro e ir até ao porto mais próximo sem lamentar o que deixava para trás. Bem-vindos a bordo. Existem, há milhares de anos, antes mesmo de os côncavos navios zarparem rumo a Tróia, homens com rugas em redor da boca e chuvosos corações de Novembro — aqueles cuja natureza os determina, mais cedo ou mais tarde, a olhar com interesse o buraco negro de uma pistola — para quem o mar significou sempre uma solução e que pressentiram sempre quando era hora de partir. E mesmo antes de saber que era um deles, Coy já o era por vocação e por instinto. Uma vez, numa taberna de Vera Cruz, uma mulher — eram sempre mulheres quem formulava este tipo de perguntas — perguntara-lhe porque era marinheiro, e não advogado, ou dentista; e ele limitou-se a encolher os ombros antes de responder passado algum tempo, quando ela já não esperava resposta: «O mar é limpo.» E era verdade. No alto mar o ar era fresco, as feridas cicatrizavam mais depressa, e o silêncio tornava-se suficientemente intenso para tornar suportáveis as perguntas sem resposta e justificar os próprios silêncios. Noutra ocasião, no Restaurante Sunderland de Rosário, Coy tinha conhecido o único sobrevivente de um naufrágio: um em dezanove. Rombo às três da madrugada, fundeados a meio do rio, todos a dormir, e o barco no fundo em cinco minutos. Gluglu. Mas o que o tinha impressionado naquele indivíduo era o seu silêncio. Alguém perguntou como era possível, dezoito homens ao fundo sem se aperceberem. E o outro olhava-o calado, pouco à vontade, como se fosse tudo tão óbvio que não valesse a pena explicar nada; e levava à boca a sua caneca de cerveja. Para Coy, as cidades, com os seus passeios cheios de gente e tão iluminados como as montras da sua infância, também o faziam sentir-se pouco à vontade; desajeitado e deslocado como um pato longe da água, ou como aquele tipo de Rosário, tão calado como os outros dezoito que estavam ainda mais calados. O mundo era uma estrutura muito complexa que só do mar se podia contemplar; e a terra firme só adquiria proporções tranquilizadoras de noite, durante o quarto de vigia, quando o timoneiro era uma sombra muda e das entranhas do barco chegava a trepidação suave das máquinas. Quando as cidades ficavam reduzidas a pequenas linhas de luzes na distância e a terra era a claridade trémula de um farol avistado na ondulação. Relâmpagos que alertavam, que repetiam sem parar: cuidado, atenção, mantém-te longe, perigo. Perigo.
Não viu esses relâmpagos nos olhos da mulher, quando voltou para junto dela com um copo em cada mão, entre as pessoas que se amontoavam no balcão de Boadas; e esse foi o terceiro erro da noite. Porque não há listas de faróis, de perigos e de sinais para navegar terra adentro. Não há roteiros específicos, cartas actualizadas, cartas de baixos em metros ou braças, alinhamentos com este ou aquele cabo, bóias vermelhas, verdes ou amarelas, nem regulamentos de abordagem, nem horizontes limpos para calcular uma recta de altura. Em terra, navega-se sempre por estima, às cegas, e só é possível ver os recifes quando ouvimos o seu rumor a um cabo(2) da proa e vemos clarear a escuridão na mancha branca do mar que quebra nas rochas à superfície da água. Ou quando ouvimos a rocha inesperada — todos os marinheiros sabem que existe uma rocha com o seu nome, espreitando em qualquer parte — a rocha assassina, cortar o casco com uma estridência que faz estremecer as anteparas, nesse momento terrível em que qualquer homem ao comando de um barco prefere estar morto.
— Foste rápido — disse ela.
— Sou sempre rápido nos bares.
A mulher olhou-o com curiosidade. Sorria um pouco, talvez por ter observado a forma como Coy se aproximara do balcão, abrindo caminho com a determinação de um pequeno e compacto rebocador entre as pessoas que se amontoavam à frente, em vez de ficar atrás, esperando chamar a atenção do empregado. Tinha pedido uma genebra azul com água tónica para ele e um martini seco para ela, trazendo-os de volta com um hábil movimento pendular das mãos e sem derramar uma gota. O que em Boadas, e àquela hora, era digno de mérito.
Ela observava-o através do copo. Azul muito escuro atrás do vidro e da límpida transparência do martini.
— E o que fazes na vida, além de te mexeres bem pelos bares, de ires a leilões náuticos e de socorreres mulheres indefesas?
— Sou marinheiro.
*2. Medida de 120 braças. (N. da T.)
- Ah!
— Marinheiro sem barco.
- Ah!
Tratavam-se por tu há apenas alguns minutos. Meia hora antes, à luz do candeeiro, quando o homem do rabicho grisalho entrou para o Audi, ela agradecera-lhe nas suas costas, e ele voltou-se para a ver deveras pela primeira vez, parado no passeio, enquanto pensava no seu íntimo que até ali tinha sido a parte fácil, e que já não dependia dele conservar junto de si esse olhar pensativo e um pouco surpreendido que o percorria de cima a baixo, como se tentasse catalogá-lo nalguma das espécies de homem que ela conhecia. De modo que se limitou a esboçar um sorriso prudente, um pouco coibido. O mesmo sorriso que mostrava ao capitão quando se alistava num novo barco, nesse momento inicial em que as palavras não significam nada e os interlocutores sabem que o tempo porá cada coisa no seu lugar. Mas a questão para Coy era precisamente ninguém garantir a existência daquele tempo tão necessário, e nada a impedir de agradecer novamente e de ir embora da forma mais natural do mundo, desaparecendo para sempre. Foram dez longos segundos de escrutínio que ele suportou silencioso e imóvel. LBA: Lei da Braguilha Aberta. Espero não ter a braguilha aberta, pensou. Depois viu que ela inclinava um pouco a cabeça para um lado, o suficiente para que o lado esquerdo do seu cabelo louro e liso, cortado assimetricamente com a precisão de um bisturi, roçasse a sua face cheia de sardas. Depois disso, a mulher não sorriu nem disse nada, limitando-se a andar devagar pelo passeio, rua acima, com as mãos nos bolsos do casaco de camurça. Levava uma grande carteira de pele ao ombro, e mantinha-a junto ao corpo com o cotovelo. O seu nariz era menos bonito visto de perfil: um pouco achatado, como se o tivesse partido alguma vez. Isso não diminuía o seu encanto, decidiu Coy, mas dava-lhe um perfil de insólita dureza. Andava olhando para o chão à sua frente e encostada à esquerda, como se lhe desse a ele a oportunidade de ocupar esse lugar. Andaram em silêncio, a alguma distância um do outro, sem olhares nem explicações ou comentários, até ela parar na esquina, e Coy compreender que era o momento das despedidas ou das palavras. A mulher estendia-lhe uma mão que apertou na sua, grande e desajeitada, sentindo um aperto firme, ossudo, que desmentia as sardas juvenis e estava mais de acordo com a expressão tranquila dos olhos, que ele, finalmente, decidira serem azul-marinho.
E então Coy falou. Fê-lo com aquela timidez espontânea que era o seu modo natural de dirigir-se a desconhecidos, encolhendo os ombros com simplicidade e acompanhando as suas palavras com o sorriso que, embora ele não o soubesse, lhe iluminava o rosto e atenuava a sua rudeza. Falou e coçou o nariz e tornou novamente a falar, ignorando se alguém a esperava nalgum sítio, se era desta cidade ou de outra qualquer. Disse o que achou que devia dizer, e depois ficou ali, baloiçando-se ligeiramente, com a respiração suspensa, como uma criança que acaba de expor em voz alta uma lição e aguarda sem grandes esperanças o veredicto da professora. E então ela olhou-o outros dez segundos em silêncio, inclinou novamente a cabeça, e o cabelo voltou a roçar-lhe a cara. E disse que sim, porque não? Também lhe apetecia beber alguma coisa em qualquer sítio. E assim, dirigiram-se para a Plaza Cataluña, depois para as Ramblas e para a Calle Tallers. E quando ele manteve aberta a porta de Boadas para a deixar passar, sentiu pela primeira vez o seu aroma, indefinido e suave, que não parecia provir de águas-de-colónia ou perfumes, mas da sua pele pintalgada em tons dourados, que imaginou suave e cálida, com uma textura semelhante à pele das nêsperas. E ao entrar, aproximando-se do balcão da parede, comprovou que os homens e as mulheres que estavam no local olhavam primeiro para ela e só depois para ele; e disse para consigo que, por alguma estranha razão, os homens e as mulheres olham sempre primeiro para uma mulher bonita e depois desviam o olhar para o seu acompanhante de uma forma inquisitiva, para ver quem será aquele fulano. Como se quisessem comprovar que a sua aparência a merece, e que ele está à altura das circunstâncias.
— E o que faz um marinheiro sem barco em Barcelona?
Estava sentada num tamborete alto, com a carteira sobre os joelhos, as costas contra o balcão de madeira que corria ao longo da parede, sob as fotografias emolduradas e as lembranças do bar. Usava duas pequenas bolinhas de ouro como brincos e nem um anel nas mãos. Quase não usava maquilhagem. Pela gola entreaberta da
blusa, branca e com o botão superior desabotoado sobre centenas de sardas, Coy via brilhar uma corrente de prata.
— Esperar — disse. Depois bebeu um gole de genebra azul e, enquanto o fazia, viu que ela observava o seu velho casaco, e que talvez se detivesse nas faixas mais escuras dos galões ausentes nos punhos. — Esperar tempos melhores.
— Um marinheiro deve navegar.
— Nem todos são da mesma opinião.
— Fizeste alguma coisa errada?
Concordou com um meio sorriso triste. Ela abriu a carteira e tirou um maço de tabaco inglês. As suas unhas não eram bonitas: curtas e largas, de rebordos irregulares. Noutros tempos devia tê-las roído, sem dúvida. Talvez ainda o fizesse. No maço restava um cigarro, e ela acendeu-o com uma caixa de fósforos que tinha impresso um anúncio de uma companhia de navegação belga que ele conhecia, a Zeeland Ship. Viu que o fazia protegendo a chama com as mãos em concha, num gesto quase masculino. A sua linha da vida era muito longa, como se tivesse vivido muitas vidas na Terra.
— A culpa foi tua?
— Legalmente, sim. Aconteceu durante o meu quarto de serviço.
— Abordagem?
— Toquei no fundo. Havia uma rocha não assinalada nas cartas.
Era verdade. Um marinheiro nunca dizia encalhei, ou varei. O verbo comum era tocar: toquei no fundo, toquei o molhe. Se a meio da névoa do Báltico um barco partia outro ao meio e o metia a pique, dizia: tocámos num barco. De qualquer forma, observou que ela também tinha utilizado o termo marinheiro de abordagem, em vez de choque ou colisão. O maço de cigarros estava sobre o balcão, aberto, e Coy ficou a olhar para ele: a cabeça de um marinheiro, um salva-vidas em jeito de orla e dois barcos. Há muito tempo que não via um maço de Players sem filtro como aquele, dos de toda a vida. Não eram fáceis de encontrar, e ignorava que ainda os fabricavam no seu invólucro de cartolina branca, quase quadrada. Era engraçado ela fumar essa marca: o leilão náutico, o Urrutia, ele próprio. LCA: Lei das Coincidências Assombrosas.
— Conheces a história?
Apontava para o maço. Ela ficou a olhá-lo e depois levantou os olhos, surpreendida.
— Que história?
— A de Héroe.
— Quem é Héroe?
Contou-lhe. Falou-lhe do nome na fita do gorro do marinheiro de barba ruiva, da sua juventude, do veleiro que aparece num dos lados da imagem, do outro barco, o vapor que foi o seu último barco. De como o senhor Player e filhos compraram o seu retrato para o porem nos maços de cigarros. Depois ficou calado, enquanto ela fumava — o cigarro fora-se consumindo entre os dedos — e olhava para ele.
— É uma boa história — disse a mulher passado algum tempo. Coy encolheu os ombros.
— Não é minha. Conta-a Dominó Vitali a James Bond em Operação Relâmpago. Naveguei num petroleiro que tinha a bordo os romances de Ian Fleming.
Também se lembrava de que esse barco, o Palestine, tinha passado mês e meio bloqueado em Ras Tanura a meio de uma crise internacional, com as pranchas do convés ardendo a sessenta graus sob um sol infame, e os tripulantes deitados nos camarotes, sufocados pelo calor e pelo tédio. O Palestine era um barco desgraçado, agoirento, desses onde as pessoas se tornam hostis e se detestam e desvairam: o chefe de máquinas resmungava delirando a um canto — esconderam a chave do bar, e ele bebia às escondidas o álcool metílico da enfermaria misturando-o com laranjada — e o primeiro-oficial não dirigia a palavra ao capitão mesmo que o barco estivesse prestes a encalhar. Coy teve tempo de sobra para ler esses romances e muitos outros na sua prisão flutuante, naqueles dias intermináveis em que o ar abrasador que entrava pelas escotilhas o fazia abrir a boca como um peixe fora de água, e deixava, ao levantar-se, a silhueta do seu corpo nu impressa em suor nos lençóis enxovalhados e sujos do beliche. Um petroleiro grego tinha sido atingido a três milhas por uma bomba da aviação, e durante alguns dias pôde ver do seu camarote a coluna de fumo preto que subia directamente para o céu e, à noite, a claridade que tingia o horizonte de vermelho e recortava as silhuetas escuras e vulneráveis dos barcos atracados.
Durante esse tempo, acordou todas as noites aterrado, sonhando que nadava num mar de chamas.
— Lês muito?
— Alguma coisa. — Coy esfregou o nariz. — Leio um pouco. Mas sempre sobre o mar.
— Há outros livros interessantes.
— É capaz. Mas a mim só me interessam esses.
A mulher olhava-o, e ele encolheu novamente os ombros, antes de se baloiçar um pouco sobre os pés. Então apercebeu-se de que não tinham falado do tipo do rabicho grisalho, nem do que ela estava ali a fazer. Nem sequer sabia o seu nome.
Três dias mais tarde, deitado de costas na cama do seu quarto da pensão La Marítima, Coy olhava para uma mancha de humidade no tecto. Kind of Blue. Nos auscultadores do seu walkman, depois de So What, por onde o contrabaixo tinha estado a deslizar suavemente, o trompete de Miles Davis acabava de entrar com o histórico solo de duas notas — a segunda de uma oitava mais baixa que a primeira — e Coy esperava, suspenso nesse espaço vazio, a descarga libertadora, a única batida de bateria, o eco dos pratos e dos tambores preparando o caminho lento, inevitável, assombroso, ao metal do trompete.
Considerava-se quase um analfabeto musical, mas amava o jazz, a sua insolência e o seu engenho. Apaixonara-se por ele nos longos quartos de serviço na ponte, quando navegava como terceiro-oficial a bordo do Fedallah, um navio de transporte de fruta da Zoeline cujo primeiro-oficial, um galego chamado Neira, possuía as cinco gravações da Smithsonian Collection de jazz clássico. Isso incluía desde Scott Joplin e Bix Beiderbecke até Thelonius Monk e Ornette Coleman, passando por Armstrong, Ellington, Art Tatum, Billie Holiday, Charlie Parker e os restantes. Horas e horas de jazz com uma chávena de café nas mãos, olhando para o mar, com os cotovelos apoiados numa das asas da ponte, de noite, sob as estrelas. O chefe das máquinas, Gorostiola, natural de Bilbau, mais conhecido por Torpedeiro Tucumán, era outro apaixonado por esta música; e os três tinham partilhado jazz e amizade durante seis anos, numa rota quadrangular que levou o Fedallah — depois passaram os três juntos para o Tashtego, outro barco gémeo da Zoeline — com carga a granel de fruta e sementes, entre Espanha, as Caraíbas, o Norte da Europa e o Sul dos Estados Unidos. E aquela foi uma época feliz na vida de Coy.
Apesar da música dos auscultadores, através do pátio que fazia de estendal, chegava o som do rádio da filha da patroa, que costumava ficar a estudar até muito tarde. A filha da patroa era uma jovem tosca e pouco bafejada pela beleza, a quem ele sorria educadamente sem nunca obter em troca um gesto ou um olhar. La Marítima era uma antiga casa de banhos públicos — 1844, garantia o dintel da porta, aberta para a Calle Are del Teatre — reconvertida em pensão barata de marinheiros. Estava a meio caminho entre o porto velho e o bairro chinês e, sem dúvida, a mãe da rapariga, uma grosseira dama de cabelo pintado num tom alaranjado, alertara-a para os perigos da sua clientela habitual, gente rude e sem escrúpulos que coleccionava mulheres em todos os portos, desembarcando sedenta de álcool, droga e raparigas mais ou menos virgens.
Pela janela podia ouvir-se perfeitamente, entre o jazz do walk-man, Noel Soto cantando Noche de Samba en Puerto Espana; e Coy aumentou o volume. Estava nu, à excepção de uns calções curtos, e, pousado na barriga, tinha Capitão de Mar e Guerra, de Patrick O'Brian, aberto e voltado para baixo. Mas o seu espírito andava muito longe das andanças náuticas do capitão Aubrey e do doutor Maturin. A mancha do tecto parecia-se com o traçado de uma costa, com os seus cabos e enseadas, e Coy percorria com a vista uma rota imaginária, entre duas das suas extremidades mais longínquas, no mar amarelado do céu limpo. Naturalmente, pensava nela.
Chovia, quando saíram de Boadas. Uma chuva fina, que quase não incomodava, que dourava com luzes cintilantes o asfalto e os passeios, e pontilhava o feixe dos faróis dos automóveis. Ela não parecia importar-se de que o seu casaco de camurça se molhasse, e foram andando rua abaixo pelo passeio central, entre os quiosques de jornais e revistas e os vendedores de flores que começavam a fechar. Um mimo, estóico sob o molha-tolos que lhe fazia regueiros no pó branco da cara imóvel, tão triste que deprimia todos os transeuntes vinte metros em redor, seguiu-os com os olhos, quando a mulher se inclinou um momento para deixar uma moeda no seu cestinho.
Andava da mesma forma que antes, um pouco adiantada e olhando para o chão à sua esquerda, como se deixasse a Coy a opção de ocupar esse espaço ou de se retirar discretamente. Ele contemplava, às escondidas, o seu perfil duro entre o cabelo liso que oscilava ao caminhar; os olhos azulados que, de vez em quando, se voltavam para ele como um preâmbulo de um olhar pensativo ou de um sorriso.
Em Schilling não estava muita gente. Voltou a pedir genebra azul com água tónica e ela conformou-se apenas com água tónica. Eva, a empregada brasileira, serviu as bebidas olhando-a com descaramento, e depois arqueou uma sobrancelha em atenção a Coy, tamborilando o balcão com as mesmas unhas compridas, pintadas de verde, que há apenas três madrugadas cravara conscienciosa-mente nas suas costas nuas. Mas Coy passou a mão pelo cabelo molhado e manteve o seu sorriso inalterável, muito doce e tranquilo, até a empregada murmurar «bastardo», sorrindo por sua vez e recusando-se a cobrar-lhe a sua bebida. Depois, Coy e a mulher foram sentar-se numa mesa, diante do espelho enorme que reflectia as garrafas colocadas na parede. Aí prosseguiram a conversa intermitente. Ela não era faladora. Por essa altura limitara-se a contar que trabalhava num museu, e cinco minutos mais tarde ele pôde averiguar que se tratava do Museu Naval de Madrid. Deduziu que tinha estudado História e que alguém, o seu pai talvez, fora militar de carreira. Ignorava se isso tinha relação com o seu aspecto de menina bem-educada. Também vislumbrou uma firmeza contida, uma segurança interior, discreta, que o intimidava.
Coy não trouxe à baila o tipo do rabicho grisalho senão mais tarde, quando passeavam sob as arcadas da Plaza Real. Ela tinha confirmado que o Urrutia era uma peça valiosa, embora não fosse única; mas não ficou claro se a aquisição tinha sido para o museu ou para ela. É um atlas marítimo importante, comentou evasiva quando ele se referiu à cena da Calle Consell de Cent, e há sempre alguém interessado nesse tipo de coisas. Coleccionadores, acrescentou passado um instante. Gente desse tipo. Depois inclinou um pouco a cabeça e perguntou pela vida que ele fazia em Barcelona, de uma forma que tornava evidente o seu desejo de mudar de conversa. Coy falou de La Marítima, dos seus passeios pelo porto, das manhãs de sol na esplanada do Universal, diante do comando da marinha, onde podia estar três ou quatro horas sentado com um livro e o seu walkman pelo preço de uma cerveja. Também falou do tempo que lhe restava pela frente, da impotência de estar em terra sem trabalho e sem dinheiro. Nesse momento julgou ver espreitar, na extremidade das arcadas, o indivíduo baixinho de bigode, cabelo com gel e casaco aos quadrados que, à tarde, estivera no leilão. Observou-o um momento para ter a certeza, e voltou-se para ela, a fim de verificar se também tinha reparado nessa presença. Mas os olhos dela estavam inexpressivos, como se não vissem nada de particular. Quando Coy deu a volta para olhar de novo, o homenzinho do casaco aos quadrados continuava ali, passeando com as mãos atrás das costas, com um ar casual.
Estavam à porta do Club de la Pipa, e ele fez um cálculo rápido do que ainda tinha na carteira, concluindo que podia permitir-se convidá-la para mais um copo e que, no pior dos casos, Roger, o encarregado, lhe fiaria. Ela mostrou-se surpreendida pelo lugar insólito, pela campainha da porta, pelas velhas escadas e pelo local no segundo andar, com o seu balcão estranho, o sofá e as gravuras de Sherlock Holmes penduradas na parede. Não havia jazz nessa noite e permaneceram de pé junto do balcão deserto, enquanto Roger fazia palavras cruzadas na outra extremidade. Ela quis provar a genebra azul, dizendo que gostava do seu aroma, e logo a seguir declarou-se encantada com o sítio, acrescentando que nunca imaginara que houvesse um lugar como aquele em Barcelona. Coy disse que estavam prestes a encerrá-lo, porque os vizinhos se queixavam do ruído e da música; pisavam um barco a caminho do desmantelamento. Ela tinha ficado com uma gotinha de genebra com água tónica na comissura dos lábios, e ele pensou que felizmente só tinha três copos no estômago, pois com mais alguns teria estendido a mão para limpar aquela gota com os dedos. E ela não parecia ser daquelas que deixam um marinheiro que acabaram de conhecer, e a quem olham com uma mistura de reserva, cortesia e agradecimento, limpar nada. Então, ele perguntou, finalmente, o nome dela. Ela sorriu novamente — desta vez passado um instante, como se tivesse de ter ido longe para o fazer — e depois os seus olhos cravaram-se nos de Coy; ou seja, cravaram-se literalmente durante um longo e intenso segundo, e disse o seu nome. E ele considerou que era um nome singular tal como a sua aparência, um nome que, no entanto, lhe ficava bem, e que pronunciou uma vez só em voz alta, devagar, quando dos lábios dela ainda não se tinha esfumado de todo o sorriso distante. Depois, Coy pediu um cigarro a Roger para lho oferecer, mas ela não quis fumar mais. E quando a viu levar o copo à boca e entreviu os seus dentes brancos atrás do vidro, com o gelo a roçá-los num tilintar húmido, baixou os olhos na direcção da corrente de prata que brilhava um pouco naquela gola aberta da sua blusa, sobre a pele que, com aquela luz, parecia mais cálida do que nunca, e interrogou-se se um homem teria contado alguma vez todas aquelas sardas até à Finisterra. Se as teria contado sem pressa, uma por uma, rumo ao sul, da mesma forma que a ele lhe apetecia fazê-lo. Foi nessa altura que, ao erguer os olhos, verificou que ela tinha interpretado o seu olhar e sentiu parar o coração, quando a ouviu dizer que eram horas de ir embora.
No rádio da filha da patroa, a mesma voz acometia agora La Reina del Barrio Chino. Coy desligou o seu walkman — Miles Davis monologava Saeta, o quarto tema de Sketches of Spain — e deixou de olhar para a mancha do tecto. O livro e os auscultadores caíram sobre os lençóis quando se levantou e se pôs a andar pelo quarto estreito, tão parecido à cela que uma vez ocupara durante dois dias em La Guaira, daquela vez em que o Torpedeiro Tucumán, o galego Neira e ele próprio, fartos de comer fruta, foram a terra comprar peixe fresco para uma caldeirada, e Neira disse:
— Esperem-me bebendo um café, quinze minutos para uma rapidinha e estou de volta.
E passado pouco tempo ouviram-no a pedir socorro pela janela, entraram e partiram o bar, destruíram-no todo, até as mesas, as garrafas e as costelas do chulo que tinha ficado com a carteira do galego, e o capitão, Dom Matías Norena, teve de ir, bastante mal-humorado, tirá-los de lá, subornando dois polícias venezuelanos com um maço de dólares que, mais tarde, descontou dos salários deles, até ao último centavo.
Sentiu um início de nostalgia ao recordar tudo aquilo. O espelho sobre o lavatório reflectia os seus ombros compactos e o rosto cansado, por barbear. Deixou correr a água até estar bem fria e depois jogou-a com as mãos para a cara e para a nuca, resfolegando e sacudindo a cabeça como um cão sob a chuva. Esfregou-se vigorosamente com uma toalha e ficou algum tempo olhando-se imóvel, o nariz forte, os olhos escuros, as feições toscas, como se avaliasse as probabilidades a seu favor. Tás feito, concluiu. Com essa pinta não comes gaja nenhuma.
Abriu a gaveta da cómoda, tirando-a completamente, e tacteou por trás até encontrar o sobrescrito onde guardava o dinheiro. Não era muito, e nos últimos dias minguava perigosamente. Ficou algum tempo sem se mexer, dando voltas à cabeça, e no fim foi até ao armário e tirou o saco onde tinha os seus escassos pertences: alguns livros bastante lidos, os galões de oficial cujos dourados começavam a ficar verde-bolor, cassetes de jazz, uma carteira para fotografias — o navio escola Estreita del Sur com as velas ao vento, o Torpedeiro Tucumán e o galego Neira no balcão de um bar de Roterdão, ele próprio com galões de primeiro-oficial, apoiado na amurada do Islã Negra sob a ponte de Brooklyn — e a caixa de madeira onde guardava o seu sextante. Era um bom sextante: um Weems & Plath de sete filtros fumados, metal preto e arco de latão dourado, que Coy tinha comprado em prestações, a partir do seu primeiro ordenado, mal obtivera o seu título de piloto. Os sistemas de'posicionamento por satélite sentenciavam a morte deste instrumento, mas qualquer marinheiro que se prezasse conhecia a sua fiabilidade, à prova de falhas electrónicas, para estabelecer a latitude ao meio-dia, quando o Sol atingia o seu ponto mais alto no céu (meridiana), ou de noite com uma estrela baixa no horizonte: efemérides náuticas, tábuas, três minutos de cálculos. Da mesma forma que os militares cuidam e mantêm limpas as suas armas, Coy tinha procurado ao longo de todos aqueles anos que o sextante se mantivesse sem humidade salina ou sujidade, limpando os seus espelhos e verificando possíveis erros laterais e de índice. Mesmo agora, sem barco sob os pés, costumava levá-lo nos seus passeios pela costa para calcular rectas de altura, sentado numa rocha e diante do horizonte do mar aberto. Este hábito datava do tempo em que navegava como aluno no Monte Pequeno, o seu terceiro barco se contarmos com o Estrella del Sur. O Monte Pequeno era um barco de 275 000 toneladas da Enpetrol, e o capitão, Dom Agustín de La Guerra, gostava de dar solenidade ao momento da meridiana, convidando para um copo de xerez, os oficiais, depois de estes e de
os jovens adjuntos conferirem os seus respectivos cálculos, após terem estado numa das asas da ponte, o capitão de relógio na mão e eles tangenciando o Sol no horizonte através dos filtros fumados dos seus instrumentos. Aquele era um capitão da velha escola; com um parafuso a menos, mas excelente marinheiro, do tempo em que os grandes petroleiros iam ao Pérsico em lastro pelo Suez e voltavam carregados rodeando África pelo Cabo. Uma vez atirou um despenseiro por uma escada quebra-costas, porque este lhe faltara ao respeito e, quando o sindicato se queixou, respondeu que o despenseiro tinha sorte, porque há século e meio tê-lo-ia pendurado no mastro grande. «No meu barco», disse em determinada ocasião a Coy, «ou estão de acordo com o capitão ou calam-se.» Foi durante um jantar de Natal no Mediterrâneo, com um péssimo tempo de proa, um temporal duro de força dez que obrigava a moderar as máquinas diante do cabo Bom. Coy, aluno de náutica estagiário a bordo, tinha discordado de um comentário banal do capitão. Nessa altura, ele atirou o guardanapo para cima da mesa e disse aquilo de que no seu barco, etc. Depois mandou-o sair de quarto à ponte, para a asa da ponte de estibordo, onde Coy permaneceu as quatro horas seguintes na escuridão, açoitado pelo vento, pela chuva e pelos borrifos do mar que batia contra o petroleiro. Dom Agustín de La Guerra era um raro sobrevivente de outros tempos, despótico e duro a bordo; mas quando um cargueiro panamense, com um oficial de quarto russo e bêbado, lhe meteu a proa na popa, numa noite em que a chuva e o granizo saturavam os radares no canal da Mancha, soube manter o petroleiro a flutuar e governá-lo até Dover sem derramar uma gota de crude e poupando à empresa o custo de rebocadores. Qualquer atrasado mental, dizia, consegue agora dar a volta ao mundo apertando botões; mas se a electrónica deixa de funcionar, ou os Americanos resolvem desligar os seus malditos satélites, invenção do Maligno, ou um filho da puta de um bolchevique nos rebenta o cu bem rebentado a meio do oceano, um bom sextante, uma agulha magnética e um cronometro continuarão a levar-nos a qualquer parte. De modo que pratica, garoto. Pratica. Obediente, Coy tinha praticado sem descanso durante dias, meses e anos, e passado mais tarde, e com aquele mesmo sextante, por observações mais difíceis em noites cerradas e perigosas, a meio de fortes temporais que percorriam o Atlântico de ponta a ponta, agarrando-se empapado à amurada, enquanto a proa embatia furiosamente e ele perscrutava desesperadamente, com um olho colado ao visor, o aparecimento do ténue círculo dourado entre as nuvens empurradas pelo vento de noroeste.
Sentiu uma suave melancolia quando susteve o peso familiar do sextante nas mãos, fazendo correr a alidade móvel enquanto a ouvia deslizar pela cremalheira dentada que numerava de 0 a 120 os graus de qualquer meridiano terrestre. Depois calculou quanto pediria por ele a Sergi Solàns, que admirava há anos aquele instrumento. Pois, como costumava dizer Sergi quando bebiam juntos um copo no Schilling, já não se fabricavam sextantes como aquele. Sergi era um bom rapaz, que pagava quase todas as bebidas desde que Coy se vira em terra sem dinheiro, e não lhe guardava rancor por ter ido para a cama com Eva, naquela noite em que a brasileira ostentou uma camisola diabolicamente cingida à medida 95 do soutien que nunca usava, e Sergi estava demasiado bêbado para a disputar. Também tinha estudado náutica com Coy, partilhado o barco alguns meses, quando ambos navegavam estagiários no Migalota, um ro-ro da Rodríguez & Saulnier, e agora preparava o seu exame de capitão como primeiro-oficial de um ferry da Transmediterrânea que fazia duas vezes por semana a linha Barcelona-Palma. É como conduzir um autocarro, dizia. Mas com um sextante como esse no camarote, uma pessoa continua a sentir-se marinheiro.
Centrou o braço a meio do arco e devolveu com cuidado o Weems & Platb à sua caixa. Depois foi até à cómoda, abriu a sua carteira e tirou de lá o cartão que a mulher lhe dera há três dias, ao despedir-se na esquina das Ramblas. O cartão não tinha direcção nem telefone, apenas o nome e um único apelido: Tânger Soto. Em baixo, com letra redonda e precisa, com um círculo a fazer de ponto sobre o único «i», ela escrevera a direcção do Museu Naval de Madrid.
Quando fechou a tampa do sextante, Coy assobiava Nocte de Samba en Puerto Espana.
A MONTRA DE TRAFALGAR
Depois soube que foi como saltar para o vazio; e isso era singular no caso de Coy, que não recordava ter tomado um rumo precipitado na sua vida. Era o tipo de pessoa que, na casa de pilotagem de um navio, demora o tempo que for preciso para traçar conscienciosamente qualquer rota sobre a carta náutica. Antes de se ver à força em terra e sem barco, essa tinha sido fonte de satisfações numa profissão onde essas coisas contavam na altura de definir um trajecto seguro entre dois pontos situados em diferentes latitudes e longitudes geográficas. Havia poucos prazeres comparáveis a passar um bom tempo entre cálculos de rumo, abatimento e velocidade, prevendo que o cabo Tal ou o farol Beltrano apareceriam dois dias mais tarde, por volta das seis da manhã e a uns trinta graus pela amurada de bombordo, e depois aguardar a essa mesma hora na amurada húmida pelo sereno da madrugada, com os binóculos nos olhos, até ver aparecer, exactamente no lugar previsto, a silhueta cinzenta ou a luz intermitente que, uma vez cronometrada a frequência de relâmpagos ou eclipses, confirmava a exactidão dos cálculos. Chegado esse momento, Coy modulava sempre um sorriso para o seu íntimo; um sorriso sereno e satisfeito. Depois, alegrando-se com a confirmação daquela certeza obtida pela matemática, pelos instrumentos de bordo e pela sua competência profissional, ia apoiar-se num ângulo da ponte, junto à sombra silenciosa do timoneiro, ou servia-se de um café quente do termos, contente por estar ali, num bom barco, em vez de fazer parte daquele outro mundo incómodo, feito de terra firme, felizmente reduzido a uma ligeira claridade atrás do horizonte.
Mas esse rigor na hora de pôr em prática movimentos sobre o papel das cartas náuticas que dirigiam a sua vida não o tinha livrado do erro nem do fracasso. Dizer terra à vista e verificar depois, de forma táctil, a presença dessa mesma terra e as suas consequências eram situações que nem sempre surgiam por essa ordem. A terra existia, nas cartas ou fora delas, e tinha decidido manifestar-se de improviso, como costuma acontecer neste tipo de coisas, penetrando no frágil reduto — apenas um pouco de ferro flutuando no imenso oceano — onde Coy julgava sentir-se a salvo. Seis horas antes de o Islã Negra, um porta-contentores da companhia de navegação Mínguez Escudero, encalhar a meio caminho entre o cabo e o canal de Moçambique durante o seu quarto de serviço, Coy, primeiro-oficial a bordo, tinha advertido o capitão de que a carta do Almirantado britânico correspondente a essa zona mencionava, numa chamada especial, algumas imprecisões nos levantamentos. Mas o capitão tinha pressa e, além disso, tinha navegado por aquelas águas durante vinte e cinco anos com as mesmas cartas e sem problemas. Também levava dois dias de atraso por ter apanhado mau tempo no golfo da Guiné e por ter sido obrigado, mais tarde, a evacuar de helicóptero um tripulante que partira a coluna ao escorregar numa escada diante da Costa dos Esqueletos. As cartas inglesas, dissera durante o jantar, são tão minuciosas que é preciso trazê-las nas palminhas. A rota está limpa, duzentas e quarenta braças nas extremidades dos baixios mais altos e nem uma caganita de mosca no papel. De modo que passaremos entre os ilhéus Terson e Mowett Grave. Foi o que disse: folha de papel, caganita de mosca e direito entre os ilhéus. O capitão era um galego de sessenta e alguns anos, franzino, de cara avermelhada e cabelo grisalho. Além de confiar cegamente nas cartas do Almirantado, chamava-se Dom Gabriel Moa, tinha quatro décadas de mar nas rugas da cara e em todo esse tempo ninguém o vira perder a compostura, nem sequer quando, no início dos anos noventa, dizia-se, andou dia e meio adornado vinte graus, depois de perder onze contentores a meio de um temporal do Atlântico. Era um desses capitães pelos quais armadores e subalternos põem a mão no fogo: seco na ponte, sério na casa de pilotagem, invisível em terra. Um capitão à moda antiga, dos que tratavam oficiais e estagiários por você, e a quem ninguém podia imaginar a cometer um erro. Por isso, Coy manteve aquele rumo na carta inglesa que assinalava imprecisões nos levantamentos; e também por isso, decorridos vinte minutos do seu quarto de serviço, tinha ouvido ranger sobre uma rocha o casco de aço do Islã Negra estremecendo sob os seus pés, antes de conseguir recuperar do seu estupor e, precipitando-se sobre o telégrafo de ordens, parasse as máquinas, e o capitão Moa aparecesse na ponte de pijama e com o cabelo despenteado, olhando para a escuridão lá de fora com uma expressão sonâmbula e estúpida que Coy nunca lhe vira anteriormente. O capitão balbuciara apenas «não pode ser» três vezes, uma atrás da outra, e depois, sempre perplexo como se não estivesse ainda completamente acordado, murmurou um fraco «parem as máquinas», quando as máquinas já estavam paradas há cinco minutos, e o timoneiro continuava imóvel com as mãos na roda do leme, observando-os alternadamente a ele e a Coy. E Coy olhava, com a certeza terrível de quem obtém à sua custa uma revelação inesperada, para aquele respeitável superior cujas ordens tinha acatado sem vacilar meia hora antes, apesar de o conduzirem com o radar desligado pelo estreito de Malaca, e que, de repente, surpreendido e sem tempo de ajustar a máscara da sua falsa reputação, ou talvez — os homens mudam com os anos e no seu coração — a máscara do marinheiro eficiente que fora noutros tempos, se mostrava agora tal como era na realidade: um velho aturdido e em pijama, ultrapassado pelos acontecimentos, incapaz de dar uma ordem adequada. Um pobre homem assustado que de repente via esfumar-se a sua pensão de reforma, após quarenta anos de serviço. A advertência da carta inglesa não era em vão: existia pelo menos uma agulha por determinar no canal entre Terson e Mowett Grave, e um brincalhão cósmico devia estar a rir-se às gargalhadas nalgum lugar do Universo, porque aquela rocha isolada no vasto oceano se pusera exactamente a meio da rota do Islã Negra, com a mesma exactidão que o famoso icebergue do Titanic, durante o quarto de serviço do primeiro-oficial Manuel Coy. De qualquer forma, ambos, capitão e primeiro-oficial, tinham pago por isso. O tribunal de investigação, composto por um inspector da companhia e dois marinheiros mercantes, teve em conta o historial do capitão Moa, solucionando o assunto com uma discreta reforma antecipada. Quanto a Coy, aquela carta do Almirantado britânico tinha acabado por levá-lo para muito longe do mar. Agora estava em Madrid, imóvel junto de uma fonte de pedra onde um menino de sorriso hierático estrangulava um golfinho, e parecia um náufrago recém-chegado a uma praia ruidosa em plena época alta. Tinha as mãos nos bolsos e, entre a multidão de automóveis e o estrépito de buzinadelas ferozes, olhava de longe para o galeão de bronze que presidia a entrada do número cinco do Paseo del Prado. Ignorava a precisão do levantamento hidrográfico na rota que se propunha seguir, mas já tinha deixado bastante para trás, na sua consciência, o ponto em que ainda é possível virar de bordo e mudar um rumo. O sextante Weems & Plath, que o seu amigo Sergi Solàns tinha finalmente adquirido a um preço razoável, fora suficiente para lhe pagar o bilhete de comboio Barcelona-Madrid usado na noite anterior, e para um fundo de sobrevivência com capacidade de flutuação garantida para duas semanas, do qual uma parte avolumava o bolso direito das suas calças de ganga, e a outra se encontrava no saco de lona que tinha deixado no depósito da Estação de Atocha. Agora eram doze e quarenta e cinco de um soalheiro dia de Primavera e o tráfego fluía, colorido e ruidoso, em direcção à Plaza de La Cibeles, junto ao Palácio dos Correios que ladeava o quartel-general da Armada e as dependências do Museu Naval. Meia hora antes, Coy tinha feito uma visita à direcção-geral da marinha mercante, situada algumas ruas mais acima, para verificar se o seu recurso administrativo ia avante. A encarregada do departamento, uma mulher madura de sorriso amável que tinha um vaso com sardinheiras em cima da mesa, deixou de sorrir quando, depois de premir uma tecla do seu computador, o processo de Coy apareceu no ecrã. Recurso indeferido, tinha dito então com uma voz impessoal. Receberá a notificação por escrito. Depois desinteressou-se dele, voltando aos seus assuntos. Talvez, daquele escritório, a trezentas milhas náuticas da costa mais próxima, a mulher alimentasse um conceito romântico do mar e não gostasse dos marinheiros que tocavam no fundo com os seus barcos.
Ou talvez fosse apenas o contrário: uma funcionária objectiva, desapaixonada, para quem um encalhe no oceano Índico pouco se diferenciasse de um acidente na estrada; e um marinheiro suspenso do emprego e na lista negra dos armadores não lhe parecesse diferente de qualquer indivíduo privado da licença de condução por um juiz rigoroso. O pior, pensava Coy enquanto descia as escadas em direcção à rua, é que nesse caso a mulher não estava totalmente errada. Num tempo em que os satélites marcavam rotas e posições, o telemóvel varria das pontes capitães habilitados a tomar decisões, e qualquer executivo podia comandar um transatlântico ou petroleiros de 100 000 toneladas, de um escritório, a diferença entre um marinheiro que encalhava um barco e um camionista, que saía da estrada por perder os travões ou conduzir bêbado, era pouca.
Esperou, concentrado nos seus passos seguintes, até os pensamentos amargos ficarem longe e à deriva. Nessa altura decidiu-se, finalmente. Olhando para um lado e para outro, esperou que um semáforo próximo fizesse diminuir a intensidade do tráfego e pôs-se a andar com decisão sob os castanheiros cobertos de folhas novas, atravessou a rua e foi até à porta do museu, onde dois infantes da marinha, com franja vermelha nas calças, correagem e capacete brancos, olharam com curiosidade para o seu casaco cruzado antes de o fazerem passar sob o arco detector de metais. Sentia um formigueiro no estômago quando subiu pela ampla escadaria, voltou à direita no patamar e se viu, por fim, diante da montra da livraria do vestíbulo, ao pé da enorme roda dupla do leme da corveta Nautilus. A esquerda ficava a porta da administração e serviços e, à direita, a entrada para as salas de exposições. Havia quadros e maquetas de barcos nas paredes, um marinheiro de uniforme e de expressão aborrecida sentado atrás de uma secretária, e um civil no outro lado do balcão onde se vendiam livros, gravuras e lembranças do museu. Passou a língua pelos lábios; de repente sentia uma sede espantosa. Depois dirigiu-se ao civil.
— Procuro a menina Soto.
A boca seca enrouquecia a voz. Deu uma rápida vista de olhos à porta da esquerda, receando vê-la aparecer ali, surpreendida ou aborrecida. Que diacho fazes aqui, etc. Tinha passado a noite acordado, com a cabeça apoiada no seu reflexo da janela, pensando no que iria dizer. Mas agora tudo se lhe apagava da cabeça como uma esteira na popa. De modo que, reprimindo o impulso de dar a volta e desaparecer, se apoiou sobre um pé e depois sobre o outro, enquanto o homem ao balcão o examinava. Era de meia-idade, com óculos grossos e aspecto amável.
— Tânger Soto?
Anuiu com uma ligeira sensação de irrealidade. Era estranho, pensou, ouvir aquele nome na boca de uma terceira pessoa. No fim de contas, concluiu, ela tinha uma existência real. Havia gente que lhe dizia olá, adeus e todas essas coisas.
— Isso mesmo — disse.
Não era estranha mas absurda, pensou de repente, aquela viagem, e o seu saco no depósito de Atocha, e a sua presença ali para se encontrar com uma mulher que vira apenas algumas horas numa noite, em toda a sua vida. Uma mulher que nem sequer o esperava.
— Ela está à sua espera? Encolheu os ombros.
— Talvez.
O do balcão repetiu aquele «talvez», com ar pensativo. Observava-o com desconfiança, e Coy lamentou não ter tido oportunidade de se barbear de manhã. A barba, feita na noite anterior antes de sair para a Estação de Sants, começava a escurecer-lhe o maxilar. Ergueu a mão para o tocar, detendo o gesto a meio caminho.
— A senhora Soto saiu — respondeu o homem do balcão. Quase aliviado, Coy anuiu. Pelo rabinho do olho viu que o
marinheiro da secretária, meio inclinado sobre uma revista, olhava para os seus sapatos e para as suas coçadas calças de ganga. Felizmente, pensou, tinha trocado as sapatilhas brancas por uns velhos sapatos de vela.
— Voltará hoje?
O homem deu uma rápida vista de olhos ao casaco de marinheiro, tentando decidir se aquele pano escuro garantia alguma respeitabilidade do seu interlocutor.
— É possível — disse, após ponderar um pouco. — Não fechamos até à uma e meia.
Coy olhou para o seu relógio e depois apontou para a primeira sala. Ao fundo viam-se dois grandes retratos de Alfonso XII e de Isabel II, ao lado de uma porta que exibia expositores, modelos de barcos e canhões.
— Então esperarei ali dentro.
— Como quiser.
— Avisa-a quando chegar?... Chamo-me Coy.
Agora sorria. A ausência dela significava um adiamento oportuno e isso tranquilizava-o. O do balcão pareceu descontrair diante daquele sorriso fatigado, sincero, resultado de seis horas de comboio e seis cafés.
— Claro.
Atravessou a sala, os seus passos amortecidos pelas solas de borracha sobre a madeira corrida do chão. O medo que lhe atazanara os intestinos dava lugar a uma incerteza incómoda, semelhante à sensação provocada pelo barco quando dá um solavanco e estendemos uma mão à procura de um apoio que não se encontra onde supostamente deveria estar. De modo que procurou tranquilizar-se prestando atenção aos objectos que tinha à sua volta. Passou junto de um quadro enorme, Colombo e os seus homens em terra junto de uma cruz, bandeirolas ao fundo e o azul das Caraíbas com os indígenas inclinando-se diante do descobridor, ignorantes do que os esperava; e virou à direita, detendo-se diante dos expositores com instrumentos náuticos. A colecção era estupenda e admirou a balestilha, os quadrantes, os cronómetros Arnold e a extraordinária colecção de astrolábios, octantes e sextantes dos séculos XVIII e XIX pelos quais, sem dúvida, alguém estaria disposto a pagar muito mais do que ele tinha obtido pelo seu modesto Weems & Plath.
Havia poucos visitantes no museu, mais amplo e luminoso do que julgava recordar. Um velhote estudava minuciosamente um grande mapa oblongo de Gibraltar, um casal de jovens com aspecto estrangeiro olhava para os expositores da Sala dos Descobrimentos, e um grupo de colegiais ouvia as explicações do professor no aposento ao fundo, dedicado ao resgate do galeão San Diego. A claridade zenital das grandes clarabóias do tecto iluminou Coy, enquanto deambulava pelo pátio central. Se não estivesse obcecado pela lembrança da mulher que o tinha trazido até ali, teria apreciado deveras os modelos de navios de linha e as fragatas, completamente equipados ou em secções de meio casco, que mostravam a sua complexa arquitectura interior; não voltara a vê-los desde a sua última visita ao museu, há vinte anos, quando se acedia ao recinto pela Calle Montalbán e ele era ainda estudante de náutica. Apesar do tempo decorrido, reconheceu acto contínuo e com prazer o seu preferido dessa altura: um navio do século XVIII de três pontes e cento e cinquenta canhões, com quase três metros de comprimento, conservado num expositor gigantesco; o modelo de um barco que não chegou a sulcar os mares porque nunca se construiu. Aqueles eram marinheiros, disse para consigo como tantas outras vezes o fizera, estudando a enxárcia, o velame e a mastreação do barco à escala, admirando as longas gáveas por onde homens duros e desesperados deviam avançar mantendo o equilíbrio sobre cabos instáveis que corriam ao longo delas, prendendo a vela a meio de temporais e de combates, com o vento e a metralha silvando e o mar implacável em baixo, junto ao convés que oscilava sob os mastros. Por um momento, Coy deixou-se transportar para o navio, abstraído no sonho de longas perseguições ao amanhecer, a uma luz indecisa, de velas fugitivas no horizonte. Quando não existia o radar, nem os satélites, nem a sonda eléctrica, e os barcos eram cascas de noz dançando na boca do inferno, e o mar, um perigo mortal. Mas também, ainda, um refúgio inexpugnável face a todas as coisas, aos problemas, às vidas já vividas e por viver, às mortes pendentes ou consumadas que se deixavam para trás, em terra. «Chegámos demasiado tarde a um mundo demasiado velho», lera uma vez nalgum livro. Chegámos demasiado tarde, evidentemente. Chegámos a barcos e a portos e a mares que são demasiado velhos, quando os golfinhos moribundos fogem da proa dos barcos, Conrad escreveu vinte vezes A Linha de Sombra, Long John Silver é uma marca de whisky e Moby Dick se transformou na baleia boa de um filme de desenhos animados.
Junto da réplica, à escala natural, de um pedaço de mastro do navio Santa Ana, Coy cruzou-se com um oficial da marinha: vestia um uniforme impecável da Armada, tinha bom aspecto e ostentava nos punhos a coca(1) no terceiro galão dourado de capitão-de-fragata. O marinheiro olhou fixamente para Coy, que susteve o olhar até o outro desviar os olhos e os seus passos se afastarem em direcção ao fundo da sala.
Depois decorreram vinte minutos. Pelo menos uma vez em cada minuto tentou concentrar-se nas palavras que iria pronunciar
*1. Coca: movimento helicoidal do terceiro galão dos capitães-de-fragata da marinha mercante espanhola. (N. da T.)
quando ela aparecesse, se o chegasse a fazer. E nas vinte vezes acabou bloqueado, entreaberta a boca como se deveras a tivesse pela frente, incapaz de alinhavar o início de uma frase coerente. Estava na sala dedicada à batalha de Trafalgar, sob um óleo que representava uma cena de combate naval — o Santa Ana contra o Royal Sovereign — e de improviso o formigueiro voltou a percorrer-lhe o estômago, assestando-lhe, e essa era a palavra exacta, uma necessidade imperiosa de fugir dali. Pica a amura, imbecil, disse para si próprio. E com isso pareceu acordar de um sonho e quis sair espavorido escadas abaixo, para meter a cabeça debaixo de uma torneira de água fria e sacudi-la até desanuviar a confusão que reinava lá dentro. Maldito seja eu, censurou-se. Maldito seja eu até à quinta geração. Senhora Soto. Nem sequer sei se vive com um homem ou se é casada.
Deu a volta, retrocedendo indeciso. Os seus olhos detiveram-se por acaso na inscrição de um expositor: Sabre de abordagem usado por Dom Carlos de La Rocha no combate de Trafalgar, como comandante do navio Antilla... Nessa altura ergueu os olhos e viu Tânger Soto atrás de si, reflectida no vidro. Viu-a ali imóvel, calada, sem a ter ouvido chegar, olhando-o com uma expressão entre surpreendida e curiosa, tão irreal como da primeira vez. Tão imprecisa como uma sombra que estivesse presa dentro do expositor, e não fora dele.
Coy não era um homem sociável. E já dissemos que isso, juntamente com alguns livros e uma visão precocemente lúcida dos ângulos obscuros do ser humano, o levara desde muito cedo para o mar. No entanto, esse ponto de vista, ou posição, não era de todo incompatível com uma certa candura que às vezes despontava nas suas atitudes, na sua forma de ficar quieto ou silencioso olhando para os outros, na forma um pouco desajeitada de agir em terra firme, ou na forma sincera, perplexa, quase tímida, do seu sorriso. Tinha embarcado muito jovem, empurrado mais por intuições que por certezas. Mas a vida não manobra com a precisão de um bom navio, e as amarras foram caindo ao mar pouco a pouco, embrulhando-se às vezes nas hélices, ou atraindo consequências. A esse respeito, houve mulheres, evidentemente. E também houve algumas delas que passaram para além da pele, até à carne, ao sangue e à consciência, realizando no conjunto as operações físicas e químicas pertinentes, bálsamos analgésicos e estragos indispensáveis. LPPC: Lei do Pagamento Pontual do seu Custo. Por essa altura, aquela esteira já não passava disso: pontadas indolores na memória do marinheiro sem barco. Lembranças precisas, mas também indiferentes, mais parecidas à melancolia dos anos longínquos — tinham decorrido oito ou nove desde a última mulher importante para Coy — do que ao sentimento de verdadeira perda material, ou de ausência. No fundo, aquelas sombras só continuavam ancoradas à sua memória porque pertenciam ao tempo em que, para ele, tudo estava no princípio. Quando, no seu flamante casaco de tecido azul e nos ombros das suas camisas brilhavam galões novos, quando passava muito tempo a admirá-los da mesma forma que admirava o corpo de uma mulher nua, e a vida era uma carta náutica nova e crepitante, com todos os avisos à navegação actualizados, lustrosa superfície branca ainda não marcada pelo lápis e pela borracha. Quando ele próprio, perante a visão da linha do horizonte, sentia ainda, por vezes, o desejo vago de pessoas ou de coisas que o esperavam aí. O resto, a dor, a traição, as censuras, as noites intermináveis-acordado junto de costas silenciosas, eram nesse tempo apenas rochas submersas, baixios assassinos que espreitavam o seu momento inevitável, sem que nenhuma carta informasse, em chamada à parte, a eventualidade da sua presença. A verdade é que não sentia falta em concreto dessas sombras de mulher, sentia falta de si próprio, ou melhor, do homem que era nessa altura. Talvez aquela fosse a única razão pela qual essas mulheres ou essas sombras, últimos portos conhecidos da sua vida, voltavam às vezes, esfumadas no contorno da memória, em encontros fantasmagóricos ao entardecer, quando ele dava longos passeios junto ao mar, em Barcelona. Quando subia a ponte de madeira do Puerto Viejo, enquanto o Sol poente avermelhava os cumes de Montjuich, a torre de Jaime I, os molhes e as passadeiras de embarque da Transmediterránea, e Coy procurava nos antigos molhes e cabeços de amarração as cicatrizes deixadas sobre a pedra e sobre o ferro por milhares de amarras e cabos de aço, por barcos afundados ou despedaçados há décadas. Às vezes pensava naquelas mulheres, ou na sua lembrança, quando rodeava pelo exterior o centro comercial ou os cinemas Maremagnum, entre outros homens e mulheres solitários, isolados, absortos no entardecer, que dormitavam nos bancos ou sonhavam olhando para o mar, com as gaivotas a planar sobre a popa de pesqueiros que passavam pela água vermelha sob a Torre do Relógio; junto de uma escuna velhíssima sem velas nem enxárcia que Coy recordava sempre no mesmo sítio, ano após ano, com as suas madeiras gretadas, desbotadas pelo vento, o Sol, a chuva e o tempo. E que o fazia pensar com frequência que barcos e homens deveriam afundar e desaparecer na sua hora, no mar alto, em vez de apodrecerem amarrados em terra.
Agora, Coy falava há cinco minutos, quase sem interrupção. Estava sentado junto de uma janela do primeiro andar do Museu Naval e, quando se voltava um pouco, os seus olhos abarcavam os ramos verdes dos castanheiros estendendo-se ao longo do Paseo del Prado, na direcção da Fonte de Neptuno. Deixava cair as palavras como quem preenche um vazio que só é incómodo se os silêncios se prolongam demasiado. Falava devagar e sorria levemente, quando se calava por um instante antes de voltar a falar. A sua incerteza esfumara-se mal entreviu o rosto no vidro. Fazia os seus comentários num tom tranquilo, novamente senhor de si, com o objectivo de evitar as pausas e adiar possíveis perguntas. Às vezes desviava os olhos para o exterior e depois voltava-se novamente para a mulher. Um assunto em Madrid, dizia. Uma diligência oficial, um amigo. Por casualidade, o museu ficava ali. Dizia qualquer coisa, tal como fizera da primeira vez em Barcelona, com a timidez franca que lhe era própria. E ela ouvia e calava-se, a cabeça um pouco inclinada e as pontas assimétricas do cabelo louro roçando-lhe o queixo. E os olhos escuros com reflexos azulados, que pareciam novamente azul-marinho, fixos em Coy. No leve sorriso, sincero, que desmentia a casualidade das suas palavras.
— E é tudo — concluiu.
Isso não era nada, pois nada dissera ou fizera ainda, excepto aproximar-se da doca com muito cuidado, as máquinas devagar a vante, enquanto esperava que o piloto subisse a bordo. Não era nada, e Tânger Soto sabia-o tão bem como ele.
— Não me digas...! —disse ela.
Estava apoiada na beira da mesa do seu escritório, com os braços cruzados, continuando a olhá-lo pensativa, com a mesma fixidez anterior; mas agora também sorria um pouco, como se quisesse gratificar o seu esforço, ou a sua calma, ou a sua forma de encará-la sem afastar os olhos, sem alardes presunçosos ou evasivas forçadas. Como se apreciasse aquela forma de ficar diante dela, de pronunciar as palavras imprescindíveis para justificar a sua presença, e depois permanecer imóvel, com o olhar e o sorriso limpos, sem pretender enganá-la ou enganar-se, esperando pelo veredicto.
E agora foi ela quem falou. Fê-lo sem afastar os olhos dele, interessada em verificar o efeito das palavras, ou talvez do tom de voz com que as ia pronunciando uma atrás da outra. Falou com naturalidade e um vago reflexo de afecto, ou de agradecimento, a roçar-lhe os lábios. Falou daquela noite estranha de Barcelona, do prazer que sentia ao vê-lo de novo. E, por fim, ficaram a observar-se, dito tudo o que era possível dizer até esse momento. E Coy soube outra vez que tinha chegado o momento de ir embora, ou de arranjar um assunto, um pretexto, alguma maldita coisa que lhe permitisse prolongar a situação. Ou de ela o acompanhar à porta agradecendo-lhe a visita, ou de lhe dizer que não fosse embora ainda. De modo que, lentamente, se pôs de pé.
— Espero que aquele indivíduo não tenha voltado a incomodar-te.
— Quem?
Tinha demorado mais um segundo do que o necessário a responder, e ele apercebeu-se.
— O do rabicho e dos olhos bicolores — levantou dois dedos que levou à cara, apontando para os seus. — O dálmata.
— Ah, esse...
Não esclareceu mais nada de momento, mas Coy viu endurecerem-se-lhe as linhas da boca.
— Esse — repetiu ela.
Tanto podia estar a pensar naquele indivíduo, como a ganhar tempo para escapar à tangente. Coy meteu as mãos nos bolsos do casaco e deu uma vista de olhos em redor. O escritório era pequeno e luminoso, com uma pequena tabuleta ao pé da porta: Secção IV. T. Soto. Investigação e aquisições. Havia uma gravura antiga com uma paisagem marinha pendurada na parede, e uma grande prancha de madeira num cavalete com gravuras, planos e cartas náuticas. Também um armário envidraçado cheio de livros e arquivadores, capas com documentos em cima da mesa de trabalho, e um computador, cujo ecrã estava rodeado de pequenas folhas autocolantes, escritas numa letra redonda, de colegial aplicada, que Coy identificou facilmente — trazia o cartão dela no bolso — pelos grandes círculos que pontuavam os «is».
— Não voltou a incomodar-me — acabou ela por concluir, como se lhe tivesse sido necessário um esforço de memória.
— Não parecia resignar-se a perder o Urrutia.
Viu que ela semicerrava os olhos. A sua boca ainda se mantinha dura.
— Encontrará outro.
Coy observava-lhe a linha do pescoço, que descia até à blusa aberta de cor creme. A corrente de prata continuava a brilhar lá dentro e ele perguntou a si próprio o que estaria pendurado na outra extremidade. Se se trata de metal, pensou, deve estar diaboli-camente quente.
— Ainda não sei — disse — se o atlas era para o museu ou para ti. A verdade é que aquele leilão foi...
Calou-se de súbito, porque tinha visto o Urrutia. Estava, com outros livros de grande formato, dentro do armário envidraçado. Reconheceu facilmente as suas capas de pele com adornos dourados.
— Era para o museu — respondeu ela. E passado um segundo acrescentou: — Naturalmente.
Tinha seguido a direcção dos olhos de Coy e olhava também agora para o atlas. A luz da janela traçava o contorno do seu perfil pintalgado.
— Dedicas-te a isso?... A adquirir coisas?
Viu como se inclinava um pouco para a frente, fazendo oscilar as pontas do cabelo. Vestia sobre a blusa um casaco de lã cinzento, desabotoado, e sob a saia, comprida e escura, sapatos pretos de tacão muito baixo e meias também pretas que a faziam parecer ainda mais magra e alta do que era. Uma rapariga de boa cepa, confirmou ele, apercebendo-se de que a via sob luz natural pela primeira vez. Mãos fortes e voz educada. Sã, correcta. Tranquila. Pelo menos na aparência, pensou olhando para os bordos rombos e irregulares das unhas.
— De certa forma, é esse o meu trabalho — concordou ela passado um instante. — Ver catálogos de leilões, controlar o comércio de antiguidades, visitar outros museus e viajar quando aparece alguma coisa interessante... Depois, faço um relatório e os meus superiores decidem. A fundação dispõe de um fundo bastante limitado para investigação e novas aquisições e eu tento fazer que o invistam convenientemente.
Coy fez uma careta. Recordava o duelo áspero no leilão de Claymore.
— Pois o teu amigo dálmata morreu matando. O Urrutia custou-vos os olhos da cara...
Viu que ela suspirava, o ar entre fatalista e divertido, e depois anuía abanando a cabeça, voltando as palmas das mãos para cima para indicar que tinha voado até o último cêntimo. Com este gesto, Coy reparou novamente no insólito relógio masculino, de aço, que usava no pulso direito. Não tinha mais nada, nem anéis, nem pulseiras. Nem sequer os pequenos brincos de ouro que usara há três dias, em Barcelona.
,— Custou-nos caríssimo. Não costumamos gastar tanto... Sobretudo porque neste museu já temos muita cartografia do século XVIII.
— É assim tão importante?
Ela inclinou-se novamente na beira da mesa e por um brevíssimo instante permaneceu assim, cabisbaixa, antes de erguer o rosto com uma expressão diferente. A luz matizou outra vez as marcas douradas do seu rosto e Coy pensou que, se desse um passo em frente, poderia, talvez, decifrar o aroma daquela geografia salpicada e enigmática.
— Imprimiu-o, em 1751, o geógrafo e marinheiro Ignacio Urrutia Salcedo — explicava ela agora —, após cinco anos de trabalho. Foi a melhor ajuda para os navegantes até ao aparecimento do Atlas Hidrográfico de Tofirio, muito mais preciso, em 1789. Restam poucos exemplares em bom estado, e o Museu Naval não tinha nenhum.
Abriu a porta envidraçada do armário, tirou o pesado volume e colocou-o, aberto, em cima da mesa. Coy aproximou-se e observaram-no em conjunto. E ele pôde confirmar o que pressentira desde o início. Não havia rasto, decretou, de água-de-colónia ou de perfume. Cheirava apenas a um corpo limpo e tépido.
— É um bom exemplar — disse ela. — Entre os alfarrabistas e os antiquários abundam pessoas sem escrúpulos e, quando deparam com um, destroem-no para vender as páginas soltas. Mas este está intacto.
Passava as grandes páginas com cuidado, e o papel estalava entre os seus dedos, grosso, branco e bem conservado, apesar dos dois séculos e meio decorridos desde a sua impressão. Atlas Marítimo das Costas de Espanha, leu Coy no frontispício minuciosamente gravado com uma paisagem marítima, um leão entre as colunas com a legenda Plus Ultra e diversos instrumentos náuticos: Dividido em dezasseis cartas esféricas e doze planos, desde Baiona em França até ao cabo de Creux... Tratava-se de um conjunto de cartas de navegação e planos de portos, tudo impresso em grande formato e encadernado para facilitar a sua conservação e manuseamento. O volume estava aberto na carta que abarcava o sector entre o cabo de San Vicente e Gibraltar, traçado em pormenor, que incluía as respectivas medidas em braças e uma minuciosa sinalização de indicações, referências e perigos. Coy seguiu com o dedo o perfil da costa entre Ceuta e o cabo Espartel, detendo-se no lugar marcado com o nome da mulher que tinha ao lado. Depois subiu para norte, até à ponta de Tarifa e prosseguiu para noroeste detendo-se novamente no baixo da Aceitera, muito mais bem definido, com as suas cruzinhas marcando os perigos, do que a passagem entre os ilhéus Terson e Mowett Grave nos levantamentos modernos do Almirantado britânico. Conhecia bem as cartas do estreito de Gibraltar. Quase tudo coincidia com bastante exactidão, e não pôde deixar de admirar o rigor do traçado, mais que razoável para os trabalhos hidrográficos da época, tão distantes ainda da imagem por satélite e, mesmo, dos avanços técnicos dos finais do século XVIII. Viu que cada carta tinha as escalas de latitude e longitude pormenorizadas em graus e minutos, a primeira à direita e esquerda da gravura, e a segunda graduada quatro vezes em relação a quatro meridianos diferentes: Paris e Tenerife na parte superior, Cádis e Cartagena na inferior. Naquele tempo, recordou, ainda não se tinha adoptado como referência universal de longitude o meridiano de Greenwich.
— Está muito bem conservado — admirou-se.
— Está perfeito. Ninguém navegou com este exemplar a bordo.
Coy folheou algumas páginas: Carta esférica da costa de Espanha que compreende de Águilas e do monte Cope até a torre Herradora ou Horadada com todos os seus baixos, pontos e enseadas... Também conhecia de cor aquele cenário, que era o da sua infância. Uma costa escarpada, hostil, de estreitas enseadas rochosas com escolhos entre pequenos alcantilados. Percorreu as distâncias sobre o papel grosso: cabo Tinoso, Escombreras, cabo de Agua... O traçado era quase tão perfeito como na carta do estreito.
— Há um erro — disse de súbito. Olhou-o, mais interessada que surpreendida.
— Tens a certeza?
— Claro.
— Conheces esta costa?
— Nasci aí. Até fiz mergulho, tirando ânforas e coisas do fundo.
— Também és mergulhador?
Coy deu um estalo com a língua, abanando a cabeça numa negativa.
— Nada profissional — sorria um pouco, em jeito de desculpa. — É os trabalhos de Verão e de férias.
— Mas tens experiência...
— Bom... — encolheu os ombros. — Quando era mais novo, talvez. Mas há muito tempo que não me atiro à água.
Ela inclinara a cabeça, observando-o pensativa. Depois, voltou a cravar os olhos no ponto da carta onde ele ainda tinha o dedo.
— E qual é o erro?
Disse-o. O levantamento de Urrutia situava o cabo de Paios dois ou três minutos de meridiano mais a sul do que ficava na realidade. Coy tinha dobrado tantas vezes aquele cabo que recordava bastante bem a sua posição nas cartas. Os 37° 38' de latitude real — não podia precisar nesse momento os segundos exactos — convertiam-se na carta em 37° 36', mais ou menos. Sem dúvida, fora-se corrigindo em traçados posteriores, mais pormenorizados e com melhores instrumentos, até chegar à precisão actual. De qualquer forma, acrescentou, algumas milhas náuticas de diferença não implicavam nada importante numa carta esférica de 1751.
Ela mantinha-se em silêncio, com os olhos fixos na gravura. Coy encolheu os ombros:
— Suponho que essas imprecisões lhe dão encanto... Tinhas um limite para licitar em Barcelona ou podias continuar indefinidamente?
Continuava com as duas mãos apoiadas na mesa, ao lado dele, olhando para a carta. Parecia absorta e demorou a responder à pergunta.
— Havia um limite, evidentemente — acabou por dizer. — O Museu Naval não é o Banco de Espanha... Felizmente, o preço estava dentro do possível.
Coy riu-se um pouco, devagar, e ela levantou os olhos, inquisitiva.
— No leilão — disse ele — pensei que isto era para ti um assunto pessoal... Refiro-me à tenacidade com que licitaste.
— Claro que era pessoal — agora parecia irritada. Voltava a olhar para a carta como se alguma coisa nela lhe chamasse a atenção. — Este é o meu trabalho — abanou ligeiramente a cabeça, para afastar algum pensamento que não expressou em voz alta. — A aquisição do Urrutia recomendei-a eu.
— E o que vão fazer com ele?
— Assim que o tiver completamente revisto e catalogado, farei reproduções para uso interno. Depois, passará para a biblioteca histórica do museu, como tudo o resto.
Soaram umas pancadinhas discretas na moldura da porta e Coy viu o capitão-de-fragata com quem se cruzara anteriormente numa das salas. Tânger Soto desculpou-se, foi até ao corredor e esteve alguns instantes falando com ele em voz baixa. O recém-chegado era maduro e bem-posto, e os botões dourados e os galões davam-lhe um aspecto distinto. De vez em quando, voltava-se para observar Coy, com uma curiosidade não isenta de receio. Este não apreciava esses olhares, nem o sorriso excessivo com que condimentava a conversa. De modo que suspirou amargamente para o seu íntimo. Como boa parte dos marinheiros mercantes, não apreciava os da marinha de guerra; pareciam-lhe demasiado engomados, praticavam a endogamia casando-se com filhas de outros colegas da marinha de guerra, atulhavam a igreja aos domingos e costumavam ter demasiados filhos. Além disso, já não faziam abordagens nem batalhas nem nada, e ficavam em casa com mau tempo.
— Tenho de deixar-te por alguns minutos — disse ela. — Não te vás embora.
Caminhou pelo corredor na companhia do capitão-de-fragata, que, antes de sair, dirigiu a Coy uma última e silenciosa olhadela. Este permaneceu no gabinete, olhando em volta, primeiro, outra vez, a carta de Urrutia e depois os objectos que estavam em cima da mesa, a gravura da parede — Vista 4? do combate de Tolón — e o conteúdo do armário. Ia sentar-se quando lhe chamou a atenção o grande cavalete com documentos, planos e fotografias que estava junto da mesa. Aproximou-se, sem outra intenção além de matar o tempo, descobrindo que, por baixo de algumas gravuras colocadas na parte superior, assomavam planos de barcos à vela: eram todos bergantins, verificou depois de dar uma vista de olhos ao conjunto dos mastros. Por baixo havia fotografias aéreas de lugares costeiros, reproduções de cartas náuticas antigas e também uma moderna: a número 46A do Instituto Hidrográfico da Marinha — do cabo da Gata ao cabo de Paios — que correspondia, em parte, à que estava no atlas aberto em cima da mesa. A coincidência fez Coy sorrir.
Um minuto depois ela estava de volta, desculpando-se com uma careta resignada. O meu chefe, disse. Consultas de alto nível sobre os turnos das férias. Tudo muito top secret.
— De modo que trabalhas para a marinha.
— Comoves... Observou-a, divertido.
— És, então, uma espécie de soldado.
— Nada disso. — O cabelo dourado movia-se de um lado para outro ao negar com a cabeça. — O meu posto é de funcionária civil... Depois de me licenciar em História, concorri. Estou aqui há quatro anos.
Depois de dizer aquilo ficou pensativa, olhando pela janela. Semicerrava novamente os olhos. Depois, muito devagar, como se tivesse alguma coisa na cabeça de que não conseguia libertar-se
completamente, voltou à mesa, fechou o atlas e foi colocá-lo no armário.
— O meu pai, sim. Era militar — acrescentou.
Havia uma nota de desafio, ou talvez de orgulho, nas suas palavras. Coy concordou intimamente. Isso explicava algumas coisas: uma certa forma de se mover, alguns gestos. Até aquela disciplina serena, um pouco altiva, pela qual parecia reger-se às vezes.
— Da marinha de guerra?
— Militar. Reformou-se como coronel, depois de passar quase toda a sua vida em África.
— Ainda é vivo?
— Não.
Falava sem vestígios de emoção. Era impossível saber se a incomodava ou não falar desse assunto. Coy estudou as íris azul-marinho e estas sustiveram o escrutínio, inexpressivas. Então, ele sorriu.
— Por isso te chamas Tânger.
— Por isso me chamo Tânger.
Passaram sem pressas diante do Museu do Prado e do gradeamento do Jardim Botânico antes de virarem à esquerda, subindo a ladeira da Cláudio Moyano, deixando para trás o tráfego ruidoso e a contaminação da praceta de Atocha. O Sol iluminava as barracas cinzentas e as bancas de livros escalonadas rua acima.
— O que vieste fazer a Madrid?
Ele olhava para o chão à frente dos sapatos. Já tinha respondido a essa pergunta assim que a vira no museu, antes que ela a formulasse. Todos os lugares-comuns e pretextos fáceis estavam enunciados, de modo que deu alguns passos sem dizer nada, e acabou por coçar o nariz.
— Vim ver-te.
Agora também não pareceu surpreendida nem curiosa. Vestia um casaco leve de bombazina, aberto sobre a blusa e, ao sair do gabinete, amarrara à volta do pescoço um lenço de seda em tons outonais. Voltando-se um pouco, Coy observou o seu perfil impassível.
— Porquê? — limitou-se ela a perguntar, num tom neutro.
— Não sei.
Percorreram mais um trecho do caminho sem quaisquer comentários. Por fim, pararam por acaso diante de um expositor onde se empilhavam romances policiais em segunda mão, como restos de naufrágios numa praia. Os olhos de Coy passaram por cima dos velhos volumes, sem prestar muita atenção: Agatha Christie, George Harmon Coxe, Ellery Queen, Leslie Charteris. Tânger agarrou num deles — Era Uma Senhora —, olhou-o um pouco com um ar ausente e voltou a colocá-lo no sítio.
— Estás louco — disse.
Prosseguiram. As pessoas passeavam a meio das bancas, procurando livros ou folheando-os. Os livreiros deixavam-nos fazê-lo, de olhos abertos atrás dos seus expositores ou de pé à porta das barracas. Vestiam guarda-pós, camisolas ou casacos, e tinham a pele curtida por anos de chuva, sol e vento. A Coy pareceram-lhe rostos de marinheiros encalhados num porto impossível, entre molhes de tinta e papel. Alguns liam, alheios ao público, sentados entre montes de exemplares usados. Alguns deles, os mais novos, cumprimentaram Tânger, que respondeu chamando-os pelos nomes. Olá, Alberto. Adeus, Boris. Um rapaz com tranças de hussardo e camisa aos quadrados tocava flauta e ela pôs uma moeda na boina que ele tinha aos pés, tal como Coy a vira fazer nas Ramblas, ao mimo cuja maquilhagem a chuva borrava.
— Passo por aqui todos os dias a caminho de casa. Às vezes compro alguma coisa... Não é curioso o que acontece com os livros velhos?... Ao contrário dos outros, estes escolhem-te a ti. Escolhem o seu comprador: olá, aqui estou, leva-me contigo. Dir-se-ia que estão vivos.
Deu uns passos e parou diante de O Quarteto de Alexandria: quatro volumes de capas deterioradas, a preço de saldo.
— Leste-o? — perguntou.
Coy fez um gesto negativo. Aquele Durrell com apelido de pilhas alcalinas não o aquecia nem arrefecia. Era a primeira vez que reparava em livros daquele fulano. Norte-americano, calculou. Ou inglês.
— Tem alguma coisa sobre o mar? — perguntou, mais cortês que interessado.
— Não, que eu saiba — ela ria-se, baixinho e com suavidade. — Embora de algum modo Alexandria não deixe de ser um porto...
Coy tinha lá estado e não recordava nada de especial: o calor dos dias sem brisa, as gruas, os estivadores deitados à sombra dos contentores, a água suja chapinhando entre o casco e o molhe, as baratas que esmagava de noite ao descer a terra. Um porto como qualquer outro, excepto quando o vento sul trazia nuvens de pó avermelhado que se metia por toda a parte. Nada que justificasse quatro tomos. Tânger tocava no primeiro com o indicador e ele leu o título: Justine.
— Todas as mulheres inteligentes que conheço — disse ela — quiseram ser Justine alguma vez.
Coy olhou para o livro com ar estúpido, ponderando se devia comprá-lo ou não, e se o livreiro o obrigaria a adquirir os quatro. Na realidade, os que lhe chamavam a atenção eram outros que estavam perto: O Barco da Morte, de um tal B. Traven, e a trilogia da Bounty: O Motim, Homens contra o Mar e A Ilha de Pitcairn num só volume. Mas ela continuava a andar; viu-a sorrir novamente, dar mais alguns passos e entreter-se folheando distraída outra maltratada edição em brochura — O Bom Soldado, leu Coy; aquele Ford Madox Ford já lhe soava, porque tinha escrito A Aventura a meias com Joseph Conrad. Por fim, Tânger voltou-se para olhar fixamente para ele.
— Estás louco — repetiu.
Ele voltou a coçar o nariz e não disse nada.
— Não me conheces — acrescentou ela passado um momento. — Ignoras tudo sobre mim.
Tinha novamente uma ponta de dureza na voz. Coy olhou para um lado e para outro. Curiosamente não se sentia intimidado, nem deslocado. Tinha ido vê-la, fazendo o que julgou que devia fazer. E teria dado qualquer coisa para ser um homem elegante, de palavra fácil; com alguma coisa para oferecer, nem que fosse o dinheiro certo para comprar os quatro tomos do quarteto e para a convidar a jantar nessa noite num restaurante caro, tratando-a por Justine ou pelo que ela quisesse ser tratada. Mas não era o seu caso. Por isso se calava, ali plantado com a maior simplicidade de que era capaz, limitando-se a sorrir um pouco, daquela forma que era ao mesmo tempo sincera e ausente, quase tímida. E isso não era muito, mas era tudo.
— Não tens qualquer direito de aparecer assim. De te pores à minha frente com cara de bom rapaz... Já te agradeci pelo que aconteceu em Barcelona. O que pretendes que faça agora?... Que te leve para casa como um desses livros?
— As sereias — disse ele, de súbito. Olhou-o, surpreendida.
— O que se passa com as sereias?
Coy ergueu um pouco as mãos e deixou-as cair novamente.
— Não sei. Cantavam, diz Homero. Atraíam os marinheiros, não é verdade?... E eles não conseguiam evitá-lo.
— Porque eram idiotas. Iam direitos aos recifes, despedaçando o barco.
— Já lá estive — a expressão de Coy ensombrara-se. — Já estive nos recifes e não tenho barco. Demorarei algum tempo para voltar a tê-lo, e agora não tenho nada melhor para fazer.
Voltou-se para ele com brusquidão, abrindo a boca como se quisesse dizer alguma coisa desagradável. As suas pupilas faiscavam, agressivas. Aquilo durou um instante e, nesse espaço de tempo, Coy despediu-se mentalmente da sua pele pintalgada e de todo o sonho singular que o trouxera até ela. Talvez devesse ter comprado o dessa Justine, disse tristemente para si próprio. Pelo menos tentaste-o, marinheiro. Pena o sextante. Depois, dispôs-se a sorrir. Sorrirei em qualquer caso, diga o que disser, mesmo quando me mandar para o inferno. Ao menos, que seja essa a última coisa que recorde de mim. Oxalá consiga sorrir como o chefe dela, aquele capitão-de-fragata de botões reluzentes. Oxalá não me saia uma careta muito crispada.
— Valha-me Deus — disse ela então. — Nem sequer és um homem bonito.
O BARCO PERDIDO
Detestava café. Tinha bebido milhares de chávenas quentes ou frias em vigílias intermináveis de madrugada, em manobras difíceis ou decisivas, em horas mortas entre carga e descarga nos portos, em momentos de tédio, tensão ou perigo; mas desagradava-lhe aquele sabor amargo ao ponto de só conseguir suportá-lo com leite e açúcar. Na realidade, usava-o como estimulante, da mesma forma que outros bebem um copo ou acendem um cigarro. Mas ele já não fumava há muito tempo. Quanto aos copos, muito raramente bebera álcool a bordo de um barco; e em terra quase nunca ultrapassava a marca Plimsoll, a linha de carga de umas duas genebras azuis. Só bebia de forma deliberada e consciente quando as circunstâncias, a companhia ou o lugar prescreviam grandes doses. Nesses casos, como boa parte dos marinheiros que conhecia, era capaz de ingerir quantidades extraordinárias de qualquer coisa, com as consequências que isso acarretava em sítios onde os maridos velam pela virtude das suas mulheres, os polícias mantêm a ordem pública, e os seguranças dos clubes nocturnos procuram que os clientes se comportem devidamente e não se esfumem sem abonar a conta.
Nessa noite não era o caso. Os portos, o mar e o resto da sua vida anterior estavam muito longe da mesa atrás da qual estava sentado, na porta da pensão da Plaza de Santa Ana, olhando para as pessoas que passavam pelo passeio ou conversavam nas esplanadas dos bares. Tinha pedido uma genebra com água tónica para apagar o sabor do café da chávena pegajosa que tinha à frente — derramava-o sempre, desajeitado, ao rodar a colherinha — e permanecia recostado na cadeira, com as mãos nos bolsos do casaco e as pernas esticadas debaixo da mesa. Estava cansado, mas adiava o momento de ir para a cama. Telefono-te, dissera ela. Telefono-te esta noite, ou amanhã. Deixa-me pensar um pouco. Tânger tinha um compromisso incontornável naquela tarde, e um jantar à noite; de modo que teria de esperar até vê-la novamente. Disse-o à hora de almoço, depois de a ter acompanhado até ao cruzamento da Alfonso XII com o Paseo Infanta Isabel e de se ter despedido ali mesmo, sem o deixar ir até à porta de casa. Deixara-o plantado, voltando-se para ele bruscamente, estendendo-lhe aquela mão firme que ele recordava bem, num aperto vigoroso. Coy perguntou-lhe para onde diacho pensava telefonar-lhe, se não tinha casa em Madrid, nem telefone, nem nada, e a sua bagagem estava no depósito da estação. Então yiu Tânger rir pela primeira vez desde que a conhecia. Um riso franco que lhe cercava os olhos de rugas pequeníssimas e que, paradoxalmente, a rejuvenesciam bastante, embelezando-a. Um riso simpático, como o de um garoto de quem temos vontade de nos aproximar, intuindo que pode ser um bom companheiro de brincadeiras ou de aventuras. Rira-se dessa forma, com a mão de Coy na sua, e depois pediu desculpa pelo despiste e olhou-o pensativa durante alguns segundos, com o último traço daquele riso desvanecendo-se na boca. Depois disse o nome da pensão da Plaza de Santa Ana onde vivera dois anos quando era estudante, em frente ao Teatro Espanol. Um sítio limpo e barato. Telefonar-te-ei, disse. Quer te veja ou não te veja nunca mais, telefonar-te-ei hoje ou amanhã. Dou-te a minha palavra de honra.
E ali estava ele, diante da chávena de café e molhando já os lábios na genebra com água tónica — não havia genebra azul no bar da pensão — que a empregada de mesa acabava de colocar-lhe à frente. Esperando. Não se mexera durante toda a tarde e jantou ali mesmo, sanduíche de vitela demasiado passada e uma garrafa de água mineral, depois de dizer onde o encontrariam caso lhe telefonassem. Também era possível ela aparecer pessoalmente; e essa eventualidade fazia-o vigiar a extremidade da praça, para a ver chegar pela Calle Huertas, ou por qualquer uma das ruas que subiam desde o Paseo del Prado.
No lado contrário ao dos automóveis estacionados na calçada, entre os bancos da praça, alguns mendigos conversavam, fazendo um círculo e passando entre si uma garrafa de vinho. Tinham estado a pedir pelas mesas das esplanadas e agora faziam contas à noite. Eram três homens e uma mulher, e um deles tinha um cãozinho aos pés. Da porta do Hotel Victoria, um segurança travestido de Robo-cop não lhes tirava os olhos de cima, com as mãos cruzadas atrás das costas e as pernas abertas, pespegadas no exacto lugar de onde, há apenas um instante, tinha enxotado a mulher que pedia esmola. Afastada pelo Robocop, esta veio ziguezagueando entre as mesas até Coy. «Dá-me qualquer coisa, colega», dissera numa voz apagada, olhando para a frente sem ver. «Dá-me qualquer coisa». Ainda era jovem, pensou agora vendo-a fazer a contabilidade com os seus companheiros e o cachorro. Ao dar-lhe a moeda, apesar da sua pele cheia de marcas, do cabelo louro acinzentado e dos olhos absortos no vazio, Coy tinha divisado rastos de uma antiga beleza na boca bem delineada, na curva do maxilar, na estatura, nas mãos magras, avermelhadas, com as unhas grandes e sujas. A terra firme apodrece os seres humanos, disse para consigo mais uma vez. Apodera-se deles e devora-os, tal como à escuna abandonada do Puerto Viejo. Olhou para as suas próprias mãos apoiadas nas pernas, descobrindo nelas os primeiros sintomas de decomposição. A lepra inevitável que a contaminação das cidades, o chão enganosamente sólido debaixo dos pés, o contacto com outras pessoas, o ar desprovido de sal traziam consigo. Espero encontrar um barco rapidamente, disse para si próprio. Espero encontrar alguma coisa que flutue para embarcar e ir para longe enquanto estou a tempo. Antes de contrair o vírus que corrompe os corações e lhes desorienta a agulha e os atira desgovernados contra a costa a sotavento e os perde.
— Chamam-no ao telefone.
Saltou da cadeira com uma celeridade que deixou a empregada estupefacta e percorreu o corredor que conduzia ao vestíbulo da pensão em grandes passadas. Um, dois. Contou mentalmente até cinco antes de atender, a fim de serenar o pulso acelerado. Três, quatro, cinco. Estou. Ela estava ao telefone e, na sua voz educada e tranquila, desculpava-se por telefonar-lhe tão tarde. Não, respondeu ele. Não era tarde, absolutamente. Estivera à espera do seu telefonema. Uma sanduíche na esplanada e começava, precisamente agora, com a sua genebra. Ela desculpou-se um pouco mais, ele insistiu em que a hora era tão boa como qualquer outra, e depois houve um breve silêncio do outro lado da linha telefónica. Coy apoiou uma mão no balcão, olhando para o traçado dos seus tendões e nervos, larga e achatada, os dedos muito abertos, curtos, fortes — uma mão pouco aristocrática — e esperou que ela falasse novamente. Estava deitada num sofá, pensou. Estava sentada numa cadeira. Deitada na cama. Estava vestida ou despida, em pijama ou camisa de dormir. Estava descalça, com um livro aberto ou com a televisão ligada em frente. Estava de barriga para baixo ou de costas, e a sua pele pintalgada tinha tons de ouro velho sob a luz de um candeeiro.
Lembrei-me de uma coisa, acabou ela por dizer. Lembrei-me de uma coisa que talvez te interesse. Tenho uma proposta a fazer-te. E pensei que talvez pudesses vir até a minha casa, agora.
Uma vez, navegando como terceiro-oficial, Coy cruzara-se com uma mulher num barco. O encontro durou alguns minutos, o tempo exacto que o iate — ela apanhava sol na popa — demorou a passar junto do Otago, um navio em cuja asa da ponte Coy olhava para o mar. Por todo o convés se ouvia o repicar monótono dos marinheiros martelando o casco para tirar o óxido de ferro, antes de aplicar zarcão e tinta. O navio mercante estava fundeado entre Malamocco e Punta Sabbioni; no outro lado do Lido podia ver o brilho do sol na lagoa veneziana e, ao fundo, a três milhas de distância, o Campanile e as cúpulas de São Marcos, e os telhados da cidade, oscilantes na reverberação da luz e da areia. Soprava um vento suave de poente, de oito a dez nós, que encrespava um pouco o mar calmo fazendo oscilar as proas dos barcos em direcção às praias salpicadas de guarda-sóis e às casinhas multicores dos banhistas; e essa mesma brisa trouxe do canal a escuna, amurada a estibordo com toda a branca elegância das suas velas desfraldadas em cima, fazendo-a deslizar a cem jardas de Coy. Este precisou dos binóculos para a ver melhor, admirando a finura das linhas do casco de madeira envernizada, a projecção da proa, a enxárcia e as ferragens reluzentes sob o Sol. Estava um homem ao leme e, atrás dele, junto ao remate da popa, uma mulher sentada lia um livro. Apontou para ela os binóculos: era loura, com o cabelo apanhado sobre a nuca, e o seu aspecto evocava mulheres vestidas de branco que facilmente poderíamos imaginar nesse mesmo lugar ou na Riviera francesa, no início do século. Mulheres belas e indolentes, protegidas sob a aba larga de um chapéu ou de uma sombrinha. Esfinges que semicerravam os olhos contemplando o mar azul, que liam ou silenciavam. Coy seguiu com avidez aquele rosto através do círculo duplo das lentes zeiss, estudando o perfil, o queixo inclinado, os olhos baixos concentrados na leitura, o cabelo esticado nas fontes. Noutros tempos, pensou, os homens matavam ou arruinavam as suas fortunas, vidas e reputação por mulheres como aquela. Quis ver as feições de quem talvez a merecesse e procurou quem ia ao leme; mas ele estava voltado para a outra borda, e só conseguiu ver um vulto confuso, um cabelo grisalho e uma pele bronzeada. A escuna afastava-se e, receoso de perder os últimos instantes, voltou a focar a mulher. Um segundo mais tarde, ela ergueu o rosto e olhou directamente para Coy através dos binóculos, através das lentes e da distância, cravando os seus olhos nos dele. Dirigiu-lhe um olhar nem fugaz nem demorado, nem curioso nem indiferente. Tão sereno e seguro de si que não parecia humano. E Coy perguntou a si próprio quantas gerações de mulheres seriam necessárias para olhar daquela forma. Naquele momento, sentiu uma vergonha terrível e baixou os binóculos, perturbado, por estar a observá-la tão de perto; até ter comprovado, já à vista desarmada, que a mulher estava demasiado longe para o ver a ele, e que aqueles olhos, que sentira penetrar até às suas entranhas, não passavam de uma vista de olhos casual, distraída, que ela dirigia de passagem ao barco ancorado que a escuna deixava para trás ao entrar no Adriático. E Coy ficou ali, com os cotovelos apoiados numa das asas da ponte vendo-a desaparecer. E quando, finalmente, reagiu e voltou a focar os binóculos, só conseguiu ver já o espelho da popa e o nome da embarcação pintado com letras pretas numa ripa de teca: Riddle. Enigma.
Coy não era muito inteligente. Lia muito, mas só sobre o mar. No entanto, tinha passado a sua infância entre avós, tias e primas, nas margens de outro mar fechado e velho, numa dessas cidades mediterrânicas onde, durante milhares de anos, as mulheres enlutadas se reuniam ao entardecer para falar em voz baixa e observar os homens em silêncio. Tudo aquilo lhe deixara um certo fatalismo atávico, alguns raciocínios e muitas intuições. E agora, diante de Tânger Soto, pensava na mulher da escuna. No fim de contas, disse para consigo, talvez uma e outra sejam a mesma, e a vida dos homens gire sempre em torno de uma só mulher: aquela onde se resumem todas as mulheres do mundo, vértice de todos os mistérios e chave de todas as respostas. A que maneja o silêncio como ninguém, talvez por essa ser uma linguagem que, há séculos, fala na perfeição. A que possui a lucidez sábia de manhãs luminosas, de ocasos vermelhos e mares azul-cobalto, temperada de estoicismo, tristeza infinita e fadiga para as quais — Coy tinha essa estranha certeza — uma única existência não basta. Era necessário, além disso e sobretudo, ser fêmea, mulher, para olhar com semelhante mistura de tédio, sabedoria e cansaço. Para dispor daquela penetração aguda como uma lâmina de aço, impossível de aprender ou de imitar, nascida de uma longa memória genética de vidas incontáveis, viajando como despojo de guerra no porão de naves côncavas e negras, com os músculos ensanguentados entre ruínas fumegantes e cadáveres, tecendo e desfazendo tapeçarias durante incontáveis Invernos, parindo homens para novas Tróias e esperando o regresso de heróis exaustos; de deuses com pés de barro a quem às vezes amava, amiúde temia e quase sempre, mais cedo ou mais tarde, desprezava.
— Queres mais gelo? — perguntou ela.
Fez que não com a cabeça. Há mulheres, concluiu quase assustado, que olham assim desde que nascem. Que olham como nesse momento olhavam para ele na pequena sala de estar, cujas janelas se abriam para o Paseo Infanta Isabel e para o edifício iluminado de tijolo e vidro da Estação de Atocha. Vou contar-te uma história, tinha dito ela mal abrira a porta, fechando-a atrás dele, antes de o levar para a sala de estar escoltado por um cão labrador de pêlo curto e dourado que agora estava ao pé, fixos em Coy os olhos escuros e tristes. Vou contar-te uma história de naufrágios e barcos perdidos — tenho a certeza de que gostas deste tipo de histórias — e tu não vais abrir a boca até eu acabar de contá-la. Não vais perguntar-me se é real ou inventada ou qualquer outra coisa, e vais ficar todo o tempo calado, bebendo essa água tónica seca porque, lamento comunicar-te, não tenho genebra na minha casa, nem azul nem de nenhuma outra cor. Depois farei três perguntas, às quais responderás sim ou não. Depois deixar-te-ei fazer uma pergunta, só uma, que será suficiente por esta noite, antes de ires dormir para a tua pensão... E isso será tudo. Estamos de acordo?
Coy respondera sem titubear, estamos de acordo, talvez um pouco perplexo, mas encaixando o assunto com razoável sangue-frio. Depois foi sentar-se onde ela lhe indicou: um sofá forrado num tecido cru sobre um tapete com bom ar, na sala de paredes brancas ocupada por uma cómoda, uma mesinha mourisca sob um candeeiro, um televisor com vídeo, duas cadeiras, uma fotografia numa moldura, uma mesa com um computador ao pé de um armário cheio de livros e de papéis, e uma mini-aparelhagem de som em cujos altifalantes Pavarotti — se calhar não era Pavarotti — cantava uma coisa semelhante a Caruso. Deu uma vista de olhos às lombadas de alguns livros: Os Jesuítas e o Motim de Esquilache. História da Arte e da Ciência de Navegar. Os Ministros de Carlos III. Aplicações de Cartografia Histórica. Mediterranean Spain Pilot. Exemplos de Uma Biblioteca. Navegadores e Naufrágios. Catálogo de Cartografia Histórica de Espanha do Museu Naval. Roteiro das Costas de Espanha no Mediterrâneo... Também havia romances e literatura em geral: Isak Dinesen, Lampedusa, Nabokov, Lawrence Durrell — o do Quarteto da Calle Cláudio Moyano — um livro chamado Fogo Verde, de um tal Peter W. Rainer, O Espelho do Mar de Joseph Conrad e outros mais. Coy não lera absolutamente nada daquilo, excepto o de Conrad. Chamou-lhe a atenção um livro em inglês com o mesmo nome do filme: The Maltese Falcon. Era um exemplar usado, velho, e na capa amarela havia um falcão preto e uma mão de mulher mostrando moedas e jóias.
— É a primeira edição — disse Tânger, ao ver que se detinha aí — ...publicada nos Estados Unidos no Dia de São Valentim de 1930, ao preço de dois dólares.
Coy tocou no livro. By Dashiell Hammet, dizia na capa. Au-thor ofThe Dain Curse.
— Vi o filme.
— Claro que o viste. Toda a gente o viu — Tânger apontou para uma prateleira. — Sam Spade teve a culpa de, pela primeira vez, eu ter sido infiel ao capitão Haddock.
Na prateleira, um pouco afastado do resto, estava o que parecia uma colecção completa de As Aventuras de Tintim. Junto da lombada de pano dos volumes, estreitos e altos, viu uma pequena taça de prata amolgada e um postal. Reconheceu o porto de Antuérpia, com a catedral ao fundo. A taça não tinha uma asa.
— Leste-os em criança?...
Ele continuava a olhar para a taça de prata. Troféu de natação infantil, 19... Era difícil ler a data.
— Não — disse. — Conheço-os e devo ter folheado algum, acho eu. Um meteorito que cai no mar.
— A Estrela Misteriosa.
— Deve ser esse.
O apartamento não era luxuoso mas estava acima da média, com poltronas de couro de boa qualidade e um quadro autêntico na parede, um óleo antigo numa moldura ovalada com uma paisagem de um rio e de uma barca bastante aceitável — apesar de levar, calculou, pouca vela para aquele rio e para aquele vento — e cortinas de bom gosto nas duas janelas que davam para a rua; e a cozinha, de onde ela tinha trazido a água tónica, o gelo e dois copos, tinha um ar limpo e luminoso, com um microondas à vista, um frigorífico, uma mesa e bancos de madeira escura. Estava vestida quase como nessa manhã, camisola fresca de algodão em vez de blusa, e não usava sapatos. Os pés, metidos nas meias pretas, moviam-se silenciosos pela casa, como os de uma bailarina, com o labrador pendente de cada passo. As pessoas não aprendem a mover-se assim, pensou Coy. Isso não se consegue aprender de uma forma consciente, nunca. Uma pessoa desloca-se, ou não se desloca, de uma maneira ou de outra. Uma mulher senta-se, fala, anda, inclina a cabeça ou acende um cigarro desta ou daquela maneira.
Algumas aprendem-se, outras não. Modos e modos. Ninguém consegue superar determinados limites mesmo que o queira, se não o tiver lá dentro. Maneiras determinadas. Gestos. Formas.
— Sabes alguma coisa sobre naufrágios?
A pergunta mudou os seus pensamentos e fê-lo rir em surdina, com o nariz dentro do copo.
— Nunca naufraguei completamente, se te referes a isso... Mas dá-me algum tempo.
Ela franzia o sobrolho, alheia à ironia.
— Refiro-me a naufrágios antigos — continuava a olhá-lo nos olhos. — De barcos afundados há muito tempo.
Coçou o nariz antes de responder que não muito. Lera alguma coisa, claro. E fizera mergulho junto de alguns deles. Também conhecia o tipo de histórias que costumam contar-se entre marinheiros.
— Ouviste falar alguma vez do Dei Gloria?
Por um instante puxou pela memória. O nome era-lhe desconhecido.
— Um veleiro de dez canhões — especificou ela. — Afundou-se diante da costa sudeste espanhola a 4 de Fevereiro de 1767.
Coy pousou o copo na mesinha baixa, e o movimento fez o cão vir lamber-lhe a mão.
— Vem cá, Xas — disse Tânger. — Não incomodes.
O cão nem se mexeu. Continuou ao pé de Coy, dando-lhe lambidelas, e ela achou necessário desculpar-se. Na realidade não era dela, disse. Era de uma amiga com quem partilhava o apartamento; mas a amiga tivera de ir para outra cidade há dois meses, por motivos de trabalho, e agora passava todo o tempo a viajar. Tânger herdara a sua metade da casa e Zas.
— Não tem importância — interpôs Coy. — Eu gosto de cães. Era verdade. Especialmente os de caça, que costumavam ser
leais e silenciosos. Durante algum tempo, na sua infância, teve um setter cor de canela que tinha o mesmo olhar que este; e também tinha havido um cão que subira para o Daggoo IV em Málaga, e que tinha ficado a bordo até uma onda o ter levado por alturas do cabo Bojador. Acariciou Zas atrás das orelhas, distraído, e o cão manteve-se perto da sua mão, abanando alegremente a cauda. Então, Tânger contou a história do barco perdido.
Chamava-se Dei Gloria, e era um bergantim. Tinha saído de Havana a 1 de Janeiro de 1767, com vinte e nove tripulantes e dois passageiros. A declaração da carga mencionava algodão, tabaco e açúcar com destino ao porto de Valência. Embora oficialmente pertencesse a um armador chamado Luis Fornet Palau, o Dei Gloria era propriedade da Companhia de Jesus. Conforme se comprovou mais tarde, aquele Fornet Palau era um testa-de-ferro dos jesuítas que dirigiam, recorrendo à sua mediação, uma pequena frota mercante encarregada de assegurar o tráfego de pessoas e o comércio que a Companhia, bastante poderosa nessa altura, mantinha com as suas missões, reduções e interesses nas colónias. O Dei Gloria era o melhor barco dessa frota, o mais rápido e o mais bem armado para um tráfego ameaçado pelos navios corsários ingleses e argelinos. Comandava-o um capitão de confiança chamado Juan Bautista Elezcano, biscainho de grande experiência, próximo dos jesuítas a ponto de o seu irmão, o padre Salvador Elezcano, ser um dos principais assistentes do geral da Ordem em Roma.
Após avançar os primeiros dias, dando bordos contra um vento contrário de este, o bergantim encontrou rapidamente os do terceiro e quarto quadrante, que o ajudaram a atravessar o Atlântico entre fortes rajadas e aguaceiros. O vento aumentou a sudoeste dos Açores, até se transformar num temporal que causou estragos nos mastros e fez que as bombas de extracção de água trabalhassem sem descanso. Desta forma, o Dei Gloria atingiu o paralelo 35 e continuou a navegar sem mais novidades em direcção a leste. Mais tarde fez um bordo em direcção ao golfo de Cádis, a fim de se resguardar dos levantes do estreito e, sem tocar nenhum porto, chegou ao outro lado de Gibraltar a 2 de Fevereiro. No dia seguinte dobrou o cabo da Gata, navegando para norte à vista da costa.
A partir desse ponto, as coisas começaram a complicar-se. Na tarde de 3 de Fevereiro avistara-se uma vela pela popa do bergantim. Avançava com rapidez, aproveitando o vento sudoeste, e rapidamente foi identificada por um chaveco que os alcançava. O capitão Elezcano manteve a velocidade do Dei Gloria, que navegava com bujarrona e velas recolhidas; mas estando o chaveco a pouco mais de uma milha observou alguma coisa suspeita no seu comportamento, pelo que fez largar mais vela. Nesse momento, o outro arriou a bandeira espanhola e, revelando-se como corsário, prosseguiu a sua caçada sem dissimulação. Era um barco com patente argelina, habitual nessas paragens, que, de vez em quando, mudava de bandeira e utilizava Gibraltar como base. Conforme se pôde determinar mais tarde, o seu nome era Chergui, e comandava-o um antigo oficial da Armada britânica, um tal Slyne, também conhecido por capitão Mizen, ou Misián.
Naquelas águas, o corsário gozava de uma vantagem triplicada. Por um lado, era mais rápido que o bergantim, ao qual as avarias sofridas no velame e na enxárcia limitavam a velocidade. Também navegava com o vento a favor, forçando o barlavento da sua presa para se interpor entre ela e a costa. Mas o mais decisivo era tratar-se de um barco de guerra de porte superior ao Dei Gloria, com uma numerosa tripulação de combate e, pelo menos, doze canhões face aos dez do bergantim, sendo estes de menor calibre e utilizados por marinheiros mercantes. Ainda assim, a caçada prolongou-se durante o resto do dia e da noite. De acordo com todos os indícios, não conseguindo chegar ao abrigo de Águilas por o Chergui lhe cortar essa rota, o capitão do Dei Gloria tentou chegar a Mazarrón ou Cartagena, procurando a protecção da artilharia dos seus fortes, ou a sorte de um barco de guerra espanhol que o socorresse. Mas a verdade é que ao amanhecer o bergantim tinha perdido um mastaréu, tinha o corsário em cima e não lhe restava outra opção senão arriar a bandeira ou iniciar o combate.
O capitão Elezcano era um marinheiro duro. Em vez de se render, o Dei Gloria abriu fogo assim que o corsário ficou na mira. O duelo de artilharia teve lugar poucas milhas a sudoeste do cabo Tinhoso. Foi breve e violento, quase penol a penol, e a tripulação do bergantim, apesar de não ser gente de guerra, bateu-se resolutamente. Algum tiro afortunado fez que a bordo do Chergui se declarasse um incêndio; mas o Dei Gloria tinha perdido o mastro do traquete, e o corsário tentou a abordagem. Os seus canhões causaram grandes prejuízos no bergantim que, com muitos mortos e feridos, metia água irremediavelmente. Nesse momento, por um dos acasos que acontecem no mar, o incêndio fez que o Chergui, quase abalroado à sua presa e com os homens na borda preparados para saltar, explodisse da proa à popa. A explosão matou todos os seus tripulantes e derrubou o outro mastro do bergantim, acelerando o seu afundamento. E ainda com os restos fumegantes do corsário sobre o mar, o Dei Gloria foi ao fundo como uma pedra.
— Como uma pedra — repetiu Tânger.
Tinha contado a história de uma forma precisa, sem inflexões nem adornos. O seu tom de voz, pensou Coy, era tão neutro como o de um noticiário da televisão. Não lhe passou despercebido o facto de ela ter seguido sem vacilar o fio da narração, relatando os pormenores sem uma única hesitação, nem sequer ao mencionar datas. Até a descrição da perseguição do Dei Gloria estava tecnicamente correcta. De modo que era evidente que, qualquer que fosse o motivo, ela tinha essa lição bem aprendida.
— Não houve sobreviventes do navio corsário — prosseguiu. — Quanto ao Dei Gloria, a água estava fria e a costa estava longe. Só um ajudante de piloto, de quinze anos, conseguiu nadar até um bote deitado à água antes do combate... Ficou à deriva, empurrado para sudeste pelo vento e pelas correntes, e foi resgatado um dia mais tarde, cinco ou seis milhas a sul de Cartagena.
Tânger fez uma pausa para procurar um maço de Players como o de Barcelona. Coy reparou que tirava minuciosamente o invólucro e colocava um cigarro na boca. Ofereceu-lhe e ele recusou com um gesto.
— Conduzido a Cartagena — ela inclinava-se para acender o seu cigarro com uma caixa de fósforos, protegendo a chama com as mãos em concha — o sobrevivente contou o que acontecera às autoridades da marinha. Mas não conseguiu averiguar-se muito mais, pois estava afectado pelo combate e pelo naufrágio. E, no dia seguinte, quando ia ser novamente interrogado, o rapaz desaparecera... De qualquer forma, dera dados importantes para esclarecer o sucedido. Indicou, também, com precisão, o local do afundamento, pois o capitão do Dei Gloria tinha mandado situar-se ao alvorecer e o próprio rapaz foi encarregado de anotar a posição no caderno da bitácula. Tinha mesmo no bolso do casaco, e pôde mostrá-lo, o papel onde tinha apontado a lápis os dados de latitude e de longitude... Disse também que as cartas usadas a bordo, sobre as quais o piloto do barco efectuara os cálculos desde que ficaram à vista da costa espanhola, eram as de Urrutia.
Parou novamente enquanto expelia o fumo, com uma mão segurando o cotovelo do outro braço, erguido para suster o cigarro entre os dedos. Fê-lo, como se pretendesse dar tempo a Coy para imaginar o alcance daquela última referência, feita num tom de voz tão desapaixonado como o restante. E ele coçou o nariz, sem dizer nada. Então era isso, pensava, o que estava por trás daquela história: um barco afundado e um mapa. Depois abanou a cabeça e esteve prestes a desatar a rir em voz alta, não por incredulidade — aquelas histórias podiam conter tanta verdade como quimera, sem que uma excluísse outra —, mas por puro e simples prazer. A sensação era quase física: um mar, um mistério. Uma mulher bonita contando-lhe tudo isso com a maior das tranquilidades e ele ali sentado, ouvindo. O menos importante era a história do Dei Gloria ser ou não o que ela julgava que era. Para Coy tratava-se de outra coisa, de um sentimento que o enternecia por dentro, como se, de repente, aquela mulher estranha tivesse levantado uma ponta do véu, uma abertura por onde espreitava um pouco da matéria singular com que se tecem certos sonhos. Isso talvez tivesse muito a ver com ela e com as suas intenções, que ele desconhecia. Mas, sobretudo, tinha muito a ver com ele. Com o que leva certos homens a pôr um pé à frente do outro e a percorrer os caminhos que conduzem ao mar, deambulando pelos portos e sonhando pôr-se a salvo atrás do horizonte. Por isso, Coy sorriu sem dizer nada e reparou que ela semicerrava os olhos um pouco mais, como se lhe incomodasse o fumo do seu próprio cigarro. Mas soube que o que a desconcertava era justamente aquele sorriso. Ele não era um intelectual, nem um sedutor e carecia das palavras adequadas. Tinha também consciência do seu físico tosco, das suas mãos rudes e dos seus modos. Mas ter-se-ia levantado nesse momento, indo até ela para lhe tocar no rosto, beijar os olhos, a boca, as mãos, se não achasse que esse gesto seria pessimamente interpretado. Para a deitar no tapete, aproximar os lábios do seu ouvido e agradecer-lhe em voz baixa tê-lo feito sorrir como quando era pequeno. Por ser uma mulher bonita e fasciná-lo daquela forma. Por lhe ter recordado que existe sempre um barco afundado, uma ilha, um refúgio, uma aventura, um lugar algures no outro lado do mar, na linha difusa que mistura os sonhos com o horizonte.
— Esta manhã — disse ela — comentaste que conhecias bem essa costa... É verdade?
Olhava-o inquisitiva, imóvel, com o cotovelo ainda apoiado numa das mãos e o cigarro, levantado, entre os dedos. Gostaria de saber, pensou ele, como cortará esse cabelo para ficar tão assimétrico e, ao mesmo tempo, tão perfeito. Gostaria de saber como diacho o fará.
— Essa é a primeira das três perguntas?
— Sim.
Levantou um pouco os ombros.
— Claro que é verdade. Quando era miúdo nadava naquelas enseadas e, mais tarde, percorri aquele litoral centenas de vezes, numa navegação de cabotagem muito próxima da costa e também mar adentro.
— Serias capaz de determinar uma posição com cartas antigas? Prática. Essa era a palavra. Aquela era uma mulher prática: pão
pão, queijo queijo. Qualquer pessoa diria, considerou divertido, que estava prestes a oferecer-lhe um emprego.
— Se te referes ao Urrutia, cada possível imprecisão de um minuto na latitude ou na longitude significa uma milha de erro... — ergueu uma mão movendo-a à sua frente, como se tirasse referências numa carta imaginária. — No mar é sempre bastante relativo, mas posso tentar.
Ficou a pensar sobre isso. As coisas começavam a posicionar-se, pelo menos algumas delas. Zas voltou a dar-lhe uma lambidela, quando estendeu a mão para o copo que estava em cima da mesinha.
— No fim de contas — bebeu um gole — é a minha profissão. Ela tinha cruzado as pernas e balançava um dos pés descalços,
cobertos pelas meias pretas. Inclinava a cabeça um pouco para um lado, olhando-o. E, por esta altura, Coy já sabia que esse gesto indicava reflexão ou cálculo.
— Trabalharias para nós? — continuava a observá-lo intensamente por entre o fumo do cigarro. — Quero dizer, pagando-te, evidentemente.
Ele estava há quatro segundos com a boca aberta.
— Referes-te ao museu e a ti?
— É isso.
Pousou o copo, fechou a boca, contemplou os olhos leais de Zas e depois passou os olhos pelo aposento. Lá em baixo, na rua, no outro lado de uma bomba de gasolina Repsol e da Estação de Atocha, distinguia-se, intermitentemente iluminado, o traçado complexo de inúmeros carris.
— Pareces indeciso — murmurou ela, antes de sorrir depreciativamente. — ...Pena.
Inclinou-se para deixar cair a cinza num cinzeiro, e o movimento esticou-lhe a camisola, moldando-lhe o corpo. Deus do céu, pensou Coy. Quase que dói olhá-la. Pergunto a mim próprio se também terá sardas no peito.
— Não é isso — disse. — O que estou é atónito — retorceu a boca. — Não creio que esse capitão-de-fragata, teu chefe...
— Isso é um problema meu — interrompeu ela. — Posso escolher os meus colaboradores.
— Não creio que a marinha tenha falta disso. De gente competente que não encalhe os seus barcos.
Observou-o demoradamente e ele disse para consigo: acabou-se, amigo. Levanta-te e veste o casaco porque a senhora vai pôr-te na rua. Coisa que mereces, por armares em engraçado e seres língua de palmo. Por seres anormal e imbecil.
— Ouve, Coy — era a primeira vez que pronunciava o nome dele olhando-o nos olhos, e ele verificou que gostava de ouvi-lo daquela forma e naquela boca. — Eu tenho um problema. Investiguei, controlo a teoria, possuo os dados... Mas falta-me o necessário para o resolver. O mar é uma coisa que conheço através dos livros, do cinema, da praia... Do meu trabalho. No entanto, existem páginas, ideias, que podem ser tão intensas como ter vivido um temporal em alto-mar ou encontrar-se com Nelson em Abukir ou Trafalgar... Por isso preciso de mais alguém comigo... Alguém que me sirva de apoio prático. De ligação à realidade.
— Isso eu posso compreender perfeitamente. Mas ser-te-ia muito fácil pedir à marinha tudo o que fosse necessário.
— E foi o que fiz: pedir-te a ti. És civil e estás só — estudava-o, apreciativamente, entre as espirais de fumo do cigarro. — Para mim tens muitas vantagens. Se te contratar, controlo-te... Estou no comando. Compreendes?
— Compreendo.
— Com militares isso seria impossível.
Coy concordou. Aquilo era óbvio. Ela não tinha galões no punho, mas a menstruação cada vinte e oito dias. Porque de certeza que, além disso, ela era desse tipo. Nem um dia a mais ou a menos. Bastava olhar para ela, uma loura de ideias fixas. Para ela, dois e dois eram sempre quatro.
— Mesmo assim — disse — imagino que terás de lhes prestar contas.
— Claro. Mas enquanto isso disponho de autonomia, de um prazo de três meses e de algum dinheiro para gastar... Não é muito, mas é suficiente.
Coy tornou a dar uma vista de olhos pela janela. Lá em baixo, ao longe, as luzes de um comboio aproximavam-se da estação como uma longa serpente de janelinhas iluminadas. Pensava no capitão-de-fragata e em Tânger, olhando-o como agora olhava para ele, convencendo-o, com aquela panóplia de silêncios e de olhares que manejava tão bem, para que intercedesse junto do almirante de turno.,Um projecto interessante, Dom Fulano. Jovem competente. Filha, a propósito, do coronel Beltrano. Rapariga bonita, diga-se de passagem. Uma das nossas. Perguntou a si próprio a quantas licenciadas em História, funcionárias de um museu por concurso, dariam, assim, de bom grado, carta branca para procurar um barco perdido.
— Porque não? — acabou por dizer.
Recostara-se na cadeira, acariciando novamente Zas atrás das orelhas. Sorria, divertido com a situação. No fim de contas, três meses junto dela significavam um lucro fabuloso em troca do sextante Weems & Plath.
— No fim de contas — acrescentou, como se reflectisse — não tenho nada melhor para fazer.
Tânger não parecia nem satisfeita nem decepcionada. Inclinara apenas um pouco a cabeça, tal como noutras vezes, e as pontas dos cabelos voltavam a roçar-lhe a cara. Os olhos dela não perdiam pitada de Coy.
— Obrigada.
Disse-o por fim, quase em voz baixa, quando ele começava a interrogar-se porque permanecia ela calada.
— De nada. — Coy coçava o nariz. — E agora é a minha vez... Prometeste-me uma pergunta com a sua resposta... O que procuram exactamente?
— Já o sabes. Procuramos o Dei Gloria.
— Isso é óbvio. A minha pergunta é porquê. Refiro-me ao que procuras tu.
— Museu Naval à parte?
— Museu Naval à parte.
A luz do candeeiro incidia obliquamente no seu perfil pintalgado, intensificando o efeito das espirais de fumo do cigarro quase consumido. O jogo de luz e sombras dava ao seu cabelo tons de ouro mate.
— Aquele barco anda a obcecar-me há muito tempo. E agora julgo saber onde está.
Então era isso. Coy esteve prestes a dar uma palmada na testa pela sua estupidez. Olhou para a fotografia na moldura. Tânger adolescente, cabelo claro, sardas e uma camisola larga sobre umas coxas morenas e nuas, encostada ao peito de um homem de meia-idade, camisa branca, cabelo curto e pele bronzeada. Ele, com uns cinquenta anos, calculou. Ela, talvez catorze. Via-se ao fundo uma paisagem com praia e mar e também se tornava evidente uma grande semelhança entre a rapariga da fotografia e aquele homem: a forma da testa, o queixo decidido. Tânger sorria para a máquina fotográfica e a expressão dos seus olhos na fotografia era muito mais luminosa e clara do que aquela que lhe conhecia agora. Parecia expectante, como se estivesse prestes a descobrir alguma coisa, um embrulho, um presente ou uma surpresa. Coy tentou lembrar-se. LSM: Lei do Sorriso Minguante. Talvez a vida sorria dessa forma aos catorze e depois o tempo nos vá gelando a boca.
— Cuidado. Já não há tesouros afundados.
— Enganas-te — olhava-o com severidade. — Às vezes há. Para o convencer, falou durante algum tempo dos caçadores de
tesouros. Esses tipos existiam de facto, com os seus planos antigos e os seus segredos, e iam e vinham procurando coisas escondidas no fundo do mar. Podiam ser vistos no Arquivo das índias de Sevilha, inclinados sobre velhos maços de papéis, ou aparecendo com ar casual nos museus e nos portos, tentando sondar as pessoas sem dar pistas nem levantar suspeitas. Ela própria tinha conhecido vários, que iam ao número cinco do Paseo del Prado tentando dissimular as suas intenções, à caça deste ou daquele indício, tentando ver alguma coisa nos arquivos ou consultar antigas cartas marítimas, semeando uma cortina de dados falsos para camuflar os seus verdadeiros objectivos. Um deles, italiano e não muito agradável, tinha chegado ao extremo de começar a namorar uma colega sua para ter acesso a documentos reservados. Tratava-se de gente singular, interessante, aventureira à sua maneira, sonhadora ou ambiciosa. Na sua maior parte pareciam estudiosos ratos de biblioteca, gordinhos de óculos e tipos do estilo, sem qualquer semelhança com os indivíduos musculosos, bronzeados, cheios de tatuagens, que apareciam nos filmes e nas reportagens da televisão. Nove em cada dez perseguiam sonhos impossíveis, e só um em cada mil conseguia o seu objectivo.
Coy acariciou Zas novamente, contemplando os olhos fiéis do animal. Sentia no pulso a sua respiração agradecida. Húmida.
— Esse barco não transportava nenhum tesouro, a não ser que me tenhas mentido. Algodão, tabaco e açúcar, disseste.
— É verdade.
— E também disseste um em cada mil, não foi isso?
Ela concordava por entre o fumo. Deu outra passa no cigarro e voltou a concordar. Olhava através de Coy como se não o visse.
— Ouve. O Dei Gloria também levava a bordo um mistério. Aqueles dois passageiros, a intervenção do corsário... Compreendes? Há mais qualquer coisa. Li a declaração do sobrevivente nos arquivos da marinha... Algumas peças não encaixam. E depois, o seu desaparecimento súbito... Esfumado no ar.
Tinha apagado o cigarro, esmagando-o no cinzeiro até à última partícula de brasa se ter extinguido. É uma rapariga obstinada, disse Coy para consigo. Nenhuma que não o fosse andaria de tal forma metida nisto, nem teria aqueles olhos de jogadora de póquer, nem apagaria os cigarros com tanto esmero como se os assassinasse. Esta sabe perfeitamente o que quer. E eu, para bem ou para mal dos meus pecados, estou no seu caminho.
— Há tesouros — disse ela — que não se traduzem em dinheiro.
Coy deu outra vista de olhos pela janela na direcção dos carris intermitentemente iluminados na distância, e observou depois a bomba de gasolina que havia em baixo, no outro lado da rua, a meio caminho entre a entrada do prédio e a estação. Estava um homem parado à frente da bomba de gasolina e pareceu-lhe que olhava para cima. Mas de um quinto andar era difícil garanti-lo. No entanto, alguma coisa na sua atitude ou na sua aparência lhe era familiar.
— Esperas alguém?
Ela estudou-o surpreendida, sem dizer nada, antes de se levantar e de se dirigir devagar até ele. Observava-o com atenção, não à janela. E, por fim, ao chegar, dirigiu o olhar para baixo. Ao fazê-lo, o cabelo roçou-lhe o queixo escondendo-lhe a cara. Ergueu maquinalmente uma mão para o afastar, e Coy ficou a olhar para o seu perfil, que o nariz partido endurecia, iluminado pela claridade da rua. Parecia preocupada.
— Esse homem está aí há um bocado — disse ele.
Tânger continuava a olhar para baixo, sem dizer nada. Sustinha a respiração que acabou por expelir de chofre, em jeito de gemido ou enfado. A sua expressão tornara-se sombria.
— Conhece-lo? — perguntou Coy.
Silêncio administrativo. Esfinge, caraça veneziana, máscara as-teca. Muda, como os fantasmas do Chergui e do Dei Gloria.
— Quem era o tipo do rabo-de-cavalo?... Porque discutiam naquela noite, em Barcelona?
Zas olhava alternadamente para um e para outro, abanando a cauda com satisfação. Tânger manteve-se imóvel ainda alguns segundos, como se não tivesse ouvido a pergunta. Agora apoiava uma mão no vidro, deixando ali a marca dos seus dedos. Estava muito próxima e Coy sentiu de novo o seu cheiro a carne morna e limpa. Uma ligeira erecção começou a pressionar o bolso esquerdo das suas calças de ganga. Imaginou-a nua, apoiada naquela mesma janela, com a luz da rua iluminando-lhe a pele. Imaginou que lhe arrancava a roupa e a voltava para ele, e que ela o deixava fazê-lo. Imaginou que lhe pegava ao colo e a levava até ao sofá, ou até à cama que se adivinhava no quarto ao lado, com Zas abanando a cauda, afectuosamente, do umbral. Imaginou que enlouquecia e que a seguia até ao farol do fim do mundo, entre ventos e naufrágios, e que ela pretendia dele mais do que simplesmente usá-lo. Imaginou tudo isso e muito mais, como uma sequência montada aos retalhos. Fê-lo rápida, ardente, desesperadamente, até que, de repente, deu conta de que ela estava a observá-lo e de que a expressão dos seus olhos era a mesma que a da mulher a bordo da escuna, diante de Veneza, quando ele a espiava através dos binóculos e julgou, apesar da distância, que lhe penetravam no pensamento.
— Prometi-te apenas uma resposta — acabou ela por dizer — e já houve suficientes por esta noite... O resto terá de esperar.
Queria ir para a cama com aquela mulher, pensou enquanto descia pelas escadas saltando os degraus dois a dois. Queria fazê-lo não uma mas muitas, infinitas vezes. Queria contar todas as sardas dela com os dedos e com a língua e depois deitá-la de costas, abrir suavemente as suas coxas, meter-se nela e beijá-la na boca enquanto o fazia. Beijá-la devagar, sem pressa, sem angústias, até suavizar, tal como o mar molda a rocha, aquelas linhas de dureza que tão distante a faziam parecer às vezes. Queria pôr faíscas de luz e de surpresa nos seus olhos azul-marinhos, alterar-lhe o ritmo da respiração, provocar o latejar e o tremor da sua carne. E espreitar, atento na penumbra, como um franco-atirador paciente, aquele momento feito de brevidade fugaz, de intensidade egoísta, em que uma mulher fica absorta em si própria e tem o rosto de todas as mulheres nascidas e por nascer.
Este era o estado de espírito de Coy quando chegou à rua já passada a meia-noite, com a erecção recolhendo-se sem vontade ao seu frio ninho de solteiro. Por isso não teve nada de estranho que, em vez de seguir passeio abaixo pela sua direita, olhasse para um lado e para outro do Paseo Infanta Isabel, atravessasse sob um dos semáforos que nesse momento estavam vermelhos, e fosse direito ao homem que continuava junto a um dos postes iluminados da bomba de gasolina. No fundo — e na forma — Coy não era adepto de brigas. Durante as mais estrepitosas das suas descidas a terra, naquele tempo feliz em que ainda tinha barcos de onde descer, limitara-se a ser actor involuntário, comparsa e camarada. Desses que estão com os amigos e o ambiente aquece e, com um copo na mão, pensam «aqui vai haver confusão, imersão, aú, aú, imersão», e poucos segundos depois se vêem dando e recebendo socos sem quê nem porquê. Isso acontecia sobretudo nos tempos do Torpedeiro Tucumán e da Tripulação Sanders, quando Coy voltava para o barco com um olho negro, dia sim, dia não, no frio amanhecer portuário, com a gola do casaco levantada, andando por molhes húmidos que reflectiam luzes amareladas junto dos telheiros, das gruas e das silhuetas escuras dos barcos amarrados: três, quatro, dez homens sonolentos, cambaleantes, carregando, às vezes, companheiros que arrastavam os pés e sempre algum que ficava para trás à beira do coma etílico e que, perdida a orientação, os seguia de longe, fazendo perigosos «S» junto aos cabeços de amarração, à beira da água. Tripulação Sanders: Jan Sanders era o desenhador das ilustrações humorísticas dos calendários de pinturas navais Sigma, protagonizados por uma tripulação de marinheiros bêbados, putanheiros e chungas que odiavam o capitão, um pequeno tirano de grandes bigodaças, e que passeavam as suas catástrofes, broncas e naufrágios por todos os mares e por todos os bordéis do mundo. Fora dos calendários, a Tripulação Sanders era composta pelo próprio Coy, o galego Neira e o chefe das máquinas Goros-tiola, aliás Torpedeiro Tucumán, quando os três navegavam em barcos da Zoeline, entre a América Central e o Norte da Europa, e tanto padeciam em ancoradouros e portos das Caraíbas a ritmo tropical, como tiritavam de frio em Nova Iorque, Hamburgo ou Roterdão, quando o vento gelado varria o convés e a ponte, e o mercúrio desaparecia dos termómetros. Os três eram a «tripulação» básica, de serviço, embora sempre se lhes associasse alguém em função do porto visitado. Neira media dois metros e pesava noventa e cinco quilos, e o Torpedeiro tinha poucos centímetros a menos e alguns quilos a mais. Isso era útil e até tranquilizador em lugares como o Panamá, onde, ao descer a terra, se aconselhava a não ultrapassar a loja franca no fim do embarcadouro, porque a partir daí havia sempre pistolas e navalhas à espera. Quando ia entre aqueles dois energúmenos, Coy parecia um anão. Possuíam braços como cabos de vinte polegadas, mãos como pás de hélices e uma forte tendência para partir coisas, garrafas, bares, caras, a partir do quinto whisky. Por onde passavam — com Coy a reboque — a erva não voltava a crescer. Como naquele bar de Copenhaga cheio de homens louros e de mulheres louras que no fim eram também homens louros, onde o Torpedeiro Tucumán se tinha aborrecido porque, ao meter a mão, deparou com umas boas quinhentas gramas do que não esperava. E, depois de alguns minutos de refrega, ele e Neira agarraram em Coy cada um pelo seu braço, suspendendo-o ao alto e, com ele no ar, entre os dois empreenderam a fuga, a trote, rumo ao porto e ao barco, com meia dúzia de polícias — inevitavelmente louros — pisando-lhes os calcanhares. Juro-vos que pensei que era uma gaja, repetira sem parar o Torpedeiro, uf, uf, uf, já sem fôlego a meio do galope, enquanto do outro lado Neira escarnecia do assunto, e até o próprio Coy dava gargalhadas, apesar do lábio recém-aberto, com o Torpedeiro olhando-os de soslaio, bastante melindrado. Que nem vos passe pela cabeça contá-lo a ninguém, entendido? Que nem vos passe pela cabeça, uf, uf. Cabrões.
O caso é que agora o tipo da bomba de gasolina estava imóvel, vendo-o aproximar-se. Coy dirigiu-se para ele, com as mãos nos bolsos do casaco e sentindo uma intensa energia interior, uma exaltação vital que lhe dava vontade de falar alto, de cantar com força, ou de brigar, com Tripulação Sanders ou sem ela. Estava apaixonado como um bezerro, tinha consciência da situação, e isso, em vez de o inquietar, estimulava-o. Do seu ponto de vista, os marinheiros de Ulisses, que tapavam os ouvidos com cera para não ouvirem o canto das sereias, estavam longe de saber o que perdiam. No fim de contas, contava o velho refrão, marinheiro sem nada que fazer, procura barco ou procura mulher. E essa justificação valia o mesmo que qualquer outra. A aventura, ou o que diabo aquilo fosse, incluía no mesmo pacote um barco, mesmo que estivesse afundado, e uma mulher. Quanto às consequências dos passos, actos e conflitos a que o barco, a mulher e o seu próprio estado de espírito o conduziam irremediavelmente, nesse instante — segundo os seus pensamentos traduzidos em palavras — tudo isso lhe importava a ponta de um corno.
Desta forma, chegou à bomba de gasolina e foi directo ao fulano que montava guarda sob o poste iluminado e, à medida que diminuía a distância, voltou a ter a certeza familiar que sentira ao observá-lo da janela. E quando já estava quase ao lado dele, e o outro o via aproximar-se com um receio evidente, começou a aduchar as amarras e veio-lhe à memória o indivíduo baixinho do leilão,
o mesmo que, mais tarde, tinha julgado ver nas arcadas da Plaza Real e que agora, sem sombra de dúvidas, estava novamente diante dele, com um casaco a três quartos esverdeado, como se estivesse preparado para uma imitação burlesca de uma manhã de caça em Sussex. Isso da imitação burlesca era acentuado pela sua pequena estatura, bem como pelas feições que Coy recordava bem: olhos esbugalhados, expressão melancólica. Contrastava ainda mais com a indumentária inglesa o seu aspecto marcadamente mediterrânico: os olhos e o bigode muito pretos, o cabelo penteado com gel e reluzente nos lados, a pele citrina, meridional.
— Que diacho pretendes?
Colocou-se um pouco de lado, por causa das coisas, as mãos um pouco separadas do corpo e os músculos tensos, pois já vira mais de uma vez como indivíduos baixinhos davam um salto e se engalfinhavam com homenzarrões grandes como armários, ou sacavam de uma navalha e retalhavam à má fila a femoral, antes de estes terem tempo de abrir a boca. De qualquer forma, aquele estava longe de ter o perfil, talvez porque a roupa lhe conferia um toque entre formal e grotesco, como um cruzamento de Danny de Vito com Peter Lorre acabado de vestir-se na Barbour para dar uma volta pela campina inglesa num dia chuvoso.
— Perdão?
O fulano sorria, triste. Coy reparou num ligeiro sotaque sul-americano. Argentino talvez. Ou uruguaio.
— Um encontro pode ser casualidade — disse. — Dois, coincidência. Três, chateia-me como o caraças.
O outro pareceu pensar na questão. Reparou que usava um laço com o nó muito bem feito e que os seus sapatos castanhos reluziam, impecáveis.
— Não sei do que me está a falar — acabou por dizer.
Tinha sorrido um pouco mais. Uma careta cortês e um pouco desgostosa. Tinha cara de boa pessoa, de tipo amável, que o bigode tornava antiquada. Os seus olhos esbugalhados sorriam também, fixos em Coy.
— Falo — disse este — de que estou farto de te ver em toda a parte.
— Repito-lhe que não entendo a que se refere — o tipo continuava a olhar para ele com muito aprumo. — ...Em qualquer caso, se de alguma forma o incomodei, creia que o lamento.
— Vais lamentar ainda mais se não me disseres o que pretendes. O outro ergueu as sobrancelhas, como se aquelas palavras o
surpreendessem. Parecia sinceramente magoado com a ameaça. Não é próprio, dizia o seu semblante. Não é adequado um bom rapaz como tu dizer essas coisas.
— Negociemos, Dom Inodoro(1) — disse.
— De que merda estás a falar?
— Quero dizer, cavalheiro, que não percamos a doçura do carácter.
Pronunciava «cavatchero», com «tche» em vez de «lh». E está a gozar-me, pensou Coy. Este filho da puta está a rir-se no meu nariz. Hesitou um instante entre dar-lhe um murro na cara, ali mesmo, ou empurrá-lo para um canto e revistar-lhe os bolsos, para ver quem era o sacana. Estava quase a decidir-se quando viu que o responsável da bomba de gasolina tinha saído da sua guarita e os observava, curioso. A ver se meto a pata na poça, disse para consigo. A ver se armo um escândalo, e nos travamos de razões, não havendo maneira depois de consertar a loiça partida. Olhou para cima, para as janelas do último andar. Estavam todas apagadas. Ela desinteressara-se ou continuava lá, sem luz que delatasse a sua presença, observando. Coy coçou o nariz, perplexo. Mas que situação! Nessa altura, viu que o anão melancólico se deslocara um pouco na direcção do passeio e mandava parar um táxi. Tal como um peão de xadrez que mudasse de casa.
Ficou durante algum tempo diante do posto de gasolina, contemplando as janelas apagadas do quinto andar. Estão a preparar-me uma rasteira das boas, pensava. Com direito a público e picadores. E eu deixo-me embarcar como um ucraniano bêbado.
*1. Dom Inodoro: É uma referência a Inodoro Pereyra, uma personagem de banda desenhada humorística, criada pelo escritor argentino Roberto Fontanarrosa, um anti-herói gaúcho sempre acompanhado pelo seu cão Mendieta, cuja frase recorrente é «Negociemos, don Inodoro.» (N. da T.)
Calculou que Tânger ainda estava lá em cima, observando-o às escuras, mas não conseguiu descobrir o mínimo movimento. Ainda permaneceu imóvel um pouco mais, voltado para cima, de certeza que ela tinha visto tudo, enquanto reprimia o impulso de subir novamente para lhe pedir explicações. Trás, trás. Um par de galhetas com as costas da mão, ela contra o sofá. Posso esclarecer tudo e, além disso, amo-te. Depois, lágrimas e uma boa queca. Perdoa-me ter-te tomado por um imbecil, etc. Blá, blá, blá.
Pestanejou voltando a si, a meio de um suspiro que foi quase um gemido. Sem dúvida existem regras para tudo isto, aventurou. Regras que eu não conheço, mas ela sim. Ou talvez regras que ela própria estabelece. E talvez incluam que o momento de seguir em frente ou de ir embora seja este: adeus tudo bem e apague a luz ao sair, ou mais tarde não diga que não o avisámos, marinheiro. Fosse como fosse, alguém até estava a ser nobre com ele. A questão era avisar de quê. Avisar sobre quem.
Estava tão confuso que se pôs a andar na direcção da praceta próxima e depois subiu devagar pela Calle de Atocha. No primeiro bar aberto, à mão de semear — ali também não tinham genebra azul — ficou imóvel ao balcão, olhando para a bebida que tinha pedido, sem tocar nela. O bar era uma velha tasca com balcão de zinco, cadeiras de fórmica, uma televisão ligada e fotografias de Rayo Vallecano na parede. Não estava ninguém além do empregado, um homem magro, tatuado no dorso de uma mão, a quem a camisa cheia de nódoas dava um aspecto imundo enquanto varria com um ar despeitado a serradura do chão, cheio de guardanapos amachucados e cascas de gambás. Coy tinha à frente um espelho com publicidade da cerveja San Miguel e a sua cara reflectia-se entre a lista de petiscos e de doses escrita por cima com letras brancas. Via os seus olhos exactamente entre as palavras magro com tomate e polvo de escabeche, o que também não dava propriamente para levantar o ânimo a ninguém. Estudavam-no com desconfiança, interrogando-o sobre os passos que pensava dar nas próximas horas.
— Quero ir para a cama com ela — disse ao empregado.
— Todos queremos isso — respondeu o outro, filosoficamente, sem deixar de varrer.
Coy concordou e acabou por levar o copo à boca. Bebeu um pouco, voltou a olhar-se ao espelho e fez uma careta.
— O problema — disse — é que ela não joga limpo.
— Nunca o fazem.
— Mas é lindíssima. A grande cadela.
— Todas o são.
O empregado tinha deixado a vassoura num canto e, de regresso ao balcão, servia-se de uma cerveja. Coy viu-o beber devagar, meio copo sem respirar, e depois pôs-se a contemplar as fotografias de Rayo, até acabar no cartaz de uma corrida de touros efectuada em Las Ventas, há sete anos. Desabotoou o casaco e meteu as mãos nos bolsos das calças. Tirou algumas moedas, alinhando-as em cima do balcão e pôs-se a brincar, tentando introduzir uma entre duas sem mover uma nem tocar na outra.
— Estou a meter-me numa embrulhada.
Desta vez, o empregado não respondeu imediatamente. Observava a espuma da cerveja no rebordo do seu copo.
— De qualquer forma ela vale a pena — disse passado um instante.
— Ainda não sei — Coy encolhia os ombros. — Há um barco afundado, como nos filmes... E parece-me que até há maus.
O outro olhou para ele pela primeira vez. Parecia levemente interessado.
— Perigosos?
— Não faço a mais pequena ideia.
Ficaram calados durante mais um bocado. Continuou a brincar e bebeu alguns goles enquanto o empregado terminava a sua imperial, encostado à extremidade do balcão. Depois tirou um maço de cigarros da parte de baixo do balcão e pôs-se a fumar sem oferecer a Coy. A sua mão tatuada tinha quatro pontos azuis entre os nós do polegar e do indicador: uma marca prisional típica. Era jovem, de modo que não podiam ter sido muitos anos. Dois ou três, calculou. Quatro ou cinco.
— Parece-me — disse Coy — que vou para a frente com isto. O empregado concordou devagar e não disse nada. Então, Coy
deixou duas moedas no balcão, guardou as restantes e saiu para a rua.
LATITUDE E LONGITUDE
Zas abanava a cauda deitado no chão, com a cabeça apoiada sobre um sapato de Coy. Havia um raio de sol que entrava obliquamente pela janela, fazendo brilhar o pêlo dourado do labrador, e também o compasso de pontas, as réguas paralelas e o transferidor que estavam em cima da mesa, comprados naquela mesma manhã na Livraria Robinson. As paralelas e o transferidor eram Blundell Harling, e o compasso um W & HC de latão e aço inoxidável que Coy tinha pedido, com dois lápis, uma borracha, um caderno de folhas quadriculadas e as últimas edições actualizadas da lista de faróis e o Roteiro nº 2 do Instituto Hidrográfico da Marinha, relativo às costas espanholas do Mediterrâneo. Tânger Soto tinha pago com o seu cartão de crédito, e agora tudo aquilo estava em cima da mesa da sala de estar da casa do Paseo Infanta Isabel. O Atlas de Urrutia também estava ali, aberto na carta número doze, e Coy passava os dedos pela superfície ligeiramente rugosa do papel grosso, branco e intacto, sobrevivente a duzentos e cinquenta anos de guerras, catástrofes, incêndios e naufrágios. De monte Cope até a torre Herradora ou Horadada. O levantamento abarcava sessenta milhas da costa, horizontal e para este na direcção do cabo de Paios, e vertical para norte desde aí, como dois lados de um rectângulo, incluindo o lago de água salgada do mar Menor, separado do Mediterrâneo pela estreita franja de areia de La Manga. Excepto o erro que já tinha observado na primeira vez que viu a carta — Paios uns dois minutos ao sul da sua latitude real — o traçado da costa era rigoroso para a sua época: a ampla baía arenosa de Mazarrón a poente do cabo Tifioso, a costa de rochas e a enseada do Portús a levante, o porto de Cartagena com a cruzinha ameaçadora que marcava o baixio da ilha de Escombreras no canal, e depois, novamente, as rochas até à ponta de Paios e às sinistras ilhas Hormigas, com o único resguardo da baía de Portman, que a carta ainda mostrava isenta do lodo das minas que iriam entupi-la anos mais tarde. A gravura era de uma qualidade extraordinária, com pontilhados suaves e linhas finas para marcar os diversos acidentes geográficos. E tinha, tal como o resto das ilustrações do atlas, uma bela carteia situada no ângulo superior esquerdo: Apresentada ao Rei Nosso Senhor pelo Exmo. Sr. D. Xenón de Somodevilla, marquês da Ensenada, e construída pelo Sr. Capitão de navio, Dom Ignacio Urrutia Salcedo. Além da data — Ano de 1751 — a carteia continha também a indicação: Os números da sonda são braças de duas varas castelhanas. Coy pousou o dedo nessa linha e olhou interrogativamente para Tânger.
— Uma vara castelhana — disse ela — era formada por três dos chamados pés de Burgos. Eram oitenta e três centímetros e meio... Metade do que vocês, marinheiros, chamam braças. Seis pés davam uma braça espanhola.
— Um metro e sessenta e sete centímetros.
— É isso.
Coy abanou a cabeça, voltando os olhos para a carta, a fim de poder observar os minúsculos números que marcavam baixios de profundidade nas proximidades de ancoradouros, cabos e recifes. Agora, as sondas eram electrónicas e em meio segundo proporcionavam um relevo exacto do fundo do mar com as suas profundidades; mas em meados do século XVIII, aqueles dados só podiam ser obtidos mediante a tarefa laboriosa de sondar à mão com o prumo, uma retenida comprida com lastro de chumbo na extremidade. Se as sondas marcadas no Urrutia eram braças, seria necessário transformar em metros cada uma dessas indicações de profundidade, para as fazer coincidir com as cartas espanholas actuais. Cada duas unidades na carta de Urrutia convertia-se assim em três metros e meio, aproximadamente.
Havia duas chávenas de café vazias num dos lados da mesa, junto dos lápis e da borracha. Havia também um cinzeiro limpo e um maço dos cigarros ingleses que ela fumava às vezes. Soava música na mini-aparelhagem do armário, uma coisa antiga, talvez francesa ou italiana, muito agradável; uma melodia que fez Coy pensar em jardins com sebes recortadas geometricamente, fontes de pedra e palácios no fim de avenidas rectas. Olhou para o perfil da mulher por cima da carta náutica. Estava de acordo com ela, pensou. Aquela música era tão apropriada como a larga camisa caqui que trazia aberta sobre uma camisola de algodão branca, uma camisa masculina, militar, com grandes bolsos. A roupa informal ficava-lhe tão bem como a formal, com as calças de ganga que faziam pequenas pregas nas virilhas e ao pé dos joelhos, deixando à mostra os tornozelos nus — também cobertos de sardas, tinha verificado com delicioso estupor — por cima dos ténis.
Inclinando-se com atenção, Coy estudou as escalas de latitudes e longitudes. Desde que os Fenícios começaram a atravessar o Mediterrâneo, toda a ciência náutica foi orientada no sentido de facilitar ao marinheiro a sua posição na carta; estabelecida a posição, era possível conhecer a rota a seguir e os seus perigos. As cartas, os portulanos e os roteiros não passavam de guias úteis, manuais para aplicar fisicamente os cálculos astronómicos, geográficos, crono-métricos e a sua combinação, permitindo, de uma forma directa ou por estimativa, obter a situação nos meridianos — latitude norte ou latitude sul relativamente ao equador — e nos paralelos — longitude este ou longitude oeste, relativamente ao meridiano correspondente. A latitude e a longitude ajudavam a situar-se numa carta hidrográfica, utilizando as escalas situadas na margem desta. Escalas que nas cartas modernas eram pormenorizadas em graus, minutos e décimas, dos quais cada minuto equivalia a uma milha náutica convencional de 1852 metros. A posição nos paralelos era estabelecida usando a escala que figurava na parte superior e inferior de cada carta; e a posição nos meridianos, mediante a que estava à direita e à esquerda. Depois, com a ajuda dos azimutes da agulha e das réguas paralelas, faziam-se cruzar as linhas de ambas as posições, e era na sua intersecção, se os cálculos tivessem sido feitos correctamente, que estava o barco. A questão complicava-se com factores adicionais, como a declinação magnética, as correntes marítimas e outros elementos que exigiam cálculos complementares. Havia também uma grande diferença entre navegar com as cartas planas, usadas pelos antigos, onde meridianos e paralelos mediam o mesmo no papel, e navegar com cartas esféricas, mais ajustadas à forma real da Terra, com a distância entre meridianos diminuindo à medida que se aproximavam dos pólos. De Ptolomeu a Mercator, a transição tinha sido longa e complexa, e os levantamentos hidrográficos só começaram a aperfeiçoar-se nos finais do século XVIII, com a aplicação do cronometro marítimo para determinar a longitude. Quanto à latitude, essa era estabelecida desde sempre pela observação e declinação astronómica: a balestilha, o octante, o moderno sextante.
— Qual era a posição do Dei Gloria ao afundar-se?
— 4o 51' de longitude este... a latitude era de 37° 32' norte.
Ela tinha respondido sem titubear. Coy fez um gesto afirmativo e inclinou-se um pouco mais para estabelecer essas coordenadas na carta aberta em cima da mesa. Ao sentir o movimento, Zas agitou-se um pouco, levantou a cabeça e tornou a apoiá-la sobre o seu sapato.
— Deviam ter-se situado tirando azimutes a terra — disse Coy. — É o mais provável, se navegavam à vista da costa... Não os imagino, a meio da perseguição, medindo alturas do Sol com o octante. O nosso problema seria que se tivessem situado por cálculo... Isso é bastante relativo. Tem de ser calculada a velocidade, o rumo, o abatimento e as milhas percorridas. O erro pode ser grande. Nos tempos da vela, os marinheiros chamavam essa posição obtida por cálculo ponto de fantasia.
Ela olhava para ele. Séria, pensativa. Pendente de cada palavra.
— Navegaste muito à vela?
— Sim. Sobretudo quando era jovem. Durante um ano fui aluno a bordo do Estreita del Sur, uma escuna de velacho transformada em navio-escola. Também passei muito tempo no Carpanta, o veleiro de um amigo... E há os livros, claro. Romance e história.
— Sempre sobre o mar?
— Sempre.
— E a terra?
— A terra prefiro tê-la a vinte milhas do costado.
Tânger concordou, como se aquelas palavras confirmassem alguma coisa.
— O combate foi depois do amanhecer — indicou por fim. — Já havia luz.
— Então o mais provável é terem tomado referências de terra. Marcações. Bastar-lhes-ia cruzar duas para se situarem... Suponho que sabes como se faz.
— Mais ou menos — sorria, pouco segura. — Mas nunca vi um marinheiro a sério fazê-lo.
Coy agarrou no transferidor, um quadrado de plástico transparente que tinha impresso em volta a graduação dos 360° da circunferência numerados de dez em dez. Isso permitia calcular os rumos com exactidão, transferindo as indicações da agulha magnética do barco para o papel das cartas náuticas.
— É fácil: procuras um cabo ou alguma coisa que possas identificar — pôs a borracha em cima da carta, representando uma embarcação imaginária e levou o transferidor até à costa mais próxima. — Depois situa-lo com a agulha de bordo, a bússola, e dá-te, por exemplo, 45° relativamente a norte. De modo que vais até à carta e traças uma linha oposta desde esse ponto, em direcção aos 225°. Vês?... Depois pegas noutra referência que esteja separada da primeira por um ângulo evidente: outro cabo, um monte ou o que quer que seja. Se te der, por exemplo, 315°, traças a oposta na carta, na direcção 135°. Onde se cruzarem ambas as linhas está o teu barco. Se as referências de terra forem claras, o método é seguro. E se o completares com uma terceira marcação, melhor ainda.
Tânger tinha contraído os lábios, pensativa. Olhava para a borracha com a mesma atenção com que o faria se ela fosse um barco navegando ao longo daquela costa impressa sobre o papel. Coy agarrou num lápis e percorreu o desenho da carta.
— Aquela costa tem praias baixas e arenosas — explicou —, mas sobretudo zonas escarpadas, com rochas altas. Abundam referências para situar-se à vista... Calculo que o piloto do Dei Gloria pôde fazê-lo facilmente. Talvez o tenha feito durante a noite, se havia lua e a costa estava bem recortada... Embora isso seja mais difícil.
Naquele tempo não havia faróis como agora. Uma torre com um facho, quando muito. Mas duvido que houvesse alguma aí. Com certeza que não, disse olhando para a carta. Com certeza que naquela noite de 3 para 4 de Fevereiro de 1767 não havia nenhuma luz nem qualquer outra referência animadora, nem fanal, nem nada de nada, excepto, talvez, a linha da costa perfilada sob a Lua, pelas bandas de bombordo. Podia imaginar a cena: todo o velame desfraldado, o barco navegando a um largo, com o vento silvando na enxárcia e o convés do bergantim escorado a estibordo, o rumor da água correndo junto à borda e os reflexos da claridade lunar no mar picado a barlavento. Um homem de confiança na roda do leme, a guarda tensa e alerta no convés olhando para a escuridão, atrás. Nem uma única luz a bordo, e o capitão de pé no tombadilho, com o rosto preocupado voltado para o alto, na direcção da pirâmide fantasmagórica de lona branca desfraldada, atento aos rangidos e interrogando-se se a mastreação e a enxárcia, danificadas pelo temporal no Atlântico, aguentariam. Calado, para que nenhum dos homens que confiam nele adivinhe a sua inquietação, mas calculando mentalmente distância, rumo, inclinações, bordos, com a angústia de quem sabe que uma decisão errada conduzirá o barco e os seus tripulantes ao desastre. Sem dúvida ignora ainda a sua posição exacta, e isso aumenta a inquietação. Coy imagina os olhares que deita à linha negra da costa que vai percorrendo a duas ou três milhas, próxima mas inalcançável, tão perigosa na escuridão como os canhões do inimigo; voltado depois para trás, como fazem os tripulantes, para a noite onde, invisível, às vezes, difusamente perfilado, outras, como uma sombra vaga, navega sulcando o mar o chaveco corsário que os persegue. E novos olhares na direcção da costa, e a noite pela frente e o mar à popa, e depois outra vez para o alto, atento ao ruído vindo de cima onde parecem oscilar as estrelas, aos estalidos da enxárcia ou ao rangido de mastros que gela o coração dos homens agrupados junto aos óvens de barlavento, silhuetas negras e silenciosas na escuridão. Homens que, tal como o próprio capitão, todos menos um, no dia seguinte a essa hora estariam mortos.
— Que possibilidades achas que temos?
Coy pestanejou, como se acabasse de regressar nesse instante do convés do bergantim. Tânger olhava-o com atenção, esperando uma resposta. Era evidente que ela própria já tinha avaliado tudo do direito e do avesso, mas desejava ouvi-lo da boca dele. Ele encolheu os ombros:
— O primeiro problema é que os tripulantes do Dei Gloria se situaram baseados nesta carta, e não em cartas modernas. E nós teremos de situar-nos recorrendo a cartas modernas, embora usemos esta como ponto de partida... Conviria calcular as diferenças entre o Urrutia e as cartas actuais. Medir os graus exactos e tudo isso. Já sabemos que o cabo de Paios está no Urrutia alguns minutos mais a sul — indicou a carta com o lápis. — ...Como podes ver, toda a linha da costa desde o cabo de Agua foi desenhada considerando-a quase horizontal, quando na realidade sobe um pouco obliquamente, assim, para nordeste. Repara onde está o baixio da Hormiga no Urrutia, e onde aparece na carta moderna.
Pegou no compasso, obteve a distância do cabo de Paios ao paralelo mais próximo, e depois passou o compasso sobre a escala vertical à esquerda da carta, para a medir em milhas. Ela seguia os movimentos dele com atenção, com a mão imóvel sobre a mesa, muito próxima do braço de Coy. O cabelo louro e liso caía-lhe de novo sobre o rosto, roçando-lhe o queixo.
— Vamos calcular exactamente... — Com um lápis, Coy tomava nota das cifras numa folha do caderno. — Vês?... Os 37°35' do Urrutia transformam-se... É isso. Em 37°37' de latitude real. Na realidade, 37°37' e uns trinta ou quarenta segundos, que, expresso em cifras para uma carta náutica moderna, onde os segundos figuram como uma fracção decimal acrescentada aos minutos, nos dá 37°37,5'. O que significa duas milhas e meia de erro aqui, na ponta do cabo de Paios. Talvez também uma milha no cabo Tinoso. Essa diferença é fundamental tratando-se de destroços... De um barco afundado. Pode situá-lo perto da costa, a vinte ou trinta metros, onde é fácil aceder a ele, ou demasiado longe, com profundidades que vão aumentando e passam a cem, duzentos ou mais metros, tornando impossível descer ou sequer localizá-lo.
Deteve-se, olhando para ela. Observava, com o rosto ainda inclinado, os números de sonda marcados na carta. Era óbvio que Tânger sabia de sobra tudo aquilo. Talvez precise de alguém que lho confirme em voz alta, pensou Coy. Talvez pretenda que lhe digam que é possível fazê-lo. A questão continua a ser: porquê eu?
— Achas que podes descer até cinquenta metros? — perguntou ela.
— Suponho que sim. Cheguei um pouco abaixo dos sessenta, embora o limite de segurança sejam quarenta. Mas nessa altura tinha menos vinte anos... O problema é que a essa profundidade podemos ficar muito pouco tempo submersos, pelo menos com equipamentos normais de ar comprimido... Tu não mergulhas?
— Não. Tenho horror. E no entanto...
Coy continuava ligando amarras. Marinheiro. Mergulho. Conhecimentos de navegação à vela. Era claríssimo, disse para consigo, que ela não o tinha ali por gostar da conversa dele. De modo que não tenhas ilusões, rapaz. Não lhe interessa a tua cara bonita. Supondo que a tua cara tenha sido bonita alguma vez.
— Até onde calculas poder chegar? — quis saber Tânger.
— Vais permitir que desça sozinho, sem ver o que faço?
— Confio em ti.
— É isso que me faz desconfiar. Que confies tanto em mim. Ao dizer «confio em ti» voltara-se finalmente para ele. Maldita,
pensou. Dir-se-ia que passa as noites planeando cada gesto. Observou a corrente de prata que desaparecia no decote da camisola branda, em direcção às protuberâncias sugestivas, visíveis sob a camisa aberta. Não sem esforço, reprimiu o impulso de puxá-la para fora e dar uma vista de olhos.
— A não ser que seja utilizado equipamento especial, o que um mergulhador consegue descer sem problemas não vai além de oitenta metros — explicou ele. — E é muita profundidade. Além disso, trabalhando, cansa-se e consome mais ar, complicando tudo... É preciso usar misturas e tabelas de descompressão pormenorizadas.
— Não está a muita profundidade. Pelo menos é o que julgo.
— Já fizeste os teus cálculos?
— Na medida das minhas possibilidades.
— Pois acho-te muito segura.
Coy sorria. Só um meio sorriso, de que ela pareceu não gostar.
— Se estivesse tão segura, não precisaria de ti.
Ele deixou-se cair para trás na cadeira. O movimento fez que Zas se sentasse, dando-lhe afectuosas lambidelas no braço.
— Nesse caso — avaliou —, talvez haja possibilidade de descer. Embora isso das posições seja sempre relativo, mesmo com as cartas modernas e GPS. Não é fácil encontrar um barco, ou o que costuma restar dele. E muito menos um barco afundado há dois séculos e meio... Depende da natureza do fundo e de muitas outras coisas. A madeira deve ter ido para o galheiro, ou o lodo pode cobrir os destroços. E depois há as correntes, a má visibilidade...
Tânger tinha agarrado no maço de cigarros, mas limitava-se a fazê-lo rodar entre os dedos. Contemplava as feições de Héroe.
— Tens muita experiência como mergulhador?
— Tenho alguma. Fiz um curso no Centro de Mergulho da Marinha e, nalguns Verões, trabalhei limpando cascos de navios, com uma escova de arame e sem ver nada um palmo diante do nariz. Nas férias, também ia buscar ânforas romanas com Pedro, o Piloto.
— Quem é Pedro, o Piloto?
— O patrão do Carpanta. Um amigo.
— Isso agora é proibido.
— Ter amigos?
— Ir buscar ânforas.
Tinha largado o maço e olhava para Coy. Este julgou ver uma faísca de especial atenção nos olhos dela.
— Nessa altura também o era — admitiu. — Mas a clandestinidade acrescentava-lhe emoção. Além disso, nenhum polícia nos revista o saco quando regressamos de uma imersão, num porto onde somos conhecidos. Dizemos olá, ele diz olá, sorrimos e pronto. Naquela época, diante de Cartagena, a costa era um campo imenso de restos arqueológicos. Eu procurava sobretudo ânforas de gargalo, que são muito bonitas, e vasilhas... Usava uma raqueta de pingue-pongue para remover a areia que as cobria. E cheguei a ter dúzias.
— O que fazias com tudo isso?
— Oferecia-o às minhas namoradas.
Não era verdade, pelo menos não completamente. Uma vez em terra, passadas discretamente debaixo do nariz dos carabineiros, essas ânforas tinham sido vendidas pelo Piloto e por Coy a turistas e antiquários, dividindo os lucros. Quanto às namoradas, Tânger não perguntou se tinham sido muitas ou poucas. Na realidade, daquele tempo, Coy só se lembrava com especial afecto de uma. Chamava-se Eva e era norte-americana, filha de um técnico da refinaria de Escombreras. Uma rapariga sã, loura e bronzeada, de dentes brancos e costas de praticante de windsurf, junto de quem passou um Verão, quando já era estudante de náutica. Ria às gargalhadas por tudo e por nada, tinha umas ancas bonitas e era passiva e terna no amor, em enseadas escondidas entre despenhadeiros de pedra escura, com o mar lambendo-lhes as pernas, cobertos de salitre e areia em fins de tarde cor de fogo. Durante algum tempo, Coy reteve nos dedos e na boca o sabor da sua carne e do seu sexo, aromas de sal, iodo, de água secando numa pele quente sob os raios de sol. Também guardou durante alguns anos uma fotografia: ela junto ao mar, os seios nus, o cabelo húmido, a cabeça inclinada para trás, bebendo de um pequeno odre de vinho que lhe deixava regueiros cor de sangue entre os seios pequenos, insolentes, de rapariguinha. Como boa gringa, a sua memória histórica, reduzida a apenas duas ou três centúrias, tinha-lhe colocado algumas dificuldades para aceitar, incrédula, que o fragmento de barro com asas oferecido por Coy — uma elegante ânfora de gargalo, olaria do século I, procedente dos despojos do Capitãn — estava há dois mil anos no fundo do mar em cuja beira se amaram naquele Verão.
— Nesse caso, conheces bem aquelas águas — disse Tânger. Não era uma pergunta, mas uma reflexão em voz alta. Parecia
satisfeita e ele fez um gesto vago sobre a carta.
— Nalguns sítios, sim. Sobretudo entre o cabo Tiñoso e o cabo de Paios. Cheguei mesmo a visitar alguns barcos naufragados... Mas nunca ouvi falar do Dei Gloria.
— Nem tu nem ninguém. E várias razões explicam porquê. Em primeiro lugar, havia algum mistério a bordo, como provam os poucos dados obtidos junto do ajudante do piloto e o seu estranho desaparecimento. Além disso, a posição que deu às autoridades da marinha...
— Partindo do princípio de que era autêntica...
— Suponhamos que sim, visto não termos outra coisa.
— E se não for?
Tânger arqueava as sobrancelhas, recostando-se à cadeira com um suspiro.
— Nesse caso, teremos perdido o tempo.
De repente parecia fatigada, como se a apreciação de Coy a levasse a considerar a eventualidade de um fracasso. Foi só um momento, durante o qual esteve inclinada para trás olhando para a carta. Depois, apoiou uma mão firme na mesa, espetou o queixo e disse que havia outras razões para o barco não ser procurado. A posição dada pelo ajudante do piloto situava-o numa zona de difícil acesso em 1767. Depois, a técnica facilitou esse tipo de imersões, mas o Dei Gloria já estava sepultado entre papéis e pó, e mais ninguém se tornou a lembrar dele.
— Até tu apareceres — insinuou Coy.
— É isso. Podia ter sido outro qualquer, mas fui eu. Encontrei o documento e pus-me a trabalhar. Que outra coisa podia fazer?... — roçou Héroe com as pontas dos dedos, quase afectuosamente, no seu maço de cigarros. — Parecia-se com aquilo que sonhamos quando somos crianças. O mar, o tesouro...
— Disseste que não há tesouros pelo meio...
— E é verdade, não há. Pelo menos em lingotes de prata, dobrões ou moedas de oito reais em prata. Mas o encanto persiste... Vou mostrar-te uma coisa.
Parecia diferente, mais jovem, quando se levantou e foi até à estante dos livros, talvez por se mover com uma decisão cheia de vigor que fazia ondular a fralda da camisa militar que usava aberta, ou por os seus olhos estarem mais azul-marinhos do que nunca e parecerem sorrir, quando regressou à mesa com dois álbuns do Tintim nas mãos: O Segredo do Unicórnio e O Tesouro de Rackam, o Terrível.
— Há dias disseste-me que não eras grande conhecedor do Tintim, não é verdade?
Coy afirmou com a cabeça perante tão estranha pergunta. E repetiu que nem por isso, muito superficialmente. O seu interesse tinha sido A Ilha do Tesouro, Jerry na Ilha e outros livros sobre o mar, de Stevenson, Verne, Defoe, Marryat e London, antes de passar de armas e bagagens para Moby Dick. Conrad veio depois, naturalmente, com Linha de Sombra e com o tempo.
— É verdade que só lês livros sobre o mar?
— Sim.
— A sério?
— A sério. Esses, li-os todos. Ou quase todos.
— Qual é o teu favorito?
— Não tenho um favorito. Não há livros separados de outros. Todos os livros que falam do mar, desde a Odisseia ao último romance de Patrick O'Brian, estão interligados, como uma biblioteca.
— A biblioteca de Borges...
Ela sorria e Coy encolheu os ombros com simplicidade.
— Não sei. Nunca li nada desse Borges. Mas é verdade o que digo, que o mar se parece a uma biblioteca.
— Os livros que falam das coisas da terra firme também são interessantes.
— Se tu o dizes...
Então ela, que abraçava os dois livros contra o peito, começou a rir-se, e parecia uma mulher muito diferente ao fazê-lo. Riu-se francamente, com alegria, e depois disse: mil milhões de coriscos.
Disse isto engrossando a voz tal como o faria um pirata zarolho e coxo com um papagaio ao ombro. E enquanto o Sol, que entrava pela janela, lhe dourava mais as pontas assimétricas do cabelo, sentou-se novamente ao pé de Coy, abriu os Tintins e folheou-os. Aqui também há mar, disse. Olha. Aqui ainda é possível a aventura. Podemos embebedar-nos milhares de vezes com o capitão Haddock — o whisky Loch Lomond, caso não saibas, não tem segredos para mim. Também saltei de pára-quedas sobre a Ilha Misteriosa com a bandeira verde da FEIC nos braços, atravessei inúmeras vezes a fronteira entre a Sildávia e a Bordúria, jurei pelos bigodes de Pleksy-Gladz, naveguei no Karaboudjan, no Ramona, no Spedol Star, no Aurora e no Sirius — com certeza em mais barcos do que tu — procurei o tesouro de Rackam, o Terrível, sempre para oeste, e andei na superfície lunar, enquanto Dupond e Dupont, com o cabelo em cores berrantes, faziam de palhaços no circo de Hiparco. E quando me sinto sozinha, Coy, quando me sinto muito, muito, muito sozinha, então acendo um cigarro desses do teu amigo Héroe, faço amor com Sam Spade e sonho com falcões malteses convocando para a minha beira, entre o fumo, velhos amigos: Adballah, Alcázar, Serafim Lampião, Chester, Zorrino, Pst, Oliveira de Figueira, enquanto na mini-aparelhagem se ouve a ária das jóias de Fausto, numa antiga gravação de Bianca Casta-fiore...
Tinha colocado, enquanto falava, os dois álbuns sobre a mesa. Eram edições antigas, um deles com a lombada azul, e outro com a lombada verde. A capa do primeiro mostrava Tintim, Milu e o capitão Haddock com um chapéu emplumado e um galeão navegando de velas ao vento. No segundo, Tintim e Milu percorriam o fundo do mar a bordo de um submergível em forma de tubarão.
— É o submarino do professor Girassol — disse Tânger. — ...Em criança, poupava para comprar estes livros à base de aniversários, santos(1) e presentes natalícios, como o teria feito o próprio Scrooge... Sabes quem era Ebenezer Scrooge?
— Um marinheiro?
— Não. Um tacanho. O chefe do bondoso Bob Cratchit.
— Não faço ideia.
— É igual — prosseguiu ela. — Eu reunia moeda a moeda para ir depois à livraria e sair com um destes livros na mão, sustendo a respiração, gozando o tacto das suas capas duras de cartão, as cores esplêndidas das capas... E mais tarde, a sós, abria as suas páginas e sentia o odor a papel, a tinta fresca bem impressa, antes de mergulhar na sua leitura. Assim, um por um, reuni os vinte e três... Sobre isso passou muitíssimo tempo mas, mesmo agora, ao abrir um Tintim, consigo sentir aquele aroma que, a partir dessa altura, passei a associar à aventura e à vida. Com o cinema de John Ford e de John Huston, com Las aventuras de Guillermo(2) e com mais alguns livros, estes álbuns formataram para sempre a disquete da minha infância.
Tinha aberto O Tesouro de Rackam, o Terrível na página 40. Numa grande ilustração central, Tintim, vestido de mergulhador, aproximava-se, caminhando pelo fundo do mar, dos despojos impressionantes do Unicórnio afundado.
— Olha bem para ela — disse solenemente. — Esta vinheta marcou a minha vida.
Tinha apoiado a ponta dos dedos na página com extrema delicadeza, como se receasse alterar as cores. Coy, que não olhava para o álbum,
*1. Em Espanha as pessoas comemoram o dia do seu santo, recebendo presentes. (N. daT.)
mas para ela, verificou que continuava a sorrir, ausente, com aquela expressão que a rejuvenescia e que era igual à da rapariga abraçada pelo pai na fotografia da moldura. Uma expressão feliz, pensou. Dessas que ainda têm o conta-quilómetros a zero. Atrás estava a taça de prata amolgada e sem uma asa. Campeonato infantil de natação. Primeiro prémio.
— Imagino — acrescentou ela passado um instante, com os olhos ainda fixos no livro — que também sonhaste alguma vez.
— Claro.
Podia compreender. Não era o álbum, nem a taça de prata, nem a fotografia, nem nada que tivesse a ver com o que ela tinha na memória. Mas havia um ponto de contacto, um território onde era fácil reconhecê-la. Talvez Tânger não fosse tão diferente, ao fim e ao cabo. Talvez, pensou, de alguma forma ela também seja um dos nossos. Embora, por definição, cada um dos nossos navegue, cace, combata e se afunde sozinho. Barcos que passam na noite. Algumas luzes na distância, à vista durante um bocado, frequentemente com um rumo oposto. Às vezes, um rumor longínquo, som de máquinas. Depois, novamente o silêncio quando desaparecem, e a escuridão, e o brilho que se extingue no vazio negro do mar.
"— Claro — repetiu.
Não disse mais nada. A sua imagem, a vinheta no álbum da sua memória, era a de um porto mediterrânico com três mil anos de história nas suas velhas pedras, rodeado de montanhas e de castelos com ameias que noutros tempos tiveram canhões. Nomes como forte de Navidad, dique de Curra, farol de San Pedro. Cheiro a água parada, a cabos húmidos, e o vento sudeste agitando as bandeiras dos barcos ancorados e das bandeirolas nos palangres dos pesqueiros. Homens imóveis, reformados ociosos em frente ao mar, sentados nos velhos cabeços de ferro. Redes ao sol, costados ferrugentos de navios mercantes atracados aos molhes. E aquele cheiro a sal, a breu e a mar velho, denso, de portos que já viram ir e vir muitos barcos e muitas vidas. Na memória de Coy havia um miúdo movendo-se entre tudo aquilo, um miúdo moreno e magro, com a mochila às costas cheia de livros da escola, que fugia das aulas para olhar o mar, para passear ao pé dos barcos de onde via descerem homens louros e tatuados que falavam línguas incompreensíveis. Para ver largar amarras que caíam na água com uma pancada e eram recuperadas a bordo antes de o costado de ferro se afastar do molhe e de o barco virar na direcção do canal, entre os faróis, rumo ao mar alto, em busca desses caminhos sem pegadas, apenas um leve sulco de espuma, por onde o miúdo tinha a certeza de que iria também partir. Esse tinha sido o sonho, a imagem que marcaria a sua vida para sempre: a nostalgia precoce, prematura, do mar cuja via de acesso eram os portos velhos e sábios, povoados de fantasmas que descansavam entre as suas gruas, à sombra dos telheiros. Os ferros desgastados pelo roçar dos cabos. Os homens sempre quietos, imóveis durante horas, para quem o fio, a cana de pesca ou o cigarro eram apenas pretextos, sem que parecesse importar-lhes outra coisa no mundo além de olhar para o mar. Os avós que levavam os seus netos pela mão e, enquanto os miúdos faziam perguntas ou apontavam para as gaivotas, eles, os velhos, semicerravam os olhos para olhar os barcos atracados e a linha do horizonte no outro lado dos faróis, como se procurassem na memória alguma coisa esquecida: uma lembrança, uma palavra, uma explicação de coisas passadas há demasiado tempo, ou de coisas que talvez nunca tivessem acontecido.
— As pessoas são demasiado estúpidas — dizia Tânger. — Só sonham com o que vêem na televisão.
Tinha devolvido os Tintins à estante. Estava de pé, com as mãos nos bolsos das calças de ganga, olhando para ele. Agora, tudo nela estava mais doce: a expressão dos olhos, o sorriso que tinha nos lábios. Coy fez que sim com a cabeça, sem saber bem porquê. Talvez para a animar e fazê-la continuar a falar, ou para mostrar que tinha compreendido.
— O que queres encontrar no Dei Gloria, realmente? Encaminhou-se na direcção dele, devagar, e, num momento de
perplexidade, ele julgou que ela lhe ia afagar a cara.
— Não sei. Juro-te que não sei — estava de pé ao seu lado, com ambas as mãos apoiadas na mesa, olhando para a carta náutica. — Mas quando li a declaração do ajudante do piloto, transcrita na linguagem seca de um funcionário, senti... Aquele barco fugindo com todas as velas desfraldadas, e o corsário perseguindo-o... Porque não se refugiou em Águilas? Os roteiros da época indicam aí um castelo e uma torre com dois canhões no cabo Cope, onde ele podia esperar protecção.
Coy deu uma vista de olhos à carta. Águilas ficava fora dela, a sudoeste de Cope.
— Tu sugeriste-o ontem, ao contar-me a história — disse. — Talvez o corsário se tenha interposto entre ele e Águilas, e o Dei Gloria tivesse de continuar navegando para este. O vento podia soprar e ser-lhe desfavorável, ou talvez o capitão tenha tido receio do risco de uma chegada nocturna. Há um monte de explicações para isso... De qualquer forma, acabou afundando-se na enseada de Mazarrón. Talvez tenha querido resguardar-se sob a torre de Azohía. Essa torre continua lá.
Tânger abanou a cabeça. Não parecia convencida.
— Pode ser. Mas, de qualquer forma, era um bergantim mercante. E, no entanto, ao ver-se perdido, combateu. Porque não arriou bandeira?... O capitão era um homem teimoso, ou haveria a bordo alguma coisa demasiado importante para entregar de mão beijada?... Alguma coisa que valia a vida de todos os tripulantes e sobre a qual nem sequer o rapaz sobrevivente disse uma palavra?
— Talvez o ignorasse.
- Talvez. Mas quem eram aqueles dois passageiros que a declaração de embarque não identifica excepto pelas iniciais N.E. e J.L.T.
Coy coçou a nuca, admirado.
— Tens a declaração de embarque do Dei Gloria?
— O original, não. Mas uma cópia. Arranjei-a no Arquivo Geral da Marinha de Viso del Marquês... Tenho lá uma boa amiga.
Calou-se, mas era evidente que alguma coisa não lhe saía da cabeça. Contraía a boca e a sua expressão já não era doce. Tintim tinha saído de cena.
— Além disso, há outra coisa.
Disse isso e ficou calada outra vez, como se a outra coisa não fosse para ser contada. Esteve algum tempo imóvel e em silêncio.
— O barco — acabou por dizer — pertencia aos jesuítas, lembras-te?... A um armador valenciano que era um testa-de-ferro, Fornet Palau. Por outro lado, Valência era o porto de destino... E tudo isso acontece no dia 4 de Fevereiro de 1767, dois meses antes de ser publicada a real pragmática de Carlos III, ordenando «o desterro dos jesuítas dos domínios espanhóis e a ocupação dos seus bens eclesiásticos»... Tens alguma ideia do que significou isto?
Coy disse que não, que a história de Carlos III não era o seu forte. Então, ela explicou-lhe. Fê-lo muito bem, em poucas palavras, citando datas e factos fundamentais, sem se perder em pormenores supérfluos. O motim popular de 1766 em Madrid contra o ministro Esquilache, que fez oscilar a segurança da monarquia e que se diz ter sido instigado pela Companhia de Jesus. A resistência da ordem inaciana às ideias iluministas que percorriam a Europa. A inimizade do monarca e o seu afã em livrar-se deles. A criação de um conselho secreto, presidido pelo conde de Aranda, que preparou o decreto de expulsão, e o golpe inesperado de 2 de Abril de 1767, com o desterro imediato dos jesuítas, a expropriação dos seus bens e a extinção posterior da Ordem pelo papa Clemente XIV... Esse era o contexto histórico em que decorrera a viagem e a tragédia do Dei Gloria. Evidentemente, nada permitia estabelecer uma relação directa entre uma coisa e outra. Mas Tânger era historiadora, estava habituada a avaliar factos e a relacioná-los, a formular hipóteses e a desenvolvê-las. Poderia haver um vínculo ou não. De qualquer forma, o Dei Gloria afundara-se. Pelo menos, e para resumir tudo, um barco afundado era um barco afundado — stat rosa pristina nomine, insinuou hermética. E ela sabia onde.
— Essa — concluiu — é uma justificação suficiente para procurá-lo.
A expressão endurecia-se-lhe à medida que falava, como se, na hora de manipular os dados, se desvanecesse o fantasma da rapariguinha que assomara, um pouco antes, nas páginas do Tintim. Agora, o sorriso desaparecera-lhe da boca e os olhos brilhavam, resolutos, não evocadores. Já não era a rapariga da fotografia. Afastava-se novamente e Coy sentiu-se irritado.
— E o que se passa com os outros?
— Que outros?
— O dálmata do rabicho grisalho. E o anão melancólico que vigiava a tua casa ontem à noite. Não têm aspecto de historiadores, nem nada que se pareça. Esses devem ter a expulsão dos jesuítas e Carlos III muito mal sabidos.
Viu-a hesitar diante da grosseria. Ou talvez procurasse apenas uma resposta adequada.
— Isso não tem nada a ver contigo — disse lentamente.
— Enganas-te.
— Ouve. Se eu te pago por este trabalho...
Valha-me Deus, disse ele para consigo. Esse é um erro muito grave, linda. Esse é um erro demasiado grave, indigno de ti. Nesta altura do campeonato sais-me com uma dessas!
— Pagar?... De que merda estás a falar?
Viu perfeitamente como Tânger parava em seco, desconcertada, e depois levantava uma mão pedindo calma, pronto, meti a pata na poça, está bem. Vamos conversar. Mas ele estava furioso.
— Achas realmente que estou aqui sentado porque fazes tenções de pagar-me...?
Disse aquilo de estar sentado, e imediatamente se sentiu ridículo porque, efectivamente, estava. Pôs-se de pé, atirando a cadeira para trás, com tanta brusquidão que Zas retrocedeu, inquieto. Não percebeste, dizia ela. A sério que não. Dizia apenas que esses homens não têm nada a ver.
— Nada a ver — repetiu.
Parecia mesmo assustada, como se de repente receasse vê-lo atirar com a porta e ir embora, e nunca até esse momento tivesse considerado semelhante possibilidade. Aquilo provocou em Coy uma satisfação mórbida. No fim de contas, mesmo que fosse por interesse, ela receava perdê-lo. Isso fê-lo divertir-se com a situação. Já era alguma coisa.
— Tem tanto a ver que, ou me esclareces de uma vez ou terás de procurar outro.
Era como um pesadelo que, no entanto, aumentava a sua auto-estima. Tudo bastante amargo, movendo-se à beira da ruptura e do fim, mas não podia voltar atrás.
— Não falas a sério — disse ela.
— Claro que falo a sério.
Ouviu-se a si próprio como se fosse um estranho a dizê-lo, um inimigo disposto a atirar tudo pela borda fora e a afastar Tânger da sua vida para sempre. O problema era que só ele podia ir a reboque. Como quando o Torpedeiro Tucumán começava a partir coisas, e Coy só podia inspirar, resignado, e agarrar no gargalo de uma garrafa, partindo para a abordagem.
— Ouve — acrescentou. — Posso compreender que me aches um pouco simplório... Até que me tenhas tomado por um imbecil. Em terra não sou grande coisa, é verdade. Desajeitado como um pato. Mas tu consideras-me um atrasado mental.
— Estás aqui...
— Sabes perfeitamente porque estou aqui. Mas a questão não é essa e, se quiseres, podemos falar disso com tempo outro dia. Na realidade, espero poder falar com tempo outro dia. Para já, limito-me a exigir que me digas em que me estou a meter.
— Exigir? — olhava-o com um desprezo súbito. — Não me digas o que devo ou o que não devo fazer... Todos os homens que conheci pretenderam dizer-me sempre o que devia ou não devia fazer.
Riu entre dentes, sem humor, parecendo cansada, e Coy achou que ela se ria com um fastio europeu. Uma coisa indefinida que tinha bastante a ver com paredes velhas e caiadas, igrejas com fendas nos frescos e mulheres vestidas de preto que olhavam para o mar entre folhas de vinha e oliveiras. Poucas norte-americanas, pensou, conseguiriam rir assim.
— Eu não te digo nada. Só quero saber o que pretendes de mim.
— Ofereci-te um trabalho...
— Oh, merda! Um trabalho...
Baloiçou-se nas pontas dos pés, entristecido, como se estivesse no convés de um barco disposto a saltar para terra. Depois agarrou no casaco e deu alguns passos na direcção da porta, com Zas colando-se-lhe aos calcanhares num trotezinho alegre. Tinha gelo na alma.
— Um trabalho — repetiu, sarcástico.
Ela tinha ficado entre ele e a janela. Pareceu-lhe ver um clarão de medo nos seus olhos. Era difícil ter a certeza, naquela contraluz.
— Pode ser que julguem — disse ela, e parecia pesar as palavras cuidadosamente — que se trata de tesouros e coisas assim... Mas não é um tesouro e, sim, um segredo. Um segredo que talvez não tenha importância hoje, mas que a mim me fascina. Por isso me meti nisto.
— Quem são?
— Não sei.
Coy deu os últimos passos até à porta. Os seus olhos detiveram-se um instante na pequena taça de prata amolgada.
— Foi um prazer conhecer-te.
— Espera.
Observava-o com muita atenção. Parecia, concluiu ele, um jogador com cartas medíocres tentando calcular as do outro.
— Tu não vais embora — disse passado um momento. — É um bluff.
Coy vestiu o casaco.
— Pode ser. Tenta prová-lo.
— Preciso de ti.
— Há mais marinheiros desempregados. E mergulhadores. Muitos são tão tontos como eu.
— É de ti que eu preciso.
— Pois então sabes onde vivo. De modo que decide-te. Abriu a porta devagar, com a morte no coração. Durante todo
esse tempo, até a ter fechado atrás de si, esteve à espera de que ela se lhe dirigisse, o agarrasse por um braço, o obrigasse a olhá-la nos olhos, lhe contasse qualquer coisa para o reter. Que agarrasse na sua cara entre as mãos e lhe depositasse na boca um beijo longo e limpo, após o qual não lhe importaria nada o dálmata e o anão melancólico, e estaria disposto a mergulhar com ela e com o capitão Haddock e com o próprio diabo à procura do Unicórnio, do Dei Gloria, ou do sonho mais impossível. Mas ela ficou na contraluz dourada, e não fez nem disse nada. E Coy deu por si descendo as escadas, deixando atrás o gemido de Zas que o queria de volta. Ia com um vazio pavoroso no peito e no estômago, com a garganta seca, com um formigueiro angustiante nas virilhas. Com uma náusea que o fez parar no primeiro patamar, apoiado na parede, levando à boca as mãos que lhe tremiam.
A terra, concluiu depois de dar-lhe muitas voltas, não passava de uma ampla coligação determinada a aborrecer o marinheiro: tinha escolhos que não apareciam nas cartas, recifes e barras de areia, e cabos com restingas, traiçoeiras. Estava povoada, além disso, por uma multidão de funcionários, empregados de alfândega, amarradores, capitães de porto, polícias, juízes e mulheres de pele pintalgada.
Mergulhado em tão lúgubres pensamentos, Coy vagueou por Madrid toda a tarde. Vagueou como os heróis feridos dos filmes e dos livros, como Orson Welles em A Dama de Xangai, como Gary Cooper em O Mistério do Barco Perdido, como Jim perseguido de porto em porto pelo fantasma do Patna. A diferença consistiu em que nenhuma Rita Hayworth nem nenhum capitão Marlowe lhe dirigiram palavra, e andou inadvertido e silencioso entre as pessoas, com as mãos nos bolsos do seu casaco azul, parando nos semáforos vermelhos e atravessando nos verdes, tão anódi-no e cinzento como qualquer outro. De repente sentia-se inseguro, deslocado, miserável. Caminhou avidamente à procura dos molhes, do porto onde encontrar, ao menos, no cheiro a mar e no bater da água nos cascos de ferro, o consolo familiar. E, quando parou indeciso na Plaza de La Cibeles sem saber que direcção tomar, demorou um bocado a aperceber-se de que aquela cidade grande e ruidosa não tinha porto. A descoberta chegou com a força de uma revelação desagradável e fê-lo fraquejar, quase cambalear, a ponto de se sentar num banco, diante do gradeamento de um jardim onde dois militares com cordões na farda, boinas vermelhas e espingardas a tiracolo, o observavam com desconfiança. Mais tarde, quando continuou a andar e o céu começou a ficar avermelhado na extremidade das avenidas, para oeste, tornando-se depois sombrio e cinzento no outro lado da cidade, recortando os edifícios onde se acendiam as primeiras luzes, a sua desolação deu lugar a uma irritação crescente, a uma fúria contida, feita de desdém para com aquela imagem que o perseguia nos vidros das montras e de ira para com aqueles que lhe passavam ao lado roçando-o, empurrando-o ao pararem nas passadeiras, gesticulando como imbecis, tagarelando pelos seus telemóveis, entorpecendo-lhe o passo com sacos de grandes armazéns, o andar desajeitado, errático, os grupos parados à conversa. Algumas vezes devolveu os empurrões, colérico, e, num caso ou noutro, a expressão indignada de um transeunte tornou-se confusão e surpresa ao encontrar o seu rosto endurecido, o olhar perverso, ameaçador, dos seus olhos sombrios como uma sentença. Nunca na sua vida, nem sequer na manhã em que a comissão investigadora o condenou a dois anos sem barco, se tinha parecido tanto à alma penada do Holandês Errante.
Uma hora depois estava bêbado, sem trâmites prévios de azul ou de outra cor. Tinha entrado numa taberna perto da Plaza de Santa Ana e, apontando com o dedo uma velha garrafa de Centenário Terry que devia estar há meio século a dormir o sono dos justos numa prateleira, retirou-se para um canto com ela e com um copo. As de cognac são como levar com uma picareta na cabeça, dizia o Torpedeiro, caindo de joelhos a vomitar os fígados, depois de ter ingerido o suficiente para poder falar com conhecimento de causa. São necessariamente mortais. Uma vez, em Puerto Limón, o Torpedeiro, de tanto emborcar Duque de Alba, adormeceu, inconsciente, em cima de uma puta pequenina que teve de pedir socorro aos gritos para lhe tirarem de cima aqueles cem quilos que estavam quase a asfixiá-la. E, mais tarde, ao acordar no seu camarote — foi preciso arranjar uma furgoneta para o devolver ao barco — tinha passado três dias largando lastro em forma de bílis, entre suores frios, pedindo aos gritos que algum amigo acabasse com ele de uma vez. Coy não tinha em cima de quem desmaiar naquela noite, nem barco aonde regressar, nem amigos que o levassem de furgoneta ou sem ela — o Torpedeiro estava nalgum lugar desconhecido e o galego Neira tinha rebentado o fígado e o baço ao cair da espada de corda de um petroleiro, um mês depois de conseguir lugar de piloto em Santander. Mas Coy fez honra ao cognac, deixando-o escorregar vezes sem conta pela garganta até tudo começar a distanciar-se um pouco, e a língua, as mãos, o coração e as virilhas deixarem de doer-lhe, e Tânger Soto voltar a ser mais uma entre os milhares de mulheres que todos os dias nascem, vivem e morrem no vasto mundo. E ele pôde verificar que a mão que ia e vinha da garrafa ao copo se movia cada vez mais em câmara lenta.
A garrafa estava a meio, precisamente um pouco abaixo da linha de flutuação, quando Coy, que conservava um resto de prudência, deixou de beber e olhou em volta. Tudo parecia estar num plano ligeiramente adernado, até se dar conta de que era ele quem estava com a cabeça caída em cima da mesa. Nada mais grotesco, pensou, do que um fulano apanhando um pifo em público, só e como lhe apetece. Então, levantou-se muito lentamente e saiu para a rua. Pôs-se a andar, tentando dissimular o seu estado, seguindo discretamente com o ombro encostado às paredes, de forma a manter a linha recta, paralela à berma do passeio. Ao atravessar a praça, o ar fez-lhe bem. Parou, sentado num banco sob a estátua de Cal-derón de La Barca, e daí observou, com as palmas das mãos apoiadas nos joelhos, as pessoas que passavam diante dos seus olhos, desfocadas. Viu os mendigos da cerveja de litro, aqueles três homens e a mulher do outro dia que bebiam sentados no chão, com o seu cãozinho, vigiados, da porta do Hotel Victoria, pelo Robocop. Abanou a cabeça numa negativa quando um magrebino lhe ofereceu uma dose de haxixe — passado estou eu, colega — e, por fim, mais desanuviado, seguiu o seu caminho até à pensão. Agora, o Centenário Terry tinha-se diluído o suficiente nos pulmões, na urina ou onde quer que fosse, permitindo-lhe ver as imagens com maior nitidez. E graças a isso pôde ver que o dálmata, ou seja, o fulano de Barcelona com um rabicho grisalho e um olho de cada cor, estava sentado numa mesa do bar junto à porta, com um copo de whisky na mão e as pernas cruzadas, esperando-o.
— Compreenda — concluiu o tipo. — Elas querem que a gente as foda. Ou melhor, querem que desejemos fodê-las. Mas, sobretudo, querem que paguemos por isso. Com o nosso dinheiro, com a nossa liberdade, com o nosso pensamento... No mundo delas, acredite em mim, não existe a palavra grátis.
Continuava ali, com o whisky na mão como se não fosse nada com ele, e Coy estava sentado à frente dele, ouvindo. Tinha deixado de ficar surpreendido há muito tempo e agora ouvia com interesse, diante de um copo de água tónica, gelo e limão que nem sequer tinha tocado. O cognac ainda lhe escorria suavemente pelo sangue. Às vezes, o dálmata fazia tilintar o gelo no copo, olhava para o conteúdo e levava-o aos lábios, pensativo, para beber um pouco antes de continuar a conversa. Coy confirmou que o seu espanhol tinha um ligeiro sotaque estrangeiro, entre andaluz e britânico.
— E deixe-me que lhe diga uma coisa: quando elas decidem atirar-se de cabeça, não há nada a fazer... Digo-lhe eu. Quando decidem tomar uma decisão, seja qual for, tornam-se implacáveis. Garanto-lhe. Já as vi mentir... Valha-me Deus! Garanto-lhe que já as vi mentir na minha própria almofada, falando com o marido ao telefone, com um sangue-frio... Incrível!
Havia uma loja de manequins ao lado e, às vezes, Coy olhava para a montra. Corpos nus em diversas posições, sentados e em pé, homens e mulheres sem sexo modelado, alguns com peruca, carecas outros, a carne sintética brilhando sob os focos da montra. Várias cabeças cortadas cerce sorriam numa prateleira. Os bonecos femininos tinham seios com mamilos pontiagudos. Um decorador de montras com sentido de humor, num toque beático, numa reminiscência clássica casual ou consciente, fazia um dos manequins levantar o braço articulado pelo cotovelo com o pulso na direcção do peito, pudico, mantendo o outro sobre o suposto sexo. Vénus saindo directamente de uma concha, disfarçada de replicadora Pris Nexus 6 em Blade Runner.
— Também a teve a ela na sua almofada?
O dálmata olhou para Coy quase com reprovação. Tinha o cabelo limpo e bem penteado para trás, preso com uma fita elástica preta. A camisa era branca, com botões nas pontas do colarinho, e usava-a aberta, sem gravata. Pele bronzeada sem exagero. Sapatos impecáveis, cómodos, de boa pele. O relógio caro, pesado, de ouro, no pulso esquerdo. Anéis de ouro. Mãos com unhas bem tratadas. Outro anel no mindinho direito, grosso, também de ouro. Correntes do mesmo espreitando no pescoço, com medalhas e um antigo dobrão espanhol. Botões de punho em ouro, visíveis nas extremidades das mangas da camisa. Este tipo, pensou Coy, parece uma montra da Cartier. Com o que tinha em cima podiam fundir-se alguns lingotes.
— Não... Claro que não — o dálmata parecia sinceramente escandalizado. — Não sei porque o pergunta. A minha relação com ela...
Calou-se como se isso, o que quer que fosse, fosse evidente. Passado um instante, deve ter dado conta de que não o era, porque fez tilintar o gelo no copo e, desta vez sem beber nada, pôs Coy ao corrente da história. Ou melhor, pô-lo ao corrente da versão da história segundo Nino Palermo. Nino Palermo era ele próprio e isso dava ao seu relato apenas um valor relativo. Mas aquele indivíduo era a única pessoa que parecia disposta a contar algumas coisas a Coy. Este não dispunha de outra versão mais autorizada e duvidava muito que chegasse a dispor dela algum dia. De modo que permaneceu imóvel, caladinho e atento, desviando os olhos para a montra dos manequins só quando o outro insistia em olhar para ele por muito tempo, ora o olho verde, ora o olho pardo — bicolora-ção incómoda para se ter pela frente. Dessa forma soube que Nino Palermo era o dono de Deadman's Chest, uma empresa dedicada ao resgate de navios afundados e ao salvamento marítimo, com sede social em Gibraltar. Talvez Coy, pois Palermo tinha ideia de que ele era marinheiro, tivesse ouvido falar de Deadman's Chest, aquando dos trabalhos de reflutuação do Punta Europa, um ferry afundado no ano anterior com cinquenta passageiros na baía de Algeciras. Ou, noutro tipo de coisas — acrescentou isso após uma curta pausa —, aquando da recuperação do San Esteban, um galeão resgatado há cinco anos nos escolhos da Florida com um carregamento de prata mexicana. Ou no caso mais recente do navio romano descoberto com estátuas e cerâmica, diante do rochedo de Calpe.
Nesse ponto, Coy pronunciou em voz alta as palavras «caçador de tesouros», e o outro sorriu de forma a deixar ver um dente ou dois de um lado da boca, antes de dizer que sim, de certa forma. Que isso dos tesouros era um conceito muito relativo, dependia. E, além disso, meu amigo, nem tudo o que brilha é ouro. Ou às vezes o que não brilha acaba por sê-lo. Depois, entre mais frases deixadas a meio, Palermo descruzou e voltou a cruzar as pernas, fez tilintar novamente o gelo no copo, bebendo, desta vez sim, um longo gole que deixou os cubinhos de gelo em seco no fundo.
— Não é uma aventura, é um trabalho — disse devagar, como se pretendesse dar-lhe todas as oportunidades para compreender. — Uma coisa é ir ao cinema, ou pretender viver como se estivéssemos na fila catorze comendo pipocas com a namorada, e outra é investir dinheiro, investigar e fazer trabalhos de prospecção com seriedade profissional... Eu trabalho para mim e para os meus sócios, reúno o capital necessário, obtenho resultados e divido lucros, dando a César... Você sabe. O Estado, as suas leis e os seus impostos. Também beneficio museus, instituições... Coisas dessas.
— Alguma coisa deve ficar-lhe no bolso.
— Evidentemente. E tento que seja... Valha-me Deus! Oiça, eu tenho dinheiro. Tento arriscar o dos meus sócios, naturalmente, mas também jogo o meu. Tenho advogados, investigadores, mergulhadores experimentados que trabalham para mim... Sou um profissional.
Dito isto, ficou calado durante uns instantes, com o seu olhar bicolor cravado em Coy, espreitando o efeito. Mas Coy, que permanecia inexpressivo, não lhe deve ter parecido muito impressionado.
— O problema — prosseguiu — é que este meu trabalho necessita. .. Uma pessoa não pode andar por aí contando a sua vida. Por isso é preciso mover-se com cautela. Não falo de ilegalidades, embora às vezes... Enfim... Você entende... A palavra-chave éprudência.
— E que tem ela a ver com tudo isto?
Palermo disse-lho e, enquanto o fazia, o seu ar aprazível endureceu, e a cólera chegou-lhe de chofre aos olhos e à boca. Coy viu que fechava um punho, o do anel grosso de ouro no mindinho, e ter-se-ia desatado a rir diante daquele acesso de fúria, se não estivesse tão interessado na história que o seu interlocutor ia contando num tom de voz amargo, desabrido, que por vezes roçava o agressivo. Ele tinha conseguido uma pista. A procura de antigos naufrágios começava sempre por pistas simples, quase tontas às vezes, e ele tinha... Valha-me Deus! O acaso, na forma de um rato de biblioteca chamado Corso, um tipo que lhe fornecia material relacionado com o mar, cartas náuticas antigas, roteiros e coisas assim — um aproveitador, diga-se de passagem, que cobrava caríssimo — colocara-lhe nas mãos um livro publicado em 1803 sobre a actividade marítima da Companhia de Jesus. Chamava-se A Frota Negra: os Jesuítas nas índias Orientais e Ocidentais, tinha sido escrito por Francisco José González, bibliotecário do observatório da marinha de San Fernando e, nesse livro, Palermo encontrou o nome do Dei Gloria.
— Ali havia... Valha-me Deus! Soube-o no mesmo instante. Uma pessoa sabe quando há alguma coisa à sua espera — coçou o nariz com o polegar. — Sente-o aqui.
— Suponho que se refere a um tesouro.
— Refiro-me a um barco. A um bom, velho e lindo barco afundado. O tesouro vem depois, se vier. Mas não julgue que... Imprescindível não é a palavra. Não é.
Inclinou a cabeça, olhando para o anel grande. Nesse momento, Coy reparou deveras nele. Parecia outra moeda antiga, autêntica. Talvez árabe, ou turca.
— O mar cobre dois terços do planeta — disse inesperadamente Palermo. — Imagina tudo o que lá foi parar ao fundo nos últimos três ou quatro mil anos? Cinco por cento dos barcos que navegaram... É como lhe digo. Cinco por cento, pelo menos, está debaixo de água. O mais extraordinário museu do mundo, ambição, tragédia, memória, riqueza, morte... Objectos que valem dinheiro, se os trouxermos à superfície, mas também... Compreende? Solidão. Silêncio. Só quem já sentiu um arrepio de terror diante da silhueta escura de um casco afundado... Falo da penumbra esverdeada lá de baixo, se sabe a que me refiro... Sabe a que me refiro?
O olho verde e o olho pardo estavam cravados em Coy, animados por um brilho súbito que parecia febril, ou perigoso, ou talvez as duas coisas ao mesmo tempo. — Sei a que se refere.
Nino Palermo dirigiu-lhe um vago sorriso de apreço. Tinha passado a vida, contou, metendo-se na água, primeiro por conta de outros e mais tarde por conta própria. Tinha visitado destroços cobertos de coral no mar Vermelho, descoberto um carregamento de vidro bizantino em frente a Rodes, procurado libras esterlinas no Carnatic e resgatado na Irlanda duzentos dobrões, três correntes de ouro e um crucifixo de pedras preciosas do galeão Gerona. Tinha trabalhado com as equipas de resgate dos barcos do mercúrio, Guadalupe e Tolosa, e com Mel Fisher no Atocha. Mas também tinha mergulhado entre os barcos espectrais da frota afundada a oitenta metros da Martinica, junto ao monte Pelado, visitado o casco do Yongala, no mar das Serpentes, e o do Andrea Dória, na sua tumba aquática do Atlântico. Tinha visto o Royal Oak, de casco voltado no fundo de Scapa Flow, e a hélice do navio corsário Emdem, no recife de coral das ilhas Cocos. E, a vinte metros de profundidade, sob uma luz fantasmagórica, dourada e azul, o esqueleto meio desfeito de um piloto alemão, na cabina do seu FockeWulf afundado em frente a Nice.
— Não me negará que é um bom curriculum. Calou-se e, fazendo um gesto ao empregado, pediu outro whisky para ele e uma nova água tónica para Coy, que nem sequer tinha tocado na outra. Deve ter aquecido, disse. Procurar sob as águas era o seu modo de vida e a sua paixão, prosseguiu depois, olhando-o como se o desafiasse a provar o contrário. Mas nem todos os naufrágios eram importantes, explicou. Na Antiguidade, os mergulhadores gregos já faziam resgates. Por isso, os mais apetecíveis eram aqueles sem sobreviventes porque, carecendo de informação sobre o lugar do afundamento, permaneciam ocultos e intactos. E agora Palermo tinha encontrado uma nova pista. Uma boa e bela pista virgem num livro antigo. Um novo mistério, o desafio, e a possibilidade de procurar uma resposta.
— Então — tinha levantado o seu copo como se procurasse alguém a quem atirar à cara — cometi o erro de... Compreende? O erro de recorrer àquela cabra.
Quinze minutos mais tarde, a segunda água tónica continuava intacta em cima da mesa, tão quente como a primeira. Quanto a Coy, tinham-se-lhe dissipado um pouco mais os vapores do Centenário Terry e estava ao corrente do invés da trama. Ou, pelo menos, da versão mantida por Nino Palermo, cidadão britânico com residência em Gibraltar, proprietário da empresa Deadman's Chest de Trabalhos Subaquáticos e Salvamento Marítimo.
Há meio ano, Palermo tinha ido ao Museu Naval de Madrid, como noutras ocasiões, à procura de informações. Esperava confirmar que um bergantim saído de Havana e desaparecido antes de chegar ao seu destino tinha naufragado nas proximidades da costa espanhola. O barco não transportava carga conhecida valiosa, mas havia indícios interessantes: o nome Dei Gloria estava, por exemplo, numa das cartas expropriadas, aquando da dissolução da Companhia nos tempos de Carlos III, que Palermo encontrou mencionada pelo bibliotecário de San Fernando no seu livro sobre os barcos e a actividade marítima dos jesuítas. A citação «mas a justiça de Deus não permitiu que o Dei Gloria chegasse ao seu destino com as pessoas e o segredo que transportava» foi cruzada por ele próprio com o índice de documentos do Arquivo das índias de Sevilha, Viso dei Marquês e Museu Naval de Madrid... E tlim, tlim. Prémio. No catálogo da biblioteca deste último constava um relatório datado de Fevereiro de 1767 em Cartagena «sobre a perda do bergantim Dei Gloria em combate com o chaveco corsário que se presume seja o chamado Serguí». Isso levou-o a pôr-se em contacto com o Museu Naval e com Tânger Soto que — em má hora e maldita seja ela — era a encarregada desse departamento. Após um primeiro contacto exploratório foram almoçar ao Al-Mounia, um restaurante árabe da Calle Recoletos. Aí, diante de um cuscuz de cordeiro com verduras, ele tinha representado o seu número de forma convincente. Nada de abrir-lhe o coração, evidentemente. Era uma rata velha e conhecia os riscos. Só trouxe à baila o Dei Gloria entre outros assuntos, quase com a ponta dos dedos. Ela, educada, eficiente, amável e maldita bruxa, tinha prometido ajudá-lo. Isso dissera: ajudá-lo. Procurar para ele uma cópia dos documentos, se estes continuassem no fundo confiado à instituição, etc. Telefonar-lhe-ei, tinha garantido a cabra. E sem pestanejar, valha-me Deus! Nem uma vez! Isso passara-se há meses e não só ela nunca telefonara, como tinha utilizado a influência da marinha para lhe bloquear qualquer via de acesso aos arquivos do museu. Até aos documentos relativos à declaração de embarque do bergantim em Havana, que ele tinha finalmente localizado no índice do Arquivo Geral da Marinha de Viso del Marquês, mas que não pôde consultar por se encontrar, conforme o informaram aí, sob estudo oficial do Ministério da Defesa. Palermo tinha continuado a mexer-se, evidentemente. Conhecia o meio e possuía dinheiro para gastar. A sua averiguação paralela tinha decorrido razoavelmente, e estava agora em condições de afirmar que o bergantim se tinha afundado perto de Cartagena, e que transportava alguma coisa, objectos ou pessoas, de suma importância. Talvez aquela acção do corsário Serguí — um Chergui inglês com carta de corso argelina perdeu-se nas mesmas águas e na mesma data — não fosse totalmente um acaso. Palermo tentara falar inúmeras vezes com Tânger Soto para lhe pedir explicações, mas sem resultado, silêncio total. Ela era muito esperta evitando-o, ou tinha sorte, como em Barcelona, quando Coy se meteu pelo meio. Oh, se tinha! No fim, Palermo acabou por compreender, pobre estúpido, que ela não apenas o tinha enganado, como estava mexendo as suas próprias peças pela calada. A suspeita transformou-se em certeza quando a viu aparecer no leilão, atrás do Urrutia.
— A mosquinha-morta — concluiu Palermo — ...tinha decidido... Valha-me Deus, você compreende?... O Dei Gloria por sua conta.
Coy abanou a cabeça, embora na realidade estivesse a digerir tudo o que acabara de ouvir.
— Que eu saiba — particularizou — trabalha por conta do Museu Naval.
O outro deu uma gargalhada bastante curta e bastante rude. Com pouca vontade.
— Isso julgava eu. Mas agora... Aquela é das que mordem com a boquinha fechada.
Coy coçou no nariz, sentindo-se ainda perplexo.
— Nesse caso — disse — ponha-se em contacto com os superiores dela e rebente-lhe a operação.
Palermo fez tilintar o gelo do seu novo whisky.
— Isso seria rebentar também a minha... Não sou tão estúpido. Tinha feito outra vez aquela careta rápida que lhe deixava a
descoberto alguns dentes parecidos aos de um tubarão. Este tipo, pensou Coy, sorri como uma tintureira(3) diante de uma lula com dois palmos.
— É como uma corrida de fundo, compreende? — acrescentou Palermo. — Eu tenho melhores... Valha-me Deus! Ela partiu com vantagem graças ao meu descuido. Mas aquele tipo de esforços... Já recuperei terreno. Ainda ganharei mais.
Coy encolheu os ombros.
— Pois desejo-lhe sorte.
— Alguma dessa sorte depende de si. Basta-me olhar para a cara de um homem para saber... — Palermo piscou-lhe o olho pardo. — Você entende-me.
— Engana-se. Não o entendo.
— Para saber por quanto se vende.
Coy não gostou do olhar que tinha em frente. Ou talvez lhe desagradasse o tom de voz confiante, cúmplice, com que o seu interlocutor tinha pronunciado as últimas palavras.
*3. Tintureira ou quelha: peixe da família do tubarão, semelhante ao cação, comum nas águas marroquinas. (N. da T.)
— Eu estou fora — disse friamente.
— Não me diga!
O tom de chacota do outro não contribuía para melhorar as coisas. Coy sentiu reavivar a sua antipatia.
— Já vê... Terá de combinar com ela — tentou torcer a boca da forma mais insolente possível. — Não experimentaram associar-se?... Pelos vistos, pertencem à mesma laia.
Palermo não parecia, de todo, ofendido. Antes, avaliava a questão com um ar imparcial.
— É uma possibilidade — ripostou. — Mas duvido que ela... Acha que tem os ases na mão.
— Pois acaba de perder alguns. Pelo menos uma dama. Outra vez em frente o sorriso de esqualo. Agora esperançado,
o que não o tornava mais agradável.
— Fala a sério? — Palermo reflectia, interessado. — ...Refiro-me a não continuar com ela.
— Claro que falo a sério.
— Seria indiscreto perguntar-lhe porquê?
— Acabou de o dizer há um momento: não joga limpo. Mais ou menos como você — de repente lembrou-se de uma coisa. — ...E pode dizer ao seu anão melancólico que fique tranquilo. Já não terei de lhe partir a cara se o encontrar.
Palermo, que se dispunha a beber, parou, olhando para Coy por cima do copo.
— Que anão?
— Não se arme também você em espertinho. Sabe de quem estou a falar.
Com o copo ainda a meio caminho, os olhos bicolores semicerraram-se, astutos.
— Não deve interpretar mal...
Palermo começou a dizer aquilo, mas depois, pensando melhor, calou-se, com o pretexto de levar a bebida aos lábios e tomar um gole. Ao pousá-la em cima da mesa tinha mudado de conversa:
— Não consigo acreditar que a deixe, assim.
Agora coube a Coy a vez de sorrir. De certeza que eu não sorrio como este fulano, mesmo que queira, disse para consigo. De certeza que a mim não me sai cara de tubarão, mas de parvo. Sentia-se vigarizado por toda a gente, a começar por si próprio.
— Eu também ainda não acredito — disse.
— Regressa a Barcelona?... O que se passa com o seu problema?
— Muito bem — abanava a cabeça, aborrecido. — Vejo que também se interessou pelo meu curriculum.
O outro levantou a mão esquerda no ar, como se acabasse de ter uma ideia. Tirou um cartão-de-visita de uma volumosa carteira cheia de cartões de crédito, e escreveu alguma coisa. As luzes da montra dos manequins faziam brilhar os anéis das mãos dele. Coy deu uma vista de olhos ao cartão antes de o guardar no bolso: Nino Palermo. Deadman's Chest Ltd. 42b Main Street. Gibraltar. Em baixo estava apontado um número de telefone de um hotel de Madrid.
— Talvez possa compensá-lo de alguma forma. — Palermo fez uma pausa, tossiu para limpar a garganta, bebeu um novo gole e olhou-o de repente: — Preciso de alguém junto da senhora Soto...
Deixou também esta frase no ar, o tempo suficiente para que o seu interlocutor acabasse de completá-la da forma adequada. Coy permaneceu um bocado imóvel, observando-o. Depois inclinou-se para a frente, até apoiar as palmas das mãos na mesa.
— Vá levar no cu.
» Perdão?
Palermo tinha pestanejado, com cara de quem esperava outra coisa. Coy começou a levantar-se e, com um prazer secreto, verificou que o outro se encostava ligeiramente para trás na cadeira.
— O que lhe disse. Sodomizar. Enrabar. Levar na anilha. Explico-me? — Agora, as mãos que apoiava na mesa tinham-se fechado, transformando-se em punhos — ...Ou seja, que lhe saltem para as costas a si, ao anão e ao Dei Gloria. E a ela também.
O outro não o perdia de vista. O olho verde parecia ainda mais frio e atento que o pardo, mais dilatado. Como se metade do corpo representasse receio e a outra metade estivesse em guarda, avaliando.
— Pense bem — disse Palermo, e apoiou uma mão na manga de Coy, como se quisesse convencê-lo, ou retê-lo. Era a mão do anel com a moeda de ouro, e este sentiu-a com desagrado sobre os músculos tensos do seu antebraço.
— Tire-me essa mão de cima — disse — ou arranco-lhe a cabeça.
O MERIDIANO ZERO
Dormiu durante toda a noite e parte da manhã. Dormiu como se nisso a vida se lhe esvaísse, ou como se desejasse manter a vida lá fora, à distância, o máximo de tempo possível. E, uma vez acordado, contumaz, continuou a tentá-lo. Deu voltas e voltas na cama, tapando os olhos, tentando esquivar ao rectângulo de claridade na parede. Ao acordar, tinha observado aquele rectângulo com desolação. O risco de luz estava aparentemente imóvel e só, de forma imperceptível, variava a sua posição à medida que decorriam os minutos. A vista desarmada parecia estar tão imóvel como todas as coisas em terra firme. E antes de se lembrar que se encontrava no quarto de uma pensão, a quatrocentos quilómetros da costa mais próxima, soube, ou intuiu, que nesse dia também não acordava a bordo de um barco, lá, onde a luz que entra pelos postigos se move e oscila suavemente de cima para baixo e de um lado para outro, enquanto o trepidar suave das máquinas se propaga através das pranchas do casco, ronrom, ronrom, e este balança no vaivém circular da ondulação.
Tomou um duche rápido e desagradável — depois das dez da manhã, as torneiras da pensão só forneciam água fria — e saiu para a rua sem se barbear, com as calças de ganga, uma camisa limpa e o casaco sobre os ombros, à procura de uma dependência da Renfe, para comprar um bilhete de volta para Barcelona. Tomou um café pelo caminho, comprou um jornal que, folheado apenas, foi parar ao caixote de lixo, e depois andou pelo centro da cidade sem rumo definido até acabar sentado numa pequena praça da zona velha de Madrid, num desses lugares com árvores de antigos conventos no outro lado de um muro, casas de varandas com vasos e amplos saguões para o gato e para a porteira. Estava um sol aprazível que provocava uma preguiça agradável. Esticou as pernas, tirando do ] bolso a maltratada edição brochada de O Barco da Morte, de Traven, que acabara por comprar na Calle Moyano. Durante algum tempo tentou concentrar-se na leitura, mas no preciso momento ] em que o ingénuo marinheiro Pip pip, sentado no cais, imagina o Tuscaloosa no mar alto voltando para casa, Coy fechou o livro e meteu-o novamente no bolso. Tinha a cabeça muito longe daquelas páginas. Tinha-a repleta de humilhação e de vergonha.
Passado um bocado levantou-se e, sem se apressar, empreendeu o caminho de volta à Plaza de Santa Ana, com a expressão sombria acentuada no queixo escurecido pela barba de dia e meio. De repente, sentiu um mal-estar no estômago e lembrou-se de que não tinha comido nada em vinte e quatro horas. Foi a um café, pediu uma fatia de tortilha e uma imperial, e chegou à pensão já passava das duas. O Talgo saía daí a hora e meia e a Estação de Atocha ficava perto. Podia descer a pé e ir de comboio até à de Chamartín, de modo que arrumou com calma a sua reduzida bagagem: o livro de Traven, uma camisa limpa e outra suja que meteu num saco de plástico, alguma roupa interior, uma camisola de lã azul. Enrolou os seus acessórios de higiene pessoal numas calças caqui de trabalho e colocou tudo num saco de lona. Calçou os ténis e guardou os velhos sapatos de vela. Efectuou cada um desses movimentos com a mesma precisão metódica que teria empregado para traçar um rumo, embora o diabo o levasse se naquele momento tinha em mente qualquer rumo. Limitava-se a pôr toda a sua concentração em não pensar. Depois desceu, pagou e saiu para a rua com o saco ao ombro. Parou, semicerrando os olhos devido aos raios de sol que incidiam verticalmente na praça, para esfregar o estômago, incomodado. Olhou para um lado, depois para o outro, e pôs-se a andar.
Grande viagem, pensava. Por uma sarcástica associação de ideias vieram-lhe à cabeça os acordes de Noche de Samba en Puerto Espana. Primeiro uma canção, dizia a letra. Depois a bebedeira e, no fim, apenas um choro de guitarra. Assobiou meio estribilho quase sem dar conta, calando-se de súbito. Lembra-te, disse para si próprio, de não voltar a cantarolar isso no raio da tua vida. Olhava para o chão, e a sombra parecia estremecer de riso diante dos seus passos. De todos os atrasados mentais do mundo — e devia haver uns quantos — ela escolhera-o a ele. Embora não fosse totalmente exacto. No fim de contas, fora ele quem se pusera diante dela, primeiro em Barcelona e depois em Madrid. Ninguém força o rato, lera uma vez nalgum lado. Ninguém obriga esse roedor cretino a ir por aí metendo o nariz nas ratoeiras, armado em macho. Sobretudo, sabendo de sobra que neste mundo os ventos de proa sopram mais amiúde que os de popa.
Ainda não tinha chegado à esquina quando a gerente da pensão saiu para a rua a correr, atrás dele, gritando o seu nome. Senhor Coy, senhor Coy. Tinha um telefonema.
— Canalhas — disse Tânger Soto.
Era uma rapariga comedida e mal se lhe notava um ligeiro tremor na voz, uma nota de insegurança que tentava controlar pronunciando apenas as palavras necessárias. Ainda estava vestida para sair, com saia e casaco, e apoiava-se na parede da salinha, com os braços cruzados, o rosto um pouco inclinado, olhando para o cadáver de Zas. Coy cruzara-se nas escadas com dois polícias fardados e encontrou um terceiro guardando numa maleta os instrumentos utilizados para procurar impressões digitais. Tinha o boné em cima da mesa, e o radiotransmissor, pendurado no cinto, emitia um rumor apagado de conversas. O agente deslocava-se com cuidado entre os móveis remexidos da casa. Não havia muita desordem: uma gaveta aberta, papéis e livros pelo chão e o computador com a caixa desaparafusada e os cabos e ligações soltos.
— Aproveitaram eu estar no museu — murmurou Tânger.
Excepto por aquele tremor na voz, não parecia frágil, mas sombria. A sua pele pintalgada ficara de um mate-pálido, mantinha os olhos secos e a expressão endurecida, as mãos com os dedos cravados nos braços, com tanta força que empalideciam os nós dos dedos. Não afastava os olhos do cão. O labrador continuava de lado no tapete, com os olhos vidrados e a boca entreaberta por onde saía um fiozinho de espuma esbranquiçada que já começava a secar. De acordo com a Polícia, tinham forçado a porta e, depois, antes de a abrirem completamente, atiraram ao cão um bocado de carne preparado com um veneno rápido, talvez etilenglicol. Quem quer que fosse, sabia o que procurava e o que iria encontrar. Não tinham provocado estragos inúteis, limitando-se a roubar alguns documentos das gavetas, todas as disquetes e o disco rígido do computador. Era, sem dúvida, gente que vinha com propósitos deliberados. Profissionais.
— Não precisavam de matar Zas — disse ela. — Não era um cão de guarda... Brincava com qualquer um.
As últimas palavras suavizaram-se com uma nota de emoção que imediatamente reprimiu. O polícia da malinha tinha acabado o seu serviço, de modo que colocou o boné, cumprimentou e foi embora, depois de dizer alguma coisa sobre os empregados municipais que passariam para levar o cachorro. Coy fechou a porta — viu que a fechadura ainda funcionava —, mas depois de dar mais uma vista de olhos ao corpo de Zas, abriu-a novamente, deixando-a entreaberta, como se fechar a casa com o cadáver do cão lá dentro fosse improcedente. Ela permaneceu imóvel, apoiada à parede, quando ele atravessou a sala e se dirigiu à casa de banho. Voltou com uma toalha grande e inclinou-se sobre o labrador. Por instantes, olhou com afecto para os olhos mortos do animal, lembrando-se das lambidelas do dia anterior, da cauda agitando-se alegre à espera de uma carícia, do seu olhar inteligente e fiel. Sentia uma profunda pena, uma piedade que lhe revolvia as entranhas, incomodando-o com sentimentos quase infantis que todos os homens adultos julgam esquecidos. Com Zas tinha a impressão de ter perdido um amigo silencioso e recente; desses que não se procuram porque são eles que nos escolhem. Do seu ponto de vista, aquela tristeza estava deslocada. Só estivera com o cão algumas vezes e nada fizera para ser merecedor da sua lealdade ou para lamentar a sua morte. E, no entanto, ali estava, com uma angústia estranha, uma comichão incomodativa no nariz e nos olhos. Sentia o desamparo como seu, a desolação, a imobilidade do infeliz animal.
Talvez tivesse saudado os seus assassinos abanando alegremente a cauda, à espera de uma palavra amável ou de uma carícia.
— Pobre Zas — murmurou.
Tocou com os dedos, por um instante, a cabeça dourada do labrador, despedindo-se dele e cobriu-o depois com a toalha. Ao levantar-se viu que Tânger olhava para ele. Continuava apoiada à parede com os braços cruzados, sombria e imóvel.
— Morreu sozinho — disse Coy.
— Todos morremos sós.
Ficou durante aquela tarde e parte da noite. Primeiro, ficou sentado no sofá depois de os funcionários municipais terem levado o cão, vendo como ela ia e vinha remediando a desordem. Viu-a mover-se quase sem dizer uma palavra, empilhando papéis, colocando livros nas estantes, fechando gavetas. Parada diante do computador estripado, com as mãos nas ancas avaliando o estrago, pensativamente. Nada irreparável, dissera em resposta a uma das poucas perguntas que ele colocou no início. Depois, continuou ocupando-se da casa, até estar tudo em ordem. A última coisa que fez foi ajoelhar-se no sítio onde Zas tinha estado e limpar com um pano e água os restos de espuma esbranquiçada que tinha secado sobre o tapete. Fez tudo isto com uma obstinação disciplinada, lúgubre, como se a tarefa a ajudasse a controlar os seus sentimentos, dominando a incerteza que ameaçava transparecer no seu semblante. As pontas do cabelo dourado oscilavam-lhe junto do queixo, deixando entrever o nariz e as maçãs do rosto cobertos de sardas, quando finalmente se levantou e olhou em volta, para ver se estava tudo como devia. Nessa altura foi até à mesa, agarrou no maço de Players e acendeu um cigarro.
— Ontem à noite estive com Nino Palermo — disse Coy.
Não pareceu ter ficado minimamente surpreendida. Nem sequer disse nada. Ficou de pé junto à mesa, com o cigarro entre os dedos e a mão um pouco levantada, segurando o cotovelo com a outra.
— Contou-me que o enganaste — prosseguiu ele. — E que tentas também enganar-me a mim.
Esperava desculpas, insolência ou desdém, mas só houve silêncio. O fumo do cigarro subia rectilíneo até ao tecto. Nem uma espiral, observou. Nem uma agitação, nem um estremecimento.
— Não trabalhas para o museu — acrescentou, espaçando deliberadamente cada palavra —, mas para ti própria.
Parecia-se, descobriu de repente, com essas mulheres que nos olham de alguns quadros. Olhares impassíveis, capazes de provocar inquietação no coração de qualquer homem que as observe. A certeza de que sabem coisas que não dizem, mas que, se nos detivermos à sua frente o tempo suficiente, podemos intuir nas suas pupilas imóveis. Arrogância dura, sábia. Lucidez antiga. O pensamento do primeiro dia em que esteve naquela casa voltou a rondar-lhe a cabeça: havia meninas que já olhavam daquela maneira, sem terem tido tempo material que o justificasse, sem terem vivido o suficiente para aprender a fazê-lo. Penélope devia olhar assim para Ulisses, quando este lhe apareceu, vinte anos depois, reclamando o seu arco.
— Eu não te pedi que viesses a Madrid — disse ela. — Nem que complicasses a minha vida e a tua em Barcelona.
Coy olhou para ela durante alguns segundos, ainda absorto, com a boca entreaberta de uma forma quase estúpida.
— É verdade — admitiu.
— Foste tu quem quis jogar. Eu limitei-me a estabelecer algumas regras. Se te convêm ou não, é problema teu.
Finalmente tinha mexido a mão que sustinha o cigarro e a brasa deste brilhou entre os dedos ao levá-lo aos lábios. Depois ficou novamente imóvel, e o fumo voltou a formar uma linha vertical fina e perfeita.
— Porque me mentiste? — perguntou Coy.
Tânger suspirou com suavidade. Apenas um sopro de aborrecimento.
— Eu não te menti — disse. — Contei-te apenas a versão que me convinha contar... Lembra-te de que és um intruso e de que esta é a minha aventura. Não podes exigir-me nada.
— Aqueles homens são perigosos.
A linha recta do fumo partiu-se em leves espirais. Ela ria-se em voz baixa, de uma forma contida.
— Não é preciso ser muito inteligente para deduzir isso, não é verdade?...
Ainda se riu mais um pouco até parar de chofre, diante da mancha húmida do tapete. O azul-escuro dos seus olhos tornara-se mais sombrio.
— O que vais fazer agora?
Ela não respondeu imediatamente. Mexera-se para apagar o cigarro no cinzeiro. Fê-lo minuciosamente, sem comprimir demasiado, pouco a pouco, até a brasa se ter extinguido. Só nessa altura esboçou um gesto com a cabeça e com os ombros. Não olhava para Coy.
— Vou continuar a fazer a mesma coisa. A procurar o Dei Gloria.
Depois andou pelo aposento, lentamente, para comprovar que tudo tinha voltado à sua antiga ordem. Alinhou um Tintim na sua estante com os outros e depois rectificou a posição da moldura da fotografia em que Coy reparara com frequência: a adolescente loura junto do militar bronzeado, sorridente, em mangas de camisa. Agia, observou ele, como se tivesse água fria nas veias. Mas de súbito viu-a parar, reter o ar nos pulmões e expeli-lo, e era menos um gemido que um bufar de fúria, enquanto batia na mesa com a palma da mão, brusca e secamente, com uma violência inesperada que deve tê-la surpreendido também, ou magoado muito, porque ficou imóvel. Outra vez sem respirar, contemplando desconcertada a mão, como se esta não fosse sua.
— Malditos sejam! — disse em voz muito baixa. Controlou-se, e Coy pôde reparar no esforço que fazia para o conseguir. Os músculos dos seus maxilares estavam tensos, a boca contraída, quando respirou fundo pelo nariz, procurando novas coisas para pôr em ordem, como se nada tivesse acontecido dez segundos antes.
— O que levaram?
— Nada imprescindível — continuava a olhar em volta. — Devolvi o Urrutia esta manhã ao museu, e tenho duas boas reproduções da carta esférica com que podemos trabalhar... As cartas modernas deixaram-nas todas, menos uma que tinha anotações a Japis nas margens. Também havia dados no disco rígido do computador, mas não eram importantes.
Coy remexeu-se, pouco à vontade. Ter-se-ia sentido mais à vontade com algumas lágrimas, alguns lamentos indignados ou coisa parecida. Nesses casos, pensava, um homem sabe o que fazer. Ou pelo menos julga sabê-lo. Cada um assume o seu papel, como no cinema.
— Deverias esquecer-te disto.
Voltara-se com extrema lentidão, como se de repente ele se tivesse transformado num dos objectos da sala, cuja posição era necessário rectificar.
— Ouve, Coy. Eu não te pedi que te metesses nos meus assuntos. Também não te pedi agora que me dês conselhos... Entendes?
É perigosa, pensou de súbito. Talvez mesmo mais do que aqueles que lhe puseram a casa de pernas para o ar e lhe mataram o cão. Mais do que o anão melancólico e do que o dálmata caçador de tesouros. Tudo isto acontece porque ela é perigosa, eles sabem-no, e ela sabe que eles o sabem. Perigosa mesmo para mim.
— Entendo.
Abanou a cabeça, entre evasivo e resignado. Aquela mulher tinha uma facilidade espantosa para o fazer sentir-se responsável e ao mesmo tempo recordar-lhe a gratuitidade da sua presença ali. No entanto, Tânger não parecia satisfeita com a resposta concisa de Coy. Continuava a observá-lo como o lutador de boxe que ignora a campainha ou a admoestação do árbitro.
— Quando era pequena adorava os filmes de cowboys — disse inesperadamente.
O seu tom de voz estava longe de ser evocador ou terno. Parecia mesmo conter uma leve troça de si própria. Mas estava mortalmente séria.
— Gostavas desses filmes, Coy?
Olhou para ela sem saber o que dizer. Responder àquilo teria exigido meio minuto de transição, mas ela não lhe deu tempo de procurar uma resposta. Também não parecia importar-lhe.
— Vendo-os — prosseguiu — cheguei à conclusão de que existem dois tipos de mulheres: as que se põem aos gritos quando os apaches atacam, e as que agarram numa espingarda e disparam pela janela.
O seu tom de voz não era agressivo mas firme. E, no entanto, Coy sentia aquela firmeza diabolicamente agressiva. Ela calou-se e parecia não ir acrescentar mais nada. Mas, após um instante, parou Jiante da fotografia na sua moldura e semicerrou os olhos. A sua voz soou agora rouca e baixa:
— Eu queria ser soldado e usar a espingarda.
Coy coçou o nariz. Depois esfregou a nuca e foi executando, um após outro, os gestos que costumavam caracterizar a sua perplexidade. Pergunto a mim próprio, disse para consigo, se esta mulher adivinha os meus pensamentos, ou se é precisamente ela quem mos põe cá dentro, baralhando-os depois e espalhando-os em cima da mesa como se de um baralho de cartas se tratasse.
— Esse Palermo — acabou por dizer — ofereceu-me trabalho. Susteve a respiração. Tinha tirado do bolso o cartão de visita
com os números de telefone do gibraltino. Levantou-o entre os dedos, balançando-o um pouco. Ela não olhava para o cartão, mas para ele. Fazia-o com tanta fixidez como se pretendesse perfurar-lhe o cérebro.
— E o que lhe disseste?
— Que ia pensar.
Ela mal sorriu. Um segundo de avaliação e dois segundos de incredulidade.
— Estás a mentir — declarou. — Se assim fosse, não estarias agora aqui sentado, olhando para mim — a voz dela pareceu suavizar-se. — ...Tu não és desses.
Coy desviou os olhos na direcção da janela, dando uma vista de olhos lá para fora, para baixo e para a distância. Tu não és desses. Num sítio poeirento da sua memória, Brutus perguntava a Popeye se era um homem ou um rato, e este respondia: «Sou marinheiro.» Um comboio aproximava-se lentamente da enorme pala que cobria os cais de Atocha, com a sua prolongada articulação seguindo um caminho misterioso traçado no labirinto de vias e sinais. Sentia um rancor preciso como o fio de uma navalha. Tu não conheces, pensou, esses aos quais pertenço. Olhou para o seu relógio de pulso. O Talgo, cujo bilhete de segunda classe tinha no bolso interior do casaco, ia, desde há algum tempo, a caminho de Barcelona. E ele ali novamente, como se nada tivesse mudado. Olhou para o tapete onde Zas tinha estado. Ou, talvez, reflectiu, estivesse outra vez ali precisamente por algumas coisas terem mudado. Ou porque... diabos o levassem se fazia a mais pequena ideia do porquê. De repente, estremeceu no seu íntimo e alguma coisa lhe atravessou o espírito como um clarão cálido. E soube, naturalmente, que estava ali porque um dia iria ensinar alguma coisa àquela mulher. O pensamento agitou-o tanto que lhe aflorou ao rosto, e ela olhou-o inquisitiva, surpreendida com a transformação que acabara de verificar-se na sua expressão. Coy quase gaguejava no seu próprio silêncio. Ia ensinar-lhe uma coisa que ela julgava saber e não sabia. Uma coisa que ela não poderia controlar tão facilmente como os gestos, as palavras, as situações e, aparentemente, como ele próprio. Mas era preciso esperar, antes que esse momento chegasse. Por isso estava ali e não tinha outra coisa senão a espera. Por isso, ambos sabiam que desta vez ele já não partiria. Por isso estava preso, comendo o bocadinho de queijo até ao arame. Clique. Trás! Homem ou rato. Pelo menos, consolou-se, não doía. Talvez no fim, quando for a minha vez, doa. Mas ainda não. Descruzou as pernas, voltou a cruzá-las e encostou-se um pouco mais no sofá, com as mãos caídas aos lados. Sentia a pulsação latejando-lhe devagar e com força nas virilhas. Suponho, disse para consigo, que a palavra exacta é medo. Uma pessoa sabe que há rochas pela frente, e isso é tudo. Navega, olha para o mar, sente a brisa na cara e o salitre nos lábios, mas não se deixa enganar. Sabe.
Tenho de dizer alguma coisa, pensou. Qualquer coisa que não tenha nada a ver com o que sinto. Alguma coisa que a faça agarrar no leme de novo, ou melhor, que me permita vê-la novamente aí. No fim de contas, é ela quem manda, e ainda estamos longe do meu quarto de serviço.
Rasgou o cartão aos bocados, deixando-os sobre a mesa. Não houve comentários a esse respeito. Assunto encerrado.
— Continuo sem ver as coisas — disse Coy. — Se não há tesouro, como pode interessar a Nino Palermo um barco afundado em 1767?
— Os caçadores de naufrágios não andam só atrás de tesouros. — Agora Tânger tinha-se aproximado, sentando-se numa cadeira em frente de Coy, inclinando o corpo para a frente, a fim de encurtar a distância que a separava dele. — Um barco afundado há dois séculos e meio pode ter muito interesse se estiver bem conservado. O Estado paga pelo resgate... Fazem-se exposições itinerantes... Nem tudo se resume ao ouro dos galeões. Há coisas que valem tanto como isso. Vê, por exemplo, a colecção de cerâmica oriental que ia a bordo do San Diego... O seu valor é incalculável. — Parou e permaneceu um pouco em silêncio, com os lábios entreabertos, antes de prosseguir: — Além disso, há outra coisa. O desafio. Entendes?... Um barco afundado é um enigma que fascina muita gente.
— Sim. Palermo falou disso. A penumbra lá de baixo, disse. E tudo o resto.
Tânger concordava muito séria e grave, como se conhecesse o sentido dessas palavras. E, no entanto, era Coy quem tinha estado em barcos afundados e em barcos encalhados e desencalhados. Não ela.
— Por outro lado — fez notar Tânger — ninguém sabe o que havia a bordo do Dei Gloria.
Coy deu um suspiro.
— Talvez haja um tesouro, no fim de contas.
Ela imitou o suspiro de Coy, embora talvez não fosse pelo mesmo motivo. Arqueava as sobrancelhas com ar misterioso, como quem mostra o invólucro que esconde uma surpresa.
— Quem sabe?
Estava inclinada para a frente, perto dele, e a sua expressão iluminava o rosto pintalgado com o ar cúmplice de um rapazinho decidido, conferindo-lhe um encanto simples, notoriamente físico, feito de carne, de células vivas e jovens, de tons dourados e de cores suaves que exigiam imperiosamente a proximidade, o tacto e o contacto da pele com a pele. O sangue voltou a latejar nas virilhas de Coy e, desta vez, não se tratava de medo. Novamente, o clarão de luz. Novamente, aquela certeza. De modo que se deixou levar voluntariamente à deriva, sem concessões ao arrependimento ou aos remorsos. No mar todos os caminhos são longos. E, no fim de contas — essa era a sua vantagem —, ele não tinha tripulantes a quem tapar os ouvidos com cera, nem ninguém que o amarrasse ao mastro para resistir às vozes que cantavam nos recifes, nem deuses que pudessem incomodá-lo, mais do que a conta, com os seus ódios ou com os seus favores. Estava, calculou num balanço rápido, lixado, fascinado e só. Nessas condições, aquela mulher era um rumo tão bom como qualquer outro.
A tarde fora-se extinguindo, e a luz amarela que iluminou primeiro as nuvens baixas e depois rastejou sobre a Estação de Atocha, cobrindo de sombras longuíssimas e horizontais o intrincado reflexo no labirinto de vias, enchia agora o aposento, o perfil de Tânger inclinado sobre a mesa, a sua silhueta escura ao lado da de Coy sobre o papel da carta náutica número 463A do Instituto Hidrográfico da Marinha.
— Ontem — recapitulava ele — situámos uma latitude, que é de 37° 32 minutos norte... Isso permite-nos traçar uma linha aproximada, sabendo que o Dei Gloria se encontrava, quando se afundou, nalgum lugar dessa linha imaginária, entre Punta Calnegre e o cabo Tinoso, a uma distância da costa que varia entre uma e três milhas., Talvez mais. Isso pode dar-nos sondas de trinta a cem metros.
— Na realidade são inferiores — indicou Tânger.
Seguia as explicações de Coy sobre a carta com muita atenção. Agora era tudo tão profissional como se estivessem na casa de navegação de um navio. Tinham desenhado, com lápis e paralelas, uma linha horizontal que saía da costa, milha e meia acima de Punta Calnegre, e ia até ao cabo Tinoso sob o grande arco de areia formado pelo golfo de Mazarrón. A profundidade, que era pequena e rasa no lado oeste, aumentava à medida que a linha se aproximava da costa rochosa situada mais a este.
— De qualquer forma — particularizou Coy —, se o barco estiver muito fundo, não conseguiremos localizá-lo com meios limitados como os nossos. E muito menos descer até ao que resta dele.
— Ontem disse-te que calculo que esteja, no máximo, a cinquenta metros...
Frio e silêncio, lembrou-se Coy. E aquela penumbra esverdeada à qual Nino Palermo se referira. Conservava na pele a sensação do seu primeiro mergulho profundo, há vinte anos, do reflexo prateado da superfície vista de baixo, da esfera azulada e depois verde, da perda paulatina das cores, do manómetro no seu pulso, com a agulha a indicar o aumento gradual da pressão dentro e fora dos seus pulmões, e do som da sua própria respiração no peito e nos tímpanos, aspirando e expirando ar pelo regulador. Frio e silêncio, naturalmente. E também medo.
— Cinquenta metros já é demasiado — disse. — Exige mergulhar com um equipamento de que não dispomos, ou fazer imersões curtas com longas descompressões, o que é incómodo e perigoso. Digamos que a quota razoável de segurança, no nosso caso, é de quarenta. Nem mais um metro.
Continuava inclinada sobre a carta, pensativa. Viu-a roer a unha do dedo polegar. Os olhos dela iam percorrendo as sondas marcadas ao longo da linha a lápis desenhada por Coy, que se prolongava por quase uma vintena de milhas. Alguns dos números que indicavam a profundidade estavam acompanhados por uma inicial: A, L, P... Fundos de areia e de lodo, com algumas rochas. Demasiada areia, demasiado lodo, pensava ele. Em dois séculos e meio, esses fundos podiam cobrir muitas coisas.
— Julgo que será suficiente — disse ela. — Quarenta chegarão. Gostaria de saber onde vai buscar semelhante segurança, pensou ele. A única coisa garantida no mar — Coy dizia às vezes a mar, como muitos marinheiros de língua espanhola, ao referir-se às suas qualidades físicas, mas nunca lhe ocorrera atribuir-lhe um carácter feminino — era não haver ali nada garantido. Se conseguissem fazer bem as coisas e estivar a carga de forma correcta, pôr a amura adequada ao mau tempo, moderar máquinas e não se atravessar com ondas de rebentação e vento superior a nove na escala de Beaufort, o velho e mal-humorado bastardo podia chegar a tolerar intrusos. Mas não havia desafio possível. À força, ele vencia sempre.
— Não acho que esteja muito mais fundo — referiu Tânger.
Parecia ter-se esquecido completamente de Zas e da sua casa de pernas para o ar, observou Coy, assombrado. Olhava concentrada para as escalas com graus, minutos e décimas de minuto que contornavam as cartas, e ele admirou uma vez mais aquela aparente força de vontade. Ouvia-a pronunciar palavras precisas, sem alardes nem rodeios supérfluos. Que me cortem os tomates se isto é normal, disse para consigo. Nenhuma mulher, nenhum homem que eu conheça, podem ser tão senhores de si como ela aparenta. Está acossada, acabam de fazer-lhe um aviso sinistro, e continua toda ufana, fazendo rabiscos numa carta náutica. Ou é uma esquizofréflica, ou lá como se diz, ou é uma mulher extraordinária. De qualquer forma, é óbvio que consegue. Que é capaz, depois de tudo o que passou, de estar aqui de lápis e compasso de pontas na mão com o sangue-frio de um cirurgião manipulando um bisturi. Talvez, no fim de contas, a razão radique em que realmente é ela quem acossa. E Nino Palermo, o anão melancólico, o motorista berbere, a secretária e eu próprio não passamos de comparsas, ou vítimas.
Procurou concentrar-se na carta. Estabelecida a latitude com] o paralelo horizontal que esta indicava, restava agora situar a longitude, o ponto em que esse paralelo cortava o meridiano correspondente. A questão era averiguar qual era o meridiano. Convencionalmente, do mesmo modo que a linha do equador constituía o paralelo zero para calcular a latitude para norte ou para sul, o meridiano universalmente considerado como 0o era o de Greenwich. A longitude náutica estabelecia-se também em graus, minutos e segundos ou décimas de minuto, contando 180° para a esquerda de Greenwich para a longitude oeste e 180° para a direita para a longitude este. O problema era nem sempre ter sido Greenwich a referência universal.
— A longitude parece evidente — respondeu Tânger — 4 graus 51 minutos este.
— Eu não acho que seja tão evidente. Em 1767 os Espanhóis não usavam Greenwich como primeiro meridiano...
— Claro que não. Primeiro foi o da ilha de Hierro, mas depois cada país acabou usando o seu. Não se unificou em torno de Greenwich até 1884. Por isso, a carta de Urrutia, impressa em 1751, traz quatro escalas de longitude diferentes: Paris, Tenerife, Cádis e Cartagena.
— Vejam só! — Coy olhava para ela com respeito. — Sabes muito disto. Quase mais do que eu.
— Tratei de estudar. É o meu trabalho. Se procurares bem, podes encontrar tudo nos livros.
Coy manteve-se em silêncio, mas tinha as suas dúvidas. Tinha lido sobre o mar durante toda a sua vida, e nunca encontrara ali nada sobre o grito de angústia de uma toninha que salta na água com o flanco arrancado pela dentada de uma orca. Nem sobre a noite mais curta da sua vida, com a aurora iniciando-se encadeada ao crepúsculo no horizonte avermelhado da enseada de Oulu, a poucas milhas do círculo polar árctico. Nem sobre o canto dos kroomen, os estivadores pretos, no castelo de proa em noite de lua, diante de Pointe-Noire, no Gabão, com os porões e a coberta cheios de troncos empilhados de ocumé e cajueiro. Nem sobre o estrépito aterrador de um Cantábrico onde céu e mar se confundem sob uma cortina de espuma cinzenta, depressões de catorze metros e vento de oitenta nós, com as ondas deformando os contentores, acorrentados na coberta como se fossem de papel, antes de os arrancarem, levando-os borda fora; a tripulação de vigia amarrada em qualquer sítio da ponte, aterrada, e os restantes nos camarotes, rolando pelo chão contra as portas, vomitando como porcos. Era como o jazz, no fim de contas: os improvisos de Duke Ellington, o saxofone-tenor de John Coltrane ou a bateria de Elvin Jones. Sobre isso também não se podia ler nos livros.
Tânger tinha desdobrado uma carta oceânica de pequena escala, muito mais geral do que as outras, e marcava nela linhas verticais imaginárias.
— Paris não pode ser — disse. — Esse meridiano passa pelas Baleares, e nesse caso o barco ter-se-ia afundado a meio caminho entre a Espanha e a Itália... Tenerife também não, pois situá-lo-ia em pleno Atlântico. Assim, à primeira vista, restam Cádis e Cartagena...
— Cartagena não é — disse Coy.
Podia avaliá-lo com uma simples vista de olhos. Caso tivesse afundado quase cinco graus a este desse meridiano, o Dei Gloria tê-lo-ia feito demasiado longe, quase duzentas e cinquenta milhas para vante, em fundos — aproximou-se um pouco da carta — de três mil metros.
— Então, só pode ser Cádis — determinou ela. — Encontraram o ajudante de piloto no dia seguinte, umas seis milhas a sul de Cartagena. Calculando a longitude a partir daí, tudo coincide. A perseguição. A distância.
Coy olhou para a carta, tentando estabelecer por cálculo a deriva do náufrago no seu bote. Calculou distância, vento, correntes, abatimento, antes de fazer um gesto afirmativo. Seis milhas era uma distância lógica.
— Nesse caso — concluiu — o vento teria rodado para noroeste.
— É possível. Na sua declaração, o ajudante de piloto disse que o vento mudou de direcção ao amanhecer... Isso é normal na zona?
— Sim. Os ventos de sudeste, que ali chamamos levante, mantêm-se com frequência durante a tarde e às vezes também à noite, como aconteceu, conforme dizes, no caso da perseguição do Dei Gloria. No Inverno, o vento costuma rodar mais tarde para noroeste para vir de terra pela manhã... Um vento de poente ou um mistral podiam tê-lo empurrado para sudeste.
Observou-a de soslaio. Voltava a roer a unha do polegar com os olhos cravados na carta. Coy deixou cair o lápis, que rolou sobre o papel. Sorria.
— Além disso — disse —, temos de descartar tudo o que não se ajusta à tua hipótese... Não é verdade?
— Não se trata da minha hipótese. O normal era calcularem a longitude segundo o meridiano de Cádis. Repara.
Desdobrou, com estalido de papel, uma das reproduções da carta de Urrutia que trouxera nessa manhã do Museu Naval. Depois, com os seus dedos de unhas rombas, foi apontando o traçado vertical dos diferentes meridianos, enquanto explicava a Coy que Cádis, primeiro no observatório da cidade e mais tarde no de San Fernando, tinha sido o meridiano principal usado pelos marinheiros espanhóis na segunda metade do século XVIII e em boa parte do século XIX. Mas o meridiano de San Fernando só começou a ser utilizado em 1801. De modo que a referência em 1767 era ainda a linha de pólo a pólo que passava pelo observatório situado no castelo dos guardas-marinhas de Cádis.
— De modo que é natural o capitão do Dei Gloria ter utilizado Cádis como meridiano para medir a longitude. Repara. Dessa forma, todos os valores encaixam, especialmente aqueles 4 graus 51 minutos que o ajudante de piloto deu como sendo a última posição conhecida do Dei Gloria. Se contarmos do meridiano de Cádis para este, o ponto do naufrágio fica situado aqui, vês?... Neste sítio, a este de Punta Calnegre e a sul de Mazarrón.
Coy observou a carta. Não era a zona pior. Era relativamente abrigada e perto da costa.
— Isso é no Urrutia — disse. — E nas cartas modernas?
— Aí as coisas complicam-se para nós porque, na época em que Urrutia elaborou o seu Atlas Marítimo, a longitude estabelecia-se com uma precisão menor que a latitude. Ainda não se tinha aperfeiçoado o cronometro marítimo que permitiu calculá-la de uma forma exacta.
Por isso, os erros de longitude são mais apreciáveis. .. O cabo de Paios, onde tu de imediato deste conta de um erro de alguns minutos na latitude, está, no que se refere à longitude 0 graus 41,3 minutos a oeste do meridiano de Greenwich. Para o situar relativamente ao meridiano de Cádis nas cartas modernas é necessário subtrair essa cifra da diferença de longitude que existe entre Cádis e Greenwich... Não é verdade?
Coy concordou, divertido e expectante. Tânger não só tinha a lição bem estudada, como conseguia calcular graus e minutos com a desenvoltura de um marinheiro. Ele próprio teria sido incapaz de memorizar aqueles dados. Compreendeu que ela precisava dele mais para os aspectos práticos e para confirmar os seus próprios cálculos do que para qualquer outra coisa. Não era a mesma coisa navegar em cima de um papel, num quinto andar, diante da Estação de Atocha, ou estar no mar, no convés oscilante de um barco. Prestou atenção às anotações a lápis que ela fazia num bloco.
— Isso dá-nos — explicou Tânger — 5 graus 50 minutos de situação de Paios relativamente ao meridiano de Cádis, nas cartas modernas. Mas na carta de Urrutia, a situação é de 5 graus 34 minutos, vês?... Temos, então, uma margem de erro de dois minutos de latitude e de dezasseis de longitude. Repara. Usei as tabelas correctoras que figuram nas Aplicações de Cartografia Histórica de Néstor Perona... Utilizando-as ao longo da costa, de Cádis ao cabo, permitem situar cada posição do Urrutia relativamente a Cádis em posições actuais relativamente a Greenwich.
A luz do crepúsculo já se retirara para as paredes e para o tecto do aposento, enchendo a mesa de ângulos de sombras, e ela interrompeu o que fazia para acender um candeeiro que reflectiu a sua luz no centro da carta. Depois cruzou os braços e ficou a olhar para o traçado.
— Aplicando as correcções, a posição a este do meridiano de Cádis, que o ajudante de piloto atribuiu ao Dei Gloria, estaria nas cartas modernas no Io 21 minutos a oeste de Greenwich. Evidentemente, não é de todo exacta, e teríamos nesse lugar uma margem de erro razoável: um rectângulo de uma milha de altura por duas de largura. É a nossa área de busca.
— Não é demasiado pequena?
— Tu próprio o referiste outro dia: sem dúvida ter-se-ão situado, tirando azimutes a terra. Com a sua própria carta e uma bússola, isso permite-nos afinar.
— Não é tão fácil. A sua agulha padrão podia ter erros, ignoramos se nessa época era muita a declinação magnética, pode ter havi-do uma leitura precipitada... Muitas coisas podem invalidar os teus cálculos. Nada garante que irão coincidir com os deles.
— É preciso tentar, não é?... Disso se trata.
Coy estudou o lugar da carta, tentando traduzir aquilo em água do mar. Calculava uma zona de busca de seis a dez quilómetros quadrados. Uma tarefa difícil, caso as águas estivessem turvas ou o tempo tivesse depositado demasiado lodo e areia sobre os restos do Dei Gloria. Explorar a zona podia exigir-lhes, no mínimo, um mês. Usou o compasso de pontas no Urrutia para calcular a longitude este relativamente a Cádis, passou-a depois para a carta moderna 463A, a fim de a transformar em longitude oeste de Greenwich e voltou depois a transferir a estimativa para o Urrutia. Consultou as tabelas de correcção feitas por Tânger. Continuava tudo dentro de margens aceitáveis.
— Talvez possa fazer-se — disse.
Tânger não tinha perdido pitada dos movimentos dele. Agarrou num lápis para traçar um rectângulo sobre a 463 A.
— A ideia é que o Dei Gloria está nalgum lugar dessa área. A uma profundidade que vai dos vinte aos cinquenta metros.
— Que tipo de fundo tem?... Suponho que terás visto isso. Ela sorriu antes de desdobrar uma carta de navegação costeira
de média escala, a nº 4631, correspondente ao golfo de Mazarrón desde Punta Calnegre a Punta Negra. Coy reparou que se tratava de uma edição recente, com correcções por avisos aos navegantes, datados daquele mesmo ano. A escala era muito grande e pormenorizada, e cada sonda era acompanhada pela sua correspondente descrição do fundo. Era o que de mais preciso podia encontrar-se dessa zona.
— Lodo arenoso e alguma rocha. De acordo com as referências, bastante limpo.
Coy levou o compasso de pontas na escala das latitudes, calculando novamente a área. Uma milha por duas, diante de Punta Negra e da Cueva de los Lobos. Considerando que nesse sítio um minuto de longitude equivalia a 0,8 milhas, o sector ficava definido entre 1 graus 19,5 minutos oeste e 1 graus 22 minutos oeste, e entre 37° 31,5 minutos norte e 37° 32,5 minutos norte. Observava com prazer a costa ocre familiar, as franjas azuladas clareando nas extremidades à medida que se escalonavam afastando-se da costa. Comparou aqueles desenhos com as suas próprias recordações, situando mentalmente referências de montanhas terra adentro, nas curvas de nível topográfico que se concentravam no cabeço de Las Víboras, no cabeço de Los Pájaros e no Morro Blanco.
— Tudo isto é muito relativo — disse passado algum tempo. — Não teremos a certeza de nada até estarmos no mar, situando-nos com as cartas e com as marcações que fizemos em terra... É inútil definir daqui a área de busca. Até agora não temos mais do que um rectângulo imaginário desenhado num papel.
— Quanto tempo demoraríamos a explorar isso? -Nós?
— Claro. — Ela fez a pausa precisa. — Tu e eu.
Outra vez aquele tu e eu. Coy mal esboçou um sorriso. Abanava a cabeça.
— Precisaremos de mais alguém — disse. — Precisamos do Piloto.
— O teu amigo?
— Esse mesmo. E já escorreu mais água das camisolas dele do que aquela em que eu naveguei em toda a minha vida.
Pediu-lhe que lhe falasse dele e Coy fê-lo muito por alto, ainda com aquele meio sorriso ao recordar-se. Falou rapidamente da sua juventude, do Cemitério dos Barcos Sem Nome, do primeiro cigarro e do marinheiro queimado e magro, de cabelo prematuramente grisalho, dos mergulhos à procura de ânforas, das saídas piscatórias ao anoitecer ou ao amanhecer, ou da observação das lulas que iam dormir a terra na Punta de La Podadera. E do Piloto, do seu odre de vinho, do seu tabaco escuro e do seu barco balançando na ondulação. Ou talvez não tenha falado tanto como julgou razê-lo, e se tenha limitado a referir, conciso, alguns episódios desconexos, e as suas lembranças tenham feito o resto, atropelando-se naquele meio sorriso. E Tânger, que o olhava atenta sem perder uma expressão ou uma palavra, compreendeu o que aquele nome significava para Coy.
— Disseste que tem um barco.
— O Carpanta, um veleiro de catorze metros, com poço central, coberta à popa, motor de sessenta cavalos e compressor para garrafas de ar.
— Achas que o alugaria?
— Fá-lo de vez em quando. Tem de viver.
— Refiro-me a nós. A ti e a mim.
— Claro. Até afundaria o barco se eu lhe pedisse. — Pensou um pouco. — Bom, afundá-lo talvez não. Mas qualquer outra coisa, com certeza.
— Oxalá não cobre muito. — Parecia inquieta. — Nesta primeira fase, os recursos são escassos. Trata-se das minhas poupanças.
— Conseguiremos — tranquilizou-a Coy. — De qualquer forma, se o barco está à profundidade que tu dizes, a equipa de busca será mínima... Uma boa sonda de pesca e um aquaplano a reboque, que se constrói com uma tábua de madeira e cinquenta metros de cabo, devem bastar.
— Perfeito.
Não perguntou se o amigo dele era de fiar. Limitava-se a olhar para ele como se a sua palavra fosse uma garantia.
— Além disso — disse Coy —, o Piloto foi mergulhador profissional. Se lhe garantires um salário adequado para cobrir as despesas e uma parte razoável se houver lucros, podemos contar com ele.
— Evidentemente que o garanto. Quanto a ti...
Olhou-a nos olhos, esperando que prosseguisse, mas ela emudeceu sustendo o seu olhar. Também há uma faísca de sorriso aí dentro, disse para consigo. Ela também sorri, talvez porque agora tem dois marinheiros e um barco e um rectângulo de uma milha por duas traçado a lápis numa carta náutica. Ou talvez...
— Sobre mim falaremos depois — disse Coy. — Por agora, arcas com os meus gastos, não é verdade?
Continuava imóvel, olhando-o com a mesma expressão e com aquela luzinha que parecia bailar no fundo das suas íris azul-marinhas. É só um efeito da luz, pensou ele. Talvez seja o entardecer, ou o reflexo do candeeiro aceso.
— Claro — disse ela.
Decidiu ficar a dormir, e fê-lo sem que nenhum dos dois pronunciasse demasiadas palavras a esse respeito. Trabalharam até muito tarde e, por fim, ela esticou os cotovelos para trás, rodou o pescoço como se lhe doessem as cervicais e dirigiu a Coy um pequeno sorriso, fatigada e distante, como se tudo o que tivessem sob o cone de luz do candeeiro de mesa — as cartas de navegação, as notas, os cálculos — deixasse de lhe interessar. Então disse, estou cansada e não aguento mais, levantando-se e olhando à sua volta com estranheza, como se tivesse esquecido onde estava. De repente, os seus olhos ficaram imóveis e escureceram quando se deteve no sítio onde tinha estado o cadáver de Zas. Nessa altura pareceu recordar-se e, de súbito, tal como quem entreabre uma porta por descuido, Coy viu-a cambalear, apenas alguns milímetros, e conseguiu captar o arrepio que lhe percorreu a pele como se uma corrente de ar tivesse acabado de entrar pela janela: a mão apoiada num canto da mesa, o olhar desamparado que vagueou pelo aposento, procurando onde abrigar-se até se recompor, precisamente antes de chegar a Coy. Nessa altura já parecia novamente senhora de si própria. Mas ele já tinha aberto a boca para sugerir posso ficar aqui se quiseres, ou talvez seja melhor não te deixar sozinha esta noite, ou alguma coisa do género. Ficou assim, com a boca aberta, porque nesse momento ela encolheu os ombros quase interrogante, olhando para ele. Então, manteve-se calado um pouco mais, e ela repetiu o gesto, a forma deliberada de encolher os ombros que parecia reservar para as perguntas cuja resposta lhe era indiferente. Depois, ele disse talvez deva ficar, e ela respondeu sim, claro, em voz baixa e com a frieza de sempre, e abanou afirmativamente a cabeça como se considerasse adequada a sugestão, antes de sair pela porta do quarto de dormir para trazer um saco-cama militar: um verdadeiro saco-cama do exército, verde, que estendeu no sofá, colocando por baixo um assento a fazer de almofada. Depois, em poucas palavras, explicou onde era a porta da casa de banho e onde tinha uma toalha limpa antes de se retirar e fechar a porta.
Lá em baixo, ao longe, entre a escuridão que se estendia no outro lado da estação, as luzes duradouras dos comboios deslocavam-se enganosamente devagar. Coy dirigiu-se à janela e ficou ali quieto, olhando para a claridade mortiça dos bairros mais afastados, para as luzes da rua aos seus pés, para os faróis dos poucos carros que transitavam pela avenida deserta. O cartaz do posto de gasolina estava aceso mas não viu ninguém, além do empregado que saía da sua guarita para atender um automobilista. Nem o anão melancólico nem o caçador de naufrágios estavam à vista.
Ela tinha deixado música na aparelhagem. Era uma melodia muito lenta e triste que Coy nunca tinha ouvido. Foi até lá e olhou para a capa do disco: Après La pluie. Ignorava tudo sobre aquele E. Satie — talvez fosse amigo de Justine —, mas o título pareceu-lhe apropriado. A música fazia pensar no convés húmido de um barco imóvel num mar cinzento e em calma, ainda visíveis na água os círculos concêntricos das últimas gotas de chuva, pequenas ondulações parecidas ao roçar de medusas à superfície ou minúsculas ondas de um radar, e em alguém que olhava para tudo isso com as mãos apoiadas numa amurada molhada, enquanto nuvens sombrias se afastavam, negras e baixas, na linha do horizonte.
Sentia-se nostálgico, quando levantou os olhos procurando inutilmente uma estrela. A claridade da cidade cobria o céu. Colocou uma mão em pala para baixo e, quando os seus olhos se habituaram, conseguiu ver algumas, débeis pontinhos luminosos à distância. Sobre as cidades, quando era possível distinguir alguma, as estrelas pareciam sempre mortiças, diferentes, desprovidas de brilho e de significado. Sobre o mar, no entanto, eram referências úteis, caminhos e companhia. Coy tinha passado longas horas de vigia em alto mar, de cotovelos apoiados numa das asas da ponte, vendo desaparecer, na Primavera, Sírius e as sete Plêiades no céu vespertino ocidental, para depois aparecerem, no Verão, no outro lado da noite, no céu matutino de levante. Devia, inclusivamente, a vida às estrelas. E durante uma breve e intensa etapa da sua juventude, até o ajudaram a evitar a prisão de Haifa. Porque, numa lúgubre madrugada de Agosto, estando prestes a entrar em águas libanesas a bordo do Otago, um pequeno cargueiro que navegava de Lárnaca para Sídon, sem luzes para enganar o bloqueio israelita, antes de dobrar o farol de Ziri — um relâmpago cada três segundos, visível a seis milhas — Coy tinha avistado, enquanto aguardava o aparecimento de Castor e Pólux a oriente do horizonte, a silhueta negra de uma lancha em fiscalização, de vigia a coberto da linha escura, diante da costa para a qual se dirigiam. O barco, 3000 toneladas com bandeira da Monróvia com armador espanhol, capitão norueguês e tripulação grega e espanhola, que oficialmente transportava sal entre Torrevieja, Trieste e Pireu, tinha estado imóvel durante algum tempo até o capitão Raufoss, com os binóculos nocturnos na cara e blasfemando entre dentes em viquingue, confirmar essa história da lancha em fiscalização. Depois deu a volta devagar, leme todo a estibordo, máquinas devagar a vante e nem um cigarro aceso a bordo, afastando-se discretamente na escuridão, eco não identificado no radar israelita, com rumo de regresso ao cabo Greco. E a agudeza visual de Coy, nessa altura jovem segundo-piloto com a tinta do cargo ainda fresca, tinha sido recompensada por Raufoss com uma garrafa de cerveja Balvenie e uma palmada nas costas da qual se ressentiu durante uma semana. Sigur Raufoss tinha sido o seu primeiro capitão como oficial: largo, sanguíneo, ruivo, excelente marinheiro. Como a maior parte dos homens da sua nacionalidade, não possuía a arrogância dos capitães ingleses e superava-os em competência profissional. Não se fiava nos pilotos ainda sem cabelos brancos, era capaz de fazer passar o seu barco pelo buraco de uma agulha, e nunca estava sóbrio ancorado nem ébrio navegando. Coy fez com ele trezentos e sete dias de mar no Mediterrâneo, mudando depois de barco mesmo a tempo, duas viagens antes de a sorte ter acabado para o capitão Raufoss. Transportando sucata a granel de Valência para Marselha, soltou-se-lhe a carga a meio de um mistral de Inverno, com força dez, no golfo de León. Deu a volta indo ao fundo com quinze homens lá dentro, sem deixar qualquer rasto além de uma mensagem de emergência captada pela rádio costeira de Mont Saint-Loup através do canal dezasseis VHF: Otago em 42° 25 minutos norte e 3 graus 53,5 minutos este. De capa no mar com forte abatimento. Mayday, mayday. Depois, nem um vestígio flutuante, nem um salva-vidas, nem uma bóia. Nada. Só o silêncio e o mar impassível que esconde os seus segredos há séculos.
Olhou para o relógio, ainda não era meia-noite. A porta do quarto de Tânger estava fechada e a música acabara. Coy sentiu o silêncio que vinha depois da chuva. Deu alguns passos pelo aposento, sem rumo definido, observando os Tintins nas prateleiras, os livros alinhados, o postal de Antuérpia, a taça de prata, a fotografia emoldurada. Já dissemos anteriormente que ele não era um tipo brilhante e que o sabia, com a consciência agravada pelo seu estado de espírito relativamente a Tânger Soto. No entanto, conservava um sentido de humor particular, aquela facilidade natural para troçar de si próprio ou da sua falta de jeito; um fatalismo mediterrânico que lhe permitia tirar o melhor partido de qualquer situação. Essa consciência, ou certeza, é natural que o tornasse circunstancialmente menos estúpido do que qualquer outro homem teria sido numa situação idêntica. Além disso, o hábito de observar o céu, o mar e o ecrã do radar à procura de sinais para interpretar, tinha acentuado nele um certo tipo de instintos, ou intuições tácticas. Nesse contexto, os indícios à vista naquela casa pareciam-lhe cheios de significados. Eram, determinou, marcos reveladores de uma biografia rectilínea, sólida, desprovida de fendas na aparência. E, no entanto, alguns daqueles objectos, ou o ângulo frágil da sua proprietária que revelavam como a parte visível de um icebergue, também podiam inspirar ternura. Mas ao contrário das atitudes, das palavras e das manobras que ela esgrimia para a obtenção dos seus fins, nas pequenas pistas disseminadas pela casa, na sua relevância equívoca, em todas as circunstâncias que tinham Coy por testemunha, actor e vítima, era evidente a ausência de calculismo. Aqueles indícios não estavam à vista deliberadamente. Eram parte de uma existência real e tinham muito a ver com um passado, com recordações não explícitas, mas que, sem dúvida, suportavam o resto, o vigamento e a aparência: a criança, o soldado, os sonhos e a memória. Na moldura, a rapariga loura sorria sob o braço protector do homem bronzeado da camisa branca. E o sorriso tinha um parentesco óbvio com outros que Coy conhecia nela, mesmo com os perigosos, mas também registava uma manifesta frescura que a tornava diferente. Alguma coisa luminosa, radiante, de vida cheia de possibilidades não descobertas, de caminhos por percorrer, de felicidade possível e talvez provável. Era como se naquela fotografia ela sorrisse pela primeira vez, da mesma forma que o primeiro homem acordou no primeiro dia e viu à sua volta o mundo recém-criado, quando estava tudo por viver partindo de um único meridiano zero, e não existiam os telemóveis, nem as marés negras, nem o vírus da sida, nem os turistas japoneses, nem os polícias.
No fundo, era essa a questão. Eu também já sorri assim, pensou. E aqueles modestos objectos disseminados pela casa, a taça amolgada, a fotografia da rapariga coberta de sardas, eram os restos do naufrágio daquele sorriso. Adivinhá-lo fez que alguma coisa lhe gotejasse no íntimo, como se a música que já não soava escorregasse devagarinho pelas suas entranhas humedecendo-lhe o coração. Então sentiu-se desamparado, como se fosse ele e não Tânger quem sorria na fotografia com o homem da camisa branca. Ninguém consegue proteger alguém para sempre. Reconhecia-se naquela imagem, e isso fê-lo sentir-se órfão, solidário, melancólico e furioso. Primeiro, foi um sentimento de desolação pessoal, de extrema solidão que lhe subiu pelo peito até à garganta e aos olhos. Depois, uma cólera pura, intensa. Olhou para o lugar onde tinha estado Zas e depois os seus olhos encontraram o cartão de Nino Palermo rasgado em pedaços em cima da mesa. Ficou assim um tempo, imóvel. Depois consultou novamente o relógio, juntou os pedaços e agarrou no telefone. Marcou o número sem se apressar e, passado pouco tempo, ouviu a voz do caçador de naufrágios. Estava no bar do seu hotel e, evidentemente, teria muito gosto em encontrar-se com Coy dentro de quinze minutos.
O porteiro fardado estudou com desconfiança as suas sapa-tilhas brancas e as calças de ganga coçadas sob o casaco de marinheiro quando o viu franquear a porta dupla envidraçada, introduzindo-se no vestíbulo do Palace. Nunca tinha lá estado, de modo que subiu os degraus, atravessou-o pisando os tapetes e o chão de mármore branco e parou um instante, indeciso. A direita havia uma grande tapeçaria antiga e à esquerda a porta do bar. Continuou em frente até à rotunda central e parou outra vez sob as colunas que circundavam o recinto. Ao fundo, um pianista invisível tocava Cambalache, e a música diluía-se no discreto rumor das conversas. Era tarde, mas havia gente em quase todas as mesas e sofás. Gente bem vestida, casacos, gravatas, senhoras com jóias, mulheres atraentes, empregados impecáveis que se moviam silenciosamente. Um carrinho mostrava várias garrafas de champanhe arrefecendo no gelo. Tudo muito elegante e correcto, apreciou. Como no cinema.
Deu alguns passos na rotunda, fez caso omisso do empregado que lhe perguntou se desejava uma mesa e dirigiu-se, leme a meio, rumo a Nino Palermo, cujo perfil acabava de avistar num sofá, sob o grande lustre central que pendia da cúpula envidraçada. Estava acompanhado pela mesma secretária do leilão de Barcelona, agora vestida de escuro, saia curta, pernas visíveis até meia coxa e educadamente juntas nos joelhos, inclinadas obliquamente para um lado, com sapatos de tacão alto. Manual da secretária perfeita em serão com o chefe, secção indumentária, página cinco. Estava sentada entre Palermo e dois indivíduos com aspecto nórdico. O caçador de naufrágios não viu Coy até este estar muito perto dele. Nessa altura pôs-se de pé, abotoando o casaco assertoado. O seu rabicho estava apanhado com uma fita preta. Vestia um fato cinzento-antracite, gravata de seda sobre camisa azul-clara, e os sapatos pretos, as correntes de ouro e o relógio brilhavam muito mais do que o seu sorriso. Também brilhou o anel com a moeda antiga, quando estendeu a mão para apertar a de Coy.
— Folgo que se tenha tornado razoável — disse Palermo.
O tom amistoso gelou-se-lhe na boca a meio da frase, com a mão inutilmente estendida. Olhou para ela um momento, surpreendido por a ver assim vazia, e depois retirou-a devagar, desconcertado, estudando interrogativamente o recém-chegado com os seus olhos bicolores.
— Você foi demasiado longe — disse Coy.
A careta perplexa do outro intensificou-se de repente, arrogante.
— Continua com ela? — perguntou com frieza.
— Isso não lhe interessa.
Palermo parecia reflectir. Fez tenções de olhar de soslaio para os dois homens que esperavam no sofá.
— Você ontem disse que estava... Não foi? Fora disto. E quando telefonou há bocado... Valha-me Deus! Achei que aceitava trabalhar para mim.
Coy reteve o ar nos pulmões. O outro tinha alguns palmos de altura a mais e ele observava-o de baixo, com as mãos largas pendendo-lhe de ambos os lados. Balançou-se um pouco sobre a ponta dos pés.
— Você foi demasiado longe — repetiu.
A íris esverdeada estava mais dilatada que a parda, mas as duas pareciam blocos de gelo. Palermo voltou a observar de soslaio os seus acompanhantes. Agora torcia a boca, com desprezo.
— Não imaginei que viesse incomodar-me — disse. — Você... Um palhaço, é o que é. Porta-se como um palhaço.
Coy abanou afirmativamente a cabeça por duas vezes. As mãos tinham-se separado um pouco mais do corpo e sentia os músculos dos ombros, braços e estômago tensos tal como nós de pescador bem apertados. Palermo dera meia volta, como se quisesse terminar a conversa.
— Vejo — disse — que aquela cabra o seduziu bem.
Dita a última palavra fez tenções de voltar ao sofá; mas não passou disso, de uma intenção, porque Coy já tinha feito os seus cálculos com rapidez e sabia que o outro era mais alto, não era fraco e não estava só, e que é melhor bater num homem quando ainda está a falar porque os seus reflexos são menores. De modo que se balançou novamente sobre a ponta dos pés, devorou mentalmente uma lata de espinafres, esboçou um sorriso rápido para tornar Palermo confiante e, no mesmo impulso, assestou-lhe uma joelhada rápida nos testículos, tão brutal que, um segundo depois, quando o outro se inclinava sobre o estômago com o rosto congestionado e falta de ar, conseguiu atingi-lo sem grande esforço com um segundo golpe, uma cabeçada no nariz que estalou sob a sua testa como se alguém tivesse partido um móvel. Tinha aprendido aquilo com precisão coreográfica durante uma refrega no bairro marítimo de Hamburgo. O terceiro movimento, no caso improvável de o adversário rabear, consistia em dar-lhe outra joelhada na cara; e, para rematar, enchê-lo de porrada. Mas verificou que não era necessário. Palermo tinha caído de joelhos, branco e abatido como um saco de batatas, com a cara apoiada numa coxa de Coy, manchando-lhe as calças de ganga com o sangue escandalosamente vermelho que lhe jorrava do nariz.
Depois, tudo se complicou diabolicamente em cinco segundos. A secretária pôs-se a gritar atirando-se para trás no sofá, e perdeu a compostura dando pontapés até mostrar as cuecas, que eram pretas. Os dois estrangeiros, inicialmente estupefactos, levantaram-se para socorrer o caído. Por outro lado, Coy viu pelo rabinho do olho como todos os empregados da sala e alguns clientes se atiravam para cima de si, antes de dar consigo a estrebuchar, agarrado por várias mãos vigorosas que o levantavam pelo ar, arrastando-o para a porta como se o fossem linchar diante do olhar indignado ou atónito de empregados e clientes. As portas de vidro abriram-se, alguém gritou alguma coisa sobre chamar a Polícia e, nesse momento, Coy viu sucessivamente a fachada iluminada do edifício das Cortes, as luzes verdes dos táxis estacionados à porta e, também, o anão melancólico que o observava admirado do semáforo mais próximo. Não conseguiu ver mais porque o tinham preso pela cabeça, mas ainda avistou a cara endurecida do motorista berbere — toda a gente parecia estar no Palace naquela noite — antes de sentir um furioso puxão de cabelo que lhe atirou a cabeça para trás, e depois um, dois, três, quatro socos profissionais no plexo solar que lhe cortaram a respiração de chofre. Nessa altura caiu para o chão, com os pulmões vazios e abrindo a boca como um peixe fora de água. LAA: Lei do Ar Ausente, ou nunca estás quando preciso de ti. Daí ouviu uma sirene da Polícia e disse para consigo: fizeste das boas, marinheiro. Desta vez levas seis anos e um dia, e a pequena terá de mergulhar sozinha. Depois, após várias tentativas infrutíferas, conseguiu respirar um pouco melhor, embora o ar, que finalmente marcou presença, lhe doesse ao entrar e ao sair dos pulmões. As costelas de baixo pareciam mover-se por conta própria, e pensou que deveria ter alguma partida. Vida madrasta. Continuava no chão, de barriga para baixo, e alguém lhe pôs umas algemas que fizeram clique, clique nos pulsos, atrás das costas. Consolava-o o pensamento de que Nino Palermo iria recordar-se de Tânger Soto, dele e do pobre Zas cada vez que se olhasse ao espelho nos próximos dias. Depois levantaram-no de repente e uma luz cintilante bateu-lhe na cara. Sentia a falta do galego Neira, do Torpedeiro Tucumán e da restante Tripulação Sanders. Mas eram outros tempos e outros portos.
SOBRE CAVALEIROS E ESCUDEIROS
A cigana afastou-se depois de insistir ainda um pouco mais, e Coy pensou, vendo-a partir, que talvez a devesse ter deixado ler-lhe a mão e o futuro. Era uma mulher de meia-idade, com a cara morena sulcada por uma infinidade de rugas, e que prendia o cabelo com uma peineta(1) de prata. Grande, matrona, agitava a roda da saia ao menear-se com graça, parando para oferecer raminhos de alecrim às pessoas que passavam, a caminho da avenida ladeada de palmeiras que percorria as traseiras do Castelo de Santa Catalina, em Cádis. Antes de ir embora, despeitada pela recusa de Coy em aceitar um pouco de alecrim a troco de algumas moedas ou permitir que lhe lesse a sina, a cigana murmurara uma maldição, meio a brincar meio a sério, que agora pusera este a matutar: só há uma viagem que farás gratuitamente. Não era um marinheiro supersticioso — no tempo do Meteosat e do GPS, poucos do seu ofício ainda o eram —, mas conservava ainda algumas apreensões próprias da vida no mar. Talvez por isso, quando a cigana desapareceu
*1. Peineta: pente convexo, hoje já pouco usado pelas mulheres espanholas, que lhes segurava o cabelo servindo-lhes também de adorno. (N. da T.)
sob as palmeiras da Avenida Duque de Nájera, Coy olhou com inquietação para a palma da mão esquerda, antes de observar disfarçadamente Tânger que, sentada na mesma mesa da esplanada, conversava com Lúcio Gamboa, director do observatório de San Fernando, onde os três tinham passado uma parte do dia. Gamboa era capitão de navio da Armada mas vestia-se à paisana, com camisa aos quadrados, calças caqui e umas alpergatas de lona muito velhas e desbotadas. Nada nele denunciava a sua filiação castrense: gorducho, careca, loquaz, com uma barba descuidada e grisalha e uns olhos claros de normando, tinha um aspecto desmazelado e cordial. Falava há horas sem demonstrar sinais de fadiga, enquanto Tânger fazia perguntas, aprovava ou tomava notas.
Só há uma viagem que farás gratuitamente. Coy voltou a olhar para as linhas da mão, dizendo uma vez mais para consigo que talvez devesse ter deixado que a cigana as lesse. No caso de o prognóstico não lhe agradar, pensou, podia sempre rectificar a seu gosto as linhas com uma lâmina de barbear, como aquele marinheiro de papel e tinta, Corto Maltese, alto, bonito e com o seu brinco de ouro na orelha, com quem não se teria importado nada de parecer cada vez que via, fixos nele, os olhos de Tânger. Olhos que às vezes deixavam de prestar atenção às explicações de Gamboa para pousarem em Coy um momento, inexpressivos, serenos, constatando que ele continuava ali e que nada estava fora de controlo.
Sentiu uma pontada nas costelas baixas do lado esquerdo, ainda doridas pelos punhos do motorista berbere. O incidente tinha-se saldado por trinta e duas horas num calabouço do comissariado do Retiro e uma denúncia da gerência por escândalo e agressão, que se resolveria judicialmente nos próximos meses. Nada o impedia, por isso, de viajar até Cádis com Tânger. Quanto a Nino Palermo, após abandonar a clínica onde lhe foi efectuado um tratamento de urgência ao nariz, que o corpo médico definiu como lesionado mas sem fractura, tinha tido o cuidado de não recorrer aos seus advogados para instaurar qualquer procedimento legal. Isto estava longe de ser tranquilizador, pois, como disse Tânger, quando Coy saiu do comissariado e a encontrou esperando-o à porta, Palermo era o tipo de pessoa que não precisa de polícias ou de tribunais para resolver os seus assuntos.
Tornou a estudar a mão. Ao contrário de Tânger, com aquela linha longa e definida que lhe atravessava a mão, as suas linhas da vida e da morte, do amor e do que diacho fosse todo o resto, entre-cruzavam-se desordenadamente, em jeito de adriças de um veleiro depois de uma manobra difícil com vento forte e ondulação, como se alguém as tivesse agitado num copo de dados, atirando-as depois de qualquer maneira. De modo que insinuou um sorriso no seu íntimo. Nem a cigana mais perspicaz do mundo teria tirado a limpo o que quer que fosse de tudo aquilo. As chaves da viagem, fosse grátis ou com pagamento pontual do seu custo, não se escondiam nessas linhas, mas no olhar que sentia pousar-se nele de vez em quando. Esse, concluiu resignado, era o verdadeiro périplo que Atena lhe determinara.
Olhou para baixo da mesa. Tânger tinha as pernas cruzadas entre a saia azul rodada, e balançava lentamente um dos pés calçados com sandálias de cabedal. Observou os tornozelos pintalgados e depois o perfil da mulher, que nesse momento se inclinava sobre o caderninho onde tomava notas com a sua caneta de prata. Atrás dela, dourando-lhe quase até ao branco as pontas recortadas do cabelo, o Sol estava em declive a uma hora e meia do horizonte sobre o Atlântico, diante da praia de La Caleta, exactamente entre os castelos que a limitavam de um lado e do outro. Contemplou as velhas paredes com as ameias vazias, as guaritas de cúpula esférica situadas nos ângulos, a marca negra da água, que a preia-mar lambia nas pedras corroídas pela ondulação. Mantendo uma distância prudente da restinga de San Sebastián, uma vela movia-se devagar ao longe, em direcção ao norte, empurrada pelo sudoeste fresquinho. Força cinco na escala de Beaufort, calculou ao avistar os carneirinhos que eriçavam um pouco o mar e levantavam pequenos salpicos de espuma sobre o istmo que unia a terra firme ao castelo, com o enorme farol atrás das paredes ameadas das antigas baterias. Céu e água estavam impecavelmente azuis, de uma luminosidade que feria a vista, e rapidamente começariam a tingir-se com os tons avermelhados que antecediam o ocaso.
— Há algumas coisas — disse Gamboa — muito pouco usuais na vossa história.
Coy deixou de contemplar o mar e prestou atenção. Tânger e o director do observatório conheciam-se telefonicamente por motivos profissionais.
Tinham ido vê-lo a San Fernando, assim que chegaram de Madrid, de comboio até Sevilha e de carro alugado até Cádis, para que lhes facultasse documentação sobre o Dei Gloria e o corsário Chergui e lhes esclarecesse alguns pontos obscuros. Depois, Gamboa acompanhou-os à zona velha da cidade, convidando-os para umas tortilhas de camarões no Ca Felipe, na Calle de La Palma, onde o peixe fresco era exposto aos clientes debaixo do cartaz: Quase todos estes peixes actuaram como figurantes nos filmes do comandante Cousteau. Tinham acabado diante do mar, naquela esplanada de La Caleta.
— Oxalá fosse só algumas coisas — suspirou Tânger. Gamboa, que fumava um cigarro, riu-se, e os olhos nórdicos infantilizaram-lhe o rosto barbudo. Tinha os dentes desiguais, amarelados pela nicotina, com os incisivos bastante separados um do outro. Possuía um riso fácil, ria-se por qualquer coisa e abanava a cabeça de cima para baixo ao fazê-lo, como se qualquer pretexto fosse bom. Apesar dos seus preconceitos de marinheiro da marinha mercante a respeito da Armada, Coy gostou de Gamboa. Mesmo a sua forma amável, desenvolta, de namoriscar Tânger — um gesto, um olhar, a maneira como lhe oferecia os cigarros que ela recusava — era inofensiva, simpática. Quando o visitaram ao fim da manhã no seu gabinete do observatório, Gamboa também se riu com agrado ao descobrir, disse-o sem rodeios, como era bonita a colega de Madrid com quem até essa altura só mantivera, para sua desgraça, contactos telefónicos e epistolares. Depois observou Coy atentamente antes de lhe apertar demoradamente a mão, como se o contacto lhe permitisse calcular o género de relação que podia existir entre a sua colega do Museu Naval e aquele inesperado indivíduo silencioso, baixo e espadaúdo, de mãos grandes e andar desajeitado, que a escoltava. Ela limitara-se a apresentá-lo como um amigo que a ajudava na parte técnica do problema. Um marinheiro com muito tempo livre.
— Esse bergantim — prosseguiu Gamboa — vinha da América sem escolta... E é estranho, porque devido aos Ingleses, aos corsários e aos piratas, as ordenanças mandavam que qualquer navio mercante atravessasse o Atlântico em comboio.
Falava quase sempre dirigindo-se à rapariga, embora por vezes se voltasse para Coy para evitar, talvez, que se sentisse deslocado.
Suponho que não te importas, dizia o gesto. Não sei qual o teu papel nesta história, camarada, mas suponho que não te incomodas que fale com ela e lhe sorria. Compreende, estão de visita por pouco tempo e ela é atraente. Marinheiro com tempo livre ou em exclusividade, ou o que quer que sejas, ignoro o que há entre os dois, mas só quero apreciá-la um pouco. Algumas cervejas e umas risotas, já sabes, para carregar as baterias. Ah! Ah! É o que penso cobrar-vos pelos meus serviços. Dentro de pouco tempo será novamente toda tua, ou o que calhar, e poderás continuar a tentar a tua sorte. No fim de contas, a vida é breve e só de vez em quando nos põe pela frente mulheres como esta. Pelo menos a mim não mas põe.
— Havia paz com a Inglaterra nesse momento — comentou Tânger. — Talvez a escolta não fosse necessária.
Gamboa, que acabava de acender o seu enésimo cigarro, deixou o fumo sair por entre os incisivos e fez um gesto de concordância. Além da sua categoria de militar, era historiador naval. Antes de ser destacado para o observatório tinha estado encarregado do património histórico da marinha em Cádis.
— Pode ser uma explicação — admitiu. — Mas continuo a achar estranho... Em 1767, Cádis tinha o monopólio do comércio americano. Só onze anos depois é que Carlos III, com a carta de liberalização comercial, alterou a norma segundo a qual Cádis era o único porto a que se podia chegar em rumo directo desde a América... De modo que a viagem desse bergantim desde Havana pecou por alguma ilegalidade, se levarmos as ordens reais à letra. Ou, pelo menos, por alguma irregularidade — deu duas longas passas no cigarro, pensativo. — O normal é que antes de seguir viagem para Valência, ou qualquer que fosse o seu destino final, tivesse feito escala aqui — outra passa. — E, pelos vistos, não o fez.
Tânger tinha uma resposta para isso. De facto, Coy já se apercebera disso, ela parecia ter respostas para quase tudo. Era como se, mais do que indagar novos dados, tentasse confirmar os velhos.
— O Dei Gloria — explicou ela — beneficiava de um estatuto especial. Não te esqueças de que pertencia aos jesuítas e de que estes conservavam alguns privilégios. Os seus barcos tinham isen-Ções particulares, navegavam para a América e para as Filipinas com capitães, pilotos, roteiros e cartas náuticas da Companhia, e rodeavam-se daquilo que hoje poderíamos chamar opacidade fiscal... Essa foi uma das questões que se moveram contra eles no processo de expulsão que se preparava em segredo. Gamboa ouvia-a bastante atento.
— Com que então, os jesuítas, eh?
— Exactamente.
— Isso explicaria várias coisas inexplicáveis.
Ela passou muitas horas, disse Coy para consigo, nessa casa que conheço, diante da linha férrea da Estação de Atocha, dando voltas a isso. Passou dias e meses deitada naquela cama que, por vezes, entrevi, sentada diante da mesa repleta de livros e de documentos, juntando os cabos na sua cabeça impassível, como quem joga xadrez com os movimentos seguintes previstos de antemão. Traçando rumos que nos incluem a todos. Estou convencido de que esta conversa, este tipo barbudo e sorridente, esta paisagem de La Caleta, e talvez mesmo a hora da maré alta e da maré baixa, já os calculou com antecipação. A única coisa que se limita a fazer agora é preparar bem o barco, esmiuçar até ao último pormenor antes de se fazer ao mar. Porque ela é das que não se esquecem de nada em terra. Talvez nunca tenha navegado, mas tenho a certeza de que na sua imaginação já desceu dezenas de vezes aos destroços do Dei Gloria.
— De qualquer forma — disse Gamboa — é uma pena não dispormos de mais documentação — voltou-se um pouco na direcção de Coy. — ...O arquivo de Cádis é o único que não foi enviado para o Arquivo Geral da Marinha de Viso del Marquês, onde se centralizaram quase todos os documentos importantes que havia em El Ferrol e Cartagena, posteriores aos conservados no Arquivo das índias de Sevilha... Aqui, um almirante teimoso recusou separar-se dele. Resultado: o fundo documental completo queimou-se num incêndio, com todos os papéis dos séculos XVIII e XIX, incluindo alguns mapas originais da cartografia de Tofino.
Chegado a esse ponto, Gamboa deu outra passa no cigarro e soltou uma gargalhada jovial dirigida a Tânger.
— Não podia faltar, não é verdade? O incêndio da praxe. Ah! Ah! Mas suponho que isso dá um encanto aventureiro ao teu trabalho.
— Nem tudo se perdeu — esclareceu ela.
— Nem tudo, efectivamente. Há alguns documentos perdidos por aí. Mas ninguém sabe quais. Os planos do Dei Gloria, por exemplo, estavam esquecidos num sítio inimaginável, sob pilhas de papéis poeirentos, num paiol de instrumentos náuticos do arsenal de La Carraca... Entre material de barcos desmantelados, diários de bordo, cartas e uma infinidade de coisas por catalogar. Vi-os por acaso há cerca de um ano, quando procurava outra coisa. E ao receber o teu telefonema, lembrei-me... Foi uma sorte esse barco ter sido construído aqui.
Na realidade, esclareceu Gamboa em atenção a Coy, não se tratava dos planos do próprio Dei Gloria, mas do Loyola, seu irmão gémeo, pois foram ambos construídos em Cádis entre 1760 e 1762, com pouco tempo de diferença. A sorte, no entanto, não acompanhou nenhum dos dois. Antes do seu irmão de estaleiro, o Loyola perdeu-se em 1763 durante um violento temporal, no lugar de Sancti Petri. Coisas da vida: muito perto do sítio onde foi largado, apenas um ano antes. Havia barcos com muito má sorte, como, sem dúvida, Coy sabia por experiência profissional. E esses dois bergantins tinham má estrela.
Tinha proporcionado a Tânger uma cópia dos planos depois de lhes mostrar as instalações do observatório, a fachada branca com as colunas e a cúpula que resplandecia ao sol, os corredores caiados com os antigos instrumentos em expositores, os livros de náutica e de astronomia, a linha no chão que indicava o local exacto do meridiano de Cádis, e a magnífica biblioteca de madeira escura e estantes repletas. Aí, sobre uma mesa com expositor que continha obras de Kepler, Newton e Galileu, a Viagem a América Meridional e as Observações de Jorge Juan e António de Ulloa, e outros livros sobre as expedições do século XVIII para medir um grau de meridiano, Gamboa tinha aberto planos e documentos. Algumas cópias eram destinadas a Tânger, e o resto, originais de difícil reprodução, foram fotografados por ela, um após outro, com uma pequena máquina fotográfica que tirou do saco de cabedal. Tinha gasto dois rolos de trinta e seis fotografias, com o flash reflectindo-se nos quadros da parede e no vidro dos expositores, enquanto Coy, por curiosidade profissional, dava uma vista de olhos às antigas listas de efemérides náuticas e aos instrumentos de precisão que havia em todo o lado, vestígios do tempo em que o observatório de San Fernando era referência necessária na Europa do Iluminismo: um octante Spen-cer, um relógio Berthoud, um cronometro Jensen, um telescópio Dollond. Quanto ao Dei Gloria, Coy teve-o à sua frente quando Gamboa, após uma pausa premeditada e teatral, mostrou quatro planos à escala 1:55 que mandara fotocopiar para Tânger: um esbelto bergantim de trinta metros de comprimento e oito de boca, com dois mastros, velas quadrangulares, uma carangueja no mastro maior, e artilhado com dez canhões de ferro de quatro libras. Estas cópias estavam agora à frente deles, em cima da mesa da esplanada.
— Era um bom barco — disse Gamboa, contemplando a vela distante que já tinha passado diante da praia e desaparecia para lá do Castelo de Santa Catalina. — Como podem ver nos planos, de linhas muito simples e fácil de manobrar. Um barco moderno para a sua época, construído em coração de carvalho e teca, com o habitual convés corrido e com os canhões sobre este, com cinco portalós em cada bordo. Rápido e fiável. Se um chaveco conseguiu apanhá-lo, é porque, sem dúvida, já sofrera muito durante a travessia do Atlântico. Ah! Ah! Caso contrário... — agora o director do observatório olhava para Tânger com uma atenção risonha. — Essa é outra das pontas do mistério, não é verdade?... Porque não aportou em Cádis para reparações.
Tânger não respondeu. Brincava com a sua caneta de prata, abstraída nas cúpulas brancas da estância balnear que se erguia à esquerda, em estacas sobre a praia.
— E o Chergui} — perguntou Coy.
Gamboa, que observava a rapariga, voltou-se lentamente. O que se relacionava com o corsário era transparente, respondeu. E eles tinham tido muita sorte, pois entre a nova documentação havia material valioso. Como uma cópia da descrição do Chergui, cujo original tinha localizado na Secção de Corso e Presas, do Viso del Marquês. Infelizmente, não os planos desse barco, mas o de um chaveco de características semelhantes, o Halconero, de comprimento, armamento e aprestos idênticos.
— Ignoramos o lugar e ano da construção — explicou Gamboa, tirando um papel dobrado do bolso da camisa —, embora saibamos que operava usando Argel e Gibraltar como bases. Mas há descrições pormenorizadas do seu aspecto, feitas pelas vítimas ou por gente que se cruzou com ele durante as suas escalas ostentando pavilhão britânico, que depois mudava de acordo com as suas conveniências, pois os seus armadores eram, a meias, um maltês estabelecido em Períón e um comerciante argelino... Existe escrituração documentada das suas andanças entre 1759 e 1766. Mas o relatório mais minucioso — o director do observatório consultou as notas que trazia no papel — pertence a Dom Josef Mazarrasa, capitão do místico Podenco, que conseguiu escapar de um chaveco que identificou como sendo o Chergui em Setembro de 1766, após uma escaramuça por alturas de Fuengirola. E, como esteve prestes a ser abordado, conseguiu observá-lo, infelizmente, muito de perto. No castelo de proa estava um europeu, descrição que pode coincidir com a do inglês conhecido como Slyne, ou capitão Mizen, e a tripulação, numerosa, parecia ser composta por mouros e europeus, estes últimos, sem dúvida, ingleses. — Gamboa voltou a consultar as suas notas — ...O Chergui era um chaveco de portalós e clássica meia coberta alta no castelo de popa, com os mastros grande e de mezena aparelhados de polaca, e o traquete com vela latina, bastante rápido entre os do seu tipo, com cerca de trinta e cinco metros de comprimento e oito ou nove de boca. Segundo o capitão Mazarrasa, a quem o recontro deixou cinco mortos e oito feridos a bordo, o seu porte era de quatro canhões compridos de seis libras, outros oito de quatro e, pelo menos, quatro morteiros. Ao que parece tinha sido artilhado em Argel com boas peças de bronze, antigas mas eficazes, de uma velha corveta francesa capturada, a Flamme... Esse armamento tornava-o temível contra navios de menor porte e linhas mais frágeis, como eram o Podenco e o Dei Gloria... No caso de, efectivamente, se ter encontrado com este último.
— Tenho a certeza disso — disse Tânger. — Encontraram-se. Tinha deixado de contemplar a estância balnear e franzia um
pouco o sobrolho, com um ar obstinado. Gamboa dobrou novamente o papel e entregou-lho. Depois ergueu uma mão, como se não tivesse nada a objectar.
— Nesse caso, o capitão do Dei Gloria devia ser um homem de muita coragem. Aguentar a perseguição, não se refugiar em Cartagena e travar combate com o Chergui penol a penol, não era qualquer um que o fazia. E essa viagem sem escalas desde Havana... — estudou Coy e depois a rapariga, sorrindo perspicaz. — Suponho que se trata disso, não é verdade?
Coy encostou-se para trás na cadeira, de cujas costas pendia o seu casaco. É a mim que perguntas isso?... revelava a sua expressão. É ela que está ao comando.
— Há coisas que quero esclarecer — disse Tânger, após um breve silêncio. — É tudo.
Guardava na sua carteira, com muito cuidado, o papel com as notas. Gamboa dirigiu-lhe um olhar penetrante. Por um momento, a expressão plácida do director do observatório pareceu perder a sua inocência.
— Um bonito trabalho, de qualquer forma — insinuou, cauteloso. — Além disso, talvez houvesse a bordo... Não sei.
Procurava o seu maço de cigarros no bolso das calças. Coy reparou que empregava nisso mais tempo do que o necessário, como se tivesse uma coisa na cabeça que hesitava contar.
— A verdade — acabou por dizer — é que nem o barco, nem o rumo, nem a época são próprios de tesouros.
— Ninguém está a falar em tesouros — disse ela, muito lentamente.
— Claro que não. Nino Palermo também não me falou disso. Houve um silêncio. Até eles chegavam as vozes dos pescadores
que, ao pé da esplanada, no molhe, trabalhavam nos barcos varados ou remavam entre as pequenas embarcações ancoradas de proa ao vento. Um cão corria pela praia, perseguindo com latidos uma gaivota que planou impassível antes de se afastar em direcção ao mar alto.
— Nino Palermo esteve aqui?
Tânger olhava para a gaivota a afastar-se, e a sua pergunta só surgiu quando a ave já estava muito longe. Gamboa inclinava-se para acender um novo cigarro, protegendo a chama do isqueiro com as mãos em concha. A brisa levou o fumo por entre os seus dedos, enquanto os seus olhos claros faiscavam, divertidos.
— Claro que esteve aqui. Ah! Ah! A puxar-me pela língua, como vocês.
O vento sudoeste tinha aumentado alguns nós, calculou Coy. O necessário para levantar salpicos de espuma no molhe que acompanhava a antiga muralha sul da cidade. Gamboa contava a Sua história devagar, divertindo-se dessa maneira. Era óbvio que lhe agradava a companhia e que não tinha pressa. Fumava, andando entre os seus dois acompanhantes, demorando-se de vez em quando para passar os olhos pelo mar, pelas casas do Bairro de Vina, pelos pescadores que, imóveis junto das suas canas presas entre as pedras, contemplavam o Atlântico.
— Veio ver-me há coisa de um mês... Apareceu como aparecem eles, tudo muito ambíguo, com muitas cortinas de fumo. Perguntando pelo barco e pelo documento tal. Coisas diferentes que nos impedem de fazer uma ideia exacta do que realmente procuram — às vezes Gamboa sorria para Tânger e os seus incisivos separados acentuavam-lhe a expressão. — Trouxe uma lista de compras bastante extensa e nela, em oitavo ou nono lugar, camuflado entre outras coisas, estava o Dei Gloria... Eu sabia que tu andavas atrás disso, porque tínhamos falado várias vezes pelo telefone. E era evidente que Palermo ofegava atrás de uma pista fresca.
Ficou calado, olhando para o peixe que se debatia na ponta de uma linha de pesca. Um sargo. O pescador, um tipo magro de grandes patilhas e camisola branca de alças, soltou-o delicadamente do anzol, deitando-o para um balde, onde ficou a agitar-se, batendo debilmente a cauda, entre outros reflexos de prata.
— O que lhe contaste do Dei Gloria} — perguntou Tânger.
O vento colava-lhe às coxas o tecido leve da saia e fazia esvoaçar o colarinho da sua blusa entreaberta. Estava bastante favorecida, mas não desempenhava a personagem de rapariga atraente, constatou Coy. Nem a de desamparada. Parecia serena, competente. Franca, de igual para igual, com Gamboa: para que vamos enganar-nos entre nós, colega, de parceiro para parceiro; somos funcionários num mundo hostil, etc, o que posso contar que tu não saibas; a vida é dura e cada qual navega como pode; evidentemente que te trarei informado; e devo-te isso.
Era esperta, concluiu. Era muito esperta, ou talvez doentiamente intuitiva, com um sentido rigoroso dos mecanismos que regem os homens. Recordou o capitão-de-fragata do Museu Naval de Madrid, a expressão dele ao falar com ela no corredor, diante do gabinete. Sem dúvida um dos nossos, almirante. E saltava à vista que também com o director do observatório as coisas funcionavam do mesmo modo. Um dos nossos.
Agora Gamboa voltava a sorrir, como se a pergunta que ela tinha formulado fosse escusada.
— Contei-lhe o necessário — disse. — Ou seja, nada. Se acreditou em mim, isso já não sei... De qualquer forma, foi muito prudente a este respeito — voltou-se um pouco para Coy, como se esperasse a confirmação das suas palavras. — Suponho que conhece Nino Palermo.
— Conhece-o bem — disse ela.
Demasiado rápida a concretizar, disse Coy para consigo. Observava Tânger e ela estava consciente de que o fazia, porque desviou, com uma atenção excessiva, os olhos na direcção do mar. Talvez eu conheça Palermo, repetiu ele para si próprio, embora não demasiado bem. Mas tu confirmaste-o um pouco depressa de mais, linda. Confirmaste-o talvez um segundo antes do devido. E isso não é bom. Não numa rapariga esperta como tu. Pena que nesta altura ainda cometas esse tipo de erros. Ou que me tomes por tonto.
— Nem tanto — respondeu Coy a Gamboa. — Na realidade, não conheço esse sujeito tanto quanto gostaria.
— Pois você deve ser o único neste ofício.
— Ele não é deste ofício — disse Tânger.
O director do observatório ficou a olhar para eles. Novamente parecia reflectir sobre a relação existente entre eles os dois. Finalmente dirigiu-se a Coy:
— Gibraltino de pai maltês e mãe inglesa, ou seja, tradição pirata completa. Conheço Palermo há muito, desde o tempo em que eu trabalhava na ordenação dos arquivos do museu de Cádis... Uma das tentativas de resgatar o Santísima Trinidad, talvez a mais séria, foi feita por ele. O Trinidad foi no seu tempo o navio de guerra maior do mundo, um navio de quatro pontes e cento e quarenta canhões, que se afundou aquando da batalha de Trafalgar, enquanto os Ingleses tentavam rebocá-lo para Gibraltar. — Apontou para um ponto impreciso do mar, na direcção sudeste: — ... Está aí mesmo, a pouca distância de Punta Camarinal. Queria consegui-lo, como os Suecos conseguiram o Wasa ou os Ingleses o Mary Rose; mas a tentativa, como a maior parte destas coisas, tropeçou com a falta de entusiasmo da administração espanhola, que é...
— Como cão de moleiro... — comentou Tânger.
— Exacto. Nem come nem deixa comer.
Gamboa atirou o cigarro consumido para a espuma que batia nas rochas do molhe, e continuou a contar. Palermo era uma personalidade naquela zona, com aquele toque mafioso, tão mediterrânico, Coy entendia com certeza ao que se estava a referir. Marrocos estava perto, a poucas milhas, podia avistar-se de Gibraltar e Tarifa nos dias claros. Aquela era a fronteira da Europa. Palermo fundara Deadman's Chest há seis ou oito anos, e era conhecido pela sua falta de escrúpulos. Tinha interesses em Ceuta, Marbella e Sotogran-de, e trabalhava com gente perigosa de ambos os lados do estreito, assessorado por um gabinete de advogados especialistas em contrabando e sociedades fantasmas que lhe tiravam as castanhas do fogo quando ele ia demasiado longe.
— Não se conseguiu provar, mas atribui-se-lhe, entre outros desmandos, o saque clandestino dos restos do Nuestra Senora de Cillas, um galeão de Veracruz que naufragou em 1675 na enseada de Sanlúcar com um carregamento de lingotes de prata. — Gamboa torceu o nariz. — Não era uma grande fortuna, mas, ao tirá-la, os seus mergulhadores destruíram o barco, deixando-o imprestável para qualquer resgate arqueológico sério... Atribuímos-lhe várias canalhices desse tipo...
— É eficaz? — quis saber Coy.
— Palermo?... O mais eficaz possível! — Gamboa olhou para Tânger como se esperasse que esta confirmasse as suas palavras, mas ela permaneceu em silêncio. — ...Talvez o melhor dos que andam por aqui. Trabalhou em naufrágios de todo o mundo, e fez dinheiro combinando essa actividade com a recuperação e desmantelamento de navios afundados... Há algum tempo, quis associar-se a um projecto do pessoal de Fisher, com quem esteve a mergulhar no resgate do Atocha. Pretendiam fazer uma série de operações na foz do Guadalquivir, onde calcularam oitenta naufrágios de barcos que iam descarregar a Sevilha com mais ouro lá dentro, ah! ah! que o Banco de Espanha. Mas isto não é a Florida! Faltou a autorização oficial... Também houve outros problemas. Palermo é dos que defendem a doutrina clássica dos caçadores de tesouros: já que o trabalho é feito por eles e o Estado só dá as licenças, oito décimas Partes do lucro devem ser para os resgatadores. Mas em Madrid disseram que nem pensar, e também não tiveram sorte com a Junta de Andaluzia.
Gamboa deliciava-se com a conversa. Era loquaz e era o seu terreno. Esclareceu demoradamente Coy sobre o papel de Cádis na história dos naufrágios. De 1500 a 1820, entre duas a três centenas de barcos, contendo dez por cento do total de metais preciosos trazidos da América, tinham-se afundado ali. As águas turvas, a areia e o lodo que os cobriam e a desconfiança do Estado espanhol eram o problema. A própria marinha, acrescentou com uma careta, tinha um bom número de despojos perfeitamente localizados. Mas alguns velhos almirantes consideravam os naufrágios tumbas que não deviam ser violadas.
— Como decorreu a entrevista com Palermo? — perguntou Coy.
— Cordial e cautelosa de ambas as partes. — O director do observatório estudou Tânger por um instante antes de se dirigir novamente a Coy: — ...Conhece-o, deveras?
Coy, que caminhava com as mãos nos bolsos, encolheu os ombros.
— Ela exagerou um pouco. Na realidade, tratou-se de um contacto superficial.
Gamboa olhava-o com atenção, interessado. , — Um contacto, eh?
— Sim.
— E, superficial, como?
— Pois isso mesmo — Coy encolheu os ombros outra vez. — Limitado à superfície.
— Deu-lhe uma cabeçada no nariz — disse Tânger.
Tinha um meio sorriso, entre o cabelo dourado que a brisa do mar lhe alvoroçava em volta da cara. Gamboa parara para poder observá-los alternada e fixamente.
— No nariz?... Ora, ora, não me diga — agora dirigia-se a Coy com um respeito renovado. — Tem de contar isso, camarada. Estou a morrer de curiosidade!...
Coy contou-lhe em poucas palavras, sem floreados. Cão, hotel, nariz, comissariado. Quando terminou, Gamboa estudava-o pensativo, divertido, coçando a barba.
— Caramba! E, no entanto, mesmo para quem não conheça o seu historial, Palermo é um homem perigoso... E, além disso, há aquele olhar que nos desconcerta, porque não sabemos de que olho ocupar-nos.
— Ficou novamente a olhar para Coy, como se avaliasse a sua capacidade de bater nos narizes das pessoas. — ...Com que então, um contacto superficial, não é verdade?...Ah! Ah! Superficial.
Riu-se ainda um pouco mais, enquanto Coy estudava Tânger e ela sustinha o olhar, ainda com um sorriso na boca.
— Folgo que alguém tenha dado uma lição a esse cabrão arrogante — acabou Gamboa por dizer, quando começaram novamente a andar. —Já vos contei que apareceu por aqui como eles costumam fazer. Fumo e pistas falsas: escolhos da Florida, Zahara de los Atunes, Sancti Petri, baixios do Chapitel e do Diamante... Até a ria de Vigo e os seus famosos galeões...
Tinham deixado o mar para trás e internavam-se pelas velhas ruas perto da catedral, junto da torre de tijolo e dos muros da Igreja de Santa Cruz. A praça baixava em declive, com um Cristo num nicho, lampiões, sardinheiras e persianas nas varandas das casas muito antigas, cuja cal, como a de quase toda a cidade, era descascada pelo vento e pela humidade do mar próximo. Ali quase tudo eram sombras, e a luz poente retirava-se sobre os telhados. O chão daquela praça, contou Gamboa em honra de Coy, tinha sido empedrado com pedras americanas: o lastro dos navios que faziam a rota das índias.
— Como disse — prosseguiu —, e voltando a Nino Palermo, eu andava desconfiado... De modo que o deixei rondar sem lhe dar pistas que valessem a pena.
— Agradeço-te — disse ela.
— Não foi só por ti. Esse velhaco já me trocou as voltas há tempos, quando foi atrás do rasto das quatrocentas barras de ouro e prata, embora outros falem de meio milhão de moedas de prata de oito reais, do San Francisco Javier... Mas nestes casos, em vez de armar um escândalo que não beneficia ninguém, o melhor é fazer de conta e esperar. Ah! Ah! Há-de chegar a hora...
Andaram por entre os carros estacionados que dificultavam a passagem, cruzando-se com alguns tipos de má catadura. A zona fervilhava de tascas modestas cheias de pescadores desempregados, fura-vidas e mendigos. Um jovem, de ténis e com um ar de quem corria muito rapidamente os cem metros livres, seguiu-os durante uma parte do trajecto, pendente da carteira de Tânger, até Coy se voltar, pespegando-se a meio da rua com cara de poucos amigos e fazendo o rapaz decidir mudar de ares. Prudente, Tânger mudou a carteira de sítio. Agora colocou-a junto a um dos lados.
— O que te pediu Palermo, exactamente?
Gamboa parou para acender o cigarro que ela e Coy tinham acabado de recusar. O fumo saiu através da sua mão em concha.
— O mesmo que tu. Procurava planos — guardou o isqueiro, voltando-se para Coy. — Em qualquer trabalho sobre naufrágios, os planos são importantíssimos. Com eles pode estudar-se a estrutura do barco, calcular medidas e tudo o mais... Debaixo de água não é fácil orientarmo-nos porque o que encontramos, ao contrário do que acontece nos filmes, costuma ser um monte de madeiras podres, muitas vezes cobertas de areia. Saber onde está a proa, ou a extensão do convés, ou onde ficava o porão, já é um progresso notável. Com os planos e uma fita métrica, lá em baixo uma pessoa pode governar a vida razoavelmente — olhou intencionalmente para Tânger. — ...Evidentemente, consoante o que espera encontrar.
— Não se trata de procurar lá em baixo, em princípio — disse ela. — Isto é só uma investigação. A fase operativa virá depois, se é que vem.
Gamboa deixou sair um fiozinho de fumo por entre os seus incisivos amarelos.
— Claro. Ah! Ah! A fase operativa — os olhos dele semicerravam-se, maliciosos. — ... Qual era a carga do Dei Gloria?
Tânger também se riu com suavidade, pousando-lhe uma mão no braço.
— Algodão, tabaco e açúcar de Havana. Sabes de sobra.
— Está bem. — Gamboa coçava a barba. — De qualquer forma, se alguém localizar o barco e passar... Como disseste?... À fase operativa, tudo depende também daquilo que se procura. Se são documentos ou material perecível, não há nada a fazer.
— Evidentemente — disse ela, tão imperturbável como uma jogadora de póquer.
— O papel molha-se, e plufe. Arrivederci.
— Claro.
Gamboa voltou a coçar-se antes de dar outra passa no cigarro.
— Com que então algodão, tabaco e açúcar de Havana, não é verdade?...
O tom de voz era escarninho. Ela ergueu ambas as mãos, como uma miúda inocente:
— É o que diz a relação de embarque. Não é uma maravilha, mas permite fazer uma ideia bastante aproximada.
— Tiveste sorte ao encontrá-la.
— Muita. Veio para Espanha com os papéis da evacuação de Cuba, em 1898. Não para Cádis, onde se teria perdido no incêndio, mas para El Ferrol. Daí passou para Viso del Marquês, onde pude consultá-la na Secção de Navegação Mercantil.
— Tiveste muita sorte.
— Fui ver se encontrava alguma coisa e, de repente, apareceu-me diante dos olhos. Barco, data, porto, carga, passageiros... Tudo.
Gamboa examinou-a intensamente.
— Ou quase tudo — zombou.
— O que é que o leva a pensar que há mais alguma coisa? — perguntou Coy.
O outro sorria placidamente. Abanou a cabeça:
— Eu não penso, camarada. Limito-me a observar esta jovem senhora... E a constatar o interesse de Nino Palermo no mesmo assunto. E também a dar-me conta, porque estou nisto há anos e não nasci ontem, de que aquela viagem Havana-Valência, sem escala em Cádis, por muito manifesto havanês de carga que ela tenha visto em Viso del Marquês limpo de pó e de palha, cheira a operação encoberta... E se levarmos a data em consideração, e, por último, o armador que o fretava, a conclusão é óbvia: havia gato no Dei Gloria. O que aquele corsário afundou era tudo menos um barco inocente.
Dito isto, o director do observatório piscou um olho e riu-se novamente, expelindo o fumo do cigarro entre o espaço dos dentes.
— Ela também não o é — acrescentou.
Olhava para Tânger. E nessa altura, Coy viu-a rir-se por sua vez, tal como antes, com muita suavidade e com um ar inteligente, misterioso e cúmplice. Gamboa não parecia minimamente incomodado, mas divertido, tolerante relativamente a uma rapariga travessa que por alguma razão gozava da sua simpatia. E Coy verificou que, como em tantas outras coisas, ela também sabia rir da forma adequada, de modo que voltou a sentir um vago despeito, achando-se fora de tudo aquilo, deslocado e incómodo. Oxalá já estivéssemos lá, pensou. No mar, longe de todos, a bordo de um barco onde ela não tenha outro remédio senão olhar para mim durante todo o tempo. Ela e eu. Procurando barras de ouro, lingotes de prata ou o que lhe der na veneta.
Gamboa pareceu intuir a sua incomodidade, porque lhe dirigiu uma careta amistosa:
— Não sei o que ela procura — disse. — Nem sequer sei se você saberá. Mas, de qualquer forma, poucas coisas resistem dois séculos e meio na água. Os bichos xilófagos atacam a madeira, o ferro corrói-se e cobre-se de aderências...
— E o que acontece ao ouro e à prata? Gamboa observou-o com ronha:
— Ela disse que não estava à procura disso.
Tânger ouvia em silêncio. Por um momento, os olhos de Coy cruzaram-se com o seu olhar sereno, mas ela parecia indiferente à conversa.
— O que acontece com eles? — insistiu.
— A vantagem do ouro e da prata — explicou Gamboa — é que o mar os afecta muito pouco. A prata escurece, e o ouro... Bom. O ouro é bastante gratificante nos naufrágios. Não se oxida, nem fica verde, nem perde o brilho ou a cor. Tiramo-lo tal qual foi para o fundo — deu outra piscadela de olho, interrompendo-se, e depois voltou-se para Tânger. — ...Mas estamos a falar de tesouros, e isso já fia mais fino, não é verdade?
— Ninguém falou de tesouros — disse ela.
— Claro, ninguém. Palermo também não o fez. Mas um abutre como ele não se mexe por amor à arte.
— Isso é com Palermo, não comigo.
— Claro. Ah! Ah! — Gamboa, jovial, dirigia-se agora a Coy. — Claro.
Callejón(2) de los Piratas, leu este de repente numa fachada.
Aquela rua estreita e de paredes brancas deterioradas chamava-se
*2. Callejón: azinhaga, beco. (N. da T.)
nada mais, nada menos que Callejón de los Piratas. Releu a inscrição de azulejos, ainda incrédulo, confirmando que não se tratava de um erro. Tinha estado em Cádis outras vezes, conhecia a zona do porto, em especial os bares já desaparecidos da Calle Plocia, bastante frequentados nos tempos da Tripulação Sanders, mas não esta parte da cidade. Não aquele beco, indubitavelmente, cujo nome pitoresco esteve quase a fazê-lo dar uma gargalhada. Embora não tão pitoresco, afinal de contas. Nada mais adequado, raciocinou, para um sítio como este e para um grupo como o seu: um marinheiro sem barco e uma caçadora de tesouros na antiga Gadir fenícia, a cidade milenar de onde tantos barcos e tantos homens tinham zarpado ano após ano, século após século, para não mais voltar. Ao fim e ao cabo, fazia sentido. Se os passos de piratas e corsários ressoavam sobre aquelas pedras redondas e escuras, antigo lastro de barcos que traziam o ouro da América, o fantasma do Dei Gloria e dos seus tripulantes perdidos no fundo do mar, Tânger e ele próprio, talvez despertassem também os ecos adequados. Talvez aquilo que parecia relegado para certas páginas e imagens, território da infância, âmbito exclusivo dos sonhos, ainda fosse possível de alguma forma. Ou talvez o fosse porque certo tipo de sonhos continuava a espreitar entre sussurros de pedra e papel, em lápides e velhas paredes carcomidas pelo tempo, em livros que eram como portas abertas para a aventura, em maços de papéis amarelados que podiam significar começos de viagens apaixonantes, perigosas, capazes de multiplicar uma vida em mil vidas, com as suas respectivas etapas Stevenson e Melville, e a sua inevitável etapa Conrad. «Naveguei por oceanos e bibliotecas», lera uma vez, há muito tempo, nalgum sítio. Também podia acontecer, simplesmente, que tudo aquilo fosse abordável de uma forma determinada e não de outra, porque uma mulher lhe dava sentido. E porque, a partir de um dado momento, quando se dobrava esta ou aquela ponta de terra e uma parte da vida de um homem ficava em franquia, uma mulher, a mulher, era talvez o único motivo para olhar para trás. A única tentação possível.
Olhou para Tânger, que caminhava no outro lado de Gamboa, com a carteira presa debaixo do cotovelo, os olhos baixos, observando o chão diante das suas sandálias de cabedal, alheia ao nome da rua porque não precisava dele — ela pisava as suas próprias ruas — com o cabelo ainda despenteado pela brisa do mar. O problema, disse para consigo, é que a ciência náutica não serve para nada na hora de navegar em terra, ou em redor de uma mulher. Não há cartas planas ou esféricas que as descrevam. Depois perguntou a si próprio que ouro procuraria Tânger, se o ouro mágico dos sonhos, ou o mais concreto, metálico e amarelo, que sobrevivia inalterável ao tempo e aos naufrágios.
— De qualquer forma — estava Gamboa a dizer, em atenção a Coy —, qualquer resgate de objectos no mar é ilegal sem uma autorização administrativa.
A legislação sobre barcos afundados, explicou seguidamente, contemplava aspectos muito diversos: propriedade do barco e da sua carga, direitos históricos, águas territoriais ou internacionais, património cultural e outros pormenores. A Grã-Bretanha ou os Estados Unidos costumavam ser permissivos para com a iniciativa privada, mais orientada para o negócio do que para a cultura. O princípio anglo-saxão, resumiu, consistia em «procura, encontra e paga-me». Mas em Espanha, tal como em França, Grécia e Portugal, o Estado era muito restritivo, com uma legislação que remontava ao Direito Romano e ao código das Siete Partidas(3).
*- Tecnicamente — concluiu — resgatar sem licença um pedaço de ânfora é delito. O próprio acto de procurar já o é.
Tinham chegado à praça da catedral, com as suas torres brancas e a sua fachada neoclássica dominando o adro. Sob as palmeiras passeavam casais de velhotes, mães com carrinhos de bebé, e crianças que corriam entre as mesas das esplanadas próximas. A medida que a última claridade ia desaparecendo, as pombas voavam para os beirais, instalando-se para passarem a noite entre pilastras jónicas. Uma delas esvoaçou muito perto da cara de Coy.
— Nesta fase não há problema — disse Tânger. — Investigar não prejudica nada.
Gamboa mostrou os dentes amarelos noutro dos seus plácidos sorrisos. Era evidente que estava a apreciar o seu bocado. A mim, dizia a sua expressão, não me enganas. Com a minha idade e com a rodagem que tenho...!
*3. Siete Partidas: legislação elaborada em Castela, no tempo de Afonso X, o Sábio. (N. da T.)
— Claro que não — disse.
— Nada em absoluto.
— Foi o que eu disse.
Tânger deu alguns passos, imperturbável. Continuava pendente do chão à sua frente. Coy observou a linha inclinada do pescoço dela, a sua nuca. O seu aspecto enganosamente frágil. Quando se voltou para Gamboa, viu que este o examinava com interesse.
— Talvez mais à frente — disse ela sem levantar a cabeça —, se obtivermos resultados, possamos propor um plano de prospecções sérias...
Coy ouviu Gamboa rindo-se baixinho. Continuava a olhar para ele.
— Isso se Palermo não se adiantar.
— Não se adiantará.
Passaram diante de um antigo casarão de paredes decrépitas, com uma varanda de ferro oxidado sobre a porta principal. Coy leu a placa de mármore aparafusada a uma parede: Faleceu nesta casa D. Federico Gravina y Nápoli, capitão-geral da real armada, em resultado da ferida que recebeu a bordo do navio Príncipe de Asturias no memorável combate de Trafalgar...
— Adoro as raparigas seguras de si próprias — estava Gamboa a dizer.
Coy voltou-se para o observar. Gamboa tinha falado para ele, não para ela, e não gostou da ironia amistosa que os seus olhos de normando insinuavam. Tu lá sabes no que te meteste, diziam. De qualquer forma, saibas ou não, se eu estivesse no teu lugar, abria os olhinhos, camarada. Ou seja: devagar a vante e com prumo de mão. Aqui há poucas braças sob a quilha, rochas por todo o lado, e salta a vista que esta mulher sabe o que procura, mas duvido que para ti isso seja tão claro. Basta comparar as palavras dela e os teus silêncios. Basta olhar para a tua cara e para a cara dela.
Tinham-se despedido de Gamboa e caminhavam pela zona velha da cidade, procurando um sítio onde pudessem comer qualquer coisa. O Sol escondera-se há já algum tempo, deixando um rasto de claridade no oeste, atrás dos telhados, que desciam em escada na direcção do Atlântico.
— Era este o lugar — disse Tânger.
Desde que estavam novamente sozinhos, a sua atitude parecia diferente. Mais relaxada e natural, como se baixasse umas defesas imaginárias. Agora conversava, parando de vez em quando para indicar este ou aquele lugar, a carteira pendurada ao ombro e presa com o cotovelo, a saia azul rodada oscilando à cadência dos seus passos, pelos becos de paredes arruinadas. Quando se voltava para olhá-la, ele via cintilar a luz indecisa dos candeeiros nas suas íris escuras.
— Aqui ficava o castelo dos guardas-marinhas — disse ela. Tinham parado numa rua inclinada que subia em direcção ao teatro romano e à antiga muralha, junto de umas paredes arruinadas onde se apoiavam colunas de pedra e dois arcos ogivais que já não suportavam qualquer tecto. Havia um terceiro arco de volta inteira um pouco mais acima, dando entrada a um beco estreito. Cheirava ao ar salobro do mar vizinho, que podia ouvir-se batendo nas muralhas atrás dos edifícios, e também a pedra antiga, a urina e a sujidade. Cheirava, disse Coy para consigo, como os velhos recantos dos portos em decadência, aqueles que ainda não eram iluminados por baterias de luzes halogéneas na extremidade de torres de cimento, e por onde a tecnologia e o plástico pareciam ter passado ao largo, atolando-os em tempos mortos como a água imóvel ao pé dos molhes, entre gatos e baldes de lixo, candeeiros avermelhados, pontas de cigarros na sombra, garrafas partidas no chão, cocaína a bom preço, mulheres a tanto o quarto de hora, cama à parte. Nem sequer o porto de Cádis, no outro lado da cidade, tinha já nada a ver com tudo aquilo, e os antigos bordéis e pensões eram ocupados agora por bares e pensões respeitáveis. Não havia cascas de banana junto dos telheiros e das gruas, nem tripulantes bêbados à procura do seu barco ao amanhecer, nem patrulhas da Polícia Marítima, nem marinheiros ianques apunhalados numa esquina. Esses cenários tinham sido transferidos para outros lugares do mundo e, mesmo aí, as coisas eram diferentes. Ainda restavam sítios como Buenaventura, com as suas ruas estreitas, os seus quiosques de frutas, o bar Bamboo, os bordéis e as mestiças com roupas tão justas e leves que pareciam pintadas sobre os seus corpos. Ou Guayaquil, com os seus cocktails de lagostins e com as iguanas trepando pelas árvores no centro da cidade, ao ritmo das badaladas dos quatro relógios da catedral, e as aborrecidas rondas nocturnas de guarda com uma lanterna e uma pistola de fulminantes à cintura, prevendo os assaltos piratas. Mas essas eram as excepções. Agora, na sua maior parte, os portos estavam longe do centro das cidades e tinham-se transformado em descampados para estacionar camiões. Os barcos atracavam o tempo necessário à descarga dos contentores, e os marinheiros filipinos e ucranianos ficavam a bordo vendo televisão, para pouparem.
— Onde temos agora os pés passava o primeiro meridiano de Cádis — explicou Tânger. — Só se situou aqui de forma oficial durante vinte anos, a partir de 1776, antes de ser deslocado para San Fernando. Mas, desde meados do século, nas cartas de navegação espanholas, substituía oficiosamente o meridiano tradicional da ilha de Hierro, que os Franceses já tinham trocado por Paris e os Ingleses por Greenwich... Isso significa que, se a longitude que naquela manhã estabeleceram a bordo do Dei Gloria se referia a este lugar, o bergantim afundou-se a 4 graus 51 minutos do sítio onde nos encontramos agora. Se aplicarmos as correcções das tabelas de Perona, exactamente a 5o 12', longitude este.
— Duzentas e cinquenta milhas — disse Coy.
— É isso.
Deram alguns passos, internando-se sob o arco. Um candeeiro com o vidro partido derramava uma luz amarelada sobre uma janela gradeada. No outro lado, a céu aberto, Coy conseguiu distinguir restos de colunas e mais ruínas. Tudo tinha um aspecto de desolação e abandono.
— Foi Jorge Juan quem fundou aqui o primeiro observatório astronómico — disse ela. — Num torreão hoje desaparecido que ficava ali, na esquina ocupada por este colégio...
Tinha falado em voz baixa, como se o lugar a intimidasse. Ou talvez fosse a escuridão, atenuada apenas pelo candeeiro estragado.
— Este arco — prosseguiu — é tudo o que resta do velho castelo. Construíram-no sobre o recinto de um antigo anfiteatro romano e albergava a companhia de guardas-marinhas... Os seus Professores e os encarregados do observatório eram marinheiros ilustrados, homens de ciência: Jorge Juan e António de Ulloa tinham publicado os seus trabalhos sobre a medição de um grau de meridiano no equador, Mazarredo era um excelente táctico naval, Malaspina estava prestes a realizar a sua famosa viagem, Tofino preparava-se para fazer o levantamento do atlas hidrográfico definitivo das costas espanholas — rodou sobre si própria, atenta ao que se passava à sua volta, e a sua voz soou triste: — ...Tudo acabou em Trafalgar.
Internaram-se um pouco no beco. Havia roupa branca estendida lá em cima, entre as varandas, como sudários imóveis na noite.
— Mas em 1767 — prosseguiu Tânger — este lugar tinha o seu significado. Naquele tempo fecharam o colégio de navegação mantido pelos jesuítas, e a biblioteca náutica do observatório enriqueceu-se com os seus livros e com outros comprados em Paris e em Londres.
— Os livros desta manhã — disse Coy.
— Esses mesmo. Viste-os ali, nos seus expositores. Tratados de navegação, de astronomia e viagens. Livros magníficos que ainda escondem segredos.
As suas sombras tocavam-se na parede, entre os tijolos nus e as velhas pedras. Uma gota de água de um lençol estendido caiu na cara de Coy. Ergueu o rosto e viu uma estrela solitária brilhando intensamente no rectângulo negro-azulado do céu. Pela hora e pela posição calculou que podia tratar-se de Régulo, as garras dianteiras da constelação do Leão, que nessa época do ano já devia ter atravessado o eixo norte-sul.
— O castelo — continuava Tânger a contar — foi ocupado pelos guardas-marinhas até serem transferidos para outro sítio e, mais tarde, para a ilha de León, hoje San Fernando. Mas o observatório continuou neste sítio durante mais alguns anos, até 1798. Nessa altura, o meridiano de Cádis deixou de passar por aqui, deslocando-se vinte quilómetros para este.
Coy tocou numa parede. O estuque desfez-se-lhe nos dedos.
— O que aconteceu ao castelo?
— Transformou-se num quartel e depois numa prisão. Por fim, demoliram-no e dele restam apenas algumas velhas paredes e um arco... Este arco.
Tinham voltado para trás e contemplavam novamente a abóbada escura e baixa.
— O que procuras? — perguntou ele.
Ouviu o riso suave dela, entre as sombras que lhe velavam a cara.
— Já sabes. O Dei Gloria.
— Não me refiro a isso. Nem me refiro a tesouros e coisas assim... O que pergunto é o que procuras tu.
Esperou pela resposta, que não veio. Ela calava-se, imóvel. No outro lado do arco, os faróis de um automóvel iluminaram um trecho da rua antes de se afastarem novamente. A claridade recortou por um momento o perfil dela na parede sombria.
— Tu sabes o que procuro — acabou por dizer.
— Eu não sei nada — suspirou ele.
— Sabes. Vi-te observar a minha casa. Vi-te observares-me a mim.
— Não jogas limpo.
— E quem o faz?
Movera-se como se fosse afastar-se bruscamente, mas acabou por permanecer quieta. Estava a um passo dele, que quase podia sentir a calidez da sua pele.
— Há um velho enigma — acrescentou ela após um silêncio. — ...És bom a decifrar enigmas, Coy?
— Não muito.
— Eu sou. E este é um dos meus preferidos... Há uma ilha. Um lugar habitado apenas por dois tipos de pessoas: cavaleiros e escudeiros. Os escudeiros mentem e traem sempre, e os cavaleiros nunca... Compreendes a situação?
— Claro. Cavaleiros e escudeiros. Entendo.
— Bom. Então, um habitante dessa ilha diz a outro: mentir-te-ei e trair-te-ei... Compreendes? Mentir-te-ei e trair-te-ei. E a pergunta é: se quem fala é cavaleiro ou escudeiro... Tu o que achas?
Coy coçou o nariz, perplexo.
— Não sei. Teria de pensar com calma.
— Claro — ela observava-o fixamente. — Pensa. Continuava muito próxima. Coy sentiu formigueiros na ponta
dos dedos. A voz saiu-lhe rouca:
— O que queres de mim?
— Que respondas ao enigma.
— Não falo disso.
Tânger inclinou um pouco a cabeça. Encolhia os ombros.
— Quero ajuda — desviou os olhos. — Não consigo fazê-lo sozinha.
— Há outros homens no mundo.
— Pode ser — fez uma longa pausa. — Mas tu possuis algumas virtudes.
— Virtudes? — A palavra desconcertava-o. Tentou responder alguma coisa, mas tinha a cabeça em branco. — Creio que...
E ficou-se por ali, com a boca entreaberta, franzindo o sobrolho na sombra. Então Tânger falou novamente:
— Não és pior do que a maior parte dos homens que conheço. E, após uma curta pausa, acrescentou:
— .. .E és melhor que alguns deles.
Não é esta a conversa, pensou ele irritado. Não era essa a conversa que queria manter naquele momento. Não era de todo e, na realidade, decidiu que não queria manter conversa alguma. Era melhor estar calado junto dela, pressentindo a calidez da sua carne pintalgada. Era melhor abrigar-se a sotavento dos silêncios, embora essa, a do silêncio, fosse uma linguagem que Tânger dominava muito melhor do que ele. Uma linguagem que ela falava há milhares de anos.
Voltou-se, verificando que ela o observava. Tinha dois reflexos azul-marinhos a meio do rosto, sob a mancha clara do cabelo.
— E tu o que queres, Coy?
— Talvez te queira a ti.
Sobreveio um longo silêncio, e ele descobriu que era mais fácil dizê-lo assim, naquela penumbra que velava as caras e parecia também velar as vozes. Era tão fácil que tinha ouvido as suas próprias palavras antes de pensar sequer em pronunciá-las, e só se sentiu depois um pouco perplexo consigo próprio. Um ligeiro rubor que, sem dúvida, Tânger não via.
— És demasiado previsível — sussurrou ela.
Disse aquilo sem retroceder, imóvel mesmo, quando o viu adiantar-se um pouco e erguer uma mão devagar até ao seu rosto. Depois pronunciou o nome dele como uma advertência, como uma cruzinha ou um pingo azul sobre o branco de uma carta náutica. Coy, disse. E depois repetiu: Coy. Mas este abanou suavemente a cabeça, de um lado para outro, de uma forma lenta e muito triste.
— Irei contigo até ao fim — disse ele.
— Eu sei.
Nesse momento, já prestes a roçar-lhe o cabelo, olhou por cima do ombro dela e estacou. Uma silhueta miúda e vagamente familiar recortava-se sob o arco, no fim do beco. Estava ali de pé, tranquila, esperando. Nessa altura, os faróis de outro automóvel iluminaram fugazmente a rua, a sombra oscilou sob o arco de parede a parede, e Coy reconheceu sem dificuldade o anão melancólico.
O DOBRÃO DE AHAB
Quando o empregado do Restaurante-bar Terraza colocou a cerveja em cima da mesa, Horacio Kiskoros levou-a aos lábios e deu um gole prudente, olhando para Coy de soslaio. A espuma embranquecia-lhe o bigode.
— Tinha sede — disse.
Depois deitou um olhar satisfeito à praça. A catedral estava agora iluminada, as suas torres brancas e a grande cúpula do cruzeiro sobressaíam na escuridão do céu. Ainda havia gente passeando sob as palmeiras ou sentada nas esplanadas vizinhas. Um grupo de jovens bebia cerveja e tocava viola na escadaria, sob a estátua de frei Domingo de Silos. A música parecia interessar a Kiskoros que, de vez em quando, observava o grupo e abanava a cabeça com um ar nostálgico.
— Uma noite magnífica — acrescentou.
Coy apenas sabia o seu nome há um quarto de hora, e era difícil acreditar que estavam ali sentados os três, bebendo como velhos amigos. Nesse curto espaço, de tempo, o anão melancólico tinha ganho nome, origem e personalidade própria. Chamava-se Horacio Kiskoros, era de nacionalidade argentina e tinha, conforme disse quando lhe foi possível fazê-lo, um assunto urgente a colocar à consideração da dama e do cavalheiro. Todos esses pormenores não surgiram de imediato, uma vez que o seu aparecimento inesperado sob o arco dos guardas-marinhas precedeu uma reacção de Coy que até a testemunha mais favorável teria qualificado de violenta. Para sermos exactos, quando a oscilação da sombra sob os faróis do automóvel lhe permitiu reconhecer a personagem, tinha ido direito a ele sem mais formalidades e sem vacilar, nem sequer quando ouviu Tânger pronunciar o seu nome atrás de si.
— Coy, por favor — chamava. — Espera.
Não esperou. Na realidade não queria esperar, nem saber por que raios devia esperar, mas fazer exactamente aquilo que fez: dar oito ou dez passos bombeando adrenalina, respirar fundo pelo caminho algumas vezes, agarrar no outro pelos colarinhos e levá-lo de rastos contra a parede mais próxima, à luz amarela do candeeiro. Necessitava fazer isso com urgência, e não outra coisa. Necessitava rebentar-lhe a cara aos murros antes que ele se esfumasse como acontecera no posto de gasolina em Madrid. Por isso, ignorando as palavras de Tânger, obrigou o outro a levantar-se nas pontas dos pés, quase perdido o contacto com o solo, e, esborrachando-o contra a parede com uma mão, levantou a outra com o punho fechado, disposto a esmagá-lo na cara dele. Uma cara onde, entre o brilho do cabelo esticado para trás com gel e o espesso bigode preto, um par de olhos escuros e esbugalhados o examinavam fixamente. Já não pareciam os de uma rãzinha simpática. Havia surpresa naqueles olhos, pensou. Até uma censura pesarosa.
— Coy! — tornou ela a chamar.
Ouviu, em baixo, à esquerda, o clique da navalha de ponta e mola e, ao olhar, viu o reflexo de aço despido num dos lados do corpo. Um desagradável formigueiro percorreu as suas virilhas. Uma punhalada de baixo para cima, àquela distância, era a pior maneira de terminar tudo aquilo. Em semelhante posição, implicava o argumento definitivo para soltar amarras sem viagem de volta. Mas já tinham querido apunhalar Coy outras vezes, de modo que, por instinto, antes sequer de se ver a reflectir sobre isso, desviou o corpo e deu uma palmada no braço do outro, como se uma cobra lhe tivesse saído do bolso.
— Vem aqui, cabrão — disse.
Mãos nuas diante da navalha. Aquilo soava bem. Evidentemente que estava a fazer bluff, mas estava suficientemente irritado para o manter. Tinha tirado o casaco da mesma forma que, uma vez, em Port-au-Prince, o Torpedeiro Tucumán lhe ensinara: enrolando-o algumas vezes em volta do braço esquerdo, esperando o seu adversário com o corpo ligeiramente dobrado para a frente, o braço com o casaco estendido para proteger o ventre, e o outro pronto para bater. Estava furioso e sentia os músculos dos ombros e das costas paralisados, tensos, duros de sangue latejando rápida e compassadamente no seu interior. Como nos velhos tempos.
— Vem aqui — repetiu — Para te partir os cornos.
O outro segurava na navalha e não lhe tirava a vista de cima, mas parecia perplexo. Com a sua baixa estatura, o cabelo e a roupa desalinhados pela escaramuça e empalidecido por aquela luz amarela, parecia a meio caminho entre o sinistro e o grotesco. Sem navalha, concluiu Coy, não valeria nada. Viu como o fulano compunha um pouco o blusão, puxando-o para baixo pela parte inferior, antes de passar uma mão pelo cabelo, alisando-o para trás. Apoiou-se depois sobre um pé e depois sobre o outro, ergueu um pouco o corpo e baixou a mão armada.
— Negociemos — disse.
Coy calculou distâncias. Se conseguisse aproximar-se o bastante para lhe dar um pontapé a meio das pernas, o anão ia negociar com a puta que o pariu. Deslocou-se um pouco para o lado, e o outro retrocedeu um passo, prudente. A lâmina metálica continuava a brilhar na sua mão.
— Coy — chamou Tânger.
Aproximara-se por trás e estava agora ao seu lado. A voz soava serena.
— Eu conheço-o — acrescentou ela.
Coy anuiu com um gesto breve da cabeça, sem deixar de vigiar o outro e, no mesmo instante, atirou o pontapé que estava esperando e que o da navalha só encaixou a meias, porque previu o movimento pela metade e estava a afastar-se para o evitar. Mesmo assim foi atingido num joelho e cambaleou, antes de rodar sobre si próprio, apoiando-se à parede. Nessa altura, Coy aproveitou para se lançar a ele, protegendo-se, primeiro, com o braço enrolado no casaco e, depois, com um murro que atingiu o adversário na base do pescoço e o fez cair de joelhos.
— Coy!
O grito aumentou a sua cólera. Tânger quis agarrá-lo por um braço e ele sacudiu-o, violentamente. Para o caraças! Alguém tinha de pagar e aquele tipo era a pessoa indicada. Mais tarde, ela poderia dar todas as explicações que quisesse, explicações que não tinha a certeza de querer ouvir. Enquanto lutasse não haveria ocasião para palavras, de modo que atirou ao fulano um segundo pontapé, mas o outro girou num palmo de terreno e Coy sentiu a navalha roçar-lhe, como um raio, o braço envolto no casaco. Tinha menosprezado o anão, compreendeu imediatamente. Era rápido, o tipo. E bastante perigoso. De modo que retrocedeu dois passos e respirou um pouco, avaliando a situação. Calma, marinheiro. Acalma-te ou nem sequer a lata de espinafres te livrará desta. Não importa a estatura. Qualquer tipo, por mais baixinho que seja, é suficientemente alto para cortar uma artéria. Além do mais, vira uma vez um anão verdadeiro, autêntico, escocês, com os dentes aferrados à orelha de um estivador enorme, que corria fazendo uma gritaria pelo cais de Aberdeen sem conseguir arrancá-lo de cima, como se fosse uma carraça. De modo que muito juizinho, disse para consigo. Não há inimigos pequenos nem punhalada que não lixe. Respirava sufocado e, entre inalação e exalação, ouvia o ofegar agitado do outro. Nessa altura viu-o erguer a navalha, como se a quisesse mostrar, e levantar, também devagar, a mão esquerda, com a palma aberta, o gesto conciliador.
— Trago uma mensagem — disse o anão.
— Pois bem podes metê-la no cu.
O outro moveu um pouco a cabeça. Não me compreendeste bem, dizia o gesto.
— Uma mensagem do senhor Palermo.
Então era isso. Reunião de velhos conhecidos. O clube social completo dos caçadores de naufrágios. Aquilo explicava algumas coisas e obscurecia outras. Inspirou uma, duas vezes, e deu um Passo na direcção do seu adversário, o punho pronto para bater.
— Coy.
De repente, Tânger interpunha-se impedindo-lhe a passagem e olhando-o fixamente. Estava muito séria, dura e firme como nunca a vira antes.
Coy abriu a boca para protestar, mas ficou assim, contemplando-a estupidamente. Subitamente acabrunhado. Indeciso, porque ela lhe tocava na cara como quem tenta tranquilizar um animal furioso ou uma criança fora de si. E, por cima do ombro dela, atrás das pontas douradas do seu cabelo, viu que o anão melancólico fechava a navalha.
Coy não tocou na sua cerveja. Com o casaco nos ombros, as mãos nos bolsos e encostado às costas da cadeira, via beber o homem sentado diante dele.
— Tinha muita sede — repetiu o outro.
No caminho do beco até à praça, depois de Tânger ter agarrado em Coy até conseguir serená-lo e ele acabar por aceder mecanicamente, com a sensação de estar a mover-se numa névoa irreal, o anão melancólico alisara novamente o cabelo e compusera a indumentária. Além de um leve rasgão no bolso superior do blusão, que tinha descoberto com os olhos magoados e uma careta acusadora, voltava a ter uma aparência respeitável, sempre um pouco excêntrica, com aquele aspecto meridional e estrambolicamente inglês.
— Trago uma proposta do senhor Palermo. Uma proposta razoável.
O seu sotaque de Buenos Aires era tão forte que parecia propositado. Horacio Kiskoros, tinha dito quando as águas regressaram ao seu leito. Horacio Kiskoros, ao seu serviço. Este último sublinhado por uma leve inclinação de cabeça, num tom cortês desprovido de ironia, quando ele e Coy estavam a recuperar o fôlego, após a refrega. Expressava-se no espanhol escrupuloso e um pouco anacrónico falado por alguns hispano-americanos, com palavras que, deste lado do Atlântico, há muito tempo tinham caído em desuso. Utilizava muito «senhor», «desculpe» e «teria a amabilidade de». O caso é que tinha dito isso: ao seu serviço, enquanto passava as mãos pela roupa desalinhada e endireitava o laço que a agitação arrastara para um lado do pescoço. Sob o blusão usava uns curiosos suspensórios com riscas verticais: duas azuis dos lados e uma branca ao centro.
— O senhor Palermo quer chegar a um acordo.
Coy voltou-se para Tânger. Acompanhara-os calada durante todo o tempo e agora continuava sem pronunciar uma palavra. Evitava, verificou ele, olhar para a cara que apenas alguns minutos antes tocara pela primeira vez. Talvez para não ser obrigada a dar explicações inevitáveis.
— Um acordo — matizou Kiskoros — em termos razoáveis para todos. — Examinou Coy e fez um gesto com o polegar para cima, apontando o nariz para lhe recordar a cena do Palace. — Sem rancores.
— Não há qualquer motivo para fazer acordos com alguém. Ela, finalmente, falara. Tão fria, observou Coy, como se a voz se lhe filtrasse entre pedrinhas de gelo. Olhava directamente para os olhos esbugalhados e tristes de Kiskoros, com a mão direita apoiada na mesa. O relógio de aço dava uma insólita aparência masculina aos dedos longos, de unhas curtas e irregulares.
— Ele não é da mesma opinião — respondeu o argentino. — Dispõe de recursos de que os senhores carecem: meios técnicos, experiência... Dinheiro.
Um empregado trouxe uma travessa de lulas à romana e ovas fritas e o anão melancólico agradeceu-lhe educadamente.
— Muito dinheiro — repetiu, examinando com interesse o conteúdo da travessa.
— E o que espera em troca?
Kiskoros tinha agarrado num garfo e espetava-o delicadamente numa rodela de lula.
— Você investigou bastante — mastigou deleitado o que tinha na boca, até deixar de ter a boca cheia. — Possui dados valiosos, não é verdade?... Pormenores que o senhor Palermo não conseguiu localizar. Isso levou-o a pensar que uma associação seria bastante agradável para ambas as partes.
— Não confio nele — disse Tânger.
— Ele também não confia em si. Poderão aliar-se.
— Ele nem sequer sabe o que estou a procurar.
Kiskoros parecia ter apetite. Tinha tentado a sorte com as ovas e agora voltava às lulas entre uns golinhos de cerveja. Voltou-se um pouco, ouvindo a viola que vinha da escadaria da catedral, e sorriu, contente.
— Talvez saiba mais do que julga — disse. — Mas esses pormenores devem ser discutidos com ele. Eu sou só um mensageiro, como sabe.
Coy, que até essa altura não tinha aberto a boca, dirigiu-se a Tânger:
— Desde quando conheces este indivíduo?
Ela demorou três segundos exactos a voltar o rosto na direcção dele. A mão sobre a mesa tinha fechado os dedos. Retirou-a devagar, pousando-a no colo, em cima da saia.
— Há algum tempo — disse com muita calma. — A primeira vez que Palermo me ameaçou, ele acompanhava-o.
— É verdade — confirmou Kiskoros.
— Tem estado a usá-lo para me pressionar.
— Isso também é verdade.
Coy não ligou ao argentino. Continuava pendente dela.
— Porque não mo contaste?
O suspiro de Tânger foi quase inaudível.
— Tu aceitaste jogar de acordo com as minhas regras.
— Que outras coisas não me contaste?
Ela olhou para a mesa e depois para a praça. Por fim, voltou-se novamente para Kiskoros.
— O que propõe Palermo?
— Uma entrevista. — O argentino observou Coy antes de prosseguir, e este julgou detectar um toque trocista nos seus olhos de rã. — Negociar. Nos termos que você considerar adequados. Ele está nestes dias no seu escritório em Gibraltar. — Tirou do bolso um cartão, estendendo-o por cima da mesa. — Podem encontrá-lo aqui.
Coy levantou-se. Deixou o casaco pendurado nas costas da cadeira e, sem olhar para um ou para o outro, pôs-se a caminhar pela praça, na direcção da escadaria da catedral. Ardia-lhe o cérebro e, encolerizado, crispava os punhos dentro dos bolsos. Sem ter intenção, chegou perto do grupo de jovens que tocavam viola e que faziam passar entre eles uma garrafa de cerveja. Havia duas jovenzinhas e quatro rapazes, com ar de estudantes. O da viola era magro e bonito, aciganado, com um cigarro consumindo-se no canto da boca. Uma das raparigas acompanhava o compasso da música com movimentos de cintura, apoiada no seu ombro. A outra reparou em Y, sorrindo-lhe. Os restantes observaram-no com receio quando ela lhe passou a garrafa. Bebeu um gole, agradeceu e ficou ali perto, limpando a boca com as costas da mão, sentado num degrau da escadaria, ouvindo a música. O guitarrista era desajeitado, mas a melodia soava bem àquelas horas da noite, na praça quase vazia, com as palmeiras e a catedral iluminada sobre as suas cabeças. Olhou para o chão. Tânger e Kiskoros tinham abandonado a mesa do bar e aproximavam-se. Ela trazia nos braços, dobrado, o casaco de Coy. Grande merda, pensou ele. Estou metido até ao pescoço nesta merda.
— Bonita cidade — disse Kiskoros, observando os jovens com um sorriso. — Faz-me lembrar Buenos Aires.
Tânger estava calada, em pé junto de Coy. Este não se levantou.
— Julgo que você é marinheiro, não é verdade? — prosseguiu o outro. — ...Eu também fui. Marinha argentina. Sargento na reforma Horacio Kiskoros — franzia o sobrolho com nostalgia, como que atento a um som longínquo e familiar que lhe escapasse. — ...Também estive nas Malvinas, com os mergulhadores militares.
— E que diacho fazes tão longe?
Os olhos esbugalhados intensificaram a sua melancolia. O tipo metera uma mão no bolso das calças, revelando um pouco os suspensórios e, de repente, Coy compreendeu o que significavam aquelas riscas azuis e brancas: a bandeira argentina. Aquele filho da puta usava uns suspensórios com a bandeira argentina.
— Algumas coisas mudaram na minha pátria.
Sentara-se ao pé de Coy, no mesmo degrau da escadaria. Antes de o fazer, puxou um pouco para cima as joelheiras das calças, com muito cuidado, para não deformar o vinco.
— Ouviu falar da guerra suja? Coy fez uma careta sarcástica.
— Claro. Os Tupamaros e tudo isso.
— Os Montoneros — Kiskoros especificava levantando um dedo. — Os Tupamaros eram do Uruguai.
Ouviu-o suspirar, evocador. Impossível dizer se lamentava ou sentia falta daquilo.
— O caso — acrescentou passado um momento — é que havia uma guerra na Argentina, embora não fosse oficial. Compreende?... Eu cumpri o meu trabalho. E há quem não admita isso.
— Não me digas! — disse Coy.
Kiskoros não parecia desanimado com a atitude do seu interlocutor.
— Vi-me obrigado a viajar — prosseguiu. — Já disse que tinha curriculum como mergulhador... Conheci o senhor Palermo durante os trabalhos de resgate do Agamemnon, o barco de Nelson que se afundou no rio da Prata.
Coy voltou-se, com dureza.
— A tua vida importa-me a ponta de um corno. Os olhos de rãzinha pestanejaram, magoados.
— Bom, senhor. Há apenas uns momentos, naquele beco, estive prestes a matá-lo. Achei que...
— Desaparece e que te fodam.
Kiskoros ficou calado, ruminando a grosseria. Coy levantou-se. Tânger estava diante dele, observando-o.
— Matou o Zas — disse ela.
Houve um longo silêncio, enquanto Coy evocava no seu braço o hálito quente do labrador. Lembrou-se — decorrera apenas uma semana - do seu focinho húmido e do seu olhar fiel. Depois interpôs-se, sombria, a imagem do cão imóvel em cima do tapete, com os olhos vidrados e entreabertos. Aquilo fê-lo revolver-se por dentro, sentiu uma estranha angústia e olhou em volta, incomodado, para as luzes da catedral e para os candeeiros acesos. Ao lado, as notas da viola pareciam escorregar pelos degraus da escadaria. A jovenzinha que lhe sorrira beijava um dos rapazes. Outro colocou a garrafa de cerveja no chão.
— Pois sim — Kiskoros levantava-se também, sacudindo as calças. — E creia que o lamento, senhor. Aprecio... garanto-lhe. Aprecio os animais domésticos. Tive mesmo um doberman.
Sobreveio mais silêncio. O argentino pôs uma cara de circunstância.
— À minha maneira — insistiu —, continuo a ser um militar, compreendem?... Tinha ordens. E isso incluía a casa da senhora.
Compunha um ricto triste, do estilo compreendam e tudo isso. Mendieta, disse de súbito. O meu cão chamava-se Mendieta. Enquanto isso, Coy dava uma vista de olhos à garrafa que continuava ao lado dos seus pés, na escadaria. Durante um segundo deu consigo a calcular as possibilidades de a partir na cara do outro. Ao erguer os olhos encontrou os olhos melancólicos do argentino.
— Você é impulsivo, parece-me — disse Kiskoros numa voz amável. — Isso traz problemas. A senhora, pelo contrário, parece mais doce de carácter. De qualquer maneira, não é bom uma senhora andar nestas embrulhadas... Lembro-me de um caso em Buenos Aires. Uma montonera matou dois dos meus colegas quando fomos buscá-la. Aquela miúda defendeu-se como uma loba, e só conseguimos acabar com ela atirando-lhe granadas. Depois o que acontece é que tinha um bebezinho escondido debaixo do colchão da cama...
Fez uma pausa e estalou a língua, evocador. Sob o bigode por-teno(1) espreitava uma careta que talvez fosse um sorriso.
— Há mulheres muito machas, garanto-lhe — prosseguiu. — Embora mais tarde, na ESMA, serenassem bastante, já sabe ao que me refiro — analisou Coy com atenção. — ...Não, acho que não sabe. Estupendo. Talvez seja melhor assim.
Os olhos de Coy encontraram-se com os de Tânger, mas os dela olhavam sem ver, como se acabassem de contemplar horrores remotos. Passados alguns instantes, pareceram focar a realidade, voltando a si, e neles ficou um vazio escuro. Viu-a apertar o seu casaco contra o peito, como se de repente sentisse frio.
— A ESMA — disse ela — era a Escola de Mecânica da Armada... O centro de tortura da marinha, durante a ditadura militar.
— Sim — admitiu Kiskoros, olhando em volta com um ar distraído — Receio que alguns pacóvios o chamem dessa forma.
A bateria de Shelly Manne tinha introduzido suavemente Man m Love, e Eddie Heywood ouvia-se já ao piano no primeiro solo. De pé, com o tronco nu, apoiado na janela aberta do seu quarto no Hotel de Francia y Paris, o espírito de Coy adiantava-se aos compassos da melodia. Tinha colocado os auscultadores e abanava um pouco a cabeça ao confirmar uma passagem esperada e grata.
*1. Porteno: relativo a Buenos Aires. (N. da T.)
Três andares abaixo, a pequena praça estava na sombra, com os grandes lampiões apagados, escuras as copas das laranjeiras, recolhido o toldo do Café Parisien. Tudo parecia deserto, e perguntou a si próprio se Horacio Kiskoros continuaria a rondar por ali. Mas na vida real os maus também descansam, pensou. Na vida real não acontece como nos romances e nos filmes. Talvez nesse momento o argentino roncasse a sono solto, nalgum hotel ou pensão próxima, com os seus suspensórios cuidadosamente pendurados num cabide. Sonhando com tempos felizes de entrecosto assado, Corrientes 348 (2) e correntes de 1500 volts a cinquenta ciclos nas caves da ESMA.
Dong-dong, dong. Terminava o segundo solo, o do baixo, e Coy aguardou expectante a entrada do terceiro, o saxofone-tenor de Coleman Hawkins, que era o melhor daquela peça com os seus tempos médios e rápidos, forte-leve, forte-leve, e as correspondentes surpresas rítmicas quando essa cadência se quebrava de modo esperadamente inesperado. Man in Love. Acaba de dar conta do título e isso fá-lo sorrir às sombras da praça antes de passar os olhos pelo tecto. Tânger estava ali, no quarto andar, no quarto exactamente em cima do seu. Talvez dormisse, talvez não. Talvez estivesse como ele, acordada à janela, ou sentada à mesa com as suas notas, revendo as informações que Lúcio Gamboa lhes fornecera. Considerando os prós e os contras da proposta de Nino Palermo.
Já tinham conversado. Fizeram-no demoradamente depois de Horacio Kiskoros se despedir deles com um «até à vista», que teria parecido amistoso a quem desconhecesse os antecedentes de que Coy estava agora ao corrente. Tinham-no deixado com os seus olhinhos enganadores de rãzinha melancólica vendo-os afastarem-se; e quando estavam prestes a sair da praça, ele continuava ainda no mesmo sítio, imóvel diante da catedral, como um turista noctívago e inofensivo. Coy voltara-se para trás para o ver e depois levantou o rosto para ler o letreiro da rua para onde se encaminhavam: Calle de La Compania(3). Naquela cidade, disse para consigo, tudo eram sinais e símbolos e marcas, tal como nas cartas náuticas.
*2. Corrientes 348: direcção de uma rua de Buenos Aires que um tango do mesmo nome tornou famosa. (N. da T.)
A diferença estava em que estas, as que se referiam ao mar, eram muito mais precisas, com os seus baixios pintados e as suas escalas de milhas nas margens, em vez de pedras velhas e encontros aparentemente inesperados e letreiros com estranhos nomes de ruas nas esquinas. Sem dúvida, sinais e perigos estavam nelas à vista, tal como nas cartas impressas no papel, mas aqui faltavam sempre códigos para as interpretar.
— Rua da Companhia de Jesus — dissera ela ao vê-lo olhar para o nome. — Aqui ficava a escola de navegação dos jesuítas.
Nunca dizia nada de uma forma casual, de modo que Coy olhou em volta, para o velho edifício à esquerda, para a decrépita Casa de Gravina atrás, à direita. Suspeitava de que mais tarde precisaria, por alguma razão, de recordar tudo aquilo. Depois tinham andado um bocado sem dizer nada, subindo devagar até à Plaza de Las Flores. Duas vezes se voltou para observá-la, e ela continuara a andar impávida, com os olhos fixos em frente, a carteira presa a um lado, compassados o baloiçar da saia azul e as pontas oscilantes do cabelo junto ao queixo obstinado, a boca silenciosa, até ele a agarrar pelo braço, fazendo-a parar. Para sua surpresa, ela não resistiu e deparou-se de súbito com a cara dela, próxima, depois de se voltar com suavidade, como se estivesse apenas à espera desse pretexto.
— Há muito tempo que Kiskoros me vigia por conta de Nino Palermo — disse, sem que ele tivesse necessidade de perguntar nada. — É um homem mau e perigoso...
Calou-se um momento, como que perguntando a si própria se haveria mais alguma coisa para dizer.
— Há bocado, no arco dos guardas-marinhas — acrescentou —, temi por ti.
Disse-o de uma forma concisa e seca, sem emoção. E depois de dizer aquilo, ficou novamente calada, olhando por cima do ombro de Coy na direcção da praça, dos quiosques de flores fechados e do edifício dos Correios, das mesas dos cafés nas esquinas, onde se demoravam os últimos fregueses do dia.
— Desde que foi visitar-me com Palermo — acabou por concluir —, aquele homem tornou-se o meu pesadelo.
Não pretendia comover e, talvez por isso mesmo, Coy não pôde deixar de se sentir comovido. Continuava a haver alguma coisa de infantil, concluiu, naquela maturidade obstinada, no aprumo com que ela encarava as consequências da sua aventura. Novamente, a fotografia na moldura. Novamente, a taça de prata, a menina rodeada pelo braço protector do homem desaparecido, o abandono nos olhos que riam no umbral do tempo onde são possíveis todos os sonhos. Continuava a reconhecê-la, apesar de tudo. Ou, para ser mais exacto, quanto mais tempo passava junto dela, mais a reconhecia.
Reprimiu a carícia que sentia vibrar na ponta dos dedos e, com a mesma mão, apontou para um bar que tinha atrás de si. Los Gallegos Chico, chamava-se. Vinhos da terra, bebidas, bom café, admitem-se comidas de fora: tudo isso anunciavam os letreiros sobre a porta e a janela. Mas, naquele momento, a Coy bastava-lhe a palavra «bebidas», e compreendeu que ela precisava de um copo tanto quanto ele. De modo que entraram. E, uma vez aí, de cotovelos em cima do balcão de zinco, pediu uma genebra com água tónica para ele — não viu nada azul em nenhum sítio — e, sem perguntar, outra para ela. A genebra dava-lhe reflexos húmidos à boca quando o olhou e falou novamente, quando contou minuciosamente a primeira visita de Palermo, branda e amistosa, e a segunda, mais tarde, já com as cartas à mostra e a presença sinistra de Kiskoros como adereço, as pressões e as ameaças. Palermo tinha querido que ela identificasse bem o argentino, que conhecesse a sua história e retivesse o seu aspecto e o seu rosto para, mais tarde, ao encontrá-lo ao pé da janela, andando pela rua, ou nos seus pesadelos ao fechar os olhos, recordasse permanentemente a embrulhada em que se estava a meter. Para que soubesse, tinha dito o caçador de tesouros, que as meninas más não podem atravessar o bosque impunemente, sem se exporem a encontros perigosos.
— Foi isso que disse — o sorriso vago, um pouco amargo, endurecia-lhe a boca. — Encontros perigosos.
Nesse momento, Coy, que ouvia e bebia em silêncio, interrompeu-a para perguntar porque não fora à polícia. Então ela riu-se baixinho, com um riso surdo, suavemente rouco, tão cheio de desdém como vazio de humor. Na realidade, disse, eu sou, sim, uma rapariga má. Tentei enganar Palermo, e em relação ao Museu, ajo por minha conta. Se nesta altura ainda não te apercebeste disso, és mais inocente do que eu pensava.
— Não sou inocente — respondera ele, pouco à vontade, fazendo rodar o copo frio entre os dedos.
— De acordo — ela olhava-o nos olhos e a boca não sorria, mas estava menos dura. — Não és.
Deixou a sua bebida praticamente sem tocar nela. Coy acabou a genebra, chamou a atenção de um empregado e pôs uma nota em cima da mesa. Uma das últimas, constatou desolado.
— Pagarão por tudo o que fizeram — disse.
Não tinha a mais pequena ideia de como iria cumprir aquela declaração, nem de que forma podia ajudar. Mas achou adequado dizê-lo. Há coisas, pensou, frases analgésicas, consolos, lugares-comuns que se dizem nos filmes, e nos romances, e que servem também para a própria vida. Dirigiu-lhe uma olhadela inquieta, de soslaio, receando vê-la troçar. Mas ela mantinha a cabeça inclinada para um lado, absorta nos seus próprios pensamentos.
— É-me indiferente que paguem ou não. Isto é uma corrida, entendes?... A única coisa que me interessa é chegar lá antes deles.
O saxofone estava prestes a entrar. E Tânger era como o jazz, concluiu Coy. Melodia base e variações inesperadas. Mudava todo o tempo em torno de uma aparente ideia fixa, como uma estrutura de temas AABA; mas seguir de perto essas evoluções requeria uma atenção constante que não excluía em absoluto a surpresa. De repente soava AABACBA e entrava um tema secundário que ninguém teria imaginado ali. Não havia outra maneira de segui-la senão com a improvisação, onde quer que isso a levasse. Segui-la sem partitura. Às cegas.
Um relógio próximo deu três badaladas na praça. Coy ouviu-as abafadas pelos auscultadores e pela música, e depois sentiu chegar finalmente o saxofone de Hawkins: o terceiro solo que ligava toda a peça de fio a pavio. Semicerrou os olhos, contente com a cadência das notas familiares, tranquilizadoras como costuma ser a repetição do que se espera. Mas Tânger introduzira-se na melodia, alterando a sua delicada estrutura. Perdeu o fio à meada, e pouco depois tinha carregado no botão do walkman e estava com os auscultadores na mão, perplexo. Por um momento, julgou ter ouvido passos em cima, da mesma forma que os tripulantes do Pequod ouviam o som da perna de osso de baleia, enquanto o seu capitão ruminava obsessões a sós, de noite, no convés. Ficou assim, imóvel e atento, à espreita. Depois atirou o walkman para a cama ainda por desfazer, num gesto irritado. Aquilo não era procedente e misturava os géneros sem pudor. A etapa Melville, tal como a anterior — a etapa Stevenson — tinham ficado para trás há muito tempo. Teoricamente, Coy encontrava-se claramente na etapa Conrad, e todos os heróis autorizados a mover-se por esse território eram heróis cansados, mais ou menos lúcidos, conscientes do perigo de sonhar com a mão no leme. Adultos encalhados na resignação e no tédio, em cuja insónia já não flutuavam aos pares intermináveis procissões de cetáceos escoltando, a meio de todos, um fantasma embuçado como um monte de neve...
E, no entanto, o «Se...» condicional na porta do oráculo de Delfos, que Coy conhecia por Melville, mas que este fora, por sua vez, buscar a outros livros que ele não tinha lido, continuava a vibrar no ar tal como o temporal tocava a harpa na enxárcia, mesmo depois de o mar se cerrar sobre o albatroz preso pelo martelo e pela bandeira, e de o Raquel resgatar outro órfão. De súbito, para sua íntima surpresa, Coy descobria que as etapas livrescas ou vitais, independentemente do modo como são chamadas, nunca se fecham de uma forma perfeita. E que, embora os heróis tenham perdido a inocência e estejam demasiado exaustos para acreditar em navios fantasmas e em tesouros submersos, o mar continua inalterável, cheio da sua própria memória que, ela sim, acredita em si própria. Ao mar é indiferente que os homens percam a fé na aventura, na caçada, no barco afundado, no tesouro. Os enigmas e as histórias que contém possuem vida autónoma, bastam-se sozinhos e continuarão ali mesmo depois de a vida se ter extinguido para sempre. Por isso, até ao último instante, haverá sempre homens e mulheres interrogando o cachalote agonizante, enquanto este volta a cara na direcção do Sol e expira.
De modo que, apesar de toda a lucidez possível, ali estava ele, novamente chamando-se Ismael depois de ter sido náufrago e se ter chamado Jim, temperando outra vez, na sua idade, o arpão com o seu próprio sangue e com o velho grito de rigor: que ao último o levem a bebida ou o diabo, de modo que venham o bote esburacado e o corpo esburacado, etc. Contemplando, fascinado pela certeza de um destino inevitável — por tê-lo lido cem vezes —, a mulher de pele pintalgada cravar o seu dobrão de ouro espanhol na madeira do mastro: clique, claque. E não só aquilo martelava na sua imaginação. Tinha-se aproximado outra vez da janela, em busca da brisa do mar próximo e, ao ouvir o ruído, voltou a olhar para o tecto. Agora sim, julgava sentir passos inquietos em cima, no convés. Clique, claque. Clique, claque. Pelos vistos, ela também não descansava, à caça dos seus próprios fantasmas brancos, carruagens fúnebres com velhos ferros retorcidos nas costas. E ele nunca sonhara, em nenhum dos seus barcos, livros, portos, vidas anteriores e inocentes, com um Ahab tão sedutor levando-o a navegar sobre a sua tumba.
Foi até à cama e deitou-se de barriga para cima. Até ao último porto, lembrou-se antes de adormecer, vivemos todos envoltos em cordas de arpão de baleias.
— Há uma ligação directa — disse Tânger — entre a viagem do Dei Gloria e a expulsão dos jesuítas de Espanha. Uma ligação que ultrapassa quaisquer dúvidas.
Era domingo, e tomavam o pequeno-almoço sob o toldo do Café Parisien, diante do hotel, pão branco quente, cacau, café e sumo de laranja. Havia uma brisa suave, muita luz e pombas que passeavam pelo rectângulo de sol da praça, entre os pés das pessoas que saíam da missa. Coy tinha na mão meio pãozinho untado com azeite e, às vezes, entre uma dentada e outra, contemplava a fachada branca e ocre e o campanário da Igreja de São Francisco.
— Em 1767 reinava em Espanha Carlos III, que antes fora rei de Nápoles... Desde o princípio do seu reinado, os jesuítas manifestaram a sua aversão a respeito dele, entre outras coisas porque nesse momento se desenrolava a batalha das novas ideias e a companhia de Santo Inácio era a mais influente de todas as ordens religiosas... Isso criara-lhe inimigos em toda a parte. Em 1759, os jesuítas tinham sido expulsos de Portugal e, em 1764, de França.
Bebia Colação num copo grande e, cada vez que levava o copo aos lábios, ficava com uma linha de espuma no lábio superior. Tinha chegado à rua recém-saída do duche, com o cabelo húmido ainda a gotejar a camisa de quadradinhos azuis e vermelhos que levava por fora das calças de ganga, com as mangas dobradas nos punhos, e o cabelo secava agora um pouco ondulado, dando-lhe um aspecto fresco à pele. Às vezes, Coy olhava para a linha de cacau na boca dela e estremecia por dentro. Doce, pensava. Lábios doces, e, além disso, ela adoçara a bebida com um pacotinho de açúcar. Interrogou-se a que saberiam aqueles lábios na sua língua.
— Em Espanha — prosseguiu ela — as tensões entre jesuítas e ministros iluministas de Carlos III iam num crescendo. O quarto voto de obediência ao Papa colocava a Companhia no centro da polémica entre o poder religioso e o poder real. Também era acusada de manipular muito dinheiro e influenciar demasiado o ensino universitário e a Administração. Além disso, era muito recente o conflito das missões do Paraguai e a guerra guarani — inclinou-se por cima da mesa na direcção de Coy, com o copo na mão. — ...Viste aquele filme de Roland Joffé, A Missão}... Os jesuítas fazendo causa comum com os indígenas.
Coy lembrava-se vagamente do filme: um vídeo a bordo, desses que acabavam por ver três ou quatro vezes, aos bocados, durante uma longa travessia. Robert de Niro, julgava recordar. E talvez Jeremy Irons. Nem sequer retivera o facto de serem jesuítas.
— Tu4o isso — acrescentou Tânger — tinha colocado os jesuítas espanhóis sobre um barril de pólvora, só faltando alguém que acendesse o pavio.
Não havia rasto de Horacio Kiskoros, comprovou Coy, dando uma olhadela em volta. Na mesa contígua sentava-se um jovem casal de turistas com duas crianças louras, o mapa desdobrado e a máquina fotográfica. Os miúdos brincavam com fisgas de plástico, parecidas com as que, na sua infância, ao fugir do colégio para vaguear pelo cais, ele próprio fabricava com materiais casuais: um pedaço de madeira em V, tiras de velhas câmaras-de-ar, um pedaço de couro e um palmo de arame. Agora, pensou com nostalgia, essas bodegas vendiam-se em lojas e custavam uma pipa de massa.
— O pavio — continuava Tânger a contar — foi o motim de Esquilache. Embora não esteja provada a intervenção directa dos jesuítas na algazarra, a verdade é que nessa mesma época tentavam boicotar os ministros iluministas de Carlos III... Esquilache, que era italiano, propôs, entre outras coisas, suprimir os chapéus amplos e as capas com que os Espanhóis se embuçavam, e esse foi o pretexto de desordens gravíssimas. A calma regressou, o ministro foi suspenso, mas os jesuítas foram apontados como tendo sido os instigadores. O rei decidiu expulsar a Companhia e expropriar Os seus bens.
Coy concordou mecanicamente. Tânger falava mais do que o costume, como se tivesse preparado o assunto durante a noite. Era lógico, disse para consigo. Com o aparecimento em cena de Kiskoros e com o encontro sugerido por Nino Palermo, não tinha outro remédio senão compensá-lo com mais informações. A medida que se aproximavam do objectivo, ela compreendia que ele já não se contentava com migalhas. No entanto, avarenta no fundo, continuava a administrar o seu capital a conta-gotas. Talvez por isso, e para decepção de Coy, naquela manhã ele não conseguia sentir o mesmo interesse das outras vezes. Tivera também uma longa noite para reflectir. Demasiados dados, pensava agora. Demasiado prolixa e, no entanto, poucas coisas concretas. Tudo o que me contas, cara linda, estudei-o há vinte anos no colégio. Pretendes tourear-me com palha histórica sem ir ao miolo da questão. Aparentas mostrar com uma mão o que escondes no punho.
Estava farto e desprezava-se a si próprio por continuar ali. E, no entanto, aquela linha de espuma sobre o lábio superior, o reflexo de luz da manhã luminosa no azul-marinho das suas íris, as pontas louras do cabelo emoldurando-lhe as sardas, conseguiam um efeito singular, quase calmante. Cada vez que olhava para aquela desconhecida, Coy tinha a certeza de que tinha ido demasiado longe, de que se internava tanto na parte obscura da carta náutica da sua vida que era já impossível voltar para trás antes de conhecer as respostas. Cavaleiros e escudeiros: mentir-te-ei e trair-te-ei. Na realidade, o mistério do barco perdido não o preocupava. Era ela, a sua obstinação, a sua busca, tudo o que estava disposta a empreender por um sonho, o que o mantinha no rumo certo, apesar de ouvir o inequívoco rumor do mar nas rochas perigosamente próximas. Queria aproximar-se dela o mais que pudesse, ver a sua expressão adormecida, senti-la acordar e olhá-lo, tocar naquela pele tépida e reconhecer nela, na fundura dessa pele e da carne que recobria, a menina sorridente da fotografia da moldura de prata.
Tinha deixado de falar e olhava-o desconfiada, perguntando-lhe sem palavras se continuava a prestar atenção ao que dizia.
Com algum esforço, Coy afastou os pensamentos, receoso de que ela os conseguisse ler na sua cara, e deu outra olhadela aos pombos. Entre eles, um pombo galã e bastante seguro de si, pavoneava-se entre as pequenas fadas do lar emplumadas, que faziam círculos e o observavam de soslaio, cacarejando, ou arrulhando, ou como quer que se denomine o grito das pombas. E, nesse momento, as crianças da mesa vizinha lançaram-se com gritos de guerra contra as pacíficas aves. Coy observou o pai, muito calmamente ocupado com o jornal. Depois observou a mãe, para comprovar que deslizava um olhar lânguido pela praça. Por fim, voltou-se novamente para Tânger. De costas para a cena, esta prosseguia o seu relato:
— Preparou-se tudo em Madrid com o maior segredo. Por ordem directa do rei criou-se um grupo reduzido que excluía qualquer pessoa que fosse partidária da Companhia, ou simplesmente imparcial. O objectivo era reunir evidências e preparar o decreto de expulsão... O resultado do que se chamou Pesquisa Secreta foi um parecer fiscal que acusava os jesuítas de conspiração, defesa da doutrina do tiranicídio, moral dissoluta, afã de riqueza e poder, e actividades ilegítimas na América.
Aquilo da Pesquisa Secreta soava bem e Coy sentiu o seu interesse espicaçado, enquanto voltava a observar as crianças. Tinham acabado de apanhar o pombo desprevenido em plena corte e, de uma pedrada, tinham-lhe cortado em seco o idílio e a digestão de migalhas debicadas ao pé das mesas. Animados pelo êxito, os miúdos atiravam às pombas com a precisão letal de franco-atiradores sérvios.
— Em Janeiro de 1767 — continuou Tânger contando —, reunido de forma secretíssima, o Conselho de Castela aprovou a expulsão. E entre a noite de 31 de Março e a manhã de 2 de Abril, numa operação militar bastante eficaz, as cento e quarenta e seis casas dos jesuítas em Espanha foram cercadas... Foram todos obrigados a embarcar; Roma teve de encarregar-se deles e, seis anos mais tarde, Clemente XIV dissolveu a Companhia.
Fez uma pausa para acabar o seu Colação e limpou depois a boca com uma mão. Voltara-se um pouco para assistir com indiferença à gritaria dos miúdos e das pombas, antes de olhar novamente para Coy. Não a imagino com filhos, disse este para consigo-E sei que, aconteça o que acontecer, nunca envelhecerei junto dela.
Só consigo imaginá-la chegando a velha entre livros e papéis, magra e elegante, apesar das unhas roídas. Solteirona com classe e com rugas em volta dos olhos, tirando recordações do baú: uma luva comprida e vermelha, uma velha carta náutica, um leque partido, um colar de azeviche, um disco de canções italianas dos anos cinquenta, a fotografia de um antigo amante. A minha fotografia, aventurou. Oxalá fosse a minha fotografia...
Prestou atenção, porque ela continuava a falar. O que aconteceu após a expulsão dos jesuítas dos domínios da coroa de Espanha, disse para consigo, já não lhes interessava, nem a ela, nem a ele. O período importante era o ano decorrido entre o Domingo de Ramos de 1766, dia do início do motim de Esquilache, e a noite de 31 de Março de 1767, quando foi aplicado o decreto de expulsão dos jesuítas espanhóis. Nesse período, de uma forma que fazia lembrar o que acontecera com os templários no século XIV, a Companhia passou do papel de uma potência respeitada, temível e poderosa, a proscrita e prisioneira...
— Não te parece interessante?
— Muito.
Ela examinou-o, avaliando-o, como se tivesse captado a ironia do comentário. Coy manteve o rosto impassível. Eventualmente, acabará por me contar alguma coisa que, deveras, valha a pena, pensava. Olhou por cima do ombro de Tânger. Os miúdos regressavam suados, vencedores, trazendo, como um troféu, penas da cauda do pombo que àquelas horas, calculou, devia voar a cento e oitenta quilómetros por hora a caminho da cidade do Cabo. Talvez, disse para consigo, nem tudo o que Herodes degolou fosse inocência.
Tânger calara-se novamente, como se considerasse se valeria a pena continuar a falar. Tinha o rosto inclinado e os seus dedos tamborilavam na beira da mesa, num movimento que talvez fosse de impaciência.
— Interessa-te mesmo o que te estou a contar?
— Claro que me interessa.
Por alguma razão, a irritação que ela demonstrava reconciliou-o consigo próprio. Instalou-se melhor na cadeira, com uma expressão atenta e Tânger, após uma última hesitação, prosseguiu o seu relato. Quando Carlos III tinha decidido criar o gabinete da Pesquisa Secreta, pôs à frente Pedro Pablo Abarca de Bolea, conde de Aranda: um aragonês de Huesca, duas vezes grande de Espanha, que já tinha sido militar e diplomata. Era capitão-geral de Valência quando, em pleno motim de Esquilache, o rei o chamou a Madrid para lhe confiar o governo, a presidência do Conselho de Castela e a capitania geral de Castilla La Nueva. Inteligente, culto, iluminista, passou à história como mação, embora nunca tenha sido provada a sua adesão a nenhuma loja e os historiadores modernos neguem a sua filiação. Pelo contrário, há a certeza de ter sido um homem ecléctico e, entre todos os componentes do gabinete secreto, talvez quem melhor conhecesse os jesuítas, com quem se tinha educado e entre os quais conservava muitos amigos, incluindo um irmão jesuíta. Comparado com antijesuítas ferozes como o fiscal Campo-manes, o ministro da Justiça, Roda, e José Mofiino, futuro conde de Floridablanca, Aranda podia ser descrito como moderado na sua atitude relativamente à Companhia. Mas mesmo assim, aceitou dirigir o gabinete e referendar as suas conclusões. A pesquisa iniciou-se em Madrid a 8 de Junho de 1766, presidida por Aranda. Era acompanhado por Roda, Mofiino e outros antijesuítas indiscutíveis, ou como então se dizia, tomistas, em oposição aos pró-jesuítas ou amigos do quarto voto. E a investigação foi levada a cabo com tanta cautela que nem o confessor do rei ficou ao corrente.
— No entanto — prosseguiu Tânger —, havia uma ligação importante entre um homem do gabinete secreto e um destacado jesuíta... Paradoxalmente, um dos melhores amigos do conde de Aranda era um jesuíta de Múrcia, o padre Nicolás Escobar. As relações entre ambos tinham-se esfriado um pouco, mas a verdade é que, até Aranda ter abandonado a capitania geral de Valência a pedido do rei, os dois foram íntimos. Embora, mais tarde, Aranda tenha feito desaparecer a sua correspondência com o padre Escobar, conservam-se algumas cartas que provam essa relação.
— Viste essas cartas?
— Sim. Existem três e estão na biblioteca da universidade de Múrcia, assinadas pela mão <de Aranda. Consegui cópias graças ao catedrático de Cartografia, Néstor Perona, quando o consultei por telefone sobre as correcções que devíamos aplicar ao Urrutia.
Outro seduzido, pensou Coy. Imaginava o efeito de Tânger, mesmo por telefone, num catedrático do que quer que fosse. Devastador.
— Devo reconhecer que trabalhaste a fundo.
— Nem sabes até que ponto! Por isso não estou disposta a admitir que alguém mo tire das mãos.
Aquilo, admitiu Coy, começava a revelar indícios interessantes. A história saía dos compêndios, internando-se na letra miudinha. Cartas daquele fulano, Aranda. Quem sabe se, afinal de contas, com a sua história banal de gabinetes secretos e de reis implacáveis, ela não estava realmente a dirigir-se para algum lado.
— Nicolás Escobar — continuou Tânger — era um jesuíta importante, relacionado com os círculos de poder e com o seminário de Nobres, que se deslocava entre Roma, Madrid, Valência e Salamanca. Duas décadas antes, tinha sido director do colégio jesuíta desta última cidade, praça-forte da Companhia, em cuja imprensa, e isto é apenas uma das coincidências, foi impresso...
Ficou calada. Adivinha a surpresa, etc. Coy não pôde deixar de sorrir. Apresentara as coisas de forma demasiado fácil e era impossível decepcioná-la. Uma equipa, de acordo. Tu e eu somos uma equipa. Tu o dizes e eu acredito.
— O Urrutia — disse. Ela concordou, satisfeita.
— É isso. O Atlas Marítimo de Urrutia, impresso no colégio dos jesuítas de Salamanca em 1751 sob a protecção de outro ministro amigo, o marquês de Ensenada, impulsionador da marinha e dos estudos de navegação em Espanha. E, na época em que se forma o gabinete secreto, o padre Escobar, amigo de marinheiros ilustres como Jorge Juan e António de Ulloa, está em Valência. Adivinhas onde?...
— Não. Receio que desta vez não consiga adivinhar.
— Em casa de um velho conhecido nosso. Sobretudo meu: Luis Fornet Palau, amigo do quarto voto, testa-de-ferro da frota dos jesuítas e armador do Dei Gloria.
Calou-se, satisfeita com a expressão de Coy. Depois inclinou-se, pouco a pouco, na direcção dele, por cima da mesa, olhando-o nos olhos intensamente e deixando vislumbrar dentro dos seus uma ambição dura e simples como um pedaço de pedra escura, polida, muito brilhante. O sonho deixara de o ser há muito tempo, compreendeu. Agora restava uma obsessão sólida, concreta. Enquanto ela aproximava uma mão, pousando-a na dele, procurou desesperadamente o termo adequado para a definir. Sentiu o peso da mão cálida, dos dedos que se entrelaçavam com os seus. Calor suave, firme, tão segura de si que o gesto parecia ser o mais natural do mundo. Aquela mão não pretendia consolar-se, nem animar, nem fingir. Nesse momento era sincera: partilhava. E a palavra da obsessão, que ele acabou por encontrar, era «implacável».
— O Dei Gloria, Coy — disse em voz baixa, inclinada sobre a mesa, a mão na sua. — Estamos a falar do bergantim que sai de Valência rumo à América a 2 de Novembro, quando o gabinete secreto já leva cinco meses de reuniões, e regressa às costas espanholas poucas semanas antes de assestarem aos jesuítas o golpe final — a pressão dos dedos tornou-se maior. — Juntas alguns fios?... O resto, ou seja, o quê ou quem viajava a bordo e para quê, contar-te-ei a caminho de Gibraltar. Ou, como diziam os velhos folhetins, no próximo capítulo.
O PONTO ESTIMADO
Brilhavam os pequenos canhões polidos da praça. A esplanada do Ungry Friar estava cheia de gente e havia grupos de turistas anglo-saxões fotografando o render da guarda no Convento, visivelmente encantados por a Britânia ainda ter colónias de onde pudesse governar os mares. Sob a bandeira que ondulava preguiçosa no mastro, uma sentinela permanecia firme como uma estátua, enquadrada com a sua espingarda Enfield na arcada gótica, fiel à cena e ao cenário, enquanto o sargento encarregado da rendição lhe vociferava as ordens regulamentares em gíria castrense, aos gritos, a um palmo da cara: ordem, santo-e-senha e coisas assim. Até à última gota do teu sangue, e a Inglaterra espera que cumpras o teu dever, conjecturou Coy, que os observava. Depois esticou as pernas debaixo da mesa antes de se inclinar para acabar com o resto do seu copo de cerveja e de olhar para cima, piscando os olhos. O Sol rondava o seu zénite e estava bastante calor, mas no alto do Rochedo o penacho de nuvens começava a desfazer-se. O vento mudara de levante para poente e, dentro de algumas horas, a temperatura seria mais suportável. Pagou a cerveja e levantou-se, cruzando-se com as pessoas que enchiam a praça, em direcção à esquina de Main Street.
Suando, focado por dúzias de câmaras de vídeo e objectivas fotográficas, o sargento continuava dando terríveis gritos marciais à sentinela impassível. Enquanto se afastava dali, Coy fez uma careta trocista para o seu íntimo. Esta manhã, disse para consigo, calhou ao surdo fazer a guarda.
Andou pela rua principal de Gibraltar, com a multidão que deambulava pelas lojas sucessivas: pijamas chineses, camisolas com imagens do Rochedo e dos macacos, mantilhas, rádios, bebidas, máquinas fotográficas, perfumes, porcelanas de Lladró e Capodimonte, cabeças reduzidas de cerâmica Bossom. Coy atracara em Gibraltar noutro tempo, quando a colónia britânica era ainda um porto convencional, dos antiquados, base de contrabandistas de tabaco e de haxixe marroquino através do estreito, e ainda não se tinha transformado numa colmeia turística e retaguarda financeira dos traficantes de droga em grande escala e dos milhares de ingleses radicados na Costa do Sol. Na realidade, qualquer sítio próximo do Mediterrâneo era, nesta altura, um desatino turístico, mas em Gibraltar, junto dos restaurantes de hambúrgueres e de comida rápida e bebida em copos de plástico, as lojas de indianos e de judeus alternavam, ao longo de Main Street, com fachadas de bancos e casas com discretas chapas aparafusadas junto à porta, gabinetes de advogados, sociedades imobiliárias, sociedades de export-import, sociedades anónimas, sociedades limitadas, sociedades fantasmas — havia mais de dez mil registadas ali — onde se branqueava dinheiro espanhol e inglês e se realizava todo o tipo de negócios. A bandeira azul com estrelas da Comunidade Europeia ondulava na fronteira, turismo e subterfúgios de paraíso fiscal tinham substituído o contrabando como fonte principal de receitas, advogados jovens e maus, que falavam um inglês perfeito com sotaque anda-luz, tomavam o lugar dos capos mafiosos locais, e a velha plebe de toda a vida, lobos do mar com aros de ouro nas orelhas e braços tatuados, última escória pirata do Mediterrâneo ocidental, definhava em prisões espanholas ou marroquinas, servia hambúrgueres no McDonald's ou mandriava pelo porto, olhando com saudade as quinze milhas que separavam a Europa de África, distância que, há uma década, nas noites sem lua, atravessava com motores fora de borda de 90 cavalos que faziam planar as suas Phantom pintadas de preto a quarenta nós acima da água, entre Punta Carnero e Punta Cires.
Coy pôs-se a andar pelo passeio que mais sombra oferecia, com a camisa colada às costas pelo suor, olhando para os números das portas. Tânger tinha cumprido a sua palavra, pelo menos em parte. Entre Cádis e Gibraltar, enquanto ele conduzia o Renault de aluguer pelas curvas e contracurvas da estrada que subia as encostas de Tarifa e os despenhadeiros sobre o estreito, ela acabou de contar a história dos jesuítas e do Dei Gloria. Ou, pelo menos, a parte da história que ela achava conveniente dar-lhe a conhecer: por que razão viajou o bergantim para a América e porque regressava de Havana.
— Queriam parar o golpe — resumiu.
Depois, com os olhos fixos na estrada, expôs a sua teoria em honra de Coy. O gabinete da Pesquisa Secreta não foi tão secreto, afinal de contas. Houve uma infiltração, um indício do que se preparava. Talvez os jesuítas tivessem lá um informador, ou intuíram a manobra.
— De todos os membros do gabinete — explicou Tânger — só um deles não era tomista puro: o conde de Aranda podia ser considerado, se não amigo do quarto voto, pelo menos mais favorável aos jesuítas que os radicais Roda, Campomanes e outros. Talvez tenha sido ele próprio quem deixou cair as palavras oportunas no ouvido do seu amigo, o padre Nicolás Escobar... Não deve ter passado de uma confidência, ou de uma palavra. Mas entre aquelas pessoas feitas de astúcias e diplomacias, até um silêncio podia ser lido como uma mensagem.
Tânger calou-se por uns instantes, deixando a Coy o trabalho de imaginar época e personagens. A sua mão esquerda descansava em cima do joelho esquerdo, sobre a saia de algodão azul, a escassos centímetros do manípulo das velocidades. Coy roçava-a às vezes, ao passar de quarta para quinta nas rectas, ou quando abrandava, antes de rodar o volante.
— E então — prosseguiu ela — a direcção dos jesuítas espanhóis idealizou um plano.
Voltou novamente a calar-se, com aquilo no ar. Deveria escrever romances, pensou ele, admirado. Domina como ninguém as reticências. E, além disso, não sei o que haverá de real nas suas certezas, mas nunca vi ninguém afirmá-las com esta gravidade. Sem contar com a forma como vai soltando o carreto pouco a pouco, lasso quanto baste para o peixe não fugir, tenso quanto baste para que se mantenha enganchado até lhe cravar um arpão nas guelras.
— Um plano arriscado — continuou, por fim, Tânger — que nem sequer tinha êxito garantido... Mas que se baseava no conhecimento da condição humana e da situação política espanhola. Evidentemente, também no conhecimento de Pedro Pablo Abarca, conde de Aranda.
Em poucas palavras, com o tom de voz objectivo de quem enumera dados, sem afastar os olhos do asfalto que parecia ondular diante deles por efeito do calor, Tânger tinha definido o ministro de Carlos III: aristocrata com direitos de sangue, carreiras militar e diplomática brilhantes, afrancesado por razões intelectuais e sociais, pragmático, iluminista, enérgico, impetuoso, levemente insolente. Uma grande cabeça à frente do Conselho de Castela e do gabinete para a Pesquisa Secreta. Também amigo do luxo, das carruagens caras com esplêndidos cavalos e criados de libré, de teatro e touros em carro descoberto, popular, ambicioso, esbanjador, amigo dos seus amigos. Rico e, no entanto, sempre necessitado de mais fundos para suportar o alto nível de vida que, às vezes, roçava a extravagância.
— Essas eram as palavras — prosseguiu Tânger. — Dinheiro e poder. Aranda era sensível a elas e os jesuítas sabiam-no. Não fora aluno deles em vão e era íntimo dos seus dirigentes.
O plano, continuou ela, foi concebido com minuciosa audácia.
O melhor barco da Companhia, o mais rápido e seguro, com o seu melhor capitão, zarpou secretamente rumo à América. Levava o padre Escobar como passageiro. Não havia informação oficial da sua saída de Valência, porque não se conservaram os documentos de embarque do Dei Gloria para essa etapa da viagem, mas o jesuíta estava, sim, a bordo na viagem de volta. As suas iniciais, com as do outro acompanhante, o padre José Luis Tolosa, constavam do relatório do bergantim — N.E. eJ.L.T. — quando saiu de Havana, a
1 de Janeiro de 1767. E com eles traziam uma coisa: documentos, objectos. Chaves para influenciar a vontade do conde de Aranda.
Com as mãos no volante, Coy riu-se baixinho.
— Falando curto e grosso: queriam comprá-lo.
— Ou chantageá-lo — replicou ela. — De uma forma ou de outra, a verdade é que a missão do Dei Gloria, do capitão Elezcano e dos dois jesuítas, era trazer alguma coisa que alteraria o curso dos acontecimentos.
— De Havana?
— Isso mesmo.
— E que importância tem Cuba em tudo isto?
— Não sei. Mas embarcaram aí alguma coisa que podia convencer Aranda a manipular a Pesquisa Secreta... Alguma coisa que deteria a tempestade que ia abater-se sobre a Companhia.
— Podia tratar-se de dinheiro — sugeriu Coy. — O famoso tesouro.
Sorria para tirar importância às suas palavras, mas sentiu um estremecimento ao pronunciar a palavra tesouro. Tânger continuava a olhar para a frente como uma esfinge.
— Podia, efectivamente — disse ela passado um instante. — .. .Mas nem sempre é dinheiro o que está pelo meio.
— E é isso que pretendes averiguar.
Continuava a voltar-se de vez em quando para observá-la, sem desviar completamente a sua atenção da estrada, antes de voltar a olhar para a frente. Ela mantinha os olhos fixos no asfalto.
— Pretendo localizar o Dei Gloria, em primeiro lugar. Depois saber o que transportava... O que, por azar ou por premeditação dos inimigos da Companhia, nunca chegou ao seu destino.
Coy reduziu a velocidade devido a uma curva apertada. No outro lado de uma vedação havia touros verdadeiros, pastando sob um imenso cartaz com um imenso touro preto a fingir.
— Queres dizer que aquele chaveco corsário não apareceu ali por casualidade?
— Qualquer coisa é possível. Talvez outro bando estivesse ao corrente da operação e quisesse antecipar-se. Talvez o próprio Aranda jogasse com um pau de dois bicos... Ou, se o Dei Gloria trazia alguma coisa para ser usada contra ele, pode ter querido neutralizá-lo.
— Então, consoante o que for, é possível que não tenha resistido dois séculos e meio no fundo do mar. Lúcio Gamboa disse...
— Lembro-me perfeitamente do que ele disse.
— Então já sabes. Tesouros, talvez. Outra coisa, esquece.
A estrada descia agora entre prados inesperadamente verdes, antes de subir novamente. Havia uma povoação branca em cima, à direita, suspensa no pico de uma montanha. Vejer de La Frontera, leu Coy numa placa rodoviária. Outra seta indicava o mar: cabo Trafalgar, 16 quilómetros.
— Oxalá seja um tesouro — disse. — Ouro espanhol. Prata em lingotes... Talvez esse Aranda fosse realmente subornável. — Permaneceu pensativo durante algum tempo, mordendo o lábio inferior. — ...Como poderíamos tirá-lo sem que ninguém soubesse?
Sorria, divertido com a ideia. O tesouro dos jesuítas. Barras de ouro amontoando-se num porão. Desembarques nocturnos numa praia, entre o rumor das pedras arrastadas pela levadia. Dobrões, Deadman's Chest e uma garrafa de rum. Acabou rindo-se em voz alta. Tânger mantinha-se em silêncio e ele voltou-se, olhando-a por diversas vezes, sem perder de vista a estrada pelo rabinho do olho.
— Com certeza que já tens um plano — acrescentou. — Tu és do tipo de pessoas que tem sempre um plano.
Tinha roçado acidentalmente a mão dela ao mudar a velocidade e, desta vez, ela retirou-a. Parecia irritada.
— Tu não sabes que tipo de pessoa sou.
Ele riu-se novamente. A ideia do tesouro, de tão absurda, pusera-o de bom humor. Rejuvenescia trinta anos: Jim Hawkins fazia-lhe caretas de uma estante cheia de livros, na Pousada do Almirante Benbow.
— Às vezes julgo sabê-lo — disse, sincero —, e outras vezes não sei. De qualquer forma, não te tiro a vista de cima... Com tesouro ou sem ele. E espero que tenhas pensado em reservar a minha parte. Sócia.
— Não somos sócios. Trabalhas para mim.
— Ah, diacho! Tinha-me esquecido.
Coy assobiou alguns compassos de Body and Soul. Estava tudo em ordem. Ela orquestrava o canto das sereias, o dobrão de ouro espanhol brilhava cravado no mastro diante dos olhos do marinheiro sem barco e, enquanto isso, o Renault alugado deixava Tarifa para trás, o seu vento perene e as fantasmagóricas asas giratórias das suas torres de energia eólica. O motor aquecia demasiado nas subidas, de modo que pararam num miradouro sobre o estreito. O dia estava claro, no outro lado da barra azul avistavam a costa marroquina e, um pouco mais longe, à esquerda, o monte Hacho e a cidade de Ceuta. Coy observava a progressão lenta de um petroleiro que navegava em direcção ao Atlântico: desviara-se um pouco do dispositivo de separação de tráfego que regulava a passagem nas duas direcções e, sem dúvida, teria de alterar o rumo para permitir a manobra de um cargueiro que se aproximava da proa, em sentido contrário. Imaginou o oficial de quarto à ponte — a essa hora seria o terceiro de bordo — atento ao ecrã do radar, esperando até ao último minuto a ver se tinha sorte e o outro se desviava antes.
— Além disso, Coy, tu vais muito depressa. Eu nunca falei de tesouros.
Tinha permanecido calada pelo menos cinco minutos. Agora tinha saído do carro e estava ao seu lado, olhando para o mar e para a vizinha costa de África.
— É verdade — admitiu ele. — Mas o tempo está a acabar. Terás de contar-me o resto da história enquanto estamos aqui.
Lá em baixo, no estreito, a esteira branca deixada pelo petroleiro traçava uma ligeira curva na direcção da margem europeia. O oficial de quarto tinha achado prudente manter alguma distância do navio mercante. Dez graus a estibordo, calculou Coy a olho. Nenhum oficial podia manejar as máquinas sem autorização do capitão, mas corrigir dez graus e depois voltar ao rumo era razoável.
— Ainda não estamos lá — disse ela em voz baixa.
Os escritórios de Deadman's Chest Ltd. ficavam no número 42b de Main Street, no rés-do-chão de um edifício de aspecto colonial, com paredes brancas e janelas pintadas de azul. Coy olhou para a placa aparafusada na porta e, após uma pequena hesitação, tocou na campainha que havia por baixo. Não estava muito sossegado, mas Tânger recusava entrevistar-se com Nino Palermo no gabinete dele. De modo que ele estava encarregado da missão exploratória e de combinar, se os sinais fossem favoráveis, um encontro posterior naquele mesmo dia. Tânger dera-lhe instruções precisas, tão pormenorizadas como para uma operação militar.
— E se me partem a cara? — tinha perguntado, lembrando-se da sala circular do Palace.
— Palermo antepõe os negócios às questões pessoais — foi a resposta. — Não creio que pretenda ajustar contas. Não ainda.
De modo que ali estava ele, olhando para a sua cara mal barbeada na placa de latão, inspirando como se estivesse a preparar-se para um mergulho perigoso.
— O senhor Palermo está à minha espera.
O berbere parecia mais mal-encarado à luz do dia, no outro lado da porta aberta, com aqueles olhos fúnebres que dissecavam Coy, reconhecendo-o, antes de se afastar para lhe permitir a passagem. O vestíbulo era pequeno, forrado de madeiras nobres, com alguns toques navais: uma enorme roda de leme, um escafandro de mergulho, a maqueta de uma trirreme romana numa urna de vidro. Havia uma mesa de design moderno onde se sentava a secretária que Coy recordava do leilão de Barcelona e da sala circular do Palace. Havia também uma poltrona e uma mesinha baixa com as revistas Yachting e Bateaux, e uma cadeira a um canto. Na cadeira estava sentado Horacio Kiskoros.
Não era uma freguesia que desse para desejar os bons-dias a sorrir. De modo que Coy nem sorriu nem deu os bons-dias, nem fez mais nada senão permanecer imóvel no vestíbulo, na expectativa, enquanto o berbere fechava a porta atrás de si. Os três pares de olhos fixos em si não transmitiam excessivo calor humano. O berbere aproximou-se por trás, como um tonto, sem gestos ameaçadores e, de uma forma mecânica e eficiente, inclinou-se até aos tornozelos de Coy, fazendo-lhe uma revista rápida.
— Nunca usa armas — antecipou-se Kiskoros da sua cadeira, num tom de voz quase amável.
E é agora que começam a sacudir-me, pensou Coy, recordando nas suas costelas a sólida eficácia do berbere. Agora começam a malhar como se eu fosse um polvo, pumba, pumba, até me porem no ponto de ir para a grelha, e acabam por me tirar daqui, se é que saio, com os dentes num cartucho de papel de jornal. LOADAL: Lei de Onde As Dão As Levam. De certeza que até essa das cuecas pretas se vingará.
— Ora, ora... — disse uma voz.
Nino Palermo estava na porta que acabava de abrir-se no outro lado. Calças castanhas, camisas às riscas azuis com as mangas arregaçadas e sem gravata. Mocassins caros.
— Tenho de reconhecer... — disse, olhando surpreendido para Coy. — Valha-me Deus! Você tem tomates.
— Esperava-a a ela?
— Claro que a esperava a ela.
O olhar bicolor do caçador de naufrágios era desabrido, com a imobilidade de uma serpente. Coy reparou que o nariz conservava um leve inchaço, com ténues círculos escuros por baixo dos olhos. Sentiu atrás de si os passos suaves do berbere e o olhar que Palermo lhe dirigia por cima do ombro, e contraiu involuntariamente os músculos. Na nuca, pensou. Este cabrão vai-me bater na nuca.
— Entre — disse Palermo.
Entrou, e o seu anfitrião fechou a porta e foi apoiar-se na beira de uma mesa de caoba coberta de livros, papéis e cartas náuticas cheias de anotações a lápis que cobriu discretamente com o Gibraltar Chronicle. Havia também, como pisa-papéis, um lingote de prata antigo, de uns dois quilos. Coy ficou de pé, olhando, para olhar alguma coisa sem ser a cara de Palermo, uma pintura a óleo pendurada na parede: uma batalha naval entre um navio norte-americano e outro inglês. Duas fragatas disparando os canhões com a mastreação destruída. Tinha uma placa na parte inferior da moldura. Combate dajava e da Constituição, leu. O fumo dos tiros de canhão ia para o bordo apropriado, de acordo com as nuvens, com as ondas e com a orientação das velas. Era um bom quadro.
— Porque o manda sozinho?... Ela deveria estar aqui.
O olho verde e o olho pardo observavam-no com mais curiosidade que rancor. Coy não sabia a que olho dirigir-se, de modo que acabou decidindo-se pelo pardo. Parecia-lhe menos inquietante.
— Não se fia. Por isso vim eu. Antes de o ver quer saber o que pretende.
— Está em Gibraltar?
— Está onde deve estar.
Palermo abanou a cabeça devagar, numa negativa. Tinha agarrado numa pequena bola de borracha de cima da mesa e apertava sem parar.
— Eu também não me fio nela.
— Aqui ninguém se fia em ninguém.
— Você é um... Valha-me Deus! — A mão esquerda, carregada com os anéis e com o enorme relógio de ouro, contraía-se a cada gesto dos músculos do antebraço. — Um idiota, é o que é. Ela manipula-o como a um fantoche.
Coy continuava pendente do olho pardo.
— Meta-se nos seus assuntos — disse.
— Este é o meu assunto. Era-o, e só meu, até aquela cabra se ter intrometido. A minha boa vontade...
— Pare de me apalpar os colhões com a sua boa vontade. — Coy decidiu passar ao olho verde. — Eu vi o que o seu anão fez ao cão dela.
Palermo deixou de abrir e fechar a mão com a bola e mudou de posição na beira da mesa. De repente, parecia pouco à vontade.
— Garanto-lhe que eu, nunca... Valha-me Deus! Horacio excedeu-se. Ele está habituado a formas... Lá, na Argentina... Bom — ficou a olhar para a bola, como se de repente lhe desagradasse e colocou-a novamente em cima da mesa, junto de um abre-cartas de marfim cujo punho era uma mulher nua. — Creio que no país dele passou um pouco das marcas... Depois aconteceu o assunto das Malvinas. Horacio saiu na capa da revista Time com os prisioneiros ingleses. Tem muito orgulho nessa capa e tem sempre consigo uma fotocópia colorida... Aquando da democracia, teve de... Imagine. Demasiadas pessoas o reconheceram, graças a essa bendita fotografia, como aquele que lhes colocava eléctrodos nos genitais.
Calou-se e depois encolheu ligeiramente os ombros, dando a entender que naquela época Kiskoros não era um problema seu. Coy assentiu. O outro não lhe tinha oferecido cadeira e continuava de pé.
— E você deu-lhe trabalho.
— Era um bom mergulhador — admitiu Palermo. — E aí onde o vê, tão pequenino, é um indivíduo bastante eficaz para certo tipo de... Bom — voltou a mudar de posição na beira da mesa, e tilintaram as correntes de ouro e as medalhas. — O que posso dizer que você não saiba? Além disso, sempre preferi contratar assalariados eficientes em vez de voluntários entusiastas... Um mercenário bem pago não nos deixa em maus lençóis.
— Depende de quem pague mais.
— Eu pago mais.
Fez uma pausa para observar a moeda de ouro que tinha no anel da mão direita. Depois esfregou-a na camisa, num gesto maquinal.
— Horacio é um completo filho da puta — prosseguiu. — Um ex-militar argentino de pai grego e mãe italiana, que fala espanhol e se julga inglês... Mas é um filho da puta bastante correcto. E eu gosto de gente correcta. Até tem a sua velha mãe em Rio Gallegos, e manda todos os meses dinheiro para a velhinha. Tal como nos tangos, não é verdade?... Que coisas.
Ergueu a mão alguns milímetros como se fosse tocar na cara, mas deteve o gesto apenas começado.
— E quanto a você...
Agora o olho pardo revelava rancor e o verde, ameaça. Mas aquilo durou apenas um instante.
— Oiça — prosseguiu. — Tudo isto passou das marcas de uma forma absurda. Estamos chegando demasiado longe, certo?... Todos. Ela. Eu próprio, talvez. Até Horacio mata cachorros, o que já é... Valha-me Deus! O cúmulo. E você, evidentemente. Você...
O caçador de naufrágios ficou novamente em suspenso, tentando descobrir uma palavra que definisse o papel de Coy naquela embrulhada.
— Olhe — tinha agarrado numa chave e aberto uma gaveta, tirando de lá uma moeda reluzente de prata que atirou para a mesa. — Sabe o que é isto?... O que no meu ofício chamamos um colunário: oito reais de prata cunhados em Potosi em 1739 por ordem do rei Felipe V... Está à sua frente... Repare. É uma das famosas «peças de oito», protagonistas de todas as histórias de piratas e tesouros...
Tirou outra diferente, maior, atirando-a para junto da anterior. Desta vez tratava-se de uma medalha comemorativa: três figuras, uma delas ajoelhada, com a inscrição: The pride of Spain humbled by A. Vernon. O orgulho de Espanha humilhado, traduziu Coy, segurando-a entre os dedos. No reverso, vários navios e outra inscrição: They took Carthagena April 1741. Tomaram Cartagena — das índias, calculou Coy — em Abril, etc. Colocou a medalha na mesa, junto dos oito reais.
— Era um bluff, porque não chegaram a conquistá-la — explicou Palermo. — O almirante Vernon retirou-se derrotado, sem conseguir saquear a cidade como pretendia... Quem se supõe estar ajoelhado na medalha é o espanhol Blas de Lezo, que nunca chegou a ajoelhar-se, entre outras coisas, porque era manco e coxo. Mesmo assim, defendeu a cidade com unhas e dentes, fazendo os Ingleses perderem seis barcos e nove mil homens... Foi preciso fazer desaparecer as medalhas que Vernon já trazia cunhadas para comemorar o acontecimento... Excepto as que se afundaram na baía. Difíceis de encontrar.
Meteu a mão na gaveta e tirou um punhado de moedas diversas, que sopesou com a mão, antes de as deixar cair outra vez com um tilintar metálico. O ouro e a prata brilhavam ao escorregar-lhe pelos dedos carregados de anéis.
— Eu tirei essa de um barco inglês afundado — disse o caçador de tesouros. — ...Essa, esta e muitas outras: moedas de prata de quatro e oito reais, colunários, macuquinas(1), dobrões de ouro, lingotes, jóias... Sou um profissional, compreende?... Conheço palmo a palmo os nove quilómetros de prateleiras do Arquivo das índias, e também os arquivos do Almirantado inglês, do palácio da Inquisição de Cartagena das índias, Simancas, Viso del Marquês, Medina Sidonia... E não estou disposto a tolerar que um par de amadores me... Valha-me Deus! Rebentem com o trabalho de toda a minha vida...
Agarrou na moeda de oito reais e na medalha de Vernon, devolvendo-as à gaveta. O seu sorriso era tão simpático como o de um tubarão-branco a quem tivessem acabado de contar uma anedota de náufragos.
— Por isso vou até ao fim — acabou por declarar. — Sem piedade e sem remédio. Vou até... Juro-lhe. E quando acabar com isto, essa mulher... Vai ver. Quanto a si, deve estar louco — fechou a gaveta e meteu a chave no bolso. — Não faz a mais remota ideia das consequências.
Coy coçou a cara por barbear.
— Mandou aquele cabrão do anão a Cádis para nos fazer vir até aqui e dizer-nos isso?
*1. Macuquinas: moeda de ouro ou prata, cortada sem serrilha, que circularam até ao século XIX. (N. da T.)
— Não. Fi-los chamar para lhes propor um derradeiro acordo. A última possibilidade. Mas você...
Deixou a frase por terminar, embora fosse bastante clara. Não o considerava qualificado para essa negociação. Coy também achava o mesmo, e isso ambos o sabiam.
— Só vim para ver como estão as coisas — disse. — Ela aceita vê-lo.
Palermo semicerrou os olhos. Uma luz de interesse brilhava atrás das suas pálpebras, à espreita.
— Quando e onde?
— Aqui em Gibraltar parece-lhe bem. Mas não virá ao escritório. Prefere um terreno neutro.
O sorriso seco revelou agora alguns dentes sãos e muito brancos. O tubarão nadava em águas próprias, pensou Coy. Farejando.
— E o que é que essa entende por terreno neutro?
— O miradouro do Perion, que dá para o aeroporto, serviria bem.
Palermo reflectia.
— Old Willis?... Porque não? A que horas?
— Hoje, às nove.
O outro deu uma olhadela ao relógio e reflectiu um pouco mais. O sorriso cruel começou novamente a despontar.
— Diga-lhe que lá estarei... Você também irá?
— Sabê-lo-á quando for.
Os olhos pouco amistosos examinaram Coy de cima a baixo, e o caçador de tesouros riu-se de forma desagradável. Não parecia nada impressionado.
— Achas-te um duro, não é verdade?... — O tuteio brusco tornava o tom de voz bastante mais desagradável. — Valha-me Deus! És uma marioneta, como todos. É isso que és. Elas usam-nos como... Usar e deitar fora, é isso. É assim que fazem. E tu... Estou a par da tua situação. Tenho meios para investigar... Bom. Tu entendes. Estou a par do teu problema. Depois de Madrid encarreguei-me de investigar. Aquele barco no Índico. Dois anos de suspensão é muito tempo, não é verdade? Eu, no entanto... Quero dizer que tenho amigos com barcos que precisam de oficiais. Poderia ajudar-te.
Coy franziu o sobrolho. Tudo aquilo lhe dava a sensação de um intruso revistando as suas gavetas. Voltar-se para a janela e verificar que está lá alguém a espiar.
— Não preciso de ajuda.
— Hum, estou a ver — Palermo observava-o com muita atenção. — Mas não enganas ninguém, sabes?... Deves achar-te um tipo original, mas... Valha-me Deus! Já te vi cem vezes antes. Abre os olhos. Se calhar, julgas-te o único que leu livros e foi ao cinema. Mas estes não são os portos da Ásia, nem tu és... Nem sequer servirias para um filme medíocre. Peter O'Toole tinha muito mais classe. E quando ela... Bom. Vai deixar-te ao deus dará, como esses barcos fantasmas saqueados e sem tripulantes... Neste romance não há segundas oportunidades, vê se entendes. Neste mistério do barco perdido, o capitão perde o título definitivamente. E a rapariga... foda-se. Aquela cadela cospe-lhe na cara... Não, não me olhes assim. Não tenho dotes de adivinho. Acontece, apenas, que o teu caso é tão elementar que dá vontade de rir.
No entanto, não se riu. Estava sombrio, ainda na beira da mesa, com uma mão de cada lado. Os olhos pardo e verde olhavam através de Coy, absortos.
— Conheço-as bem — disse. — Cabras.
Agora abanava a cabeça. Esteve assim um pouco, sem abrir a boca. Depois olhou em volta, como se tentasse reconhecer o sítio onde estava. O seu próprio gabinete.
— Jogam com armas — acrescentou — que nós até ignoramos que existem. E são... Valha-me Deus. São muito mais espertas do que nós. Enquanto passávamos séculos falando em voz alta e bebendo cerveja, indo para as Cruzadas ou para o futebol com os amigalhaços, elas ficavam lá atrás, cosendo, cozinhando, observando...
O ouro tilintou-lhe, enquanto se dirigia a um pequeno armário e tirava uma garrafa de Cutty Sark e dois copos largos e baixos, de cristal pesado. Colocou gelo num balde, deitou uma generosa dose de whisky em cada um e voltou com eles.
— Eu compreendo o que estás a passar — disse. Conservou um copo na mão e colocou o outro na mesa, diante de Coy.
— Foram e ainda são nossas reféns, compreendes? — Bebeu um gole e outro logo a seguir, sem deixar de o observar por cima do copo. — ...Isso faz que a moral delas e a nossa sejam... Não sei. Diferentes. Tu e eu podemos ser cruéis por ambição, por luxúria, por estupidez ou por ignorância... Para elas, no entanto... Chama-lhe calculismo, se quiseres. Ou necessidade... Uma arma defensiva, vê lá se me entendes. São más, porque arriscam tudo e têm de sobreviver. Por isso lutam até à morte, quando o fazem. Essas putas não têm retaguarda.
Tinha recuperado o sorriso de tubarão. Apontou para o pulso com o indicador da outra mão.
— Imagina um relógio... Um relógio que é preciso fazer parar. Tu e eu pará-lo-íamos como qualquer homem: à martelada. A mulher não. Quando tem oportunidade, o que faz é desmontá-lo peça por peça. Tirar tudo cá para fora, de modo a que ninguém volte a ser capaz de o reconstruir. Que nunca mais volte a bater as horas... Valha-me Deus! Já as viste... Sim. Desmontam para sempre o mecanismo de homens capazes com um gesto, um olhar ou uma simples palavra.
Bebeu novamente e torcia a boca ao fazê-lo. Uma tintureira rancorosa. Sedenta.
— Elas matam-nos e continuamos a andar sem sabermos que estamos mortos.
Coy reprimiu o impulso de estender a mão para o copo que continuava intacto em cima da mesa. Não pelo simples facto de beber, que era o menos, mas para o fazer com o homem que tinha diante de si. A Tripulação Sanders estava demasiado longe, o velho ritual masculino tentava-o e, afinal de contas, reflectiu, era lógico que assim fosse. Nesse momento, sentia outra vez saudades desesperadas de bares cheios de tipos que pronunciavam palavras incoerentes com a língua entumecida pelo álcool, garrafas vazias de gargalo para baixo nos baldes de gelo, mulheres que não sonhavam com barcos afundados ou que tinham deixado de acreditar nisso. Louras que não eram jovens, mas que eram audazes, como na canção O Marinheiro e o Capitão, dançando sozinhas sem se importarem que as tirassem à sorte. Refúgios e esquecimento a tanto à hora. Mulheres sem fotografias de meninas em molduras de prata, quando a terra firme se convertia num lugar habitável durante algum tempo, em jeito de escala, esperando o momento de regressar, entre as gruas e os telheiros cinzentos pela madrugada, a qualquer barco prestes a largar amarras, enquanto os gatos e as ratazanas brincavam ao jogo dos quatro cantinhos no cais. Desci a terra, dissera uma vez em Veracruz o Torpedeiro Tucumán. Desci a terra e só cheguei até ao primeiro bar.
— Às nove, no miradouro — disse Coy.
Albergava uma fúria desolada, incómoda, dirigida contra si próprio. Cerrou os dentes, sentindo endurecerem-se-lhe os músculos das mandíbulas. Nessa altura rodou sobre os calcanhares, encaminhando-se para a porta.
— Achas que estou a mentir? — perguntou Palermo atrás de si. — ...Valha-me Deus. Depressa hás-de ver... Maldição. Devias ter continuado no mar. Este não é sítio para ti. E hás-de pagar, naturalmente — agora a sua voz soava exasperada. — Pagamos todos, mais cedo ou mais tarde, e há-de chegar a tua vez. Pagarás por aquilo do Palace e pagarás por não teres querido ouvir-me. Pagarás por ter acreditado nessa puta embusteira. E, nessa altura, já não será uma questão de encontrares barco, mas de encontrares um buraco onde esconder-te... Quando ela, por seu lado, e eu, por outro5 tivermos acabado contigo.
Coy abriu a porta. Só farás uma viagem gratuitamente, recordou. O berbere estava ali imóvel e ameaçador, cortando-lhe a passagem. A secretária espreitava com curiosidade da sua mesa e, ao fundo, sentado na cadeira, Kiskoros cortava as unhas como se nada daquilo fosse com ele. Após consultar o seu chefe, inquisitivo e silencioso, o berbere afastou-se para um lado. Enquanto atravessava o vestíbulo a caminho da rua, Coy ouviu ainda as últimas palavras do caçador de tesouros:
— Continuas a não acreditar em mim, não é verdade?... Então pergunta-lhe pelas esmeraldas do Dei Gloria. Grande imbecil.
Ponto estimado, diziam os manuais de navegação, era quando todos os instrumentos de bordo iam para o maneta, e não havia sextante, nem lua, nem estrelas, e era preciso posicionar o barco recorrendo à última posição conhecida, à bússola, à velocidade e às milhas percorridas. Dick Sand, o capitão de quinze anos idealizado por Júlio Verne, tivera de governar dessa forma a goleta Pilgrim no decurso da sua acidentada viagem de Auckland a Valparaíso. Mas o traidor Negoro colocou um pedaço de ferro na bitácula, desviando a agulha. Dessa forma, o jovem Dick, entre furiosos temporais, tinha passado junto ao cabo Horn sem o ver e, confundindo Tristão da Cunha com a ilha da Páscoa, acabara encalhado na costa de Angola, julgando estar na Bolívia. Um semelhante erro de cálculo não conhecia comparação nos anais do mar, e Júlio Verne, concluíra Coy quando lera aquele livro, sendo aluno de náutica, não tinha a mais remota ideia da prática da navegação. Mas a lembrança longínqua dessa leitura veio-lhe agora à cabeça com a força de uma advertência. Navegar às cegas, baseando-se em cálculos, não colocava demasiados problemas, se um piloto fosse capaz de posicionar-se a partir da distância percorrida, do abatimento e da deriva, levando-os à carta para estabelecer o suposto local em que se encontrava. O problema, relativo no mar alto, convertia-se em grave na hora de se aproximarem de terra: a entrada num porto. Às vezes, os barcos perdiam-se no mar, mas muito mais amiúde os barcos e os homens perdiam-se em terra. Colocavam um lápis sobre um ponto da carta e diziam: estou aqui. E na realidade estavam ali, em cima de um baixio, de recifes, uma costa a sotavento, e de súbito ouviam o ranger do casco fendendo-se sob os seus pés. Craque! E aí tudo se acabava.
Evidentemente, havia um traidor a bordo. Ela tinha colocado um pedaço de ferro na bitácula e, uma vez mais, ele vira-se calculando mal os indícios de que dispunha. Mas o que antes tinha menos importância, e dava mesmo emoção ao jogo, agora, na incerteza da entrada próxima no porto, parecia inquietante. Todas as luzes de alarme piscavam, vermelhas, no instinto marinheiro de Coy, enquanto este caminhava pelo pequeno cais de Marina Bay, entre os iates atracados nas proximidades da pista do aeroporto. Havia uma brisa de levante que corria sobre o istmo e retinia contra os mastros e nas adriças dos veleiros, servindo de pano de fundo à voz tranquila de Tânger. Ela falava de esmeraldas e fazia-o com uma serenidade incrível, tão fria como se aquele fosse um tema corrente ao qual se referisse a todo o instante. Tinha ouvido em silêncio as recriminações de Coy, sem responder aos sarcasmos que este preparou na caminhada desde o escritório de Nino Palermo até ao porto desportivo onde ela esperava notícias. Depois, quando ele esgotou a sua argumentação e ficou a olhar para ela, contendo-se com dificuldade e bastante furioso, à espera de uma explicação que o impedisse de pegar na trouxa e sair porta fora nesse mesmo instante, Tânger pusera-se a falar de esmeraldas com a maior naturalidade do mundo, como se, durante aqueles dias, só tivesse estado à espera da pergunta de Coy para lhe contar tudo. Embora, vá-se lá saber? se aquele tudo, desta vez, era realmente tudo.
— Esmeraldas — dissera, em jeito de introdução, pensativa, como se a palavra lhe recordasse alguma coisa. E depois ficou calada durante algum tempo, contemplando o mar que se estendia, como um semicírculo dessa mesma cor, pela baía de Algeciras. Depois, antes que Coy blasfemasse pela terceira vez, pusera-se a falar da mais preciosa e da mais delicada das pedras. Da mais frágil e da que mais dificilmente reunia os atributos necessários: cor, limpeza, brilho e tamanho. Ainda teve tempo de explicar que, com o diamante, a safira e o rubi, constituía o grupo das quatro principais pedras preciosas e que era, tal como as outras, mineral em forma cristalizada. Mas enquanto o diamante era branco, a safira azul e o rubi vermelho, a cor da esmeralda era um verde tão extraordinário e único que para o definir era preciso recorrer ao seu próprio nome.
Depois de ela ter dito tudo isto, Coy parou e foi nessa altura que blasfemou pela terceira vez. Uma blasfémia grosseira de marinheiro, rotunda e seca, que invocava o nome de Deus em vão.
— E tu és uma trapaceira do caraças — acrescentou.
Ficou a olhar para ele fixamente, com muita atenção. Parecia pesar, uma por uma, aquelas sete palavras. Os olhos estavam novamente duros, não como a frágil pedra que acabara de descrever com total sangue-frio, mas como a pedra escura, afiada como um punhal, à espreita entre as ondas que quebram nos escolhos. Depois, ela olhou para o lado, para a extremidade do cais, onde o mastro do Carpanta se erguia a meio dos outros, com a vela maior cuidadosamente presa à espicha. Quando retornaram a Coy, os olhos dela estavam diferentes. A brisa agitava-lhe o cabelo sobre a cara pintalgada.
— O bergantim transportava esmeraldas, seleccionadas nas minas que os jesuítas controlavam nas jazidas colombianas de Muzo e Coscuez...
Foram embarcadas em Cartagena das índias com destino a Havana e, mais tarde, levadas para bordo no maior segredo.
Coy desviou a vista para os pés, depois para o chão de tábuas do cais, e deu alguns passos ao acaso, antes de ficar imóvel novamente. Olhava para o mar. As proas dos barcos ancorados na baía curvavam-se lentamente, acompanhando a brisa do Atlântico. Abanou a cabeça de um lado para outro, como se estivesse a negar alguma coisa. Estava tão surpreendido que continuava a não querer admitir a sua própria estupidez.
— A esmeralda — prosseguia ela — tem dois pontos fracos: a sua fragilidade, que a torna vulnerável ao talhamento, e o jardim: zonas opacas, pontos de carvão por cristalizar que às vezes aparecem no seu interior e a tornam mais feia... Isso significa, por exemplo, que uma peça de um quilate vale mais que uma de dois quilates, se a primeira tiver melhores atributos.
Falava agora com suavidade, quase com doçura. Como alguém que explica uma coisa complicada a um rapaz pouco esperto. Um avião militar descolou da vizinha pista do aeroporto, atroando o ar com os seus motores. O ruído apagou por alguns instantes as palavras de Tânger.
— ...para o talhe em facetas que é feito depois pelos joalheiros especializados. E, dessa forma, uma esmeralda de vinte quilates, desprovida de jardins, é uma das mais valiosas e procuradas que existe — fez uma pausa e acrescentou: — Pode valer duzentos e cinquenta mil dólares.
Coy ainda contemplava o mar, por cima do qual o avião tomava lentamente altura. No outro lado do arco da baía fumegavam as chaminés da refinaria de Algeciras.
— O Dei Gloria — disse Tânger — transportava duzentas esmeraldas perfeitas, de vinte a trinta quilates cada uma.
Fez uma nova pausa. Movia-se, colocando-se diante dele. Agora olhava-o de muito perto.
— Esmeraldas por lapidar — insistiu. — Grandes como nozes.
Coy tinha podido jurar que, desta vez, a voz dela tremia ligeiramente. Grandes como nozes. Foi só uma impressão passageira, pois quando prestou atenção viu-a tão senhora de si como sempre. Continuava indiferente às censuras, sem necessidade de pronunciar uma única palavra de justificação. Era o seu jogo e as suas regras.
Foi sempre assim, desde o princípio, e ela sabia que Coy o sabia. Mentir-te-ei e trair-te-ei. Naquela ilha dos cavaleiros e dos escudeiros, ninguém tinha prometido que o jogo seria limpo.
— Aquele carregamento — especificou ela — valia o resgate de um monarca... Ou, para sermos mais exactos, o resgate dos jesuítas espanhóis. O padre Escobar queria comprar o conde de Aranda. Talvez também o gabinete da Pesquisa Secreta... Talvez o próprio rei.
Quase sem querer, Coy sentia que a curiosidade ia ocupando o lugar da sua fúria. A pergunta surgiu antes mesmo de pensar em formulá-la:
— Estão lá em baixo, no fundo?
— Podem estar.
— Como sabes?
— Não sei. Temos de descer até ao bergantim para o averiguar. Temos. Aquele plural soava como um bálsamo numa ferida e Coy estava consciente disso.
— Ia contar-te quando estivéssemos lá... Não compreendes?
— Não. Não compreendo.
— Ouve. Tu conheces os riscos. Com toda essa gente atrás, eu não sabia o que te poderia acontecer... Nem sequer agora o sei. Não podes censurar-me por isso.
— Nino Palermo sabe. Sou o último a ficar a par, tal como os maridos.
— Palermo pensa que há esmeraldas, mas ignora quantas. Também não sabe como são nem por que estavam no bergantim. Ouviu apenas uns boatos.
— Pois a mim parece-me muito bem informado.
— Ouve. Passei anos com aquele barco na cabeça, mesmo antes de confirmar a sua existência. Nem Palermo nem ninguém sabem sobre o Dei Gloria o que eu sei... Queres que te conte a minha história?
Não quero que me contes outra fiada de mentiras, teve Coy na ponta da língua. Mas calou-se, porque realmente queria ouvir. Precisava de mais peças, novas notas que desenhassem com precisão a melodia estranha que ela traçava em silêncio. E, dessa forma, imóvel no cais e com a brisa de levante que soprava atrás de si e continuava a agitar o cabelo da rapariga, dispôs-se a ouvir a história de Tânger Soto.
Havia uma carta, disse ela. Uma simples carta, uma folha amarelada escrita de ambos os lados. Foi enviada por um jesuíta a outro e, depois, esquecida por todos, ficou misturada com um monte de papéis requisitados aquando da dissolução da Companhia de Jesus. A carta estava escrita em código e vinha com a sua transcrição, realizada por mão anónima, possivelmente a de um funcionário encarregado de investigar os documentos expropriados à Companhia. E junto a muitas outras de temas diversos e com transcrições similares, tinha adormecido um sonho de dois séculos no fundo de um arquivo catalogado como Clero /Jesuítas / Vários n°. 356. Ela encontrou-a por acaso, quando fazia investigação no Arquivo Histórico Nacional, preparando um trabalho universitário sobre a Machinada de Guipúzcoa, em 1766. A carta era assinada pelo padre Nicolás Escobar, nome que naquele momento não significava nada para ela, e era dirigida a outro jesuíta, o padre Isidro López:
Reverendo Padre:
Desarmados dos nossos auxílios, caluniados perante o Rei e o Santo Padre e objecto do ódio das pessoas fanáticas que Vossa Paternidade conhece de sobra, muito perto estamos da bem traçada Catástrofe que com tanto sigilo se industria. Os próprios eclesiásticos que são adversos à Companhia não se recatam de ser corredores e proxenetas das calúnias que circulam impunemente. Desta forma vamos sendo reduzidos as nossas próprias forças por aqueles que tudo julgam lícito para atingir os seus fins e sequestram a vontade, não só do Nosso Soberano, que por maus avisos de nós suspeita, mas também dos nossos antigos amigos.
Tudo pressagia, Reverendo Padre, um golpe contra a nossa Ordem do modo nefasto como se realizou o crime em França e em Portugal do ímpio Pombal. Por canal seguro e directíssimo o menorita G. confirmou-nos a relação conhecida por V. P. sobre os indivíduos que preparam a manobra e de que modo se artificia a sua espécie. Mas nesse vasto negócio, disfarçado de Averiguação Secreta, resta um resquício de esperança. Escrevo-vos a presente, que vos chegará pelo canal seguro que nos é habitual, afim de vos alentar a resistir enquanto realizamos a empresa que talvez disponha em nossa justiça a vontade dos mais poderosos.
Com consulta prévia aos nossos superiores, e em atenção ao desígnio que V. P já conhece, disponho-me a viajar na esperança de que, Ad Maiorem Dei Gloriam (com esse nome e com esse amparo me disponho a embarcar), o vento sopre nas boas direcções. Duzentos argumentos a modos de chamas de fogo verde sem talhar, perfeitas e grandes como nozes (íris do Diabo, chama-os o bom menorita) esperam em Cartagena das índias sob custódia do padre José Luis Tolosa, que é jovem seguro e mui de fiar. Eu estarei em Havana, com a ajuda de Deus, para finais do mês; e do mesmo modo espero regressar ao Nosso Porto o mais cedo possível, com tanto sigilo e tão directamente quanto os privilégios da Companhia nos permitam, evitando perigosas escalas intermédias. O nosso dilecto Dom P. P. prometeu ao menorita esperar, e apesar de tudo e das suas novas disposições e ambição, ainda podemos considerá-lo indivíduo favorável; pois muito é o que tem por benefício neste negócio.
Acrescentarei a V. P. a feliz nova que soube ontem pelo nosso querido menorita que alguns amigos próximos do círculo da chorada Rainh,a-Mãe continuam a ser-nos tão propícios como também o são o digno V. e também H.; embora de este último nunca nos possamos fiar completamente pela sua natureza intriguista. Quanto ao menorita, continua nas graças das pessoas reais e movendo em nosso benefício os fios do negócio, e conta-nos que Dom P. P. se mantém bastante receptivo ao que nos ocupa. Até ao meu regresso, portanto, não resta senão Tacere et Fideri. E que a Divina Providência disponha.
Receba Vossa Paternidade o mais respeitoso cumprimento do seu irmão em Cristo
Nicolás Escobar Marchamalo, S. J.
No porto de Valência,
No primeiro de Novembro, A. D. de 1766
Com o tempo, Tânger tinha identificado todas as personagens citadas na carta. A rainha-mãe Isabel Farnesio, bastante favorável à Companhia de Jesus, tinha morrido meio ano antes. O destinatário era o padre Isidro López, o mais influente dos jesuítas espanhóis, que gozou de excelente posição na corte do rei Carlos III e que faleceria em Bolonha dezoito anos depois de extinta a Companhia, sem ter conseguido regressar do desterro. Quanto às iniciais, estas não colocavam dificuldades para alguém habituado a manejar livros de História: P. P. era Pedro Pablo Abarca, conde de Aranda. Atrás da inicial H. ocultava-se apenas o nome de Lorenzo Hermo-so, um índio de Caracas residente em Espanha, intriguista e conspirador, que esteve implicado no motim de Esquilache e que, após a queda dos jesuítas, acabou preso e mais tarde desterrado, depois de o fiscal ter pedido para ele tormento tanquam in cadavere. A pessoa designada como V. era Luis Velázquez de Velasco, marquês de Valdeflores, literato e íntimo da Companhia, que haveria de pagar essa amizade com dez anos de prisão nos presídios de Alicante e Alhucemas. E a inicial G. referia-se ao menorita Gándara, conhecido na corte de Carlos III como o principal apoio dos jesuítas perto do rei, a quem acompanhava como escopeteiro nas suas caçadas. O seu verdadeiro nome era Miguel de La Gándara, e a sua infeliz personagem poderia ter inspirado O Conde de Monte Cristo ou A Máscara de Ferro. Preso pouco antes da queda da Ordem, viveu na prisão os dezoito anos que lhe restavam de vida e morreu na cadeia de Pamplona, sem que ninguém tivesse determinado com clareza os motivos da sua condenação.
A personagem do menorita Gándara tinha fascinado Tânger, ao ponto de acabar por fazer sobre ele a sua tese de licenciatura. Isso levou-a a investigar todos os papéis sobre os seus processos e prisão, conservados na Secção Graça e Justiça do Arquivo Nacional de Simancas. Descobriu inclusivamente o nome do barco jesuíta que só se mencionava veladamente na carta: Dei Gloria. Dessa forma, pôde comprovar que a despedida do padre Nicolás Escobar ao padre López, onde mencionava Gándara, foi escrita um dia antes da detenção deste, efectuada a 2 de Novembro de 1766; a mesma data em que Escobar zarpava para a América a bordo do bergantim com o qual desapareceria no mar durante a viagem de regresso. A tese de Tânger chamou-se O menorita Gándara, conspirador e vítima e valeu-lhe uma excelente qualificação académica para a sua licenciatura em História. Abundava em dados sobre a sua longa prisão, os interrogatórios e os processos judiciais do menorita, encerrado em Batres e mais tarde em Pamplona, onde ficaria recluso até à sua morte, sem que ninguém conseguisse nunca esclarecer as razões da sanha que lhe dedicaram Aranda e os outros ministros de Carlos III, excepto a sua amizade com a Companhia de Jesus, cujos membros — entre eles o destinatário da famosa carta — foram detidos cinco meses depois da prisão do menorita, desterrados para Itália e extinta a Ordem. Quanto à viagem do padre Escobar para Havana, e àquelas duzentas chamas de fogo verde a que cifradamente aludia, nunca se obteve resposta de Gándara, apesar de alguns interrogatórios mencionarem o tema. O segredo do Dei Gloria morreu com ele.
Depois, a vida seguiu o seu curso e Tânger teve outras coisas com que se ocupar. O concurso para o Museu Naval e o trabalho concentraram a sua atenção, e novos assuntos se atravessaram na sua vida. Até que um dia lhe apareceu Nino Palermo. Farejando em livros e catálogos, o caçador de tesouros tinha encontrado a referência de um relatório do departamento marítimo de Cartagena, datado de 8 de Fevereiro de 1767, sobre a perda do Dei Gloria em combate com um corsário. O índice referia-se a documentos enviados para o Museu Naval de Madrid, de modo que Palermo foi até lá à procura de informações, e o acaso colocou Tânger no seu caminho. Foi ela a encarregada de ouvir as petições do gibraltino. Este tinha abordado o tema à maneira do seu ofício, ou seja, camuflado entre pistas falsas, sem, aparentemente, lhe dar importância. Mas de repente, em plena conversa, ela ouviu o nome do Dei Gloria. Um bergantim perdido, disse Palermo, na rota de Havana para Cádis. Aquilo reavivou as lembranças de Tânger, criando conexões precisas entre o que, até esse momento, eram fios soltos. Tinha escondido a sua emoção, dissimulando o mais que pôde. Mais tarde, depois de se livrar do caçador de naufrágios com promessas vagas, verificou que o documento pelo qual ele se interessara tinha sido enviado, há algum tempo, para o Arquivo Geral da Marinha em Viso del Marquês. No dia seguinte estava lá e, na Secção de Corso e Presas, encontrou o nome do barco: Relação sobre a perda do bergantim Dei Gloria, a 4 de Fevereiro de 1767, em combate com o chaveco corsário que se presume seja o chamado Serguí... Ali estava tudo o que, oficialmente, se sabia sobre o naufrágio, com a declaração do único sobrevivente. Era a resposta ao mistério, o desenlace da aventura cujo início ela tinha vislumbrado há anos, na carta do jesuíta.
Ali estava a razão pela qual o bergantim nunca chegara ao porto, e o menorita Gándara tinha sido interrogado até à sua morte na prisão. Ali se esclarecia o destino das duzentas chamas de fogo verde, que deviam ter convencido os membros do gabinete da Pesquisa Secreta e talvez mesmo o próprio rei a não aniquilar os inacianos.
Estava estupefacta, fascinada e também furiosa. Ela tivera tudo diante dos olhos, tempos atrás, e não soubera ver. Não estava preparada. Mas inesperadamente, como num quebra-cabeças complicado cuja peça mestra se descobre, tudo ia ocupar o seu lugar na paisagem. Tânger voltou para trás, para os seus cadernos e para os seus velhos apontamentos de licenciatura, unindo-os aos novos. Agora, a tragédia do menorita Gándara — que nem sequer o núncio de Roma conseguiu explicar ao Papa na sua correspondência da época — estava esclarecida. O menorita sabia que carga transportava o Dei Gloria. A sua proximidade ao rei, a sua presença na corte, convertiam-no em intermediário idóneo para a gigantesca operação de suborno preparada pelos jesuítas. Fora ele o encarregado de negociar com o conde de Aranda. Mas alguém tinha querido impedir a manobra, ou apoderar-se directamente da presa, e Gándara foi preso e interrogado. Depois, o corsário Chergui entrou em cena de forma casual ou premeditada, e tudo acabou por sair mal para todos. Expulsos os jesuítas, afundado o barco em circunstâncias não esclarecidas, Gándara era a pedra angular do assunto. Por isso o tinham mantido nas suas garras durante dezoito anos, interrogando-o sem descanso. Agora, indícios soltos entre as actas dos diferentes processos faziam sentido. Até ao fim quiseram que revelasse o que sabia sobre o bergantim. Mas o menorita tinha-se mantido calado, levando o segredo consigo para o túmulo. Só ergueu a ponta do véu numa ocasião, numa determinada carta interceptada, escrita por ele em 1778, anos depois dos acontecimentos, ao missionário jesuíta Sebastián de Mendiburu, exilado em Itália: «Perguntam por íris do Diabo, grandes e perfeitas, com jardins limpos como a minha consciência. Mas eu calo-me, e, sendo eu o atormentado, é isso que na sua ambição os atormenta.»
Com todo este material, Tânger tinha conseguido reconstituir quase passo a passo a história das esmeraldas e a viagem do Dei Gloria. O padre Escobar zarpou de Valência a 2 de Novembro, ignorando, paradoxalmente, que nesse mesmo dia o menorita Gándara era detido em Madrid. O bergantim, comandado pelo capitão Elezcano — irmão de um dos superiores da Companhia — atravessou o Atlântico, chegando a Havana a 16 de Dezembro. Aí se encontrou com o padre Tolosa, o jesuíta «jovem, seguro e mui de fiar» que tinha sido enviado à frente com a missão de reunir em segredo duzentas esmeraldas procedentes das minas controladas na Colômbia pela Companhia. Tratava-se de pedras por talhar, as maiores e as melhores em cor e pureza. Tolosa tinha cumprido a sua missão e embarcado depois em Cartagena das índias a bordo de outro navio. A sua viagem atrasou-se devido a ventos contrários sofridos entre Gran Caimán e a ilha de Los Pinos e quando, finalmente, conseguiu dobrar o cabo San António e passar sob os canhões do Castelo Del Moro, o Dei Gloria já esperava, ancorado na baía de Havana, num discreto ancoradouro entre a enseada de Barrero e Cayo Cruz. O transbordo do carregamento fez-se certamente de noite, ou camuflado entre as mercadorias declaradas na lista de embarque. Os padres Escobar e Tolosa figuravam como passageiros, com uma tripulação de vinte e nove homens que incluía o capitão Dom Juan Bautista Elezcano, o piloto Dom Carmelo Valcells, o ajudante de piloto com quinze anos Dom Ignacio Palau, ajuno de náutica e sobrinho do armador valenciano Fornet Palau, e vinte e seis marinheiros. O Dei Gloria zarpou de Havana a 1 de Janeiro, percorreu a costa da Florida até ao paralelo 30, subiu mais cinco graus de latitude, navegando para levante entre o sul das Bermudas e os Açores, e nesse trajecto sofreu o temporal que causou estragos na mastreação e tornou necessárias as bombas de extracção de água. O bergantim seguiu rumo para este, evitou o porto de Cádis, de cuja escala obrigatória o punham a salvo os privilégios ainda vigentes da Companhia, e passou diante de Gibraltar entre 1 e 2 de Fevereiro. No dia seguinte, quando já tinha dobrado o cabo da Gata e rumava para nordeste em busca do cabo de Paios e de Valência, o Chergui iniciou a perseguição.
A actuação do chaveco corsário era um enigma que talvez nunca se viesse a esclarecer. Estar de atalaia, era alguma enseada escondida da costa andaluza ou no próprio rochedo de Gibraltar, pode ter sido casual ou não. Estava documentado que o Chergui navegava com cartas de corso inglesas ou argelinas, consoante as circunstâncias, e que Gibraltar era um dos seus poisos habituais, embora nessa data continuasse em vigor uma paz precária entre Espanha e Inglaterra. Talvez tenha escolhido o Dei Gloria como presa por acaso. Mas a sua tenacidade na perseguição, a sua presença no momento e no local adequados eram demasiado oportunas para serem casuais. Não era difícil atribuir ao corsário um lugar no complexo jogo de interesses e cumplicidades da época. O próprio conde de Aranda ou qualquer um dos membros do gabinete da Pesquisa Secreta que ordenaram a detenção do menorita Gándara — alguns deles adversários políticos do próprio Aranda — podiam ter dados sobre o assunto e pretender ficar com o tesouro dos jesuítas, mesmo antes de este lhes ser oferecido, matando dois coelhos com um só tiro.
De qualquer forma, os perseguidores não contavam com a tenacidade do capitão Elezcano, a qual não devia ser alheia à presença a bordo dos dois resolutos jesuítas. Travou-se combate, ambos os barcos foram a pique, e as esmeraldas ficaram no fundo do mar. A informação fornecida pelo ajudante de piloto sobrevivente era satisfatória, e as autoridades da marinha encarregadas da investigação inicial não tinham motivos para indagar demasiado. Um barco afundado por um corsário era habitual naquele tempo. Mais tarde, quando chegou a ordem de Madrid para investigar mais a fundo, a testemunha tinha-se esfumado, um desaparecimento misterioso e oportuno, organizado pelos jesuítas, que nessa altura ainda gozavam de cumplicidades entre as autoridades locais. Sem dúvida, a Companhia estudou a possibilidade de um resgate clandestino do bergantim, mas já era tarde: veio o golpe, a prisão e a diáspora. Tudo se perdeu no marasmo que se seguiu à queda da Ordem e à sua posterior extinção. O silêncio do menorita Gándara, o desterro e a morte daqueles que estavam a par do segredo, foram velando ainda mais o mistério. Ficou demonstrada a existência de duas tentativas oficiais de busca do navio naufragado, por parte das autoridades da marinha, ainda com o conde de Aranda no poder, mas nenhuma deu resultado. Depois, novos acontecimentos sacudiram a Espanha e a Europa, e o Dei Gloria acabou por ser esquecido. Além da menção concisa no livro A Frota Negra, escrito pelo bibliotecário de San Fernando em 1803, só ficou demonstrada uma última e curiosa proposta feita dois anos mais tarde a Manuel Go-doy, primeiro-ministro do rei Carlos IV, para a procura «de certo barco que, com esmeraldas de Cuba, se dizia ter afundado», conforme o próprio Godoy citava nas suas Memórias. Mas a ideia não prosperou e, nas anotações manuscritas à margem da proposta, cujo original Tânger tinha examinado no Arquivo Histórico Nacional, manifestava-se o cepticismo de Godoy «pela inconsistência da ideia e porque, como é sabido, em Cuba nunca houve esmeraldas». E depois disso, durante quase dois séculos, o Dei Gloria afundou-se outra vez no esquecimento e no silêncio.
Tânger e Coy tinham parado numa ponta do cais, junto à proa de uma pequena escuna. Ela olhava para a baía, em cuja extremidade se destacavam nitidamente os edifícios de Algeciras. A água estava tranquila, de um azul esverdeado levemente encrespado pela brisa de poente. Agora havia mais nuvens no céu, deslocando-se devagar em direcção ao Mediterrâneo. Diante do porto, sob a massa de rocha, os barcos ancorados pontilhavam a água. Talvez o Chergui tivesse saído dali mesmo para a sua última viagem, depois de esperar ao abrigo das baterias inglesas do Rochedo. Um vigia com um óculo lá em cima, uma vela avistada no horizonte, na direcção oeste-leste, uma âncora levantada com rapidez e sigilo. E a caça.
— Nino Palermo sabe que há esmeraldas — concluiu Tânger. — Não sabe quantas há nem como são, mas sabe-o. Viu alguns dos mesmos documentos que eu. É inteligente, conhece o seu ofício e sabe juntar os fios... Mas ignora tudo o que eu sei.
— Pelo menos sabe que o enganaste.
— Não sejas ridículo. Não se enganam tipos como ele. Batemo-nos contra eles com as suas próprias armas.
Voltou-se para a outra extremidade do cais, onde estava amarrado o Carpanta. Entre os mastros e aparelhos dos barcos vizinhos, Coy conseguia ver a cabeça do Piloto afadigando-se no convés. Tinha chegado pela manhã, sonolento e por barbear, com a sua pele morena e gretada pelo sol, as mãos rudes, ásperas ao contacto, e os olhos que pareciam sempre da cor do mar no Inverno. Três dias de navegação desde Cartagena. Os vapores, contava — o Piloto chamava sempre vapores aos barcos da marinha mercante — não o tinham deixado pregar olho durante toda a viagem. Já ia ficando velho para navegar sozinho. Demasiado velho.
— Eu investiguei, entendes? — prosseguia Tânger. — Palermo não fez mais do que, acidentalmente, provocar o clique mental que colocou cada coisa no seu lugar. Ordenar na minha cabeça coisas que já estavam aí, à espera... Aqueles dados que, por alguma razão, desconfiamos que um dia significarão alguma coisa e que, até essa altura, guardamos num recanto da nossa memória.
Agora era sincera e Coy apercebia-se disso. Agora, ela tinha contado a sua história real e ainda falava acerca disso. E, pelo menos no que se referia a factos concretos, não restava nada oculto. Ele já possuía as chaves, a relação dos acontecimentos, o que jazia no fundo do mar e do mistério. No entanto, não estava completa-mente tranquilo nem aliviado. Mentir-te-ei e trair-te-ei. Uma nota desconhecida, por identificar, vibrava nalgum lado, como a mudança quase imperceptível de rotações num motor diesel ou a intervenção melódica de um instrumento cuja oportunidade não é possível estabelecer de imediato, deliberado ou improvisado, misterioso até chegar o final e ser possível situá-lo adequadamente. Recordava-lhe uma peça de Thelonius Monk Quartet, um blues clássico que se chamava precisamente assim: Misterioso.
— Intuição, Coy — disse ela. — Essa é a palavra... Sonhos que temos a certeza de que um dia se materializarão — continuava a contemplar o mar como se resumisse aquele sonho, a saia agitando-se na brisa, os pés calçados com sandálias, o cabelo na cara. — ...Eu trabalhei nisto, mesmo antes de saber aonde me levaria, com um empenho que não podes imaginar. Queimei as pestanas. E de repente, um dia... Tudo fez sentido.
Voltou-se e tinha um sorriso na boca. Um sorriso pensativo, quase expectante, quando olhou para ele semicerrando um pouco os olhos devido ao efeito da luz. Um sorriso feito de pele pintalgada em redor da boca e dos pómulos, tão cálido que podia sentir-se o seu calor expandindo-se pelo pescoço, pelos ombros, pelos braços e sob a roupa.
— Como um pintor — acrescentou — que levasse um mundo as costas e, de súbito, uma pessoa, uma frase, uma imagem fugaz desenhassem um quadro completo na sua cabeça.
Sorria com aquela expressão de mulher bonita e sábia, serena, porque consciente de si própria. Havia carne sob aquele sorriso, pensou ele, inquieto. Havia uma curva que se enlaçava com outras linhas perfeitas, prodígio de complicadas combinações genéticas. Uma cintura. Umas coxas cálidas que escondiam o único dos verdadeiros mistérios.
— Esta é a minha história — concluiu Tânger. — Estava-me destinada, e toda a minha vida, os meus estudos, o meu trabalho no Museu Naval me encaminhavam para ela, antes de eu mesma o saber... Por isso Palermo não é mais do que um intruso. Para ele trata-se apenas de um barco, de um tesouro possível entre muitos — desviou os olhos de Coy, olhando novamente para o mar. — Para mim é o sonho de toda uma vida.
Ele coçou, desajeitadamente, o queixo por barbear. Depois coçou a nuca e por fim o nariz. Procurava palavras. Alguma coisa vulgar, quotidiana, que afastasse da sua própria carne a impressão daquele sorriso.
— Mesmo que o encontres — insinuou — não poderás ficar com o tesouro. Há leis. Ninguém pode resgatar um navio naufragado sem mais nem menos.
Tânger continuava atenta à baía. As nuvens que continuavam a deslocar-se para este escureciam, pouco a pouco, o mar. Uma réstia de sol deslizou sobre eles, antes de se afastar sobre a água dos molhes, com tons de esmeralda.
— O Dei Gloria pertence-me — respondeu ela. — E ninguém mo vai tirar. É o meu falcão de Malta.
MULHERES DE CASTELO DE PROA
— Está na hora — disse Tânger. Abriu os olhos e viu-a junto dele, esperando. Estava sentada num dos bancos de teca do poço do Carpanta e olhava-o atenta, como se tivesse passado algum tempo a observá-lo, antes de lhe sacudir o ombro. Coy estava deitado no outro banco, coberto com o seu casaco, a cabeça em direcção à proa e os pés junto do leme e da bitácula. Não havia vento, e só se ouvia o chapinhar suave das pequenas vagas entre os cascos dos barcos...
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