Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.
CONTINUA
Seis anos atrás... Há sangue na mobília e espalhado pela parede, uma linda cor escarlate que só o sangue tem, contrastando com o ladrilho branco, brilhante mesmo na escuridão da sala. Aquilo não foi feito por uma arma de fogo.
O corpo seminu da mulher, caído de costas no chão e mergulhado em uma poça funda e escura da gosma escarlate, foi atacado por um punhal. Bem afiado. Provavelmente com uma lâmina curva e uma gravação no metal que diz: Saboreie os doces espinhos dos meus lábios. Mas esse ferimento... Estou muito familiarizado com o trabalho. O corte na base do pescoço, logo acima dos ossos dos ombros. Seraphina, minha esposa, esteve aqui. Momentos atrás. Ainda sinto seu perfume no ar.
Eu a sigo há meses, desde o dia em que passei a acreditar que ela estava me traindo durante todo o tempo que dizia me amar. Mas antes disso ela já traía meu chefe, Vonnegut, e nossa Ordem: trabalhava para outro empregador e passava informações para nosso concorrente.
Eu não podia deixar que ela morresse pelo que havia feito. Queria ajudá-la, mudá-la, fazê-la escolher um lado, o meu lado. Por isso, comecei a trabalhar com ela contra Vonnegut. Trair a Ordem era a maior deslealdade de todas, uma sentença de morte certeira. Mas o amor vinha em primeiro lugar.
O amor sempre vem em primeiro lugar.
Mas aprendi do jeito mais difícil que o amor é cruel, perigoso e mais perverso do que um homem como eu pode ser. Porque, no fim das contas, Seraphina me enganou. Depois de tudo o que passamos. Ela jogou tudo fora.
Esta noite, vou encontrá-la. E vou matá-la.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_O_CISNE_E_O_CHACAL.jpg
Ergo o corpo, lembrando-me da marquinha marrom no ventre da mulher, perto do quadril. Eu me lembro do formato de suas coxas esbeltas, a sensação de tê-las nas mãos enquanto a fodia e Seraphina assistia. Sempre foi nosso fetiche, algo que adorávamos. Sexo sombrio e proibido.
Esse corpo é o segundo que encontro em dois dias. Ambos de mulheres que Seraphina e eu já compartilhamos. Mulheres destinadas a sofrer esse fim brutal no instante em que o ciúme de Seraphina enfim fosse ativado e somado à necessidade de se vingar de mim, por desvendar seus segredos e não acreditar mais em suas mentiras. Essas mulheres mortas são mensagens. Venha me encontrar, dizem. Não estou me escondendo, meu amor, só curtindo o jogo, é o que ela está me dizendo.
Seraphina sempre curtiu o jogo. Eu também. Só que agora sei que preciso acabar com ele. E preciso ganhar.
Solto o corpo, que cai no carpete encharcado. Quando fico de pé outra vez, surgem faróis do outro lado da rua, um brilho ofuscante preenchendo a grande janela da sala, iluminando as cortinas brancas que a cobrem. Um motor acelera. Vem me pegar, Seraphina está me dizendo. Com a arma na mão, eu ando depressa — não corro —, saindo pela porta da frente para o ar frio. Ergo a arma à minha frente, apontando para o carro ao me aproximar dele, sem hesitar. Um cachorro feroz late no quintal da casa da esquina, se jogando com violência contra a cerca de arame. Dentes à mostra. Sanguinário. Como todos os animais, ele reconhece o mal quando o vê.
— O que você está fazendo, Seraphina? — pergunto ao me aproximar do carro, a voz baixa e ameaçadora, a arma ainda apontada para ela, o dedo no gatilho. — Isso é vil demais, até para você.
Seraphina sorri do banco do motorista, os dedos longos e finos segurando o volante. Os cabelos pretos, brilhosos e curtos, na altura das bochechas, estão sempre perfeitos, nem um fio fora do lugar, até em momentos como este.
O eco de sirenes ao longe adentra meus ouvidos, e viro a cabeça em direção ao som. Então, ouço batidas. Tum, tum, tum, BANG! Vêm do porta-malas. Meus olhos passam depressa dele para Seraphina e novamente para a rua de onde vêm as sirenes, ao sul. Não consigo decidir o que é mais urgente.
— O que você vai fazer? — provoca Seraphina, com um sorriso tão perverso que até transpira um ar de confiança. Ela sabe: neste momento, está no controle. Mesmo tendo uma arma apontada para seu lindo rosto, ela me controla.
Respiro fundo e olho de novo para trás, imaginando que os carros de polícia vão aparecer a qualquer momento. As sirenes estão se aproximando, mas ainda não vejo os clarões irregulares das luzes na escuridão da madrugada. Ainda tenho algum tempo, mas apenas segundos.
Olho outra vez para Seraphina no carro. Minha respiração é visível no ar do inverno.
— Eu vou dar o que você quer — diz ela, mudando o discurso para algo mais sério e menos provocador. — Mas você precisa me ouvir até o fim, caralho. Entendeu, Fredrik?
Sinto os dentes rangendo, as narinas inflando, os ossos da mão doendo por apertar o cabo da arma com uma força esmagadora.
Nós encaramos os olhos frios e escuros um do outro uma última vez, então ela pisa no acelerador e vai embora. Com relutância, baixo a arma e solto o ar em um suspiro longo e profundo de derrota e fúria. Seraphina sabe que não posso matá-la até obter informações. É uma necessidade obsessivo-compulsiva: a informação deve vir primeiro, ou nunca mais vou conseguir dormir. Ninguém além de Seraphina sabe que torturo e interrogo criminosos desde que a conheci, nem mesmo meu ex-chefe, Vonnegut. Foi ela quem me apresentou a esse mundo. Foi ela quem... me deu uma válvula de escape para minha maior imperfeição como ser humano. Seraphina me ajudou e, por isso, mas não apenas por isso, sabe que não posso matá-la. Pelo menos ainda não.
Com apenas segundos sobrando, enfio a arma na parte de trás da calça e me afasto depressa pela calçada, desaparecendo entre as sombras das árvores que ladeiam a rua. Sigo para meu carro, estacionado a quatro quarteirões dali. Deixo para trás a casa com a mulher morta, bem como a polícia, que está vindo da direção oposta.
Seraphina quer falar. Depois de todo esse tempo fugindo de mim, escondendo tudo o que fazia pelas minhas costas, ela finalmente quer falar. Serão mais mentiras? Será seu jeito de me afastar, para que eu a deixe viver em paz? Para se ver livre de mim? Só que esse não é o estilo dela. Seraphina é tão sádica quanto eu, por isso a amo tanto. Implorar por sua vida, até mesmo da maneira mais sardônica, é muito fora do normal para ela.
Há algo mais.
Chego à nossa casa, em Boston, em menos de trinta minutos, e o carro dela está estacionado na frente. Como essa mulher é corajosa, como é desafiadora e destemida! Seraphina sabe o que vou fazer com ela. Sabe o quanto vou gostar, e sabe que nem mesmo ela está imune, agora que me traiu de maneira tão imperdoável.
Estaciono ao lado do carro dela e, antes que eu desligue a ignição, meus olhos percorrem o porta-malas, lembrando os sons que ouvi. Mas isso não importa no momento.
Bato a porta do carro com força, subo a escada correndo e entro na casa.
— Seraphina! — grito, ao fechar a porta e começar minha busca.
No fundo da minha mente, sei muito bem onde encontrá-la: no porão, onde ficam minha cadeira e minhas ferramentas de interrogatório.
A porta está entreaberta. Eu a empurro. A porta se abre sem
barulho. Não perco tempo e desço os degraus de concreto. Uma única lâmpada brilha a distância, lançando feixes fracos de luz nos degraus. O som familiar de uma mulher gemendo vai aos poucos penetrando meus ouvidos. Mas esse é outro tipo de gemido. Não é o de prazer sexual; é de medo e dor.
Encontro Seraphina, em toda a sua glória sombria e sinistra. Uma mulher de camiseta larga e calcinha está amarrada na minha cadeira de interrogatório — uma velha cadeira de dentista — com uma mordaça na boca. O sangue ainda está úmido em seu cabelo longo e desgrenhado, tingindo de vermelho o louro logo acima da testa, o que indica que ela foi golpeada na cabeça. Lágrimas escorrem de seus olhos arregalados e assustados, fazendo o rímel borrar e escorrer pelas bochechas vermelhas. Era ela no porta-malas.
Um pouco afastada, Seraphina sorri para mim. É um sorriso muito amoroso, mas também macabro. O punhal pende da mão na altura da coxa, que está coberta por um macacão preto e justo. As botas pretas com salto quinze parecem fazê-la se agigantar sobre a mulher assustada. Mas eu não me lembro dessa mulher. Não é nenhuma das que Seraphina e eu já possuímos.
— Por que está fazendo isso, Seraphina? — Eu me aproximo devagar. — Por que trouxe esta garota aqui? Quem é ela?
Não somos assassinos frios e sanguinários, pelo menos não de garotas inocentes. Nunca fizemos algo assim com uma mulher que não quisesse — a menos que fosse um alvo. Seraphina foi longe demais, e eu não gosto disso.
Ela estala a língua e encosta a lâmina no pescoço da mulher.
— Não chegue muito perto, amor — avisa, balançando o dedo indicador da outra mão. — É ela quem tem informações. É com ela que você quer falar.
Percebo que o motivo disso não é sexo. É muito mais.
Confuso, mas completamente envolvido, eu me agacho e, com muito cuidado, coloco a arma no chão, perto dos meus sapatos de couro surrados. Então, me levanto devagar, com as mãos na altura dos ombros, para mostrar que não vou tentar nada. Os olhos da loura ficam mais arregalados, indo de mim para Seraphina, embora a cabeça, presa na cadeira por uma correia de couro, não permita que ela veja muito da minha esposa, posicionada atrás dela.
Os olhos de Seraphina, por um breve instante, se desviam em direção à cadeira de madeira encostada na parede à minha esquerda. É uma indicação para que eu me sente, então pego a cadeira e a arrasto até a luz. Eu me sento, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobre elas.
— Por que preciso falar com ela? — pergunto, calmamente.
— Porque ela é o motivo de estarmos aqui — responde Seraphina, afastando lentamente a lâmina do pescoço da mulher. — Ela é o motivo de eu ser o que sou. E, da mesma forma que eu ajudei a matar aquele porco desgraçado que te estuprou quando você era criança, agora você vai me ajudar com ela. — Seraphina aponta o punhal para a mulher. — Porque você tem uma dívida comigo, Fredrik, assim como ela.
Fico em silêncio por um longo momento, tentando absorver essas palavras, buscando entender alguma coisa, compreender como essa mulher teria alguma relação com o motivo de Seraphina me trair. De trair a Ordem. Quero preencher os detalhes que ela já me deu e ter alguma ideia do rumo que isso vai tomar antes de me pronunciar. Porque gosto de estar no controle desde o início. Sempre. Só que, desta vez, estou começando a achar que não vai ser assim.
Não estar no controle me deixa muito ansioso.
— Por que esta mulher tem uma dívida com você? O que ela fez?
Os olhos de Seraphina, carregados de maquiagem escura, exibem o brilho de um sorriso. Ela estende a mão e toca os cabelos da mulher, acariciando as pontas entre os dedos com gestos suaves e maternais.
— Tão loura. Tão linda. — Então sua mão se levanta em um movimento rápido e atinge a bochecha da mulher. O som seco de bofetada rasga o ar. — Odeio louras. Sempre odiei. Mas estou procurando esta em especial há anos, Fredrik. Por causa do que ela fez comigo.
— O que ela fez?
Ela dá outro tapa na mulher, e sangue começa a escorrer de seu nariz. As mãos da loura tremem nas amarras de couro que as prendem aos braços da cadeira. Os músculos das pernas se enrijecem e relaxam sem parar quando ela se agita. Seus olhos imploram para que eu a ajude. Não consigo dizer que não estou aqui para salvá-la, que sou um canalha desalmado que só precisa de respostas. Mas é a verdade. Não quero que a mulher morra, e, se puder impedir que Seraphina a mate, é o que vou fazer, mas infelizmente ela não é a minha prioridade. E, mesmo se ela morrer, vou dormir sossegado.
Sim, eu sou um monstro. — Por que não pergunta para ela? —
retruca Seraphina, indo para a frente da mulher e puxando a mordaça.
— POR FAVOR! POR FAVOR, ME SOLTA! — Os gritos da mulher perfuram meus ouvidos, enchendo meus sentidos de dor e sofrimento.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente, digo a mim mesmo, como já disse muitas vezes antes. É como sei quando alguém está mentindo. É como sei, quando estou torturando uma vítima na minha cadeira, se ela merece ser libertada ou não. É um instinto que só meu coração conhece, mas às vezes a mente se recusa a lhe dar ouvidos.
Eu só sinto essa dor quando a vítima é inocente...
Ela se agita com violência na cadeira, tentando, em vão, se libertar.
— P-por favor... eu estou implorando ... por favor, me solta! — Os soluços irrompem de seu peito, fazendo todo o corpo tremer.
Quando Seraphina está prestes a golpear o rosto da mulher com o cabo do punhal, eu me levanto e a seguro. Ela resiste, dando socos no ar e tentando me acertar, e eu seguro suas mãos, prendendo-as contra seu peito. Ouço o punhal tilintando no chão de concreto. Então, pontos pretos surgem diante de meus olhos, acompanhados por uma dor cegante, após Seraphina me acertar em cheio com a parte de trás da cabeça. Eu a solto instintivamente, balançando a cabeça para voltar a enxergar. Finalmente, segundos depois, me recupero, mas Seraphina já está com o punhal na mão de novo, atacando a mulher.
— SERAPHINA! PARE! Mas é tarde demais.
O tempo para. Tudo para. Minhas respostas, se é que de fato viriam dessa desconhecida, escorrem da garganta dela junto com o sangue que desce por seu peito.
Cambaleio e desabo outra vez na cadeira, derrotado. De onde estou, vejo a mulher, seus olhos se enevoando, as pálpebras tremulando de um jeito suave, mas chocante. Impotente, eu a observo engasgar, o corpo lutando para conservar o último suspiro, e o peito ensanguentado arfando em desespero.
Então seus dedos relaxam sobre os braços da cadeira. Os olhos mortos, cheios de nada, fitam o teto. O sangue escorre da cadeira até uma poça escura abaixo do corpo. O fluxo não para. Eu me pergunto quanto sangue tinha naquela mulher.
Suspiro de dor e remorso e fecho os olhos devagar.
Só sinto essa dor quando a vítima é inocente.
Seraphina, em pé e de costas para mim, finalmente se vira. A boca macia e suculenta está entreaberta. Um quê de confusão e talvez até de remorso se agita em seus olhos castanhos. Ela olha para as mãos, a direita segurando o punhal ensanguentado, então solta a arma como se fosse uma coisa suja, perversa. Seraphina ergue as mãos e as encara, como se estivesse se perguntando como foi capaz de fazer isso. Como foi capaz de fazer isso? Não entendo. Seraphina é uma assassina. Uma carrasca. Suas mãos ceifaram muitas vidas. Mas a maioria dessas mortes foi merecida. As três mulheres que ela matou desde ontem foram as primeiras assassinadas a sangue-frio — ao menos que eu saiba.
Foi por minha causa? Será que eu tenho alguma culpa nessa loucura?
Não. Ela já estava louca. Era uma escrota sádica quando nos conhecemos, quando me apaixonei por ela. Mas isso? O que estou testemunhando...
Estou confuso pra cacete... — Não foi ela — anuncia Seraphina,
com a voz trêmula.
Ela olha para as mãos de novo, uma delas coberta de sangue, depois me encara outra vez.
— Sinto muito, Fredrik. — Lágrimas começam a escorrer de seu rosto. — Sinto muito.
Ela cai de joelhos no chão de concreto e afunda o rosto nas mãos, soluçando.
Corro até Seraphina e a envolvo em meus braços, pressionando-a contra o peito. Eu a embalo, apertando os lábios no cabelo preto, e ela chora. Eu a deixo chorar, mas não posso permitir que continue por muito tempo. Preciso de respostas, agora mais do que nunca. Preciso saber tudo.
— Me conte, amor — sussurro —, me conte quem você achou que ela fosse. Posso ajudar, se você me contar. Me deixe entender.
Seraphina balança a cabeça contra meu peito.
— E-eu não posso. Não posso contar, porque você vai me odiar.
— Eu nunca conseguiria odiar você — respondo, com sinceridade. Eu a amo. Não amo algumas partes dela, como a pessoa que ela era momentos atrás, ao matar essa mulher. Mas amo com todas as forças a pessoa que está em meus braços. — Você disse que essa mulher tinha uma dívida com você, Seraphina. O que era?
A princípio, Seraphina não diz nada. Aguardo pacientemente, esperando que, se não forçar a barra, talvez ela se sinta mais confiante para me contar. Eu a abraço com delicadeza.
— Eu tinha dez anos quando a conheci — começa ela, mas então faz silêncio novamente.
Ansioso. Desesperado. Perplexo. São algumas das mil maneiras como estou me sentindo. Mesmo assim, tento permanecer calmo.
— Eu nunca quis trair você — diz Seraphina.
Sinto que ela está mudando de assunto, evitando falar da mulher.
— Mas eu sabia que você precisava se afastar de mim — continua ela. — E eu não conseguia me obrigar a partir. Eu tentei. Mas não consegui. Por isso menti
para você a respeito de tudo. Comecei a dormir no Abrigo Dezesseis.
Essa é a parte que não quero ouvir, mas sei que preciso.
Eu a aperto mais forte, tentando dar um jeito de me preparar tanto para a dor que vou sentir quanto para a dor que vou causar nela, antes que esta noite termine. — E-eu dormi com ele, com Marcus,
o cara que cuidava daquele abrigo. Cerro os dentes e respiro fundo. Permaneço calmo.
Permaneço em silêncio. Quero arrancar o couro dela. — Fiz isso porque queria que você
descobrisse.
— Por que você queria que eu descobrisse? — Minha voz é controlada, cuidadosa.
— Porque eu queria... Ela para.
Estou ficando mais impaciente. Sinto as amarras de couro da cadeira escorregando entre meus dedos e me imagino prendendo Seraphina.
— O que você queria? — pergunto, o queixo apoiado no topo de sua cabeça.
— Eu queria magoar você. — Por quê?
Eu te amo.
Eu te odeio.
— Porque amor é dor — responde ela, e engulo a verdade de sua confissão. — Porque o amor é a maior mentira de todos os tempos. E porque, por mais que eu te ame, eu também te odeio por você me fazer te amar!
De repente, sinto uma ferroada. O calor sobe pela minha coxa, se
espalhando pelas veias. A sala começa a ficar borrada, no
início só de leve, mas o bastante para revelar na mesma hora que estou em apuros. Tento livrar minha mente da droga, mas é forte demais e envolve minha consciência como a teia de uma aranha ao redor da presa.
Não percebi quando Seraphina saiu de meus braços, nem quando caí no chão de concreto.
Gasolina. O ar frio está impregnado dela, tanto que começa a queimar minhas narinas.
— Amor... cadê você? — pergunto, mas não consigo saber se as palavras saíram mesmo de meus lábios. — Seraph...
Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Chamas. O ar não está mais frio. Está quente pra caralho. Quero afrouxar a gravata para respirar, arrancar o paletó, mas não consigo mexer os braços.
— Eu te amo, Fredrik. — Ouço a voz dela sussurrando em meu ouvido, suave como vinho, fatal como veneno. Quero beijá-la, sentir seus lábios suculentos nos meus. Quero pressionar o quadril contra o dela até Seraphina gritar. — Eu
te amo... e, porque te amo — me sinto sendo arrastado pelo chão —, você precisa me libertar.
A fumaça machuca minha garganta e meus pulmões, entrando pelos poros e sufocando os vasos sanguíneos. Sinto que estou sendo cozido de dentro para fora. O calor está ficando insuportável, as chamas engolindo as vigas de madeira que sustentam o teto do porão. Não consigo enxergar através das pálpebras semicerradas, mas ouço as chamas lambendo as paredes, como mil demônios que surgiram do inferno para me atormentar.
— Seraphina... — grito, com a voz rouca de dor, todo tipo de dor. — ... Seraphi...
~~~
Acordo na manhã seguinte em um gramado frio, o sol batendo no rosto. A fina camada de neve branca ao redor do meu corpo está manchada pelo preto da fuligem em minhas roupas. Olho para o céu, tão limpo e azul, e vejo, de canto de olho, um filete de fumaça cinza subindo no ar.
Com dificuldade, tento me levantar, mas só consigo virar de lado. A grama seca espeta minha bochecha. A neve derrete com o hálito quente que sai da minha boca e das minhas narinas, formando uma cavidade perto do meu rosto. Estou congelando, mas mesmo assim sinto calor, o que não faz sentido.
A fina camada de fumaça que se ergue por cima das copas das árvores nas proximidades está saindo do que resta da minha casa.
Ela não me deixou lá dentro para queimar.
Por que me arrastou para fora? Ao perceber isso, sinto uma dor
aguda na nuca e ergo a mão para massagear a área com as pontas dos dedos. Ela teve que arrastar meu corpo pelos degraus de concreto.
Estou todo dolorido. Mas vivo. E não estaria, se Seraphina não quisesse.
Eu vou encontrá-la.
Nunca vou parar de procurá-la. É um jogo perigoso o que jogamos, o
que sempre jogamos. Só que, desta vez, ela aumentou a aposta.
E eu vou entrar com tudo.
CAPÍTULO UM Fredrik
Dias de hoje...
Cinco homens — dois de cada lado e outro sentado à cabeceira da mesa de jantar à minha frente — me observam, cabisbaixos.
Minha arma foi confiscada na porta. — É um jantar pacífico, monsieur —
explicou o segurança. — Armas não são permitidas.
— Tudo bem — respondi, tirando a arma da parte de trás da calça, deixando-a em cima da mesa.
Sabia que não deveria trazer mais de uma, pois com certeza seria revistado antes que permitissem minha entrada. E estava certo.
Mas não preciso de armas. Desarmado, levando uma garrafa de
vinho e rodeado por quatro dos agentes mais experientes de François Moreau, passei por uma dúzia de seguranças e entrei no estômago da fera.
Eu já sabia que o vinho que eu trouxe seria tirado de mim por um dos garçons e colocado no meio da mesa.
François agradeceu o presente. Era um vinho francês caro, afinal, e seria grosseria dele não me agradecer, mesmo sabendo que estou aqui para matá-lo.
— É verdade? — pergunta François, em um tom despreocupado, olhando para mim da extremidade oposta da mesa. — Vonnegut está oferecendo uma recompensa por três de seus ex-agentes? Inclusive você?
Faço que sim.
— Acho que ao menos dessa vez os boatos são verdadeiros.
Um sorriso discreto e confiante surge nos cantos da boca rígida e envelhecida de François. Seu cabelo é curto e grisalho, com um corte liso na nuca e repartido para um lado na frente, colado à cabeça minúscula por uma dose farta de gel.
— E acho que é sorte sua eu não ter interesse algum em receber recompensas de um homem como Vonnegut. — Seu sorriso se torna mais arrogante, como se eu tivesse que lhe agradecer por estar vivo.
Faço que sim mais uma vez e levo a taça de vinho aos lábios. Não é o da garrafa que eu trouxe.
O homem de cabelo escuro sentado à minha direita, com uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda, pega o guardanapo branco de pano à sua frente. Ele o desenrola do cuidadoso arranjo e o abre no colo. Os outros três homens sentados nas laterais da mesa o imitam quando percebem os garçons entrando por uma porta lateral, equilibrando pratos cheios. François permanece na mesma posição, sem desviar o olhar do meu, mesmo quando o garçom coloca o prato à sua frente.
François junta as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.
— Então, monsieur Gustavsson — começa ele —, pelo que entendi, o senhor foi enviado aqui para obter informações sobre o meu chefe, correto? — Sim — respondo, sem, no entanto,
dizer mais nada.
Prefiro que ele se esforce pelos detalhes que sei que deseja, antes de mandar me matar.
— E o que faz o senhor pensar que tenho permissão de compartilhar tais informações? — Ele parece se divertir com a ideia.
Minha expressão continua normal. Fria. Calma. Imperturbável. Ele fica mais nervoso a cada segundo com minha falta de tensão. Eu sou um só. Desarmado. Sentado a uma mesa entre cinco homens que, com certeza, estão armados até os dentes, apesar das alegações do segurança. Sou só um homem dentro de uma mansão em terras particulares nos arredores de Nice, França, com ao menos nove homens armados patrulhando o exterior.
Mas ele deve saber que não sou só um homem, no fim das contas.
Junto as mãos, imitando-o. — Antes que esta noite adorável
acabe — gesticulo brevemente, indicando a sala de jantar —, posso assegurar que terei a informação que vim buscar. — Ergo delicadamente o indicador. — Mas não é só isso: você vai me contar de livre e espontânea vontade.
Ele parece surpreso. E satisfeito. François balança a cabeça e leva a
taça de vinho aos lábios, depois a deposita delicadamente na mesa. Ele age sem pressa, assim como eu, me fazendo esperar por uma reação mais completa. O louro sentado à minha direita me olha por cima da borda da taça. Os quatro estão vestidos como François e eu: terno preto de alfaiataria e gravata. Mas eu, definitivamente, fico melhor nessa roupa. E, como se fossem um só, todos pegam o garfo e começam a comer ao mesmo tempo. François finalmente se junta a eles, embora eu tenha certeza de que isso não tem nada a ver com fome. Ele só quer prolongar a pausa por mais tempo do que o necessário.
François mastiga e engole. — É mesmo? — pergunta,
finalmente, com um sorriso e um ar de autoridade. Seu garfo brilhante de prata tilinta no prato de vidro quando ele o solta.
— Na verdade, sim — respondo, confiante, como se estivesse apenas dizendo que está chovendo lá fora e convidando-o a ir até a janela e verificar por si mesmo. — Eu sei que a sua Ordem é comandada por monsieur Sébastien Fournier. Ele assumiu ano passado, depois que monsieur Julien Gerard foi morto em Marselha. — François limpa a boca com o guardanapo e continua escutando. — Também sei que sua Ordem só trabalha no mercado negro e que muitos dos empregados de Fournier são americanos enviados para assassinar americanas inocentes.
François inclina a cabeça grisalha, pensativo.
— Ora, por favor, monsieur, não queira me fazer acreditar que logo o senhor se importa com o que acontece com algumas mulheres inocentes — provoca ele.
Permaneço imperturbável por fora, mas, por dentro, suas palavras queimam. E ele sabe disso, ou não teria falado.
Levando novamente a taça aos lábios, encaro o olhar de François, desafiando-o a me testar mais, sem precisar mover um só músculo do rosto.
Ele dá um sorriso fraco e toma mais um gole.
Coloco a taça na mesa. — Bem, preciso perguntar... —
começa François, olhando para a comida. — Se o senhor sabe de tudo isso, o que mais poderia querer de mim?
— Quero a chave da caixa de segurança de Nova York — respondo.
As rugas ao redor da boca de François ficam mais fundas com o sorriso. Ele olha para o garçom de prontidão à sua esquerda, que se aproxima.
— Por favor, faça-nos a gentileza de abrir o vinho que monsieur Gustavsson teve a generosidade de trazer. — Ele aponta para a garrafa com dois dedos.
O garçom obedece e deixa a garrafa aberta no centro da mesa.
Os outros quatro homens deixam os talheres sobre os pratos, sabendo que algo mais do que um jantar está acontecendo e que precisam ficar alerta. Todos limpam a boca com os guardanapos depois de um gole de vinho.
François estala os dedos, e uma mulher miúda, com cabelo cor de mel preso em um coque, entra por uma porta lateral e se aproxima dele. A mulher é maravilhosa. Vulnerável. Frágil. Usa uma saia preta curta e justa que adere ao corpo voluptuoso. Estudo a curva suave de seu pescoço nu e a fartura dos seios por baixo do tecido branco e fino da blusa. Ela não está de sutiã, e seus mamilos parecem duas contas de sexo, me convidando a devorá-los.
Adoraria tê-la sob meu corpo. Ela retribui meu olhar sombrio por
um instante, mas desvia os olhos antes que François perceba. Naquele breve momento, pude sentir o pequeno espasmo entre suas coxas.
— Troque as taças, por favor, mademoiselle — ordena François, e a mulher se apressa em obedecer.
— Gosta do que vê? — pergunta o dono da casa, notando meu olhar para a moça, quando ela sai da sala. — Talvez eu pudesse lhe oferecer os serviços dela antes que nossa reunião termine. Eu sou generoso, afinal. Só porque não pretendo deixar que o senhor saia daqui vivo, não significa que não possa lhe conceder os luxos da vida antes da morte. Pense nisso como um presente de despedida.
— Não será necessário — respondo. — Mas agradeço a oferta.
— Bem, o senhor deveria ao menos comer alguma coisa — retruca ele, apontando para a comida diante de mim, que ainda não toquei.
Balanço a cabeça e suspiro. — Não vim aqui para jantar,
monsieur, como o senhor bem sabe. Vim pegar a chave. Só isso.
— Bem, o senhor não a terá — responde ele, abrindo outro sorriso. Então aponta para o louro sentado ao meu lado e ordena: — Traga a caixa preta que está em cima da minha escrivaninha.
O homem dirige a mim um olhar frio, coloca o guardanapo em cima da mesa e fica de pé. Quando está saindo da sala, a mulher de cabelo cor de mel e com fogo entre as pernas volta com seis finas taças de vinho estrategicamente posicionadas entre os dedos. Ela põe uma na frente de cada um, se aproximando de mim por último. Apoia taça, sem pressa. Não lhe dou o luxo do meu olhar.
François aponta para ela. — Venha cá — ordena, e a mulher se
aproxima dele.
Ele me encara com o olhar enviesado e um ar de esperteza. Aponta para a garrafa que eu trouxe.
— Ele vai beber primeiro — declara François, apontando para mim.
A mulher pega a garrafa e se aproxima.
— Acha que não antecipei suas intenções? — indaga François, com um gesto dramático. — Sei mais sobre o senhor do que esse seu... contratempo... em São Francisco. Quando matou aquela mulher. Aquela mulher inocente. — Estou fervilhando por dentro, mas consigo me manter calmo. Me provocar dessa maneira só revela o verdadeiro grau de preocupação de François. — Sei tudo sobre o senhor. — Ele dá um sorriso malicioso, e tenho a sensação de que ainda não usou o armamento pesado, que sabe algo pior a meu respeito, algo que eu não esperaria que ele soubesse.
Pela primeira vez desde que atravessei as portas da mansão, não estou certo da próxima jogada. Mas continuo imperturbável. É preciso muito mais do que as provocações de um homem à beira da morte para me irritar.
A mulher serve o vinho e dá um passo para o lado.
Vendo que não vou perguntar o que exatamente ele sabe, François me conta mesmo assim.
— Ouvi falar do seu passado. — Ele toma mais um gole do vinho que já estava bebendo desde antes do início do jantar. — Sobre como conseguiu esse apelido. — Ele une as pontas dos dedos de uma das mãos e olha para cima, pensativo. — Como era mesmo? Ah, sim, lembrei. Eles o chamavam de chacalzinho. Garoto carniceiro. Raivoso e imprestável.
Vai ser ótimo ver esse cara morrer. Finjo indiferença e apenas ergo as
sobrancelhas com ar inquisidor. — Para mim, parece que você está
tentando ganhar tempo. — Olho depressa para o Rolex em meu pulso. — Mas, infelizmente, não lhe resta muito.
François sorri para mim, mostrando os dentes. Ele se debruça na mesa e apoia os braços no tampo. O louro volta para a sala de jantar com uma caixa preta reluzente que cabe na palma da mão. Ele a coloca na mesa, diante de François.
Sem tirar os olhos de mim, François abre a caixa e pega uma chave dourada, pendurada em uma grossa corrente de ouro.
Ele a segura sob a luz, para que eu a veja.
— Você não me dá medo, monsieur — anuncia, abrindo o paletó e enfiando a chave com cuidado no bolso interno. — Queria dar a você a oportunidade de, talvez, negociar suas condições. Mas o senhor é realmente mais confiante do que qualquer homem deveria ser. — Seus olhos claros e fundos deixam os meus e pousam na nova taça de vinho à minha frente. — Por que não faz as honras e toma um pouco do vinho que trouxe? — Ele abre um sorriso vingativo e agita a mão no ar na minha direção, me intimando a beber. — É isso o que você esperava, não é?
O homem de cabelo escuro à minha esquerda de repente parece desconfortável, se remexendo na cadeira com um ar agitado. Ele enfia o dedo indicador na gola da camisa e o desliza para os lados, tentando afastar o tecido da pele suada. Seu rosto está ficando pálido e doentio.
François olha para ele com pouca preocupação.
— Algum problema?
O homem se levanta da mesa. — Me perdoe, monsieur, mas não
estou me sentindo bem. Talvez eu devesse me ausentar pelo resto da noite.
François balança a cabeça e o dispensa com um gesto.
O homem afasta a cadeira e se levanta da mesa, pegando o guardanapo. Enxuga o suor da testa ao ir embora, tropeçando antes de virar uma esquina e desaparecer de vista.
— Fico feliz por não ter comido — comento, erguendo a sobrancelha.
Tocando a borda do prato com o dedo, eu o afasto.
Os outros homens, incluindo François, olham para os pratos ao mesmo tempo e jogam os guardanapos por cima das sobras. Dois garçons entram em ação na mesma hora, removendo a comida da mesa.
François parece irritado, como se em sua mente já estivesse resolvendo a demissão do chef assim que o jantar acabar.
— Por que não bebe? — sugere, voltando ao assunto. — Ou já se esqueceu? — Ele aponta para a minha taça.
— O quê? Acha que eu envenenei o vinho?
François sorri e une as mãos de novo. Ele me olha com ar de quem sabe o que está acontecendo.
— Eu gostaria que bebesse o vinho — repete, pronto para encerrar a questão.
Todos os olhos estão em mim. Dos três homens ainda à mesa. De François. Do garçom de pé próximo à parede, atrás dele. Da mulher com cabelo cor de mel, a postos à direita de François.
Finalmente, faço que sim e seguro a haste da taça com os dedos indicador e médio. Hesitante, levo a taça aos lábios e bebo lentamente. Enquanto faço isso, noto outro dos três homens começando a demonstrar sinais de desconforto.
François só olha para mim. — Beba tudo — instrui. — Como quiser. — Um sorriso estica
os cantos dos meus lábios antes que eu os encoste na taça.
Um tum seco vem do outro lado da parede, onde o homem de cabelo escuro desapareceu, momentos atrás. Um grito de mulher perfura o ar, seguido de gritos em francês:
— Chamem uma ambulância! — Mounsier Bertrand caiu! Claramente repensando a situação, os
olhos de François passam depressa de mim para os outros homens, e percebe que também estão passando mal. Um desaba da cadeira, derrubando-a.
François me encara, os olhos cheios de rugas arregalados de preocupação e fúria.
— O que você... — Ele se levanta e aponta para mim. — Você fez isso! Como? Você vai me contar!
Ele põe a mão no peito e cai de volta na cadeira.
Outro homem cambaleia para longe da mesa e desaba no chão, vomitando e convulsionando.
Ouvem-se tiros do lado de fora da mansão.
O garçom, de pé contra a parede, sai correndo, amedrontado. O som de vidro se partindo e de bandejas de metal sendo jogadas no assoalho de mármore ecoa pelos corredores.
— Desgraçado! — grita François, ainda apontando para mim enquanto tenta se agarrar à borda da mesa com a outra mão, desesperado. Seu rosto está mudando de cor, chegando a um belo tom violeta acinzentado. Preciso me lembrar disso quando for comprar uma gravata nova.
Eu me levanto da cadeira e ajeito despreocupadamente o terno Armani preto, puxando os dois lados da gola. Pego a taça com o vinho que trouxe de presente e tomo o resto na frente dele, deixando a taça vazia sobre a mesa. François olha para mim com horror, lutando para continuar vivo. Então pego a outra taça de vinho, aquela da qual não bebi, só fingi, e me aproximo dele. Ele olha para todos os lados. Tenta pegar a arma no bolso do paletó, mas começa a vomitar. Eu paro e espero, sem querer sujar os sapatos. François engasga e joga a cabeça para trás, recostando-se no espaldar da cadeira. Tenta encher os pulmões de ar, mas não consegue, e acaba caindo para a frente, em cima da mesa, a bochecha esmagada na madeira nobre.
Ele já está morto antes que eu possa contar como fiz aquilo, como consegui envenenar uma garrafa de vinho que nem toquei.
Mais tiros do lado de fora. E estão ficando próximos.
Deixo a taça ao lado de sua cabeça careca e o seguro pelos ombros, afastando seu peso morto da mesa. Os olhos estão arregalados. Sem vida. A boca lambuzada de vômito continua semiaberta, em um espetáculo horripilante. A língua está inchada.
Enfio a mão no bolso interno de seu paletó e pego a chave da caixa de segurança, depois a guardo em meu bolso. De certa forma, François me deu a chave de livre e espontânea vontade. Eu só precisava saber onde estava, e, com sua arrogância, ele me ajudou, revelando-a para mim.
— Você se saiu bem — digo à mulher com cabelo cor de mel, ainda parada no lugar, perto da cadeira de François.
Ela sorri... não, ela cora, e olha para o chão. Tão tímida. Tão frágil. Tão falsa. Tão disposta a fazer qualquer coisa que um homem peça ao prometer sexo e cocaína suficiente para deixá-la fora da realidade por uma semana.
De repente, ela não parece mais tão tímida, mas um tanto necessitada e bastante repulsiva. Uma pena, realmente: eu estava ansioso para comê-la mais tarde. Ela cruza os braços sobre os seios e engole em seco, nervosa. Os olhinhos verdes passam pelas entradas da sala de jantar. Os empregados continuam indo e vindo freneticamente pela mansão.
— Onde está? — pergunta ela, ávida para pôr as mãos na cocaína.
Ela esfrega os braços, ansiosa. Então, quando ouvimos o último tiro,
Dorian Flynn, que Izabel Seyfried chama de “diabo louro de olhos castanhos”, entra na sala com a 9mm ao lado do corpo.
A mulher tem um sobressalto ao vê-lo, e se aproxima de mim.
— Você pegou? — pergunta Dorian. Eu faço que sim discretamente. Noto uma mancha de sangue nos
cabelos curtos, louros e espetados de Dorian. Inclino a cabeça para um lado, de maneira interrogatória.
— Você não consegue realizar uma missão sem fazer essa sujeirada?
— Não, caralho — retruca ele. — Eu gosto da porra da sujeira. — Então sorri e acrescenta, agitado: — Você não consegue realizar uma missão sem ficar enrolando? Queria ir embora antes de a polícia chegar.
— Ei, espera! — intervém a mulher, parando na minha frente. — E eu? — Ela cruza os braços e fuzila Dorian com o olhar, mas então olha para mim, esperando uma resposta. — Você não vai embora sem me dar o que prometeu.
Ficando mais ansioso a cada segundo, Dorian não demora a assumir o controle da situação. Ele aponta a arma e um tiro atravessa a sala. A mulher cai no assoalho de mármore com uma bala na têmpora.
— Drogada do caralho — resmunga, virando as costas. — Vambora.
Eu tiro o pó do terno e passo por cima do corpo da mulher.
CAPÍTULO DOIS Fredrik
Chego a Baltimore no dia seguinte e fico esperando por meu chefe e amigo, Victor Faust.
São três da tarde, e foi difícil me controlar para não ir ao porão. Em geral eu a visito bem antes do entardecer, mas hoje é um dia diferente, e às vezes as coisas precisam ser feitas fora de ordem.
Ela fica muito agitada quando não me vê por um longo período. Acho horrível deixá-la assim, mas ela entende que meu trabalho demanda muito tempo e atenção. Mas eu a recompenso da melhor forma que posso. E ela sempre me perdoa.
Além disso, ela também é um trabalho — particular e muito pessoal —, e, sejam quais forem minhas responsabilidades com Victor Faust, arrumo tempo para ficar com ela. Houve progressos, e eu detestaria perdê-los ficando longe por muitos dias. Depois de um almoço tardio, fico sentado na cozinha com o laptop aberto
sobre o balcão, e Victor chega. — Que bom ver você. Abro um sorriso ao vê-lo à porta e o
convido para entrar com um gesto. Victor se senta na sala, em uma das
duas poltronas de couro preto com pernas de madeira entalhada — importadas da Itália — ao lado de uma mesa de madeira do mesmo conjunto. Eu me sento na outra poltrona.
Enfio a mão no bolso da camisa branca e resgato a chave que peguei na França; eu a coloco sobre a mesa redonda entre nós.
Victor a deixa ali por enquanto, olhando-a apenas de relance.
— Suponho que Moreau não tenha cooperado muito — diz.
Ele está com os braços apoiados na poltrona, a manga do paletó preto mal cobrindo o grosso relógio de prata que usa no pulso direito.
Eu sorrio e balanço a cabeça. — Monsieur François Moreau agiu
exatamente como você disse que agiria. Um canalha teimoso e confiante demais. — Faço um gesto com dois dedos quando vejo minha empregada, Greta, entrando na sala. — Por favor, eu e meu convidado queremos...
Eu olho para Victor.
— Uma cerveja seria ótimo — diz ele.
— Duas Guinness — peço. Ela assente e vai para a cozinha. Victor finalmente pega a chave da
caixa de segurança na mesa entre nós, deslizando-a cuidadosamente sobre a superfície lustrosa de madeira. Ele a examina com atenção, passando a corrente de ouro sobre os nós dos dedos.
— Então, essa caixa em Nova York — começo, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo — contém toda informação de que você precisa? Ou em breve terei que fazer outra viagem para a França?
Victor enfia a chave no bolso secreto do paletó e assente, imitando meu movimento com a perna.
— Ela contém o suficiente. Sébastien Fournier pode ser difícil de localizar, mas não preciso dele para assumir o controle de suas operações no mercado negro. Ele confiou as identidades e informações pessoais de seus agentes a François Moreau. Chamava Moreau de Porteiro. Moreau fez um excelente trabalho mantendo sigilosa a informação, armazenando-a em um
aparelho independente do outro lado do oceano. Mas foi tolo em achar que ela ficaria escondida para sempre.
Greta entra na sala com uma garrafa de cerveja em cada mão, ambas abertas. Oferece a primeira a Victor.
— Quer que eu prepare o jantar para os dois? — pergunta Greta, depois de me dar uma cerveja.
Ela fica diante de nós, com a saia azul-marinho até o tornozelo e a blusa cor-de-rosa de mangas curtas com botões. Seu cabelo longo e grisalho está preso em um coque na nuca. Ela tem altura e peso medianos, mas as pernas realmente revelam sua idade, com pequenas veias varicosas subindo pelas panturrilhas e pelos tornozelos grossos.
Olho para Victor de novo, também curioso para saber se ele vai ficar para o jantar.
— Não, eu vou embora logo — responde ele para Greta. — Mas obrigado.
Ela assente, e eu a dispenso. Mas, antes que ela se vire para ir embora, ela me lança um olhar de preocupação, com o qual estou familiarizado demais.
Ela sai da sala, sabendo que entendi bem a mensagem.
Cassia andou perguntando por mim. Eu me viro para Victor. — Bem, preciso dizer que você tinha
razão. Não achei que assumir o controle dessas operações do mercado negro seria tão fácil assim.
Victor toma um gole da cerveja e deixa a garrafa sobre a mesa.
Eu seguro a minha com firmeza, apoiando-a no braço da poltrona.
— “Fácil” é um termo leve demais — retruca Victor, com um sorrisinho. — Acredito ter usado a palavra factível.
Retribuo o sorriso, porque não é sempre que vejo aquela estátua sorrir de verdade. Por muito tempo, depois de conhecê-lo, eu nem sabia que ele tinha dentes.
— Tá, tudo bem, “fácil” é exagero — concordo, tomando outro gole. — Mas eu diria que assumir o controle de três operações em menos de três meses está bom pra caramba.
Victor assente.
— Foi um esforço coletivo — diz, sempre dando crédito a quem merece. — Eu não teria conseguido sem vocês quatro.
Victor está sendo modesto. Eu sei que ele teria conseguido sem nós. E sem grandes dificuldades. Sem mim, sem Dorian Flynn, sem o irmão, Niklas
Fleischer, e até sem aquela pimentinha ruiva da mulher dele, Izabel Seyfried, a quem me apeguei bastante no último ano. Victor pode nos tratar com respeito, mas também sei que ele não hesitaria em matar qualquer um de nós, se necessário. Victor Faust é a epítome do “punho de ferro”. Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. Mas eu o respeito e lhe devo minha vida.
De qualquer forma, se um dia descobrisse sobre Cassia, ele provavelmente tiraria a vida que salvou quando me abordou antes que Vonnegut o fizesse, alguns meses atrás. Vonnegut é nosso ex-chefe, líder da Ordem da qual eu, Victor e Niklas fazíamos parte, antes de nos tornarmos renegados.
Agora há uma grande recompensa por nossas cabeças, e nos mantivemos na moita desde então.
— Como estamos agora? — pergunto. — Quais são os números?
— Seis operações do mercado negro estão sob nosso controle. Quatro nos Estados Unidos, uma no México e uma na Suécia. Um total de 133 membros ativos, tirando os que já tínhamos antes de obter esses novos.
— Cento e trinta e três? — pergunto, com um olhar interrogador, inclinando a cabeça de leve para o lado.
— Niklas eliminou um agente ontem. Ele não passou nos testes finais. Entregou todas as informações falsas para Izabel.
— Ah, entendo — comento, jogando a cabeça para trás. — E como Izabel está se saindo no trabalho de campo?
— Ela está indo bem — responde Victor, mas não me conta mais nada, o que me deixa curioso.
— Não é meu direito perguntar, mas tem alguma coisa com que a gente deva se preocupar?
Victor olha para mim. E balança a cabeça.
— Nada com que você precise se preocupar. Meu irmão, por outro lado... Todos os dias eu me pergunto se vou receber a notícia de que ela finalmente cortou a garganta dele.
Tento reprimir o sorriso, mas ele escapa mesmo assim. Levo de novo a garrafa aos lábios, só para tentar escondê-lo o máximo possível.
— Bom, isso não me surpreende. Não me diga que achou que surpreenderia.
Finalmente, deixo a garrafa sobre a mesa, perto da de Victor.
— Não, não achei — responde ele, com a sombra de um sorriso na voz. — Duvido que um dia os dois cheguem a se dar bem. Niklas também não ajuda, não sabe a hora de calar a boca. Mas Izabel... — ele balança a cabeça, como se estivesse concluindo mentalmente que aquela situação não tem esperança — ... ela é tão ruim quanto ele.
— Contanto que as... diferenças dos dois não atrapalhem nossas operações, acho que é melhor deixar que eles superem isso sozinhos. — Dou de ombros. — Além disso, você sabe tão bem quanto eu que Niklas merece levar umas porradas de vez em quando. Ele é quase... — levanto o dedo indicador à minha frente para enfatizar — ... quase tão insuportável quanto Dorian.
Victor muda de posição, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito. Ele deixa os braços caírem, descansando os cotovelos na madeira cheia de entalhes detalhados da poltrona, e entrelaça os dedos.
— Falando em Dorian, como foi que ele se saiu na França?
Eu suspiro, balanço a cabeça e olho para o teto por um momento, soltando o ar de uma vez antes de baixar a cabeça e o encarar de novo.
— Assim como Niklas, Dorian é um trem descarrilhado — respondo. — Admito que ele faz o serviço e nunca erra, mas às vezes até eu fico chocado. E, como você bem sabe, não é algo fácil de acontecer.
Victor ergue a sobrancelha, curioso. — Ele deixa você chocado? É, isso
eu acho difícil de conceber. Faço que sim.
— Bem, sim. Ele puxa o gatilho à toa.
— É o trabalho dele — intervém Victor. — Matar o inimigo e qualquer um que fique no caminho.
— Tá, mas... — mordo a bochecha, pensativo — ... ele é brutal demais. Mata sem pensar.
Victor chega a rir. Ele joga a cabeça para trás e ri. Isso me deixa perplexo por um momento, mas logo me recupero. Ele pega a cerveja da mesa, aponta para mim com ela na mão e diz, antes de
levá-la aos lábios:
— Você, logo você, quer acusar Dorian de ser brutal porque mata sem pensar. — A risada dele começa a desaparecer, mas ainda está presente na voz. — Não acha que talvez ache isso chocante porque, diferente de você, Dorian não brinca com a comida antes de comer? Ele é o seu oposto. Como acha que ele se sentiu da primeira vez que viu você na sala de interrogatório?
Ele toma mais um gole e deixa a cerveja outra vez sobre a mesa.
— Tudo bem, tudo bem, entendi o argumento — respondo, com um meio sorriso.
— Então, ele está se saindo bem? — insiste Victor, deixando o humor de lado e voltando aos negócios. — Não deixou nenhuma pulga atrás da sua orelha, desde que vocês se tornaram parceiros?
Balanço a cabeça.
— Não, não deixou. E até agora passou em todos os testes. — Eu balanço a cabeça outra vez, mas agora com um suspiro longo e profundo. — Detesto dizer isso, mas acho que você também tinha razão quanto a ele.
Detesto dizer isso porque, quando conheci Dorian Flynn, fiquei com vontade de amarrá-lo em uma cadeira e encher suas veias de veneno. Ele falava demais. Era insolente, arrogante e incrivelmente impetuoso. Continua sendo isso tudo. Mas é — para azar dos meus planos de matá-lo, agora, pelo visto, adiados indefinidamente — um exímio agente.
Só que isso levanta uma questão importante.
— Por quanto tempo, exatamente, Dorian precisa ser meu... parceiro? — pergunto, tendo praticamente que arrancar a palavra desagradável da língua. — Prefiro trabalhar sozinho. A menos, é claro, que você esteja envolvido. Com você eu consigo trabalhar, se necessário. Mas Dorian... Bem, ele às vezes me faz querer espetar seringas nas minhas próprias veias.
Victor dá outro sorriso sutil. — Mais algumas semanas, no
máximo — responde. — Só até ele ajudar com a missão em Washington. Depois disso, vou deixá-lo por conta própria. — Então acrescenta: — Juntei vocês dois pelo mesmo motivo que juntei Niklas e Izabel. Vocês precisam aprender a trabalhar juntos sem se matarem.
Abro um sorriso.
— E você se dá bem com todo mundo? — pergunto, sarcástico, embora seja uma pergunta inofensiva, e Victor sabe disso.
Ele apenas assente.
— Acho que sim.
Ficamos em silêncio pela primeira vez desde que ele chegou. Ouço Greta andando pela cozinha: o som de panelas batendo no fogão, a água saindo da torneira quando ela começa a lavar os legumes. Ela sempre deixa a torneira aberta quando lava os legumes.
— Fredrik — começa Victor, quebrando o silêncio.
Ele me encara, e fixo meu olhar no dele, sombriamente tingido de preocupação e perguntas.
— Ouvi dizer que você está procurando Seraphina de novo. É verdade?
Mantenho a fisionomia impassível, sem deixar que ele saiba que a pergunta agitou algo macabro dentro de mim.
— Sim, estou — respondo, sem rodeios. — Mas não vou permitir que isso interfira nas operações.
Victor assente, mas tenho a sensação de que ele não acredita completamente em mim.
Alguns meses atrás, depois que ele ajudou a salvar minha vida de uma emboscada orquestrada por Vonnegut, chefe de nossa antiga Ordem, para me eliminar, eu abri o jogo e confessei a Victor que não matei minha ex-esposa, Seraphina, como ele pensava. Eu não consegui matá-la. Ela pode ter me traído e tentado me matar, mas ainda havia uma parte dela da qual eu não queria abrir mão. Confessei que, no fim das contas, mesmo quando Seraphina esteve ao meu alcance, embora eu pudesse, não consegui me obrigar a tirar sua vida. Seraphina foi o primeiro e único interrogatório no qual não tive êxito. E também foi o primeiro e único interrogatório que não consegui terminar.
Ela fugiu — porque eu deixei. E, por eu ter deixado, três mulheres inocentes morreram em suas mãos. Depois que ela pôs fogo na minha casa, não a vi até mais ou menos um ano atrás, em Nova York. Eu estava assistindo ao noticiário na TV e a vi passando atrás do repórter, no meio de uma pequena multidão.
Estou procurando por ela desde então.
Victor põe o pé no chão e se debruça para a frente, as mãos entre os joelhos.
— Fredrik — diz ele, me encarando, a cabeça inclinada para o lado —, você sabe que só precisa pedir, e vou te dar todos os recursos necessários para encontrá-la.
— Não. — Rejeito a ideia depressa. Balanço a cabeça e também me inclino para a frente. — Isso é responsabilidade minha, Victor. Agradeço a oferta, mas preciso fazer isso por minha conta. Sei que você entende.
Ele assente mais algumas vezes, agora olhando para a frente. Então se levanta, endireitando o paletó.
Eu me levanto com ele e o acompanho até a porta.
— Mantenha-me informado sobre Dorian — pede Victor. — Vou mandar os detalhes sobre Washington assim que estiverem prontos.
— Combinado.
Victor se despede de mim e segue rumo a sua atual residência, na Filadélfia.
Tão logo o carro dele se afasta, vou para a cozinha, onde Greta me atualizará sobre a situação de Cassia.
CAPÍTULO TRÊS Fredrik
Assim que entro na cozinha, Greta me encara, impaciente, aguardando permissão para falar.
— O que foi? — pergunto, da porta. Enxugando as mãos em um pano de
prato, Greta diz:
— Cassia está inquieta, sr. Gustavsson. — Ela deixa o pano de prato em cima do balcão de granito preto. — Já faz três dias. Me desculpe por falar, mas teria sido melhor se o senhor tivesse ido vê-la assim que chegou, em vez de esperar até a noite.
Faço que sim devagar. — Sim, eu sei, mas tenho meus
motivos.
Motivos que não me sinto na obrigação de explicar a Greta.
Ela é minha empregada e a cuidadora de Cassia na minha ausência, não minha mãe.
Vou até o balcão, movendo devagar os pés descalços sobre o chão frio de ladrilhos, pretos e reluzentes como o balcão, e ponho as mãos à frente do corpo, os dedos levemente entrelaçados. Noto que o pescoço de Greta se mexe quando ela engole em seco, nervosa, os olhos azuis envelhecidos desviando dos meus, voltando-se para baixo para examinar alguma coisa, qualquer coisa que não eu.
Inclinando a cabeça de leve para o lado, eu digo:
— Você ainda tem medo de mim. Depois de tantos meses na minha casa. Por quê? Eu nunca machuquei você.
Greta ergue os olhos para mim, hesitante, mas não consegue me encarar.
— Sinto muito, mas o senhor é meu primeiro patrão que... — ela aperta as mãos — ... faz essas coisas. Não estou acostumada. E acho que nunca vou me acostumar.
Greta e Dorian se tornaram dois dos nossos novos “empregados” quando Victor assumiu uma das operações do mercado negro aqui nos EUA, quase um ano atrás. Como no caso da operação que ainda está sob o comando de Sébastien Fournier, na França — embora não por muito tempo —, matamos os líderes da antiga Ordem de Greta e obtivemos todas as informações sobre as identidades de seus agentes. A posse dessas informações delicadas e perigosas nos dá controle sobre todos os envolvidos. De certa forma, não é diferente de quando uma grande empresa compra outra e os novos proprietários se instalam, fazendo mudanças drásticas e submetendo todos os funcionários da folha de pagamentos a extensas verificações de antecedentes e novos testes. Na verdade, a maioria não se importa muito com quem seja o líder, contanto que continue sendo paga, e isso torna difícil separar os agentes leais daqueles que nos entregariam para quem pagasse melhor em um piscar de olhos. Mas Victor Faust sabe o que está fazendo. E eu me tornei uma de suas principais armas para eliminar os instáveis e não confiáveis. Cada operação das que dominamos tinha pelo menos uns noventa membros. Todos os homens e mulheres, sejam assassinos, espiões ou operadores de abrigos, passam por mim, um de cada vez, e pela minha cadeira de interrogatório. Isso se a coisa chega a esse ponto, é claro. Porque, na verdade, a maioria nunca passa por Victor e Niklas para ter o azar de me enfrentar. Só me enviam pessoas quando, mesmo depois de elas passarem por todos os testes, ainda existem suspeitas.
Algumas de minhas... vítimas, como Izabel Seyfried as chama, poderiam dizer que o modo como Vonnegut lida com funcionários suspeitos da Ordem — matando-os depressa ao primeiro sinal — é um método mais humano. E talvez elas tenham razão. Mas não existe essa história de interrogatório humanitário neste ramo. Além disso, mesmo se existisse, eu com certeza preferiria o jeito antigo.
Greta nunca passou pela minha cadeira. Eu confio nela. Às vezes dá para saber se uma pessoa é confiável só de ficar por perto algumas vezes. Greta é inabalável. Um pouco arisca perto de mim — e não posso culpá-la por isso —, mas ela já teve todas as oportunidades possíveis de chamar a polícia e contar sobre a mulher que mantenho trancada no porão. Já teve todas as oportunidades de contar para Victor, ou até para Dorian. Mas não fez isso. Talvez seja o medo que sente de mim que a mantém leal, o que nunca é uma boa combinação, mas só o tempo dirá.
Eu separo as mãos e abaixo os braços.
— Se você quiser ser remanejada — digo, endireitando a cabeça —, posso providenciar isso, mas precisaria que você mantivesse segredo sobre Cassia. Quando achar propício, conto ao Victor sobre ela. Manter Cassia aqui não é uma traição, é apenas uma escolha. E vou enfrentar as consequências dessa escolha quando chegar a hora.
Greta assente suavemente e baixa os olhos por um breve instante.
— Não — responde, voltando a me encarar, as mãos ainda unidas diante do corpo. — Prefiro ficar. Comecei a gostar da Cassia. Quero garantir que ela seja bem cuidada quando o senhor não estiver por aqui.
— Obrigado — digo, com sinceridade.
Eu não só não queria substituir Greta, como realmente não queria ter que matá-la. E teria que fazer isso, caso ela quisesse partir. Ela é a única pessoa que sabe de Cassia além de mim, e não posso deixá-la escapar.
Greta suspira e separa as mãos, apoiando-as no balcão.
Está ficando nervosa de novo. — Preciso dizer para o senhor —
começa ela — que acredito de verdade, do fundo do coração, que ela não sabe mesmo onde está essa tal de Seraphina. Eu sou uma boa juíza de caráter, sr. Gustavsson, e, quando olho para aquela garota, vejo alguém que está dizendo a verdade.
Eu uno as mãos às costas e ando de um lado para o outro algumas vezes.
— Talvez — respondo, olhando para janela da cozinha, que vai do chão até o teto e se abre para o pátio de trás. — Mas acredito que, com o tempo, ela vai ter mais para me contar.
— Mas eu não entendo — retruca Greta, com um traço de desespero maternal na voz. — Como ela vai poder contar para o senhor, agora ou mais tarde, onde está uma pessoa que diz que nem conhece? E não que eu queira que o senhor a interrogue e faça as coisas horrorosas que faz com os outros, mas se acha que ela está escondendo a verdade, o que impede o senhor de fazer isso?
Eu encaro Greta, disciplinando-a apenas com o olhar.
Ela pisca, nervosa, e olha para o balcão, passando os dedos de uma das mãos sobre as costas da outra. Greta sabe que não deve questionar minhas táticas. Suas preocupações podem até ser válidas, mas meus motivos para não torturar Cassia são muito pessoais.
O silêncio preenche o ambiente. — Pode sair hoje à noite, se quiser
— digo. — Vou ficar na cidade por mais alguns dias.
— Obrigada, senhor, mas e o jantar? — Ela olha para os legumes frescos na peneira dentro da pia e as panelas no fogão; uma está fervendo há alguns minutos.
— Deixe aí — respondo. — Você pode arrumar tudo amanhã.
Ela baixa a cabeça e vai apagar o fogo, então tira a peneira da pia e a guarda no refrigerador de aço inoxidável.
Depois de pegar a bolsa amarela da cadeira perto da janela da cozinha e colocá-la sobre o ombro, Greta se aproxima e me entrega uma chave prateada.
— Quer que eu volte amanhã no mesmo horário, senhor?
— Sim, está ótimo — respondo, com a chave na palma da mão, presa em meus dedos.
Greta sai da cozinha, e, segundos depois, ouço a porta da rua se fechando.
Eu me viro e olho para o corredor, com uma porta na extremidade que leva ao porão. Visualizo o rosto de Cassia, macio como o de uma boneca, os grandes olhos castanhos de corça e os lábios perfeitos e suculentos. Como toda vez que penso nela, o coraçãozinho negro e traiçoeiro na minha caixa torácica começa a bater em um ritmo lento e ameaçador, me traindo com tanta crueldade que eu gostaria de arrancá-lo do peito e me livrar dele para sempre.
Momentos depois, estou diante daquela porta, enfiando na fechadura a chave que Greta me deu. E, sem pensar mais, desço a escada escura e me dirijo a ela. Cassia. A mulher que, se eu deixar que viva, com certeza será minha morte.
CAPÍTULO QUATRO Cassia
Adoro este pedaço, o modo como minhas costas quase se encaixam no canto do cômodo, com minha coluna paralela ao ponto onde uma parede encontra a outra. Às vezes tento me encostar até que a espinha toque a pedra gelada, mas meus braços e ombros sempre ficam no caminho.
Tem sempre alguma coisa no caminho — o grilhão no tornozelo direito, preso a uma corrente que passa por toda a extensão do cômodo, para que eu possa andar. As paredes cor de marfim, desprovidas até da menor das janelas. A escada de concreto do outro lado do quarto, uns dois metros fora do meu alcance. A porta no alto da escada, que sei que está sempre trancada por fora, de forma que, mesmo se eu conseguisse me soltar destas algemas, jamais veria o outro lado. No entanto, mais do que tudo, o que fica no caminho são as perguntas sem resposta que sempre me escapam.
As respostas são as chaves para a minha liberdade.
Liberdade de poder sentir o sol no rosto sempre que quiser. De poder me sentar sob as estrelas e admirar seu silêncio infinito. E, quando ouço a chuva batendo no telhado, adoraria a liberdade de sair e dançar ao ar livre, chafurdando nas poças, como fazia quando era menina.
Mas a verdade é que gosto de onde estou, confinada em um quarto sem sol, sem estrelas, sem chuva, só com meus pensamentos como companhia em certos dias.
Acho que é o preço que pago por estar apaixonada pelo Diabo.
Ainda não estou pronta para a liberdade. Fredrik precisa de algo que não posso dar. Mas mesmo assim eu tento. Só quando eu conseguir ele vai me
devolver a liberdade. E só quando eu conseguir irei aceitá-la.
Fredrik me dá medo. Mas ele não é cruel. Aquele homem é um enigma, e nunca conheci ninguém como ele. Por outro lado... não consigo lembrar.
Ouço a porta no alto da escada se abrindo com um estalo e abraço minhas pernas cobertas por um tecido fino, encolhendo-as contra o peito. Estou usando a camisola de algodão branco que Fredrik comprou para mim, que cobre minhas pernas e não me deixa exposta. Ele jamais me deixaria exposta. É gentil comigo. A maior parte do tempo.
Fredrik deve estar descalço, porque não ouço as solas de seus sapatos caros batendo no concreto quando ele desce os degraus. No entanto, ouço o tecido da calça social farfalhando enquanto ele caminha e vejo sua sombra ficando maior na parede. Meu coração começa a bater mais forte, em um misto de desejo e medo. Porque, quando se trata dele, os dois sempre andam de mãos dadas.
— Cassia. — Sua voz é grave e sensual, como água correndo sobre pedras: destruidora, porém delicada. — Eu já pedi para você não sentar no chão.
Ele sai das sombras e entra na luz diante de mim, se agigantando à minha frente, projetando a própria sombra no pequeno espaço que nos separa. Eu sempre me sinto controlada por sua sombra, como se ela fosse uma entidade independente, outra parte dele que me vigia quando ele me dá as costas.
— Desculpe — respondo, olhando para ele. — É que eu gosto daqui.
Ele me oferece a mão, e a aceito, hesitante, colocando os dedos pequeninos dentro dos dele, enormes. Sua mão se fecha sobre a minha, e ele me puxa com cuidado até que eu fique de pé, fazendo a corrente presa ao grilhão chocalhar no silêncio. Quando me levanto, minha camisola fina desce até quase os tornozelos. Fredrik me fita de cima a baixo com os olhos azul-escuros, como sempre faz, procurando imperfeições nas roupas ou na pele. Não sei por que faz isso. Não é como se eu fosse um objeto de fascinação que causasse alguma necessidade obsessivo-compulsiva de mantê-lo perfeito. Ele já me contou uma vez, quando perguntei, que estava se certificando de que ninguém havia tentado me machucar em sua ausência. Greta jamais me machucaria. Ela é como uma mãe para mim. Acho que Fredrik deveria confiar mais nela.
Fredrik anda comigo até a cama, do outro lado do quarto, me vira pelos ombros e me faz sentar. Só depois que sinto o colchão macio é que ele se senta na cadeira sem braços ao meu lado, onde fica quando vem aqui.
— Senti sua falta — digo baixinho, pondo as mãos no colo. — Eu estava com medo de que alguma coisa tivesse acontecido com você.
— Nada jamais vai acontecer comigo — responde ele, sem emoção. — A menos que eu deixe.
Eu dou um sorriso suave e baixo o olhar por um momento.
— Greta tratou você bem? — pergunta ele, deixando claro mais uma vez que não confia plenamente nela.
Faço que sim, depois levanto o queixo e o encaro. Um calafrio percorre meu corpo quando encontro a profundeza do seu olhar. Nunca vou entender como um homem pode derreter
as entranhas de uma mulher apenas com os olhos.
— Ela sempre me trata com carinho — respondo, em tom sério. — Gosto muito dela.
Fredrik assente.
Ele endireita as costas e cruza as pernas, entrelaçando os dedos fortes no colo. Está usando uma camisa social com pequenos botões pretos e as mangas arregaçadas até o cotovelo. Está descalço, como desconfiei, e usa uma calça social preta. Ele tem pés fortes e másculos. Pés grandes, assim como as mãos. Não sei por que sempre sou impelida a olhá-los, partes que parecem tão pouco importantes no corpo de um homem, mas isso sempre acontece. É como se cada centímetro dele tivesse sido feito com perfeição e merecesse ser admirado. Até os defeitos são perfeitos para mim: a cicatriz profunda mas fina, que corre sete centímetros abaixo da orelha e atravessa a nuca; a outra, maior, no abdômen, que afunda no lado esquerdo dos músculos oblíquos. A pequena pinta na parte de trás do pescoço, bem no alto da coluna. São todos perfeitos. Ou talvez eu esteja apaixonada pela primeira vez na vida e não esteja raciocinando direito. Toda mulher experimenta as armadilhas da natureza pelo menos uma vez. Seja com o vizinho ou com o ator com o qual sonha, mas que sabe que nunca vai ter.
No meu caso, isso acabou acontecendo com meu carcereiro.
Endireito um pouco as costas, para não parecer largada. Meus dedos se agitam sem parar no colo. Fredrik olha para mim — aliás, ele não tirou os olhos de mim —, e sei o que virá a seguir. A parte que mais temo quando ele vem me visitar. Solto um suspiro e desvio os olhos dos dele, fitando a parede bem atrás de sua cabeça e deixando que ela fique fora de foco.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta ele, baixinho.
Engulo o nervosismo e cruzo os dedos com força, para não demonstrar tanto o medo.
Balançando a cabeça de leve, respondo:
— Não. Nada novo, pelo menos. Sinto seu olhar sobre mim, buscando
minha atenção. Eu cedo e o encaro. — Eu já falei, Cassia, que, mesmo se
você achar que está sendo repetitiva, quero que me conte o que lembra, o que viu na minha ausência.
Eu engulo em seco de novo e olho para minhas mãos.
— Só o incêndio. Estava sonhando acordada ontem. E as chamas chegando ao teto invadiram minha memória, como da última vez.
— Ela estava lá? — pergunta ele, o que faz meu coração doer.
Meu coração sempre dói quando ele pergunta sobre aquela mulher.
Faço que sim, lenta e relutantemente. — Sim.
Ele fica em silêncio e incrivelmente imóvel, ainda esperando que eu prossiga, que eu conte tudo o que vi até os mínimos detalhes. Mas, desta vez, eu não quero. Quero que ele se deite comigo e me abrace, como fez há pouco tempo. Nunca me senti tão segura. Quero me sentir assim de novo. Agora. Não por causa do medo enigmático que tenho de Fredrik, mas por causa do medo que sinto quando vejo o rosto daquela mulher na memória. Uma mulher com cabelo preto brilhante e olhos escuros sinistros. Uma mulher que sempre digo a Fredrik que não conheço, que não me lembro dela, mas a verdade é que não quero lembrar. E, quanto mais ele me pressiona, tentando me ajudar a recuperar as recordações de antes do incêndio, mais perto chego de saber o que ela fez comigo. Por mais que eu a tema sem sequer conhecê-la, sei que ela deve ter feito alguma coisa horrível, indizível.
Eu preferiria deixar o passado completamente para trás, pois conhecê-lo de novo significa que ele vai me assombrar pelo resto da vida.
Mas, pior do que isso, temo mais do que tudo que, quando eu lembrar e der a Fredrik as respostas que ele procura, ele vai encontrar a mulher. Então me esquecerá completamente.
— Me diga, Cassia... me conte o que você lembra.
Eu olho para um ponto atrás dele, atrás dos cabelos escuros arrepiados e dos olhos azul-escuros, da atraente barba por fazer que muitas vezes sinto espetando meu rosto, mesmo quando ele não me toca, e deixo que a lembrança entre em foco.
Os gritos no prédio me acordam. Eu me levanto da cama com um sobressalto, o rosto encharcado de suor, os pulmões começando a arder por causa da fumaça que preenche o quarto minúsculo. Levo um momento para perceber o que está acontecendo, e não é a fumaça o que me faz entender tudo. São os gritos. Me dou conta de que, se eu fosse a única moradora do prédio, não teria acordado. Olho para cama e me imagino deitada ali, encolhida sob os lençóis com listras brancas, as chamas envolvendo o colchão, lambendo as paredes e a cabeceira e se misturando ao meu cabelo louro e comprido espalhado sobre o travesseiro, rápidas como uma naja deslizando sobre a areia.
Não me lembro de ter me levantado. “Como cheguei aqui?”, pergunto a mim mesma.
Os gritos no corredor estão ficando mais altos. Ouço estrondos e batidas do outro lado da porta, mas não é a minha porta que está sendo esmurrada. E não consigo identificar os estrondos, mas acho que é o teto desabando. Vejo por baixo da porta a luz piscando no corredor, e então ela se apaga.
Os gritos param, e sinto o coração na garganta.
Então, como se o tempo desse um salto, não estou mais diante da cama. Estou saindo pela janela e descendo pela escada de incêndio.
Escorrego, e tudo fica preto. Silencioso.
Mas ainda ouço minha respiração saindo irregular das narinas, como se os seios nasais estivessem entupidos. Ouço e sinto na cabeça as batidas do meu coração, a toda, latejando nas veias das têmporas.
Mas tudo o mais ao redor está quieto, as sirenes e buzinas sumindo depressa ao fundo.
Então ouço uma voz. Uma voz de mulher. A princípio parece distante, como se ela estivesse falando comigo de trás de um muro ou do outro lado de um campo gigante. Mas sua voz está ficando mais próxima.
— Eu falei que ia encontrar você — declara a voz, com um toque de crueldade, zombaria e satisfação.
Tento abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais. As pontas dos meus dedos raspam em uma superfície dura e áspera. Mexo uma das mãos, pressionando a palma contra superfície, tentando decifrar o que é e por que estou deitada com o rosto em cima daquilo. Meu corpo se solidifica e me encolho ao começar a tossir, a bochecha raspando no material duro, que começa a parecer concreto ou asfalto. Sinto o gosto de fumaça vindo dos pulmões, sinto-a arder no esôfago, no fundo da garganta e nas narinas.
Tusso de novo, com violência, e tento recuperar o fôlego, quando meu corpo fica imóvel. Fungo uma vez, sentindo o líquido por trás dos olhos, e ele queima como se um espeto quente estivesse sendo enfiado nas minhas narinas. Grito de dor, depois fico parada, tentando respirar apenas pela boca. Meus lábios estão secos, rachados e sangrando, e também têm gosto de fumaça.
Lágrimas brotam dos meus olhos, e meu corpo estremece contra a superfície fria e dura, como uma bola trêmula de músculos e ossos. Acho que vou morrer aqui. Seja lá onde “aqui” for.
Estou congelando.
— Você devia ter imaginado, Cassia — comenta a voz, e parece que está bem atrás de mim.
Determinada a dar um rosto à voz, tento desesperadamente abrir os olhos, mas, como tudo o mais dentro de mim, estão ardendo.
— Quem é você? — pergunto, fraca, e minha voz falha. Preciso de água. Preciso de alguma coisa para molhar a boca. Qualquer coisa...
Ela ri baixinho, e a crueldade da risada me apavora até o fundo da alma. Sinto calor na lateral do rosto, o lado que não está encostado na superfície dura. Então ouço a voz de novo e sei que ela está bem ali, em cima de mim, com a boca perto da minha, fazendo um caminho da orelha até o canto dos meus lábios.
Sinto os lábios dela nos meus, muito quentes, macios e suaves. Meu corpo está frio, muito frio, e os lábios tão quentes que não consigo nem achar forças para protestar. Sinto sua língua penetrar minha boca e se enroscar delicadamente na minha. Minhas pálpebras, antes pesadas, agora se fecham de vez, me deixando absolutamente sem controle para abri-las.
— Você sempre vai ser minha, Cassia — murmura a mulher, contra minha boca. — Você tem uma dívida comigo.
Sua mão gelada roça minha barriga, e ela enfia a mão na parte da frente da calça grossa do meu pijama de algodão. Sinto seus dedos em gancho entrando em mim de repente, dolorosamente. Meus olhos se abrem e vejo o rosto dela me fitando com malícia e um ar de ameaça, os olhos escuros rodopiando no azul do céu noturno, a silhueta esguia iluminada pela luz do poste que está alguns metros atrás. Os cabelos são pretos e brilhantes, cortados rente ao rosto oval, cada lado acompanhando a curva do maxilar. Ela é linda. Ela é maligna.
Estou com medo.
E então, em um redemoinho, os sons ensurdecedores da cidade frenética alcançam meus ouvidos outra vez. Começo a engasgar, tossindo com tanta força que acho que meus pulmões vão sair junto com a saliva preta que vomito nas mãos. Viro de costas e olho para cima, para um céu negro e sem estrelas, cheio de nuvens, cortado pelo vento do inverno. Meu corpo treme tanto que parece que os ossos vão se partir feito vidro se eu não conseguir me controlar. Minha cabeça tomba para o lado e vejo uma pilha de caixas. A perna de um sofá. Um saco preto de lixo com um buraco no fundo e algum tipo de tecido saindo de lá. Um espelho quebrado com uma moldura de madeira envelhecida. Um engradado vermelho de garrafas de leite cheio de coisas sortidas: velhas caixas de comida, um frasco de aditivo para radiadores, uma lata amassada de refrigerante.
A mulher sumiu. Pensei ter ouvido as botas altas e pretas esmagando a neve atrás de mim, antes que começasse meu último acesso de tosse.
Meu corpo dói. Acho que minha perna está quebrada. É um mistério como não senti isso antes. Cerro os dentes e fecho os olhos com força quando a dor atravessa meu corpo. Ouço mais vozes se aproximando. Policiais. Bombeiros. Não... É uma equipe de paramédicos.
Meus olhos se abrem e se fecham de dor e exaustão, mas tento lutar contra o sono. Quero ver o que está acontecendo ao redor. Quero ver se a mulher ainda está por perto. Enquanto os paramédicos me atendem, não presto atenção neles, nem mesmo quando me fazem perguntas, tentando descobrir quão alerta estou. Mas olho para além deles, para a rua cheia de luzes piscantes vermelhas e azuis refletidas nos prédios próximos. Uma multidão se forma do outro lado, todos enrolados em grossos casacos de inverno, apontando para cima com as mãos enluvadas, para o prédio ainda envolto em chamas atrás de mim.
Mas na multidão há uma figura alta e sombria que parece fora de lugar. Ele está com as mãos nos bolsos do longo casaco preto. Está calmo, insensível ao caos das ruas.
Ele é você.
Você olha para mim, do outro lado da rua, por entre pessoas e veículos que passam e bloqueiam nossa visão por alguns momentos. Seus olhos penetram os meus como... como uma coisa que eu nunca senti. Tudo o que sei é que meu estômago está quente e estou com medo, mas mesmo assim quero continuar olhando para você.
E-eu não sei por quê, mas... mas meu coração está se partindo. Lágrimas queimam o fundo dos meus olhos, e meu peito parece estar implodindo, como uma estrela que dá seu último suspiro antes de se transformar em um buraco negro.
E então eu acordo na sua casa e mal consigo lembrar meu nome, muito menos qualquer outra coisa a meu respeito.
CAPÍTULO CINCO Cassia
Fredrik estende a mão e enxuga minhas lágrimas. Encosto delicadamente em seu pulso forte e fecho os olhos para saborear seu toque.
— A mulher disse que você tinha uma dívida com ela.
A voz de Fredrik me traz de volta ao presente, e meus olhos se abrem de novo, com cautela.
Ele afasta a mão e volta a pousá-la no colo.
Observo sua mão por um longo momento, depois encaro outra vez os olhos dele.
— O quê? — Estou confusa. Fredrik inclina um pouco a cabeça
para o lado.
— Você não havia dito isso antes — explica ele. — Que a mulher falou, antes de ir embora, que você tinha uma dívida com ela. É uma lembrança nova.
Eu pisco, um pouco surpresa, e faço que sim quando me dou conta disso.
— Sim — concordo. — Ela disse isso. Mas não sei o que significa.
Abaixo a cabeça com remorso e culpa. Quero dar a ele tudo que quiser de mim. Desejo isso desde pouco depois que ele me trouxe até aqui, há muitos meses. Mesmo que isso signifique que eu vá perdê-lo para aquela mulher. Eu o amo o suficiente para abrir mão, se é o que ele quer.
Não sei por que o amo. Não sei como é possível amar um homem capaz de manter uma mulher acorrentada no porão. Por outro lado, há muitas coisas que não entendo, porque não me lembro de nada. Muita coisa não faz sentido. Na verdade, nada faz sentido. Eu me sinto presa na vida de outra pessoa. Não tenho lugar no mundo e, enquanto ele se move ao meu redor, fico parada, tentando lembrar a vida que eu tinha antes, que parece não querer ser encontrada.
— Cassia — começa Fredrik com delicadeza, e ergo os olhos cheios de lágrimas. Ele suspira com remorso. — Se você não fizer progressos sozinha, sabe o que vou ter que fazer.
Minhas mãos começam a tremer no colo, e meu lábio inferior também.
Balanço a cabeça.
— Não, Fredrik, por favor... Ele se curva na minha direção em um
movimento rápido, o olhar punitivo. Afundo as mãos no colchão e vou para trás, encostando na parede.
— M-me desculpe — peço, com medo na voz.
— Não me chame pelo nome — ordena ele. — Não posso permitir que você faça isso.
Ele baixa os olhos, e percebo, pela expressão de dor que ele tenta esconder, que a própria regra também é um fardo para ele.
Fredrik se levanta da cadeira e se senta na beira da cama, mais perto de mim.
— Vem cá — chama baixinho, estendendo a mão.
Eu a pego só com um pouco de hesitação. Por mais que o tema, quero estar com ele.
Ele me puxa para mais perto, e deito em suas pernas, a bochecha apoiada de leve em sua coxa firme. Sua mão grande alisa meu cabelo louro. O toque é suave, gentil e vibrante, mas também sei do que aquelas mãos são capazes. Vi as coisas que ele faz com as pessoas. Coisas terríveis, dignas de um pesadelo. As mesmas coisas com as quais me ameaça agora.
— Não vou suportar assistir de novo — digo. — Por favor... não me faça assistir.
Os dedos continuam a alisar meu cabelo, provocando calafrios que dançam ao longo da espinha.
— Mas você vai ter que assistir — responde ele, em uma voz calma e relaxante —, porque não vejo outra maneira. Parece que suas lembranças só são desencadeadas por experiências traumáticas. Você não saberia o que sabe agora sobre o incêndio se eu não tivesse feito você assistir.
Eu tiro a cabeça do colo dele para encará-lo. Seus dedos deixam meu cabelo, e ele passa as costas da mão na lateral do meu pescoço.
— Me fale sobre ela — peço, com voz rouca, tentando não afugentá-lo, como aconteceu da última vez que insisti nesse assunto proibido. — O que Seraphina fez para você? Por que você quer tanto encontrá-la?
Ele se levanta da cama de um salto, me derrubando no colchão.
— Eu já falei...
Eu me levanto atrás dele,
interrompendo-o no meio da frase, determinada a fazê-lo entender, fazê-lo falar comigo de uma vez por todas. A corrente no tornozelo range alto quando eu me atiro pelo pequeno espaço para ficar na frente dele.
— ME CONTA! — grito, com mais lágrimas escorrendo dos olhos. — POR FAVOR! EU MEREÇO SABER! — exclamo. — Você me manteve aqui embaixo por um ano. Me tirou da... da vida que eu tinha antes do incêndio, fosse qual fosse. Posso não me lembrar dela, mas era minha. — Aponto para meu peito, com a voz e a expressão distorcidas pela dor e pelo desespero. — Acha que eu conheço essa mulher o suficiente para levar você até ela, que de alguma forma posso te ajudar a encontrá-la. E eu estou disposta a fazer isso... — Minha voz começa a se abrandar. Eu só quero fazê-lo entender, não desafiá-lo.
Ele balança a cabeça, mas não como se estivesse me dizendo que não. Parece mais que está convencendo a si mesmo a não me contar. Algo que fez muitas e muitas vezes durante todos esses meses em que fui prisioneira. Uma prisioneira voluntária.
Baixo a voz para um sussurro e seguro os pulsos dele com meus dedos finos.
— Por favor, Fredrik — peço, e ele não me repreende por chamá-lo pelo nome. Olho no fundo de seus olhos duros e conflituosos, que se recusam a retribuir meu olhar. — Talvez, sabendo mais a respeito dela... eu consiga lembrar. Poderia começar a entender quem ela era para mim, como a conheci e... — tento forçá-lo a me olhar, mas ele é inabalável — ... e qual é minha dívida com ela.
Foi isso o que tantas vezes tentei fazê-lo entender, mas ele sempre me interrompe. Prefere me obrigar a assisti-lo torturando pessoas até a morte para desencadear minhas lembranças a fazer algo simples como me contar mais sobre essa mulher, que eu aparentemente conhecia antes de perder a memória naquele incêndio, ano passado.
— Por favor. — É minha última e desesperada tentativa. Meu peito arfa, puxando o ar em movimentos longos e profundos. Meu coração arde de desespero.
Ele me encara, e não consigo decifrar seu olhar. Tantos conflitos. Tantos remorsos, raiva e emoções que nem sei se um dia quero descobrir quais são. Uma fera vive dentro desse homem, e eu já a vi, mas nunca mais quero encontrá
la. Não cara a cara, como outros encontraram. Sinto, na parte mais funda minha alma, que ele controla essa fera pelo meu próprio bem. Porque não quer me machucar. Mas também sinto que é só questão de tempo até que ela assuma o controle do homem que conheço e amo. E, cada vez que ele olha para mim, chega um pouco mais perto de sucumbir à fera e deixar que ela o domine.
É como se eu soubesse, porque é isso que meu coração me diz, que um dia vou morrer pelas mãos dele.
Vou até ele e abrando o olhar ao estender a mão e tocar seu rosto. Sorrio com ternura e fico na ponta dos pés, encostando meus lábios nos dele.
Fredrik olha no fundo dos meus olhos quando me afasto. Mesmo assim, há tanta coisa acontecendo dentro dele que não consigo decifrar nada.
Fredri k
Dou um passo para trás e me afasto de Cassia, decidido a acabar com isso antes que comece. Não posso permitir que ela faça isso comigo. De novo não. Não vou deixar.
Seraphina é importante para mim, e nada vai me impedir de encontrar minha ex-esposa, a única mulher com quem podia ser o verdadeiro Fredrik Gustavsson sem precisar me esconder. A única mulher que era tão parecida comigo que acabarmos juntos parecia obra do destino.
Seraphina é a epítome da escuridão. E preciso dela de volta.
Ela e eu temos assuntos a resolver. — Fredrik — chama Cassia, e
levanto a cabeça para encará-la. Seus olhos são tão inocentes e puros, tão... vulneráveis. Quero possuí-la. Agora. Apertar a carne rija e rosada contra a parede e destroçar seu pequeno corpo com violência, virando-a do avesso. Quero marcá-la com meu punhal e lamber o sangue de suas feridas, como eu fazia com Seraphina.
Reprimo a necessidade, erguendo o queixo. Porque não posso. Não posso fazer isso com Cassia. Não vou fazer isso com Cassia.
Eu me obrigo a me afastar. — Fredrik... por favor... não vá
embora. Ainda não. Por favor! — exclama ela, atrás de mim.
Ouço a corrente presa a seu tornozelo batendo no chão enquanto ela tenta me alcançar. Mas ela para bruscamente quando saio de seu alcance e me aproximo da escada.
Eu a ouço chorando. Odeio ouvi-la chorando. Cacete... odeio ouvi-la chorando!
Lentamente, viro-me para ela, que me encara com os mesmos olhos castanhos de corça que aprendi a admirar... e dos quais me tornei vítima.
Vou precisar matar esta noite. Só para poder lavar esse sentimento ameaçador do meu coração sombrio.
— Volto daqui a quatro horas — digo, impassível, até mesmo com certa frieza. — E você vai assistir.
Eu a deixo de pé ali, se afogando em lágrimas, enquanto subo os degraus e saio do porão.
CAPÍTULO SEIS Fredrik
Se Dorian Flynn não fizesse parte da nova Ordem e não tivesse sido designado meu parceiro, seria ele quem eu mataria hoje à noite. Odeio esse cara. Talvez eu o mate de qualquer jeito.
— De que porra essa vagabunda está falando? — pergunta Dorian, olhando para uma revista com algum casal famoso posando com um bebê na capa. Ele dá um peteleco no meio da página com o dedo médio, fazendo um breve som de estalo, depois larga a revista na mesa entre nós. — Você lê essas merdas?
— Não — respondo, desinteressado, e levo a caneca de café aos lábios.
Continuo olhando pela janela alta da cafeteria, procurando sinais do meu próximo interrogado. Baixinho, careca, flertando com a morte há tempo demais.
— Pois deveria — comenta ele, olhando outra vez para a revista. — É isso que a sociedade se tornou. Uma superpopulação de celebridades desbocadas e sem talento, pagas para lamber as bolas dos Estados Unidos com dramas de merda. — Ele balança a cabeça e se recosta na cadeira. — Sabe, eu podia fazer uma matança, se saísse pegando esses filhos da puta. Cacete, acho que até Faust aprovaria.
Na verdade, não me importa muito a tagarelice de Dorian, mas sei que, se eu não responder alguma coisa logo, ele vai perceber e talvez nunca mais cale a boca.
— Essas pessoas, por mais idiotas que sejam — começo, encarando-o do outro lado da mesa —, não são alvos. Pelo menos não por enquanto.
Dorian dá de ombros e fecha a revista.
— Bom, só para constar, quero a primeira delas que se tornar um alvo.
Balanço a cabeça e volto a olhar pela janela.
— Vou avisar Victor. — Depois acrescento, com um sorrisinho: — Para mim, parece que elas estão lambendo bem o seu saco. O fato de você ligar para essas coisas prova isso.
Dorian sorri. Ele cruza os braços sobre o peito, coberto por uma jaqueta de couro marrom-escuro. Seu cabelo é curto e louro-escuro, bem cortado, espetado na frente e no alto. Não é tão alto quanto eu, que meço 1,90 m — ele deve ter 1,83 m —, e os olhos azuis brilhantes quase sempre ficam escondidos por trás de óculos de sol. Já está matando gente há oito anos (ele me contou isso quando nos conhecemos, tão despreocupadamente como se estivesse me contando que é corretor de imóveis), e admito que é uma boa marca para alguém que só tem vinte e seis anos. Mas, de forma bem parecida com Niklas Fleischer, irmão de Victor Faust, Dorian é indisciplinado e, às vezes, imprudente. Porém, também admito que isso parece funcionar para ele.
Ele balança a cabeça, sorrindo para mim.
— Eu queria comer uma dessas vagabundas. É verdade. Você me pegou. — Ele ergue as mãos com as palmas para a frente e em seguida as apoia na mesa. — Mas só para ver a cara dela quando eu a chutasse da cama depois de terminar. Para tirá-la um pouco do pedestal.
Arqueio a sobrancelha esquerda. — Ah, entendi.
Ele assente.
— É, eu poderia passar o dia todo fodendo uma mulher, mas, no fim das contas, estou atrás de uma garota legal, comportada, respeitável... para apresentar para os pais, sabe?
— Seus pais não estão mortos? — Eu tomo mais um gole de café.
Dorian dá de ombros e alonga os braços.
— Estão, mas você entendeu. — Claro que entendi — respondo,
mas gostaria que ele calasse a boca. — Só que não consigo imaginar você se aquietando com uma mulher.
Dorian franze a testa e ergue o queixo.
— Eu não falei nada de me aquietar. — Bom, “legal, comportada e
respeitável” em geral significa que você vai ficar com ela para sempre — explico.
Ele joga a cabeça para trás e ri um pouco.
— Talvez no seu mundo — retruca. — Se bem que você é meio sádico, e duvido muito que uma garota legal, comportada e respeitável chegaria perto o suficiente para descobrir isso.
Não, mas, por acaso, tem uma no meu porão. Tudo bem que eu a mantenho acorrentada para que ela não fuja ou tente me matar, mas Cassia é a garota mais gentil e respeitável que já conheci. E já conheci muitas mulheres. Já subjuguei muitas mulheres.
Um homem de baixa estatura, careca e atarracado, usando um casaco grosso até a cintura, sai de um sedã preto que acaba de parar no estacionamento. Os faróis do carro estão acesos, nos iluminando através da janela, e o motor continua ligado. A fumaça sai do escapamento, encorpada pelo ar gelado de dezembro. A neve é espessa nos arredores, onde uma escavadeira a amontoou de manhã, liberando espaço.
— É James Woodard — digo baixinho, observando-o através da janela.
Dorian vira a cabeça para olhar quando o alvo sai do carro ligado e vai para outro carro, estacionado a três vagas dali.
Olho meu Rolex.
— Mesmo horário. Que nem na semana passada.
— Ele é consistente — comenta Dorian.
— É, e, felizmente para nós, esse é seu primeiro erro — respondo.
Fico de pé e tiro o casaco preto das costas da cadeira de madeira. Eu o visto e fecho o zíper até o pescoço. Dorian faz o mesmo. Esperamos até que o carro que trouxe o homem careca vá embora. James Woodard nos olha quando nos aproximamos do meu carro, do outro lado do terreno, mas nossos olhares não se cruzam. Woodard acha que somos apenas clientes saindo do café. Ele não é esperto, e é admirável que tenha sido contratado por qualquer organização como a minha, mesmo para as tarefas mais simples.
Essa estupidez é um dos motivos pelos quais precisamos nos livrar dele. Isso e o fato de que está vendendo informações da nova Ordem para outra organização do mercado negro. Não é muita coisa, e nenhuma delas é real. Victor desconfia de Woodard desde que assumiu o controle da sua Ordem, mês passado. Desde então, tem passado informações falsas a ele. Só para ver se o homem as venderia. E ele as vendeu, duas vezes. Acontece que o homem do sedã preto que acaba de deixá-lo aqui era o comprador e também um dos nossos homens.
Mas meu papel é interrogá-lo para descobrir se ele andou vendendo essas informações para mais alguém e para descobrir se mais gente está envolvida. É uma noite perfeita para torturar um homem. E tenho duas horas para voltar para casa com Woodard.
Eu disse a Cassia que levaria quatro horas, e sempre cumpro minhas promessas.
Dorian e eu entramos no carro e ligo o motor. Woodard sai do estacionamento primeiro, e, já sabendo para que lado ele vai, espero trinta segundos antes de dar a ré e segui-lo.
— Que puta idiota — comenta Dorian, dando risada. — Quanto tempo Victor falou que Woodard ficou trabalhando para o Norton?
— Dois anos — respondo, saindo do estacionamento e indo para o leste.
— Porra — Dorian ri de novo —, para mim é uma surpresa ele ter durado dois dias.
— É, nisso eu preciso concordar. — Continuo com os olhos fixos na estrada escura, me mantendo abaixo do limite de velocidade e tentando não perder o carro de Woodard de vista.
— Você não concorda muito comigo, certo? — pergunta Dorian, me olhando de esguelha. Não que ele se importe, mas pelo menos não é arrogante a ponto de não tentar se dar bem com os outros.
— Não, eu concordo com você em muitas coisas — admito. — Só estou levando um tempo para me acostumar com o seu método de atirar primeiro e perguntar depois.
Desta vez a risada dele ecoa pelo carro.
— Sério? — pergunta, achando graça e duvidando. — Caralho, cara, você mete medo. Eu só atiro. Você está a um passo de ser um serial killer. Não vou nem falar em me acostumar.
Ele diz que dou medo, mas duvido que sinta medo de mim. Ou de qualquer coisa. É esnobe e irresponsável demais para sentir medo.
— Acho que não vai querer participar disso, então? — pergunto, inclinando a cabeça para a direita e sorrindo.
Dorian sorri e assente. — Isso mesmo, o cara é todo seu.
Não vamos brigar por isso. Ainda bem, porque o interrogatório
desta noite está longe de ser comum. E minha plateia será limitada a uma
pessoa.
Seguimos Woodard até a casa onde ele mora desde que Victor matou seu chefe e assumiu o controle das operações. Woodard também tem outra casa em Roland Park, onde quer que pensemos que ele passa a maior parte do tempo. Outra prova de que o cara é um marginalzinho de merda é que tem esposa e duas filhas, que deixa na casa de Roland Park, desprotegidas e sem saber no que ele está metido e o risco que correm, enquanto ele se esconde na casa alugada.
Penso em matá-lo esta noite como minha boa ação do mês, porque sua esposa e filhas provavelmente vão viver mais se ele estiver morto.
Depois que para na frente da casa e desliga o motor, Woodard se tranca lá dentro. Dorian e eu paramos na rua, escondidos pelas sombras de um grupo de árvores. Uma luz brilha na janela do térreo. Vou até a porta da casa enquanto Dorian dá a volta pelos fundos. Ouço suas botas esmagando a neve quando ele desaparece. Depois de alguns minutos, dando tempo para que Dorian se posicione na porta dos fundos e verifique a casa pelas janelas, bato três vezes na porta vermelha.
A cortina que cobre uma janela alta e estreita de vidro ao lado do batente da porta se mexe quando Woodard tenta me espiar discretamente. A luz da varanda se acende, e eu sorrio para o olho mágico, sabendo que ele está me vendo do outro lado.
Ainda com um sorriso no rosto, levanto dois dedos e aceno.
— Quem é você, cacete? — pergunta ele, nervoso, a voz abafada pela madeira grossa entre nós.
Ele sabe quem sou, ou melhor, sabe por que estou aqui. Sem chances de abrir a porta por livre e espontânea vontade.
— Abre essa porta, James — digo, cantarolando. — Precisamos ter uma conversinha.
— V-vá embora! — A voz sai trêmula. — Não conheço você e... v-vou chamar a polícia se não sair da minha propriedade! — Ele diz isso com um arroubo repentino de confiança, como se de fato acreditasse que a polícia poderia ajudá-lo.
Mas logo sua confiança desaparece, quando não saio da frente da porta e meu sorriso não perde a potência. Fico ali, as mãos unidas diante do corpo.
De repente, ouço bipes ritmados, como se Woodard estivesse digitando números no teclado de um alarme ao lado da porta.
PORTA DOS FUNDOS ABERTA, ouço uma voz robótica dizer, quando ele tenta acionar o alarme.
Então ouço um barulho de luta lá dentro, uma batida forte na porta e algo parecido com vidro se partindo no chão. — Não! Por favor! E-eu... Por favor! — grita Woodard, com a voz forçosa, como se algo, talvez o braço de Dorian,
estivesse apertando sua garganta. — Senta aí e cala a boca, seu merda.
— Ouço Dorian dizer, e o imagino balançando a arma diante do rosto de Woodard.
Tudo fica quieto, e a luz da varanda se apaga, me fazendo mergulhar outra vez na escuridão. Um segundo depois, ouço o trinco estalando, e a porta se abre.
Woodard foi jogado em uma poltrona gigante na sala.
— E-eu não sei quem vocês são, nem...
— Claro que você sabe quem somos — interrompo, contornando um vaso quebrado e me aproximando dele.
Tiro o apoio de pés de debaixo de suas pernas e me sento bem na frente dele, apoiando os cotovelos nas coxas e deixando as mãos relaxadas entre as pernas.
Woodard está tremendo, o queixo duplo balançando à luz difusa do abajur da mesa ao seu lado. Ele usa um paletó xadrez azul e bege, com os três primeiros botões abertos, e uma camisa branca de flanela por baixo. Fede a colônia barata e marcador permanente.
Levantando a mão roliça, Woodard empurra os óculos com a ponta do dedo para o alto do nariz.
— Olha, é sério, não sei mesmo por que vocês estão aqui — diz, de forma um tanto patética, os olhos escuros e saltados indo e vindo entre mim e Dorian. — Eu não trabalho mais para o Norton. Outra pessoa assumiu o controle. Só faço o que mandam.
Abro um sorriso e olho para trás dele, sem focar em nada em particular. Já parece impossível tirar da cabeça a imagem dele na minha cadeira.
— Então você sabe por que estamos aqui — digo, em tom zombeteiro, inclinando a cabeça para o lado. — Acredite, amigo, é melhor ser sincero logo de cara.
Espero que ele não seja sincero logo de cara. Quero que negue tudo, para que eu possa forçá-lo a falar.
Woodard olha para Dorian de relance.
— Me digam quem vocês são — diz, mais implorando do que exigindo, então volta a olhar para mim. Parece haver compreensão em seu olhar. — E-eu me lembro de você. De vocês dois. V-vocês estavam no café. Me seguiram dali, não foi?
— Isso importa? — pergunto, inclinando a cabeça para o outro lado. Eu me levanto e ajeito o casaco. — Vasculhe a casa — digo para Dorian. — Vou mandar que joguem tudo fora depois que você terminar.
— Peraí... o que você vai fazer? — pergunta Woodard, nervoso, ainda na poltrona.
Eu puxo uma seringa do bolso do casaco e retiro o bico protetor da agulha.
— Não... p-peraí, porra! Você nem me perguntou nada! Nem me deu a chance de falar!
Eu não quero que você fale. Dorian franze o cenho, me olhando
com ar questionador.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro — sugere, agitando a arma para Woodard, que continua olhando para o cano com apreensão, temendo que a arma dispare. — Tem muita coisa que a gente precisa investigar, Gustavsson. Se o cara está a fim de falar, sou a favor de ouvir.
— Sim... — concorda Woodard, esperando que eu também concorde, os olhos correndo entre nós dois.
De repente, ele parece ter levado um tapa na cara. Seus olhos saltados ficam mais arregalados, e a respiração, mais ofegante.
Ele aponta um dedo trêmulo e balofo para mim.
— Gustavsson? V-você é Fredrik Gustavsson... o-o cara que chamam de o Especialista? — Sua cabeça volumosa começa a balançar de um lado para o outro sem parar. — Não... E-eu conto tudo o que você quiser saber. Não tenho nada a esconder. Se eu soubesse para quem você trabalhava... Porra, se eu soubesse quem você era ... teria deixado você entrar. Sem perguntas. Teria feito até uma sopinha!
— Não precisa contar nada — respondo, embora manipulando. — Já sabemos o que você andou vendendo e para quem. Isso não tem volta. — Só preciso fazê-lo calar a porra da boca. Preciso interrogá-lo e matá-lo. Preciso que Cassia assista. — Levante-se.
Woodard olha para Dorian em busca de ajuda, já que era ele quem queria lhe dar mais tempo. Para sorte de Woodard, Dorian não gosta de papelada, e essa casa enorme cheia de arquivos que ele terá que peneirar quando eu for embora é a única coisa que mantém Woodard vivo no momento. Em qualquer outro caso, Dorian já teria espalhado os miolos dele naquela cortina horrorosa da janela.
— Cinco minutos — sugere Dorian. — Vamos lá, cara. Você sabe que eu sou totalmente a favor de acabar com eles rápido, mas o cara está pronto para falar.
Woodard assente vigorosamente, as mãos agarrando os braços da poltrona, o queixo duplo tremendo como gelatina.
Dou um suspiro profundo e abaixo os braços, e a seringa cheia de um coquetel que teria feito Woodard dormir tempo suficiente para levá-lo para minha casa pende discretamente de meus dedos.
— Três minutos — digo. — T-tá... três minutos — gagueja
Woodard. — Eu não sou um traidor. — Então é um mentiroso — retruca
Dorian, atrás de mim. — Não. — Woodard balança a
cabeça. — Eu vendi informações para Marion Callahan, o cara que me deixou no estacionamento. Mas...
— Para mim, isso parece traição — acrescenta Dorian, levantando a arma, apontando-a para Woodard.
Ponho a mão sobre o aço frio, baixando a arma. A última coisa de que preciso é que Dorian mate minha vítima e me deixe sem ninguém para pôr na cadeira. Ou que a arma dispare assim, tão perto do meu ouvido, e me deixe surdo.
— O tempo está passando — digo para Woodard.
Ele levanta as mãos por um momento e as deixa cair sobre as pernas da calça cáqui.
— Eu queria provar para o novo chefe que vale a pena me conservar — explica. — Porque eu sabia que seria eliminado desde o primeiro dia em que Norton foi morto e vocês assumiram. Olhem para mim. Não sou considerado necessariamente valioso à primeira vista. E não consegui um encontro frente a frente com o novo chefe. — Ele suspira. Já estou sentindo uma onda de decepção começando a me envolver. — Marion Callahan me abordou na porta de casa, onde dormem minha esposa e minhas filhas, e me disse que, se eu arranjasse informações sobre o novo chefe e suas operações, eles me garantiriam uma posição de alto nível na organização deles. N-não como assassino, é claro — ele dá um sorriso assustado —, eu sou inútil em missões. Nunca matei ninguém na vida. B-bem, só uma vez, mas foi acidente.
— Dois minutos — lembro. Ele assente e continua: — Eu me encontrei com Callahan
duas vezes e entreguei dois pen drives. Informações falsas. Nada naqueles drives é real. Nomes falsos. Locais falsos. Porra, até inventei detalhes de uma missão que nunca existiu.
— Por que você faria isso? — pergunto.
Por mais que eu precise disciplinar Cassia, também preciso resolver isso. É o meu trabalho, afinal, e jamais me conformaria em dar a Victor Faust menos do que cem por cento de esforço.
— Porque investiguei Callahan — explica Woodard. — Entendo de computadores e informação. Tenho acesso secreto ao FBI, à CIA, à Interpol... Porra, consigo obter informações sobre qualquer um em qualquer base de dados. Mas Callahan não estava em nenhuma base de dados. Nenhuma. Tirei as digitais dele do cartão de visitas que recebi. Pesquisei em tudo quanto é lugar por duas semanas. Nada.
— Bom, isso não é tão estranho assim — comento. — Considerando a profissão dele.
Woodard se levanta da poltrona, tão absorto em pensamentos que provavelmente nem percebe. Eu deixo. Dorian também deixa, mas mantém a arma a postos. Woodard começa a andar de um lado para o outro, parando a cada poucos segundos para nos olhar, gesticulando intensamente enquanto explica.
— Ora — começa, como se já devêssemos saber —, sempre tem algum tipo de registro, mesmo que esteja escondido em uma ficha de inscrição de escoteiros. Ninguém é um fantasma. Não como esse cara.
— Então ele está usando um nome falso, e as digitais dele nunca foram cadastradas — sugere Dorian, começando a ficar tão impaciente quanto eu estava momentos atrás. — E daí, caralho? Isso não prova nada, só que ele é competente, já que ninguém tem registro dele.
Woodard dá um sorriso gelado. — Não se ele for um Chefe. Isso chama nossa atenção. Dorian e eu nos entreolhamos. — Você tem alguma prova disso? —
pergunto.
— Não — responde Woodard. — Mas, pensem bem: aqueles que estão no topo da cadeia alimentar são os mais protegidos. Eles não têm ligação com ninguém além de seus braços direitos e seus seguranças. Não confiam em ninguém e matam ao primeiro sinal de traição ou suspeita. É por isso que os chefes são os mais difíceis de serem encontrados. — Woodard aponta para mim, ainda com seu sorriso sombrio. — Você alguma vez viu Vonnegut? — pergunta, e fico surpreso por ele saber qualquer coisa sobre meu antigo chefe, ou até mesmo que ele era meu chefe.
— Não — respondo. — Não cara a cara.
Um sorriso se espalha pelos lábios muito rachados de Woodard.
— Sabe pelo menos o primeiro nome dele?
Eu não respondo, mas imagino que minha expressão confusa já tenha sido resposta suficiente.
— Foi o que pensei — diz Woodard. Ele está se sentindo muito mais
confiante com a situação. Eu, por outro lado, superei a sensação de ansiedade voltar para Cassia a tempo, estou mais preocupado com as coisas que Woodard está nos contando.
Dorian enfia o cano da arma no peito de Woodard e o força a se sentar de novo na poltrona.
— Que porra de armação é essa? — pergunta, intimidador. — Marion Callahan denunciou você para os superiores dele, seu rolha de poço. Nosso chefe sabe o que você fez. Se Callahan fosse líder de outra organização, por que estaria se metendo com você? Se ele é um fantasma, por que não vai direto à fonte, eliminando o chefe?
— Porque Callahan não consegue chegar ao nosso chefe — respondo, puxando Dorian pelo ombro para afastá-lo de Woodard. — Ele está tentando se infiltrar do jeito antigo, subindo pela hierarquia, ganhando confiança, fingindo eliminar traidores.
— Tá, mas desde quando chefes vão a campo e sujam as mãos desse jeito? — Dorian apresenta um bom argumento. — Por que ele mesmo iria se arriscar, agindo assim? Por que não mandaria um de seus homens fazer isso?
— Porque o melhor lugar para se esconder é à vista de todos — respondo. — Se eu quisesse eliminar outro líder, provavelmente faria o mesmo.
Woodard assente para mim, como se estivesse me informando que falei exatamente o que ele estava pensando.
Até Victor Faust tem isso, essa vontade de eliminar os líderes pessoalmente. É uma espécie de distintivo na camisa, um troféu, e é totalmente compreensível. Quando Victor me mandou para a França para tomar de François Moreau a chave da caixa de segurança em Nova York, não me mandou matar o chefe deles, Sébastien Fournier. Insistiu em ele próprio eliminar Fournier.
— Antes que levemos em consideração qualquer coisa que você diga, tem algo que precisa ser comprovado. — Eu me sento no apoio para pés, novamente diante de Woodard, fazendo questão de deixar a seringa entre os meus dedos bem à vista, no meio dos meus joelhos. — As informações naqueles drives que você vendeu para Marion Callahan.
O queixo de Woodard treme de novo quando ele balança a cabeça depressa.
— Isso pode ser verificado — diz, erguendo as mãos em um gesto de rendição. — Eu juro.
Olho de relance para Dorian, ainda parado à minha esquerda.
— Pelo jeito, você vai ficar de babá hoje à noite — comento, e ele parece contrariado. — Vou entrar em contato com o nosso chefe quando sair e contar para ele tudo o que foi dito aqui.
— Caralho, cara! Você não pode estar falando sério — discorda Dorian, agitando a arma diante de si. — Não posso ficar nessa merda de buraco. Tem cheiro de remédio para tosse e... — ele faz uma careta exagerada — ... de queijo.
Eu me levanto e procuro o bico protetor no bolso, devolvendo-o à agulha da seringa.
— Se a versão dele não for confirmada — digo, começando a passar por Dorian e pondo a mão em seu ombro —, pode atirar.
Apesar de saber que Dorian não me contará o final dessa história, deixo-o ali com James Woodard, e vou fazer o que preciso fazer. Primeiro ligo para Victor e conto tudo sobre nossa reunião. Ele me instrui a esperar ordens sobre o próximo passo, o que, felizmente, me deixa livre para fazer qualquer outra coisa pelo restante da noite.
Agora posso me concentrar em Cassia.
Meus dentes estão cerrados; a garganta, seca; a cabeça, cheia de situações imaginárias, todas começando com um interrogatório brutal e terminando com Cassia se lembrando mais de seu passado, mais sobre Seraphina. Mas já esperei demais. Não tenho ninguém para levar para casa e interrogar.
Me sentindo derrotado e furioso, bato as mãos no volante. Minha nuca está suada. Rangi tanto os dentes na viagem de volta que meu maxilar está doendo.
Quando acho que tudo acabou e que vou ter que esperar mais uma ou duas semanas até conseguir outro interrogatório, aceito mentalmente que tudo o que me resta é voltar aos velhos hábitos.
Assim, dou meia-volta de repente e vou para o leste, em busca de um homem que está na minha lista de reserva para momentos assim, quando não tenho outra escolha.
CAPÍTULO SETE Cassia
Os gritos do homem enchem meus ouvidos de terror. São como mãos de um condenado, se estendendo em uma súplica para que eu o puxe para fora de um inferno ardente demais. Só me resta tapar os ouvidos e torcer para que os gritos sejam abafados.
Não quero olhar, mas meu inconsciente me força a abrir os olhos a cada poucos segundos, como se parte de mim não conseguisse resistir. Estou sentada no chão, encolhida em posição fetal, com as costas apoiadas na parede. Meu canto favorito. Aquele que fica mais longe da enorme tela de TV
protegida por uma placa espessa de acrílico.
A TV passa imagens ao vivo do outro lado do porão, o lado que foi fechado com uma parede de tijolos, com uma única porta de madeira, tão fina que nem preciso aumentar o volume da TV para ouvir os sons que vêm da outra sala.
— Por favor... por favor... eu não... não aguento mais — implora o homem na cadeira macabra, que muitas vezes aparece em meus pesadelos. — Já contei tudo! Não tenho como contar o que não sei!
Sangue espirra dos lábios inchados e cortados do homem. Fredrik o espancou antes de começar a arrancar seus dentes.
Por que Fredrik o espancou? Ele nunca recorre a isso.
Estou apavorada.
Será que o deixei com raiva? Engulo o pouco de saliva que resta na
boca e fecho os olhos quando as lágrimas começam a vazar das pálpebras e escorrer por minhas bochechas ressecadas. Meus braços apertam firme meus joelhos encolhidos contra o peito. Estou tremendo.
Cada centímetro de meu corpo treme tanto que parece que vou me desintegrar. Balanço o corpo para a frente e para trás, chorando.
Então começo a cantar. Não conheço a canção, mas me é muito familiar. Conheço a letra, mas não sei ao certo como.
Com as mãos pressionadas sobre os ouvidos, canto mais alto à medida que os gritos do homem se amplificam.
Canto mais alto...
Fredri k
Paro de repente, o alicate ensanguentado imóvel na mão, pouco acima da cabeça de Dante Furlong, traficante de heroína do West Side. Até o sangue dele fede. Não é como o sangue normal, que tem um cheiro metálico e áspero. Será que dá para farejar o mal em alguém, como os cachorros farejam carne podre?
Eu me pergunto se meu sangue tem um cheiro nojento como o dele.
Ele arregala os olhos e me encara, parcialmente petrificado, parcialmente indagador. Sabe que foi a linda voz que me fez parar, que o salvou de mais sofrimento. “Mas por quanto tempo?”, ele se questiona. É o que eu me questionaria, se estivesse na cadeira.
— O-o que é isso? — pergunta ele, arrastando as palavras, incapaz de usar bem a língua, agora que os dentes da frente estão faltando. — De onde isso vem?
Seus dedos longos e sujos agarram as extremidades dos braços da cadeira, ainda tentando se soltar das tiras de couro apertando os pulsos. E, a essa altura, duvido que ele se dê conta de que está fazendo isso. Tornou-se um instinto, uma maneira de amortecer a dor, e seu corpo não quer abandoná-lo ainda.
Olho para a frente, onde a câmera de vídeo está escondida na parede, sabendo que Cassia me vê na TV de tela plana em seu quarto, do outro lado da parede.
De repente, ela para de cantar “Where the Boys Are”, de Connie Francis. Quando eu estava começando a me perder em sua voz, ela para e me obriga a pensar de novo no momento presente.
É melhor assim.
Eu volto ao trabalho.
— Porra! Não! Por favor! Seu filho da pu... — O resto das palavras de Dante sai em sons confusos e engasgados.
Eu giro o alicate para um lado e para o outro, e o som do osso sendo esmigalhado ressoa em meus ouvidos. Mais um dente sai, e o jogo na bandeja de prata ao meu lado, junto com os outros seis.
Dante engasga com o sangue que escorre pela garganta. Seu corpo se agita com violência, como um peixe jogado na margem, a centímetros da água. Seus olhos azul-claros e esbugalhados se abrem e se fecham de dor e exaustão. Mas ele ainda não sentiu dor. Vou arrancar suas unhas.
— E-eu vou parar de traficar — declara. — Juro, caralho! Não vou mais vender.
As palavras truncadas começam a sair em meio a soluços. Os cabelos pretos encaracolados, cobertos de sujeira e sebo, brilham sob o holofote preso a um suporte de soro intravenoso atrás da cadeira.
Eu me curvo sobre Dante e o encaro. — Você é um mentiroso — digo, com
a voz calma e sombria. — É um mentiroso da porra. Uma mancha de merda em uma cueca. Gente como você não para nunca. Você implora e suplica diante da dor, mas, assim que eu deixar você sair daqui, vai vender heroína para menininhos em casas abandonadas.
— Me-menininhos? Cara, e-eu não vendo para menininhos.
Eu seguro com força seu queixo coberto de sangue e cuspe, com a mão enluvada em látex, imobilizando-o, cravando as pontas dos dedos em suas bochechas barbudas.
— Para quantos menininhos você deu uma dose em troca de um boquete? Hein?
Aperto mais o rosto dele. — D-de que caralho v-você está
falando, cara?!
— QUANTOS?!
Afundo tanto os dedos nas bochechas dele que sinto o contorno de seu maxilar inferior. Ele se contorce em minha mão, a cabeça presa à cadeira por uma tira de couro, como as dos pulsos, tornozelos e tronco, que ele luta para mover de um lado para o outro. Mas eu o mantenho imóvel.
— QUANTOS?! — Encaro seu rosto aterrorizado.
Ele tenta falar, e afrouxo o aperto em seu queixo o suficiente para que ele consiga.
— E-e-eu não sei! Alguns. Não sei! Mas não eram crianças! Adolescentes, talvez! Mas não me-menininhos! Juro pela minha vida que nunca mais vou vender! E-eu não vou mais vender!
Sem piscar, enfio o alicate na boca dele e começo a puxar o próximo dente. Seu corpo fica rígido na cadeira, os dedos imundos se encolhendo, as coxas metidas no jeans desbotado endurecendo como blocos de cimento. Ele fecha os olhos com tanta força que mil rugas profundas se formam ao redor deles.
Cassia começa a cantar Connie Francis de novo.
Eu tento desesperadamente ignorá-la, aplicando mais força nos dentes de Dante. Um por um, eu os arranco sem piedade, como se ficando mais agressivo eu conseguisse bloquear melhor a voz dela. Nunca sou tão desleixado, tão raivoso. Eu me orgulho de manter total compostura diante de minhas vítimas, sem deixar que percebam que alguma coisa está me incomodando. Mas Dante deve perceber. Deve perceber, talvez só de olhar em meus olhos enquanto me curvo sobre ele, que Cassia está me afetando.
Engulo as lágrimas.
Eu me afasto dele, largando o alicate no chão de concreto, perto dos meus sapatos. Minha respiração é pesada, ofegante. As lágrimas ardem no fundo dos meus olhos.
Por que ela está fazendo isso comigo? Como pude permitir que ela fizesse isso comigo?
Levanto o braço e enxugo as lágrimas do rosto com a manga da camisa. Pequenas manchas de sangue sujam o tecido branco quando afasto o braço.
Eu nunca sou tão desleixado! A canção para quando a dor de Dante
para. Agora percebo que é um padrão. Ela estava cantando para não ouvir os gritos.
Eu a faço sofrer.
E me odeio por isso.
Mas o pior é que me odeio por não estar cagando e andando para isso.
Arranco as luvas de látex, tomando cuidado para não sujar meus dedos de sangue, e as jogo no chão, perto do alicate. Então saio correndo pela porta para o outro lado do porão, onde a encontro sentada no chão, no canto, chorando com as mãos no rosto.
CAPÍTULO OITO Fredrik
Passo por ela e sigo para o banheiro, perto da cama. É um cômodo limpo e aconchegante, assim como todo o lado de Cassia no porão. Tem paredes cor de marfim, um balcão e piso luxuoso de mármore.
Greta mantém tudo limpo para ela. Todo dia a empregada desce aqui,
lava a privada, a pia e o box. Ela reabastece Cassia de artigos de toalete e verifica se tem toalhas limpas. Tudo no espaço de Cassia é imaculado.
Isto é, até eu apoiar as mãos na borda do balcão e deixar manchas de sangue no mármore branco. Não sei como sujei as mãos de sangue, depois de tomar tanto cuidado.
Não consigo pensar direito! Giro a torneira de bronze, e a água
esguicha em minhas mãos. Usando mais sabonete líquido do que o necessário, esfrego-as com força, vigorosamente, como um cirurgião esfrega as mãos antes de uma cirurgia. Quero que fiquem limpas, mas estou fazendo isso mais como distração. Não quero encará-la. Não quero ver Cassia chorando.
Mas cantar... ela nunca fez isso antes. Deve ter se lembrado de alguma coisa, mas, por mais que eu precise saber o que é, não quero encará-la.
Com a água ainda jorrando, eu apoio as mãos novamente na borda do balcão, suspiro profundamente e baixo a cabeça.
Controle-se, Fredrik, penso. Controle-se. O mais importante é Seraphina. Lembre-se disso.
Nunca quis que as coisas chegassem a esse ponto.
Quando levei Cassia ao abrigo, na noite do incêndio — ela se recusava a ir para o hospital —, nunca, nem nos meus delírios mais loucos, imaginava que o que aconteceu poderia acontecer.
E aqui estou, quase um ano depois. E não apenas não encontrei Seraphina, como também desenvolvi sentimentos de remorso e compaixão pela mulher da qual preciso para me ajudar a fazer Seraphina se revelar.
Não consigo fazer isso. Nunca me senti tão dividido na vida.
Arruinei a vida dessa mulher, Cassia, essa mulher doce, inocente e quase infantil, que não seria capaz de matar uma aranha que estivesse subindo por sua perna. Tudo em nome da busca pela minha amada Seraphina. Estou usando essa pobre garota para desentocar minha ex-esposa, como quem tira veneno de uma picada de cobra. E me odeio por isso.
Mas é a única maneira. Cassia é a única maneira. Abrindo os olhos, vejo que os nós
dos meus dedos estão brancos por causa da força com que me apoio no balcão.
Ergo os olhos até o pequeno espelho oval diante de mim.
Gotículas de sangue estão espalhadas pelo meu rosto com a barba por fazer. Enojado, encho as mãos de água e me lavo, duas, três, quatro vezes antes de me dar por satisfeito. Puxo a toalha da barra presa à parede e me enxugo. Noto que há sangue em minha camisa, e a tiro depressa.
Como pude ser tão descuidado? Quando finalmente fecho as torneiras,
ouço Cassia chorando outra vez. O som me atinge como uma lâmina.
Cacete, eu nunca levei jeito para isso. Não para isso. Sofrer por alguém, qualquer um, e deixar o sentimento me controlar. Com Seraphina, eu nunca precisava sentir. Não assim. Porra, como é desagradável. Éramos parecidos, eu e ela, como duas almas deformadas, feitas do mesmo tecido sádico. Nós nos alimentávamos da dor. Sentíamos prazer com ela. Não importava se era nossa própria dor ou a de alguém disposto a nos deixar curtir a sua.
— O que eu faço? — pergunto em voz alta, me olhando no espelho. — Luto com isso, como lutei ano passado? Ou me entrego?
Balanço a cabeça em negativa. Não. Cerro o punho e dou um soco no espelho. Cacos se partem e caem na pia, quebrando-se em pedaços ainda menores, mas deixando minha pele intacta. E, quando olho para o espelho outra vez, tudo o que vejo são pedaços de mim faltando. Não do espelho, mas de mim.
Nunca fui inteiro, desde o dia em que nasci de uma mãe que me largou ao lado da privada de um banheiro público.
Saio e olho primeiro para a tela de TV montada por trás do acrílico. Dante ainda está se contorcendo na cadeira. Parece mais alerta, agora que não estou lá com ele. Corre os olhos pela sala escura e úmida — a única parte da velha casa que nunca reformei — procurando uma saída, ou algo que possa usar para se soltar. Ele não faz ideia de que estou
o vigiando. Mas não irá a lugar algum. Nem Houdini conseguiria se soltar daquelas amarras.
— Por favor, Fredrik, por favor, desligue isso — pede Cassia, gemendo.
Não hesito, apesar de algo no fundo da mente — a parte sombria e perversa — me dizer para deixar tudo como está. Que ela precisa ver, ouvir, sentir o cheiro pungente de sangue através das rachaduras na madeira da porta entre os cômodos.
Vou até a TV, pego o controle remoto de uma estante na parede ao lado e aperto o botão de desligar. Cassia passa os dedos frágeis pelo cabelo, o rosto afundado entre os joelhos.
— Desculpa — digo, chegando perto dela. — Eu...
— Me chira dagui! Aém me aúda! — grita Dante, em palavras arrastadas e fragmentadas.
Olho outra vez para Cassia: seus dedos começam a apertar o cabelo, como se ela estivesse tentando arrancá-lo, causando dor em si mesma para bloquear os gritos de Dante.
— Caralho!
Cruzo o quarto até a porta e a escancaro, deixando-a bater na parede.
O branco dos olhos de Dante brilha sob o holofote. Sangue, mais preto do que vermelho, cobre o rosto dele, descendo pelo queixo e empapando a camiseta. Seu rosto está inchado; os lábios estão vermelhos, roxos e enormes.
— Fica quieto — ordeno. — Eu imboro! Ão me marruca mai! Uma das três seringas que estão
prontas e à minha espera, na bandeja alta de prata atrás da cadeira, chega a meus dedos em segundos. Segurando-a sob a luz, eu aperto devagar o êmbolo prateado, fazendo sair um pouco de heroína pela agulha.
— O-o que oê ‘ai faer? Ele gira a cabeça, se esforçando para
me ver atrás de si, o medo do desconhecido saturando cada sílaba.
— Eu. Falei. Para. Ficar. Quieto. — Forço as palavras entre os dentes.
Depois de verificar que o fino torniquete azul está bem posicionado e apertado no antebraço dele, enfio a agulha na veia e esvazio o conteúdo da seringa.
Esfregando as mãos outra vez na pia do banheiro de Cassia, me pego profundamente perdido em pensamentos ao olhar para o espelho quebrado. Dante não está mais gritando, mas Cassia continua chorando, embora não tão alto como antes. Mas seu choro, forte ou fraco, me causa dor da mesma forma.
— Me deixa ver seu rosto — peço delicadamente para Cassia, me agachando ao seu lado.
Seguro delicadamente o queixo dela, levantando com cuidado seu rosto, enfiado entre seus joelhos.
— Não vou machucar você — digo. — Você sabe disso. Já deveria saber, a essa altura.
Ela balança a cabeça loura quando seus suaves olhos castanhos se fixam nos meus, azuis.
— Você já me machucou — responde ela, o choro distorcendo a voz. — Você me pôs naquela cadeira quando me trouxe para cá. Quem me garante que não vai fazer isso de novo?
— Eu garanto que não vou fazer isso de novo.
Eu me sento no chão diante dela, com os joelhos dobrados e os pulsos apoiados neles.
— Eu nunca vou machucar você — digo, embora já tenha dito isso muitas vezes, desde aquela noite. — As coisas eram diferentes naquela época. Eu
achava que você... — Hesito. Preciso tomar cuidado com o modo como falo com ela e as coisas que digo. — Cassia, eu achava que você soubesse mais do que estava me dizendo. Mas agora sei a verdade.