Meu coração derrete de vez quando ela diminui a curta distância entre nós e vem se sentar em meu colo. Meu corpo a acolhe instintivamente, se encaixando no dela quando meus braços nus se fecham ao redor da pequena silhueta. Seus dedos longos e delicados envolvem meu bíceps, e ela encosta a cabeça na reentrância quente entre meus músculos do ombro e do peito. Fecho os olhos suavemente, e um pequeno suspiro sai de meus lábios abertos quando sinto o corpo dela contra o meu. Seguro sua cabeça e aprecio a maciez de seu cabelo entre meus dedos, roçando meu peito como um lençol de seda. Sinto o coração batendo forte, o primeiro sinal de uma traição inevitável, aquela em que me torno um homem que desprezo. Um homem que é fraco e indefeso, à mercê de emoções que aprendi a rejeitar há muito tempo.
Queria que Seraphina tivesse me deixado queimar naquela porra de incêndio, há seis anos.
— Você estava cantando — murmuro contra os cabelos dela. — Connie Francis. Por que estava cantando, Cassia?
Ela balança a cabeça. — Não sei. Desculpa. Eu a aperto suavemente. — Tudo bem — digo baixinho.
Depois de uma pausa, pergunto com cautela: — Você se lembra de alguma coisa?
Cassia levanta a cabeça e me encara. — Fredrik — começa ela, tão
baixinho quanto eu. — Posso me abrir com você? Posso dizer tudo o que estou sentindo?
Confuso, e até perturbado pela pergunta, de início não sei se quero permitir.
— Sim — respondo, contrariando meu bom senso.
Cassia se vira completamente no meio das minhas pernas e ficamos frente a frente, sua camisola branca cobrindo os joelhos dobrados, as mãos apoiadas nos pés delicados. Não sei como minhas mãos foram parar na lateral de seu
pescoço, os dedos cuidadosamente abertos para tocar o contorno de seu maxilar, mas elas estão lá, como duas traidoras, agindo por conta própria, independentes, desafiando o resto de mim. Não discuto com elas.
Seus olhos se abrandam, e meu coração sombrio também.
Sinto que quero beijá-la. Mas não beijo. Não posso. Isso só vai me levar a querer fazer outras coisas com ela, e já enveredei por esse caminho com Cassia.
É um caminho muito perigoso. — O que foi? — instigo, passando os
dedos por seu queixo. Ela segura meus pulsos com muita
cautela, me olhando nos olhos. — As coisas que você faz com
aqueles homens — diz ela, com palavras ternas e compreensivas. — Quero saber o motivo, pois meu coração me diz que sua escuridão nasceu da escuridão. Não é só um trabalho, como você já me falou. É mais do que isso, Fredrik.
Minhas mãos saem do pescoço dela e voltam a cair sobre meus joelhos dobrados, os pulsos relaxados. Balanço a cabeça. Nos onze meses e dezenove dias em que a mantive aqui, ela nunca fez essa pergunta, nunca bisbilhotou minha vida antes de Seraphina. Suas
curiosidades sempre foram — compreensivelmente — apenas sobre Seraphina, o verdadeiro motivo de Cassia estar aqui. Acho que nunca pensei que, depois de passar tanto tempo com alguém, no fim das contas a pessoa começasse a ver todas as coisas que você acredita estar escondendo muito bem.
Cassia se aproxima mais, embora eu achasse que ela não poderia chegar mais perto, e me força a encará-la. Sua mão direita vai para meu rosto, na ânsia de me consolar, mas eu a detenho, segurando-a pelo pulso e baixando-a de volta.
— A única que deveria falar sobre o passado é você — digo a ela.
Seus olhos de corça são velados por uma mortalha de decepção.
Mas ela não vai desistir tão fácil. — Você me pediu tanta coisa, Fredrik
— diz, transbordando ternura —, mas, quando eu peço algo, você me repele. Eu só quero saber isso. Não me importa mais Seraphina, nem a história que você tem com ela. Não me importa nem o que eu tenho a ver com isso. — Sua mão macia acaba tocando meu rosto, e não sei ao certo como ela passou por minha barreira. — Só o que me importa, a essa altura, é você, Fredrik. — Ela examina meus olhos e hipnotiza meu olhar, com o rosto cheio de dor e desejo. — Que demônios são esses que você luta tanto para matar?
Afasto a mão dela de novo, dessa vez com mais força.
— Você se lembrou de alguma coisa? — insisto, ignorando sua pergunta.
— Pare — pede ela, com mais intensidade do que eu esperava. — Você vai me conceder isso. Antes de me deixar sozinha aqui embaixo por mais uma noite, você vai me contar.
O desespero nos olhos dela me penetra. Desvio o olhar, mas acabo por encará-la de novo.
— Por favor ... — pede ela. Um nó desce pela minha garganta e se
aloja em algum lugar do meu peito. Meus dedos se enveredam por meu cabelo preto e despenteado, e solto um suspiro desolado de derrota.
Nunca falo do meu passado. Nunca. Tento não pensar nele, mas em certos dias isso é tão inútil quanto tentar não respirar. Só quando conheci Seraphina, há oito anos, é que aprendi a controlar isso, e me tornei um homem muito diferente daquele que caçava merdinhas como Dante Furlong, torturava-os e matava-os, noite sim, noite não, sem nunca sentir a satisfação pela qual ansiava a cada morte. Eu era como um viciado em drogas, sempre procurando uma dose, mas nunca satisfeito o suficiente para parar. Nunca nem um pouco satisfeito; eu só queria mais e mais.
Seraphina me ajudou a controlar esse anseio perpétuo. Ela me mostrou como liberar a escuridão que há dentro de mim com métodos mais discretos e limpos, para não deixar um rastro de cadáveres e provas. Mas o maior impacto de Seraphina em minha vida foi me fazer sentir que eu tinha uma vida. Porque, antes dela, eu era só um grão de poeira flutuando no esquecimento. Não conhecia o significado de felicidade, nem entendia a emoção do prazer ou a fome de entusiasmo. Eu era só uma carcaça vazia que conhecia apenas as trevas e a morte, que só sentia emoções como raiva, ódio, fúria e vingança.
Mas Seraphina foi meu anjo sombrio, que entrou em minha vida e me mostrou que viver era muito mais do que eu imaginava. Desde que ela me deixou naquele gramado, na noite em que pôs
fogo em minha casa, voltei lenta e inexoravelmente a sucumbir à minha antiga vida, e preciso encontrá-la antes que eu afunde demais.
Se é que isso já não aconteceu. Seraphina é a única pessoa com quem
falei sobre meu passado. Se eu fizer isso com Cassia, temo abrir portas que preciso manter fechadas, pelo bem de nós dois.
Mas... não posso dizer não a ela. Sinto que estou em dívida com ela,
depois de tudo o que lhe fiz. E, como não é nada sobre Seraphina — de quem não posso falar com Cassia, por mais que ela se esforce por me sondar —, decido contar o que ela quer saber.
Encaro-a, examinando seus olhos por um momento, arrebatado pelos estranhos sentimentos que ela tem por mim, e me pergunto brevemente por que ela ainda os tem. Então meu olhar pousa na parede atrás dela, no canto onde ela sempre está sentada quando desço aqui.
Finalmente, um fragmento de lembrança se derrama relutantemente de meus lábios.
Vinte e três anos atrás...
A poeira rodopiou à minha frente quando a pesada porta do dormitório se abriu com um rangido. Uma luz baça e cinzenta, vinda do corredor, penetrou o quarto e iluminou o chão de pedra. A claridade feria meus olhos. Minhas mãos imundas se ergueram para esfregá-los em movimentos mecânicos, conseguindo apenas empurrar sujeira para dentro das pálpebras. Fechei os olhos com força, fazendo uma careta, quando as lágrimas quentes — causadas apenas pela irritação — se derramaram.
Botas batiam nas pedras. As botas de Olaf. Eu conhecia o som delas, assim como das de todos os homens que comandavam aquele lugar. Era essencial conhecer esses sons, e todo o resto que podia surgir ao meu redor, ali. O cheiro do suor do vigia que fazia guarda diante da cela, desde o amanhecer até o meio-dia. O clique do isqueiro do vigia do turno do meio-dia até a hora do jantar. O farfalhar do longo casaco impermeável do terceiro vigia, que sempre parecia o barulho de um saco de lixo. Era vital que eu conhecesse essas coisas, porque eu ia fugir daquele lugar, não importava o que acontecesse, e precisava memorizar cada aspecto do ambiente.
Ergui os olhos da beira do catre elevado, feito de arame e molas velhas, e vi Olaf parado diante de mim. Meus olhos ainda ardiam com a sujeira. Os outros meninos no dormitório também estavam sentados em seus catres, assim como eu. Em silêncio. Assustados. Cada um deles temendo que Olaf tivesse vindo puni-los, e não oferecer vantagens, como aconteceu comigo naquele dia.
— Vem comigo — mandou ele, movendo a cabeça para trás em um gesto sutil. — Vou lhe mostrar seu novo alojamento.
Era um dia muito aguardado: foi quando, depois de seis meses de confinamento, Olaf finalmente acreditou que eu tinha aprendido a lição e nunca mais tentaria escapar. Eu tinha sido pego do outro lado do alto muro de tijolos que rodeava a enorme propriedade. Meu único amigo, Eduard, que só falava francês, estava comigo. Ele levou um tiro na cabeça, bem ao meu lado, sua sentença pela tentativa de fuga. Eles me deixaram vivo, e a morte de Eduard foi meu último aviso.
Olaf sempre teve um fraco por mim. Ele demonstrava isso me protegendo dos homens violentos e seus espancamentos brutais. E continuava a demonstrar ao me fazer dormir em seus aposentos algumas noites, às vezes em um catre no chão, perto de sua cama, outras vezes na cama com ele. Eu não queria, mas teria sido tolice protestar.
Eu me levantei do catre e mantive os olhos fixos no chão, as mãos pequenas de criança unidas à frente do corpo. Eu cheirava a urina e estava constrangido. Molhava a cama havia seis meses, desde que fora aprisionado naquele dormitório. Faziam coisas terríveis com os meninos, por ali. Coisas indizíveis.
Segui Olaf pela porta alta de ferro, e meus olhos finalmente começaram a se acostumar com a luz do corredor. O ar úmido fedia a mofo e lixo. Eu ouvia o patinhar e o guinchar de ratos bem alimentados correndo à minha frente e atrás de mim. Os ratos comiam melhor do que as crianças lá.
Olaf estava usando colônia, e isso me apavorava. Também estava de terno, embora a calça fosse dois centímetros mais curta do que deveria. O conjunto também não era agraciado por nada distinto, como uma gravata. Mas o terno era um forte contraste com as calças azul-marinho e seus habituais suéteres de lã. Olaf só usava terno e colônia em ocasiões especiais. E suas ocasiões especiais quase sempre envolviam me ensinar a maior das lições, que eu sempre tinha muito medo de aprender.
Eu não ousava falar, a menos que ele falasse comigo, e ele me levou pelo corredor longo e empoeirado para fora do prédio. Andei ao lado dele, obedientemente, rumo ao prédio antigo, porém mais bem cuidado, onde eu morava com Olaf antes de tentar fugir. O sol brilhava forte no céu enquanto meus pés descalços pisavam na grama áspera. O calor em minha pele era um presente divino. O ar limpo preenchia meus pulmões. Sentia o cheiro doce das flores brancas com pétalas em forma de sino que cresciam nas laterais do prédio.
Mas tudo desapareceu bem depressa, inclusive a luz do sol, quando passamos por outra porta, e fui imerso na forte luz laranja do saguão e no cheiro acre de incenso e charutos.
Willa, com sua estatura mediana e seu porte comum, nos recebeu usando um longo vestido cinza que ia até um pouco acima do tornozelo e sapatos pretos simples com meias soquete finas e brancas. Seus braços estavam cobertos pelas mangas de uma camisa de abotoar que ela usava por baixo do vestido, com o colarinho bem fechado e um pequeno broche em formato de trevo de quatro folhas preso do lado esquerdo. Eu gostava de Willa. Era a única pessoa, além dos outros meninos aprisionados ali, que eu não queria ver morrer de forma dolorosa e horrível.
Willa era jovem, mas pelo menos cinco anos mais velha do que eu. Uma garota gentil e linda de uns quinze ou dezesseis anos. Ela fora capturada por Eskill quando era bem mais jovem, assim como eu. Mas jamais seria vendida, e era bem tratada pelos outros homens, na maior parte do tempo. Eu nunca soube por quê.
Mas Willa, também como eu, agia de um jeito bem diferente quando estava diante dos homens.
E, como sempre que a via, eu entrei na encenação.
— Porr ke me trraz pirrrralho? — indagou Willa, ríspida, com um sotaque pesado, os lábios naturalmente rosados se franzindo em censura ao me encarar com seus olhos verdes e duros, mas lindos. — Porr ke semprre me trrazem os casos perrdidos?
— Porque você é a única aqui, minha cara Willa, que consegue fazer os casos perdidos pelo menos parecerem aproveitáveis.
Eu não ousava olhá-lo no rosto, mas, mesmo sem ver, sabia que ele estava sorrindo.
Meu corpo foi empurrado para a frente, e quase perdi o equilíbrio quando Willa puxou meu cotovelo. Então vi estrelas quando ela me deu um tapa bem forte no rosto com a outra mão, e finalmente minhas pernas bambas cederam. Ralei os joelhos nus no chão de madeira, porém evitei cair mais, apoiando a mão livre no chão para sustentar meu peso frágil.
— Levanta! — Willa me puxou. — Willa — ouvi Olaf dizendo, em
tom de aviso —, já falei: no rosto, não. Agora vá. Quero ele limpo.
— Sim, senhor — respondeu Willa, fazendo uma reverência, depois deu meia-volta, ainda me segurando pelo cotovelo.
Ela me levou pela escada em caracol até o segundo andar. Passando por outras criadas com roupas cinza iguais à dela, Willa segurava a parte de trás do meu cabelo escuro e imundo, afundando os dedos nele com agressividade, me empurrando à sua frente com gestos cruéis.
— Eu falei prra andarr dirreito, garroto! — rugia ela, atrás de mim.
Quando a porta do seu quarto se abriu, ela me empurrou com força, e caí de quatro lá dentro.
O trinco da porta estalou atrás de mim, então Willa se sentou no chão ao meu lado, me puxando para o colo e me ninando contra o peito.
— Me desculpa, Fredrik! — Ela chorava com o rosto apertado em meu cabelo. — Vozê me perrdoa?
Lágrimas encharcavam meu rosto, formando sulcos na camada de sujeira que eu sentia na pele. Mas eu não estava chorando por causa do modo como ela me tratara. Só estava feliz por vê-la de novo.
— Eu sempre vou perdoar você, Willa.
Senti seus lábios no topo da cabeça, e uma onda de calor percorreu meu corpo.
— Precizamos aprrontarr você rápido — comentou ela, me ajudando a levantar de novo. — Não kerro ke Olaf tenha algum motivo prra pôrr você de volta no isolamennto.
— Estou com medo, Willa. — Eu sei, Fredrik. Eu sei. Ela me beijou de leve na bochecha e
logo me pôs no banho. Era sempre muito delicada comigo, como com todos os meninos deixados aos seus cuidados. E nunca me violentou. Lavava cada parte do meu corpo com um toque amoroso. Eu nunca queria sair do quarto dela, mas era sempre mandado embora logo depois, para evitar suspeitas e garantir que Willa mantivesse seu lugar de chefe da criadagem.
Depois de me dar banho e me vestir com uma camiseta branca limpa e uma calça de lona, Willa se despediu com um abraço, ainda gentil e amorosa, antes de me levar de volta para o corredor, incorporando novamente a garota com mão de ferro.
Minutos depois, Willa tinha ido embora, e eu estava outra vez na companhia de Olaf, que parecia ansioso para me ver, com o terno apertado demais e a colônia que dava dor de cabeça.
— Antes de levar você para seu novo alojamento — começou Olaf, andando ao meu lado com as mãos unidas às costas —, tem uma coisa que precisa ver.
Não gostei de ouvir aquilo. Minhas pernas já começavam a tremer, meu estômago se revirava e se embrulhava. Inspirei profundamente e permaneci em silêncio, olhando para a frente.
— Você se lembra de quando foi punido, há muito tempo, por se esquecer de escovar os dentes? — perguntou ele.
Assenti.
— Sim, senhor.
Como eu poderia esquecer? Ele escovou meus dentes com tanta violência que enfiou a escova no fundo da minha garganta várias vezes, esfregou minhas gengivas com tanta força que elas sangraram por três dias seguidos.
Viramos à esquerda no fim do corredor e chegamos a uma porta.
Ouvi gritos lá dentro, e minhas pernas começaram a tremer.
Olaf pôs a mão enrugada sobre a maçaneta em formato de alavanca e anunciou:
— É isso que vai acontecer com você se os seus dentes apodrecerem, tiverem cáries ou crescerem tortos, quando os dentes de leite caírem. Até agora, você teve a sorte de ter sido abençoado com uma boa dentição. Vamos torcer para que continue assim. Logo você se tornará um rapaz, no auge da vida, e o modo como seu corpo começa a tomar forma agora ficará para sempre. Se alguma parte dele não for satisfatória, você passará por algumas correções cosméticas importantes, ou, dependendo do quanto eu ou outro Mestre gostarmos de você, poderá ser descartado.
Senti um aperto no peito, e meus joelhos começaram a ceder, mas me endireitei depressa.
Ele abriu a porta, e os gritos saíram da sala em um redemoinho, como se estivessem esperando para serem libertados. Eu queria tapar os ouvidos, mas sabia que não deveria nem tentar. Sabia que devia permanecer de pé com as costas eretas, os olhos baixos e os braços ao lado do corpo ou às costas, como os de Olaf. Optei por unir as mãos atrás do corpo, o que me permitia ao menos apertar os dedos com força para suportar a situação e me distrair dos gritos. Eles ecoavam pela sala de teto abobadado. Eu sentia cheiro de sangue, amargo e forte; parecia que meu rosto tinha sido enfiado em uma poça dele. Sempre tive o azar de ter um olfato poderoso, o que muitas vezes encarei como uma maldição. Ainda mais em momentos como aquele.
Olaf me guiou até outra sala adjacente à principal, onde um garoto mais velho que eu, provavelmente da mesma idade de Willa, estava preso a uma cadeira de aparência estranha, que mantinha as pernas dele estendidas à frente, no mesmo nível do resto do corpo. A cabeça loura estava presa a um apoio com uma tira grossa de couro, assim como o tórax, os tornozelos e os pulsos, estendidos sobre os braços da cadeira.
O garoto se debatia na cadeira, embora mal conseguisse se mexer. Sangue escorria de seu queixo, escarlate e grudento. Os cabelos estavam empapados de suor. Os olhos estavam arregalados e assustados.
Eu queria vomitar. Queria sair correndo daquela sala o mais rápido que conseguisse, me esconder no quarto de Willa e torcer para nunca ser encontrado, a não ser por ela, para que ela me apertasse contra os seios e me consolasse.
Mas não havia nada que eu pudesse fazer.
Um homem de cabelo grisalho e cacheado, usando um jaleco branco e segurando um alicate ensanguentado, estava debruçado sobre o garoto. Nem usava luvas. Tive uma sensação macabra ao ver aquele homem, até pior da que eu tinha com Olaf. Aquele homem gostava de sangue. Do cheiro. Da cor escarlate hipnótica. Da consistência. Do gosto. Mas, acima de tudo, eu sentia que ele adorava derramá-lo de todas as formas possíveis. Aquele homem me dava mais medo do que Olaf jamais conseguiu.
— Este é o chacalzinho?— perguntou o homem.
— Sim, este é Fredrik. — Que bom, que bom — disse ele, e
me encarou com um sorriso de congelar a espinha.
Eu não queria olhá-lo, não deveria, mas não pude evitar. Por sorte, ele não me repreendeu pelo erro. Não, aquele homem estava além das surras e castigos. Sua mente dançava no Reino da Morte e não tinha tempo de se preocupar com tais insignificâncias.
Ele se voltou para o adolescente assustado preso à cadeira e enfiou o alicate em sua boca. O garoto grunhia e tentava gritar, ao mesmo tempo que tentava morder o alicate. Mas o homem segurou seu maxilar inferior com a outra mão e o forçou a abrir a boca.
Minhas mãos tremiam atrás do corpo. A bílis se agitava com violência em meu estômago. Comecei a desviar o olhar, até que lembrei que, se Olaf notasse, me castigaria.
O alicate ia para a frente e para trás, para um lado e para outro, e o aterrorizante som de osso sendo esmigalhado quase me fez desmaiar. Meus joelhos ficaram bambos de novo, mas desta vez não consegui controlá-los, e senti a mão de Olaf em meu cotovelo, me segurando antes que eu desabasse.
Recuperei a compostura depressa e me endireitei, a respiração curta e ofegante, as mãos tremendo, agora ao lado do corpo.
O homem arrancou o dente da boca ensanguentada do garoto e o jogou no chão.
Então começou a puxar outro. No quinto dente, eu já não
conseguia mais ficar de pé. Não consigo olhar para Cassia. Meu
peito pesa com a lembrança, um peso tão opressivo e inclemente que ainda me surpreendo, a cada dia, que não tenha me matado. Ainda tenho pesadelos. Ainda acordo suado e febril, tão atormentado pelos rostos — dos vilões e de suas vítimas — que acredito estar vivendo tudo aquilo de novo. E isso torna minha necessidade ainda maior. Torna meu vício muito mais perigoso. Obsessivo.
Eu nunca vou parar. Nunca posso parar.
O passado me transformou em um monstro. Um monstro de coração obscuro e alma morta.
CAPÍTULO NOVE Cassia
Não consigo falar. Não por não saber o que dizer, mas por não saber por onde começar.
Meu coração está se partindo em um milhão de pedaços.
Fredrik afasta minhas mãos com delicadeza quando tento segurar seu rosto.
— Nada de piedade — declara ele. — Estamos entendidos?
— Como você pode dizer uma coisa dessas? — Eu o encaro; seus olhos estão cheios de nada, e os meus, cheios de sofrimento. — Fredrik...
— Não — retruca ele, determinado, e se levanta, me deixando no chão. — Você precisa entender, Cassia, que não me faz mal falar sobre isso. Eu não choro até dormir pensando em minha infância. Isso me provoca outra coisa. Me coloca em um lugar muito mais sombrio. — Seus lindos olhos azuis examinam os meus, revelando uma escuridão arrepiante. — Eu não mereço nem quero piedade.
Eu me levanto, agitando a corrente do tornozelo quando me aproximo dele.
— Aquele homem chegou a colocar você naquela cadeira? — pergunto baixinho, atrás dele, que agora está de costas para mim. — Ele arrancou seus dentes?
Os ombros de Fredrik sobem e descem com um suspiro profundo e silencioso.
Ele se vira para me encarar. Sua altura e seus lindos traços fazem, como sempre, meu coração palpitar e meu abdômen retesar quando ele me olha desse jeito, como se tivesse fome de alguma coisa. É a escuridão dentro dele, a parte que toma conta e o compele a me controlar, a acabar comigo de formas que, embora eu não lembre, sei que nenhum outro homem jamais conseguiu.
— Não — responde ele. — Nunca chegou a esse ponto comigo. Mas muitos dos outros meninos não tiveram tanta sorte. — Ele desvia o olhar, os braços nus e definidos, de músculos rijos, cruzados sobre o peito sem pelos. — Outras coisas foram feitas comigo. Eu teria preferido que arrancassem meus
dentes.
— Que tipo de coisas? — Sinto um aperto desconfortável no peito só de pensar. Chego um pouco mais perto, tomando cuidado para não invadir o espaço dele rápido demais, pois não tenho certeza de seu estado de espírito.
— Por que você quer saber, Cassia? — Ele se vira de vez para poder me olhar. Parece desconfiado. — Aonde está querendo chegar?
Balançando a cabeça várias vezes, eu digo:
— É isso que você acha? Que estou tentando manipular você? — Embora eu entenda por que ele teria suspeitas, ainda me incomoda saber que Fredrik acredita nisso, mesmo que remotamente.
Chego bem perto dele, eliminando o espaço entre nós, olhando-o com ressentimento.
— Você realmente acredita nisso, Fredrik? Que eu usaria alguma coisa horrível do seu passado contra você, em benefício próprio?
— Se eu estivesse na sua situação — responde ele, inclinando a cabeça —, seria o que eu faria.
Magoada por sua confissão, desvio os olhos dos dele.
— Você se lembrou de alguma coisa? — pergunta Fredrik, voltando cedo demais para o assunto inevitável.
E não tenho mais energia para lutar contra isso.
— Não. — Balanço a cabeça. — Não me lembrei de nada.
A corrente se arrasta ruidosamente pelo chão quando me afasto dele e volto para meu canto.
— Cassia — chama Fredrik, baixinho —, por favor, não se sente no chão. Estou pedindo.
Eu me sento assim mesmo. Encolhida no canto, as costas contra
a parede, encolho os joelhos cobertos pela longa camisola e os abraço. Fico olhando para o nada, consumida pela derrota.
— Por que eu não sou o bastante? — pergunto, desanimada.
Sinto os olhos de Fredrik em mim sem precisar olhá-lo.
Ele não diz nada.
— Por que você ama tanto aquela mulher? Posso não saber nada a respeito dela, porque você se recusa a me contar, mas sinto, no fundo do meu coração, que ela deve ser má. Ela fez alguma coisa terrível com você, alguma coisa imperdoável, e mesmo assim você a ama. Dá para ver.
— Você não entende a situação, Cassia.
Ele se aproxima e fica de pé perto de mim. Continuo sem encará-lo. Meu olhar fica fixo à frente, e algo branco, provavelmente a penteadeira, entra lentamente em foco.
— E nunca vou entender a situação toda, se você não me contar. — Prendo as lágrimas. Não quero mais que ele me veja chorar. — Mas por que eu não sou
o bastante? Me diga por que você ama uma mulher que parece que não quer ser encontrada, enquanto... enquanto eu estou aqui, e você me rejeita.
— Eu não amo ninguém — declara ele, e sei que está mentindo. — E você também não.
Irritada com a acusação, finalmente o encaro. Mas não consigo falar. Estou magoada demais. Como alguém pode ser tão traumatizado a ponto de não conseguir enxergar o amor, amor de verdade, quando está bem diante de seu nariz?
— Vou perguntar mais uma vez — diz Fredrik. — Tem alguma coisa que você queira me contar?
— Não — minto. — Não me lembro de nada. — Eu o encaro por um momento longo e tenso, as lágrimas finalmente escapando, então meu olhar desce para o chão. Fredrik me deixa ali sentada e segue para os degraus de concreto.
— Você vai matar aquele homem? — pergunto, sem olhar para ele.
Fredrik para por um momento, mas então sobe a escada sem dizer mais nada.
CAPÍTULO DEZ Fredrik
Hoje é o primeiro dia em muito tempo que deixo Cassia sozinha aos cuidados de Greta e fico aliviado por estar longe dela. Ela é perigosa para mim, não vou deixar que me afete. Posso ser um demônio, mas ainda sou humano, e sinto
remorso e compaixão por Cassia, entre outras coisas: uma receita para dor e arrependimento.
Seraphina é minha prioridade. Ela é tudo que deveria importar, porque, no fim das contas...
Não, não posso pensar nisso agora. Não aqui.
— Fredrik — chama Izabel Seyfried, sentada à minha esquerda. Sua voz me trazendo de volta ao presente. — Ainda está vivo aí dentro? — Ela agita a mão diante do meu rosto, sorrindo para mim com seus olhos verdes e brilhantes emoldurados pelo longo cabelo ruivo que bate nos ombros.
Izabel se tornou uma agente valiosa — e uma assassina de primeira — para organização em expansão. Ela é como uma irmã para mim. É teimosa, agitada, sanguinária e vingativa, mas mesmo assim uma irmã. Nem posso falar dela, na verdade. Nós dois somos mais parecidos do que eu gostaria de admitir.
Solto um suspiro profundo e apoio os braços na mesa comprida. À minha frente estão fotos de dois alvos no estado de Washington. As mesmas fotos estão diante de Izabel; de Niklas, do outro lado, sentado bem à frente dela; de Dorian, à minha frente; e, ao lado dele, dentre todas as pessoas no mundo que fedem a marcador permanente e queijo, ninguém menos que James Woodard.
Acontece que Woodard estava dizendo a verdade sobre Marion Callahan, o homem para quem vendia informações falsas, o que quase resultou em sua morte.
Victor está sentado à cabeceira, como sempre, entre Izabel e Niklas. Estou hierarquicamente acima de Izabel e, em geral, me sentaria à esquerda de Victor,
mas, como é ela quem dorme com ele e como poderia me esfaquear se eu questionasse isso, não ligo muito para o rebaixamento nos lugares à mesa.
A sala é pouco iluminada, com paredes escuras e encardidas e uma única lâmpada nua parafusada no teto alto. Não há janelas, e o lugar fede a mofo e a infiltração. É apenas uma entre dezenas de bases espalhadas por todos Estados Unidos que usamos para falar de negócios e fazer reuniões como esta.
Abro um sorriso para Izabel, torcendo para que isso a impeça de sondar minha mente mais a fundo.
— Este é um sorriso falso, um dos mais falsos que já vi — comenta ela, me denunciando. — Sério, o que está acontecendo com você?
— É que não dormi muito nos últimos dias.
Evito encará-la. Se alguém nesta mesa pode detectar uma mentira, além de mim, é Izabel. Afinal de contas, ela é mestre em manipulação e engano.
— Se precisar se ausentar desta missão — sugere Victor —, fique à vontade. Nós só entraremos em contato se for preciso interrogar alguém.
— Não — respondo na mesma hora, pois quero ficar o mais longe possível de Cassia. — Eu estou bem. Vou dormir um pouco durante o voo. — Olho mais uma vez para as fotografias de um homem e uma mulher, tiradas na frente de restaurantes e lojas de conveniência, além de uma do homem saindo de uma creche, o que é perturbador sob muitos aspectos. — Além disso, tenho a sensação de que a mulher não vai entregar o cara, se não o pegarmos primeiro.
— Por que você acha isso? — indaga Izabel, por pura curiosidade.
Olho para a mulher loura na foto, diante de um restaurante, com um copo de refrigerante em uma das mãos e uma bolsinha na outra.
— Não sei ao certo — comento, examinando o alvo —, mas é a impressão que ela passa. Vocês provavelmente vão precisar de mim. Não vai ser fácil dobrá-la.
As pernas da cadeira de Woodard fazem um barulho irritante ao arrastar no chão quando ele se ajeita. Todos os olhos se voltam para o homenzinho. Ele abre um sorriso idiota para mim e, com a ponta do dedo roliço, empurra os óculos para o alto do nariz.
— Imagino que esteja interrogando pessoas há tempo suficiente para perceber esse tipo de coisa — comenta ele, com uma admiração que me deixa pouco à vontade. — Eu realmente admiro o seu trabalho. I-isto é, não que eu seja um psicopata sádico que fica de pau duro com esse tipo de coisa, s-só estou falando que você consegue subjugar qualquer um. — O sorriso dele fica maior, revelando dentes meio amarelados. — É impressionante.
Dorian, sentado ao lado dele, tenta esconder um sorriso. Niklas, do outro lado, ergue uma sobrancelha e sorri para mim.
— Parece que alguém fica de pau duro por sua causa, Gustavsson — caçoa Niklas.
— Cacete! — exclama Dorian, olhando para Woodard. — Precisa dar tanta bandeira?
— E-ei, só estou dando crédito para quem merece — Woodard tenta se defender. — Ouço falar do Especialista há anos. — Ele aponta para mim, como se algo tivesse se materializado em sua mente. — Eu sempre quis perguntar: por que chamam você de Chacal?
Cerro os dentes por trás dos lábios fechados.
Então me viro para Victor. — Por que ele está aqui, exatamente?
— pergunto.
— É melhor você calar essa porra dessa boca — diz Dorian, virando-se para Woodard.
— Sabe, na verdade essa é uma boa pergunta. O que ele está fazendo aqui? — indaga Izabel, dirigindo-se a Victor. — Ainda acho que não é uma boa ideia deixar que ele veja seu rosto. A gente nem conhece o sujeito.
— E eu não gosto dele — acrescenta Niklas.
Woodard parece ofendido. Notei que, durante toda a reunião, a
mão de Niklas se aproxima com frequência do maço de Marlboro vermelho em cima da mesa. Fico um pouco surpreso por ele já não ter mandado um Foda-se! e acendido um, mas Niklas respeita muito seu irmão e líder, Victor Faust. Ao menos até a nicotina finalmente ganhar a batalha.
Victor fica sentado quieto, aparentemente imperturbado pela tagarelice ao redor. Mas, quando os outros percebem que devem deixá-lo falar, a mesa fica em silêncio e os olhares se voltam para ele.
— Woodard está aqui porque eu quero que ele veja meu rosto — anuncia Victor. Ele une as mãos diante do corpo. — Marion Callahan não sabe que estamos de olho nele. Usarei Woodard para passar informações que quero que Callahan tenha. Mas não é nada com que qualquer um de vocês precise se preocupar. Seattle é a nossa prioridade. Vou cuidar dessa situação com Callahan durante a ausência de vocês.
Izabel vira a cabeça de repente. — Não gosto disso, Victor —
comenta, em tom de exigência. — Mandar todos nós embora enquanto você...
— Eu já faço isso há mais tempo do que qualquer um nesta sala — interrompe Victor, mantendo a compostura impecável. — Sem querer desrespeitar você, Izabel, mas sei me cuidar sozinho.
Izabel torce o nariz. Finjo não notar. Obviamente, Victor não está contente por ela expor suas “preocupações de namorada”. Victor só pensa em trabalho quando está trabalhando. Izabel, embora saiba disso, ainda não entendeu muito bem. Talvez nunca entenda.
Relacionamentos são ridículos pra caralho.
— Ei, eu sou de confiança — exclama Woodard, ofendido. — Não tire conclusões tão...
Um barulho de algo raspando corta o ar, e Woodard quase cai da cadeira quando Izabel se debruça sobre a mesa, a calça preta justa, e enfia a ponta de um punhal na madeira diante dele. Os olhos escuros e esbugalhados do homenzinho ficam ainda maiores, e seu queixo duplo se encolhe.
— Ninguém te perguntou nada — ruge Izabel.
Ela tira o punhal da mesa e volta devagar para seu lugar.
Woodard, duro como uma estátua, só dirige os olhos para Victor.
O líder dá de ombros. — Não olhe para mim — diz ele,
despreocupado. — Se ela quiser matar você, não vou impedir. Então talvez devesse segurar a língua.
Woodard desliza pelo encosto da cadeira e tira os braços curtos da mesa, pondo as mãos no colo.
Dorian e Niklas não conseguem parar de sorrir. Eu só balanço a cabeça.
— Como eu ia dizendo — continua Victor —, vou cuidar de Callahan sozinho. Se ele é líder de uma ordem, eu é que devo eliminá-lo. Será a chance de Woodard me provar que é valioso para nós. E, se ele não conseguir, eu mesmo vou matá-lo.
Woodard engole em seco, nervoso. Aproveito a oportunidade para
aprofundar a discussão sobre nossa missão, deslizando para o meio da mesa a fotografia do homem saindo da creche.
Bato nela com o dedo. — Dizem que o cara molestou uma
menina de cinco anos. O que ele está fazendo perto de uma creche, ainda mais saindo de uma?
— Ele não foi condenado — explica Victor. Suas mãos deixam a mesa quando ele se recosta na cadeira confortavelmente. — Não conseguiram provar sua culpa.
— Me deixe adivinhar — pede Dorian, curvando-se para a frente e juntando as mãos sobre a mesa —, os pais da menina de cinco anos são os nossos clientes. É isso aí, caralho! Gostei do estilo deles. Eu faria qualquer coisa se um filho da puta ensebado tocasse em uma filha minha. — Ele faz uma pausa e acrescenta: — Bem, na verdade eu mesmo mataria o merdinha.
Niklas tira um cigarro do maço e o enfia entre os lábios, mas não o acende. Ele relaxa na cadeira, cruzando os dedos atrás da cabeça.
— E a mulher? — pergunta. — É a namorada dele — explica
Victor, então olha para mim. — E o motivo de ele estar saindo de uma creche é porque tinha acabado de deixar a filha de um ano e meio lá.
Uma série de suspiros profundos e discretos percorre a mesa.
— Não gostei disso — comenta Izabel.
Ela se recosta na cadeira e cruza as pernas, depois os braços.
— O pai e a mãe são alvos? — pergunto.
— Não — explica Victor. — Só o homem. O nome dele é Paul Fortright. O da namorada é Kelly Bennings.
— Está bem, mas por que precisa de nós quatro para cuidar disso? — indaga Dorian. — Tenho certeza de que qualquer um de nós daria conta de um cara.
— Tenho certeza disso — responde Victor —, mas também não somos a única organização que o cliente contratou para o serviço. Aquela que conseguir primeiro recebe o pagamento.
O rosto de Niklas se abre em um sorriso.
— Uma competição. O tipo de trabalho que eu gosto.
— Hã... — Dorian esfrega o queixo com a ponta do indicador, pensativo. — Então, com tanta coisa em jogo, isso significa que a gente vai ter que matar quem ficar no caminho? Incluindo agentes rivais?
— Principalmente agentes rivais — confirma Victor. — O pagamento é de vinte mil. Não é muito, mas não foi pelo dinheiro que aceitei o trabalho.
— Você aceitou por causa da organização rival — conclui Izabel. — É a oportunidade perfeita para tirar os caras das sombras.
— Exatamente.
— O que aconteceu com a ideia de recrutar membros das outras organizações? — pergunta Dorian. — A gente não precisa de mais números?
— Nós já temos números o bastante — retruco, e Victor assente, confirmando que estou no caminho certo. — E, se recrutar for a única habilidade que demonstrarmos, outras organizações rivais vão começar a nos respeitar menos. Aí só os líderes e seus braços direitos vão nos temer.
— Sim — concorda Victor. — É hora de começarmos a eliminar grupos inteiros e mandar um recado. Ano passado, depois de assumir o controle das ordens do mercado negro que temos, encontramos muita gente desleal. Gente que entrega seus líderes e toda a organização por uns poucos milhares de dólares. Quero que os futuros recrutas desejem trabalhar com a gente, não pelo que vão faturar, e não só por lealdade, mas porque sabem que somos os mais perigosos e os mais intolerantes.
Todas as cabeças ao redor da mesa, inclusive a de Woodard, assentem em concordância.
Victor se levanta e endireita o paletó. — Há uma preferência no método de execução — anuncia —, embora o nosso seja diferente dos métodos dos rivais. É como os clientes vão saber quem chegou primeiro. — Ele coloca a cadeira no lugar e fica atrás dela. — Um único tiro
na nuca — acrescenta. — Bem, então eu estou fora —
comenta Izabel, decepcionada. — Adoraria matar um molestador de crianças.
— Sinto muito, Izzy — provoca Niklas, sabendo que ela detesta o apelido —, mas você não é a melhor atiradora da Távola Redonda.
— Cala a porra da boca, Niklas — revida ela. — Sempre posso praticar em você.
Niklas dá um sorrisinho e enfia o cigarro apagado entre os lábios mais uma vez.
Victor fecha os olhos por um momento, parecendo ter sido acometido por uma leve dor de cabeça.
Então olha para mim.
— A oferta está de pé. Você pode ser avisado, caso seja necessário. Talvez eles não tenham problemas em encontrar Paul Fortright sem a namorada. Ela é só um plano B, que provavelmente não será utilizado.
Eu balanço a cabeça.
— Eu vou, só por segurança — respondo, e também fico de pé. — Além disso, vou me sentir melhor se já estiver lá caso precisem de mim. Ainda mais considerando que temos concorrentes.
Victor assente, aceitando minha decisão e provavelmente concordando. Acho um tanto estranho ele deixar que eu decida sobre isso quando há tanta coisa em jogo. Isso não condiz com Victor Faust. Embora ele não seja um líder egoísta e tirânico e sempre leve nosso bem-estar em consideração, não é de seu feitio me permitir tanta liberdade em uma missão como esta.
— Todas as informações de que vocês precisam — explica Victor, olhando para um de cada vez — estão no envelope. Mantenham-me informado de todos os acontecimentos. Vejo vocês em, no máximo, três dias.
Todos os outros se levantam, menos Woodard, que não sabe ao certo o que fazer. Seus olhos passam por nós, tentando entender o que cada um espera dele, e finalmente o homenzinho nos imita.
— James Woodard — chama Victor, virando a cabeça de leve —, venha comigo.
Woodard engole em seco, nervoso, e tropeça na cadeira ao se afastar da mesa. Esse cara vai ter que criar colhões logo, se quiser sobreviver entre nós, mesmo que só esteja destinado a ficar sentado atrás de um monitor e ser nossos olhos e ouvidos na rede de informações.
Quando dá meio-dia, estou em um avião rumo a Seattle, e, embora geralmente não consiga pensar em nada além da expectativa de um possível interrogatório, Cassia é a única coisa em
minha mente.
CAPÍTULO ONZE Cassia
Greta vem buscar os pratos vazios do jantar e os coloca no primeiro degrau da escada de concreto. Ela é uma cozinheira maravilhosa. Uma pessoa maravilhosa, que só me tratou com bondade desde que Fredrik nos apresentou. Acho que ela se preocupa comigo até mais do que eu mesma.
— Quer sobremesa? — pergunta ela. — Tem uma tigela de salada de frutas lá em cima, na geladeira. Fiz como você gosta, com mel e coco.
Eu me viro de lado na cama, com as mãos entre os joelhos, o travesseiro macio de espuma esmagado contra a bochecha. A corrente do meu tornozelo desce pelo lado da cama.
Eu sorrio para Greta.
— Não, obrigada.
Ela se aproxima de mim com aquele olhar maternal que sempre tem quando está tentando fazer com que eu me abra com ela. A cama se move de leve quando ela se senta ao meu lado. Greta puxa do pé da cama minha colcha preferida, de tapeçaria azul e branca, e a joga sobre minhas pernas nuas. Então me dá uns tapinhas no quadril.
— Eu não contei para o Fredrik — digo, quase em um sussurro.
— Não contou o quê? — Sua voz é suave e gentil.
Mantendo o olhar à frente, deixo que a lembrança passe diante de meus olhos, antes de finalmente contar para Greta.
— Que eu lembro que adorava Connie Francis — digo, e de repente meu rosto se abre em um sorriso terno, que cresce à medida que imagino os pedaços da minha antiga vida. Eu rio sem emitir som. — E minha amiga que morava do outro lado do corredor... acho que o nome dela era Lanie... ela achava engraçado eu ficar ouvindo essas músicas antigas. — Posiciono a cabeça para conseguir ver Greta, ao meu lado. Um sorriso radiante formou rugas profundas ao redor de sua boca e fez pés-de-galinha despontarem nos cantos dos olhos.
Ela dá mais um tapinha em meu quadril.
— Eu adoro Connie Francis — comenta, sorrindo de orelha a orelha. — É uma das minhas favoritas. Lembra o que fez você começar a ouvi-la?
Olho para a frente, sem focar em nada, mais uma vez.
— Não, não me lembro de tanta coisa assim. Mas não consigo deixar de pensar que é mais do que isso. Talvez eu não ouvisse apenas a música, mas... — fico envergonhada com a ideia — talvez eu cantasse em algum lugar. Não sei. É ridículo, tenho certeza.
— Ei, talvez não — retruca Greta. — Não vejo nenhum motivo para isso não ser verdade. Com certeza você sabe cantar.
— Por que acha isso? — pergunto, dando um sorriso incrédulo.
Greta dá de ombros.
— Ah, não sei. Só intuição, acho. Você podia cantar uma das músicas dela para mim, algum dia.
— Ah, não, eu não conseguiria — respondo, e sinto as bochechas ficando vermelhas.
Ouço o aquecimento central entrando em funcionamento durante o silêncio repentino entre nós, o ar quente saindo das duas aberturas no teto.
— Por que você não conta para ele? — pergunta ela, em voz baixa.
O sorriso desaparece de meu rosto, e olho para a frente, pensando apenas em Fredrik.
— Porque eu queria que ele me contasse mais sobre a vida dele. E ele contou. Mas não foi o suficiente. — Faço uma pausa e suspiro
profundamente. — Queria que ele me contasse sobre Seraphina. Qualquer coisa sobre ela. Acho que ele me deve isso.
— Você pediu de novo? Balançando a cabeça, respondo: — Não. Aliás, até falei para ele que
não quero mais saber dela. Acho que eu esperava que ele mudasse de ideia se eu... Foi idiotice minha. Só não entendo a... a obsessão por aquela mulher. E nem
gosto disso.
— Cassia? — A voz de Greta é delicada e maternal. — Não é minha intenção questionar seu coração, mas por que você gosta tanto dele? Um homem que arrancou você da sua vida, que a mantém acorrentada em um porão. Acho difícil entender a sua cabeça. — Ela põe a mão em meu quadril de novo, mas desta vez não a tira. — Eu sei como funciona a síndrome de Estocolmo. E, por muito tempo, achei que você fosse um caso clássico, mas...
Sinto o olhar dela em mim e a encaro de volta. Greta se cala, então me sento e olho bem para ela, com uma sensação de impaciência no fundo do estômago.
Mais um momento de silêncio. — Mas Fredrik me contratou apenas
uma semana depois de ter trazido você para cá — continua ela, enfim —, e você já não tinha medo dele, Cassia. Mesmo nos casos de síndrome de Estocolmo, em geral ainda há muito medo logo depois de um sequestro. Você não demonstrava medo nenhum. Pelo menos, não de Fredrik.
— Como assim? — Olho para ela, curiosa e determinada. — Eu tinha medo de você?
Ela assente.
— No início, sim. Cassia, você estava muito traumatizada quando nos conhecemos. Falava durante o sono. Mencionava o nome de Seraphina. — Ela desvia o olhar, e tenho a sensação de que está decidindo se deve ou não prosseguir, como se já tivesse falado demais.
— O que é, Greta? O que você está escondendo?
Os ombros magros sobem e descem sob a blusa de abotoar fina e cor-de-rosa. As mãos envelhecidas se agitam no colo, inquietas.
— Não conte para o Fredrik que eu disse essas coisas. Porque eu nunca contei nada disso para ele.
Faço que sim, os olhos arregalados de expectativa, o coração pulsando nas pontas dos dedos enquanto aguardo ansiosamente as palavras dela.
— Acho que você era muito íntima de Seraphina — explica ela, e aquilo retorce meu estômago. — Não sei quão íntima, mas você a conhece, e muito bem. E morre de medo dela. Acho que é por isso que não tem medo de Fredrik, nem de ficar aprisionada aqui. — Enquanto suas palavras, que no meu âmago sinto serem verdadeiras, se encaixam em minha mente, como as peças faltantes de um quebra-cabeças, ela pergunta: — Cassia, você não quer sair daqui, não é mesmo?
Sem pensar, balanço a cabeça, minha mente ainda tentando aceitar tudo que ela está dizendo.
— Não — admito. — Tenho medo de sair. Me sinto segura aqui. Não sei por quê, mas me sinto.
Greta assente e afaga as costas do meu pé descalço em cima da cama.
— Mas por que ele não ia querer que eu soubesse dessas coisas?
— Não tenho certeza — responde ela, com a voz distante —, mas acho que, de certa forma... ele na verdade não quer que você lembre. Fredrik tem alguma coisa que precisa acertar com Seraphina. Sei disso. Já vi aquele olhar em um homem. Nada vai impedir que ele encontre aquela mulher e resolva seja lá o que precise ser resolvido. Mas... Fredrik também tem outro olhar que já vi antes.
Ela para.
— Que olhar, Greta? — Eu me aproximo dela, ansiosa para que a mulher me conte. Toco a mão dela. — Me conte. Que olhar?
Seus olhos azuis e enrugados parecem em conflito, como se ela mesma não tivesse muita certeza.
— O olhar de um homem que sabe que vai ter que abrir mão de alguma coisa da qual não quer renunciar, em troca de outra.
— Não entendi.
E não entendo mesmo. Por um momento fugaz, acho que talvez ela queira dizer que Fredrik está se apaixonando por mim e que ele sabe que me perderá quando encontrar Seraphina, porque ela é o amor da vida dele. Mas logo percebo que estou enganada, pois algo sombrio e triste surge nos olhos dela e se aloja lá, me fazendo acreditar que a verdade é muito mais terrível.
— Não tenho certeza, mas acho que talvez seja por isso que ele não quer que você lembre — continua ela. — Como se no início você fosse só um meio para um fim e agora as coisas estivessem diferentes. Muito diferentes.
Ela dá um sorriso forçado e se levanta.
— Sinceramente, Cassia, não sei. Só sei que não gosto de ver você presa aqui embaixo. Mas nunca vi Fredrik te machucar. Para mim, é bem evidente que ele a está protegendo. Ele sabe do que Seraphina é capaz e, se não a mantiver aqui, você pode acabar morrendo. Mas, ao mesmo tempo, ele precisa de você para encontrá-la. Está protegendo você, mas também a usando.
Minhas mãos estavam tremendo um pouco, e só agora percebo. Cruzo as pernas em cima da cama, evitando machucar meu tornozelo preso à corrente, e junto as mãos no colo para me equilibrar.
— Ela tentou me matar na noite em que Fredrik me encontrou no abrigo — digo, com a voz distante. — Meu coração diz que foi ela quem pôs fogo no prédio. Mas escapei descendo pela escada de incêndio. Eu me lembro vagamente de cair de uma pequena altura e bater a cabeça. Me lembro de vê-la. Ela até falou comigo. Mas não pôde me matar ali, porque eu estava na rua. — Passo as mãos pelo topo da cabeça, me sentindo mentalmente exausta com isso tudo.
Paro.
— Odeio pensar nessas coisas. Greta muda a atmosfera do quarto
com seu sorriso largo de sempre e um brilho de entusiasmo no olhar.
— Tenho uma ideia — diz, erguendo um dedo ossudo. Ela me deixa sentada na cama e atravessa o quarto até a escada. — Já volto — anuncia, antes de subir.
Alguns minutos depois, o aparelho de TV gigante na parede em frente ganha vida. Sinto o sorriso sumir do rosto em um instante, e um punho imaginário se fecha ao redor de meu estômago. Prendo a respiração, minhas mãos começam a tremer, e tudo que quero é me encolher em meu canto favorito. Isso acontece sempre que aquela TV é ligada, por causa das coisas que Fredrik às vezes me obriga a assistir. Mas, relutante, meu corpo começa a se acalmar, e, em vez de procurar o canto, eu me levanto e me aproximo da TV, a corrente do tornozelo se agitando ruidosamente atrás de mim.
A tela congela no que parece ser uma página da internet. Alguns segundos depois, a luz do corredor do andar de cima ilumina os degraus quando Greta abre a porta e desce. Ela está trazendo algum tipo de aparelho eletrônico plano na palma da mão, com uma tela brilhante que ilumina as cores e as rugas de seu rosto em meio à escuridão da escada, agora que a porta está fechada.
— Fredrik usa este negócio às vezes — explica, olhando para a tela, um pouco insegura quanto à própria capacidade de usá-la adequadamente. — Ele me disse para não mexer nisso nunca, então fica só entre nós, certo?
Levo a mão à boca, unindo o polegar e o indicador, fazendo um movimento de fechar um zíper sobre os lábios.
— Nem uma palavra — digo, com um sorriso.
Greta mexe o dedo sobre o aparelho, e a tela da TV muda. Ela digita “Connie Francis” na barra de busca do YouTube, e uma série de vídeos aparece. Na mesma hora, entendo a intenção de Greta e, em vez de ficar nervosa, sinto o peito formigar com uma empolgação que se espalha por todos os membros, como uma onda de calor.
Eu quase grito de prazer quando ela clica em “Fallin’”, e não faço ideia do porquê.
O sorriso de Greta se alarga quando ela olha para mim.
— Não aceito não como resposta — declara, e sei exatamente o que ela quer que eu faça. — Vamos nos divertir um pouco, para variar — acrescenta, deixando o aparelho no primeiro degrau da escada, logo depois de apertar “play”.
E, como se eu tivesse cantado essa música inúmeras vezes, assim que começa a tocar nos alto-falantes do teto, meu corpo e minha mente mergulham nela sem hesitação.
Fredri k
A música alta começa a ecoar do bolso de minha calça, e todos os olhos, inclusive os de Kelly Bennings, que capturamos há menos de uma hora, se viram para mim.
Dorian me olha com curiosidade, a sobrancelha erguida.
— Sério? — zomba ele. — Esse é o toque do seu celular? — Todos dão risadas.
Um nó se aloja em minha garganta. Não é o toque do celular, mas não posso contar isso a nenhum dos presentes. E só consigo pensar em que merda está acontecendo em minha casa em Baltimore, e como foi que comecei um interrogatório sem botar o celular no modo silencioso.
Izabel, tentando se manter séria mas fracassando completamente, se aproxima de mim e olha de relance para meu bolso.
Ela abre um sorriso e aperta os lábios.
— Sabia que você era um homem de classe, Fredrik, mas não que tinha tanta classe assim.
Fico feliz por Niklas não estar no galpão para se juntar ao falatório.
Dorian cai na gargalhada, enquanto a música, além da voz marcante de Cassia acompanhando-a, sai do meu bolso como a luz de um farol, alertando todos sobre o meu segredo macabro e sobre onde exatamente encontrá-lo.
— É melhor você atender, cara! — exclama Dorian. — Pode ser seu namorado.
Quero mesmo torturar esse cara. Só para me divertir.
— Caralho, o que está acontecendo? — indaga Kelly, na cadeira de madeira à qual a amarramos pelos pulsos e tornozelos, momentos atrás. — Quem são vocês, porra?! — berra ela. — Respondam!
Todos a ignoram, como temos feito desde que a sequestramos, no estacionamento de uma mercearia, enfiando-a no porta-malas do carro alugado.
Sinto a mão de Izabel em meu braço e a encaro. Ela não está mais sorrindo, talvez porque, mesmo depois das piadinhas, não dei qualquer indicação de que achava isso digno de risadas. Ela inclina a cabeça de leve e me olha com ar preocupado.
— Por que você não faz uma pausa? — sugere, indicando a porta de saída. — Atenda essa chamada e resolva o que precisa resolver. Isto pode esperar mais um pouco.
Na verdade, não pode, mas vai ter que esperar.
— Isso! — grita Kelly. — Demore o tempo que quiser, meu bem! Pode levar a noite toda!
Ela claramente quer adiar o que vai acontecer pelo maior tempo possível.
Dorian sai de trás da cadeira e se aproxima de mim e Izabel.
— Você está bem? — pergunta, finalmente percebendo que não estou no clima para suas gracinhas.
Eu não respondo, sobretudo porque as palavras dele e de Izabel parecem abafadas no fundo da minha mente, e a única coisa que consigo ouvir com clareza é a voz de Cassia.
Izabel me encara de novo, e, em um movimento hesitante, sua mão deixa meu braço.
— Volto daqui a alguns minutos — digo, enfiando a mão trêmula no bolso e pegando o celular.
Izabel assente. Eu me viro e atravesso o galpão gelado até uma porta lateral, fechando-a bem depois de sair.
Não consigo tirar o telefone do bolso rápido o suficiente e me atrapalho, quase o deixando cair. Está gelado ali fora, e as mangas da minha camisa social ainda estão arregaçadas até os cotovelos, pois estava me preparando para interrogar Kelly sobre o paradeiro de seu namorado, Paul Fortright.
Olhando para a tela, começo a ver as imagens ao vivo da câmera que Greta deve ter acionado acidentalmente em meu iPad.
De repente, não sinto mais frio, nem noto que estou ao relento com a temperatura abaixo de zero. Esqueço que estou a mais de mil quilômetros de casa e que tenho um interrogatório importante e urgente para fazer do outro lado daquelas altas paredes de metal. Não me importo com mais nada além do que estou vendo.
Ela deve ter lembrado... deve ter lembrado alguma coisa.
Com o coração na garganta, olho para pequena tela na palma da mão, me concentrando tanto que nem me lembro de piscar. Acho que parei de respirar.
Cassia dança no meio do quarto, cantando palavra por palavra, no tom certo. Se eu não a conhecesse, acharia que é Connie Francis.
Engulo em seco e fico olhando a tela até meus olhos doerem.
CAPÍTULO DOZE Cassia
Eu danço ao redor de Greta, mexendo os quadris ao ritmo da música, batendo palmas enquanto canto a letra como se eu mesma a tivesse escrito. Tudo é tão natural, tão... familiar. Mas estou me divertindo demais para me preocupar com isso.
Greta também não dança tão mal no ritmo dos anos 1950 e me acompanha com facilidade. Começamos a bater palmas com a música nos momentos certos, e é como se estivéssemos em um pequeno palco... em um bar chique e escondido em uma cidade grande, um lugar que só serve os vinhos mais finos... estou usando um vestido preto colado que envolve meu corpo até os tornozelos... sapatos pretos de saltos bem altos... perfume... charutos... o som de gelo tilintando no fundo de copos de uísque, espelhos altos cobrindo as paredes à esquerda e à direita, velas ardendo em candelabros esféricos cor de âmbar no centro de cada mesa da plateia, o piano preto e reluzente no palco à esquerda... a mulher de cabelo preto, brilhante e curtinho no palco ao meu lado, à minha direita...
A lembrança some de minha mente quando a voz de Greta ecoa por cima da música.
— Sua voz é linda, Cassia! — exclama ela quando a canção segue para os acordes finais.
Estou extasiada. Absolutamente extasiada. A tal ponto que não consigo parar de sorrir, e meu rosto parece ter enrijecido na mesma posição, com um sorriso enorme.
Quando a música termina aponto para o aparelho no degrau, ainda inebriada pelo momento, e digo:
— Duffy. “Mercy”. Procura essa! Greta faz exatamente isso, e, depois
que canto mais essa como se já tivesse cantado mil vezes, encontra todas as outras canções que peço que procure, até que finalmente voltamos para “Fallin”, de Connie Francis, porque é minha favorita. Canto e danço até ficar com a garganta seca e sem fôlego, incapaz de emitir qualquer outra nota.
Desabo na enorme cama com os braços esticados para os lados, como se estivesse voando, e olho para o teto ainda com um sorriso no rosto, tentando recuperar o fôlego. Meu coração bate tão forte que o sinto latejando em cada veia, até nas pontas dos dedos das mãos e dos pés.
Quase nada no mundo poderia tirar esse momento de mim.
Mas essa lembrança... não consigo tirá-la da cabeça. E, quanto mais penso nela, mais começo a entender, e mais escura se torna a luz em meus olhos. Sem pensar, esfrego os cantos dos olhos quando as lágrimas começam a arder na superfície.
— Cassia — chama Greta, baixinho, ao meu lado. — Algum problema?
Viro a cabeça para o lado e forço um sorriso, enxugando as lágrimas que conseguiram escapar.
— Não, Greta, estou bem. Está tudo bem.
Fungo e sorrio para ela com um pouco mais de convicção.
Eu me pergunto se ela acredita nisso ou se consegue ver a dor que toma conta de mim.
Fredri k
— Tá de sacanagem — comenta Niklas, se aproximando. — Interrompeu um interrogatório para usar o celular? — Ele balança a cabeça; a fumaça do cigarro, misturada com o ar frio, sai em grandes baforadas de seus lábios. A brasa quente do cigarro arde entre seus dedos. — Só podia ser ligação do Victor, né?
Passando o dedo na tela, desligo a transmissão ao vivo e ponho o telefone no modo silencioso antes de enfiá-lo outra vez no bolso da calça.
Balanço a cabeça.
— Não, não era Victor. Foi algo inesperado.
Que desculpa mais esfarrapada. Sei que Niklas tem razão. E concordo com ele.
O homem fica me olhando por um momento constrangedor, depois olha para trás.
— Não é melhor voltar para a vadia desbocada lá na cadeira?
— É — concordo, assentindo e seguindo-o.
— Dorian — chama Niklas, quando nos aproximamos —, é sua vez! Está um frio da porra lá fora. — A voz dele ecoa pelo galpão vazio.
Mais cedo, Niklas, Dorian e Izabel concordaram em revezar montando guarda do lado de fora do prédio, dependendo da duração do
interrogatório.
Dorian dá de ombros, fechando até o pescoço o zíper da jaqueta preta. Ele passa por mim e diz:
— Espero que você tenha acertado tudo. — E completa a frase com um tapinha no ombro, mas sua preocupação é temperada pelo típico tom zombador. Então olha para Niklas. — Prefiro mesmo ficar montando guarda lá fora. — Ele se volta para Kelly, amarrada na cadeira, uma expressão de ódio e desafio distorcendo os traços já pouco atraentes. — Estou meio cansado dessa vadia me comendo com os olhos. Porra, acho que preciso de um banho. — Ele estremece. As sombras do prédio o engolem quando ele passa por uma parte de pé-direito mais baixo e segue para fora.
Sem perder mais tempo, vou até Kelly Bennings, disposto a acabar com isso o mais rápido possível. Antes, queria ficar longe de Cassia, mas as coisas mudaram. Uma mudança significativa.
Só espero conseguir desempenhar minhas funções durante o interrogatório, porque já me sinto fora do eixo e muito desconcentrado.
— Não sei que caralho vocês estão fazendo — protesta Kelly, quando me aproximo —, mas não era para isso acontecer! — Ela contrai os braços e pernas nas cordas que a amarram à cadeira e sacode o corpo com violência. As pernas da cadeira saltam no chão de cimento. Seu cabelo desgrenhado, cor de água suja, cai ao redor do maxilar proeminente e cobre os ombros.
Puxo outra cadeira e a coloco na frente dela.
— Você está aqui para me dar informações — explico, muito calmo, enquanto me sento e cruzo as pernas. — Se cooperar, desde que diga a verdade, ninguém vai machucar você.
Por um breve momento, a mulher parece confusa, os olhos esbugalhados passando pelo grupo, mas, quando seu olhar para em mim de novo, entre tantas reações possíveis, ela sorri.
Acho isso muito interessante. Kelly não tem medo de nós.
— E que porra você quer saber? — pergunta ela, com um sorriso cada vez maior esticando os lábios finos e sem batom.
— O atual paradeiro do seu namorado, Paul Fortright.
Seu rosto murcha.
— Por quê? O que vocês querem com — Isso não vem ao caso — respondo. — E não é você quem faz
perguntas.
— M-mas e-eu não... não quero que vocês o machuquem — gagueja a mulher, os olhos passando por Niklas, Izabel e eu. — Só preciso saber do que se trata.
Não tenho tempo para isso. Salto da cadeira, puxo o punhal da
bainha da coxa de Izabel e, rápido como um raio, finco a lâmina nas costas da mão de Kelly. Seus gritos de congelar o sangue enchem o galpão, se espalhando das paredes até o teto, como um espírito agonizante.
— Fredrik! — grita Niklas. — Que porra é essa?!
Sinto os olhos arregalados de Izabel me fitando, mas ela ainda não sabe o que dizer.
Volto a me sentar na cadeira, tão despreocupadamente quanto antes, mas dessa vez me inclino para a frente com as pernas abertas, unindo as mãos entre elas.
— Onde está Paul Fortright? — Inclino a cabeça para o lado.
Lágrimas escorrem pelas bochechas vermelhas de Kelly, mas não são lágrimas de dor, e sim de raiva.
Se ela pudesse me matar, faria isso com um sorriso no rosto.
— Ele está na casa do amigo dele, caralho! — A mulher cospe as palavras com ira. — Vendo MMA na porra do pay-per-view!
Eu me viro para Izabel por um momento: ela está me encarando com choque e confusão estampados nos olhos verdes brilhantes.
Niklas não diz mais nada, embora dê para perceber, pela energia que irradia dele, que vai falar. É só questão de tempo.
— E onde está a sua filha? — pergunto a Kelly.
— Minha filha? — Um brilho de medo real cruza seu rosto. — P-p-por que você quer saber da minha filha?
— Ninguém vai machucar a menina — garanto. — Mas se você responder mais uma pergunta com outra pergunta, vou enfiar o outro punhal de Izabel — olho para a mão intacta de Kelly — na sua outra mão.
— Ela está com ele! Mas, por favor, não a machuque! Por favor! Não era para isso acontecer! — Ela começa a chorar. — POR QUE ISSO ESTÁ ACONTECENDO?!
Eu me levanto de novo, e Izabel segura intuitivamente o punhal na bainha da outra coxa, fechando a mão sobre o cabo.
— O que você está fazendo, Gustavsson? — pergunta Niklas. — Ficou louco, caralho?
— É, fala sério, Fredrik — concorda Izabel, ainda segurando o punhal, como se temesse que eu o pegasse.
— Venham comigo — digo, muito calmo, e não lhes dou oportunidade de perguntar o porquê, indo para a saída lateral.
— FILHO DA PUTA DO CARALHO! — grita Kelly, atrás de mim.
Saímos para o ar frio e nos juntamos a Dorian, que está de pé, recostado na parede de aço do prédio. Ele se afasta da construção e se endireita ao nos ver, instantaneamente alerta.
— O que está acontecendo? — pergunta Dorian.
— É o que eu quero saber — retruca Niklas.
Izabel fica bem na minha frente, me encarando com uma necessidade desesperada de respostas.
— Isso não é do seu feitio, Fredrik — comenta. — Você nem deu chance de ela contar alguma coisa.
— O que ele fez? — interrompe Dorian, então me olha de frente, quase tão desesperado por respostas quanto Izabel. — O que você fez, cara? Puta merda, você já matou a vagabunda?
— Não — intervém Niklas, cruzando os braços para se aquecer —, mas estou começando a me perguntar se é boa ideia deixar que ele volte lá, porque é bem capaz de isso acontecer. — Ele me olha com frieza. — Ela não é o alvo.
— Mas ela está por dentro — respondo, e o silêncio nos envolve durante um momento intenso. Todos me olham, esperando respostas, e eu continuo: — Notei alguma coisa estranha assim que a amarramos na cadeira. Ela não tem medo de nós.
— Ela parece mesmo ter uma postura meio desafiadora — comenta Izabel.
— E também não se esforçou muito para parecer preocupada com o namorado quando perguntei do paradeiro dele. Porque estava fingindo.
— E o entregou fácil demais — completa Izabel.
Faço que sim.
— Ele enfiou um punhal na mão dela — retruca Niklas. — Eu diria que é um jeito fácil de fazer alguém falar.
— E funcionou, não foi? — saliento. Niklas pensa por um momento e dá
de ombros.
— É, não dá para contestar isso. Mas, porra, Izabel tem razão: você está diferente hoje.
Diferente é pouco. É a primeira vez nos meus trinta e cinco anos de vida que estou preocupado demais com outras coisas para conseguir fazer um interrogatório, e não tenho nem vontade começar a tortura. Isso é muito incomum.
— Tudo bem — continua Niklas —, o que você tem em mente? A gente precisa fazer alguma coisa além de ficar aqui fora e tentar entender os mistérios da vida. Vamos voltar lá para dentro e descobrir onde mora esse amigo de Paul Fortright, para podermos encontrá-lo antes da outra organização e concluir essa missão.
— Você ouviu o que eu disse? — Começo a gesticular. — Ela está por dentro. Não parava de repetir “Não era para isso acontecer”, porque sabia que a gente estava armando uma emboscada para o namorado.
— Porra, ele tem razão — diz Izabel, arregalando os olhos e abrindo a boca. Ela se vira para Niklas. — O cliente é o pai da menina de quem Paul Fortright supostamente abusou. Eu vi o arquivo. Ele é pai solteiro. A esposa morreu ano passado em um acidente de carro.
— E daí? — retruca Niklas, ficando mais impaciente. — Nada disso importa.
— Importa se Paul Fortright for inocente e se esse cliente de alguma forma estiver trabalhando com Kelly Bennings para eliminá-lo. Pensem nisso. Fortright nunca foi condenado por molestar crianças, e agora sua cabeça tem um preço. Em qualquer outro momento, eu acharia isso normal, mandar matar o cara culpado que se safou por um erro judicial. Mas, neste caso, tenho certeza de que é mais do que isso.
— Ele tem razão — reforça Izabel, procurando a anuência de Niklas, hierarquicamente acima de todos nós. — Aquela mulher tem jeito de ser muito pior do que qualquer um aqui.
Niklas balança a cabeça e suspira, aborrecido.
— A gente veio aqui para fazer um trabalho. Não para brincar de detetive ou de super-herói.
Ele abre caminho entre Izabel e eu e se encaminha para a porta.
— A gente não é uma ordem do mercado negro, Niklas — grito para ele. — Mas, se matarmos Paul Fortright e ele for inocente, um que o culpado mandou matar só para tirar o cara do caminho, passaremos a ser.
— Ele tem razão, Niklas — concorda Izabel, baixinho, atrás dele. — E eu não quero isso na minha consciência.
Niklas para diante da porta alta e prateada antes de abri-la. Seus ombros sobem e descem, e o hálito condensado sai de sua boca quando ele se vira.
Ele enfia a mão no bolso da jaqueta e pega o celular.
— Dorian — ordena Niklas —, volte lá para dentro e fique com Bennings por enquanto. Vigie aquela escrota para ela não dar um jeito de escapar. E não deixe que ela saiba o que a gente discutiu.
— Por mim está ótimo. Dorian, que provavelmente só queria
se proteger do frio, volta para o interior do prédio sem discutir.
Niklas conversa com Victor por vários minutos, explicando tudo o que aconteceu. E, quando desliga o telefone, só de ouvir o que ele disse de um lado da conversa já é possível perceber que a missão mudou drasticamente. Desde o início, o dinheiro não era o mais importante. O pagamento que a missão oferecia era uma gota no oceano, comparado com o que Victor costuma aceitar.
Niklas guarda o celular no bolso. — Vamos usar Paul Fortright como
isca para outra organização e acabar com eles.
— E Fortright? — pergunta Izabel. — Isso sem falar daquela vaca lá dentro e da filha deles.
— Por enquanto, a gente continua com o jogo — responde Niklas, acendendo outro cigarro. — Vamos conseguir o endereço da casa e deixá-la acreditar que vamos matar Paul e trazer a filha dela de volta. — Ele para e olha para nós dois, determinado. — Mas não vamos interferir na porra do drama deles. Victor quer que a gente elimine os outros agentes, deixando Fortright vivo por enquanto, e só. Cacete, a gente nem confirmou essa história toda. Você dois podem estar viajando.
— Não gosto desse seu tom — retruca Izabel.
— Claro que não gosta, Izzy — responde ele, com um sorrisinho, dando um longo trago no cigarro, fazendo a brasa alaranjada arder diante do rosto. — Mas estou pouco me fodendo.
Izabel cerra os dentes. Se um olhar pudesse matar, a essa altura Niklas estaria deitado em uma poça de sangue.
De repente, meu telefone vibra contra perna, e sinto meu coração parar no meio da garganta. Meu primeiro pensamento é de que é Greta me ligando para falar de Cassia, mas, quando olho para a tela, fico surpreso ao ver que não é isso.
— É Victor — digo, embora mais para mim mesmo.
Atendo depressa; Niklas e Izabel ficam ouvindo, tão curiosos quanto eu.
— Quero dispensar você da missão — anuncia Victor ao telefone. — Volte para Baltimore, e a gente conversa daqui a uma semana.
Confuso e um pouco preocupado quanto aos motivos, levo um momento para pensar no que dizer.
— Eu dou conta disso. Eu sei que fui precipitado ao apunhalar a mão de Bennings, mas consegui o resultado que queria.
— É isso que me preocupa — retruca Victor. — Você está diferente. Já estava diferente na reunião de ontem, e não podemos nos dar ao luxo de cometer erros. Tire essa folga e limpe a mente. Não é uma sugestão.
Dou um suspiro profundo e acabo cedendo. Por mais que queira ficar aqui e terminar o que comecei, o que mais quero é voltar para Cassia e descobrir o que ela lembrou.
— Está bem. Vou voltar agora. Duas horas e meia depois, meu voo
finalmente está pronto para decolar de Seattle.
Passo todo o tempo no avião assistindo ao vídeo de Cassia cantando no porão, várias e várias vezes. Uso fones de ouvido para não perturbar as pessoas ao redor.
Cassia sabe de alguma coisa. Ela lembra. Tem que lembrar. Sinto o gosto de Seraphina em minha boca, de tão perto que ela está. Finalmente, depois de seis anos de busca incansável, estarei com ela de novo.
CAPÍTULO TREZE Fredrik
Não durmo há quase vinte e quatro horas, mas estou completamente alerta quando chego à minha casa em Baltimore, pouco depois das dez da manhã do dia seguinte. O velho Honda Civic bege de Greta está estacionado na frente. Eu paro ao lado e desligo o motor.
Estou muito nervoso, uma sensação tão esquisita que de início nem sei o que fazer.
Carregando a mala de couro preto avanço pelo caminho de tijolos vermelhos e não vejo a hora de chegar à porta. Está trancada, e, enquanto me atrapalho procurando a chave certa, espero que Greta abra para mim, como ela faz quando sabe que estou voltando. Mas, desta vez, me dou conta de que ela não sabe que voltei mais cedo.
Finalmente consigo abrir a porta, e entro sem fazer barulho.
A casa cheira a ovos, biscoitos e salsichas. Está imaculada, como sempre, sem um grão de poeira em lugar algum, apenas o aroma do café no ar. Deposito a mala no chão da sala de estar sem barulho, querendo evitar que elas percebam minha chegada. Vou para a cozinha, contornando o pedaço do assoalho que sempre estala quando piso, e me aproximo do balcão. Meu iPad está exatamente onde o deixei antes de partir para Seattle, na mesma posição horizontal, como se Greta tivesse tomado o cuidado de recolocá-lo na posição exata, torcendo para que eu não notasse. Ativo a tela e passo o dedo no aplicativo, acessando o vídeo ao vivo do porão.
Elas estão sentadas na cama de Cassia, conversando. Parece inofensivo. Aumento o volume só um pouco e fico ouvindo a conversa por vários minutos. Nada significativo. Greta está contando sobre a filha e sobre a viagem que fizeram para Monte Carlo, no ano passado. Cassia está com um sorriso tão bonito e inocente... e isso me afeta da pior maneira possível. Controlo a dor e o remorso que sinto por mantê-la aprisionada por tanto tempo, por impedir que ela viva e veja o mundo, como sei que deve sonhar em fazer. Esse brilho em seus olhos castanhos enquanto ouve Greta falar de Monte Carlo é inconfundível. Ela está se imaginando lá. E, em vez de remoer a verdade da própria situação, apenas sorri e aceita.
Eu sou um grande filho da puta. Apoio as mãos no balcão, baixo a
cabeça, os ombros rígidos, e solto um suspiro longo e arrasado, fechando os olhos de leve.
Mas, quando os abro de novo, noto uma coisa que me faz endireitar o corpo. Meus olhos ficam arregalados de pânico. Assim que consigo me livrar do entorpecimento paralisador, corro pela passagem até a porta do porão, escancarando-a, e desço os degraus de concreto de dois em dois, até chegar lá embaixo.
Greta e Cassia se sobressaltam ao me ver. Cassia se aperta contra a parede do outro lado da cama.
Eu marcho até ela e a tomo nos braços.
— Por que você tirou?! — grito para Greta, a reprovação estampada em minha voz e meu rosto.
Greta fica de pé enquanto Cassia aperta a cabeça com força contra meu peito. Eu a seguro com um braço ao redor da cintura e o outro na altura dos joelhos.
Olho depressa para seu tornozelo, onde o grilhão deveria estar, depois para Greta, que parece que a qualquer momento vai passar dessa para melhor.
— Por favor, Fredrik — pede Cassia, chorando —, não bote a culpa em Greta. Eu que implorei para ela tirar. Estava machucando.
Ela põe a mão na lateral do meu pescoço para se segurar. Quase derreto com o toque.
Ignoro a sensação e ponho Cassia de volta na cama.
— Traga a corrente — ordeno a Greta.
A empregada, com medo de falar, corre para pegar a corrente. Agachando-me no chão diante de Cassia, levanto a fina camisola amarela, descobrindo as pernas macias, roçando a pele com as pontas dos dedos, e ela reage ao meu
toque ficando arrepiada. — Eu sinto muito, sr. Gustavsson. —
Greta me entrega o grilhão. — Eu não iria deixá-la escapar. Mas fiquei preocupada com o tornozelo. Limpei as feridas, como o senhor sempre me pede para fazer.
— Eu falei para você nunca tirar isso. Nunca. — Com as mãos nas coxas quentes de Cassia, viro a cabeça devagar, indignado, e olho para Greta, de pé à minha direita. — Se ela não gostasse tanto de você... — Cerro os dentes e desvio o olhar.
Tentando me acalmar, dirijo a atenção a Cassia outra vez, deslizando a mão por sua perna até chegar ao tornozelo. Então paro e solto o grilhão no chão, em vez de recolocá-lo. Com um suspiro profundo, olho para meus sapatos, me sentindo ainda mais culpado que quando a estava vendo pelo vídeo. Olho outra vez para o tornozelo ferido de Cassia. Sangrou onde o metal raspava na parte de trás do pé, logo acima do calcanhar. E há pequenas bolhas em uma linha horizontal na parte de dentro, logo abaixo do osso do tornozelo. A pele está amarelada de hematomas, vermelha e inflamada ao redor dos cortes e bolhas. Algo brilha na superfície, provavelmente uma loção antibiótica que Greta aplicou depois de limpar o local.
— Cacete — digo, com um sopro de voz.
Eu me levanto e ergo Cassia da cama, envolvendo seu pequeno corpo nos braços. Ela envolve minha cintura com as pernas e meu pescoço com as mãos. Seu corpo treme contra o meu, embora eu saiba que ela só teme por Greta, não por si mesma.
— A gente discute isso amanhã — digo, me virando para Greta, que já me olha sem medo. — Esteja aqui no mesmo horário de sempre.
— Sim, senhor. — Ela inclina a cabeça e vai depressa para a escada.
Assim que ouço a porta do porão se fechando, aperto os braços ao redor de Cassia e fecho os olhos para saborear o momento.
— Por favor, não machuque Greta — murmura ela, com a voz lamuriosa junto ao meu pescoço.
Engulo em seco.
— Não vou machucá-la — murmuro em resposta, e seguro sua cabeça loura e macia com a palma da outra mão.
A sensação de suas coxas nuas apertando minha cintura e o calor entre suas pernas encostando em minha barriga me deixam de pau duro. Tento ignorar isso, empurrando para o fundo da mente minha necessidade de ficar com ela. Mas é muito difícil. Doloroso e torturante.
Cassia é o meu castigo. Eu sei que é. Por todas as coisas horríveis que fiz a tanta gente durante todos esses anos, sei desde o ano passado que ela deve ter sido enviada como meu castigo. E minha perdição. Preferiria, sem dúvida, estar amarrado à minha cadeira — com os dentes sendo arrancados, agulhas sendo enfiadas sob as unhas ou sendo escapelado — a sofrer esse tipo de tortura. Prefiro morrer. Por favor, me mate de uma vez e acabe logo com isso. A dor de estar perto dela, sabendo que não posso ceder aos meus sentimentos, é a pior que já senti.
A única coisa neste mundo que desejo mais do que encontrar Seraphina é que essa dor desapareça.
— Eu deveria vir mais aqui — digo em voz baixa, contra os cabelos dela. — Meu trabalho está exigindo mais do que de costume. Eu nunca quis negligenciar você.
Cassia ergue a cabeça e me encara enquanto eu a seguro pela cintura, sua bunda em minhas mãos.
Isso não está certo.
Eu deveria colocá-la no chão. Ignoro a voz interior e a olho nos
olhos, lutando internamente contra minha consciência.
A maciez das pontas dos dedos dela percorre as laterais do meu rosto, então seus lábios tocam os cantos da minha boca. Um, depois o outro.
Eu deveria impedi-la. Eu deveria jogá-la na cama e deixá
la sozinha.
Não faço nada disso.
Em vez disso, a abraço mais forte e fecho os olhos suavemente, procurando seus lábios com os meus, embora ainda relutante em saboreá-los. Porque sei o que isso fará comigo.
Antes que eu me permita beijá-la, me afasto e a levo para o banheiro. Passo as mãos de leve na pele nua de suas coxas ao sentá-la na pia.
Acordo mais uma vez dos pensamentos proibidos e pego o tornozelo dela.
— Isso está feio — comento. — Desculpa por ter deixado ficar assim.
— Greta já cuidou do machucado — responde ela, com delicadeza.
— Sim, mas não deveria ter chegado a esse ponto. — Vou até a estante alta na parede e abro um armário, que em geral também fica trancado, mas não está. Pego um pouco de água oxigenada em um pulverizador e um pano limpo. — Vou passar a semana que vem inteira aqui, pelo menos — continuo, borrifando água oxigenada no tornozelo dela. — Mas acho que é melhor assim.
Ainda me incomoda ter recebido uma “licença”, obviamente por estar desconcentrado demais para desempenhar minhas tarefas, mas, mesmo assim, é melhor.
— Fredrik?
— Sim? — Eu não ergo o olhar para ela, continuo limpando seus ferimentos, embora já tenham sido limpos recentemente.
Há um período de silêncio momentâneo, e finalmente Cassia fala, em voz baixa:
— Eu... bem, não quero que você me deixe de novo. Por que não pode ficar aqui comigo? Ou me levar junto quando for sair?
Ergo os olhos da minha tarefa e a encaro. Ela dá um sorriso suave, mas também vejo desespero em seus traços delicados.
— Isso não vai ser possível. Volto a olhar para seu tornozelo. Seu humor muda, e percebo que o
sorriso sumiu.
— Eu não fugiria — insiste ela, o desespero ganhando destaque em sua voz. — Quero ficar aqui com você. Eu quero ficar com você. Precisa acreditar.
Solto o tornozelo dela mais bruscamente do que pretendia, e seu calcanhar bate na porta do armário debaixo da pia.
— Por que você quer isso? — indago, ríspido, sentindo meu cenho franzir. — Cassia, olhe o que eu fiz com você. Como pode acreditar nessas coisas? Você precisa parar com isso. Está dificultando ainda mais as coisas!
Eu não queria dizer essa última parte, mas quando me dei conta, as palavras já haviam escapado.
Cassia só me encara com confusão e curiosidade nos olhos.
— Como assim dificultando ainda mais?
Eu viro as costas para ela e guardo a água oxigenada no armário.
— Porque, Cassia, não pode acontecer. Nada além do que já aconteceu entre a gente pode acontecer.
Eu não consigo encará-la. — Por causa de Seraphina —
completa Cassia.
Faço que sim.
— Sim. Por causa de Seraphina. Odeio a verdade. Odeio a mim
mesmo por causa da verdade. Este é o maior castigo de todos. — Mas eu estou apaixonada por você
— responde ela, baixinho, atrás de mim, e meu coração é esmagado por uma força tremenda.
— Não diga isso! — Eu me viro para olhá-la. — Você não está apaixonada por mim, Cassia! Você nem sabe o que está dizendo!
Lágrimas brilham nos cantos dos olhos dela, e tudo o que quero é apertá-la em meus braços e nunca mais soltá-la. Mas não posso e não vou fazer isso. Os olhos castanhos de corça me encaram com tanta dor que é quase demais para suportar. Os lábios fartos estão trêmulos. O longo cabelo louro parece seda sobre os delicados ombros nus, parando logo acima dos seios, um pouco visíveis através do cetim fino da camisola amarela. Eu me pergunto por que ela nunca usa as roupas normais que comprei. Mas a dúvida só dura um momento.
Tento desviar os olhos, até que ela diz:
— Aquela mulher sufoca seu coração de uma maneira que não o deixa respirar. É por causa dela que seu coração está envolto em trevas. Olhe o que ela fez com você. Olhe o que ela faz com você a cada dia. — Cerro os punhos ao lado do corpo. — Por que você não olha para mim? — Sua voz começa a se elevar em desespero.
Ergo os olhos, que encontram os dela.
— Seraphina é má — anuncia Cassia. — Veja o que ela está fazendo com você.
Um traço de raiva tinge suas palavras.
Mas não é a raiva que atrai minha atenção, é algo enigmático que está por trás dela.
— O que você está dizendo, Cassia? Ela balança a cabeça de leve, e seu
olhar se fixa no chão. — Cassia — chamo, em tom de
aviso. — Tem alguma coisa que você queira me contar?
— Não — responde ela, depois de uma longa pausa.
— Você está mentindo. Ela ergue o olhar. Há dor,
ressentimento e amor em seus olhos. Eu chego mais perto.
— Do que você se lembrou? — De nada.
— Diga a verdade! — Meus dedos afundam nas palmas das mãos. — Do que você se lembrou?!
— De nada!
Ela bate com a mão aberta na pia. — Que merda! Eu não me lembro de
nada!
— Você está mentindo! Minhas mãos voam para seus
antebraços, e eu a sacudo com tanta força que sua cabeça vai para a frente e para trás.
— Diga a verdade, Cassia! A lateral de meu rosto arde quando
ela livra uma das mãos e me dá uma bofetada tão forte que chego a ficar com um zumbido no ouvido. Eu a seguro pelos pulsos e a empurro contra a parede, onde antes ficava o espelho, apertando o corpo entre suas coxas abertas. Ela apoia os pés na pia. Seus olhos se arregalam ao máximo, a boca está semiaberta, o hálito saindo depressa dos lábios. Sinto seu coração batendo forte nos pulsos, esmagados entre meus dedos, que os apertam cada vez com mais força.
Me inclinando mais e mais para a frente, meus olhos penetram os dela, meus lábios param a centímetros dos seus.
— Você vai me contar o que lembrou, Cassia, ou juro por Deus que enfio você na porra da cadeira.
Minha voz está calma, mas ríspida e implacável.
— Vai se foder — responde ela, o que me surpreende mais do que a bofetada.
Eu me afasto alguns centímetros e a encaro. Lágrimas escorrem de seus olhos. Não é desafio que vejo, mas dor, pura e inabalável.
— Eu me lembro — diz ela, tremendo. — Me lembro de tudo sobre Seraphina. Como a conheci. Por que ela quer me matar. Eu me lembro.
Ela funga. Vê-la nesse estado está me despedaçando por dentro. Mas não posso deixar que me afete. Não desta vez
— Conte. O. Que. Sabe. Ela balança a cabeça, e minhas mãos
apertam mais seus pulsos, pressionados contra a parede atrás dela.
— Não vou contar nada até você me contar tudo.
Cerrando os dentes, mantenho a posição, apertando o corpo dela contra a parede por meros segundos antes de finalmente soltá-la. Dou um passo para trás. Minha mente está repleta de pensamentos impiedosos. Uma névoa escura e desalmada cobre minha visão por um momento, e tudo o que vejo à frente é quem eu gostaria que ela fosse. Seraphina. A outra metade da minha alma. A única pessoa no mundo capaz de me controlar, capaz de controlar meus ímpetos, minhas tendências violentas e assassinas. Porque, se ela estivesse aqui, eu poderia fodê-la. Poderia descontar minha raiva, culpa, dor e vingança nela, e ela me amaria por isso. Porque Seraphina nunca quis que eu fosse delicado. Ela queria que eu a machucasse. Queria que eu a fizesse sangrar. Queria sentir quando eu
liberava meu lado mais sombrio, porque só ficava em paz consigo mesma quando alguém mais perverso do que ela estava no controle. Eu era a única pessoa mais perversa do que Seraphina. Juntos, ninguém poderia nos subjugar.
E eu preciso dela agora. Preciso dela porque Cassia pode ser
subjugada. E não quero machucá-la. Nunca conseguiria me perdoar se permitisse que meus demônios a estraçalhassem, como eu fazia com Seraphina.
Em algum momento de meu devaneio desalmado, Cassia conseguiu descer do balcão, e agora está de pé na minha frente.
Como eu vim parar aqui? Ergo os olhos e percebo que já saí do
banheiro, mas não me lembro de ter passado pela porta.
— Fredrik.
A voz de Cassia é suave, suplicante e preocupada.
Levanto as mãos, criando uma barreira entre nós. Ela para e me encara com mágoa no olhar.
— Vou pedir mais uma vez — digo, muito calmo, evitando cruzar olhares com ela. — Me conte o que você lembrou.
— Desculpa — responde ela, com a voz suave e sem nenhuma raiva —, mas eu falei sério. Você me deve isso. Não me importa o que vai fazer comigo. Não me importa se vai me botar naquela cadeira de novo. — Sinto sua presença quando ela se aproxima, e dou mais um passo para trás. — Faça o que tiver que fazer.
Uma última tentativa desesperada me consome, e me viro para ela.
— Não posso contar! — Eu me aproximo dela, que fica firme, em vez de se encolher, como eu esperava. — Por que você está tornando isso tão difícil, Cassia? — Minha voz começa a se acalmar, indo da raiva à súplica. — Eu não posso falar de Seraphina para você. Não para você, de todas as pessoas no mundo, caralho! Por que você não entende?!
Cassia usa uma das mãos para enxugar as lágrimas dos olhos. Então, muito lentamente, como se fosse a última coisa que quisesse, dá meia-volta e se dirige ao canto onde em geral a encontro.
Ela se senta, encostando na parede e encolhendo os joelhos contra o peito, a camisola esticada sobre eles.
Então me olha e diz, uma última vez: — Faça o que tiver que fazer. Querendo quebrar a parede com um
murro, pego o grilhão e a corrente e me aproximo dela. Agachado a seu lado, seguro seu tornozelo sadio e fecho o grilhão em volta dele. Cassia não olha para mim, muito menos tenta resistir.
Vou até a escada e paro só por tempo o suficiente para ouvi-la dizer:
— Eu vou perdoar você, Fredrik. Pelo que tiver que fazer comigo, seja o que for.
Engulo a dor que as palavras dela causam, deixando-a sentada ali.
Não posso torturá-la. Talvez ela saiba disso. Talvez esteja me fazendo de otário, usando psicologia reversa. Não sei, mas não posso fazer isso com ela.
Mas vou fazer alguma coisa. Antes que o dia acabe, ela vai me
contar o que lembrou. Vou arrancar isso dela. De um jeito
ou de outro.
CAPÍTULO CATORZE Fredrik
Passo o restante do dia ignorando Cassia, só dando uma olhada nela de vez em quando, pela câmera do porão. Pensei em tudo, e a única ideia que consegui ter foi forçá-la a assistir a mais um interrogatório. Forçá-la a me ver matando um homem.
Por algum tempo, era o que eu pretendia fazer. Em vez de fazê-la assistir pela TV, ia amarrá-la a uma cadeira na sala de interrogatório e deixar que ela visse tudo de perto, nos mínimos detalhes. Deixar que testemunhasse a tortura horrível que mal aguenta ver pela tela. Sentir o cheiro de sangue fresco e de suor enquanto eles são derramados.
Mas tem um problema: não tenho ninguém para torturar. Não sobrou ninguém como Dante Furlong, que sei que merece passar por isso. O “reserva” mais próximo que tenho fica a quatro horas daqui, e não posso deixar Cassia sozinha no porão por tanto tempo.
Me sentindo derrotado, furioso e ressentido com ela por esconder de mim a única coisa de que preciso, eu me levanto do sofá de um salto, derrubando sem querer minha bandeja portátil com o jantar. Esfrego os cabelos escuros, cerrando os dentes e engolindo o rugido.
Deixo os braços caírem e olho para o teto, permitindo que a sensação de derrota me domine.
Mas então, de repente, um pensamento surge em minha mente, e tudo volta a se encaixar. Pego o iPad do sofá ao meu lado e ligo a câmera do meu quarto. Em uma tela dividida, Cassia ergue os olhos na mesma hora ao ouvir a TV no porão sendo ligada. Ela olha para imagem do meu quarto vazio por um
momento, curiosa, confusa e nervosa. Se não posso arrancar a informação
com medo ou tortura, vou arrancá-la de outra forma, igualmente cruel.
Coloco os sapatos e visto um paletó, seguido por um longo sobretudo. Ao atravessar a cozinha, apressado, pego as chaves no balcão e saio de casa.
~~~
Em geral, não é meu estilo pegar uma mulher em um bar barulhento como este, com cheiro de cigarro e uísque barato. O lugar está tomado por vozes bêbadas, e algum tipo de rock clássico sai sem parar dos alto-falantes de um jukebox. Normalmente, vou à caça em lugares mais tranquilos, onde servem vinho e consigo ouvir meus pensamentos. Mas esta não é uma noite típica, e não tenho tempo para caçar nos lugares de costume.
Estou deslocado, usando um terno Armani, sapatos pretos reluzentes e um relógio de pulso de oito mil dólares. Tudo chama a atenção, mas isso só facilita as coisas para mim.
Depois que me sento diante do balcão, com os sapatos no apoio do banquinho, não demoro muito para encontrar a mulher que quero. Cabelos escuros cobrindo os ombros. Seus olhos são castanhos, posso notar mesmo do outro lado do salão. Ela é pequena, usa uma saia preta larga um pouco acima dos joelhos e um par de botas. Uma blusa preta de mangas compridas com botões na frente, e os primeiros estão abertos, revelando o colo. Uma longa corrente de prata pende do pescoço delicado, com um pingente que afunda entre os seios.
Ela é solteira. Ao menos por esta noite. Percebo pelo modo como os dois homens a seu lado, perto da mesa de bilhar, olham para ela e para a amiga. O modo como as duas sorriem e ficam vermelhas quando os homens dizem como elas são lindas e o quanto
gostariam de levá-las para casa. Na verdade, não consigo ouvir o que estão dizendo, mas, seja quais forem as palavras, tudo se traduz na mesma coisa. A mulher de cabelo escuro, a que quero, já fez contato visual comigo uma
vez.
Vai ser fácil.
Eu me sento meio curvado sobre o balcão, os braços apoiados nele, um copo pequeno de uísque na mão direita. Passo as pontas dos dedos de um lado para outro no relevo artístico na lateral do copo, para parecer distraído. Meu longo sobretudo preto está jogado no encosto do banquinho, atrás de mim. Ainda estou com o paletó, agora desabotoado, e deixei a camisa branca para fora da calça.
Finalmente, tomo um pequeno gole, deixando a borda do copo perto dos lábios por um tempo. Olho outra vez para a esquerda, e, como eu previa, a mulher me vê, como se estivesse esperando que eu olhasse.
Fácil demais.
Ela sorri discretamente e olha para a amiga loura. As duas trocam algumas palavras, mas tenho a sensação de que não são íntimas, devem ter se conhecido hoje, porque a outra mulher parece mais interessada nos dois homens do que na conversa. Logo os quatro estão me olhando, os dois homens com expressões decepcionadas.
A mulher de cabelo escuro pega a bolsinha preta da mesa do canto e a enfia debaixo do braço.
Ela vem até mim, balançando suavemente os quadris por baixo da saia.
— Olá — cumprimenta timidamente ao se aproximar, mas tenho a sensação de que não é muito tímida. Talvez esteja encenando, mas já percebo que não é da natureza dela repelir um homem como eu, alguém que ela sabe, em algum lugar no fundo da mente, que é controlador na cama.
— Boa noite — respondo, com um sorriso tênue.
Ela fica vermelha.
Eu me levanto um pouco do banquinho e aponto para o lugar vazio ao meu lado, indicando que ela deve se sentar. Ela obedece, apoiando a bota no estribo para subir no assento. E deixa a bolsinha no balcão.
Ela tem um cheiro bom, de maquiagem. Os cabelos estão recém-lavados, e, embora ela tenha bebido, ainda sinto traços mentolados da pasta de dente.
Faço um sinal para o garçom, que se aproxima e espera.
— Quer beber alguma coisa? — pergunto à mulher.
Ela sorri, e seus olhos castanhos parecem brilhar.
— Claro, obrigada — responde. — Um cuba-libre.
Enquanto o garçom vai preparar o drinque, tomo mais um gole do meu e afasto o copo. Eu me viro no banquinho para ficar de frente para ela, deixando o cotovelo direito apoiado no balcão.
— Não é comum homens como você virem aqui — comenta ela.
O garçom coloca o copo de cuba-libre no balcão e nos deixa a sós de novo.
— Homens como eu? — pergunto, em um tom despreocupado.
Ela assente, corando.
— É — concorda, passando os dedos no relevo do copo, como eu estava fazendo. — Um executivo, ao que parece. Ainda por cima com sotaque. — Ela olha para o meu relógio, que desponta debaixo da manga do paletó. — E ninguém costuma entrar aqui usando um Rolex.
Interessante. Ela conhece um Rolex só de ver, e não precisa nem ser de perto. Veio atrás de caras ricos? Ou será que é rica? Ela pode ser várias coisas, mas, se tem uma coisa que não é, é tímida, e entende de dinheiro. Está longe de ser vulnerável. Não, essa mulher é boa no próprio jogo. Conseguiria fazer um homem pensar que ela é vulnerável. Mas não é tão fácil me enganar. Só me pergunto se ela é boa o suficiente para perceber isso.
— Gwen. — Ela se apresenta. — O que traz você a um lugar como este? Precisava afogar as mágoas? Problemas com a esposa? — Ela olha de relance meu dedo anular desprovido de anéis.
— Fredrik — respondo, com um sorriso tênue e sombrio. — Felizmente, não tenho mágoas para afogar. E não tenho esposa.
Ela sorri e toma mais um gole. Então desliza o copo para longe com as pontas dos dedos longos e finos, em seguida apoiando o cotovelo no balcão. Ela cruza as pernas e disfarçadamente ajeita barra da saia para cima do joelho, puxando o tecido sobre a perna com a outra mão. Ela tem joelhos sensuais e pernas longas e flexíveis.
Gwen é uma mulher muito confiante disfarçada de menina tímida. É uma caçadora, como eu. E está acostumada a levar a melhor. Está acostumada com homens que babam ao vê-la, que não conseguem tirar os olhos de seus seios por tempo suficiente para perceberem que estão sendo facilmente dominados.
Esta noite vai ser interessante para ela; isso se não for uma lição.
Se fosse em qualquer outra noite e encontrar minha ex-esposa não fosse prioridade, eu iria querer caçar esta mulher um pouco mais. Com calma. Sondá-la, entender seu jogo. Faria isso porque posso, porque ela não é muito diferente de mim e porque ela provavelmente iria gostar.
— De onde é? — pergunta Gwen. — Esse sotaque.
Seus olhos parecem brilhar com as possibilidades, como se a ideia de dormir com um homem que tem sotaque a deixasse excitada.
Eu me inclino para mais perto dela, diminuindo o espaço entre nós e inalando seu perfume. Meu olhar examina a curva de seu pescoço e a fartura dos lábios vermelhos.
— Da Suécia — respondo, deixando os olhos encontrarem os dela. Eu me aproximo mais, para que ela possa sentir o calor do meu hálito na lateral do pescoço. — Preciso dizer, Gwen... — Ela aproxima o corpo do meu com avidez. — Nunca perco tempo com o ritual de acasalamento, esse negócio de irmos nos conhecendo antes de trepar, de oferecer algumas informações pessoais para quebrar o gelo. — Sinto o corpo dela ficar tenso e a respiração mais ofegante, mas Gwen não tenta se afastar de mim. — Se quiser sair daqui comigo, vamos embora. Posso prometer uma coisa.
Eu me afasto e a encaro, esperando a resposta. Seus olhos estão arregalados, e aquela boca carnuda está entreaberta. Ela não é mais a mulher confiante, a jogadora que era quando se aproximou. Está atordoada, provavelmente pela primeira vez na vida.
Ela hesita por um momento longo e contemplativo e finalmente pergunta:
— O que, exatamente, você pode prometer? — Então dá só uma risada nervosa e acrescenta: — Que não vai me matar e jogar meu corpo em um terreno baldio? — Ela parece só um pouco preocupada com essa perspectiva.
Sorrio e seguro o copo antes de levá-lo aos lábios e tomar mais um gole.
— Não, não vou fazer isso — respondo, deixando o copo outra vez no balcão. — Mas vou fazer o que eu quiser com você. Isto é, se você aguentar. Não vou mentir, não sou delicado.
Ela mordisca suavemente o canto do lábio inferior.
Gwen fica em silêncio e gira lentamente no banco, virando-se para a frente. Ela toma mais um pequeno gole e põe a bebida no balcão, deixando as pontas dos dedos sobre a borda úmida do copo. Já vi essa expressão de excitação e indecisão em outras mulheres. É inconfundível; é a expressão de uma mulher que quer saborear as trevas, sejam quais forem os riscos. Sua pele clara está enrubescida. Seus dedos longos e finos continuam dançando na borda do copo, em um movimento lento e repetitivo. A parte de dentro do lábio inferior permanece úmida depois que a ponta da língua a percorre lentamente.
Lendo seus pensamentos, tão altos quanto a música que toca ao fundo, concordo e tiro o braço do balcão, enfiando a mão entre suas coxas e abrindo-as com cuidado. Sem olhar para mim — e sem qualquer objeção —, o corpo dela cede, e as pernas se descruzam no banco.
Como o restante do bar, a área está às escuras, iluminada apenas pelo brilho laranja e vermelho das luzes neon que zunem nas paredes. As sombras destacam o perfil de Gwen, acentuando movimento em seu pescoço a cada poucos segundos, quando ela engole saliva. E, quando meus dedos entram por baixo do elástico da calcinha fina, a silhueta revela a boca se abrindo ainda mais, em expectativa.
Gwen geme de leve e segura o copo no balcão com as duas mãos, os dedos frouxos porém inquietos. Suas pernas se abrem mais, me dando — implorando — mais acesso.
Enfio o dedo médio nela e sinto-a se contraindo, querendo me segurar ali. Seus olhos se fecham devagar. As costas se endireitaram, como as de uma garota inglesa bem-educada. Os ombros estão um pouco tensos, os seios arfam a cada respiração cheia de prazer, que ela tenta conter por estar em público. E só quando sente meu dedo deslizando cautelosamente para fora é que ela vira cabeça para me olhar de novo. Pondo a mão sobre o copo, enfio o dedo médio no uísque, antes de tomar um gole. Deixo o copo no balcão, pondo em seguida a ponta do dedo úmido na boca e saboreando-a.
Ela me encara. Cheia de luxúria. Indecisa. Confusa.
Então eu me levanto e pego o sobretudo do encosto e o visto. Gwen me observa em silêncio, intensamente, ainda discutindo com o anjinho em seu ombro, que perdeu para o diabinho no outro ombro assim que a toquei.
Deixo uma nota de cinquenta dólares no balcão, perto do meu copo.
E vou embora.
Não olho para trás, passando por mesas cheias e garçonetes ocupadas, abrindo caminho entre grossas nuvens de fumaça de cigarro.
Com uma postura tão casual quanto a que entrei, saio para o ar gelado, fechando o sobretudo quando o vento bate asperamente em meu rosto. Antes de chegar à calçada e rumar para o estacionamento, ouço a música e o vozerio de dentro do bar escapando quando Gwen abre a porta e sai atrás de mim.
— Vou me arriscar com o terreno baldio.
Eu a ouço dizer, e sorrio, de costas para ela.
Eu me viro para olhá-la, com as mãos nos bolsos. Ela também está usando sobretudo; um capuz de pele falsa envolve os cabelos escuros, cujos cachos soltos o vento espalha por seu rosto.
Ela é linda.
— Fico feliz em ouvir isso — digo, sem rodeios.
Gwen sorri, quebrando um pouco a tensão sexual em nome da conversa.
— Você é muito... direto. Dou de ombros e aperto um pouco os
lábios.
— Acho que sou.
Dou um sorrisinho de boca fechada, oferecendo-lhe a mão.
Ela retribui o sorriso e entrelaça os dedos nos meus.
CAPÍTULO QUINZE Fredrik
Chegamos a minha casa depois de dirigir por dez minutos. Gwen fala muito. Talvez esteja apenas nervosa, depois de entrar em um carro tarde da noite com um desconhecido, mas estou pouco me lixando para o que ela tem a dizer ou o que pode estar pensando. Eu a trouxe aqui por um motivo, e não foi para conversar.
— Uau, que casa legal — comenta ela ao entrar. — Vendo de fora, eu não esperava que fosse tão... luxuosa. — Ela me encara com cifrões nos olhos enquanto a ajudo a tirar o sobretudo. — Não que seja feia por fora, é só... bem, muito diferente. — Ela sorri.
Não reajo ao ritual de acasalamento. Isso já está começando a parecer o início de um namoro — mesmo que seja um namoro só com o meu dinheiro. E eu não namoro. Aliás, não faço nada “normal”. É tudo muito estranho para mim.
Queria que ela parasse de falar. Precisava de uma casa discreta para
que fosse mais difícil de ser encontrada pela Ordem. Por isso, escolhi uma velha casinha de tijolos e reformei o interior para se adequar ao meu estilo de vida luxuoso. Mas o porão enorme foi o lugar que recebeu os maiores cuidados. Queria que Cassia se sentisse segura em minha casa... apesar do aprisionamento.
Tiro os dois casacos e abro os botões da camisa. Gwen me observa com desejo mal disfarçado nos olhos e um pouco de preocupação, que não se
dissipará enquanto ela não tiver certeza de que eu a trouxe só para sexo.
— Há quanto tempo você mora aqui? Alguém me mata para fazer isso
acabar.
— Tire as botas — mando, só para fugir da tagarelice inútil.
— Hã?
Eu inclino um pouco a cabeça para o lado.
— Falei para você tirar as botas. — Minha expressão não vacila.
Os olhos de Gwen ficam um pouco mais arregalados. Ela morde o lábio inferior de novo.
Arranco a camisa e a deixo sobre o encosto da poltrona de couro mais próxima.
Finalmente, para apaziguar seus medos e dar início à noite, eu me curvo na direção de sua boca e digo:
— Não vou obrigar você a ficar — roço os lábios nos dela e enfio a mão por baixo de sua saia; ela geme —, mas, se quiser ficar, vai fazer tudo o que eu mandar. Entendeu?
Meu dedo médio aperta sua boceta por cima da calcinha úmida. Um pequeno gemido vibra de seus lábios para os meus, e enfio a língua em sua boca. Inspirando profundamente, eu a beijo com ímpeto predador, e quando me afasto, ela leva um momento a mais do que o necessário para abrir os olhos de novo.
— Agora tire as botas — repito. Ela fica descalça, desta vez sem
relutância, e seus lábios fechados esboçam um sorriso sedutor enquanto ela espera minha próxima ordem. Mas o que quero mesmo é que ela me mande à merda. Quero que seja desafiadora e agressiva, como Seraphina muitas vezes era. Quero que me bata, mesmo ansiosa para que eu a coma com desejo e violência. É desse tipo de sexo que preciso, mas sei que não posso tê-lo, porque só Seraphina dá para mim desse jeito.
Mas o foco hoje não sou eu. Isso tudo é para Cassia.
Uso as duas mãos para abrir os botões da blusa de Gwen, tirando-a assim que abro o último. Seus seios generosos estão praticamente explodindo para fora do sutiã de renda preto. O colar está bem encaixado entre eles. Passo os braços por suas costas e apalpo o fecho, abrindo o sutiã na primeira tentativa. Seus olhos estão cravados nos meus, mas não estou pronto para retribuir o olhar. Ela precisa merecer isso.
O sutiã cai ao redor de seus pés descalços, junto com a blusa, e ela fica seminua diante de mim. Quase todos os traços de nervosismo se foram, deixando somente expectativa e desejo. Ela parece tímida com o olhar baixo, de um jeito submisso.
Isso me frustra, mas ignoro a sensação.
Encaixando os dedos no elástico da saia, deslizo lentamente a peça por seus quadris e suas coxas. O tecido se amontoa ao redor de seus pés. Depois que ela está completamente nua, agarro cabelo próximo à nuca, puxando a cabeça dela para trás, obtendo sua submissão completa. Ela arregala mais os olhos, insegura, até com um pouco de medo. Mas não faz nenhum comentário, e a levo para meu quarto, no fim do corredor, acendendo a luz ao passar pelo interruptor, de forma que Cassia possa ver tudo sem nenhuma sombra para atrapalhar.
Com um empurrão, faço Gwen ficar de joelhos no chão acarpetado, e ela não ousa se mexer. Sinto todas as partes de seu corpo abertas para mim, desesperadas para me sentir dentro de si. Ela já fez esse jogo antes. Sabe ser submissa. Gosta disso. E, em qualquer outro momento, eu satisfaria esse desejo e também curtiria, porque gosto de dominar. Mas a verdade é que nunca respeitei as mulheres completamente submissas. Prefiro uma mulher que resista a uma que lata quando mando latir ou chupe sem discutir quando enfio o pau em sua boca.
Nem mesmo Cassia, suave e frágil, que eu sei que faria qualquer coisa por mim, se sujeitaria a isso. E isso só me faz gostar muito mais dela.
Cassia...
Olho para a pequena câmera escondida na penteadeira, do outro lado quarto. Me pergunto se ela também está olhando.
Por que torço para que não esteja? Afasto depressa o pensamento
quando sinto a mão de Gwen subindo entre minhas pernas, por cima da calça. Ela me encara de um jeito sugestivo — e bastante surpreso —, com os olhos amendoados abrandados e ao mesmo tempo inflamados pelo desejo.
Se ao menos Seraphina estivesse aqui para participar disso... Ela era a única que conseguia tornar uma garota submissa excitante para mim.
Puxo de novo o cabelo de Gwen e a coloco de pé.
— Prefiro você de joelhos na cama. Solto o cabelo dela assim que Gwen
fica de pé, e ela faz exatamente o que mandei, mal olhando para mim por cima do ombro, me dizendo com o olhar que está tudo bem, que quer fazer do meu
jeito. Só que esse não é o meu jeito, mas continuo fingindo.
Gwen engatinha pela lateral da cama e eu me aproximo por trás, pondo a mão em seu cóccix e empurrando seu corpo para a frente, para deixar sua bunda empinada. Meu pau tem um espasmo quando a toco, deslizando o dedo por sua boceta molhada. Dois estalos cortam o ar quando dou um tapa em cada uma de suas nádegas, com força suficiente para fazê-la gemer.
— Não se mexa — mando, indo até o criado-mudo e tirando a calça no caminho.
Fecho a gaveta, e em segundos a embalagem do preservativo cai no chão. Então vou para trás de Gwen de novo.
— O que foi isso? — Ela ergue o rosto do colchão, franzindo as sobrancelhas ao se concentrar para ouvir o choro que finjo não escutar.
Mas eu escuto. O lado de Cassia do porão fica bem abaixo do meu quarto, exatamente onde estou.
De repente, sinto mais necessidade verificar a câmera do quarto dela em meu celular do que de continuar o que estou fazendo.
— Um preservativo — respondo, despistando-a.
Ela vira o pescoço para me ver. — Não, achei que tivesse ouvido
alguma coisa... Parecia alguém chorando.
— Não ouvi nada — digo. — Pode ter sido a TV no subsolo.
Gwen aceita minha resposta e encosta a bochecha na cama de novo.
Tento ignorar meus pensamentos sobre Cassia, segurando as coxas de Gwen com firmeza e pressionando meu corpo contra o dela. Mas não consigo ignorá-la, e fico furioso comigo mesmo, cravando as pontas dos dedos na carne de Gwen.
— Aaai! Nossa! Isso dói, caralho... — Ela parece furiosa. Mas só um pouquinho.
Ouvi desafio em sua voz? De repente, sinto que talvez consiga
ter o sexo violento de que preciso, no fim das contas.
Então ouço Cassia gritando meu nome, e, embora o som seja fraco e abafado, ele me rasga como um atiçador em brasa abrindo um buraco em meu
peito.
Acho que Gwen não ouviu dessa vez, porque, quando ela me olha de novo, parece que é só por curiosidade. Ela se pergunta por que me afastei, por que ainda não estou dentro dela a essa altura.
Está tão confusa quanto eu. Olho de novo para a câmera
escondida, desejando poder vê-la através da lente, da mesma forma que ela consegue me ver.
— A gente vai fazer isso ou...? — Você tem que ir embora —
interrompo.
Ela pisca, atordoada, e então se vira na cama.
— Você está de sacanagem, né? — Eu estou com cara de quem está
de sacanagem?
Ela pisca mais algumas vezes, como se estivesse tentando ligar o cérebro outra vez, porque talvez não tenha me ouvido bem, e aperta as palmas das mãos nas bordas do colchão. Seus braços e ombros ficam rígidos, e ela deixa o corpo cair.
Ela inclina a cabeça para o lado e sorri.
— Isso faz parte do seu jogo? — pergunta, provocante, então inclina a cabeça para o outro lado. — Topo jogar como você quiser, gato.
Preocupado com Cassia, fico mais impaciente e intolerante a cada segundo. Pego Gwen pelo cotovelo e a puxo da cama.
— Sai logo daqui, porra. Ela fica sem palavras. E muito puta.
Se sente humilhada. Sua boca se abre de leve, os olhos se estreitam com força, e parece que acabei de lhe dar uma bofetada na cara.
— Vou chamar um táxi para você — digo, mas ela ergue a mão, indicando que não precisa nem quer minha ajuda.
— Não, obrigada, seu babaca — retruca rispidamente, pisando duro, atravessando nua o quarto até a porta. — Eu mesma vou chamar, e vou esperar no posto de gasolina ou na esquina. — Em alguns minutos, depois que Gwen se vestiu na sala e pegou sua bolsa, a casa estremece quando a porta da rua bate com um estrondo.
Estou entorpecido. Completamente entorpecido, por dentro e por fora. Não me movi desde que Gwen saiu correndo da casa. Meu peito dói por Cassia.
O que está acontecendo comigo? Procurando o celular no bolso da
calça, eu o pego e jogo a calça no chão. Abro a câmera do quarto de Cassia e a vejo encolhida em posição fetal na cama — não no canto —, chorando baixinho, o rosto entre as mãos delicadas. E eu a observo por um momento, ainda tentando organizar a bagunça que minha mente se tornou.
Meu coração dói. Tudo dói. Mas dessa vez eu não resisto, porque não tenho mais forças.
Jogo o preservativo no lixo ao lado da penteadeira e visto a cueca preta antes de correr até o porão para consertar o que quebrei.
CAPÍTULO DEZESSEIS Fredrik
Descendo os degraus, um por um, eu me aproximo lentamente do porão, sentindo um peso no fundo do estômago. O concreto é gelado em meus pés descalços, e o ar está ficando mais frio por causa de uma tempestade de inverno que começa a atingir a Costa Leste. Faço uma anotação mental para aumentar significativamente a calefação quando voltar para cima, para que Cassia fique confortável.
Mas todos esses pensamentos aleatórios são apenas minha forma de empurrar para o fundo da mente, pelo maior tempo possível, o momento inevitável que sei que vai me deixar atordoado, antes de ser obrigado a confrontá-lo.
Quando desço o último degrau, não consigo deixar de olhar de relance para TV atrás da placa de proteção e ver a imagem do meu quarto. Meu estômago começa a arder dolorosamente quando imagino o que Cassia acabou de ver. Quando imagino o que quase fiz. Quando percebo como sou canalha a ponto de obrigá-la a assistir.
Eu desligo a TV.
— Cassia — digo baixinho. Ela não reage na mesma hora. Está
deitada de lado, de costas para mim, o corpo coberto só pelo cetim fino da camisola. Sinto um ímpeto desesperado de ir até ela e cobri-la, para que não sinta frio. Mas não faço isso. Ainda não. Nem sei se ela me quer aqui. E não sei ao certo por que isso importa. O que ela quer. Quando foi que o desejo de Cassia se tornou minha prioridade? Eu quero responder “momentos atrás”, mas isso seria uma forma de negação, e acho que passei tempo demais em negação. Cassia tem sido minha prioridade há muito, muito tempo, logo depois que a trouxe para cá. E só agora estou me permitindo aceitar isso.
— Fique longe de mim! — diz ela, em uma voz fraca e magoada.
Compelido por sua rejeição, me aproximo, em vez de me afastar.
— Eu não queria magoar você — digo, chegando mais perto da cama. — Não queria...
Cassia se vira e se levanta tão depressa que mal tenho tempo de reagir.
— Eu falei para ficar longe de mim! — grita ela, as lágrimas caindo dos olhos angustiados. — Eu odeio você! Seu desgraçado, eu odeio você! — Em um instante fico bem de frente para ela,
e seus pequenos punhos socam meu peito.
Eu deixo que ela me bata com força pelo tempo que quiser, levando golpe após golpe, todos dolorosos e merecidos. Soluços agitam seu corpo, e os olhos estão fechados com tanta força que me pergunto como as lágrimas conseguem se infiltrar pelas pálpebras. Ela grita comigo de um jeito tão ruidoso e estridente que sei que deve estar dilacerando sua garganta.
— Me desculpa — digo baixinho, entre os gritos dela, ainda tentando entender por que estou pedindo desculpas. E é nesse momento que percebo que o grilhão não está preso ao tornozelo dela.
Confuso e em pânico, quero lhe perguntar como ela o abriu, mas não posso, porque não é o momento certo.
Ela bate mais um pouco em meu peito, até que finalmente tomo seu corpo pequeno nos braços e a esmago contra mim.
Minhas mãos estão tremendo. Por que minhas mãos estão
tremendo?
O fundo dos meus olhos dói e arde. Parece que um punho se fechou ao redor de meu coração, limitando o fluxo sanguíneo, e aquele peso em meu estômago tomou conta do peito todo, tirando meu fôlego.
Soluçando, Cassia a princípio tenta me repelir, mas me recuso a soltá-la. Eu a quero aqui, agora mais do que nunca. Porque este é o lugar dela. Suas unhas afundam nos músculos de meu peito. Seus gritos partem meu coração várias vezes. Mas eu a aperto mais, até que ela cede, e seu corpo desaba sobre o meu.
— Eu odeio você! — grita ela, aos poucos perdendo a raiva e rendendo-se apenas à dor. — Eu odeio você...
Fecho os olhos devagar e beijo o cabelo louro e macio como pluma.
Sei que ela não me odeia. Ela me ama. Me ama mais do que jamais amou qualquer um ou qualquer coisa em toda a vida.
Como o destino pode ser tão desalmado e cruel? O que a vida fez comigo na infância já não era suficiente?
Eu a aperto mais.
— Cassia, me desculpa. — Por que você não me pôs de uma
vez na cadeira? — grita ela. — Como foi capaz de fazer isso comigo? — As pontas de seus dedos apertam mais os músculos do meu peito nu. — Destrua meu corpo! Destrua minha alma, Fredrik! Mas não destrua a porra do meu coração!
— Me desculpa...
Só consigo dizer isso. É difícil dizer qualquer outra coisa quando você não entende os próprios sentimentos, as próprias reações; quando se chega à conclusão de que há mais em si mesmo do que se poderia acreditar. Eu me sinto como se tivesse acabado de ter sido apresentado a um homem de aparência exatamente igual à minha, mas tão diferente por dentro que nada mais faz sentido. Estou olhando para meu sósia em um espelho, e tudo o que quero é matar o filho da puta, para poder me sentir normal novamente. Para estar no controle novamente. Para voltar a não gostar dela.
É tão mais fácil quando a gente não gosta de ninguém...
— Eu não consegui — murmuro nos cabelos dela, falando sobre Gwen.
Sinto suas lágrimas quentes e úmidas em meu peito.
— Eu queria que ela morresse — declara Cassia, entredentes. — Tomara que Seraphina esteja morta quando você a encontrar.
Ela se afasta de mim, e eu finalmente a solto.