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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CISNE E O CHACAL
O CISNE E O CHACAL

 

 

                                                                                                     

 

 

 

 

 

Cassia dá vários passos para trás, as mãos cerradas ao lado do corpo, os traços angelicais distorcidos pela raiva e pelo ressentimento. Nunca a vi assim antes, tão deformada pela indignação, e é algo trágico de testemunhar em uma criatura tão gentil e linda.
Ela me encara, e há algo mais em seus olhos que nunca vi antes. Fúria? Vingança? Não tenho certeza. Então, quando começo a pensar em explorar isso mais a fundo, tudo desaparece de seu rosto, substituído outra vez por dor e sofrimento.
Cassia cai sentada no tapete macio que cobre o chão. Eu me agacho diante dela, me equilibrando na ponta dos pés. Ela chora com o rosto entre as mãos abertas, e eu a puxo de novo para meus braços, mas Cassia me repele, erguendo os olhos castanhos e me encarando, derrotada. Afastando as mãos, eu me sento no tapete, com as pernas abertas e os joelhos dobrados, os antebraços apoiados neles.
Ela pergunta, baixinho: — Por que você não consegue
corresponder ao meu amor, Fredrik? — Cada palavra é temperada com uma tristeza que parte meu coração em um milhão de minúsculos cacos de vidro. — O que tem de errado comigo para você não conseguir me amar?
Balanço a cabeça, rejeitando a autodepreciação, e toco a lateral de seu rosto.
— Não tem nada de errado. Você é perfeita em todos os sentidos, Cassia. — Passo a lateral do polegar em seu queixo. — Não deixe que meus defeitos
façam você se sentir menor. Você é uma pessoa melhor do que eu jamais poderia ser.
Ela me encara com os olhos cheios de lágrimas, carregados de sofrimento suficiente para matá-la se não fosse tão forte por dentro.
— Não ligo para os seus defeitos, Fredrik. — Ela coloca a mão sobre a minha, ainda apoiada em sua bochecha. — Só quero saber por que você não consegue me amar.
Meu olhar perde o foco. — Eu não consigo amar ninguém —
respondo, em um murmúrio. — É mentira — retruca ela, no
mesmo tom.
Ela se enfia entre minhas pernas, mantendo os joelhos dobrados e a camisola sobre eles.
— É mentira, e você sabe. Ergo o olhar, mesmo sem querer
encará-la. Porque ela tem razão. O amor é um jogo perverso, penso,
lembrando o que Seraphina cantou para mim no palco uma noite em Nova York, depois que nos conhecemos. “Wicked Game”. Porque, assim como Cassia, Seraphina já foi cantora. E, como lembro que Cassia admitiu lembrar tudo sobre Seraphina, me dou conta de que agora, neste momento com ela, não importa. Não importa saber o que esperei tanto tempo para descobrir.
Simplesmente não importa... Os lábios macios de Cassia tocam os
meus, e meus braços estão ao redor de seu corpo antes que eu me dê conta do que estou fazendo. Eu a abraço com força, apertando seus seios quase à mostra contra meu peito nu, a boca cobrindo a dela com avidez, beijando-a como jamais beijei. Sua língua quente se enrosca na minha e os dedos apertam minha nuca, enquanto os meus afundam em sua bunda, puxando-a para meu colo. Levanto sua camisola para tirá-la do caminho, e suas coxas nuas abraçam minha cintura. Ainda sem interromper o beijo, enfio os dedos mais fundo, gemendo em sua boca com antecipação.
Ela morde meu lábio inferior, rompendo a pele. A dor penetrante atravessa minha boca e viaja para o estômago, aquecendo cada parte de mim e fazendo outras partes doerem e latejarem de desejo. Sinto gosto de sangue na boca, e ela só me beija com mais força, como se também quisesse senti-lo junto comigo.
Segurando sua bunda com força, forço seus quadris para perto dos meus, pressionando o pau ereto contra ela, até que não aguento mais e me apresso em tirar sua calcinha. Eu a puxo e arranco cegamente, nossos olhos fechados, nossos lábios ainda colados em um beijo devastador. Até que finalmente consigo tirar a calcinha, e suas pernas nuas envolvem minha cintura de novo.
Ela se afasta e me olha nos olhos, os braços em volta do meu pescoço. Seus lábios tocam os meus de novo, de leve, e uma das mãos desce para procurar o elástico da minha cueca. Ela força suavemente os quadris contra os meus, e fico louco ao sentir meu pau contra seu corpo através de uma fina camada de tecido que parece a diferença entre o êxtase e o inferno. Gemendo em seus lábios, levanto do chão o suficiente para que ela possa tirar minha cueca. Mas a impaciência me domina, e seguro Cassia pela cintura com uma das mãos, equilibrando-a, enquanto termino de arrancar a peça sozinho com a outra.
Pele sobre pele quente, ela se aperta contra mim, me encarando com a boca delicadamente aberta. Quero saborear seus lábios de novo, mas em vez disso os observo, a proeminência do lábio inferior, a reentrância perfeita do superior, logo abaixo do nariz. Seu hálito tem um vago odor de menta. O cheiro natural de sua pele sempre me inebria momentaneamente quando estou tão perto.
— Eu sou sua. Sempre — murmura Cassia, e me beija uma vez, apertando o calor úmido entre suas pernas contra a rigidez dolorosa entre as minhas. — Mesmo se você não consegue me amar do jeito que a ama, eu sempre vou ser sua.
Seguro sua nuca com as mãos e aperto os lábios contra os dela, deixando-a sem fôlego, substituindo-o com o meu. Sinto dor. Todo o meu corpo dói. Por ela. Só por ela.
Preciso matar alguém para me livrar desses sentimentos, mas no momento só consigo ceder a eles.
Segurando-a firmemente, fico de pé com suas pernas envolvendo minha cintura, carregando-a para a cama, onde eu caio entre suas coxas.
Eu a encaro — O que estou fazendo? — e seguro seu rosto. Sinto o calor de suas coxas em mim, a maciez de sua pele. Tão delicada. Tão inocente. Como posso fazer isso com ela? Como posso fazer isso comigo mesmo?
— Sinto muito, Cassia — murmuro, e baixo meu corpo para dentro do dela. Cassia não tira os olhos dos meus nem por um momento, seus dedos dançando em meu rosto, roçando um princípio de barba. — Sinto muito por tudo que fiz com você... e pelo que vou fazer agora. — Eu a beijo profunda e
desesperadamente e a penetro com um ímpeto predador.
O doce som de seus gemidos quando a penetro só me fazem querer meter mais fundo. Suas coxas tremem ao meu redor, seus dedos afundam nas minhas costas. Rasgue minha pele, Cassia, digo a mim mesmo.
Ela rasga e meu corpo reage de uma forma tão primitiva que não consigo deixar de machucá-la ao me forçar para o mais fundo possível. Seu pescoço se arqueia, e seus braços se levantam, procurando a parede atrás da cama. Não consigo nem me obrigar a perguntar se estou machucando. Eu quero machucá-la. Quero senti-la se quebrando sob mim, ver as lágrimas em seus olhos, ouvir sua respiração falhando. Quero saber que ela deseja a dor tanto quanto eu desejo infligi-la.
Pequenos uivos e gemidos escapam de sua garganta quando vou mais forte. Ela é tão pequena e apertada que parece que está perdendo a virgindade outra vez.
Outra vez...
Quase perco o controle cedo demais. Reprimo a sensação de êxtase o quanto posso, girando a pélvis contra a dela para atingir seu ponto mais sensível. Cassia força os quadris para a frente, apertando minha cintura com as coxas, como se pudesse me esmagar com elas.
— Ah, não pare — pede ela, ofegante —, por favor, não pare.
Meto com mais força, até que ela rasga a pele das minhas costas com as unhas outra vez, o que me faz perder o controle. Devoro seus lábios enquanto me esvazio dentro dela, soltando um gemido intenso em sua boca. Suas coxas se retesam quando sinto Cassia contrair e latejar em volta do meu pau. Ela geme de novo, jogando a cabeça para trás contra o colchão, a respiração irregular enquanto seu corpo derrete no limbo sob o meu.
O que foi que eu fiz?
Olho em seus olhos, mantendo o pau bem fundo nela, e toco seu rosto com os polegares. Seus olhos, cheios de amor e inocência, só funcionam por um breve momento para conter minha necessidade cortar as costas dela com o punhal e lamber o sangue de suas feridas. De me unir a ela da forma como eu me unia a Seraphina.
Eu quero fazer isso.
Mas sei que não posso. Já levei isso longe demais com Cassia. Não posso me permitir tomá-la completamente, senão eu me tornaria o Diabo.
Beijo sua testa. Ela dá um sorriso suave.
Eu não sou melhor do que Seraphina...
Determinado a acabar com isso, começo a sair dela, mas suas pernas apertam minha cintura, me segurando no lugar.
— Não vá embora — murmura Cassia, com as pontas dos dedos sobre os meus lábios, a outra mão em meu cabelo. — Por favor, não vá embora.
Ela me beija com delicadeza. Tento desviar o olhar, pois sinto
vergonha do que fiz. Não é a primeira vez que cedo a Cassia dessa maneira, não é a primeira vez que durmo com ela durante este ano em que a mantive em cárcere. Mas é a primeira vez que faço isso com algo mais do que trevas em meu coração.
— Cassia, eu não deveria ter... Ela balança a cabeça suavemente
sobre o colchão.
— Por favor, fique. — Seu sorriso desaparece, e de repente ela parece desanimada, mas sinto que não é uma tentativa de me segurar ali.
É outra coisa.
Sua cabeça cai para o lado e ela olha para o quarto enquanto o silêncio se instala entre nós. Eu espero pacientemente, embora acompanhe sua mudança repentina de humor com o coração impaciente e em conflito. Sinto que o que resta do meu mundo está para se abrir debaixo dos meus pés.
— Eu tinha dez anos quando conheci Seraphina — explica ela, com uma voz distante que captura cada fibra de minha consciência. — Ela era minha melhor amiga... até que matou meus pais e foi levada embora.
Uma lágrima desliza do canto de seu olho e empoça ao redor do nariz, parando no pequeno arco acima do lábio.
Absorvo suas palavras e não respondo, porque não há nada a ser dito. Agora sei que tudo está perdido, que jamais vou recuperar Seraphina.
CAPÍTULO DEZESSETE Cassia
Delicadamente, Fredrik afasta seu corpo quente do meu e se senta com as costas apoiadas na parede. Suas pernas estão abertas, os braços apoiados nos joelhos dobrados. Ele joga a cabeça para trás. Seu lindo rosto parece cansado e derrotado enquanto ele olha para o quarto.
Eu me levanto e me acomodo entre suas pernas, recostada em seu peito nu. Ainda o sinto meio ereto, sua virilidade comprimida contra minhas costas. Adoro me sentar entre as pernas dele. Ele me faz sentir segura. E derreto quando sinto seus braços quentes e musculosos me envolvendo.
— Meus pais eram pessoas muito amorosas — começo. — Eles nunca me machucariam. Mas Seraphina não gostava deles. Dizia que eram maus e que queria me ajudar a fugir.
Faço uma pausa, prestando atenção no coração de Fredrik batendo. Sinto a respiração que sai de suas narinas, quente em meu ombro, quando ele solta um suspiro longo e profundo.
Imóvel, Fredrik não fala, só me abraça bem apertado, e conto o que aconteceu, exatamente como me lembro.
Vinte e três anos atrás...
Eu achava a garota que se mudou para a casa ao lado um pouco estranha. Nunca a via perto dos pais. Nem sabia que havia uma garotinha morando ao lado até meses depois de eles terem se mudado. Eu estava sozinha no galpão atrás de casa — passava a maior parte do tempo lá, porque era tranquilo — quando ouvi a garota cantando no quintal dos fundos. Abri devagar a porta de metal enferrujado, tentando não revelar meu esconderijo para meu pai, e me esgueirei pela lateral para olhar por uma fenda entre as tábuas da alta cerca de madeira que separava os quintais. A menina tinha cabelos pretos brilhantes, cortados logo abaixo do ombro. E usava um short cor-de-rosa com um arco-íris extravagante na coxa esquerda. Eu tinha um short igual, e fiquei intrigada com esse detalhe, que, sob quaisquer outras circunstâncias, seria insignificante.
Ela estava sentada na grama com um bicho de pelúcia no colo, entre as pernas cruzadas. Ao lado dela, um grosso livro de colorir. Também achei isso estranho, porque parecíamos ter a mesma idade, e eu já tinha abandonado os livros de colorir. Ela rabiscava furiosamente com um giz de cera enquanto cantava baixinho para si mesma. Tinha uma voz linda e melodiosa.
Apertei o rosto na cerca, tentando ver melhor o que ela estava colorindo, mas estava longe demais para entender o que era.
Então ela sentiu que estava sendo observada e parou de cantar. Levantou a cabeça de repente e ficou parada por um momento, atenta aos sons ao redor. Eu não me mexi. Não conseguia nem respirar. Não sei por que estava me esforçando tanto para não ser vista, já que queria muito falar com ela. Talvez uma parte de mim — a parte que sabia quão perigosa ela era, antes mesmo que o restante de mim soubesse — já estivesse com medo.
Então ela me viu. Eu só me movi dois centímetros, porque comecei a sentir uma cãibra nas costas, mas o movimento sutil foi o suficiente para me revelar.
Ela me encarou por um momento antes de ficar de pé e se aproximar, trazendo o bicho de pelúcia em uma das mãos — um carneiro esfarrapado e sujo, notei quando ela chegou mais perto — e um giz de cera vermelho na outra. Deixou o livro de colorir na grama.
— Olá — cumprimentou ela, inclinando a cabeça para o lado, como que para ver melhor através da fenda irregular entre as tábuas. — Qual é o seu nome?
— Cassia Carrington. E o seu? — Seraphina — disse ela, com um
sorriso cheio de dentes. Retribuí o sorriso. Gostei dela na
hora.
Seraphina se sentou sobre as folhas perto da cerca, e eu fiz o mesmo. Conversamos por alguns minutos.
— Nunca vi você na escola — comentei.
— Não, eu estudo em casa. Olhando para ela pela fresta da
cerca, eu só conseguia vislumbrar o carneiro sujo em seu colo e a ponta do dedo indicador fazendo círculos ao redor do olho preto do bicho de pelúcia.
— Quantos anos você tem? — perguntou a menina.
— Dez.
— Eu também. Mas meu aniversário está chegando, vou fazer onze.
— Eu acabei de fazer aniversário. Minha mãe comprou uma bicicleta nova para mim.
— Então sou mais velha do que você — comentou ela, com um ar de autoridade inocente que me fez sentir protegida. — Mas eu não tenho bicicleta — acrescentou, com tristeza.
Eu não tinha irmãos, mas sempre quis ter. Era difícil ser filha única, ainda mais porque eu não tinha amigos. Ao menos não até Seraphina chegar. E, dez minutos depois de começar a conversar com ela, senti que eu não só finalmente tinha uma amiga, mas também a irmã mais velha que sempre desejei.
Levei um momento para perceber que havia tristeza na voz dela quando disse que não tinha bicicleta.
— Ei, você pode vir aqui e andar na minha, quando quiser.
Eu a ouvi suspirar.
— Obrigada — respondeu ela, e fez uma pausa —, mas meu pai não gosta que eu vá na casa dos outros.
— Ah. — Dei um peteleco na ponta de um graveto, e ele voou pelo gramado. — Bom, talvez eu possa ir na sua casa.
Seraphina ficou em silêncio por um momento ainda mais longo.
— Eles também não gostam disso — respondeu, por fim —, mas a gente pode ser amiga mesmo assim.
Eu não sabia bem como aquilo iria funcionar, considerando que uma cerca nos separava, e ela não podia receber visitas nem ir a lugar algum.
Mas fizemos funcionar. Todo dia, depois que eu chegava da
escola, Seraphina vinha escondida ao galpão através de uma abertura que fizemos na cerca nos fundos do quintal. Usei um martelo para soltar os pregos em duas tábuas, de forma que pudéssemos deslizá-las e recolocá-las sem problemas.
Seraphina e eu passávamos muito tempo lá, brincando com Barbies e bichinhos de pelúcia. Eu até voltei a colorir, e descobri que gostava muito.
Éramos inseparáveis, como irmãs. Mas, com o passar das semanas, comecei a perceber quão diferentes éramos, quão diferentes eram nossos pais.
Uma tarde, Seraphina começou a tremer ao ouvir a voz áspera do pai lhe chamando da porta dos fundos, como se tivesse entrado em uma geladeira. Ela saiu correndo do galpão e rastejou pela terra, folhas e pedras na direção da abertura secreta na cerca. Acho que ela temia que, se corresse de pé, o pai a veria da varanda dos fundos.
Eu a ajudei a passar depressa pela cerca e fechei a passagem quando ela chegou do outro lado. Minutos depois, ouvi Seraphina gritando dentro da casa. Fiquei encolhida no galpão, tremendo ao escutar seus gritos de gelar o sangue. Fiz xixi na roupa, de tanto medo. Um som de chicotadas ecoava. Muitas e muitas vezes. E Seraphina gritava e gritava, até que ficou em silêncio. Mesmo depois, eu ainda ouvia a tira de couro batendo nela.
Continuei encolhida, soluçando com o rosto nas mãos, sentindo gosto de sal, catarro e bílis no fundo da garganta. Por um momento muito breve porém profundo, torci para que ele a tivesse matado, pois assim ela nunca mais precisaria passar por aquilo.
Não vi Seraphina por uma semana depois disso, mas então, um dia, a encontrei de novo sentada na grama no quintal dos fundos, como no dia em que a conheci.
— Seraphina? — sussurrei baixinho, pela fresta na cerca.
Ela não olhou, mas senti que tinha me ouvido.
— Seraphina? Você está bem? Ela mal virou a cabeça, mas, mesmo
naquele ângulo, dava para ver a dor em seu rosto. Ela usava calça e uma camisa de mangas compridas, embora estivesse calor. Eu sabia por quê. Só podia imaginar como estavam os hematomas por baixo daquelas roupas.
Nós duas estávamos com medo, mas queríamos que ela viesse para o meu lado da cerca. Assim, depois de alguns minutos, Seraphina finalmente se esgueirou para o fundo do quintal, e eu a ajudei a rastejar através da abertura.
— Ele descobriu? — perguntei, depois de estarmos escondidas em segurança dentro do abrigo. — Que você vinha escondida para cá?
Ela balançou a cabeça morena e baixou os olhos para o carneirinho em seu colo.
— Não — respondeu, baixinho. — Ele estava bravo porque deixei minha roupa no chão do quarto.
Achei aquilo a coisa mais terrível. O motivo mais idiota para alguém levar um castigo. Fiquei ali olhando para ela, boquiaberta.
Seraphina mal me olhava. Estava sentada pouco à vontade, como se os ossos das costas e da bunda doessem demais para que ficasse confortável. E notei que não parava de ajeitar a parte da calça vermelha que cobria a virilha, como se o tecido irritasse a pele lá embaixo. Aquilo me deu uma sensação esquisita. Sombria. Queria perguntar por que ela sentia coceira ali, mas fiquei com medo, por alguma razão.
Seraphina ergueu os olhos para mim.
— Preciso ir — disse de repente, e se levantou com dificuldade, segurando carneiro de pelúcia debaixo do braço. — Preciso voltar para o meu projeto.
— Que projeto? — perguntei, muito curiosa.
Seraphina sorriu, o que também achei esquisito, dadas as
circunstâncias — será que ela esquecera o que tinha acontecido? Ela estendeu a mão para mim. Eu a peguei, e a menina me ajudou a levantar.
— É só um negócio que preciso fazer. Depois eu conto.
E então ela foi embora, passando de volta para seu lado da cerca sem mais uma palavra.
Fredrik nunca me abraçou tão forte. Seus braços me apertam tanto que um pouco mais e eu nem conseguiria respirar. Sinto seus lábios no topo da minha cabeça, seu coração batendo forte em minha pele.
Levanto a cabeça e me viro para encará-lo. Seus olhos estão úmidos. Nunca o vi assim, e isso me lembra das coisas que ele me contou ter passado quando criança.
Beijo os nós de seus dedos. — Desculpa... se isso lhe traz
lembranças ruins. Eu posso parar. Fredrik balança a cabeça e enxuga os
olhos antes que as lágrimas caiam. — Não — responde ele, em voz
baixa —, não me peça desculpas. Isso não tem nada a ver comigo. Por favor... só me conte a história.
Eu beijo os nós de seus dedos de novo e continuo, relutante.
Seraphina estava diferente depois dessa última vez que o pai a espancou, mas não graças a mim ou à minha mãe. Porque eu tentei ajudar Seraphina. Eu me sentei com minha mãe, certa noite, quando meu pai estava no bar, e contei o que tinha acontecido.
— Mas, mamãe, ele bateu tanto nela! Ouvi os gritos e tive pesadelos.
Minha mãe balançou a cabeça e enfiou o garfo na boca, comendo um bocado de salada.
— É melhor você ficar fora disso, Cassia — respondeu ela, mastigando. — E também não conte para ninguém. Ouviu? Se contar, também vai ficar encrencada. — Ela apontou o garfo para mim. — O pai dela é um figurão do governo. Muito perigoso. A gente não vai se envolver, entendeu? — Ela bebeu um pouco de água.
Eu assenti, nervosa e, embora não entendesse por que minha mãe — uma mulher tão amorosa e inteligente — não queria chamar a polícia na mesma hora, para denunciar o que estava acontecendo na casa ao lado, sabia que ela também devia ter medo do pai de Seraphina por um bom motivo. Assim, fiz o que ela mandou e fiquei de boca fechada.
Isso durou mais três anos. Quando completamos treze anos —
ela alguns meses antes de mim —, Seraphina havia se tornado uma garota muito diferente daquela que conheci na grama, segurando o carneirinho. Ainda era espancada pelo pai, mas parecia não ter mais medo dele.
Até começou a ir à minha casa. Saiu pela porta da frente de onde morava, um dia, andou pela calçada e foi até a porta da minha. Fiquei chocada quando abri e a vi ali parada. Por um momento também fiquei parada, olhando para ela.
— Não vai me deixar entrar? — indagou ela, com um sorriso.
A essa altura, ela não carregava mais o carneiro de pelúcia. Disse que tinha jogado fora. Achei os restos em uma pilha de cinzas no meu quintal.
Seraphina nunca me contou tudo sobre seu “projeto”, mas disse que um dia fugiria de casa e que o projeto era um meio de conseguir isso. Eu tinha parado de fazer perguntas sobre o assunto.
Naquela tarde, Seraphina passou o resto do dia em minha casa, escondida comigo no quarto. Vimos TV e falamos sobre tudo. Ela contou vantagem por ter roubado um pouco de perfume da mãe e enfiou os pulsos debaixo do meu nariz, para que eu cheirasse. Eu gostava muito daquele perfume. Quando anoiteceu e ouvi meu pai voltando do trabalho, Seraphina ficou nervosa. Dava para ver nos olhos dela, na postura; suas costas ficaram rígidas e seu peito parou de se mexer, como se os pulmões tivessem se esquecido de respirar. Como muitas coisas a respeito de Seraphina, achei que a reação ao meu pai voltando do trabalho foi estranha. Ainda mais depois de ela aparentemente nem ter mais medo do próprio pai. Então por que teria do meu?
— Cassia! — Ouvi meu pai gritando. — Venha jantar!
Seraphina arregalou os olhos, fitando a porta do quarto.
— Só um minuto, papai! — gritei em resposta. Virando-me para Seraphina, indiquei a porta do quarto com um movimento de cabeça e falei: — Venha, acho que é hora de você voltar para casa.
Seraphina assentiu. Parecia que ela nem piscava.
— Vou sair pela janela. Não quero que seus pais contem para os meus que eu estive aqui.
Ela ainda tinha medo do pai, no fim das contas, e percebi que só estava escondendo isso melhor.
Fiz que sim.
— Está bem — respondi, e fui até a janela, abrindo o trinco e erguendo a vidraça.
— CASSIA! — berrou meu pai. — DESCE JÁ PARA COMER, PORRA! — Eu dei um gemido desesperado ao ouvir o tom de voz dele.
Ele era um bom pai — nada parecido com o de Seraphina —, mas não tolerava desobediência.
Seraphina estava começando a pular para o telhado, mas, quando ouviu a voz de meu pai pela segunda vez, parou e me olhou com uma expressão enfurecida nos grandes olhos castanhos.
Gesticulei para ela, tentando apressá-la e fazê-la sair logo.
— Por que ele está falando assim com você? — perguntou ela, estreitando os olhos, com raiva na voz.
Eu continuava correndo os olhos entre ela e a porta do quarto, ficando cada vez mais nervosa com a demora. Não queria ser colocada de castigo.
— Ele sempre fica assim quando chega do trabalho — expliquei. — Agora anda logo. Preciso descer.
Depois de mais alguns segundos olhando para mim e para a porta, Seraphina finalmente deslizou para fora e correu pelo quintal. Eu a vi se esgueirando pelo buraco secreto na cerca, em vez de sair destemida pela porta, como esperava que ela fizesse depois de ter entrado tão
corajosamente.
Uma semana depois, eu estava sentada no galpão, escrevendo em meu diário, quando Seraphina chegou. Ela estava com uma expressão de desprezo e astúcia no rosto, um sorriso que fez um calafrio percorrer minha espinha. Seus olhos estavam sombrios, e ela me olhava como se quisesse contar algo de que eu não ia gostar.
Ela se sentou no chão de concreto do galpão e me deu um beijo no rosto.
— Você me ama, Cassia? Abri um sorriso incrédulo. — Claro que amo. Você é como uma
irmã para mim.
Ela inclinou a cabeça para o lado e juntou as mãos no colo.
— Você se lembra daquela vez que me falou que queria ir aonde quer que eu fosse? Que queria ser minha irmã para sempre, haja o que houver?
Assenti com um sorriso ainda mais largo, porque era verdade. Eu queria mesmo ir aonde quer que ela fosse. Ela era a minha melhor amiga. Queria que nós duas crescêssemos juntas.
— Sim, eu lembro.
Ela sorriu, e sua expressão se abrandou.
— Ótimo. Então hoje à noite vamos fugir juntas.
Meu rosto murchou, e tentei engolir o nó que se formou em minha garganta, mas estava seco demais.
— C-como assim, fugir? Eu me sentia culpada só de ter
aquela conversa.
Seraphina me puxou para um abraço rápido, depois correu as mãos por meus braços até seus dedos encontrarem os meus. Ela segurou minhas mãos com firmeza e disse:
— Quero ir para Nova York. Já tenho tudo planejado. A gente pode pegar um ônibus. É fácil, fazem isso nos filmes o tempo todo, e ninguém nunca pede documentos, só de quem tem cara de criança. Mas a gente não tem cara de criança. — Ela apontou para nós duas. — Eu posso passar por dezessete anos, e você... bem, acho que você também, se usar um pouco de maquiagem.
Eu balançava a cabeça em negativa o tempo todo, enquanto ela explicava o plano, mas Seraphina continuou falando, a empolgação com aquele plano crescendo no olhar.
— Quero ser cantora — anunciou, com o maior sorriso de
deslumbramento que já tinha visto em seu rosto. Ela apertou minhas mãos ainda mais. — E você também pode ser, Cassia. Nós duas podemos ser cantoras. Você canta até melhor do que eu!
Fiquei vermelha e baixei os olhos para nossas mãos.
— E-eu não sei, Seraphina. — Olhei para a porta do galpão, apavorada com a possibilidade de meus pais estarem ouvindo. — Fugir não vai ser fácil. Meus pais vêm me ver toda noite. Primeiro, minha mãe. Depois, mais tarde, meu pai. Eles dariam pela minha falta antes de chegarmos ao terminal de ônibus. E o dinheiro? Eu não tenho dinheiro.
Seraphina abriu um sorriso enorme se curvou para mexer no bolso de trás. Quando tirou a mão, havia um bolo de cédulas nela.
— Roubei da caixa de joias da minha mãe — explicou, com um sorriso de orgulho, e pôs o dinheiro em minhas mãos. — Com isso, dá para a gente chegar em Nova York.
Olhei para o dinheiro e depois de novo para ela. Não queria dizer não, mas, ao mesmo tempo, estava com medo. Com medo de fugir. De ser pega. De ficar de castigo pelo resto da vida.
Mas acho que, acima de tudo, estava com medo de Seraphina.
— Então, você vai embora comigo? Ela ficou ali, as mãos no colo, os
dedos se enroscando ansiosamente uns nos outros. Seu rosto estava cheio de empolgação, e eu previ perigo, risco e encrencas — tudo o que sempre procurei evitar. Tudo o que eu temia.
Mas então, finalmente, respondi: — Mas e se meus pais acordarem e
perceberem que eu fui embora? E se eles pegarem a gente antes de chegarmos a Nova York?
— Eles não vão pegar a gente — retrucou ela, com tamanha convicção que não consegui deixar de acreditar. — Vou cuidar disso antes de a gente ir.
Antes que Seraphina saísse do galpão naquela tarde e voltasse para seu quintal, eu concordei em fugir com ela. E prometi confiar nela, não importava o que ela precisasse fazer para me ajudar a fugir.
Estou deitada na cama, a cabeça apoiada na coxa de Fredrik. Não lembro quando mudei de posição, de tão absorta que estava na lembrança. Fazia um ano que não me lembrava de nada disso, nem de qualquer coisa sobre minha vida, então é muito para assimilar.
A mão de Fredrik se move pelo meu cabelo com suavidade, fazendo arrepios brotassem da nuca e percorrerem todo o meu corpo. É como se ele estivesse me consolando e, mais do que isso, como se estivesse sofrendo, e não quero continuar. Sei que ele teve uma vida terrível e passou por coisas aterrorizantes quando menino; coisas que provavelmente jamais irá me contar, mas sei que foram muito piores do que qualquer coisa que eu tenha vivido.
— O que Seraphina fez com os seus pais, Cassia? — pergunta ele, com a voz suave, enquanto enfia os dedos nos meus longos cachos.
Olho para o aparelho de TV na parede do outro lado do porão e deixo que a cena daquela noite se desenrole diante de mim como se estivesse passando na tela escura.
Então, respondo:
— Ela apunhalou meu pai no pescoço enquanto ele dormia na sala, em sua poltrona favorita. Depois derramou gasolina que pegou no galpão por toda a casa e pôs fogo. Minha mãe morreu queimada no quarto.
Uma parte de mim sente falta deles, mas outra não sente nada, porque aconteceu há muito tempo.
— Eu não fui para Nova York com ela — comento, com a voz distante, vendo o rosto de Seraphina em minha mente quando foi levada embora no carro da polícia. Seu rosto estava encostado no vidro enquanto ela me olhava. — Contei para a polícia o que ela fez, e eles a levaram embora. Ela confessou tudo. Nunca mais nos vimos. — Meus dedos se agarram ao lençol debaixo de mim. — Nunca mais nos vimos até um ano atrás, quando ela me encontrou em meu apartamento em Nova York e tentou me matar. Sei que ela acha que estava me ajudando ao matar meus pais. Acho que também matou os dela, antes dos meus. Mas eu a traí quando fiz a denúncia. E agora... ela quer se vingar de mim pela vida que perdeu.
Fredrik não diz nada por muito tempo, e fico preocupada com o que ele deve estar pensando. Ainda consegue amá-la, agora que sabe o que ela fez? Nunca foi minha intenção fazer com que ele parasse de amá-la contando a verdade, mas não consigo deixar de ter esperanças de que talvez agora ele consiga enxergar a razão.
— Fredrik?
CAPÍTULO DEZOITO Fredrik
— Sim? — respondo, embora a essa altura não saiba ao certo se vou conseguir me obrigar a dar qualquer resposta além dessas três letras.
Minha vida acabou. Tudo o que sempre pensei saber sobre Seraphina, sobre nossa vida juntos, o amor que vivemos, tudo acabou. Porque agora sei que não há nada que eu possa fazer para ajudá-la, para trazê-la de volta para mim. Ela é um perigo para mim, para si mesma e para todos ao redor. Até para Cassia. Principalmente para Cassia.
Seraphina era perturbada quando a conheci, oito anos atrás, quando me apaixonei por ela. Mas eu não sabia a dimensão de sua doença até agora. Nunca soube que ela sofrera experiências traumáticas quando criança, assim como eu.
Nunca soube.
Mas nós dois somos muito diferentes, apesar de nossos passados serem um tanto semelhantes. Eu não mato inocentes. Eu, embora seja um canalha sádico, torturador e assassino, tenho limites e padrões. Sei quando parar. Me sinto culpado por meus erros. Mas agora sei que Seraphina não entende o que é culpa ou remorso.
Como pude estar tão enganado a seu respeito?!
Como pude ser tão cego?! Por amor.
Seraphina tinha razão desde o princípio. Estar apaixonado é estar morto, porque o amor é fatal.
Cassia levanta a cabeça da minha perna e apoia o corpo nu em um dos braços. Ela me encara.
— Fale comigo — pede, beijando minha bochecha. — Você está bem?
Forço um sorriso e faço que sim. Então ela baixa o olhar, e sinto a
tristeza e a preocupação a consumindo. Ergo seu queixo com a ponta do dedo.
— Agora fale comigo você — peço, com delicadeza. — No que está pensando?
Ela engole em seco, nervosa, e encara o teto, os olhos castanhos cheios de preocupação.
— Você ainda vai me proteger dela quando finalmente a encontrar?
Meu coração está morto. Negro. Acabado. Mas não por causa de Cassia. Se ele ainda consegue bater, mal e mal, é graças a ela, embora eu não saiba quanto tempo vá aguentar.
Eu me curvo e beijo a testa dela, segurando sua nuca e a mantendo ali, fechando os olhos com força.
Logo vou ter que fazer a coisa mais difícil que já fiz na vida. Mas, por enquanto, vou dar a Cassia tudo o que ela quiser.
— Eu sempre vou proteger você dela — digo, me afastando devagar. — Seraphina nunca mais vai machucar você. Vou garantir isso.
Cassia me lança um olhar terno e agradecido e deita a cabeça em meu colo outra vez.
Ficamos em silêncio por um tempo enorme, eu passando os dedos pelo cabelo dela, até que por fim Cassia adormece. Saio de debaixo dela com cuidado para não acordá-la e a cubro com o lençol, depois de prender o grilhão outra vez em seu tornozelo sadio. Notei que a chave estava no criado-mudo ao lado da cama o tempo todo e deduzi que não a levei para cima comigo da última vez, quando saí correndo e a deixei sozinha. Foi assim que ela conseguiu abri-lo.
Ela não tentou fugir, e duvido que tente, mas não posso arriscar.
Deixo Cassia sozinha e volto para cima, onde me sento no sofá, apenas de cueca, olhando para a escuridão e pensando em tudo o que aconteceu. E fico assim até que a luz de um novo dia penetra as cortinas e bate no chão perto dos meus pés descalços.
~~~
— Fredrik, o que foi? — pergunta Izabel ao telefone, percebendo o tom de urgência em minha voz.
— Preciso falar com você, só isso — respondo, depois de finalmente chegar ao fundo do poço e admitir para mim mesmo que preciso falar com alguém. Mas, se vou falar com alguém, só pode ser com Izabel. — Você já voltou de Seattle? Onde e quando pode me encontrar?
— Sim, voltei hoje de manhã. Niklas e Dorian ficaram lá para concluir tudo. A outra Ordem mandou só dois homens, foi moleza.
— Muito bem, e onde a gente pode se encontrar?
— Que tal eu ir à sua casa? — pergunta ela, com cautela. — Posso chegar aí em duas horas.
— Não — digo, indo até a porta para deixar Greta entrar. — A gente precisa conversar em outro lugar. Qualquer lugar, menos aqui.
— Fredrik, você está começando a me deixar preocupada. Primeiro...
— Pode me encontrar no Druid Hill Park? — interrompo. — No mesmo estacionamento que a gente se encontrou antes da missão Vanderbilt, no mês
passado? Daqui a duas horas. Izabel faz uma pausa.
— Beleza, estarei lá.
Encerro a chamada. Greta passa por mim com um sorriso meio nervoso. Ela sempre teve medo de mim, mas depois que soltou Cassia da corrente sem minha permissão, acho que nem queria vir trabalhar hoje.
Ela deixa a bolsa no balcão da cozinha, soltando as chaves ao lado. Começa a limpeza na mesma hora, se curvando para pegar um pulverizador debaixo da pia e evitando cruzar o olhar comigo a qualquer custo.
Já de jeans, suéter preto grosso e um tênis All Star, mais informal, coloco o casaco e me preparo para sair.
— Vou sair por algumas horas — digo, ajustando a gola do suéter. — Em hipótese alguma solte Cassia daquela corrente. Entendeu? — Por fim, ponho um gorro preto de lã.
Greta assente, mal me encarando. — Sim, sr. Gustavsson. Pegando as chaves do balcão,
seguro-as em uma das mãos enquanto verifico se minha carteira está no bolso de trás da calça.
Greta borrifa o tampo do balcão e começa a limpá-lo.
— A propósito — acrescento —, Cassia talvez conte a você as coisas de que se lembrou.
Greta ergue os olhos do trabalho, surpresa.
— Ela lembrou?
— Ao que parece. — Eu me aproximo, fitando seus olhos nervosos. — Mas não quero que você fale com ela respeito. A menos que ela toque no assunto. E, mesmo assim, fale pouco. Deixe-a falar, se ela precisar, mas não passe disso. Entendeu?
A expressão confusa no rosto enrugado de Greta se acentua, mas ela concorda com outro movimento nervoso de cabeça.
— O senhor volta para o jantar? — pergunta ela, enquanto me dirijo até a porta.
Não respondo, e saio para o ar frio do inverno, indo direto para o carro.
Paro para tomar café, abastecer e comprar o jornal, tentando encontrar coisas para fazer e gastar duas horas. E pensar. Sobretudo pensar. Quanto devo contar a Izabel? Não tudo, mas o suficiente para... Já estou me arrependendo de ter marcado esse encontro. Não há nada que Izabel possa fazer além de me dar conselhos, e desde quando sou o tipo de homem que precisa de conselhos? Nunca fiz confidências a ninguém além de Seraphina. E Willa, quando eu era só um menino oprimido por homens perversos. Mas agora... agora estou desesperado, e ninguém no mundo tem mais intimidade comigo do que Izabel Seyfried. Victor Faust pode ser meu amigo e alguém em quem acredito poder confiar, mas é homem, e eu nunca consegui desenvolver com um homem o tipo de laço que tenho com algumas poucas mulheres.
Meu passado com homens impede tais laços.
As duas horas se arrastam sem fim, e passo os últimos trinta minutos desse tempo esperando no estacionamento do parque, com o motor ligado para me aquecer. O céu está cinzento e encoberto por espessas nuvens de inverno, que a qualquer momento vão começar a jogar neve em cima de tudo.
Nota mental: quando tudo isso acabar, me mudar para o Sul.
O Mercedes preto de Izabel entra no estacionamento. Ela para o carro perto de mim.
— Porra, que frio — comenta ela, tremendo ao sentar no banco do passageiro e fechar a porta depressa.
Entrego a ela um café quente em um copo descartável com tampa.
— Você me conhece muito bem. Ela sorri, e seus grandes olhos
verdes brilham, agradecidos, quando ela segura o copo com as duas mãos, para aquecê-las. Apertando os lábios, ela sopra o vapor que sai da pequena abertura na tampa e toma um gole cauteloso, reclamando quando o líquido queima seus lábios.
— Então, o que é isso tudo? Ela deixa o copo no suporte do
painel, entre nós. Depois ajeita o longo sobretudo branco, puxando-o debaixo do corpo, e enfia as chaves no bolso. Seu longo cabelo ruivo está preso em um rabo de cavalo sedoso.
Hesito por um longo tempo, tirando as mãos do volante e repousando-as no colo. Encosto a cabeça no apoio do banco de couro.
— Bem, antes que você diga qualquer coisa — começa ela, depressa —, quero que saiba que contei para o Victor que ia encontrar você aqui.
— Eu não esperava que você não contasse. — Sorrio para ela e brinco: — O que foi? Achou que eu planejava matar você?
Izabel ri baixinho e me dá um soquinho no ombro.
— Eu conto tudo para o Victor, você sabe — responde ela, com um sorriso. — Além disso, você não me mataria.
Ergo uma sobrancelha e abro um sorriso torto.
— É mesmo? Você deve se achar especial. Tenho novidades, princesa. — Seu rosto todo se abre em um sorriso. — Está bem, até que você é especial — admito, mas então aponto para ela, estreito os olhos e digo: — Mas não fique muito convencida. Eu mataria você mesmo assim.
Ela ri, revira os olhos e apoia a cabeça no encosto por um momento.
Então, pergunta:
— Esse é o seu jeito de quebrar o gelo? — Ela inclina a cabeça, para poder me olhar. — Porque sinto que o que você tem para me contar é sério.
— É.
— Bem — continua ela, olhando para o para-brisa —, só não esqueça o motivo de eu ter falado do Victor.
— Eu sei — respondo. — Porque você não esconde nada dele.
Ela afasta a cabeça e as costas do assento e se vira um pouco para me encarar.
— Eu admiro você por isso — digo. — Por ser honesta com ele.
— Eu tenho que ser. Primeiro, por amor. E, segundo, porque se eu não for honesta com ele, ele pode me matar.
Abro um sorriso.
— Duvido que Victor matasse você. Ela me olha de esguelha. — Você não tem convivido muito
com ele. Todo aquele poder. — Ela dá risada. — Ele me dá um pouco de medo.
O sorriso em seus olhos me diz que ela está brincando.
— Olha, você é como um irmão para mim — explica ela, ficando séria de novo. — E se um dia me pedisse para manter segredo sobre algo pessoal, eu não contaria para o Victor nem para ninguém. Mas só quis avisar antes que você comece a falar, para você ter certeza de que o que vai me contar é alguma coisa que preciso saber ou não.
— Eu sei, e agradeço o cuidado que você tem comigo, mas eu só perco o juízo às quartas. Sei o que estou fazendo.
— Hã, Fredrik — ela sorri e inclina cabeça pensativamente —, hoje é quarta.
Eu suspiro.
— É. Eu sei.
O sorriso desaparece do rosto dela em um instante quando percebe como o assunto é sério e como sei muito bem que estou correndo um grande risco contando para ela.
Finalmente, pego o celular do painel e passo o dedo na tela para abrir a câmera do porão. Izabel observa com atenção enquanto espero que a imagem apareça. Fico assistindo por um momento, para ver se não há nada fora do normal. Cassia está sozinha no quarto, andando de um lado para o outro e arrastando a corrente atrás de si. Ela usa um grosso roupão azul que vai até o tornozelo, por cima da camisola. Parece perdida e ansiosa. Eu me pergunto se Greta já esteve lá embaixo com ela e concluo que sim, porque ela já deve ter tomado café da manhã.
Hesito, fechando a mão ao redor do celular, e contemplo a situação em silêncio uma última vez, para ter certeza de que quero mesmo revelar esse assunto.
Entrego o celular a Izabel. Ela o pega da minha mão, relutante, e
olha para a tela. Depois de observar um momento e correr os olhos algumas vezes entre mim e o vídeo, pergunta:
— Quem é essa? — Então olha para a tela de novo.
— O nome dela é Cassia. Mais uma longa pausa. Izabel tira os olhos do telefone e me
encara por mais tempo. — Ok... — responde, simplesmente,
esperando que eu explique. — Este é um link de vídeo ao vivo.
Do meu porão.
Ela franze o cenho, confusa. — Você está mantendo uma garota no
porão? Não entendi.
Dou um suspiro profundo, com dificuldade para pensar em como contar. Por onde começo? O que devo omitir? Preciso tomar cuidado, porque Izabel é esperta e não vai ter dificuldade em
reconhecer lacunas na história. — Estou usando essa garota para me
ajudar a encontrar Seraphina. — Usando como? — Izabel já está
com um ar de reprovação. — O que ela tem a ver com a Seraphina? Há quanto tempo você a mantém lá? Peraí... — Ela para de repente e olha para a tela mais uma vez. Quando ergue os olhos para mim, cheia de desconfiança e crítica, diz: — Aquilo é uma corrente no tornozelo dela?
— Sim — admito.
Izabel tenta reprimir o sentimento inicial de reprovação para me dar o benefício da dúvida.
— Está bem, então você está interrogando a garota. Ela está envolvida na vida de traição e assassinato da Seraphina e em só Deus sabe o que mais. Isso eu entendo.
Ela deixa o telefone no painel. Percebo, pela expressão em seu
rosto, que ela não tem tanta certeza de que qualquer parte da desculpa que acaba de imaginar seja válida.
— Não — confesso, hesitante. — Cassia é inocente. Ela está presa em meu porão há mais ou menos um ano. Desde cinco meses depois da missão de Hamburg e Stephens, no Novo México.
Izabel trava.
— Um ano? — indaga, chocada. — E ela é inocente? Fredrik, o que você tem na cabeça, porra?
Fecho os olhos.
— Fica calma e me deixa explicar. Ela inspira profundamente,
concentrada, e fica me olhando no pequeno espaço confinado.
— Victor tinha razão — diz, e isso faz com que eu de repente vire a cabeça de vez, encarando-a. — Quando mandou você voltar de Seattle, Victor me contou que tinha suspeitas sobre o seu envolvimento com Seraphina, de que era
isso que estava deixando você desconcentrado. Eu nem sabia que ela ainda estava viva até aquela noite, Fredrik. — Ela balança a cabeça devagar. — Porra, Victor só me falou disso porque eu estava muito preocupada com você e com o jeito como você anda agindo. Mas, Fredrik, você não pode fazer isso com essa garota, seja qual for o papel que ela tem na vida de Seraphina. Não se ela é inocente. Você precisa soltá-la.
— Izabel — intervenho, em voz baixa, esperando conseguir fazê-la entender sem revelar demais —, Cassia não quer ser solta. Ela morre de medo da Seraphina. Ela quer ficar comigo.
As rugas se aprofundam na testa de Izabel.
Ela demora um momento, mas então diz:
— Ela quer ficar com você? Meu Deus, Fredrik, ela está com uma corrente no tornozelo. Está trancada em um porão. — Ela gesticula, enfatizando as palavras, tentando me fazer entender como soam ridículas. — Se ela quer ficar com você, por que precisa ficar trancada?
— É só uma precaução. Para o caso de tentar fugir. — Até eu acho meu discurso contraditório e idiota.
E, a julgar pelo sorriso forçado nos olhos de Izabel, ela pensa da mesma forma.
Mas então a expressão dela muda de repente, como se uma explicação razoável tivesse acabado de surgir em sua mente.
— Você está apaixonado por essa garota — acusa ela, o que me choca um pouco. Eu não esperava por isso. — Você não quer soltá-la porque está apaixonado por ela. Faz sentido. Tem algo diferente em você... Eu senti que tinha algo diferente em você, e não parecia nada... ruim. Só diferente.
Eu quero dizer Izabel, você está errando feio, porque o que ela está dizendo é ridículo, mas, ao mesmo tempo, é uma saída. Se ela acha que o único motivo pelo qual estou mantendo Cassia encarcerada é porque estou apaixonado por ela, isso vai parecer
menos cruel, e talvez Izabel consiga se obrigar a aceitar minha decisão e guardar meu segredo, ainda que por pouco tempo, até eu poder acertar tudo.
— E ela deve estar apaixonada por você — continua ela, o entendimento brilhando em seu rosto conforme ela junta mais peças do quebra-cabeças. — Síndrome de Estocolmo. Faz sentido.
Na verdade, me intriga o quanto tudo que ela acaba de dizer faz mesmo sentido.
Só tem uma coisa: nada disso é verdade.
Izabel se debruça sobre o painel e entra em meu campo de visão.
— Mas, Fredrik, isso é loucura, até mesmo para você...
— Ah, obrigado pela parte que me toca — interrompo, com um sorrisinho, tentando melhorar o clima.
Ela sorri.
— Você sabe o que quero dizer. Claro que sei, mas não pude resistir. Então, tão depressa quanto fiquei
brincalhão, volto a ficar sombrio e desvio o olhar, fitando o dia frio e cinzento pelo para-brisa.
— Você sabe que Victor... porra, até mesmo eu ajudaria você a encontrar Seraphina. — Ela apoia o corpo no assento de novo, ainda de frente para mim. Eu não olho para ela. — Sei que você acha que precisa fazer isso sozinho, entendo perfeitamente. Mas não precisa ser assim. Não às custas dessa garota inocente. Fredrik, por que você precisa dela para encontrar Seraphina?
Meus ombros sobem e descem com um suspiro profundo e meu olhar se perde em meu colo, onde meus dedos se agitam, inquietos. Então, depois de um
momento de contemplação silenciosa, conto a Izabel a mesma história que Cassia me contou noite passada, de como ela e Seraphina se conheceram. Izabel ouve o tempo todo com os lábios entreabertos e uma expressão de horror e tristeza crescentes distorcendo aos poucos seu semblante. Evito ao máximo encará-la, porque percebo o quanto a história a afeta. E começo a me arrepender de contar a ela, logo a Izabel, que viveu nove anos sob o jugo de um famigerado chefão do narcotráfico mexicano que a molestava e estuprava e que a manteve prisioneira por tempo suficiente para transformá-la na assassina que ela é hoje.
Quando a história acaba, Izabel não consegue falar pelo que parece uma hora, mas na verdade são poucos minutos. Vejo as emoções brutais que a corroem, causadas sobretudo pelas coisas por que Seraphina passou, as lembranças da própria vida com Javier Ruiz e todas as dificuldades do passado que ela, assim como eu, com um passado semelhante, tenta apagar da mente. Mas, também como em meu caso, por mais que ela se esforce, as cicatrizes mais profundas nunca se apagam.
— Fredrik... — sussurra ela, e então vira a cabeça em minha direção — ... você precisa soltar essa garota. Tem que fazer isso, ainda mais agora.
Balanço a cabeça em negativa, embora na verdade não quisesse que ela me visse fazendo isso — foi um reflexo. Não posso soltar Cassia e não vou soltar, por mais que Izabel me pressione.
Por que contei tudo a ela? No que isso poderia me beneficiar?
Sinto a mão dela em meu antebraço enquanto me agarro ao volante. Seus dedos me apertam.
— Me escuta. — Sua voz se torna mais aguda, determinada, e finalmente volto a encará-la. — Olhe só o que ela passou. Pense no que você acabou de me contar. — Ela sacode meu braço. — Aquela escrota desalmada... apesar das coisas horríveis que ela passou, matou
os pais dessa menina. Essa mulher ficou traumatizada quando criança por causa do que a sua ex-esposa fez com ela. Passou por algo que ninguém, ninguém, porra, deveria ter que passar, e agora está sendo mantida prisioneira, acorrentada em um porão como um
animal, e o que torna isso mais doentio é que ela acha que está apaixonada por você! — Sua voz cada vez mais alta enche o carro, e seus dedos estão cravados em meu braço.
Izabel agora parece bastante comigo quando preciso torturar e matar alguém para apaziguar as lembranças dolorosas.
Não consigo mais olhar para ela. Os nós dos meus dedos estão brancos
de tanto apertar o volante. Finalmente, sinto sua mão se afrouxar
e soltar meu braço.
— Eu vou ajudar você — diz ela, com a voz suave. — Vou fazer o que você precisar que eu faça, mas tem que libertar essa garota. A gente pode levá-la para um abrigo para se proteger até que Seraphina seja capturada...
— Não.
O silêncio enche o carro. Consumido pelo remorso e um leque
de outras emoções negativas, tudo o que consigo dizer é:
— Sinto muito pelo que você passou quando estava com Javier Ruiz. E sinto muito por ter metido você nessa. Nem sei por que fiz isso. Mas não vou soltar Cassia. Preciso dela para encontrar Seraphina. Ela é a única maneira de encontrar Seraphina.
Depois de um momento, Izabel anuncia, em um tom sombrio:
— Então você não é quem eu pensava que fosse.
Ouço a porta se abrir com um estalo, e uma lufada de ar frio invadir o carro.
— Aonde você vai? — pergunto, com cautela, sem mover um músculo.
Ela abre a porta de vez e sai do carro. Debruçando-se para dentro e com uma das mãos apoiada na porta, ela me encara com o olhar cheio de raiva, decepção e dor.
— Se você não soltar aquela garota — diz, entredentes —, eu vou.
Ela bate a porta, interrompendo a passagem de ar gelado pelo carro.
— Izabel, espera! — Eu saio do carro em segundos e dou a volta pela frente, encontrando-a do outro lado. — Você não pode fazer isso. Precisa confiar em mim!
Ela para na porta do próprio carro, mas sem abri-la, cruzando os braços com força contra o peito, enquanto o vento agita seu longo casaco branco.
Enojada comigo, ela balança a cabeça com indignação.
— Eu estava enganada — declara. — Você não ama aquela garota coisa nenhuma. Ainda está apaixonado por aquela escrota. E está tão apaixonado que está disposto a arruinar a vida de uma garota inocente só para encontrá-la. Como se o que Seraphina fez com ela já não fosse o bastante! Não acredito que você seja capaz disso, Fredrik! — A voz dela falha.
Uma família pequena sai do estacionamento, indo para a estufa botânica. Ouvindo os gritos de Izabel, o pai pega a mão da filhinha e a puxa para mais perto, colocando-a entre ele e a esposa. Os pais nos olham por cima do ombro, enquanto apertam o passo pela calçada.
Izabel e eu esperamos até que eles entrem no prédio antes de continuar, nos fuzilando com os olhos, os dela mais cheios de raiva e decepção do que jamais desejei ver.
— Não posso soltar Cassia — digo mais uma vez, muito calmo.
Ela dá meia-volta e abre a porta do carro, disposta a me deixar ali plantado.
— Izabel! — Minha voz rasga o ar. Ela para, ainda entre a porta e o
carro, o rosto consumido pela raiva, o corpo rígido e em conflito com a necessidade de ir embora.
Eu suspiro e olho para meus sapatos, deixando o remorso e a dor me destruírem de dentro para fora.
E então, finalmente, entendo por que eu trouxe Izabel aqui, por que preciso tanto dela.
— Não posso soltá-la... não posso. Porque Cassia é Seraphina.
Ela me olha com a expressão vazia, mas por trás dos seus olhos há um lago de assombro, confusão e negação, e ela está se afogando nele.
Ela se afasta da porta, mas a deixa aberta e vai muito devagar em minha direção. Eu a observo em silêncio enquanto ela se aproxima, tentando decifrar o véu de perplexidade aparentemente impenetrável que a consome, e tudo o que consigo detectar nele é dor. Mas não sei por quem ela sofre: se por Cassia, por Seraphina, por mim ou por si mesma.
Os cantos de seus olhos começam a brilhar com lágrimas. Ela sobe na calçada e toca meu rosto com delicadeza. Assim que faz isso, aquela dor sem nome que ela abriga se transfere diretamente para mim. Sua garganta se move quando ela engole as lágrimas. Neste momento, percebo que estou fazendo a mesma coisa.
— Ah, Fredrik — sussurra ela, balançando a cabeça.
Mas é só o que ela consegue dizer. Izabel tira a mão fria do meu rosto e a deixa cair ao lado no corpo.
Sufoco minhas próprias lágrimas, porque elas são ridículas pra caralho e não têm lugar em meus olhos. Eu não tenho esse direito. Não quero esse direito. Então enfio as mãos nos bolsos do casaco e me recomponho, voltando a ser apenas Fredrik Gustavsson, o Especialista, o Chacal — qualquer um, menos o homem com coração ferido que perdeu o direito de chorar, gostar ou amar há muito tempo.
— Eu preciso da sua ajuda, Izabel. Ela balança a cabeça várias vezes. — Me conta tudo.
CAPÍTULO DEZENOVE Fredrik
Para escapar do frio e do interior minúsculo do carro — Izabel disse que precisava de mais espaço para respirar, depois do que acabei de lhe contar —, encontramos um lugar sossegado para nos sentarmos dentro da Sala do Deserto da estufa. O banco fica escondido entre pedras, pés de yucca e cactos. Está muito quente ali, uma diferença marcante em relação à baixa temperatura lá fora. Izabel e eu tiramos os casacos e os colocamos no colo antes de nos sentarmos. Eu tiro meu gorro preto e o enfio no bolso, junto com as chaves.
— Por que você fica me olhando assim? — pergunto a ela, me referindo àqueles olhos verdes tristes, cheios de sofrimento e piedade.
Eu não aceito piedade. Ela com certeza sabe disso.
— Eu só... Bem, é que sei o quanto você amava Seraphina — explica ela, com palavras suaves e cheias de dor. — Isto é, eu nunca soube de toda a história, mas sabia, ou melhor, sei o suficiente para entender que isso não deve ser fácil para você. E-eu não consigo imaginar... como isso é possível, afinal?
Olho para minhas mãos. — Sinceramente, não sei —
respondo, desanimado. — Eu não sabia extensão de tudo isso até a noite passada. — Olho para Izabel, à minha esquerda. — Ela finalmente se lembrou de seu passado, ou o que acredita ser
seu passado. Izabel, eu não fazia ideia. Nem sei o que estou dizendo, estou tão confuso quanto você com tudo isso. — Meu olhar se volta para minhas mãos, dobradas entre as pernas, os cotovelos apoiados nas coxas. Eu mexo no relevo do meu grosso anel, constrangido, lembrando depressa o que mandei gravar nele: O Chacal. Para sempre lembrar onde surgiram as trevas dentro de mim. Para o caso de um dia eu querer esquecer.
— Como assim ela lembrou? Hesitante, olho para a flora desértica,
procurando sinais dos visitantes, que podem estar prestes a entrar para visitar esta sala.
— Cassia, ou melhor, Seraphina, sofre de amnésia desde que a tirei do abrigo depois do incêndio...
Um ano atrás — Nova York
Eu estava seguindo Seraphina havia duas semanas, depois de tê-la visto em um telejornal, na Times Square, passando atrás do repórter em uma pequena multidão. Derrubei uma xícara de café fervente no colo quando vi seu rosto passando na tela. Havia seis anos que eu estava à sua procura. Seis anos desde a noite em que ela matou a última das três mulheres inocentes — presumivelmente por minha causa —, injetou drogas em mim, pôs fogo em minha casa e arrastou meu corpo para o grande terreno atrás da construção, para que eu não morresse queimado. Nunca mais a vi depois daquela noite, até um ano atrás. Eu achava que ela já estaria longe, àquela altura. Morta, até. Porque não era do feitio de Seraphina simplesmente desaparecer. Ela gostava do jogo. Vivia para ele. Eu esperava que ela deixasse um rastro de cadáveres — todas mulheres louras — para que eu pudesse caçá-la. Assim, quando a vi naquela noite, depois de tanto tempo, algo sombrio e predador estalou dentro de mim. Expectativa. Vingança. Desejo. Amor...
Deixei Baltimore naquele dia e fui para Nova York.
Duas semanas depois, encontrei-a no lugar por onde deveria ter pensado em começar a busca, trabalhando como cantora em um bar e restaurante chique de jazz e blues. Não havia nem sinal de uma Seraphina Bragado em lugar algum de Nova York, nem em nenhum outro lugar, aliás. Usei recursos da Ordem para procurar seu nome em toda parte durante seis anos. Ela não tinha nem certidão de nascimento, nem cartão de crédito naquele nome. Mas isso não me surpreendia muito, na verdade, porque ela estava trabalhando para outra Ordem e, como todos nós, nunca usava identidade verdadeira. Mas eu não fazia ideia de que o motivo pelo qual eu não conseguia achar nada sobre Seraphina fosse porque ela estava vivendo sob o nome de Cassia Carrington. Ela morava em um apartamento em Nova York. Pagava contas. Tinha uma grande amiga que morava do outro lado do corredor. E tinha um emprego. Levava uma vida normal, à vista de todos, e parecia estar assim havia muito tempo.
Finalmente, depois de anos de busca, pensei tê-la encontrado.
Fui para o bar naquela noite usando meu melhor terno, do jeito que ela sempre adorava me ver vestido, e tinha um plano.
O bar cheirava a charutos adocicados, uísque e perfume de mulher. Eu estava intoxicado pela atmosfera. Sempre adorei lugares como aquele, onde são servidos os melhores vinhos e há espetáculos sofisticados. Seraphina, apesar de sua profissão de assassina ou de seus ímpetos sexuais sombrios que só encontravam par nos meus, era uma mulher muito refinada — quando não estava matando alguém ou misturando seu sangue com o meu durante o sexo, é claro.
Escolhi uma mesa pequena, redonda e pouco iluminada, bem à esquerda do palco, para ficar à vista, mas sem ser o primeiro rosto que ela notaria quando se aproximasse do microfone. Um punhado de instrumentos ocupava o palco, atrás de onde ela ficaria, e mais dois microfones altos estavam posicionados atrás e ao lado dela, no lugar das backing vocals.
Aquilo já estava começando a trazer muitas lembranças de quando fomos perdidamente apaixonados, por dois curtos anos.
Eu nunca me sentira tão ansioso — meu estômago se encolhera em uma bola de músculos dura como pedra, que queimava minhas entranhas. Minha garganta estava dolorosamente seca, por mais que eu tomasse goles do uísque, só para umedecê-la. Mas eu mantinha minha compostura impecável, sem revelar a ninguém sentado às mesas ao redor que, lá no fundo, eu estava prestes a explodir de expectativa e necessidades que somente Seraphina poderia entender.
A banda subiu ao palco em silêncio e se posicionou, seguida pelas backing vocals, mulheres usando vestidos idênticos de renda preta, que envolviam suas silhuetas até os joelhos.
Seraphina apareceu por último. Ela estava linda. A coisa mais linda
que eu já vira, como sempre foi, desde o dia em que nos conhecemos. Só que desta vez uma longa cabeleira loura escorria pelos ombros, posicionada perfeitamente para que cada lado formasse uma onda loura sedosa e terminasse em um semicírculo logo abaixo de cada seio. Nem um fio de cabelo estava fora do lugar. Ela usava um vestido curto bege, adornado por plumas e flores de lantejoulas, que compunham um desenho complexo sobre seus quadris e coxas, além de sapatos bege de salto alto, com um brilho prateado salpicado ao redor dos saltos e solas.
Eu estava hipnotizado por ela. Nunca a vira com cabelo louro e com uma maquiagem suave, em tons nudes e rosados, muito menos com um vestido tão leve e macio. Seraphina sempre se vestia de preto. Tingia os cabelos de preto. Pintava os olhos e os lábios em tons escuros. Era como se um anjo tivesse substituído o diabo diante dos meus olhos.
Eu nem imaginava quão verdadeira era essa ideia. Ainda não.
A música começou, e na mesma hora sua familiaridade me deixou atordoado. Minha mão apertou o copo de uísque. Meus ombros ficaram rígidos e eu parei de respirar naquele exato instante.
A letra de “Wicked Game” saía de seus lábios, muito tórrida e cheia de sentimento. Exatamente como eu me lembrava de ela cantar para mim, anos antes. Ela sabia que eu estava ali? Me vira entrar no prédio ou atravessar o salão, procurando a mesa perfeita? Será que ela já sabia que eu estava na cidade e a encontrara? Era possível. Seraphina era uma mestra do assassinato e da espionagem. Estava no auge da forma, era difícil se esconder dela e impossível escapar depois de ser encontrado. Ela sempre estivera um passo à minha frente.
Mas, quanto mais eu a observava, mais começava a rejeitar essa ideia.
Ela olhou para a multidão algumas vezes, quando não fechava os olhos para enfatizar algum verso. Ela movia o corpo esbelto e curvilíneo no ritmo da batida lenta da canção, gesticulando com as mãos cheias de anéis.
Aquela bola ansiosa e quente que era meu estômago começara a abrasar meu peito, pois a canção continuava e ela não me notava. Eu queria ficar de pé e olhar em seus olhos, mas não o fiz. Fiquei sentado ali, parecendo tão calmo quanto todos que só tinham ido apreciar o espetáculo.
Quando chegou o último refrão, eu já tinha certeza de que teria que trocar de mesa para que ela me visse.
Mas, então, ela finalmente me olhou.
Seus olhos castanhos suaves encontraram os meus. E ela desviou o olhar.
Seraphina não me reconheceu. Mesmo que estivesse fingindo, eu
teria detectado o menor sinal de reconhecimento. Ela não deu nenhum. Eu era para ela como qualquer outro homem sentado na plateia naquela noite, fazendo amor com ela em pensamento, bebendo de sua alma que se derramava sobre o público em doses provocantes através da voz.
Eu estava perplexo.
E desolado.
Eu podia querer matá-la — porque sabia que precisava fazer isso —, mas mesmo assim a amava intensamente, e, quando a única mulher que já amei me olhou nos olhos e não viu quem eu era, não soube mais o que fazer. Comigo mesmo. Com tudo. Já era difícil ter passado os últimos seis anos sem ela, mas pelo menos eu tinha a esperança de que ela ainda estivesse por aí e que voltássemos a ficar juntos. Mas, depois disso, meu plano... já não havia mais plano.
Depois daquela noite, comecei a segui-la e a vigiá-la ainda mais de perto. Cheguei ao ponto de invadir seu apartamento, no terceiro andar do prédio, e instalar escutas.
Seraphina, vivendo como Cassia, era a pessoa mais normal do mundo. As conversas que tinha com a amiga do outro lado do corredor eram sobre trabalho, contas, aluguel e homens, e, nessas conversas, só a amiga tinha muito a dizer. Seraphina era solteira e, de acordo com a amiga, estava “sem homem há tempo demais” e precisava “se soltar um pouco”. As duas até transavam, o que, admito, me excitava quando as ouvia pelas escutas no quarto de Seraphina. Mas eram apenas amigas liberando a tensão sexual de uma maneira mais acessível, e nenhuma das duas esperava mais do que isso. Fazer sexo com mulheres não era fora do normal para Seraphina, afinal. Ela fez isso muitas vezes, quando estávamos juntos, embora apenas com a minha presença. Mas homens... isso é outra história. Eu fora o único homem com quem ela já estivera. Até Marcus, do Abrigo 16. Mas isso também é outra história...
Mas aquela Seraphina não era a minha Seraphina. Não tinha nada em comum com ela; sem os cabelos pretos e a maquiagem escura e pesada, sequer se parecia com ela. Comecei a achar que talvez ela tivesse uma irmã gêmea da qual eu nunca soubera. Mas logo rejeitei a ideia, depois de pensar nela naquele palco, cantando aquela canção com as mesmas notas e a mesma emoção com que a cantava para mim.
Ela era Seraphina, no fim das contas, mas não era a mesma.
E eu estava determinado a descobrir o porquê.
Mais duas semanas se passaram, e eu estava indo para o apartamento dela de novo, em uma noite fria de dezembro, quando ouvi sirenes da polícia, de ambulâncias e de carros de bombeiros ecoando entre os velhos prédios da rua onde ela morava. Senti cheiro de fumaça. Apertei o passo, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, e corri para o prédio, onde um brilho quente e laranja se refletia nos edifícios ao redor. Havia pessoas paradas nas calçadas, olhando e apontando, todas encolhidas em roupões, casacos e cachecóis. Fiquei no meio delas, olhando sem fazer barulho, horrorizado, para o apartamento de Seraphina, que ardia em labaredas subindo em direção ao céu noturno frio e escuro. O fogo começara no apartamento dela e se espalhara depressa pelo restante do prédio, enquanto os bombeiros trabalhavam sem trégua para apagá-lo. Eu me sentia morto por dentro, como se algo tivesse penetrado minha alma e morrido ali. Achava que ela estava morta. O apartamento estava envolto em chamas. Mas então, de canto de olho, atrás de todas as equipes de emergência que iam e vinham pela rua, eu a vi caída de lado na calçada fria, rodeada por dois paramédicos e uma pilha de móveis velhos e caixas, provavelmente deixados por alguém que se mudara do
prédio.
Inspirei depressa, aliviado por ver que ela estava viva. E, por um momento, eu poderia jurar que, pouco antes de ser deitada em uma maca, ela me viu do outro lado da rua, mesmo com a escuridão e a multidão em volta. E eu poderia jurar que ela soube quem eu era, por um momento fugaz. Senti isso como um predador consegue sentir o medo na presa.
Meu coração deu um sobressalto e martelou ruidosamente sob minhas costelas.
Ela me viu e me reconheceu. O jogo havia recomeçado. Ao menos,
era o que eu pensava. Uns trinta minutos depois, quando
eu tinha resolvido mentalmente que iria atrás dela, os paramédicos ajudaram Seraphina a sair da ambulância. Eu ouvi sua voz fraca recusando a recomendação para acompanhá-los até o hospital para mais exames. Agitando as mãos à frente, ela disse que não e foi embora, seguindo na direção oposta do prédio em chamas e sumindo nas sombras escuras projetadas pelos outros edifícios.
Saindo da calçada, abri caminho entre os grupinhos de curiosos e a segui.
Quanto mais ela se afastava, mais tudo ficava em silêncio. As sirenes e as vozes começaram a sumir ao fundo. As luzes de emergência que volta e meia se refletiam nos prédios reduziram-se a vagos e distantes clarões. Aonde ela estava indo? Comecei a me perguntar se ela própria sabia.
Com o cobertor que o paramédico lhe jogara sobre os ombros, Seraphina avançou, mancando muito, indo cada vez mais para a periferia da cidade. Eu ficava a distância, abrigado pelas sombras, para que ela não me visse. Ela sabia que eu a estava seguindo? E, se sabia, aonde estava me levando?
Quinze minutos viraram trinta. Quarenta e cinco. Quase uma hora andando sem parar, subindo uma quadra e descendo outra, passando pelo trânsito e por lojas. Eu sabia que ela não fazia ideia de aonde ia, ou mesmo onde estava. E, se ela só queria mexer com a minha cabeça — o que sempre era uma possibilidade —, estava se saindo muito bem.
Eu a segui até um abrigo para moradores de rua, onde, em vez de entrar, ela se sentou diante do prédio no concreto duro e frio da calçada e enrolou mais o cobertor contra o corpo trêmulo e machucado.
Ela ergueu os olhos quando parei na frente dela.
— Olá — disse ela, com uma voz cautelosa.
Tentei encontrar em seus olhos o mesmo reconhecimento que pensara ter visto mais cedo, mas não havia nada neles.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei.
Ela se virou para mim de novo, com medo de que nossos olhares se cruzassem. Uniu os joelhos nus e juntou as mãos embaixo do cobertor. De seus lábios saía fumaça. Ela estava descalça.
— Só estou sentada aqui — explicou, soando confusa.
Desconfiado e meio que esperando que ela cortasse meus tornozelos com um punhal escondido sob o cobertor e saísse correndo e rindo, dei um passo para trás e me agachei diante dela, encostando a barra do longo casaco preto na calçada.
Linhas pretas de fuligem manchavam suas bochechas vermelhas. Todo o lado direito do rosto estava riscado por arranhões, como se alguém tivesse pegado a cabeça dela e raspado no asfalto até sangrar. Ela tremia de frio e de medo de mim.
— P-por favor, me deixe em paz — pediu, ainda me olhando, mas tentando não me encarar nos olhos.
— Sera... — Eu me impedi de continuar e, em vez disso, perguntei: — Qual é o seu nome?
Ela franziu a testa.
— Eu não conheço você. Por favor, me deixe em paz.
— Você não sabe seu nome? Se puder me dizer seu nome, eu deixo você em paz.
Ela não podia.
Grande parte de mim ainda não acreditava. Eu achei que ela estivesse sofrendo de amnésia, sim, mas ainda estava convencido de que, assim que se lembrasse de quem era, o jogo da vida toda recomeçaria e continuaria de onde eu e ela havíamos parado, seis anos antes.
E, dessa vez, eu não perderia. Depois de persuadi-la — e
manipulá-la, tirando vantagem de sua óbvia vulnerabilidade —, eu a levei para casa comigo, e assim que a trouxe para Baltimore, ela se tornou minha prisioneira. Eu iria obrigá-la a se lembrar de quem era e a teria em meu poder assim que ela se lembrasse.
CAPÍTULO VINTE Fredrik
— ... Só que, quando ela finalmente recuperou a memória, poucos dias atrás, eu não esperava que fosse a memória de uma garota que eu não conhecia.
Olho à frente, com as palavras perdidas nos lábios e a mente perdida em lembranças, como se os fatos tivessem acabado de acontecer de novo. Ouço a respiração suave de Izabel saindo das narinas, de tão perto que ela está sentada. Quase consigo ouvir seus pensamentos, cheios de ideias confusas e frases incompletas. Ela quer dizer alguma coisa, precisa dizer, mas não sabe bem o quê.
— Você não contou quem ela era? — pergunta Izabel, depois de uma longa pausa, virando-se para mim. — Se ela não se lembrava, você não contou o nome dela?
Balanço a cabeça, em um gesto breve.
— Quase contei algumas vezes, mas estava intrigado com o fato de ela não lembrar. Intrigado por sua personalidade estranha e delicada. A escuridão dentro de mim queria entender e estudar aquela garota. Nunca vi tanta fragilidade em uma mulher, e ver isso em alguém como Seraphina, logo nela, me deixava curioso.
— E o que você fez? — pergunta Izabel, quase sem fôlego, como se quisesse arrancar as palavras dos meus lábios.
— Eu a torturei. — Faço uma pausa, sofrendo ao lembrar de minha atitude. — Durante todo o tempo em que a torturei, minha consciência me dizia que ela era inocente. Eu sofria por ela enquanto derramava seu sangue. Mas não parei. Ela ainda era Seraphina, afinal.
— Por que não me diz de uma vez quem você acha que eu sou? — gritou Cassia, da minha cadeira de interrogatório. Eu estava atrás dela, perto das ferramentas. — Por favor! Por favor! Eu não sei o que você quer de mim! — Soluços sacudiam seu corpo, coberto por nada mais do que calcinha e sutiã brancos.
— Não vai funcionar assim, meu amor — disse a ela, dando a volta na cadeira com uma longa navalha na mão. Seus olhos saltaram das órbitas quando ela vislumbrou a lâmina prateada entre meus dedos. — Você vai me contar por conta própria quem realmente é. Quero ouvir você dizer, meu amor. Agora sou eu quem controla o jogo. — Fui até ela e olhei para seu rosto contorcido e encharcado de lágrimas. — E posso fazer isso por mais seis anos — provoquei. — Até você lembrar. Até você me dizer seu nome.
— Meu nome é Cassia! Cassia Carrington! — gritou ela, tão alto que sua voz ficou rouca por um tempo. Ela lutou contra as correias de couro que a prendiam na cadeira pelos tornozelos, pulsos, tórax e testa.
Posicionei a lâmina entre os dedos e comecei a cortar suas pernas...
— Quando Cassia confessou seu nome, chocou a nós dois, embora eu tenha ignorado isso durante a tortura. Ela se lembrou bem rápido de coisas da antiga vida. Uns dias antes, quando a tirara da rua na frente do abrigo, ela não se lembrava de nada. Mas se lembrou do nome, embora não do nome que eu queria. E foi preciso criar um terror absoluto para trazê-lo à tona. Eu soube, então, que seria assim que eu conseguiria fazer Seraphina ressurgir e trazê-la de volta para mim. Usando medo. E dor. E, por fim...
Paro e engulo em seco a culpa de minhas transgressões.
A mão de Izabel toca meu ombro. — Por fim o quê, Fredrik? —
pergunta ela, em voz baixa. Por fim, sexo, é o que quero dizer,
mas não consigo me obrigar a admitir isso em voz alta, porque sinto que me aproveitei dela, embora ela quisesse todas as vezes em que aconteceu. Me sinto culpado e envergonhado por abusar de uma garota tão frágil e inocente. Me sinto indigno de alguém como Cassia, porque ela é muito gentil, pura e piedosa. E, a cada vez que eu a penetrava, odiava a mim mesmo mais e mais.
Ainda olhando para a frente, respondo, com a voz distante:
— Isso não importa.
Com relutância silenciosa, Izabel aceita minha recusa em contar.
Sua mão deixa meu ombro no mesmo momento em que a pequena família que vimos do lado de fora mais cedo entra na sala espaçosa. Izabel e eu tomamos nota da presença deles, assim como eles da nossa, escolhendo seguir na direção oposta.
— O que ela tem? — pergunta Izabel, me olhando nos olhos. — Ela parece muito... não sei, traumatizada. Meu Deus, Fredrik, por mais ódio que eu sinta pelo que ela fez com você, não consigo deixar de ter pena dela.
— Eu não sei o que ela tem — respondo, sentindo uma pontada de impotência. Baixo a cabeça, apoiando-a nas mãos. Depois de um momento, levanto de novo e bato nas pernas com as palmas das mãos. — Eu poderia enfrentar qualquer coisa. Eu estava preparado para matá-la, Izabel, mesmo amando-a do jeito que amo. Eu estava preparado. Porra, estava me preparando para isso desde que ela me deixou naquele gramado. Eu estava pronto para enfrentar qualquer coisa que ela fizesse comigo. Mas não isso. — Balanço a cabeça, com o olhar fixo em um ponto do chão entre meus sapatos. — Nunca imaginei nada assim.
— Por que decidiu me contar tudo isso?
— Porque não sei o que fazer. Eu tinha um plano, e ele mudou quando finalmente a encontrei. Aí bolei outro plano, que, como o anterior, tive que jogar fora e recomeçar do zero. — Dou um longo suspiro e endireito as costas. — É um problema do caralho, e acho que não vou encontrar no Google as respostas de que preciso para lidar com
isso.
As vozes do casal e da criancinha ficam mais altas quando eles se aproximam lentamente.
Eu me levanto, vestindo o casaco. Izabel faz o mesmo.
— Fredrik — começa ela, sem erguer a voz —, você quer meus conselhos porque não sabe o que fazer ou está só procurando a confirmação de uma escolha que já fez?
Franzo um pouco o cenho, mas decido não responder. Porque não tenho certeza da resposta.
— Não posso ficar com alguém como ela — digo, em vez disso. — Nós somos diferentes demais. Ela merece alguém melhor do que eu.
— O que isso significa? — indaga Izabel, com cautela, embora eu tenha a impressão de que ela entendeu alguma coisa a mais do que eu no que acabei de dizer.
Penso nisso por um momento, mas ela me ajuda, sugerindo:
— Você disse “alguém como ela”. Não disse Cassia. Por que não disse Cassia?
Entendo agora, e isso só deixa meu humor mais sombrio.
— Porque quando tudo isso acabar, existe uma chance de que ela não seja mais Cassia.
Izabel me encara com um olhar benevolente.
— Então acho que, enquanto isso, você deveria amar quem está ali — sugere, no momento em que a família se aproxima atrás de nós.
Amar? Isso foi uma acusação ou só uma observação?
Izabel me encara com uma expressão terna e compreensiva, mas o momento é interrompido — por sorte — pela família, que agora está perto demais para que possamos continuar a conversa. Seguimos pelo caminho lado a lado, indo para a saída. Izabel me olha e
acrescenta:
— Só por curiosidade, o que você planejava fazer quando encontrasse Seraphina?
— Tudo — respondo, e deixo por isso mesmo.
Voltamos para o ar gelado de fora e vamos depressa para nossos carros, parados lado a lado no estacionamento.
— Não vou contar nada para Victor — declara ela, parada ao lado da porta de seu carro, me olhando por cima do teto do meu. — Tecnicamente, você está de licença, então tudo isso é pessoal. Ele vai entender.
Faço que sim, tremendo dentro do casaco.
— Obrigado, gata.
— Mas quando Victor chamar você a campo de novo, se você ainda for considerado incapacitado por causa disso, vou ter que contar o motivo.
— Eu sei — digo em voz baixa. — Por enquanto, vou investigar
Cassia Carrington — diz ela. — Se você não conseguiu encontrar nada sobre Seraphina Bragado, talvez eu tenha mais sorte com o outro nome dela. — Faço que sim novamente. — Depois eu conto o que descobrir.
Ela abre a porta e começa a entrar, mas para e me olha mais uma vez. Uma espécie de dor indecifrável marca seu semblante.
— E se você precisar de mim para qualquer coisa... qualquer coisa, Fredrik, sabe que farei por você.
Não piscamos por vários momentos enquanto nos olhamos. O significado não declarado de sua oferta se descortina entre nós como um evento trágico e inevitável, doloroso demais para ser mencionado em voz alta.
~~~
Passo o resto do dia longe de casa. Tenho muito no que pensar, embora vá levar mais do que algumas horas para organizar minhas ideias.
Às seis da tarde, ainda não resolvi absolutamente nada. Às oito da noite, depois de dirigir sem rumo pelo tempo que pude, só estou mais intolerante com a situação toda. Não consigo nem pensar direito. Não consigo funcionar o suficiente para formar uma frase razoável, muito menos uma solução.
Porque não tem porra de solução nenhuma.
Eu sei que, não importa o que aconteça, só o que posso fazer é deixar acontecer, porque não posso impedir.
— Quer mais café? — Ouço uma voz suave perguntar.
Tirando os dedos do cabelo, levanto a cabeça, erguendo os olhos do celular sobre a mesa. A linda garçonete de cabelo escuro está ao meu lado com um sorriso, olhando para a caneca de café vazia.
Há quanto tempo estou aqui? Balanço a cabeça.
— Não, mas obrigado. Ela me deixa sozinho com meu
sofrimento, e parte de mim gostaria que não deixasse. O velho Fredrik flertaria por algum tempo, os olhos fazendo promessas que sei que a deixariam excitada, então esperaria o turno dela acabar. O velho Fredrik a levaria para o hotel mais próximo e amarraria suas mãos às costas. Ele a comeria até ela ficar com lágrimas nos olhos, implorando para eu não parar.
Mas o velho Fredrik se foi, e, quanto mais penso nesse “problema”, mais sinto que estou começando a me tornar o Fredrik ainda mais velho. A pessoa que eu era antes de conhecer Seraphina, quando torturava e matava sem prudência porque não conseguia evitar. Por todos esses anos, me agarrei ao meu mais disciplinado, o homem que Seraphina me ajudava a ser, porque tinha esperanças de encontrá-la e tê-la em minha vida de novo. Mas agora que sei que isso não é possível, me sinto voltando à vida de puro terror que levava desde criança, depois de escapar dos meus algozes.
Se eu me tornar esse sujeito de novo, ele vai me destruir.
Eu não vou ser útil para a nova Ordem de Victor Faust.
Vou ter que deixar este lugar e a vida que construí, com as pessoas que aprendi a amar, e continuar no caminho solitário e autodestrutivo do Chacal.
CAPÍTULO VINTE E UM Fredrik
Greta está me espiando de várias janelas da casa desde que estacionei na entrada, há meia hora. Não consegui entrar. Ainda não consigo. No momento, prefiro a solidão tranquila do carro, com paredes de metal bem próximas, onde parece que meus pensamentos são mais contidos. Eles são tudo o que consigo ouvir. Embora não goste nada do que estão dizendo.
Tirando minha conversa com Izabel e todas as coisas nas quais não quero mais pensar, também penso nas mulheres. Gwen, a do bar. A garçonete do restaurante, hoje mais cedo. Penso na última mulher com quem fiz sexo. E na anterior. Nunca percebi, até encontrar a mulher do restaurante, que estou ainda menos parecido comigo mesmo do que eu pensava. E estou assim desde que tirei “Cassia” da rua, naquela noite em Nova York.
Não consigo mais curtir outras mulheres. Não sem culpa e remorso passionais que ficam pesando em meu peito pelos dias seguintes.
Neste um ano em que mantive Cassia no porão, Gwen foi a primeira mulher que eu trouxe para casa. Quis trazer outras, fazer com elas as coisas que eu
fazia com as mulheres que eu e Seraphina escolhíamos, porque talvez isso despertasse suas lembranças quando ela visse pela tela da TV. Foi por isso que pus uma câmera em meu quarto. Mas, até Gwen, nunca tinha conseguido fazer isso.
Com Seraphina, era normal. Com Cassia, não consigo fazer essas
merdas.
Um feixe de luz da janela da cozinha se apaga quando Greta põe a cortina de novo no lugar.
— Preciso encarar isso — digo baixinho para mim mesmo.
Depois de uma longa pausa, desligo o motor e entro em casa.
— Ela está dormindo — anuncia Greta quando entro na cozinha.
Eu deixo as chaves sobre o balcão. — Como ela está? — pergunto,
tirando o casaco.
— Está bem — responde Greta, com um sorriso terno nos olhos. — Acho que está melhor desde que se lembrou de quem é. Mais em paz, talvez.
— Ela contou para você, então. Greta assente, e seu rosto murcha. — O que ela sofreu é horrível, sr.
Gustavsson. E, embora eu não goste que o senhor a mantenha presa assim e nem entenda, pode ser o melhor. Seraphina é perigosa. Ela precisa de ajuda, sim, mas é perigosa.
Não respondo.
Greta dá a volta no balcão e pega o longo casaco de lã do encosto de uma cadeira da cozinha, enfiando os braços nas mangas grossas.
— Por que você não tira folga amanhã? Não tenho planos, vou ficar com Cassia o dia todo.
— Tem certeza? — pergunta ela, desconfiada.
Eu levanto uma sobrancelha. — De que não tenho planos? —
indago, ofendido. — Ou de que sou capaz de cuidar dela sozinho por vinte e quatro horas?
— E-eu não quis dizer isso, senhor. — Ela junta as mãos à frente do corpo.
Suspirando, reparo na irritação que descontei nela e digo:
— Me desculpe. Tire o dia de folga. Eu ligo quando precisar de você de novo.
Eu pego cinco notas de cem dólares da carteira e ponho o dinheiro na mão dela.
— Isso é um pequeno extra, além do seu pagamento normal. — Ela olha o dinheiro, levemente surpresa, mas sobretudo grata. — Muito obrigado pela ajuda com Cassia.
Ela não responde, mas palavras não são necessárias para comunicar a gratidão em seu olhar.
Depois que Greta sai, tranco a porta e fico no começo do corredor por um longo tempo antes de obrigar minhas pernas a me levarem para a porta do porão. Não quero vê-la. Por causa do que ela está fazendo comigo.
Desço os degraus de concreto, iluminados apenas por um tênue feixe de luz que vem do banheiro. Tiro os sapatos antes de descer, para não acordá-la. O concreto está frio sob meus pés, mas o ar está quente: o calor irradia das aberturas de calefação no teto, fazendo o porão ficar um pouco abafado. Mas Cassia parece confortável, deitada de bruços com o cobertor até a cintura. Ela está virada em minha direção, os braços finos e delicados esmagados debaixo do corpo. Seu cabelo louro, longo e liso está espalhado sobre o travesseiro. A corrente presa ao tornozelo desce pela lateral da cama e se estende pelo chão.
Quero tocá-la, mas tenho medo. Medo de acordá-la. De encará-la. De olhar aqueles olhos castanhos devoradores e correr o risco de cair neles ainda mais fundo do que já caí.
Mas não consigo evitar. Me sentando ao lado dela na cama,
com cuidado, afasto o cabelo de seu rosto. Ela se mexe. Então suas pálpebras se abrem e, lentamente, ela olha para mim.
— Fredrik. — Meu nome em seus lábios é sempre um golpe, faz com que eu sinta um conflito interior. — Senti sua falta. — Ela sorri, e sinto sua mão tocar a minha.
Olho para seus dedos, intrigado pela facilidade com que seu toque me torna emocionalmente submisso sem que ela nem se esforce. Depois de um momento, sua mão esguia fica fora de foco, à medida que meus pensamentos se tornam mais pesados.
O que está acontecendo comigo? — O que foi? — pergunta ela, com
tanta suavidade e compaixão que sinto um peso no peito.
Seus dedos acariciam as costas da minha mão.
Eu a encaro de novo.
— Nada. — Tiro a mão de debaixo da dela e a coloco por cima.
— Você vai passar a noite comigo? — pergunta ela, com a voz suave.
— Sim.
Um sorrisinho aquece seu rosto. Ela pega o cobertor, puxando-o para
o lado para me dar espaço. Eu só olho para ela por um momento,
então finalmente abandono o conflito que ferve dentro de mim desde que a trouxe aqui.
— Não — digo com voz calma, afastando o cobertor. Depois enfio a mão no bolso da calça para pegar a chave. — Me dá a sua perna, amor. — Seguro a perna dela e destranco o grilhão em seu tornozelo com cuidado.
Soltando a corrente e a chave no chão ao seu lado, fico de pé e depois me curvo, tomando Cassia nos braços.
— Aonde a gente vai? — pergunta ela, envolvendo meu pescoço com os braços.
— Para o meu quarto. Cassia deita a cabeça em meu peito
enquanto a carrego pela escada e para dentro da casa, um lugar que ela só viu pela TV do porão desde a noite em que chegou.
Levando-a pelo corredor escuro até meu quarto, eu a deito na cama entre os lençóis e o grosso edredom. A sensação de seus dedos soltando os meus quando me afasto provoca algo que não entendo direito. E, indo contra minha intensa necessidade de deixar que ela continue me abraçando, arranco o suéter e o jogo no chão. Depois, a camiseta que usava por baixo. Cassia me observa com uma inocência suave enquanto tiro o resto da roupa e fico nu diante dela, antes de me deitar ao seu lado. Eu sempre durmo nu. Ela sabe disso. Sei que ela não cria expectativas.
Só quero tê-la perto de mim. Cassia se aconchega, apoiando a
cabeça em meu peito. Eu a puxo para mais perto, como se ela já não estivesse colada em mim.
— Por que você me trouxe para cá? — Ela beija meu peito.
Apertando-a, respondo: — Porque estou criando juízo. Beijo o topo de sua cabeça. — Fredrik?
— Sim?
Olho para o teto.
— Sinto muito pelo que Seraphina fez com você.
— Não precisa sentir. Não foi culpa sua.
Sua respiração suave aquece minha pele quando ela expira.
— Não precisa ser minha culpa para que eu lamente o que ela fez.
Sua voz está cheia de sofrimento. Inclino a cabeça para o lado para vê
la, e até no azul-escuro do quarto consigo distinguir as lágrimas brilhando em seus olhos.
— Por que está chorando? — pergunto, enxugando suas lágrimas com o polegar.
Ela desvia o olhar do meu. Não quer responder, mas então diz:
— Porque tenho medo de que, quando você a encontrar, me esqueça de vez.
Inspiro profundamente, tentando afastar a sensação de ardor que surge no fundo dos olhos.
Eu me viro com cuidado para ficar em cima dela, e olho para seu rosto suave e magoado. Meus lábios tocam os dela uma vez. Minhas mãos seguram sua cabeça, meus dedos roçam o contorno macio e perfeito de suas bochechas. Estou intoxicado por sua carne quente tocando a minha, o aroma de sua pele feminina, o calor de seu hálito doce, a sensação de seu coração acelerado batendo sob mim.
— Não pense em nada disso — murmuro contra sua boca. — Porque você não tem com o que se preocupar. — Meus lábios cobrem os dela.
Eu tiro sua calcinha e a penetro, causando um gemido doce, que escapa de seus lábios. Ela fica tensa de início, mas depois se rende e derrete ao meu redor. Na mesma hora, fico delirante com a sensação de seu corpo quente colado ao meu, de todas as formas possíveis. Ela geme sob minha boca quanto mais fundo eu meto, soluça ao lado do meu pescoço quando forço os quadris com mais intensidade nos dela. O fundo do meu estômago dói de tanto êxtase — nunca me senti assim antes. Nunca. Não assim.
Minha boca devora seus lábios, beijando-os com fome, tirando seu fôlego. Só o calor úmido de sua língua enroscada na minha já me deixa perto do clímax. Minha boca abandona a dela, procurando seu pescoço e a pequena reentrância na base dele, em seguida partindo para os seios, que beijo, lambo e mordo com delicadeza, para não machucá-la.
— Por favor, não me deixe nunca mais — pede ela ao meu ouvido, com a voz trêmula, pressionando os quadris nos meus para eu entrar mais fundo.
A sensação de sua boca me faz meter com mais força. Mas eu paro, bem fundo nela e digo:
— Eu não vou deixar você. — Então dou outra investida, ao som de seus gemidos suaves e suplicantes.
Os dedos de Cassia se embrenham em meu cabelo. As coxas esmagam meu quadril. Sua cabeça cai para trás, sobre o travesseiro, e passo a língua pela curva delicada de seu pescoço exposto, até que minha boca encontra seus lábios outra vez. Eu a beijo apaixonada e possessivamente. Porque ela é minha. Ela me pertence, como sempre pertenceu, e estou pouco me fodendo para quem pensa que é. Ela é minha e vai continuar sendo até morrer.
CAPÍTULO VINTE E DOIS Cassia
Não sei o que está acontecendo comigo. Mas não estou gostando. Fredrik se levanta da cama tão tarde,
na manhã seguinte, que estou achando que logo vou sentir cheiro de torta de frango assando no forno para o almoço. Greta sempre faz essa torta às quintas-feiras. O sol brilha pela janela do quarto, quase me cegando. Não é porque acabo de acordar, mas porque não vejo sol há um ano. Estou silenciosamente hipnotizada por ele, deitada de lado entre os lençóis, deixando a luz criar uma miríade de manchas pretas e amarelas em meus olhos.
Quando ele está para sair do quarto, segurando uma cueca boxer e uma camiseta limpas nas mãos enormes, percebe que estou acordada e para de repente, à porta. Ele se vira para me olhar como se tivesse se esquecido de algo, e derreto em seu olhar azul.
— Vem tomar banho comigo — chama, então volta para perto da cama, estendendo a mão. Um sorriso de lábios fechados brinca em seu rosto lindo e barbado.
Fico feliz por ele querer que eu o acompanhe em algo aparentemente tão insignificante, mas não consigo deixar de me perguntar até que ponto isso se deve a ele não confiar em me deixar sozinha na casa, a menos que eu esteja presa lá embaixo. Mas isso não importa, e tento não pensar a respeito. Estamos juntos de formas com as quais eu apenas sonhava desde que ele me trouxe para Mas por que de repente meu coração é tomado por essa sensação ameaçadora de tristeza? Como posso estar tão feliz por Fredrik parecer ter cedido aos meus sentimentos por ele e mesmo assim sentir uma tristeza tão estranha e iminente crescendo dentro de mim? Seguro suas mãos, e ele me ajuda a levantar da cama. A princípio eu tropeço, de tão acostumada a arrastar a corrente atrás de mim, mas logo pego o jeito de andar sem ela. Só me pergunto quanto tempo isso vai durar, mas também tento não pensar nisso.
Enquanto ele me leva pela mão pelo curto corredor, fico surpresa com coisas muito pequenas. O lindo assoalho de madeira escura sob meus pés descalços, a tinta cor de creme das paredes e do teto, que destaca a moldura decorativa escura nos cantos superiores, a cantoneira luxuosa de mármore no fim do corredor, com uma pequena estátua grega à mostra no centro. Até o lustre no teto, em formato de cúpula, com lindos entalhes no cristal, prende minha atenção por mais tempo do que algo tão simples e sem graça como um lustre em geral prenderia.
Quando olho de relance para a porta do porão, lembro-me de Fredrik me carregando noite passada e fico sem fôlego. Minha garganta fica seca na mesma hora.
Paro no corredor, a mão ainda presa na dele. Não quero avançar mais.
— Está tudo bem — anuncia Fredrik, calmo, puxando minha mão. — Não vou levar você lá para baixo.
Me instigando a continuar, ele me guia só até a porta do banheiro, e volto a respirar quando entramos.
Fredrik desliza a porta de vidro do box e abre a água. Me sinto estranha, parada ali. Esperando. Querendo admirar o banheiro, como fiz com o corredor, mas a vontade de olhar para Fredrik é maior. O corpo rijo e bronzeado, a potência dos músculos fortes das panturrilhas, a curvatura perfeita do abdome oblíquo e o modo como mergulha na pélvis, formando um desenho másculo. A barriga de tanquinho que não consigo tirar da cabeça desde a noite passada, quando a alisei com as pontas dos dedos enquanto ele estava em cima de mim. Enquanto estava dentro de mim. Só de pensar na noite passada meu corpo dói de desejo e um calor formiga abaixo do meu ventre. Não só por causa do sexo, mas pelo modo como Fredrik estava diferente das vezes anteriores. Ele não só me possuiu, ele me valorizou.
O rubor aquece meu rosto quando ele se vira e me encara com aqueles olhos azuis, profundos e magnéticos.
Fredrik me leva até o chuveiro. A água quente escorre pelo meu
corpo. É paradisíaca, mas nada é mais paradisíaco do que a sensação de suas mãos massageando delicadamente o xampu em meu cabelo ou de seus lábios em meus ombros úmidos ou em meu pescoço.
— Aonde você gostaria de ir hoje? — murmura ele em meu ouvido.
Um calafrio sobe pela minha espinha. Surpresa com a pergunta, viro a
cabeça um pouco para observá-lo de canto de olho, atrás de mim. Suas grandes mãos não param de massagear meu couro cabeludo.
— Como assim? — Sei o que ele quer dizer, mas mal posso acreditar que esteja pensando em me tirar da casa.
Seus lábios pousam no canto da minha boca.
— Aonde você quiser ir, é só falar que eu levo — diz ele.
Me virando, ele guia minha cabeça para baixo do jato abundante de água. Fecho os olhos, e ele enxágua o xampu do meu cabelo.
— E-eu não sei — respondo, quando ele finalmente me tira do jato e posso abrir os olhos de novo.
Ele sorri e também parece um pouco surpreso.
— Não consegue pensar em nenhum lugar? Nem unzinho?
Olho para cima, apertando os lábios, ponderando as possibilidades.
— Manhattan, Greenwich Village — digo, com voz trêmula, lembrando o lugar aos poucos. — Faz muito tempo que não como um bom cachorro-quente.
Fredrik sorri, e isso me faz corar. Ele faz tudo para mim, me lavando da
cabeça aos pés, limpando com muito cuidado os ferimentos cicatrizados mas ainda sensíveis no tornozelo. E me beija sob o jato constante de água. Nos ombros. No pescoço. Nos cantos da boca. Na testa. Nos lábios. E, por mais que eu fosse adorar deixá-lo me possuir ali mesmo, sob o chuveiro, estou
igualmente contente por ele não me tocar dessa forma e ter tanto autocontrole.
Quando terminamos, Fredrik me põe diante do espelho embaçado, com o peito e a pélvis encostando de leve em mim, por trás. Ele está de pau duro, mas mesmo assim não perde o controle, e isso só me faz querê-lo mais.
Sinto a ponta de seu dedo percorrendo as cicatrizes em minhas costas. Então ele abaixa a cabeça e seus lábios as tocam, uma por uma.
— Sabe me dizer de onde vêm essas cicatrizes? — pergunta ele, beijando mais uma.
A pergunta me deixa perplexa. Não por ele perguntar, mas por que... eu não lembro.
— Eu... eu realmente não sei. Isso me deixa completamente
frustrada. Achei que tivesse me lembrado de tudo sobre o meu passado. Como posso não me lembrar de algo tão inesquecível quanto as cicatrizes nas minhas costas? Fredrik sempre as toca. Desde a primeira noite em que me trouxe aqui, sempre se interessou por elas. Me deitava de bruços na cama do porão e, com delicadeza, levantava minha camisola até os ombros. Ele passava os dedos nas cicatrizes — como está fazendo agora —; depois, a ponta da língua, como se estivesse degustando e saboreando uma lembrança. Eu nunca soube que essas cicatrizes existiam, até o dia em que lhe perguntei o que minhas costas tinham que ele parecia adorar tanto.
— Tudo bem — diz ele, levantando a cabeça. — Você não precisa lembrar tudo.
Sinto como se, de alguma forma, ele estivesse aliviado por eu não saber. Mas isso é ridículo. Por que ele ficaria aliviado por eu não me lembrar de alguma parte do meu passado, quando ambos nos esforçamos tanto, e por tanto tempo, para descobrir tudo?
Afasto esse pensamento e sorrio por dentro, pensando apenas nele. Em nós. Em estarmos juntos.
Mas então, em minha cabeça, surgem cicatrizes das quais eu lembro. Distraidamente, apalpo as das coxas — seis de cada lado, cortadas em linhas perfeitamente horizontais, cada uma com
sete centímetros. A mão de Fredrik toca minha, afastando-a das marcas — as cicatrizes que ele fez quando me torturou naquela cadeira, do outro lado do porão. — Lamento ter feito isso com você — diz, com a voz pesada de tristeza, remorso, vergonha e culpa. — Não quero que você me perdoe. Porque eu
nunca vou me perdoar. — Mas eu perdoo...
Ele cobre meus lábios com os dedos. Na mesma hora, me sinto compelida a fechar os olhos e beijá-los, mas não faço isso.
— As coisas vão ser diferentes daqui para a frente — anuncia ele, com os lábios em meu pescoço. Depois, sinto uma toalha macia esfregando minhas costas com delicadeza, quando ele começa a me enxugar.
— Fredrik — digo, quase em um sussurro —, o que fez você mudar de ideia?
Ele aperta as pontas do meu cabelo com a toalha, absorvendo a água com o algodão espesso.
— Nada disso importa — responde ele. — Não quero que você pense em nada disso.
— Mas e Seraphina? — pergunto baixinho, nervosa.
Suas mãos param, e eu o sinto suspirar atrás de mim.
— Acima de tudo — responde ele, com remorso —, não quero que você se preocupe com ela.
— Mas ela está me procurando. E sei que você pode me proteger, mas morro de medo dela mesmo assim. Tenho medo especialmente quando você não está aqui. Quando ficamos só eu e Greta.
Sinto a toalha cair, e suas mãos seguram meus antebraços. Ele beija o topo da minha cabeça — é bem mais alto do que eu. E sei que é só um gesto de afeto, mas não consigo deixar de pensar que também seja de
arrependimento, ou talvez até de dor. — Cassia, você acreditaria se eu
dissesse que ela não pode machucar você, contanto que você não pense nela?
Começo a me virar para encará-lo, mas ele delicadamente me mantém parada. Então passa uma das mãos sobre a umidade que embaça o grande espelho.
Minhas mãos começam a tremer, embora eu não saiba por quê. Meu estômago vira um nó nervoso e sinto náuseas de repente, com os nervos em frangalhos. Baixo o olhar para o balcão.
— Eu... eu não sei — gaguejo, nervosa. — C-como isso vai impedir que ela me encontre?
Eu não sei o que está acontecendo comigo... mas não estou gostando.
Fredrik continua a limpar o espelho. Eu continuo olhando para baixo.
Ele para e deixa o braço cair, depois põe as mãos na minha cintura, logo acima do quadril.
— Bem, acho que você deixa que ela afete demais, meu amor. — Meu coração dá um salto dentro do peito a cada vez que ele me chama assim. — Quero que pare de se preocupar com ela. Apenas pare de pensar nela e viva a sua vida. Do jeito que está fazendo agora. Sem ser prisioneira de ninguém. Nem de mim, nem de Seraphina. Consegue fazer isso?
Faço que sim, relutante. Então me viro para encará-lo, de
costas para o espelho. Ficando na ponta dos pés, beijo seus
lábios quentes e deliciosos. Ele sorri.
— Acho que consigo — digo, sorrindo para ele também.
Ele prepara o café da manhã para mim e ficamos sentados à mesa da cozinha, como um casal normal, cada um com uma caneca de café quente, Fredrik folheando o jornal do dia. Mas não consigo deixar de notar que ele parece não estar lendo o jornal, porque fica erguendo os olhos para sorrir — um sorriso enorme — para mim do outro lado da mesa.
Eu me sinto uma adolescente vivendo a primeira paixão de novo, com o rosto vermelho de emoção.
Conversamos por muito tempo, sobre tudo e sobre coisa nenhuma. E às vezes me pego perdida em sua voz grave e preciosa. Poderia ficar ouvindo Fredrik
falar o dia todo e nunca me entediar, nem querer nenhuma interrupção.
Quando terminamos o café, já mudei de ideia sobre ir a Nova York. Não só porque é ridículo dirigir três horas para comer cachorro-quente, mas também porque, apesar de Fredrik ter pedido que eu pare de me preocupar com Seraphina, não consigo. E foi em Nova York que ela tentou me matar. Ela infecta meus pensamentos e assombra minhas lembranças.
— Por que você não quer ir? — pergunta Fredrik.
Eu baixo os olhos, porque nunca fui boa em mentir, e digo:
— Só quero ficar em Maryland. — Rio baixinho para soar mais convincente. — Nunca passei muito tempo aqui e nunca vi nada fora desta casa.
Fredrik franze o cenho. Eu sorrio e digo:
— Ah, não, meu amor, não estou culpando você.
Algo brilha em seus olhos quando o chamo de “meu amor”.
Por que o chamei assim? Não importa. Eu gostei. E parece certo. Natural.
Ele deixa o jornal em cima da mesa e olha para mim, curioso.
— Então, se não quer ir a Nova York, aonde gostaria de ir? — Seu sorriso lindo se abre mais. — Eu sou seu o dia todo.
Meu rosto fica vermelho de novo. — Por que você não escolhe um
lugar?
Ele aperta os lábios.
Eu quero beijá-los...
Fredri k
É tudo uma ilusão, não para de dizer a voz no fundo da minha mente, enquanto estou sentado diante de Cassia no restaurante mais chique de toda Baltimore. É tudo uma ilusão. Nós dois. Sentados aqui. Juntos desse jeito. Como qualquer casal normal. É uma ilusão, Fredrik. A voz não para de repetir. Porque ainda não me permiti acreditar. Uma parte de mim não quer acreditar. O velho Fredrik. E o Fredrik mais velho ainda. As únicas partes de mim que conheci. O que é essa estranha luz que sinto na presença de Cassia?
Deve ser a sensação de ter uma vida normal.
E, embora ela cause uma sensação de grande contentamento, essa luz também me mata de medo.
Uma ilusão, provoca a escuridão dentro de mim. Esse tipo de vida nunca foi para você, então não caia nessa, senão o que resta da sua vida vai desmoronar ao seu redor em pedacinhos tão pequenos que você nunca mais vai conseguir colar. Cala a porra da boca!
O sorriso de Cassia é vibrante, mas tão frágil que sinto que o menor toque dessa escuridão pode apagá-lo com facilidade. Ela está usando um lindo suéter branco aberto que revela a maciez do colo e do pescoço longo e delicado. Uma saia comprida e cinza adere a seu corpo de violão, indo até abaixo do joelho e caindo sobre botas pretas de inverno, de cano alto. Eu a levei para fazer compras quando saímos de casa, hoje de manhã. Ela ficou tímida e de início não queria que eu comprasse nada. Por isso escolhi os modelos e comprei mesmo assim. E a vesti. E, enquanto a vestia, beijei as cicatrizes em suas costas, como sempre fiz. Cicatrizes deixadas por cortes que fiz ali com o tempo, um a um, quando fazia amor com Seraphina.
Saímos do restaurante e voltamos para o frio, nossos sapatos esmagando os escassos cinco centímetros de neve que caíram noite passada. Abro a porta do carro para ela e a ajudo a sentar no banco do passageiro. O carro já está quente. Fiz questão de ligá-lo pelo controle remoto antes de sairmos do restaurante.
— Fredrik — chama Cassia, com a voz suave —, sinto que já conhecia você a vida toda. — Olho para ela, e seu rosto está corado com o calor. Dou um sorriso discreto, embora por dentro não esteja sorrindo tanto, e ela continua: — Sei que se eu contar para qualquer um o que sinto por você, apesar de como nos conhecemos, provavelmente vão achar que estou louca. Greta deve me achar louca.
Seus olhos encontram os meus de novo. Ela está buscando confirmação ou rejeição para sua teoria. Não tenho coragem de ser sincero com ela.
Enfio a chave na ignição e destravo o volante para que o motor continue ligado.
— Greta não acha isso — respondo, simplesmente.
E não olho para ela desta vez. — Mas na verdade não importa o que
os outros acham — continua ela, meio incerta. — Importa?
Eu a encaro por um instante. — Não — respondo, embora não
saiba o que estou dizendo, ou mesmo se deveria estar. — O que alguém decide sentir por outra pessoa é escolha e assunto de quem sente. — Tento ser vago.
Ela sorri e junta as mãos no colo. — Mas eu sinto mesmo como se já
conhecesse você a vida toda — repete ela. — Eu... não sei explicar. Mas parece certo. — Cassia sorri.
Ela quer que eu concorde? O que ela quer de mim? Engato a ré e saio do estacionamento. Passo o dia todo com Cassia, como
prometi. Por fim, ela começa a se sentir mais à vontade e sugere lugares que gostaria de visitar, coisas que gostaria de fazer. Não me surpreende muito ver que tudo o que ela escolhe é simples, não luxuoso ou caro. Eu gastaria de bom grado com ela cada centavo que tenho, compraria o carro mais extravagante. Faria qualquer coisa por ela. Mas tudo que ela me pede é para passar uma hora e meia assistindo a um filme no cinema local. Comemos pipoca, tomamos refrigerante e nos sentamos lado a lado, com os pés apoiados nos encostos dos lugares vazios à nossa frente. Eu não faço nada assim há... Eu nunca fiz nada assim. É estranho. Mas é libertador, imaturo e nada sofisticado, e eu faria de novo. Se ela estivesse comigo. E Cassia, para uma mulher tão miudinha, tem um apetite enorme — assim como Seraphina. Além do almoço e da pipoca, ela enche a barriga de sanduíches, antes do fim da tarde.
Logo depois que escurece, vamos para um bar legal na melhor parte da cidade. Escolha de Cassia. Ela está no comando desde antes do filme.
— Eu cantava em um bar e restaurante — comenta ela, do banco do passageiro. — Quando morava em Nova York.
— É mesmo? — indago, tentando parecer surpreso.
As pessoas entram e saem do prédio à nossa frente, todas usando calças informais, belos suéteres e sobretudos. Casais de braços dados, alguns vagamente alterados ao sair, vão para seus carros no estacionamento.
Cassia os observa silenciosa e pensativa. A lembrança do tempo em que cantava em Nova York decerto está passando por sua mente.
Ela me olha e sorri.
— Sim, eu cantava. Mas era o meu trabalho.
Retribuo o sorriso.
— Aposto que você tem uma voz linda.
A voz mais linda que já ouvi. Cassia olha para as mãos no colo, o
rosto ficando vermelho. Então ela dá uma risadinha e diz,
sorrindo:
— Está bem, eu sou muito boa. — Mas logo fica constrangida pela confissão.
Eu me inclino, seguro seu queixo e a beijo, tirando seu fôlego. Não consigo parar. Senti sua falta. Não quero parar. Mas você não é mais você. Eu deveria parar, porque sei que nada de bom pode resultar disso. Mas não consigo.
Tem que haver uma maneira. O beijo termina. Eu encaro seus
olhos castanhos e suaves, saboreando o gosto de sua boca que ficou nos meus lábios.
É tudo uma ilusão... Não... não é. — Fredrik. — Ouço a voz dela dizer,
mas soa fraca, enquanto estou preso aos meus próprios pensamentos conflitantes. — Algum problema?
Acordo do devaneio.
Ela sorri para mim, curiosa. — Por que a gente não entra? —
sugere ela, referindo-se ao bar a poucos metros de nós.
De repente, tenho um novo plano. E dessa vez vou fazer dar certo. Olho para ela em contemplação silenciosa e, em questão de segundos, sei o que preciso fazer.
— Que tal a gente esquecer o bar? — sugiro, beijando-a de leve nos lábios. — Acho que prefiro passar o resto da noite a sós com você. A gente pode relaxar e ver TV. Ou tomar um banho quente de banheira.
Qualquer coisa, menos o bar. Qualquer coisa, menos algo que possa ajudar a despertar mais lembranças. A noite em que Greta tirou a corrente dela e as duas dançaram e cantaram Connie Francis foi a noite em que as lembranças de Cassia voltaram. Lembranças que eu
não esperava, mas mesmo assim... Cassia sorri.
— Está bem — responde, sem relutância ou questionamento. — Então vamos para casa.
Para casa. Seraphina voltou para casa.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS Fredrik
Nunca imaginei que sentiria isso por alguém. Seraphina sempre vai ser uma parte de mim, mas essa parte dela que provavelmente nunca vou entender, desde o dia em que a trouxe para cá, tem preenchido lacunas em minha alma que estavam vazias desde que eu era menino. Lacunas que a metade mais sombria de Seraphina não conseguia preencher. Eu nunca havia conhecido a luz. Só a escuridão. Nunca havia experimentado a ternura, a fragilidade ou a compaixão, até Cassia aparecer. Como uma só pessoa pode ser tantas coisas? Usar tantos rostos? Satisfazer tantos desejos?
Dou mais um dia de folga para Greta e passo o dia seguinte com Cassia. E o outro também. Mas, quando o fim de semana está prestes a acabar, algo muito mais profundo do que frustração começa crescer dentro de mim. Medo da verdade? Saber que não posso ter o que eu tanto quero? E, para piorar as coisas, começo a perceber que, só porque tenho uma coisa boa diante de mim, não posso esquecer quem sou de verdade. A necessidade de aplacar minha sede de vingança e sangue está forte de novo — mais forte agora que minha escuridão se sente ameaçada por algo mais poderoso, que tenta me conter, impedir que eu seja eu mesmo. E a única coisa que vai acalmar a voz brutal no fundo da minha mente é encontrar um participante involuntário e fazer aquilo que faço melhor.
Estou me esforçando muito para ignorar essa voz.
Cassia está sentada ao meu lado, no braço da poltrona de couro, em minha sala de estar. Seus dedos acariciam delicadamente meu cabelo escuro.
— Posso perguntar uma coisa? — diz ela, em um tom sugestivo, enquanto observo suas coxas nuas sobre o braço almofadado da poltrona.
— Claro — respondo. Mantenho os olhos no iPad à frente,
na mesinha de centro, tentando não deixar que a presença dela me distraia.
Mas, assim como ignorar meu lado sombrio, fazer isso não é tão fácil.
— Como você fazia amor com Seraphina?
Meus olhos se fecham em um breve momento de arrependimento. Os dedos de Cassia continuam a se enrolar em meu cabelo, provocando arrepios em minha nuca.
— Acho melhor a gente não falar dela. — Passo a ponta do dedo pela tela, fingindo estar ocupado. Mas só consigo pensar no cheiro de sua pele e no calor de seu quadril encostado em meu braço.
— Como ela era? Na cama, quero dizer.
— Cassia... — Eu me impeço de parecer zangado e solto o ar em um suspiro profundo. — Por favor, você prometeu que não ia fazer isso.
Ela desce do braço da poltrona e monta em meu colo.
Surge um volume desconfortável por baixo do tecido da calça, mas não tenho coragem de me ajeitar, porque não quero movê-la nem um centímetro do meu colo. Cassia está usando um top cinza sem sutiã e uma calcinha de algodão minúscula cor-de-rosa. Olho o meio de suas pernas, as coxas abertas de cada lado do meu corpo, os joelhos pressionando a almofada, e minha cabeça começa a girar de desejo.
— Fredrik... por favor. — Ela abranda o olhar até franzir o cenho, e me esforço para não virar uma porra de uma massa de modelar nas mãos dela. — O jeito que você era comigo todas as outras vezes... era sempre diferente. Você de vez em quando era bruto, outras vezes me olhava antes de me possuir como se estivesse lutando contra alguma coisa. Alguma coisa predadora, primitiva. — Ela move os quadris em meu colo, de propósito. Não consigo respirar. — Você sempre se segurava comigo. E agora... — ela se curva para a frente e passa a língua entre meus lábios. Não consigo enxergar através das pálpebras, que estão formigando — ... agora você me trata com tanta delicadeza...
— Preferiria que eu não tratasse você assim? — pergunto, também com um propósito: quero fazê-la sentir-se culpada para que esqueça esse assunto. — O que foi, não gosta?
Ela se afasta e inclina a cabeça para o lado, triste.
— Não, não, eu gosto. — Ela apoia as mãos em meu peito, por cima da camiseta. — Às vezes sinto que sou capaz de gozar só de você me tocar. Não quero que você mude nunca. Preciso que você seja do jeito que é. O que você me faz sentir... eu nunca tinha sentido antes.
— Então o que importa como eu era com Seraphina? — Inclino a cabeça da mesma forma, olhando para ela. — Por que você se preocupa com isso?
— Curiosidade, acho. — Ela dá de ombros, e de alguma forma acho até isso sexy. — Talvez eu queira que você...
Um acesso de ciúme passa por mim de repente, e ela nota a mudança na mesma hora.
— Cassia — digo, passando as pontas dos dedos pela maciez de seus braços nus —, você diz que nunca sentiu isso antes, o que sente comigo. Você já esteve com outros homens?
Sua expressão desanima e ela olha para baixo, para as mãos, agora alojadas entre a calcinha e minha barriga. Não parece envergonhada. Parece tão neutra quanto estava quando perguntei, algumas noites atrás, de onde tinham vindo as cicatrizes em suas costas e ela não soube responder.
Seus olhos encontram os meus com relutância.
— Não que eu lembre — responde. — Nenhum de Nova York. Mas antes disso... eu não sei.
— Você se lembra de alguma coisa antes de Nova York?
Ela balança a cabeça. Agora parece envergonhada.
— Vem cá — digo, segurando sua nuca e a puxando para meu ombro, onde ela apoia o rosto. — Não se preocupe com isso.
— Fredrik?
— Sim?
— Se eu já tivesse ficado com outros homens, você me manteria aqui mesmo assim?
Minha mão fica rígida em seu cabelo, e eu a abraço com força, pondo a outra mão em suas costas.
Não sei.
— Sim. Isso não me importa — minto.
Com qualquer outra mulher além de Seraphina, eu não me importaria com quem ou com quantos homens ela teve antes. Mas Seraphina era diferente. Ela não era virgem quando nos conhecemos, mas, por sua recusa em falar da primeira vez, eu sabia que tinha sido com alguém que ela precisava esquecer. Seraphina dizia que eu era o “primeiro de verdade”. Ela desprezava os homens. Fui o único que ela conseguiu amar. O único homem por quem ela permitia ser tocada. Seraphina matava os homens que tocavam nela — isso se eu não os pegasse primeiro. Mas eu era o único. Até Marcus, do Abrigo 16. E o matei dez dias depois de descobrir.
Cassia se afasta e me encara com um sorriso suave e tímido. E, em outro movimento proposital, se aperta sobre a minha ereção. Fico sem fôlego. Um
rugido grave e gutural ecoa
silenciosamente em meu peito. — Cassia — começo, pronto para
tirá-la de cima de mim, enfiando as mãos por baixo de suas coxas —, a gente não deveria fazer isso agora.
O que deu nela? Não que isso me incomode — pelo contrário —, mas tenho a sensação de que ela está com ciúme de Seraphina e está tentando tomar o lugar dela de todas as formas, não apenas em meu coração.
Ela franze o cenho.
— Não faça isso — peço. — Desculpa, eu só...
Passando um braço com firmeza por sua cintura, para que ela não caia, pego iPad da mesinha e o jogo no chão. Segundos depois, jogo também as pastas que eu estava lendo, sobre Kelly Bennings e Paul Fortright, em Seattle. Fotos e folhas de papel se espalham pelo tapete. Eu me curvo para a frente, e Cassia instintivamente se segura em meu pescoço para não cair para trás. Encaixo as mãos nas pernas da mesinha de centro, puxando-a para mais perto.
Eu a deito de costas.
— O que você vai fazer? — pergunta ela, curiosa, mas sem nenhuma insegurança. Acho que ela tem alguma ideia do que vou fazer.
— O que eu quiser — respondo, enfiando os dedos no elástico de sua calcinha e tirando-a.
Segurando os tornozelos dela, apoio seus pés na borda da mesinha.
Ela arregala os olhos. Meu pau fica mais duro. Suas coxas se abrem diante de mim
como asas de uma borboleta. Eu a ajudo a mantê-las paradas, segurando-as com as duas mãos, até que ela as mantém imóveis sozinha.
— Se você jurar que nunca mais vai perguntar sobre Seraphina — mergulho dedo médio entre os lábios de sua boceta, para cima e para baixo, duas vezes, antes de abri-la, e ela geme —, vou fazer isto por você. Em qualquer lugar que você quiser. A qualquer momento que você quiser. E, muitas vezes, quando você menos esperar.
Seus dedos agarram com firmeza as bordas da mesinha, ficando brancos sobre a madeira. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante, que me deixa mais faminto.
Eu me curvo e passo a ponta da língua na sua boceta úmida. Ela estremece e geme.
— Mas você precisa jurar, porra. Eu a lambo de novo e a penetro bem
fundo com os dedos médio e indicador. Cassia joga a cabeça para trás, arqueando o pescoço, seu cabelo longo e louro contrastando com a madeira escura.
— Eu juro. — Ela treme. Com os dedos ainda dentro dela,
passo a língua em seu clitóris. — Não foi muito convincente, meu
amor.
Eu me afasto, deitando as costas na gigante poltrona de couro, mantendo as pernas abertas, me permitindo a visão perfeita de seu corpo nu e exposto. Apoio as mãos despreocupadamente nos braços da poltrona.
— Eu juro, Fredrik! Eu juro! — Não levante a cabeça — mando. Ela volta a deitar.
— Nunca mais vou perguntar sobre ela — insiste Cassia, implorando, e isso me faz querer enfiar mais do que os dedos ou a língua nela, mas não o faço.
— Hmmm. — Olho para o teto, sem pressa. — Ainda não sei se posso acreditar em você. Bem, você já me prometeu uma vez...
— Eu juro, Fredrik. Nunca mais vou sequer dizer o nome dela.
Isso chama minha atenção. Ergo as costas da poltrona e acaricio
suas coxas, só roçando o calor entre suas pernas ao passar para o outro lado.
— Diga que promete — ordeno, com delicadeza.
— Eu prometo — responde ela, em um suspiro trêmulo.
Coloco o dedo médio dentro dela, metendo e tirando com cuidado. Uma série de gemidos suaves escapa de sua boca. Brinco com ela um pouco. Porque gosto de tocá-la. Poderia tocá-la por horas e nunca me entediar.
Mais gemidos doces fazem meu pau latejar.
Finalmente, afundo a cabeça entre suas coxas trêmulas e lambo a boceta de um jeito faminto, massageando-a por dentro com os dedos. Cassia geme, agarrando as bordas da mesinha. Sua barriga contrai e ela fica sem fôlego, revelando o contorno das costelas.
Ouço chaves tilintando na porta da rua, mas não paro.
Só o que me importa é causar uma convulsão delirante em Cassia, exposta bem ali, em minha sala de estar.
— Ah, Fredrik! Por favor, não para... Não pretendo parar, meu amor. Chupo seu clitóris sem parar. Ouço outro gemido, mas esse não
veio de Cassia. Só paro quando suas coxas se fecham ao redor da minha cabeça e ela olha para a porta da sala com uma expressão de horror.
Greta está parada ali, boquiaberta e com os olhos mais escancarados do que as pernas de Cassia.
Sem erguer o corpo, olho para ela e digo:
— Você se incomoda de esperar lá fora por uns... por mais uns minutos?
Greta, dando a impressão de que não trepa há muito tempo, leva alguns segundos para organizar as ideias.
— Vou esperar no carro — anuncia, indo depressa para a porta. — É só acenar para mim quando... vocês terminarem.
A porta se abre e se fecha tão rápido que ela deve ter corrido os últimos metros.
— Meu Deus, estou muito envergonhada!
— Não precisa — digo a ela, segurando suas coxas firmemente com as mãos. — Agora fique parada.
— Mas não consigo... — Ah, consegue, sim. Confie em
mim. Agora deite de novo. Ela me obedece prontamente, e eu
volto ao trabalho.
~~~
Enquanto Cassia está no quarto, se vestindo, Greta entra novamente em casa, evitando qualquer contato visual. Não que isso seja incomum, mas desta vez é por um motivo bem diferente.
— Eu sinto muito, sr. Gustavsson. — Ela joga a bolsa no balcão e o casaco no encosto de um banquinho, mas erra, e ele cai no chão. Ela se curva e tenta de novo, mas só se atrapalha. — O senhor falou que eu podia ir entrando. Eu só não...
— Não se preocupe. — Eu me aproximo dela. Greta dá um passo para o lado e baixa os olhos. Dou a volta por ela e vou até a geladeira. — A culpa foi minha. Eu sabia que você vinha, mas... bem, aconteceram coisas que eu não previa.
— Percebi — resmunga Greta, baixinho.
Deixo isso passar.
Cassia entra na cozinha, usando o top cinza e uma calça minha, de moletom, por cima da calcinha minúscula. Ela mal consegue olhar para Greta e é incapaz
de conter o rubor no rosto. Isso é tão bonitinho que me dá vontade de comê-la no balcão.
— Olá, Greta. — Cassia dá um aceno discreto.
Abro a geladeira e pego uma garrafa de água na primeira prateleira.
— Olá, Cassia querida. Eu, hã, presumo que você tenha passado bem os últimos dias.
Balanço a cabeça perante o constrangimento das duas, mas não me pronuncio.
Se Cassia estivesse em uma praia, estaria remexendo timidamente a areia com a ponta do pé.
Como ela e Seraphina podem ser a mesma pessoa?
— Sim, Greta — responde Cassia, com um sorriso incansável —, as coisas estão maravilhosas.
Os olhos de Greta finalmente encontram os meus, mas ela não me encara por muito tempo, só o suficiente para expor a incerteza escondida no olhar. Também deixo isso passar. Ela é apenas muito maternal em relação a Cassia, e, francamente, estou começando a gostar disso mais ainda.
De repente, Cassia compreende, e seu sorriso desaparece quando ela se vira para mim. Se Greta está aqui, isso só pode significar uma coisa.
— Você vai embora? — Seus olhos tristes se voltam para mim. Isso causa um aperto em meu peito.
— Sim. — Tiro a tampa da garrafa. — Preciso me encontrar com uma pessoa daqui a mais ou menos uma hora. É muito importante.
É importante, mas também me deixa tenso. Quase não quero encontrar Izabel no café, pois tenho medo do que ela vai me contar.
Cassia se aproxima de mim. — Não quero que você vá. Solto a garrafa e ponho as mãos nos
ombros dela, curvando-me para beijar sua testa.
— Não vou demorar. Você vai ficar bem.
Greta começa a esvaziar a máquina de lavar louça, fingindo não ouvir, mas está absorvendo cada palavra.
Cassia parece nervosa. Sei que ela não quer que eu vá embora, mas o motivo não é só esse. Ela não quer voltar para o porão e, embora eu não tenha confirmado que é isso o que vai acontecer, ela sabe que é.
Eu a pego pela mão, e ela permite que eu a leve.

 

 

 

CONTINUA