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O CLUBE DO FOGO DO INFERNO - P2 / Peter Straub
O CLUBE DO FOGO DO INFERNO - P2 / Peter Straub

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CLUBE DO FOGO DO INFERNO

Parte II

 

SENHOR NOITE

      

O ENORME ANIMAL NEGRO PODERIA TER SORRIDO PARA ELE. “BEM, AGORA QUE VOCÊ APRENDEU SOBRE O SEU MEDO, PRECISA APRENDER A CONTAR COM ELE, É CLARO.”

 

— NATURALMENTE QUE SE trata de dinheiro. — Dart baixou seu garfo e sorriu. Ele a tinha levado à loja de presentes do hotel, onde comprou escovas de dentes e pasta dental, uma embalagem de lâminas de barbear descartáveis e creme para barba, dois pentes, desinfetante oral, um bastão de desodorante, uma camisa pólo preta, tendo bordada no peito esquerdo a palavra MASSACHUSETTS em pequenas letras vermelhas, e um exemplar da revista Vogue. — Ei, isto é a América! N’gócios são n’gócios! Se vemos que o outro lado provavelmente vai lucrar muito mais grana do que nós, o que fazemos então? Mudamos de lado. Ouça, o que temos na mesa chega a quatro ou cinco milhões de pratas. Jogando isso contra uma droga de possibilidade de talvez dez mil pratas, chegamos ao que os rapazes consideram um retardado mental.

       — Citação de Jornada na Noite.

       Isto, juntamente com o nome da jovem que havia desaparecido misteriosamente de Shorelands, era a maioria do que ela conseguira reter das explicações de Dick Dart.

       — Absolutamente. Então, você prova que Hugo Driver roubou o manuscrito, além do valor de cinqüenta e quatro anos de royalties, claro que não se falando em todos os royalties futuros, que eram um direito dos reais herdeiros. E se você puder provar que a casa editora colaborou nesta fraude, todos os lucros que ela obteve com o livro, e mais um colossal pagamento por danos, vão para o bolo de apostas. Além disso, há todo o dinheiro resultante de edições em idiomas estrangeiros.

       As pernas de Nora pareciam de borracha, e o centro de seu corpo enviava firmes ondas de dor. Ela olhou para seu prato. Ao lado de uma porção de batatas fritas, lustrosas de gordura, um retângulo de queijo industrializado pendia do alto de um montículo de pasta esbranquiçada, sobre uma fatia de torrada.

       — Assim, o velho fecha um negócio com este Fred Constantine, o advogado das velhotas. Constantine sabe que está atolado, seu escritório de advocacia em Plainfield tem pouco movimento, faz apenas alguns divórcios baratos e escrituras de imóveis. Ele está com sessenta e cinco anos, não vê o interior de um tribunal desde que saiu da faculdade de Direito. Imagine seu alívio quando, após fazê-lo mijar sangue por umas duas semanas, o grande Leland Dart sugere — sugere, compreenda — que poderia ser arranjada uma acomodação. Hurra! Se o sr. Constantine chegar a concordar com um pagamento de algo na ordem de cem mil dólares, a firma Dart, Morris de bom grado prestaria alguma assistência às pobres e logradas clientes dele que, sem dúvida, ficarão deliciadas em receber cinqüenta por cento do rendimento definitivo. Não tendo a menor noção de quanto dinheiro está em jogo, o sr. Constantine acha que está fazendo um grande negócio!

       O pedaço mordido de uma batata frita permaneceu na língua de Nora, como um verme na comida. Ela o cuspiu na mão e o deixou cair no prato.

       — Como é que eles podem fazer algo assim?

       — Muito cuidadosamente. — Os olhos de Dart faiscavam; ele empurrou para dentro da boca os remanescentes de seu primeiro cheeseburger e depois limpou os dedos no guardanapo. — O termo adequado? Pára-choques. Mal encerrado o negócio, você já estará em um castelo fortificado, a milhares de quilômetros de distância e, meu bem, com a ponte levadiça suspensa.

       — Eu quero dizer, como eles podem fazer isso?

       Segurando o segundo cheeseburger a poucos centímetros da boca, Dart desviou os olhos e deu uma risadinha contida.

       — Nora-docinho, você é tão comovente! Digo isto com toda sinceridade. N’gócios são n’gócios, já lhe disse. Que nome tem o nosso sistema econômico? Não continua sendo chamado de capitalismo?

       Meneando a cabeça, em zombeteira incredulidade, ele deu uma enorme dentada no cheeseburger. Tirinhas de alface projetaram-se da parte posterior do pão, e suco avermelhado pingou em seu prato.

       Nora fechou os olhos contra uma onda de náuseas. Alden Chancel e Dick Dart pensavam da mesma forma. Esta descoberta seria divertida, caso ela tivesse capacidade para divertir-se. Leland Dart, que partilhava a filosofia moral de Alden, usava-a como justificativa para a traição que fazia a seu próprio cliente. Presumivelmente, esta filosofia moral alcançava a plenitude na alegre e lunática demolição de um cheeseburger, no outro lado da mesa.

       Nora recordou algo ouvido no terraço em “Os Álamos”.

       — Ouvi Alden dizer para Davey que seu pai podia estar jogando dos dois lados.

       Dart engoliu o que mastigava.

       — Os rapazes Chancel comentaram a respeito em sua presença?

       — Davey estava tomando notas sobre o filme de Jornada na Noite, e quando perguntei a ele o motivo, respondeu que havia um certo problema com a propriedade de Driver. — A noite na sala da família parecia ter acontecido no outro lado de um enorme buraco no tempo. — Um pouco mais tarde, ele me falou de duas senhoras idosas em Massachusetts, que haviam encontrado algumas notas em seu porão.

       Ela percebeu que conversava de maneira civilizada com Dick Dart em um restaurante, como se tais ocasiões fossem absolutamente normais.

       — Notas sobre o filme. Que piada! As irmãs de Katherine Mannheim nunca leram o livro, é claro. Elas recordaram o filme quando encontraram as notas, mas o que eu quis realmente dizer...

       — Suponho que pretenda matar as irmãs.

       Nora espetou o garfo na pasta branca e transportou para a boca a porção do tamanho de uma borracha de lápis. A sensação foi de que havia pedido um mingau de atum.

       — Em absoluto! As pessoas que quero matar poderiam ajudar no caso contra a Casa Chancel. Estaremos protegendo o nome de Hugo Driver, algo que me agrada fazer, porque sempre gostei dele. Não dos dois últimos, compreenda, apenas do Hugo Driver certo.

       — Você gostou de Jornada na Noite? — perguntou ela, surpresa por Dick Dart ter apreciado algum livro.

       — O meu livro favorito, e nenhum mais — respondeu ele. — Foi o único romance que cheguei a ler. Para ficar à altura das minhas velhas damas, eu precisava fingir que morria de amores por Danielle Steel, porém aquilo era apenas trabalho. Agatha tinha uma queda por Jane Austen, de modo que folheei Orgulho e Preconceito. Pura perda de tempo. Nada encontrei lá, literariamente falando. Entretanto, reli Jornada na Noite a cada dois anos.

       — Impressionante!

       Nora deu outra garfada em seu atum. Removendo-se o queijo plástico e evitando o pão, aquilo afinal podia passar por comível.

       — Impressionante? Jornada na Noite é um livro notável! Tudo nele acontece na escuridão. E quase tudo tem lugar em cavernas, subterrâneos... Todos os personagens fortes são monstros.

       Era como um aguçado eco de Davey; pela milésima vez, ela ouvia um homem entusiasmado pelo livro. Ao pedir-lhe que pesquisasse o caso contra a Casa Chancel, Leland Dart explorara a única paixão convencional do filho. A percepção de que Alden Chancel fizera a mesma coisa com Davey provocou-lhe uma nova e forte onda de náuseas.

       — Eu nunca o li — disse ela.

       — A esposa de Davey Chancel nunca leu Jornada na Noite? Você mentiu para ele, não foi? Disse que o tinha lido, mas era mentira.

       Nora virou a cabeça para observar os dois casais idosos, em mesas separadas, diante da janela. As enormes letras invertidas na vidraça arqueada acima deles pareciam um arco-íris vermelho.

       — Sim, foi isso, você mentiu para ele. — Mais uma explosão de risadas. Dart voltou a ocupar-se do segundo cheeseburger. — Creio que nunca ouviu falar de um lugar chamado Shorelands.

       — Hugo Driver esteve lá. E Lincoln Chancel. Em 1938.

       — Muito bem! Lembra-se de quem mais estava lá naquele verão?

       — Um bocado de gente com nomes engraçados.

       — Austryn Fain, Bill Tidy, Creeley Monk, Merrick Favor, Georgina Weatherall. As empregadas. Um punhado de jardineiros. E Katherine Mannheim. Davey lhe contou alguma coisa sobre ela?

       Nora refletiu por um instante.

       — Ela era atraente. E fugiu de lá.

       — Saiu andando e desapareceu.

       — O que acha que aconteceu a ela?

       — Suas irmãs dizem que tinha um “coração fraco”, seja lá o que isso signifique. Supunha-se que Katherine devia evitar esforços, porém ela recusava-se a ser uma inválida. Andava de bicicleta, fazia excursões. Se tivesse vivido como Emily Dickinson, poderia ainda estar viva.

       — Você leu Emily Dickinson?

       Dart esboçou uma careta.

       — Florence leu. Uma das minhas damas. Apaixonada por Emily Dickinson. Tive que suportar falhas e mais falhas daquela coisa. Inclusive, tive que ler uma biografia. A cretina faz Jane Austen parecer Mickey Spillane. Fechando os olhos, ele recitou:

       

            “Há uma certa Obliqüidade de luz

            Nas Tardes Invernais

            Que oprime, como o Peso

            Das Árias de Catedrais...

           

            Divinamente Feridos, ela impede

            Que cicatrizes se formem,

            Exceto internas diferenças,

            Onde os Propósitos dormem...”

      

       Dart tornou a abrir os olhos.

       — Isto nem mesmo é linguagem atual, mas um palavrório que ela própria inventou. Li página após página disso para Florence, naquele navio. Agora isso me ficou na mente, ao lado de tudo quanto já cheguei a ler.

       As estrofes tinham penetrado em Nora como uma série inexorável de ondas.

       — Isso é ruim demais — disse.

       — Você nem faz idéia! De qualquer modo, acho que a garota Mannheim esticou as canelas e, na confusão, Driver sumiu com o manuscrito. Jornada na Noite foi publicado no ano seguinte e, como bem sabe, não demorou muito tempo e todas as pessoas no mundo estavam lendo o livro.

       — Vi soldados que o carregavam, no Vietnã — disse Nora.

       — Você esteve em Nã? Perdão, no Nã. Não é de admirar que tenha esse temperamento impetuoso. Por que foi para lá?

       — Eu era enfermeira.

       — Oh, sim, lembro-me de certa aventura envolvendo uma criança. Sim, sim, é isso mesmo.

       Ela baixou os olhos para seu prato.

       — Nora não demonstra excitamento. Pois bem, retornemos ao nosso assunto. De maneira muitíssimo, repito, muitíssimo singular, o sr. Driver faz cessão dos próprios direitos autorais ao seu editor, em troca de um acordo, segundo o qual ele, Driver, receberá todos os royalties devidos durante toda a sua existência e a de sua esposa. Depois disso, a totalidade dos direitos reverterá em benefício do dito editor, que concorda em remeter uma porção menor ao filho ou filhos de Driver, enquanto for ou forem vivos. Presumia-se que isto fosse um gesto de gratidão, mas não lhe parece um tanto excessivo?

       — Você esteve trabalhando um bocado nisso — comentou Nora.

       Agindo pela própria volição, sua mão destacou outro pedaço de atum e o levou à boca.

       — Fiz montes e montes de anotações, nenhuma delas atualmente disponível, devido à interferência de nossa confusão local. Por sorte, decorei todos os pontos essenciais. Gostaria de visitar uma biblioteca durante nossa movimentada tarde e prosseguir em minha pesquisa, mas permita-me destilar a nossa missão para você. — Ele olhou para os lados, a fim de certificar-se de que a garçonete continuava sentada ao balcão. Sabe que três daqueles escrevinhadores se foram desta para melhor, não?

       Ela assentiu.

       — Austryn Fain. Sem esposa, sem pequeninos Fains. Creeley Monk era um pervertido; logo, é evidente que não deixou para trás nenhuma viúva chorosa ou filhos passando fome. Entretanto, a sorte está do nosso lado, porque no verão de 1938 o sr. Monk partilhava a existência com um cavalheiro que continua entre nós, de fato um médico, chamado Mark Foil. O dr. Foil, abençoado seja, ainda mora em Springfield, a mesmíssima cidade onde viveu com o nosso poeta. Desejo ardentemente pensar que ele ocupa a mesma casa, juntamente com punhados e punhados de recordações de Monk. Infelizmente, não encontrei um endereço para ele, mas tão logo cheguemos a Springfield, tenho certeza de que conseguiremos desencavá-lo.

       — E depois? — perguntou Nora.

       — Telefonamos para o cavalheiro. Você explica que está fazendo uma pesquisa para um livro relatando os eventos em Shorelands, no ano de 1938. Em sua opinião, os outros convidados, Creeley Monk em particular, foram injustamente eclipsados por Hugo Driver. E já que se encontra em Springfield, ficaria extremamente grata se o dr. Foil pudesse conceder-lhe uma hora de seu tempo, para falar sobre o que quer que se lembre daquele verão, ou qualquer coisa que Monk pudesse ter-lhe dito, escrito para ele ou registrado em um diário.

       Mesmo em sua atual condição, acondicionada dentro de um rude e resistente envelope que, à custa de proibir-lhe qualquer espécie de ação, não lhe permitia ter sentimentos, Nora refletiu na singularidade das obsessões daquela criatura, tão intimamente semelhantes às de Davey. O que Dart lhe pedia parecia tão abstrato como os problemas de palavras cruzadas elaborados pelos dois velhos de Davey, em Rhine-beck. Ela preencheu um espaço vago com uma pergunta:

       — E se Monk nunca chegou a mencionar Hugo Driver?

       — É bastante improvável, mas não faz diferença. Depois que entrarmos em cena, terei de matar o velhote.

       A hiena interna de Dick Dart exibiu os dentes.

       — Ele nos terá visto, doçura. Se a sorte não estiver conosco, o velho vai somar dois mais dois. A próxima parada é Everett Tidy, filho de Bill. Everett mora em Amherst, é professor de inglês. Acha que o nome Tidy em uma manchete atrairá a atenção de Foil? Temos que cobrir nossa pista.

       O cheiro de fumaça de cigarro flutuou na direção deles, e Nora se virou, para ver a garçonete caminhando para a mesa de ambos.

       — Vamos fazer compras e ir até a biblioteca — disse Dart — enquanto ainda podemos usar o Lincoln.

      

MAIN STREET, a Rua Principal, mas de que cidade? Dart empurrou-a para o interior de lojas de roupas femininas, dispensou as vendedoras e, de mãos dadas, arrastou-a para cima e para baixo dos corredores, vistoriando vestidos, blusas e saias. Aqui, um conjunto de linho areia, a saia na altura do joelho, o paletó sem lapelas (“Seu traje para a entrevista”, disse Dart). Na loja seguinte, comprou sapatos marrons, fechados e de salto, além de uma blusa de malha de seda creme, com mangas curtas e sem gola. Não, ela não precisaria experimentar as roupas, porque iam assentar-lhe perfeitamente. E assentaram; sem perguntar, ele sabia os números dela. Em um galpão onde alunos dos cursos de verão percorriam os corredores com volumosas sacolas às costas, Dart escolheu jeans para ambos, camisetas de modelos iguais e uma suéter de algodão azul-escuro para ela. Numa butique minimalista, uma conferência com outra solícita vendedora resultou em seis sutiãs brancos da marca Gitano, uma dúzia de calcinhas brancas da mesma fabricação e seis pares de meias-calças, também da Gitano. Em uma loja de esquina, encontraram tênis Reebok pretos, para ambos. Duas malas de tecido preto, providas de rodinhas.

       Na Farmácia da Rua Principal, efetuaram rápidas seleções sob a supervisão de um bigode louro-cinza, com óculos do arco-da-velha: tintura para cabelos L’Oreal, nas cores “preto puro” e “louro brilhante”; musse para esculpir cabelos; hidratante (da marca que ela usava, sem que Dart precisasse perguntar, mas este sendo de “ampla proteção”); base cremosa natural para maquilagem; batom em tonalidade papoula; sombra cintilante para olhos rosa-pôr-do-sol (“brilha sem ofuscar”, disse Dart); lubrificante K-Y; máscara para os olhos; xampu e condicionador Vidal Sassoon; sabonetes neutros para banho; creme de mel perolado, para banho e chuveiro; lixa de unhas e palitos para cutículas; esmalte de unhas em suave e cremosa tonalidade, que Nora só percebeu depois que ele o jogou na cestinha de compras: uma dracma de Coco, de Chanel; um frasco de desinfetante oral sabor hortelã, para gargarejos; cortador de unhas dos pés e das mãos, tesourinha de unhas, pinça e removedor de esmalte. De trás da registradora digital, onde os números já passavam dos cem dólares, o bigode declarou:

       — Já vi antes maridos que entendem de coisas femininas, mas o senhor ganha de longe.

       De volta ao carro, Dart deu uma guinada à frente de uma loja de fachada arqueada, Farnsworth & Clamm, e levou Nora para um refrigerado salão, onde outro bigode caminhou sorridente para eles, por entre brilhantes vitrines com ternos pendurados.

       — Sim — murmurou Dart —, tamanho 46 extralongos; este aqui, mais este, um blazer azul traspassado, quatro camisas azuis, quatro camisas brancas, de algodão fino e golas amplas, pescoço 43, mangas 91, oito cuecas tipo short, cintura 96, oito pares de meias pretas, todas de cano longo, uma dúzia de lenços, e escolha também algumas gravatas, por favor. Eu gostaria que quaisquer alterações fossem feitas imediatamente, se possível. Com Nora sentada em uma confortável poltrona de couro e encosto baixo, perto do espelho comprido, surgiu das profundezas da loja um diligente homem com uma fita métrica em torno do pescoço, Dart desapareceu na sala de provas e, após um rapidíssimo momento, reapareceu vestindo um de seus ternos novos. Outra solícita figura materializou-se para levar o terno, enquanto Dart, com a mesma presteza, enfiava-se no número dois. Ele e seu reflexo exalavam vaidade. Completadas as provas, Dart ocupou outra poltrona, e o bigode surgiu com uma garrafa de vodca finlandesa, dois copos e um balde de gelo.

       — Um drinque enquanto espera, senhor — disse ele.

       A conta foi apresentada. Nora olhou de soslaio, e viu que Dart comprara seis mil dólares em roupas.

       — Qual a biblioteca mais próxima, realmente boa? — perguntou Dart.

      

Ele manobrou o Lincoln para a saída perto do “Hall da Fama do Basquete”, e Nora percebeu que, fosse onde fosse que haviam estado antes, agora encontravam-se em Springfield, onde o dr. e a sra. Daniel Harwich eram senhores absolutos da Alameda Longfellow. Se ela conseguisse escapar de Dick Dart, o médico e sua esposa seriam capazes de abrigá-la em seu porão? Resposta confusa, não sabia responder. Três anos antes, uma Nora semi-radiativa que perambulara por Springfield no que imaginara ser uma visita sentimental, havia terminado em um bar, depois em um motel, com um estranho e amargo Dan Harwich, que depois lhe falara em levá-la para casa com ele. Às dez e meia da noite. A sra. Harwich do momento, Helen, que aquecera no microondas sua metade de jantar uma hora mais cedo, despachando-a com vários drinques de vodca e tônica, começara a gritar assim que eles cruzaram a porta. Nora tentara escapulir, mas Harwich a instalara em uma cadeira, presumivelmente como testemunha. E o que ela testemunhara fora um velho episódio sobre direitos conjugais. A sra. Harwich ordenara que os dois saíssem, que Dan voltasse na manhã seguinte para recolher algumas roupas e que partisse para sempre. De volta ao motel, Harwich dera risadinhas malévolas. Na manhã seguinte prometeu ligar logo para ela. Logo significou dois dias mais tarde, outro telefonema uma semana depois e um terceiro após outras duas semanas. Depois disso, ligações intermitentes, intermitentemente. Dois anos mais tarde, um comunicado de casamento, acompanhado por um cartão, que dizia: Caso você se interesse em saber. A nova sra. dr. Harwich tinha o sobrenome Lark, née Pettigrew.

       — Preciso ir ao banheiro quando chegarmos à biblioteca — disse Nora.

       Cortês, ele iria com ela, mas a verdade é que não podia largar sua presa.

       Dart estacionou no lado da rua fronteiro a um comprido edifício de pedra assemelhando-se à Suprema Corte, tendo até uma escada de Suprema Corte. Em um amplo saguão de mármore, no segundo andar, o banheiro de senhoras estava vazio, assim como a sala de leitura. Dick Dart esgueirou-se atrás dela. Nora ocupou um cubículo, ele outro. Os dois saíram juntos, assustando uma trêmula mulher de olhos esbugalhados, cuja boca se abria e fechava como o de um efeminado, até eles desaparecerem de vista na escada.

      

Dart empurrou Nora, não indelicadamente, para uma cadeira diante de uma comprida mesa de madeira, sentou-se ao lado dela e abriu um gordo volume intitulado Shorelands, o Lar do Gênio. Ela ficou sentada ao lado dele, de vez em quando ouvindo vozes cochichadas e metálicas, como as dos insetos. Nora estava dentro do envelope, aquele envelope que excluía sentimentos, estava ótima. Dart sorriu para seu livro. Ela puxou para perto Musas em Massachusetts, de Quinn W. S. Dogbery, abriu-o e leu um parágrafo ao acaso.

      

Devido à natureza errática da personalidade artística, qualquer comunidade como Shorelands provocará escândalo. De um modo geral, a colônia de personalidades talentosas pertencente a Georgina Weatherall seguiu tranqüilamente o seu rumo, produzindo trabalho significativo década após década. Não obstante, surgiram problemas. Entre estes, figuram pessoas que qualificariam o desaparecimento da promissora poeta Katherine Mannheim como “estranho”, embora o presente escritor não faça parte de seu número. Durante sua breve residência, essa jovem mantivera-se afastada da criadagem da casa e dos colegas convidados. Não pode haver dúvidas de que sua anfitriã resolvera dispensá-la. E a srta. Mannheim, que não desejava enfrentar uma expulsão humilhante, preferiu ir embora, de maneira calculada para causar um máximo de confusão.

Os verdadeiros escândalos de Shorelands, como poderíamos esperar, são muito diferentes em sua natureza.

      

       Dart deixou dois catálogos telefônicos caírem sobre a mesa e deu alguns tapinhas nas costas de Nora.

      

Para Georgina Weatherall, talvez o mais angustiante fosse o desaparecimento, não de uma problemática jovem descontente, mas de uma favorita obra de arte de sua sala de refeições, um desenho do simbolista Odilon Redon, representando uma vigorosa mulher nua, com a cabeça de um falcão sobre os ombros. É evidente que o desejo de Georgina pelo desenho de Redon originava-se de seu título, idêntico ao de uma tradição central de Shorelands. As obras de arte da sala de refeições eram de uma natureza tipicamente mais tradicional. O desenho de Redon, medindo uns vinte centímetros por vinte e cinco, pendia bem no alto de uma parede cheia de obras de arte mais notáveis. Um hóspede com particular interesse por Redon foi quem primeiro notou a ausência do desenho, em 1939. Uma busca imediata pelos aposentos e chalés não deu nenhum resultado. Nos anos seguintes, Georgina Weatherall comentou inúmeras vezes com convidados que não ficaria surpresa se descobrisse que a srta. Mannheim o tivesse escondido durante a sua “escapada da meia-noite” e, embora sendo possível que o assunto jamais encontre solução, talvez não seja falta de caridade mencionar que esse desenho então possuía, como possui também agora, considerável valor monetário.

      

       — Vamos embora daqui — disse Dart.

       Aferrando o braço de Nora, ele a levou dali, para o calor e a claridade fora do edifício.

       Os dois tiveram que fazer três viagens, a fim de levarem todas as sacolas e embrulhos para o hotel.

       — Clark, meu velho, poderia dar-nos um momento e ajudar-nos a levar estas compras essenciais para o nosso maravilhoso quarto?

       Clark passou a língua nos lábios.

       — Vá lá que seja.

       Inclinando-se para o aposento às suas costas, disse algo inaudível para quem quer que estivesse lá. Depois emergiu pela porta do saguão, olhou de relance para Dart e moveu-se em direção às malas. Era mais baixo do que parecia atrás do balcão de recepção, uns dez a treze centímetros além de um metro e meio.

       — Eu carrego as malas — disse Dart. — Ajude minha esposa.

       — Vá lá que seja.

       Clark recolheu quantas sacolas pôde. Nora carregou mais três outras, deixando uma no chão. Clark ergueu os olhos para Dart, que sorriu, abriu a boca e cerrou os dentes. O rapaz olhou rapidamente para Nora e, inclinando-se, mordeu as duas alças da sacola remanescente, em seguida içando-a com um repelão.

       Os três ficaram amontoados dentro do elevador.

       — Estou interessado em seu uso da expressão “Vá lá que seja” — disse Dart. — Significa alguma coisa ou é meramente uma estática verbal?

       O rapaz emitiu um grunhido e procurou agarrar melhor seu monte de sacolas. O suor escorria-lhe pela testa.

       — É uma expressão tão rude quanto parece? Tem-se a impressão de que quem diz “Vá lá que seja” sente um certo menosprezo pela pessoa a quem é dirigida. Isso é verdade, ou eu estou sendo paranóico?

       Clark abanou a cabeça.

       — É um grande alívio, Clark.

       O elevador chegou ao terceiro andar, e Dart os guiou corredor abaixo.

       — Clark, meu velho, quer depositar essas sacolas de compra diante do armário embutido, e depois pendurar os ternos nos cabides em que vieram?

       Dart fez Nora cruzar a porta. Clark inclinou-se para deixar no chão a sacola que segurava com os dentes, exalou uma trêmula respiração, e em seguida largou as sacolas de compras. Conseguiu pendurar os cabides de arame com os ternos no trilho do armário embutido, e então voltou para o corredor.

       Dart trancou a porta e entrou no quarto, onde parou em frente dela, sorrindo. Nora ergueu os joelhos e encurvou as costas. Levantou os olhos, quando ele recuou um pouco. Dart escolhia um pedaço de corda.

       — Terei de dizer-lhe tudo?

       Ela chutou os sapatos para fora dos pés. Seus dedos, que não precisavam ouvir o que tinham de fazer, começaram a desabotoar a blusa. Dart foi ao banheiro com a sacola dos artigos adquiridos na farmácia e a deixou sobre a mesa, enquanto Nora se despia. Tirou os itens da sacola de um em um e os arranjou em cima da mesa. Quando tudo ficou satisfatoriamente alinhado, ele tirou a tesoura de seu estojo de plástico e chamou Nora ao banheiro.

       — Sente-se a cavalo em cima do vaso — disse.

       Nora obedeceu, tremendo, e Dick Dart ficou cantarolando para si mesmo, enquanto lhe cortava a maioria dos pêlos púbicos, jogava-os dentro do vaso e dava descarga para que desaparecessem.

       — Muito bem — disse ele.

       Movendo-a para trás, como um manequim, depois a fez dar meia-volta, plantou uma das mãos entre suas omoplatas e a empurrou de leve para que voltasse ao quarto. Uma vez lá, amarrou-lhe as mãos atrás das costas e tornou a amordaçá-la com fita gomada.

       Nora olhou para o teto branco e sem enfeites do quarto. Dart içou o corpo para a cama.

       — Desta vez não vai ser tão ruim, ouviu?

       Virando a cabeça, ela o viu esgrimindo um tubo de K-Y, o lubrificante. Foi ligeiramente menos doloroso do que antes, porém horrível em todos os sentidos.

      

— MANTENHA a cabeça ereta. Terá de colaborar comigo, ou do contrário ficará parecendo um moleque de rua. — O creme de banho perfumava o ar no banheiro, e os cabelos dela, ainda molhados, pendiam lisos e colados à cabeça. Dart baixou o rosto ao lado do seu, a fim de que o espelho emoldurasse as faces de ambos. — Diga-me o que está vendo.

       Nora captou uma aterrorizada versão de si mesma, com olhos atônitos, pele apergaminhada e cabelos molhados, posando ao lado de uma hiena.

       — Nós dois.

       — Vejo um casal de interessantes facínoras — disse a hiena no espelho. — Você precisava de mim para abrir-lhe os olhos, e eu apareci. Não foi nenhuma casualidade, foi?

       — Não sei o que foi, mas...

       Antes que ela pudesse acrescentar eu desejaria que nunca tivesse acontecido, os olhos no espelho carregaram-se com uma iluminação.

       — Você costumava fazer isso com o querido maridinho, não é mesmo? Os dois juntavam as cabeças e contemplavam-se no espelho. Também sei por que agiam assim.

       Ela não precisou dizer que ele estava certo; Dart já sabia.

       — Por quê?

       — Até agora, eu não tinha percebido o quanto você e Davey se parecem. Aposto que nisso existe uma pequena carga de erotismo; provavelmente ajudava Davey a ter uma ereção. Como transar com quem você seria, se pertencesse ao sexo oposto. Entretanto, Davey não é o seu eu masculino. O maior risco que aquele bostinha assumiu, foi meter-se na cama com Natalie Weil — e o único motivo que o levou a isso, foi o fato de seu velho deixá-lo tão inseguro sobre a própria masculinidade, que era preciso provar que sabia usá-la.

       Nora comprimiu a boca para não assentir, mas concordava que ele dizia a verdade.

       — Eu é que sou o seu verdadeiro eu masculino. A única diferença é que sou mais evoluído, isto significando que, eventualmente, iremos ter uma tremenda vida sexual.

       A hiena aflorou mais uma vez no rosto dele.

       — Aliás, Nora, garota ingênua, você não teve um pequeno orgasmo desta vez?

       — É possível — respondeu ela, imaginando que fosse o que ele queria ouvir.

       Dart esbofeteou-a com tanta força, que lhe jogou a cabeça para trás. Uma enorme marca vermelha, em formato de mão, surgiu na face dela.

       — Eu sei que você não gozou, e você também sabe! Raios me partam, mas quando eu fizer você gozar, no condado vizinho todos a ouvirão uivando. Merda!

       Ele deu um soco na porta do banheiro, depois virou-se e apontou para o rosto dela pelo espelho.

       — Eu livrei você da cadeia, comprei-lhe roupas, vou dar-lhe o melhor corte de cabelos que já teve na vida, depois disso faço-lhe o que sua mãe devia ter feito, ensinando-lhe sobre maquiagem, e você mente para mim? Nora estremeceu.

       — Preciso ficar recordando como são as mulheres. Pouco importa o que um homem faça por elas, sempre o apunhalam pelas costas na primeira oportunidade!

       — Eu não devia ter mentido — disse ela.

       — Esqueça. Apenas não minta mais para mim, a menos que queira segurar suas tripas com as mãos. — Ele enxugou o rosto com uma toalha e depois a ajeitou sobre os ombros dela. — Pare de tremer.

       Nora tinha os olhos fechados e, em algum mundo onde os demônios não existiam, sentiu um pente passando através de seus cabelos.

       — No todo, vão ficar uns três a cinco centímetros mais curtos, porém o aspecto será totalmente diferente. Por falar nisso, corto cabelos muito melhor do que o último sujeito que fez isso em sua cabeça. Além do mais, sei como deve ser a sua aparência, ao passo que você não faz a mais remota idéia. É pena termos de transformá-la em loura, porém isso também ficará legal, acredite. Você parecerá ter dez anos menos.

       Ele posicionou-lhe a cabeça e começou a cortar, em movimentos breves e precisos da tesoura. Cabelos escuros caíram sobre a toalha e deslizaram para os seios dela.

       — Fique imóvel — disse. — Depois limpo os fios aderidos à pele. — Pequenos chumaços de cabelos pousaram nos antebraços dela, em seu estômago e costas. Dart cantarolava “Serão feitas algumas mudanças”. — Bons cabelos — comentou. — Têm corpo, são cheios e bastos.

       Ela abriu os olhos e contemplou exatamente o que ele havia prometido, o melhor corte de sua vida. Era pena ter os cabelos cortados com tanta perícia, agora que se tornara um cadáver sendo preparado para o ataúde. As mãos dele voaram por sua cabeça, afofando e cortando.

       — Posso afirmar que ficou excelente! — Dart arrancou a toalha de sobre os ombros dela, depois escovou os fios caídos no corpo. — E então?

       Nora pegou a toalha e a enrolou em torno do busto. Dart deu-lhe um sorriso através do espelho. Ela correu os dedos por entre os cabelos curtos e fofos, depois viu como caíam perfeitamente de volta ao lugar. Além da marca vermelha em sua face, já desbotando, o único problema com a mulher no espelho era que, sob a cobertura de cabelos belamente cortados, seu rosto estava morto.

       Dart abriu a caixa da tintura para cabelos e retirou um pequeno frasco branco de plástico, provido de bocal, e um cilindro com líquido de cor âmbar.

       — Você não ficará tão loura como na ilustração, mas será uma loura, de qualquer modo.

       Ele introduziu as mãos nas luvas de plástico transparente que se achavam no lado interno da folha de instruções. Após despejar o líquido ambarino, Dart agitou o frasco.

       — Incline-se para frente. — Ela agachou-se sobre a pia e Dart esguichou o líquido dourado em seus cabelos, começando então a massageá-los com os dedos. — Isto vai durar vinte e cinco minutos. — Ele consultou o relógio. — Sente-se aqui, a fim de que eu possa usar o espelho.

       Nora puxou a cadeira em frente do corpo, ao recuar para perto do vaso sanitário. Dart abaixou-se para frente e começou a cortar os próprios cabelos. Atrás da cabeça fez um trabalho melhor do que Nora esperava, perdendo apenas algumas seções onde os cabelos compridos abriam-se em leque sobre os restantes.

       — Como ficou?

       — Muito bom.

       — Atrás da cabeça?

       — Muito bom também. Ele resfolegou.

       — Isso está me soando a exagero — disse. Abrindo a caixa da tintura para cabelos pretos, misturou os ingredientes. — Como vou ter de fechar os olhos, quero que você ponha sua mão em mim. Se afastá-la, arrebento sua cabeça na borda da banheira.

       — Quer que eu ponha a mão onde?

       — Agarre o que você quiser.

       Inclinando o corpo para diante, e estremecendo de repulsa, ela pousou a mão sobre o quadril dele. Dart espremeu o fluido em seus cabelos.

       — Eu gostaria de ser mulher, para poder fazer isso por mim mesmo. Sem ser desta maneira, quero dizer.

       — Você gostaria de ser mulher — disse Nora.

       Ele parou de massagear a mistura nos cabelos.

       — Não foi isso que falei.

       Os braços de Nora ficaram arrepiados.

       — Eu não falei que queria ser mulher. Não foi o que eu disse.

       — Não, não foi.

       A violência congelou-se no corpo volumoso de Dart e saltou no ar. Baixando as mãos, ele se virou para encará-la.

       — Eu quis dizer que apreciaria ter estas coisas feitas em mim por mim próprio. As mulheres que recebem meu tratamento especial são pessoas de incrível sorte. Acho que seria gostoso ser paparicado, da maneira como eu a papariquei. Há algo de estranho nisso?

       — Não — respondeu ela.

       Dart virou-se novamente para a pia e lançou para ela um olhar candente. Nora tornou a colocar a mão no quadril dele.

       — Você está presa a convençõezinhas de merda, que inibem cabeças de melão como seu marido. A verdade é que existem duas espécies de pessoas: cordeiros e lobos. Se alguém devia compreender esse ponto, esse alguém é você.

       Ele tirou as luvas manchadas de tintura.

       — Ponto final. — Nora baixou a mão e olhou para a porta. — Negativo. Nós vamos ficar aqui. Sente-se na beirada da banheira.

       Nora obedeceu. Dart franziu o cenho, jogou as luvas na cesta, examinou-se ao espelho e depois sentou-se no vaso.

       — Temos algum tempo para matar. Pergunte-me alguma coisa, e faça com que não seja uma pergunta demasiado idiota.

       Ela tentou imaginar algo que não o enfurecesse.

       — Eu gostaria de saber por que você mora no Harbor Arms.

       Dart ergueu o dedo, como um ponto de exclamação.

       — Muito boa! Em primeiro lugar, porque meus pais nunca irão lá. O lugar deixa os dois com urticária. Em segundo, porque lá ninguém está dando a mínima para o que a gente faz.

       Durante quinze minutos, ele descreveu as vantagens de morar em um lugar onde os colegas residentes de bom grado forneciam drogas, sexo e mexericos — os membros do Iate Clube presumiam universalmente que seus garçons e ajudantes de garçom — os confidentes de Dart — preferiam não ouvir suas conversas privadas.

       Se estivesse viva, pensou Nora, a maioria do que poderia sentir sobre este homem fútil, destrutivo e convencido, seria desprezo. Então percebeu que o que agora sentia era desprezo. Afinal de contas, talvez não estivesse totalmente morta.

       — De qualquer modo — disse Dart — é hora de lavar seu cabelo, remover essa mistura e passar o condicionador.

       — Eu gostaria de fazer isso eu mesma.

       Ele ergueu as mãos.

       — Ótimo! Use um pouco de água quente, ensaboe e lave. Pegue aquele tubo que está no lado da pia e massageie todo o conteúdo em seus cabelos. Depois de dois minutos, enxaguaremos para retirar o creme.

       Nora massageou os cabelos com os dedos, até surgir uma capa de espuma branca. Em seguida, baixando a cabeça sob a torneira, enxaguou os cabelos para remover a tintura.

       — Admirável! — exclamou Dart.

       Nora ergueu a cabeça.

       Uma ensopada loura de dezesseis anos a encarava do outro lado do espelho. Os cabelos curtos e molhados, apenas levemente mais escuros do que os de Natalie Weil, jaziam colados em sua cabeça.

       — Não pensei que fosse ficar tão bom — disse Dart. — Não esqueça o condicionador.

       Nora desviou os olhos da imagem da jovem ensopada e desenroscou a tampa. Então tornou a encarar a jovem estranha e espremeu o conteúdo do tubo do alto de sua cabeça, em uma comprida e tortuosa linha. Juntas, ela e a jovem fizeram os dedos trabalharem através de seus cabelos.

       — Agora é a minha vez. — Em pouco, um Dick Dart de cabelos negros sorria para a própria imagem no espelho. — Eu devia ter feito isto há anos atrás. Não acha que fico formidável?

       Um gorduroso capacete, negro como asa de corvo, achatava-se sobre a cabeça dele. Como penas soltas, mechas aderiam-lhe às têmporas e testa.

       — Sim, fica formidável — disse ela.

       Ele apontou para a pia, e Nora aproximou-se, a fim de enxaguar o condicionador.

       — Muito bem, a etapa seguinte. — Dart empurrou-a para o quarto e a fez sentar-se à mesa. — Preste atenção ao que estou fazendo, para que mais tarde possa fazer o mesmo sozinha. — Abrindo um estojo provido de espelho, ele o passou para ela. Depois aplicou uma pequena dose de base cremosa nos malares e a espalhou com pancadinhas pelas faces abaixo, usou máscara nos cílios e batom nos lábios. — Quando terminarmos, quero que você limpe suas unhas, remova as cutículas e passe aquele esmalte. Imagino que já deva ter feito isso antes, não?

       — Claro que já fiz — respondeu ela, mas sem conseguir recordar a última vez em que se dedicara a essa tarefa.

       — Um último toque — disse Dart, colocando na palma um pouquinho da musse para esculpir, do tamanho de uma moeda de dez centavos. Em pé atrás dela, começou a massagear-lhe o couro cabeludo. Depois penteou, ajeitou, penteou e afofou-lhe os cabelos. — Estou impressionado. Vá até o banheiro e dê uma espiada.

       Nora enfiou-se em sua camisa azul.

       — Você não vai acreditar.

       Nora postou-se diante do espelho e ergueu os olhos. Uma mulher, apenas começando a entrar em sua real maturidade — a segunda — uma mulher que devia ter estado vendendo xampu caro em comerciais de televisão, devolveu o seu olhar. Sua brilhante cabeleira de garota havia sido modelada em ondas e picos caprichosos. Ela possuía pele perfeita, uma boca atraente e olhos alongados, admiráveis. Ela era o que as criaturas de vinte e poucos anos, com cabelos duros de laquê e que se alimentavam com água mineral do supermercado Waldbaum’s queriam ser quando crescessem. Por algum motivo, esta mulher usava a camisa azul predileta de Nora.

       Afastando o rosto uns dez centímetros do espelho, Nora percebeu que, espreitando por sob a máscara da mulher loura, estava ela própria. Então, recuando, desapareceu debaixo da máscara. Um urro de raiva partiu do quarto.

       Dick Dart estava sentado à mesa com o jornal que apanhara no andar de baixo. O frasco de base cremosa permanecia aberto na metade inferior do jornal e ele sacudia o pincel para um artigo, sujando o papel com salpicos cor de pele.

       — Sabe o que estes idiotas estão dizendo? — Dart virou para ela um rosto originado de um truque fotográfico, sua metade esquerda refinada em uma versão mais jovem e desenrugada que a direita. — Eu devia processar os filhos da mãe!

       Nora passou pela fileira de sacolas de compras, diante do armário embutido.

       — O que há de errado?

       — O Times, eis o que há de errado. Eles publicaram tudo atrapalhado, confundindo as coisas em todos os sentidos possíveis.

       Ela sentou-se na cama.

       — Sabe o que você é, segundo este pasquim? Uma socialite. Se você é uma socialite, então eu sou a rainha de Sabá. “Para proteger sua fuga, Dart apoderou-se de uma refém, a socialite de Westerholm Nora Chancel, 49, esposa de David Chancel, editor-executivo na Casa Chancel e filho do atual presidente e membro do conselho da prestigiada companhia editora, Alden Chancel. Nem David ou Alden Chancel puderam ser encontrados para falar a respeito.”

       Dart leu a notícia com um rosnado e sarcástico sorriso que fazia cada palavra parecer uma despropositada mentira. Nora nada disse.

       — A acreditar-se neste artigo, o único criminoso em Westerholm sou eu; e pode imaginar o que dizem que sou? Vamos, pegue, dê uma olhada.

       — Um assassino?

       — Um serial killer! Serão eles tão desprovidos de cérebro, que não enxergam a diferença entre Dick Dart e algum psicopata que vagueia por aí, matando gente ao acaso? — A indignação deixava avermelhado o lado do rosto onde ele ainda não aplicara a base. — Insultam-me em letra de fôrma!

       — Em realidade, eu não...

       Dart apontou para ela o aplicador de base como uma faca.

       — Assassinos que matam em série, esses serial killers, são o rebotalho! O próprio Ted Bundy era um nada, vindo de uma família de ninguéns totalmente insignificantes, em nenhures de Seattle!

       Ele respirava com dificuldade.

       — Eu entendo — disse Nora.

       — De que adianta fazer-se alguma coisa se eles vão deturpar tudo? E o que dizer-se do crédito, quando este é devido?

       Ela assentiu.

       — Aqui vai mais uma mentira. Eles dizem que sou um serial killer acusado. Perdoe-me, mas quando foi que isso aconteceu? Fui levado ao posto policial por causa das alegações de uma prostituta bêbada, fiquei cerca de doze horas com Leo Morris, e durante todo esse tempo, quando é que fui acusado? Francamente, isto é um libelo!

       Nora permaneceu de olhos fixos nele.

       — A gente trabalha como louco, vive em constante perigo, faz coisas que o cretino comum jamais sonharia fazer, e eles saem por aí dizendo estas mentiras a nosso respeito. Isto me deixa louco da vida!

       — Eles têm alguma idéia de onde estamos? E quanto ao carro?

       — No referente a isso, aqui diz que o fugitivo e sua refém... muito boa esta... refém!, fugiram no carro da refém, o qual mais tarde foi encontrado no pátio de estacionamento de um restaurante parador, na I-95. Provavelmente também sabem sobre o Lincoln desse velhote filho da puta. Enfim, esta noite eu pretendia mesmo arranjar um outro carro... — Ele tornou a pegar o frasco da base de maquiagem e jogou o jornal para ela. — Serial killer! Era só o que faltava!

       Ela sentou-se sobre as pernas cruzadas.

       — O que você vai fazer?

       Dart mergulhou o aplicador no frasco de base de maquiagem, ajeitou o espelho à sua frente, e começou a trabalhar no lado direito do rosto.

       — Vamos vestir nossas roupas novas e fazer as malas. Amanhã cedo aguardaremos a chegada de um viajante cansado, matamos o cara e ficamos com seu carro. Iremos para outro motel. Em algum momento antes do meio-dia de amanhã, localizaremos o dr. Foil. Depois disso, viajaremos para Northampton e faremos uma visita a Everett Tidy, filho do pobre Bill.

       Ele recolocou a tampa no frasco e ofereceu o rosto para inspeção.

       — O que você acha?

       Do pescoço para cima, ele era um homem diferente e mais jovem, que poderia passar por um médico. As enfermeiras flertariam com ele e fariam mexericos a seu respeito.

       — Notável — disse ela.

       Ele estendeu a mão sobre a mesa, a fim de apanhar a corda e a fita isolante.

      

NORA RETORNOU ao seu corpo. Talvez seu corpo é que tivesse retornado a ela. O processo era incerto. Vinda de uma paragem indefinida, ela caíra em uma cama úmida, já ocupada por um grande corpo de homem que suava exalações alcoólicas. Também o corpo dela estava suado.

       Querendo enxugar a testa, ergueu uma mão que formigava, mas o movimento foi interrompido bruscamente antes que pudesse atingir o rosto, contido pela apertada pressão em torno de seu pulso. Ao examiná-lo, viu que uma corda o prendia. A corda estendia-se por baixo do corpo inerte do homem, a quem Nora recordava como a pessoa que lhe amarrara os pulsos juntos, enquanto ela percorria o interior de uma nuvem após outra. Agora estava de volta a Dick Dart e sentindo o segundo “fogacho” de sua vida. Uma interessante mistura de demônios, em excelente bom humor, acocorava-se ao redor da cama, rindo à socapa e cochichando em suas vozes rápidas como disparos de metralhadora.

       Um homem, quase indistinto na penumbra do quarto, cruzou as pernas, dos tornozelos ao joelho, em uma poltrona perto da janela. Nora olhou mais atentamente para ele e viu que seu pai encontrara um meio de juntar-se a ela, neste mundo inferior.

       Papai, disse para ele.

       Em que bela enrascada você se meteu, respondeu seu pai. Parece-me que você poderia usar um pequeno conselho de seu velho, neste exato momento.

       Não o acorde! Você está falando muito alto!

       Ora, este palhaço não pode ouvir o que digo. Bebeu demais daquela garrafa de vodca, lembra-se? Ele vai ficar fora deste mundo por algum tempo. Entretanto, mesmo que estivesse absolutamente sóbrio, ele não conseguiria ouvir nenhum de nós dois.

       Sinto a sua falta.

       É por isso que estou aqui.

       Nora começou a chorar.

       Eu preciso de você...

       Meu bem, a pessoa de quem você precisa é Nora. Você ficou perdida, e agora necessita encontrar-se novamente.

       Nem mesmo continuo tendo um eu. Estou morta.

       Ouça-me, queridinha. Esse monte de esterco de cavalo fez a você a pior coisa que poderia imaginar, porque quer derrotá-la. Entretanto, isso não vai funcionar, não em toda a linha. Esqueça esse negócio de que está morta. Se estivesse morta, não poderia estar agora falando comigo.

       Por que não? Você também já morreu.

       Acabar com você não é tão fácil como Dick Dart pensa. Você vai dar a volta por cima, mas, para tanto, tem que viver estes momentos. É difícil, e eu desejaria que não precisasse ser assim, mas, às vezes, somos forçados a engolir uma pílula por demais amarga.

       A forma de frente para ela na cadeira, com um tornozelo pousado sobre o joelho contrário, aos poucos fora ficando mais visível na escuridão, e agora Nora podia perceber sua camisa quadriculada, aberta sobre a alvura de uma camiseta branca, as verticais tiras vermelhas de seus suspensórios, as botas de trabalho. Os cabelos brancos de seu pai, cortados bem rentes, brilhavam. Ela demorou na contemplação daquele rosto tão amado e familiar, dos olhos claros com os cantos cercados de rugas fundas e da testa riscada por uma profusão de linhas. Ali estava Matt Curlew, seu pai forte, capaz e firme, também contemplando-a com uma mescla de ternura e autoridade, que penetravam fundo no coração dela.

       É mais do que posso suportar, disse Nora.

       Você suportará. Tem de suportar.

       Eu não posso.

       Ele dobrou as mãos entrelaçadas no alto da perna erguida, e inclinou-se para frente.

       Está bem. Talvez eu possa, mas não quero.

       É claro que não quer. Ninguém quer atravessar situações penosas. Certas pessoas nem mesmo enfrentam um transe semelhante. A gente poderia dizer que são criaturas de muita sorte, mas a verdade é que elas nunca tiveram a oportunidade de deixar de ser ignorantes. Você sabe o que é o espírito, Nora? Um espírito de verdade? Um espírito real é algo que forjamos caminhando através do fogo — continuando a caminhar e recordando a sensação que isso produziu.

       Não sou forte o bastante.

       Desta vez você tem que agir corretamente. Na última, ficou tão ferida quanto agora porque fechou os olhos, fingindo que não tinha acontecido. Dentro de você há um monte de portas que fechou há muito e muito tempo. O que tem de fazer é abrir essas portas.

       Não compreendo.

       Apenas procure lembrar. Comece com isto: lembra-se de um verão, quando tinha nove ou dez anos, e eu lhe ensinei a dar todos esses nós? Lembra-se de ter feito o nó meia-volta? O nó de correr?

       Dar nós quando ela estava com dez anos de idade? A Nora presente jamais tivera dez anos.

       Você estava sentada naquele cepo, no pátio dos fundos, o pedaço de tronco daquele carvalho que tombou durante uma pavorosa tempestade.

       Então, ela se lembrou: a lisa superfície branca do cepo, seu eu moleque brincando com um pedaço de corda que desencavara da garagem, seu pai aproximando-se para perguntar-lhe se queria aprender a fazer alguns nós curiosos. Depois o prazer de descobrir como uma série de laçadas, parecendo feitas ao acaso, reduzia-se magicamente a um padrão. Ela o tinha amofinado durante semanas, exibira-se na mesa da cozinha e impressionara vários garotos, absorvida por um daqueles fascínios infantis que duram uma temporada, em seguida desaparecendo para sempre.

       Lembro-me agora.

       Qual deles era o melhor? Você o usava para prender Lobo.

       O praga de feiticeira?

       O sujeito que o ensinou para mim dava-lhe o nome de dor de cabeça de feiticeira. Provavelmente tem uma dúzia de nomes. Se você o faz direito, ninguém que desconheça o truque conseguirá desatá-lo. Pelo que posso ver, seu amigo Dick Dart tentou colocar um “dor de cabeça de feiticeira” em seu pulso, mas ele não entende tanto de nós quanto entende de cosméticos.

       Nora baixou os olhos para a complicação em seu pulso, tão sólida quanto um bracelete e tão intrincada quanto um labirinto. Algo sobre o padrão estava incorreto.

       Você pode livrar-se dessa geringonça em dois segundos. Entendeu agora?

       Nora forçou aqui e ali com a mão livre, afrouxando suavemente a teia, depois puxou devagar a ponta da corda oculta sob uma parte da mesma. Desenrolando-a do pulso, passou-a por baixo de outra espessura de corda. O nó se desfez em uma série de laçadas, através das quais ela pôde deslizar a mão com facilidade.

       Agora, dê o nó outra vez, com aquele erro idiota onde ele deixou de fazer a obstrução.

       Oh, mas eu posso fugir!

       Você ainda não acabou, meu bem. Terá de ficar com este animal por algum tempo, para então ser capaz de cumprir o que tem de fazer.

       Não sei do que você está falando!

       Eu desejaria garantir-lhe que tudo terminará como deveria, mas pode alguém chegar a prometer isso? Não se preocupe com o nó — eu mesmo o darei e também esquecerei de fazer a obstrução.

       Suponho que você ache isto fácil.

       Nada sobre isto é fácil. Continue enfrentando a situação até o fim, meu bem. Desta vez você a atravessará de cabo a rabo.

       Nora espiou a corda rodear seu pulso duas vezes, criar uma laçada, enrolar-se, passar por sob um fio e, através da laçada, omitir o nó essencial e enfiar-se dentro da teia. Quando ergueu os olhos, seu pai disse:

       Eu a amo, Raio de Sol. Você é um diabo de garota!

       Ajude-me, pediu ela, mas a poltrona estava vazia.

      

UMA DÉBIL claridade cinzenta tocou a borda das cortinas. Da última vez que olhara para elas, Nora tinha visto escuridão, por isso havia dormido. Dart planejara um dia movimentado e, supostamente, ela devia pará-lo. Era impossível parar Dick Dart. Uma espessa membrana de borracha transparente a circundava, roubando-lhe a vontade, tirando-lhe o poder de agir. Dentro da membrana, ela podia apenas seguir ordens e emitir comentários ocasionais. Matt Curlew aparecera-lhe em um sonho e mostrara que Dart não sabia dar o nó dor de cabeça de feiticeira, porém ele ignorava tudo sobre a membrana.

       Dart jazia deitado de lado, as costas viradas para ela. Experimentalmente, Nora pôs a mão em seu ombro. Ele se virou para fitá-la, os olhos injetados reluzindo.

       — Hoje temos que começar cedo. Conseguiu dormir? — perguntou ele, com um hálito cheirando a pneus queimados.

       — Acho que um pouco.

       Sentando-se na cama, ele lhe puxou o pulso sobre sua própria coxa larga.

       — Não creio que você tenha feito algum esforço para desatar este nó, enquanto eu dormia.

       — Apenas toquei nele, mais nada.

       — Oh, Nora, você me excita! — Ele deu uma risadinha casquinada. — No caso deste nó, quando a pessoa tenta desfazê-lo, consegue somente apertá-lo mais. Chama-se enigma do demônio. Veja isto. — Ele puxou um fio, passou-o por baixo de outro, e o nó dissolveu-se. — São necessárias duas mãos para fazê-lo funcionar. Se você tentar, interromperá a maior parte da circulação do sangue para sua mão.

       Isso se você der o nó direito, pensou ela. Dentro de sua bolha, Nora deu um sorriso fantasmagórico. Dart consultou seu relógio.

       — A primeira coisa que quero que você faça é guardar tudo em sua mala, deixando de fora uma das camisetas e jeans novos. Tenho de arrumar seu rosto e seus cabelos. Depois, ficaremos de olhos grudados no pátio do estacionamento. — Ele lhe deu um tapinha na face. — Se quer saber, melhorei sua aparência em cem por cento. Não concorda? Não vai admitir que seu salvador de Durance Vile é um gênio?

       — Você é um gênio — disse Nora.

       Dart saltou da calma e girou sobre os calcanhares.

       — Eu sou um gênio, nasci gênio, sempre serei um gênio e jamais fiz algo errado! Senhoras e senhores, aplausos para o homem que pode ser considerado o único de uma espécie, o maior, o maestro, sr. RIIICH-ARD DART.

       Ele fez um gesto para Nora, que bateu palmas duas vezes.

       — Mova sua bela bundinha para o banheiro e escove os dentes. Esvazie os intestinos. Saboreie um prolongado xixi. Enquanto eu estiver fazendo o mesmo, vá pondo seus troços na mala. Não temos tempo a perder.

      

Nora havia dobrado e colocado todas as roupas novas na mala, depois enfiou os pacotes de sabonetes e o creme para banho nas laterais, seguidos pelo líquido para gargarejo, e começou a colocar em cima da pilha todo o equipamento de maquiagem e cuidados de beleza. Após emalar suas roupas duas vezes melhor e na metade do tempo, Dart parou de admirar-se ao espelho, e veio checar o progresso dela.

       — Sua mãe nunca lhe ensinou nada? Você não pode colocar essas coisas em sua mala, pelo amor de Deus!

       — E onde quer que as coloque?

       Ele lhe piscou um olho.

       — Surpresinha! — exclamou. Abriu a porta do armário, tirou da prateleira uma sacola de couro preto, com fecho dourado, e dançou na direção de Nora. — Gucci, como pode observar. Como prêmio por sua valiosa ajuda.

       — Eu não o vi comprar essa sacola.

       — Aproveitei-me da confiante desatenção das vendedoras, em nossa segunda parada. Coube direitinho na sacola do primeiro empório.

       Nora enfiou os frascos, estojos e embalagens dentro da sacola, depois pressionou o fecho dourado.

       — Vamos encontrar nossa vítima — disse Dart.

      

— MUITA GENTE pensa que os viajantes comerciais morreram com Willy Loman, mas o mundo está cheio de sujeitos com os bancos traseiros dos carros entupidos de caixas de amostras e catálogos. Eles viajam por estes imensos territórios, dois ou três estados, o nordeste inteiro. Seguem dirigindo sem parar até Detroit, e pernoitam em espeluncas como esta, cansados demais para brigar.

       Em pé no balcão, a pequena distância de Dart, Nora esfregou os braços nus. A condensação cintilava sobre os carros vazios abaixo deles, e as janelas do restaurante Cozinha Caseira estavam às escuras. Os faróis dianteiros de um sedã verde-escuro, na lateral do pátio, brilharam sobre uma jardineira de cimento onde gerânios murchavam em um tapete de tocos de cigarro.

       — A bateria do idiota vai morrer antes dele tirar seu traseiro da cama — comentou Dart. — Certas pessoas não deviam ter o direito de dirigir um carro.

       — Tem certeza de que alguém vai entrar no pátio?

       — A palavra de Dick Dart é a sua carta de fiança — declarou ele, em voz bombástica. — Quando Dick Dart lhe diz uma coisa, você pode levar a maldita carta de fiança ao maldito banco!

       Um carro guinou para a saída.

       — Eu não disse? — Dart puxou-a para dentro do quarto e examinou o carro, que passou diante da entrada e rumou para o pátio. — Um pão-duro procurando um lugar onde o pernoite custe menos cinco pratas. — Então largou o braço de Nora e tornou a chegar ao balcão. — Vamos ver um pouco de ação por aqui, pessoal. Não temos o dia inteiro à nossa disposição!

       Enfiando as mãos nos bolsos, Dart empertigou-se nas plantas dos pés. Seus dedos tamborilaram na borda do balcão.

       — Ainda não pude digerir aquela história de serial killer. — Durante um ou dois minutos, ele andou de um lado para outro no estreito balcão. — Vamos levar nossas malas para baixo.

       Nora carregou sua mala em uma das mãos e, com o outro braço engalfinhado sobre o peito, as sacolas da loja de ferragens e de bebidas. Jogada sobre estas estava a volumosa sacola com o terno de Dart.

       Carregando seus pertences, eles passaram por uma mesa-secretária vazia.

       — Neste país não sobrou qualquer concepção sobre prestação de serviços. Estamos virando uma Nigéria.

       Ele ficou entalado na porta giratória, praguejou, fez com que ela tornasse a girar e desapareceu de vista, deixando Nora resolver o problema da porta giratória por si mesma. Ela precisou dar a volta duas vezes, antes de levar tudo para fora do prédio. Naquele momento, podia ter corrido pelo interior do hotel e escapado, porém a pessoa que era agora não podia fazer tal coisa, pois já havia sido punida em demasia, e a membrana transparente a protegia de castigos posteriores.

       Dart estava parado debaixo da marquise.

       — Venha para cá, pois um daqueles idiotas pode realmente dignar-se a fazer seu trabalho naquela mesa. — Tirando as chaves do bolso do paletó, ele as mostrou na palma da mão. — Estas coisas custam algumas moedas, mas afinal eles apenas trabalham aqui, o dinheiro não lhes pertence. — Após falar, jogou as chaves na jardineira cimentada. — Presume-se que essa coisa deva acrescentar alguma beleza ao local, mas, no entanto, o que fazem as pessoas? Transformam-na em cinzeiro. Antes de mais nada, elas fumam, como se jamais alguém lhes dissesse que estão começando um câncer do pulmão, e depois jogam seus tocos de cigarro dentro de uma jardineira. Qualquer um pode parar de fumar. Eu costumava fumar quatro maços por dia, e parei. O que foi feito do autocontrole? Oh, foda-se o autocontrole — o que foi feito da consideração pelos outros?

       Nora espiava acelerados contornos escuros rodando na auto-estrada contra o céu que clareava.

       — Será que nenhuma ética restou neste país?

       Nora olhou para o carro com as luzes acesas, e percebeu uma forma atrás do volante.

       — Vamos, Nora. Não posso fazer tudo sozinho. Mova-se, cruze os dedos, gire a chave, faça qualquer droga que for preciso!

       — Não vou fazer nada.

       — Vai fazer, sim... — Dart parou de falar e olhou para ela, pestanejando rapidamente. — Se aquele otário deixou as luzes ligadas, talvez tenha deixado também as chaves no carro.

       Ele se afastou da marquise, inclinou-se para espiar dentro do carro e correu para lá, tirando o revólver do bolso do paletó.

       Nora apertou a pesada sacola do terno contra os olhos e esperou ouvir a explosão. Os sapatos de Dart batiam no asfalto, e finalmente pararam. Ela ouviu-lhe a risada estentórea e obscena.

       Baixou as sacolas. Dart soprava-lhe um beijo, parado junto à porta aberta do carro.

       — Maldita seja, Nora, você merece um prêmio!

       Ela caminhou para o carro.

       — Veja só!

       Dando um passo para o lado, Dart revelou um obeso corpo de homem curvado atrás do volante. Uma gravata amarela havia sido puxada para um lado, e os primeiros quatro botões da camisa tinham sido arrancados.

       — Ataque do coração, não é o que lhe parece?

       — Essa é a impressão que dá — respondeu Nora.

       — Nosso amigo Monte de Banha, com vinte e cinco quilos extras e o interior de seu carro fedendo a cigarro. — Ele tocou a bochecha flácida do cadáver. — Este saco de bosta estacionou aqui talvez um minuto antes de chegarmos ao balcão, desligou o motor e caiu morto, sem ao menos conseguir apagar os faróis. Estava aqui o tempo todo! Deixe essas coisas no chão e venha ajudar.

       Dart ficou de joelhos no banco do passageiro, passou os braços em torno do peito do morto e o puxou em sua direção. Nora inclinou-se para empurrá-lo. Suas mãos enterraram-se no corpo macio.

       — Por Deus, Nora, você já lidou com corpos mortos antes. Não pode me falhar agora!

       Nora encostou o ombro no lado do morto.

       — Empurre!

       O corpo tombou no banco do passageiro. Dart jogou as chaves por cima do teto do carro.

       — Ponha as sacolas no porta-malas!

       Obediente, ela abriu o porta-malas e depositou a sacola do terno sobre caixas e embalagens de papelão. Depois entrou no banco traseiro e Dart deu à ré, freou, em seguida rodando para a frente do hotel. A cabeça do morto bambeava para os lados. Eles acomodaram o resto das sacolas no porta-malas e no banco traseiro. Com as facas entre seus pés, Dart dirigiu o carro para a saída, dando risadinhas contidas. Então, freou e inclinou-se para o cadáver. Retirou uma carteira do paletó do homem.

       — Quero checar esses cartões comerciais. Empreendimentos Hora do Recreio, Boston. Artigos Sopa de Quiabo, Boston. Satisfação Garantida, Waltham. Que lugares são esses? Artigos Quentes, Providence. Salão Só para Adultos. — Dart começou a rir. — O gorducho vende brinquedos sexuais! Que preciosidade! Vejamos qual é o seu nome.

       Dart ergueu uma licença exibindo a fotografia de um rosto rechonchudo, com bochechas distendidas e olhos muito juntos.

       — Temos o prazer de estar na companhia do sr. Sheldon Dolkis. O sr. Dolkis tem, vejamos, quarenta e quatro anos de idade, pesa cento e doze quilos e meio, mede um e setenta e dois de altura. Alega possuir olhos cor de avelã e declara-se doador de órgãos. Acho que providenciaremos a respeito. — Dart apertou a mão direita do cadáver. — Muito prazer em conhecê-lo, Shelley. Vamos esbaldar-nos!

       Ele dirigiu para as pistas da auto-estrada na direção sul.

       — Agora queremos um motel dirigido por mamãe e papai, exalando a requintada fragrância dos dois Normans: o Rockwell e o Bates. Uma salinha de recepção andrajosa e uma fieira de cabanas deprimentes.

       — Por que queremos isso?

       — Não podemos deixar nosso novo amigo no carro, justamente agora, podemos? Shelley faz parte de nossa família.

       — Você pretende conservá-lo?

       — Vou fazer muito mais do que isso — respondeu Dart.

      

— SPRINGFIELD é um lugar delicioso — disse Dart. — Agora, preste atenção, Shelley. Até um pé-rapado como você deve ter ouvido falar no rifle Springfield, mas sua educação abrangeu o Garand? Foi uma arma formidável para a sua época. Durante duzentos anos, esses dois rifles foram fabricados em Springfield. Talvez seja a única cidade da América possuindo um museu de armas. Pois bem, existe um museu que vale a pena ser visitado. Claro que também há esse Hall da Fama do Basquete, caso você acredite nisso. Tem-se que jogar uma migalha aos caipiras de vez em quando.

       “Estava tudo legal com o basquete quando ainda era jogado por brancos, mas veja só o que aconteceu. Surgiram casos glandulares de crescimento excessivo, e agora tudo não passa de exibicionismo. Esportividade? Esqueça! Não há esportividade no gueto, e o basquete é somente o gueto com polpudos cheques de pagamento. Tudo fazendo parte do declínio da moralidade pública. Meu pai, por exemplo, você acha que ele se importa com quem de fato escreveu Jornada na Noite? A idéia dele sobre boa literatura é um exemplar do Advogado Americano com sua fotografia na capa. Você devia ver o que acontece na firma Dart, Morris. Os itens falsos, os vôos do Concorde são coisas que debitamos ao cliente. O que me irrita é o fato deles não verem o humor desta coisa; esvaziam duas garrafas de Dom Pérignon e entopem-se de caviar no que dizem ser uma conferência, cobram do cliente quinhentas pratas pelo jantar e nem mesmo acham isso engraçado! Não é de surpreender que as pessoas odeiem advogados. Comparado aos outros caras, sou um modelo de perfeição. Cuido das minhas damas idosas. Se cobrar delas o almoço é porque durante esse almoço falamos de negócios. Entenda, com elas nem tudo é Danielle Steel e Emily Dickinson.

       Tinham estado rodando a esmo pela periferia de Springfield, com Dart perscrutando os dois lados das ruas em busca de um motel, enquanto falava.

       — Veja o nosso amigo Shelley Dolkis, aqui ao lado. Fazia a entrega de pênis artificiais e bonecas infláveis a indivíduos delicados demais para terem sexo com outras pessoas. Até mesmo a indústria do sexo tem sua hierarquia, e Shelley estava no último degrau, o degrau dos masturbadores. Entretanto, se pudesse falar, ele lhe contaria que proporcionava um serviço necessário. Se as pessoas não tiverem acesso aos seus produtos, bem, elas saem da toca e cometem estupros!

       — Acho que você tem razão — disse Nora.

       — A coisa toda se resume em ter peito para usar de absoluta franqueza sobre ser um escroque. O cara que se candidata ao Senado e diz desejar o cargo para que possa foder seus assistentes, para encher os bolsos com dinheiro de suborno, usar um monte de drogas e nadar nu com uma dupla de strippers, este sim, é o sujeito que ganha o meu voto.

       “Este país, fundamentado na eqüidade? O país era propriedade de um bando de outros caras, e nós o tomamos deles. Não houve uma coisinha chamada o motim do chá? Suponhamos que você chegasse ao Connecticut em 1750 e, por acaso, se deparasse com um belo pedaço de terra no Estreito, com meia dúzia de índios pequot vivendo lá. Você diria, “que pena, acho que vou procurar outra terra, mais para o interior?” Não; mataria os índios e tomaria a terra deles. Você viveu em Westerholm por uns dois anos. Chegou a ver alguns pequots? As mesmas coisas acontecem, sempre e sempre. Os livros de História mentem a respeito, os professores mentem a respeito e, sem sombra de dúvida, os políticos mentem a respeito. A última coisa que eles querem é um povo instruído.

       — Certo.

       — Este é um momento feliz para mim. Sou muito mais sensível do que os outros imaginam, e você está começando a ver esse lado meu.

       — É verdade — disse Nora.

       — E aqui está um lugar que convirá perfeitamente à nossa pequena família.

       Uma decadente fileira de cabanas se erguia no topo de uma elevação. As portas enfileiradas alinhavam-se ao longo de uma plataforma de passagem. Um anúncio de néon na entrada para o pátio de estacionamento dizia HILLSIDE MOTEL.

       — Hillside, como o estrangulador — disse Dart. Parou o carro diante da última unidade e deu um tapinha na bochecha do morto. — Relaxe por um momento, Shelley, enquanto eu e Nora providenciamos nossas acomodações.

       Um idoso sique hindu aceitou vinte e cinco dólares e fez deslizar uma chave ao longo do balcão, sem deixar sua cadeira ou afastar os olhos do ruidoso musical indiano transmitido pelo aparelho de televisão em cima de sua mesa.

       — Nora, Nora... — disse Dart, enquanto caminhavam pelas rangentes tábuas de madeira da plataforma, de volta ao seu carro e a Sheldon Dolkis. — Como dizem nos comerciais de cerveja: existe algo melhor do que isto?

       — Como poderia? — respondeu ela.

       — Eu, você e um grande e gordo cadáver. — Ele usou a chave na porta do último quarto. — Vamos dar uma espiada em nossa casa de verão.

       Uma lâmpada suspensa do teto, dentro de uma cápsula de papel de arroz, iluminava fracamente uma cama coberta por uma manta amarela, uma surrada cômoda de madeira e duas cadeiras com assento de plástico verde, junto a uma mesa de jogar cartas. Um carpete gasto cobria o piso.

       — Nora, se este quarto falasse, que histórias contaria!

       — Suicídios e adultérios — disse ela, e sentiu um leve arrepio de terror, porque este não era o tipo de coisa a ser dita pela pessoa vivendo dentro de uma bolha.

       Entretanto, seu comentário não irritou Dick Dart.

       — Você fica mais e mais interessante a cada palavra que diz. Foi estuprada, quando esteve no Vietnã?

       Ela procurou o apoio da parede. Davey não adivinhara tal coisa em dois anos de casamento, mas Dick Dart já o sabia em cerca de vinte e quatro horas!

       Ele deu uma espiada para o exterior.

       — Depois de escoltarmos Shelley para este adorável quarto, tenho uma história para contar a você.

       De novo lá fora, Dart abriu a porta do passageiro e pôs a mão no ombro de Dolkis. O morto olhava para o teto de seu carro, como se ali estivesse passando um filme pornográfico.

       — Shelley, meu velho, é hora de uma breve caminhada. Nora, doçura, o que vou fazer é puxá-lo para mim, e quero que você se ponha atrás dele, sustentando-o sob o outro braço.

       Dart inclinou-se para o carro e puxou para a claridade do sol a cabeça e os ombros do cadáver.

       — Fique firme, não quero deixá-lo cair.

       Nora postou-se perto do carro e inclinou-se. O terno do morto tinha a cor verde-oleosa de uma azeitona grega, e fedia a fumaça de cigarro.

       — Lá vamos nós! — exclamou Dart. O terno escorregou para um lado. Nora ergueu o braço e ficou bem perto do morto. — Agora, um bom puxão — disse Dart. O corpo foi içado do assento do carro e seus pés bambearam, atrapalhando a movimentação. De sua boca aberta escapou um leve ruído. — Não se queixe, Shelley — disse Dart. Ele recuou, e os pés de Dolkis deslizaram por sobre a borda do piso do carro. Um de seus sapatos saiu do pé. — Dandá, dandá... — falou Dart.

       Arrastaram-no para dentro do quarto. Na extremidade oposta da cama, Dart baixou o lado do corpo que sustentava e o soltou. O peso nas costas de Nora deslizou, e a testa do morto se chocou contra o carpete de palhinha. Dart virou o cadáver, deixando-o com o ventre para cima, e deu tapinhas na barriga volumosa.

       — Bom garoto!

       Então desfez o nó da gravata torcida do cadáver e a jogou para um lado. Em seguida desabotoou-lhe a camisa e a puxou de dentro das calças. Uma fina linha de pêlos escuros subia a elevação abaixo do esterno e descia para o orifício do umbigo. Dart desafivelou o cinto, depois desabotoou o botão das calças.

       — O que está fazendo? — perguntou Nora.

       — Tirando a roupa dele.

       Puxou o zíper para baixo, moveu-se até a extremidade inferior do cadáver, retirou-lhe o sapato que faltava e as meias dos pés gorduchos. Depois puxou as calças pela bainha. O corpo escorregou uns cinco centímetros na direção dele, antes que as calças deslizassem pernas abaixo, expondo uma cueca branca com velhas manchas na altura das virilhas. Dart enfiou a mão no bolso esquerdo da frente das calças, de lá extraindo um lenço amarrotado e um molho de chaves, sendo tudo jogado debaixo da mesa. Do bolso direito ele tirou um clipe de latão para prender dinheiro e um pequenino frasco marrom, com uma colher de plástico presa à tampa.

       — Shelley usava coca! Você acha que ele realmente tentou ter um ataque cardíaco? — Desenroscando a tampa, Dart espiou dentro do frasco. — Egoísta filho da mãe! Usou tudo até o fim! — O frasco foi jogado ao chão, e rolou para baixo da cadeira de Nora. — Tenho que trazer algumas coisas do carro.

       Dart saiu para a claridade ofuscante do dia. Grata por estar impotente, por nada sentir, Nora ouviu a mala do carro sendo aberta, depois o roçagar de sacolas e um prolongado silêncio. Um gaio azul pipilou. A tampa do porta-malas foi fechada com estardalhaço. Um homem dignificado, com ar de doutor, trouxe para dentro do quarto um monte de sacolas, e transformou-se em Dick Dart.

       Ele puxou as calças para cima, ajoelhou-se ao lado do cadáver e arranjou as sacolas em uma fileira, ao seu lado. Da primeira, tirou suas facas. Da segunda, removeu uma tesoura. Apanhou na terceira a garrafa meio vazia de vodca, tirou a tampa, piscou para Nora e sorveu um longo gole, que bochechou em redor da boca, antes de engoli-lo. Estremecendo, tomou um segundo gole e tornou a tampar a garrafa.

       — Anestesia. Quer um pouco?

       Ela negou com a cabeça.

       Dart aproximou-se do corpo e o deixou com o tronco ereto.

       — Ajude aqui!

       Quando o corpo ficou nu, exceto pelas roupas de baixo, Dart vistoriou os bolsos do terno; uma caneta esferográfica, um pente de bolso acinzentado de caspa e um livreto de capa preta para endereços. Ele jogou esses objetos na cesta de papéis, depois reparou no clipe para dinheiro, caído no chão ao seu lado.

       — Meu Deus, esqueci de contar o dinheiro! — Dart puxou as notas presas no clipe. — Vinte, quarenta, sessenta, oitenta, noventa, cem, cento e dez, quatro notas de um. Por que não fica com elas?

       — Eu?

       — Uma mulher está incompleta, quando sem dinheiro.

       Ele dobrou as notas, prendeu-as com o clipe, catou moedas caídas no chão e despejou tudo na palma dela.

       — Nora, docinho, poderia ter a gentileza de ir ao banheiro e arrancar a cortina do chuveiro?

       Ela foi ao banheiro e apertou o interruptor. Uma luz ofuscante ricocheteou das paredes, do piso branco e do espelho. Uma cortina translúcida pendia sobre a borda da banheira branca de porcelana.

       Erguendo a mão, Nora arrancou-a dos prendedores. De um em um, os anéis plásticos foram saltando do trilho.

       Quando ela levou a cortina para o quarto, a luz do banheiro caía em diagonal através do piso.

       — Perfeito!

       Dart usou a tesoura para cortar a cueca do morto e estendeu a cortina do chuveiro perto do corpo. Um pedaço da cueca cobria as virilhas de Sheldon Dolkis.

       — Vejamos se o nosso rapazinho era bem apetrechado. — Ele rasgou o pedaço de tecido. — Hum... Precisava masturbar-se com uma pinça...

       Dart pendurou seu paletó no encosto de uma cadeira. Enrolou as mangas até a altura dos bíceps e enfiou a gravata entre o terceiro e quarto botões da camisa. Ajoelhando-se ao lado do corpo, introduziu os braços sob as costas do cadáver, grunhiu e o rolou para cima da cortina do chuveiro. Movendo-se para melhor posição, tornou a rolar o morto, de maneira a que o corpo ficasse de rosto para cima. Dart remexeu-o para um e outro lado, até centralizá-lo na folha plástica.

       — Tudo bem agora. — Esfregando as mãos, ele baixou os olhos amorosamente para o cadáver. — Sabe o que eu queria ser quando crescesse?

       — Um médico — disse Nora.

       — Um cirurgião. Eu adorava cortar coisas. Adorava! O que disse o grande Leland Dart? “Não vou perder meu dinheiro em alguma escola de medicina que o reprovará no primeiro ano.” Muito, muitíssimo obrigado, papai! Sorte a minha, que encontrei um modo de ser cirurgião, apesar dele!

       Tornando a ficar de joelhos, ele pegou a faca com cabo de chifre.

       — Você assistiu a um milhão de operações, certo? Pois observe esta. Diga-me se tenho algum talento. — Nora o viu deslizar a faca abaixo do osso esterno e depois corrê-la ao longo do volume do ventre, seccionando a linha de pêlos. Gordura amarela ressumou do corte. — Será que seu marido, ao rememorar seus caros e velhos tempos de Yale, chegou a mencionar uma organização chamada o Clube do Fogo do Inferno?

      

NORA experimentou um sobressalto de surpresa e disse:

       — Você fez isso aí muito bem.

       — Claro — replicou ele, aborrecido. — Sou um cirurgião nato. Qual é a qualidade essencial do cirurgião nato? A paixão por cortar pessoas. Acostumei-me a praticar em animais quando criança, mas não me seduzia ser um veterinário, Deus me livre! — Ele recortou grandes semicírculos de carne nos dois lados da incisão, depois escarvou para fora a macia gordura amarela e a deixou cair sobre a cortina do chuveiro. Em poucos segundos, tinha exposto a parte inferior da caixa das costelas e o peritônio. — Quero dar uma espiada no fígado de Shelley e em seu pâncreas, aposto que estão uma verdadeira belezinha. Também vou verificar a existência de cálculos biliares e tudo o mais que possa surgir, mas preciso retirar esta enorme e feia membrana, o omento, para fora do caminho. Olhe para essa gordura! Este cara podia manter uma fábrica de sabão funcionando durante um mês, sem parar!

       — Você esteve fazendo seu dever de casa.

       — Os livros de medicina são muito mais atraentes do que as besteiras que eu lia para minhas velhas queridinhas.

       Ele fatiou a espessa e gorda membrana, afastou-a do caminho e então começou a sondar a cavidade abdominal.

       — O Clube do Fogo do Inferno? — perguntou Nora.

       — Você está a par das sociedades secretas em Yale, não está? Pois as sociedades secretas secretas são muito mais interessantes. O Clube do Fogo do Inferno é uma das mais antigas. Antigamente, uma pessoa só se tornava membro hereditariamente, mas durante os anos quarenta eles começaram a aceitar estranhos. Lincoln Chancel era amigo do peito de alguns velhos alunos brilhantes que eram membros, e então o regulamento foi adaptado para que Alden fosse aceito, de maneira que Davey também se tornou elegível, e ficou membro. Eu entrei quando cursava o segundo ano da universidade, de modo que ficamos lá juntos durante um ano. Deus do céu, olhe só para isto!

       Ele cortou os ligamentos peritoneais e puxou o fígado para fora do corpo.

       — O lobo direito tem cerca de metade do tamanho que deveria ter. Vê toda esta descoloração? Um fígado decente é vermelho. Aqui, em torno da veia cava, este grande vaso, está ficando preto. A textura está toda errada. Não sei o que o velho Shelley tinha, mas seus maus hábitos estavam acabando com ele. — Dart colocou o fígado removido sobre a folha de plástico e o cortou ao meio. — Que bagunça! A artéria hepática mais parece um palito de dentes... Não sei por que Davey permaneceu no clube. Provavelmente, seu velho achou que isso o amadureceria. Davey estava totalmente deslocado naquele lugar. Tudo se resumia em viver à solta, transar e soltar palavrões. Sexo, drogas e rock’n’roll.

       Isto era interessante, mesmo para quem, como ela, estava dentro da confortadora membrana. A maioria do que Davey lhe tinha contado era mentira.

       — Onde eram suas reuniões?

       — Nós costumávamos alugar uns dois andares no North End. Quando os vizinhos ficavam desconfiados, fazíamos a mudança para outro prédio. A questão era: uma vez você fizesse parte do clube, podia agir como bem entendesse. Ninguém podia criticar coisa alguma que outro membro decidisse fazer. Não perguntar, não vacilar, não julgar. Naturalmente, tivemos alguns casos de overdose. Entretanto, não havia problema, o corpo era despejado em algum terreno baldio. As pessoas da sua geração pensam que foram os inventores das drogas. Comparados a nós, vocês eram panacas. Haxixe, LSD, pó-de-anjo, metedrina, heroína, anfetaminas, montes e montes de coca. Ora, aí está uma área em que o pequeno Davey se sentia inteiramente à vontade. Ele passava três e quatro noites sem dormir, sugando pelo nariz com as duas mãos, gaguejando sobre Hugo Driver, até finalmente perder os sentidos.

       Nora espiava as mãos dele, trabalhando dentro do cadáver escancarado.

       — Detesto o cheiro de bile. Se as pessoas pensam que merda fede, deviam dar uma cheirada na coisa que passa por suas vesículas. — Dart trouxe do banheiro um rolo de papel sanitário, a fim de enxugar a mancha marrom-escura que se espalhava sobre o plástico. Ele cortou ao meio o saco em forma de pêra que era a vesícula de Dolkis, e grasnou: — Eu não lhe disse? Pedras na vesícula. Pelo menos umas dez. Se seu fígado não o matasse primeiro, Shelley estaria na fila para alguma dolorosa cirurgia.

       Ele embrulhou a mutilada vesícula em papel sanitário e a deixou num canto, porém o fedor molhado, insuportável, continuava pairando no ar.

       — Quero checar o pâncreas deste cara e dar uma espiada em seu baço. O baço é um órgão deslumbrante.

       — Vocês levavam garotas para o Clube do Fogo do Inferno? — perguntou Nora.

       — Qualquer mulher que entrasse naquele lugar era caça para todos. A própria garota de Davey, uma maluquete chamada Amy ou qualquer coisa parecida, esteve lá uma vez. A coitada ficou ainda mais aloprada do que era antes. Então, Davey começou a aparecer com uma zinha. Se Amy era estranha, esta agora era completamente excêntrica. Usava roupas de homem. Cabelos curtos. — Dart estava cortando tecido conectivo e ductos, em movimentos rápidos e precisos de sua faca. — A gente via aquela coisinha sentada ao lado de Davey e pensava Sim, vou dar em cima dela, mas então, por algum motivo, dava para perceber que não, de maneira nenhuma. Além do que, cada palavra que ela dizia sobre si mesma era uma mentira. Olá!

       Dart ergueu um gotejante pâncreas com uns trinta centímetros de comprimento e uma excrescência castanho-cinza do tamanho de uma bola de golfe, pendendo da parte mais larga.

       — Já vi tumores antes, mas este bebezinho aqui é algo especial. Shelley, seu corpo devia ficar em exibição dentro de uma caixa de vidro. Mal posso esperar para ver a aparência de seu coração!

       — Ela era mentirosa?

       — Você já notou que seu maridinho tem uma tendência para exagerar a verdade? Pois a tal garota era ainda pior. Acho que o pequeno Davey tinha uma queda por damas birutas.

       Largando o pâncreas enfermo, ele exibiu para Nora um sorriso torcido.

       — Como era o nome dela?

       — Quem sabe? Até sobre isso ela mentia! Como já deve ter percebido, eu sei quando as pessoas estão mentindo. Ela deve ter sido a melhor mentirosa que já conheci, mas uma mentirosa, claro. Segundo Davey, ela estudara no New Haven College e viera de alguma cidadezinha destes arredores, esqueci qual. Algo parecido com Chester. Talvez Granville. Eu a chequei. Não estava registrada no New Haven College e nenhuma família com seu sobrenome residia nessa cidade.

       — Poderia ter sido Amherst?

       — Amherst? Não. Por quê?

       — Davey certa vez me contou uma história sobre uma antiga namorada sua, que dizia ter vindo de Amherst. Poderia ser a mesma garota.

       Dart a encarou diretamente, por algum tempo.

       — O garotão provavelmente andou à roda de centenas de damas. Afinal de contas, ele é muito bonito. De qualquer modo, Davey passava quase todos os momentos livres com esta de quem estou falando. Não acredito que ficassem falando o tempo todo sobre Hugo Driver, mas sempre que eu via os dois juntos, ela estava insistindo para que ele fizesse o pai tomar alguma providência, qualquer uma, a respeito de Jornada na Noite. Ela era totalmente fissurada naquele livro. A garota não largava do pé dele para que a deixasse ver o manuscrito ou alguma coisa assim. Sei que ele tentou, porém não teve êxito.

       Dart manipulou a faca e ergueu um órgão púrpura, em formato de punho.

       — Parece surpreendentemente bem, considerando-se a companhia em que se encontrava.

       — O que aconteceu com a garota?

       Ele colocou o baço ao lado do fígado fumegante.

       — Certa noite, entrei por acaso em nossa casa de pizza favorita, e quem vejo no fundo do recinto, senão Davey e sua amiguinha? Seu futuro marido estava caindo de bêbado. Eu não me achava nada sóbrio, mas nem de longe tão ruim como Davey. Ele acenou, chamou-me à mesa deles, apontou para mim e disse “Aí está a sua resposta”. A garota respondeu não. Não, eu não era a solução. Ela estava perfeitamente sóbria, muito dona de si. Por fim, percebi que embora ele continuasse de pileque, a garota queria que Davey levasse os dois de carro para algum lugar, e ele se prontificara a fazer-lhe a vontade. Ela insistia que ambos podiam esperar até o dia seguinte, ao passo que o otário com quem você se casou achava melhor irem, nessa mesma noite, para Shorelands. Ela queria ver a propriedade, portanto aquela era a noite apropriada. Eu dirigiria. Tudo isto sem ao menos perguntarem se eu tinha algum interesse em dirigir através de Massachusetts, e à noite.

       “A garota não quis que eu dirigisse o carro para eles, de modo que, naturalmente, resolvi dirigir. Durante o trajeto, planejei contar a Davey as invenções de sua amiguinha. Desta maneira, teríamos uma divertida cena, concorda?

       “Davey estava bêbado demais para perceber que a pequena ficara furiosa. Ele estava incapaz de dirigir, e ela não tinha licença. Eu resolvi o problema dos dois. ‘Não quero mais ir!’, ela repetia sem cessar, mas Davey não a ouvia. Bem, acabamos indo. Davey desmaiou, no banco de trás. A garota sentou-se na frente comigo, mas falou apenas o suficiente para dar-me as indicações sobre o rumo a seguir. Tínhamos percorrido uns cem quilômetros pela autopista abaixo, quando Davey voltou a si e começou a recitar trechos de Jornada na Noite. Eu gostaria de ter aqui algo que pudesse cortar através das costelas, porque esta faca não está adiantando grande coisa. Já varei a cartilagem e afastei um bocado do músculo intercostal, porém vou ter que usar as mãos, se quiser quebrar o osso.

       Dart aferrou uma costela e a puxou, praguejando para si mesmo. O osso encurvado moveu-se aos poucos para cima, em seguida partindo-se ao meio.

       — Hum, acho que já resolve — disse ele, rasgando mais cartilagem com a faca. Depois continuou: — Eu tentei emudecê-lo com o rádio, mas tudo que encontrei foi essa bosta de discoteca, que odeio. Sabe do que gosto? De música de verdade. Daqueles cantores que a gente nunca mais ouve. Dê-me um bom barítono carcamano, e sou um homem feliz. Ah, agora já estou tendo uma boa visão do coração.

       “E lá estávamos nós, a cento e sessenta quilômetros de distância, rodando para o centro de nenhures, com Davey cuspindo passagens de Hugo Driver e a garota parecendo uma estátua de mármore. De repente, ela quis urinar. Aquilo me fez ver tudo vermelho, porque tínhamos acabado de passar por um local de parada. Por que ela não mijou naquela hora? O que aquela criatura tinha na cabeça? ‘Sempre que possível’, ela disse, ‘gosto de fazer xixi nas florestas, como o Pequeno Pippin, porque eu sou o Pequeno Pippin’. Este pareceu o momento para eu contar a Davey o que sabia sobre a mocréia, então contei. Precisei repetir tudo duas ou três vezes, mas ele finalmente conseguiu digerir minhas palavras. Ela podia ser o Pequeno Pippin, mas aposto o inferno como não contaria a Davey quem era. Aliás, embora bêbado como estava, deu para ele perceber que o nome dado pela garota a si mesma era muitíssimo semelhante ao de outra personagem de Jornada na Noite. Acredite, ela não piscou um maldito olho. Apenas falou, ‘Dobre para a próxima saída. É onde vou descer.’

       “‘Se você não me disser quem realmente é, pode sair do carro e não precisa voltar’, berrou Davey.

       “Estávamos em zona tão rural, que a paisagem parecia uma mina de carvão. Saí da autopista e chegamos à orla das tais florestas. Davey tentou agarrar a garota, mas ela esquivou-se e correu para o arvoredo. Ele ficou me xingando — agora eu era o culpado por ela ser uma mentirosa. Após dez deliciosos minutos, finalmente sugeri que sua amiga estava demorando demais para terminar o que tinha ido fazer. Ele saltou do carro, ficou procurando no meio das árvores, e nisso demorou meia hora. ‘Ao diabo com tudo’, falou, ‘vamos voltar para New Haven e desta vez eu dirijo.’ Davey sentou-se ao volante e disparou em frente. De súbito, lá estava a cretina, bem diante do carro, desaparecendo em seguida. Nosso herói começou a chorar. Então tirou um grama do bolso, cheirou creio que metade da coisa, e recomeçou a dirigir.”

       — Ele a deixou lá?

       — Foi embora. A quase cento e trinta por hora, durante todo o trajeto de volta à velha e amada Yale, aquela forjadora de homens, para não mencionar os motoristas que atropelam e fogem no ato.

       — O que aconteceu depois disso?

       — A maluca Amy saiu de seu isolamento gradeado, e Davey correu direto ao seu encontro, para vagarem pelo mundo da lua. Ele nunca mais voltou ao Clube do Fogo do Inferno. Buááá! Claro que todos sentimos falta dele.

       — Existe um Clube do Fogo do Inferno em Nova York?

       Dart ergueu o rosto para ela, com os olhos apertados.

       — Para ser franco, sim. Nos anos vinte, um grupo de alunos decidiu que não havia motivos para a diversão encerrar-se no dia da formatura. Lá é mais formal do que em New Haven: empregados, um porteiro, comida excelente. As taxas de manutenção são altas o bastante para evitar a entrada de penetras, porém o espírito essencial continua o mesmo. Por que quer saber?

       — Estava me perguntando se Davey chegou a ir lá.

       Os olhos dele brilharam.

       — Creio que pude perceber esse covarde artista do atropela-e-foge dentro dos benditos saguões, uma ou duas vezes. Entretanto, é claro que fugi dele como da peste.

       — Naturalmente.

       — Você me faria um favor, coração? O martelo que comprei em Fairfield está em uma sacola no banco de trás. Se vou quebrar estas costelas, é melhor que faça isso com um pouco mais de eficiência.

       Muito divertido, Dart levantou-se e a viu caminhar para a porta. Ao chegar lá fora, ela sentiu que o ar era de espantosa doçura. Olhando para trás, ela avistou Dart quase na porta, mantendo os braços manchados de vermelho até os cotovelos, como os de um açougueiro, afastados dos lados do corpo. A jocosidade irradiava-se de seus olhos e rosto.

       — Você devia respirar o ar aqui fora — disse ela.

       — Prefiro o ar daqui — replicou ele. — É singularmente meu velho conhecido.

       O calor exalava-se do teto do carro. Nora inclinou-se para a estufa do interior e abriu uma sacola sobre o atulhado banco traseiro. O comprido cabo do martelo encontrou a palma de sua mão. O coração dela saltou no peito e seu rosto ficou quente debaixo da maquiagem. Nora tomou consciência de que o espesso balão, cheio de descarregados vapores emocionais, não estava mais à sua volta. Não havia percebido a partida do balão, mas o fato é que ele partira. Dart chamou-a de volta ao quarto, com um aceno amistoso.

       — Feche a porta, meu bem. Foi apenas um pequeno teste, mas você foi aprovada com distinção.

       — Você é um sujeito curioso.

       — Sou mesmo! — Ele apontou um dedo vermelho para Sheldon Dolkis. — Quero você bem ao meu lado. Sendo enfermeira, pode ajudar. Ajoelhe-se em um travesseiro, para não machucar os joelhos. Veja como a trato com consideração. Apanhe um nessa cama escalavrada.

       Nora ficou de joelhos sobre o travesseiro e deixou o martelo no chão, perto de sua coxa direita. Dart agachou-se e apontou para a cavidade do corpo.

       — Esse arco aórtico dá a impressão de que afundou, e o velho tronco da veia pulmonar é como um cano interno desgastado pelo uso. Agora quero ver a cavidade da veia superior. Aposto que está em péssimo estado.

       Dart inclinou-se para diante, a fim de espiar por entre as costelas da parte mais afastada do tronco, evidentemente esperando que ela fizesse o mesmo.

       O coração de Nora saltou como um peixe. Ergueu o martelo, ainda se perguntando se de fato conseguiria ir até o fim com aquilo. Então, plantou a mão esquerda no meio das costas dele, como que por apoio, e desceu-lhe o martelo no lado da cabeça.

       Dart exalou bruscamente e quase caiu em cima do corpo aberto. Suas mãos afundaram na cavidade, enquanto ele se esforçava para ficar em pé. Nora levantou-se primeiro e bateu com o martelo atrás da cabeça dele. Dart bambeou sobre os joelhos. Ela ergueu o braço e golpeou novamente. Ele caiu de lado, chocando-se contra o chão.

       Nora abaixou-se acima dele, com o martelo erguido. Seu coração batia loucamente e a respiração lhe vinha em arquejos rápidos e curtos. A boca de Dart pendia aberta, e um fio de baba escorreu-lhe do lábio inferior.

       Apoiando-se em um joelho, ela enfiou a mão nos bolsos dele, em busca das chaves do carro. Um segundo mais tarde, corria para a claridade do sol. Ligou o motor e afastou-se do motel. Pela porta aberta, avistou Dart levantando-se sobre os joelhos. Parou o carro com um solavanco e tentou mover a alavanca de mudança para drive, mas, em seu pânico, colocou-a em ponto morto. Quando pisou no acelerador, o motor funcionou, porém o carro deslizou ladeira abaixo. Nora apertou o pedal do freio e olhou para trás, para o quarto. Dart cambaleava em direção à porta.

       A mão dela tremulou sobre a mudança, e colocou o carro em drive. Agitando os braços vermelhos, Dick estava correndo para ela.

       O carro saltou para diante. Nora girou o volante, e o pára-lama dianteiro direito colidiu com Dick, produzindo um baque surdo. Como a garota da história, ele desapareceu. Nora aferrou as mãos trêmulas ao volante e pisou com força no acelerador.

 

MONSTROS FAMILIARES

      

PIPPIN COMPREENDEU A NATUREZA DE SUA TAREFA. O PROBLEMA, CONTUDO, NÃO ERA ESSE. O PROBLEMA ERA A TAREFA SER IMPOSSÍVEL.

      

RUAS, PRÉDIOS E SEMÁFOROS voavam por ela, outros motoristas buzinavam e freavam bruscamente. Pedestres gritavam, agitavam os braços. Por um longo período, Nora dirigiu na direção errada por uma rua de mão única. Ela havia escapado, estava escapando, mas para onde?

       Dirigiu sem destino através da cidade desconhecida, de vez em quando Sobressaltada pelo rosto da estranha que via no retrovisor. Supunha que essa estranha estivesse procurando a via expressa, porém não fazia a menor idéia para onde ir, quando a tivesse alcançado.

       Encostou o carro no meio-fio e parou. O mundo lá fora consistia de enormes e agradáveis casas atarracadas, estendidas em gramados espaçosos, como gigantescos cães e gatos. Teve noção de que já vira este lugar antes e que algo desagradável lhe acontecera ali. Entretanto, a vizinhança não era desagradável, em absoluto, porque continha...

       Borrifadores lançavam arcos de água através dos compridos gramados. Ela estava em uma rua (sem saída) que terminava em um círculo diante da casa mais imponente dali, uma mansão de tijolos vermelhos e três pavimentos, a porta da frente pintada de verde-escuro e uma franja de flores em tons vibrantes. Ela havia chegado à Alameda Longfellow, e a casa de janela com balcão pertencia ao dr. Daniel Harwich.

       O pânico desmanchou-se em alívio. Nora tinha chegado ao final da rua, antes de perceber que a sra. Lark Pettigrew Harwich talvez não acolhesse de bom grado o súbito aparecimento de uma das antigas namoradas de seu marido, por mais desesperada que essa antiga namorada pudesse estar. Nesse momento, com uma caneca de café na mão, Dan Harwich emergiu das profundezas da sala e ficou em pé no balcão da janela, supervisionando seus domínios. Um punho fechado caiu sobre o coração de Nora.

       Harwich dirigiu ao seu carro um olhar de relance quase sem curiosidade, antes de bebericar um gole de café e erguer a cabeça, a fim de examinar o céu. Havia mudado pouco, desde a última vez que o vira. Exibia o mesmo ar fatigado e chistoso de rosto e gestos. Dando meia-volta, ele desapareceu na sala. Em algum lugar atrás dele, despejando café para si mesma em uma cozinha redecorada, era bem provável que se movesse furtivamente a esposa número dois.

       Nora aferrou o volante e saiu rapidamente do círculo, perguntando-se como, afinal, encontraria um telefone. Dobrou à esquerda para a Longfellow Street, outro trecho praticamente idêntico à alameda do mesmo nome, despojado de árvores e ocupado por casas que eram quase antigas e novas mansões. A semelhança das duas vias só não era total por ser esta uma rua de verdade, em vez de um beco sem saída, e pela ausência de qualquer das numerosas janelas de balcão do dr. Daniel Harwich. Na esquina seguinte, ela dobrou para a esquerda e entrou na Bryant Street, outra extensão de enormes gramados verdejantes e sólidas casas. Já começava a achar que passaria o resto da vida rodando por aquelas mesmas ruas e passando por aquelas mesmas casas.

       Na esquina seguinte, tornou a dobrar para a esquerda, agora entrando na Whittier Street, depois na Whitman Street, uma nova réplica da Alameda Longfellow, a diferença principal sendo que, em vez de um círculo asfaltado no final da quadra, havia um sinal de parada em um cruzamento e, bem ao lado dele, a cabine metálica e o retângulo negro de um telefone público.

      

A UM METRO de um sofá de chintz entulhado de almofadas, Nora sentiu-se deslizar para um colapso. Afundou um centímetro, depois outro, levando consigo a mão passiva de Dan Harwich. Então, um braço envolveu sua cintura, uma mão aferrou-lhe o ombro e ela parou de mover-se. Harwich puxou-a para cima.

       — Eu poderia carregá-la pelo resto do caminho.

       — Eu consigo fazer isso.

       Ele afrouxou a pressão, e Nora deu a volta ao lado de uma mesinha de centro, deixando-se guiar para o sofá.

       — Você quer deitar-se um pouco?

       — Logo estarei bem, obrigada. Suponho que seja o resultado de toda essa tensão.

       Ela se deixou cair contra as almofadas. Harwich estava ajoelhado à sua frente, segurando-lhe as duas mãos e fitando-lhe o rosto. Depois ficou em pé, ainda olhando para ela.

       — Como conseguiu fugir desse Dart? *

       — Eu o golpeei com um martelo, depois bati nele com o carro.

       — Onde?

       — Do lado de fora de um motel, não me lembro o nome. Por favor, não chame a polícia.

       Harwich baixou os olhos para ela, mordendo o lábio inferior.

       — Estarei de volta em um segundo.

       Nora enfiou um braço atrás das costas e puxou uma rígida almofada vermelha, com um bordado de girassóis em um lado e uma casa de fazenda no outro. Mesmo assim, ali atrás ainda havia inúmeras almofadas desconfortáveis. Não se lembrava do sofá de chintz ou desta profusão de almofadas, quando de sua visita anterior à Alameda Longfellow. A sala de visitas de Helen Harwich era sóbria e escura, com seus enormes móveis quadrados de couro sobre um imenso tapete branco.

       Agora, além da desordem, a sala era como a idéia de um decorador sobre uma casa de campo inglesa. Camisas sujas jaziam no encosto de uma cadeira de balanço. Um tênis para corrida estava virado de lado, perto da entrada para o saguão da frente da casa. A mesa sobre a qual ela quase batera com a cabeça estava atulhada de jornais velhos, copos sujos e uma embalagem de papelão da Pizza Hut, vazia.

       Harwich voltou com um copo tão cheio, que deixava para trás uma trilha de pontos reluzentes.

       — Beba logo essa água, antes que entorne por todo canto.

       Ele estendeu-lhe o copo molhado e ficou de joelhos diante dela. Nora bebeu a água e olhou em torno, procurando um lugar onde colocar o copo. Harwich o pegou e o pousou em cima da mesa.

       — Vai deixar marca — disse ela.

       — Estou pouco ligando. — Ele lhe segurou a mão direita entre as suas. — Por que não quer que eu chame a polícia?

       — Porque pouco antes de Dick Dart seqüestrar-me, eu ia ser acusada por uns doze crimes. Parece um tanto engraçado, em vista do que aconteceu, mas tenho certeza absoluta de que rapto era um deles. Daí o motivo de minha presença no posto policial.

       Harwich parou de alisar-lhe a mão.

       — Está querendo dizer que, se for à polícia, você será presa?

       — É o que suponho.

       Ela retirou a mão que ele segurava.

       — Quer ouvir o que aconteceu ou prefere apenas chamar o FBI para que eles me levem?

       — O FBI?

       — Eram dois tipos realmente encantadores — disse ela. — Não tiveram o menor problema em presumir que eu era culpada.

       Levantando-se, Harwich foi para a outra extremidade do sofá.

       — Se isto for demais para você, eu irei embora daqui — disse Nora. — Preciso encontrar este médico. Caso consiga recordar seu nome.

       — Você não irá a lugar nenhum — declarou Harwich. — Quero ouvir toda a história, mas, antes disso, vejamos se podemos cuidar de Dick Dart. — Ele ficou em pé e apanhou um telefone celular de cima da platibanda da lareira. Nora iniciou um protesto. — Não se preocupe. Nada direi sobre você. Tente recordar o nome daquele motel.

       Harwich cruzou a sala e apanhou um catálogo telefônico, embaixo de uma pilha de revistas e jornais.

       — Não posso.

       — Ele não tinha nenhum letreiro com o nome? — insistiu Harwich, com o dedo parado sobre um número.

       — Claro, mas... — Ela viu o letreiro. — Chamava-se Hillside. “Como o estrangulador”, Dart disse.

       — “Como o estrangulador”? O que quer dizer?

       — Isso mesmo. Estrangulador ou “Strangler”. O nome do motel era “Hillside Strangler”.

       — Meu Deus! — Harwich digitou números. — Ouçam-me. Só vou dizer isto uma vez. Dick Dart, o assassino fugitivo, registrou-se esta manhã no Hillside Motel. Ele pode estar ferido. — Desligando o telefone, ele tornou a colocá-lo sobre a platibanda da lareira. — Imagino que você se sinta mais segura com Dart fora das ruas.

       — Você nem faz idéia.

       — Então, fale — pediu Harwich.

       Nora lhe contou sobre Natalie Weil, Holly Fenn, Slim e Slam. Falou sobre o livro de Daisy e o ultimato de Alden, depois descreveu a cena no posto policial, a acusação de Natalie, seu próprio seqüestro, Ernest Forrest Ernest, o Chicopeee Inn. Contou a Harwich que Dart a tinha estuprado. Falou-lhe a respeito da biblioteca, da orgia de compras e de ser maquiada; depois contou tudo a respeito de Sheldon Dolkis.

       Enquanto ela falava, Harwich coçava a cabeça, fitava-a por entre os olhos semicerrados, andava em círculos pela sala, arriava o corpo em uma poltrona, tornava a levantar-se e, por fim, chamou-a para que fosse até a cozinha. Depois de juntar os copos e utensílios sujos, deixando-os dentro da pia ou em suas proximidades, ele fez uma omelete para ambos. Inclinou-se para diante, com o queixo sobre o cotovelo.

       — Como foi que se meteu em tais situações? — perguntou.

       Ela largou o garfo, já sem apetite.

       — O que eu queria saber é como me livrarei disto!

       Harwich balançou a cabeça, ergueu as sobrancelhas e estendeu as mãos abertas, em uma pantomima de incerteza.

       — Quer que eu dê uma espiada em você? Devia ser examinada.

       — Em cima de sua mesa da cozinha?

       — Eu estava pensando que poderíamos usar uma das camas, porém, se preferir, posso levá-la a meu consultório. Tenho uma cirurgia esta tarde, mas até lá estarei livre.

       — Não há necessidade disso — respondeu Nora.

       — Houve algum sangramento sério?

       — Eu sangrei um pouco, mas já parou. Dan, o que devo fazer?

       Ele deu um suspiro.

       — Eu lhe direi o que me desconcerta em tudo isso. A tal Natalie Weil a acusa de espancá-la, de deixá-la passar fome e só Deus sabe o que mais. Além disso, o FBI e a maioria de sua força policial local deram crédito a ela. Por que essa mulher mentiria a respeito?

       — Vá à merda, Dan!

       — Não se zangue, estou só perguntando. Ela tem algo a ganhar, colocando você em tais apuros?

       — Podemos ligar o rádio? — perguntou Nora. — Ou a televisão? Talvez haja alguma coisa sobre Dart.

       Harwich levantou-se agilmente da cadeira e ligou um rádio ao lado da torradeira prateada, no fim de uma bancada.

       — Acho que não tenho uma mente de fugitivo.

       Ele girou o dial para uma estação noticiosa onde um homem, a bordo de um helicóptero, descrevia um congestionamento de trânsito em uma autopista.

       — Uma mente de fugitivo — repetiu Nora.

       — Sou apenas um velho e alquebrado neurocirurgião. Perdi todos os antigos instintos dos tempos de guerra, há muito e muito tempo atrás. Entretanto, acho mais prudente esconder seu carro.

       — Por quê?

       — Porque um minuto depois que eles aparecerem no motel, começarão a procurar um velho Ford verde, com uma certa chapa de matrícula. E esse Ford está na minha entrada para carros.

       — Oh!

       O telefone tocou. Harwich olhou para o fone de parede na cozinha e depois para Nora, antes de levantar-se da mesa.

       — Vou atender lá dentro.

       Não mais certa do que pensava sobre Dan Harwich ou do que ele pensava a seu respeito, Nora voltou ao rádio. Um locutor anunciava para os condados de Hampshire e Hampden que a temperatura permaneceria acima dos 30 graus durante os próximos dois ou três dias, após o que eram esperados fortes aguaceiros e trovoadas. No aposento vizinho, Harwich ergueu a voz para dizer:

       — É claro que sei! Pensa que esqueci?

       Levantando-se, Nora levou sua xícara até a máquina de café. Copos e pratos enchiam a pia, a superfície da bancada exibia manchas de espécies e cores variadas. Então, ela ouviu as palavras “Richard Dart” brotando do rádio.

       — “... estes arredores. A polícia de Springfield encontrou o cadáver mutilado de um homem e sinais de luta, em um quarto no Hillside Motel, na Tilton Street. A polícia de Springfield indicou a possibilidade de que o serial killer fugitivo esteja ferido, e está efetuando uma rigorosa busca na área da Tilton Street. Os moradores foram avisados de que Dart está armado e é extremamente perigoso. Ele tem trinta e oito anos, um metro e oitenta e cinco de altura, pesa cem quilos, tem cabelos louros e olhos castanhos. Na última vez em que foi visto, usava um terno cinza e uma camisa branca. Até o momento, também são ignorados a sorte e o paradeiro de sua refém, a sra. Nora Chancel.”

       Exibindo um sorriso profundamente desconsolado, Dan Harwich voltou à cozinha e parou de andar ao ouvir o nome de Nora.

       — “A sra. Chancel é descrita como tendo quarenta e nove anos de idade, um metro e sessenta e cinco de altura, esbelta, pesando aproximadamente sessenta quilos, com cabelos curtos castanho-escuros, e olhos castanhos. Na última vez em que foi vista, usava jeans azul e uma camisa azul-escura, de mangas compridas. Quem quer que veja a sra. Chancel ou qualquer pessoa parecida com ela deverá entrar em contato imediatamente com a polícia ou a agência local do FBI.

       “A polícia ainda não conseguiu identificar a última vítima de Dart.

       “Em outro noticiário local, o senador Mitchell Kramer nega firmemente recentes acusações sobre o manejo indevido de...”

       Harwich desligou o rádio.

       — Dê-me as chaves — pediu ele, e Nora as entregou. — Sua vida é muito mais cheia de aventuras do que a minha — acrescentou, quase apologeticamente.

       — Estou perturbando sua tranqüilidade, por isso irei embora — disse ela. — Você não precisa manter-me aqui por compaixão apenas porque éramos amigos.

       — Fomos muito mais do que isso. Talvez eu devesse ter a tranqüilidade perturbada de vez em quando. — Ele sorriu para ela, seus olhos reluziram e, por um segundo, o velho Dan Harwich emergiu à superfície desta versão mais cínica e belicosa. — Volto num segundo.

       — Enquanto isso, poderia pensar no que preciso fazer? Poderia mesmo?

       — Já estou pensando nisso — respondeu Harwich.

      

QUANDO HARWICH RETORNOU, Nora disse:

       — Tenho a impressão de que sua esposa não deve voltar logo.

       — Não se preocupe. — Harwich arqueou as costas. — Lark não faz mais parte do quadro.

       — Sinto muito. Quando foi que isso aconteceu?

       — O desastre começou no dia em que nos casamos. Acho que me envolvi com ela para fugir de Helen. Lembra-se de Helen, não?

       — Como poderia esquecê-la?

       — Provavelmente foi a única vez que expulsaram você da casa de alguém. — Harwich riu. — No fim, Helen não queria morar aqui, mas eu, sim, de modo que comprei a sua saída da casa. Comprei é a palavra, acredite. Dois milhões de pensão alimentícia, mais dez mil mensais em pagamentos de apoio. Graças a Deus, no ano passado ela ludibriou outro pobre filho da mãe, induzindo-o ao casamento. Pelo menos fiquei com as costas forradas, quando casei com Lark. Ela assinou um contrato pré-nupcial — duzentos e cinqüenta mil, mais todas as suas roupas, jóias e seu carro, aí está. De um modo geral, eu devia ter sido mais inteligente, em vez de casar com uma criatura chamada Lark Pettigrew. Deixei que ela redecorasse tudo aqui dentro, e agora estou morando nesta casa de bonecas. — Ele dirigiu a Nora um olhar lamentável e afetuoso. — A mulher com quem devia ter casado era você, mas fui idiota demais para perceber isso. E lá estava você, bem na minha frente!

       — Eu teria casado com você — disse Nora.

       — Dessa última vez? Você apareceu aqui como se todo o Vietnã houvesse revivido, quero dizer, estava alucinada. De qualquer modo, na época eu já vinha saindo com Lark. O que quero dizer é que teria casado com você, em vez de com aquela miserável bruxa da Helen.

       — E por que não casou comigo?

       — Não sei. Você sabe? Provavelmente foi melhor que isso não tivesse acontecido. Não pareço muito talhado para o casamento. — Ele fez um gesto amplo com o braço e deu uma risada. — Faz três semanas que Lark caiu fora e, na primeira semana, despedi a mulher da limpeza. Não me incomodo com a bagunça. A maldita mulher costumava dar nova arrumação em todos os meus livros e papelada. Perdoe-me, porém jamais entendi por que eu deveria ter de aprender o sistema de arquivamento de minha faxineira.

       Nora sorriu.

       — Céus, o que há comigo? — exclamou ele, fechando os olhos com força. — Tanta coisa acontecendo a você, e eu falando sobre tolices, em vez de ajudá-la!

       — Já está me ajudando — replicou Nora. — Não imagina a freqüência com que penso em você...

       Inclinando-se por cima de sua cadeira, ele fechou uma das mãos em torno da dela, apertou-a e a soltou.

       — Creio que você devia ficar aqui, pelo menos um ou dois dias, talvez mais. Tenho essa cirurgia hoje à tarde, mas estarei de volta lá pelas quatro ou cinco horas. Comeremos algo, veremos se já pegaram Dart e conversaremos. Permita-me paparicá-la.

       — Isso soa maravilhoso — disse Nora. — Você me deixaria mesmo ficar?

       Harwich inclinou-se para diante e tornou a segurar-lhe a mão.

       — Se você tentar fugir, eu a prenderei no sótão.

       O pulso dela pareceu cessar de bater.

       — Não posso acreditar que falei isso! — Ele apertou-lhe a mão com força, como se fosse esmagá-la. — Nora, você caiu do céu, fez com que eu me lembrasse da vida real, dá para entender isso?

       — Eu o fiz lembrar-se da vida real...

       — Exatamente, o que quer que seja isso. Você conseguiu. — Harwich soltou a mão dela e enxugou os olhos que, de repente, haviam ficado marejados de lágrimas. — Sinto muito. Eu devia estar ajudando-a, mas, em vez disso, pareço fugir do assunto.

       Ele tentou sorrir, e Nora disse:

       — Minha vida está muito mais enrolada do que a sua.

       Harwich esfregou o dedo abaixo do nariz e ficou concentrado em si mesmo durante um momento, olhando sem ver para os pratos empilhados na borda da mesa.

       — Vamos arrumar sua cama. — Ele ficou em pé e ela também, o que o fez recuperar o sorriso. — Você pode trazer para dentro suas sacolas ou qualquer outro pertence seu.

       — Neste exato momento, tudo que quero fazer é descansar.

       — Parece-me uma excelente idéia — respondeu Harwich.

      

APÓS UMA PARADA NO armário das roupas de cama, em busca de lençóis em cores vivas e fronhas combinando, tão novas que ainda estavam nas embalagens, eles foram até um quarto da frente da casa, com papel de parede florido em tons azuis e móveis de pinho nodosos, dispostos em torno das bordas de um tapete azul-e-rosa de crochê. Uma cadeira de balanço com ripas laqueadas postava-se diante da janela. Harwich rasgou as embalagens das roupas de cama, antes de arrancar do colchão a coberta azul-escura que o protegia.

       — A cama é confortável, mas afaste-se dessa cadeira — disse Harwich, apontando para a cadeira de balanço. — Foi uma das inspirações de Lark: uma cadeira de dois mil dólares, que produz buracos em suas suéteres.

       Ele jogou um lençol em cima da cama. Nora puxou a parte do seu lado, enquanto Harwich fazia o mesmo com a do lado dele. Moveram-se depois para os pés da cama, onde encaixaram o lençol sobre os cantos do colchão.

       — Quinas de hospital — disse Harwich. — Fique calma, meu bem.

       Eles começaram a enfiar os travesseiros nas fronhas.

       — Dan, o que vou fazer?

       Enfiando as mãos nos bolsos, ele aproximou-se dela, as maneiras brincalhonamente irônicas de pronto esquecidas.

       — Em primeiro lugar, precisamos saber se a polícia pegou Dart ou, ainda melhor, encontrou seu cadáver. Depois, vamos descobrir se o FBI continua atrás de você.

       Harwich pousou a mão direita no ombro dela.

       — Você não acha que eu devia tentar falar com este médico?

       — Não sou bom o suficiente para você? — perguntou ele, tentando parecer ofendido.

       — Estou falando daquele que Dick Dart pretendia matar.

       — A única coisa que você deve fazer, caso ainda se preocupe com Davey, é contar para ele que os advogados da Casa Chancel os estão traindo. Isso poderia acertar seus problemas com o velho.

       Dan Harwich pareceu ter feito penetrar ar fresco e luz solar em uma câmara úmida, onde ela estivera girando na escuridão.

       — Se eu fosse você — disse ele — arrancaria do pai dele tudo que me fosse possível. Aquele rijo velhote do topo da rua em Northampton, Calvin Coolidge, não estava errado: na América, negócios são negócios.

       Nora fechou os olhos contra uma onda de náuseas e ouviu o arrastar de pés dos demônios que se reuniam.

       — Não faça isso comigo — disse ela. — Por favor.

       Harwich passou-lhe o braço em torno da cintura e a guiou para o lado da cama.

       — Sinto muito. Você precisa descansar, e aqui fico eu, tagarelando sem parar.

       — Eu estarei bem. — Nora cerrou a mão no pulso dele, sentindo-se totalmente dividida: uma parte sua queria que Harwich ficasse, enquanto outra parte igual preferia que ele saísse do quarto. — Eu é que devia desculpar-me, não você.

       — Vamos, deite-se.

       Nora obedeceu. Ele foi para os pés da cama, desatou-lhe os sapatos e depois os tirou.

       — Obrigada.

       — Lembra-se do nome do médico?

       Ela abanou a cabeça.

       — É algo irlandês.

       — Isso reduz o campo. Que tal O’Hara? Michael O’Hara?

       Nora abanou a cabeça novamente.

       — O homem que procura é gay, não é? — Usando os polegares, Harwich começou a massagear-lhe a sola do pé direito. — Não posso pensar em mais de três médicos gays em toda a cidade, e são todos mais novos do que eu. — O que ele lhe fazia no pé produzia reverberações e ecos através de seu corpo. — Chegou a ouvir o primeiro nome dele?

       Ela assentiu.

       — Com que letra começava?

       — A letra “M” — respondeu Nora, sem a menor hesitação.

       — Michael. Morris. Montague. Max. Miles. Manny. Mark. O que mais? Monroe.

       — Mark.

       — Mark? — Ele enfiou os polegares no pé esquerdo dela, e um formigamento percorreu-lhe toda a espinha. — Mark. Com sobrenome irlandês e, ainda por cima, gay. Vejamos. Conlon, Conboy, Congdon, Condon, Mulroy, Murphy, Morphy, Brophy, O’Malley, Joyce, Tierney, Kiernan, Boyce, Mulligan... Não vai ser fácil. Burke, Brannigan. Sullivan. Boyle.

       — Um momento! Você chegou perto. Parece Boyle. — Nora conteve a respiração, fechou os olhos, e um nome flutuou para ela, emergindo da escuridão. — Foyle. O nome dele era Mark Foyle.

       — Mark Foil?

       — Esse é o nome.

       Harwich riu.

       — Sim, mas você pensava em F-o-y-l-e, daí ter achado que fosse um sobrenome irlandês. Mark Foil é tão irlandês quanto a rainha da Inglaterra, e seu sobrenome é Foil, como em tinfoil ou papel de estanho. Ou, conforme o ouvi dizer certa vez, Foil, como em fencing, derrotar.

       Harwich pronunciou a última frase em voz afetada, dengosa.

       — Você o conhece...

       — Derrotada novamente — disse ele, na mesma voz sibilante.

       — Ele é assim?

       — Não poderia dar-se ao luxo. O homem foi clínico geral por mais de quarenta anos, e este não é o lugar mais liberado na face da terra.

       — Onde é que ele mora?

       — Na parte boa da cidade — disse Harwich. — Ao contrário de nós, os mortais secundários, o dr. Foil pode divisar um grande número de árvores, quando olha por suas janelas de vitrais. — Ele lhe deu tapinhas no pé. — Ouça, se quiser ver o sujeito, posso acompanhá-la até lá. Entretanto, ele é daqueles gays nobres.

       A palavra gays deixou Nora gelada. Era algo que soava esquisito e errado, especialmente pronunciada por Dan Harwich, porém ela procurou ignorar sua repugnância.

       — Você acha que ele teria tempo para mim?

       — Foil nunca teve tempo para mim, o que talvez sirva como indicação. Céus, você devia ver o namorado dele!

       O telefone começou a tocar no fim do corredor.

       — Aproveite para um cochilo — disse Harwich.

       — Vou tentar.

       Liberado, ele deu um último tapinha no pé dela, caminhou sorrindo para a porta e a fechou ao sair. Nora ouviu-lhe os passos apressados em direção ao telefone, que certamente ficava em seu quarto. Um momento mais tarde, em uma voz alta o suficiente para ser ouvida através da porta, ele disse:

       — Certo, eu sei, estou sabendo.

       Nora achou que bem poderia tomar um banho. Na prateleira ao lado da pia antiga do banheiro havia três escovas de dentes novas, ainda em suas embalagens transparentes em tom pastel, e uma bombinha fornecendo dentifrício de bicarbonato e água oxigenada. Nora lutou com uma das embalagens das escovas de dentes, até conseguir abrir um lado. Procurando os suprimentos necessários, viu um frasco alto, com xampu pela metade, bem como outro frasco igual contendo condicionador, ambos para cabelos secos ou danificados, rodeados por um grande número de embalagens de produtos fornecidos grátis por hotéis. Uma touca para chuveiro, usada, jazia em cima da ducha, como um amortecedor de feltro sobre a boca de um trombone.

       Lark se mudara da cama de Harwich antes de mudar-se da casa dele. Em uma prateleira acima das toalhas, Nora viu um bastão de desodorante e um frasco quase vazio de líquido para gargarejo, um frasco de Murine, outro de aspirinas, quase vazio, uma lixa de unhas com uma linha esbranquiçada de uso descendo pelo meio, duas espécies de hidratantes e cremes para o rosto, além de um frasco alto de Je Reviens, modelo spray, quase cheio. Ela começou a puxar a camiseta para fora do jeans.

       — Um momento — disse alguém atrás dela.

       Nora soltou um gritinho esganiçado e saltou uns dois centímetros acima do chão.

       — Sinto muito, eu não pretendia...

       Ela deu meia-volta, com a mão na garganta que pulsava furiosamente, para encontrar um Dan Harwich com ar de desculpas, atrás da porta do banheiro.

       — Pensei que você tivesse me ouvido.

       — Eu me preparava para tomar um banho.

       — Na realidade — disse Harwich — talvez devamos entrar em contato com Mark Foil. Caso Dart tenha escapado, por mais improvável que isto possa parecer, precisamos ter certeza de que Mark está protegido.

       — Tudo bem, ótimo — respondeu Nora, insegura sobre o que pensar desta súbita mudança de idéia.

       — Podemos chegar até lá esta manhã.

       Todo o ritmo dele havia acelerado, como a pulsação de Nora. Sorrindo de maneira quase insistente, ele saiu de banda pela porta do banheiro, pedindo silenciosamente que ela o acompanhasse.

       — Você mudou de idéia depressa.

       — Sabe qual é o meu problema? Não consigo afastar-me de meus estúpidos padrões. Acho que Mark Foil me olha com desdém, o que me aborrece. Uma voz egoística em minha cabeça diz que sou um sujeito importante, enquanto ele não passa de um clínico geral aposentado. Quem Foil pensa que é? Ele que se foda! Eu não devia permitir que esta espécie de despeito me impedisse de fazer o que é direito.

       Nora o seguiu a um imenso quarto de dormir, com uma cama de quatro colunas e um enorme aparelho de televisão. Havia roupas jogadas pelo chão.

       — O que Dart pretendia dizer a tais pessoas? Como faria para introduzir-se em suas casas?

       — Bem, ele diria que devia estar escrevendo algo sobre aquele verão em Shorelands, o verão de 1938. Diria também que todos sabem sobre Hugo Driver, mas que os outros convidados nunca foram mencionados como mereciam. Algo mais ou menos assim.

       — Uma boa conversa — disse Harwich. — Se possuo talento para alguma coisa além da cirurgia, é só para contar lorotas. Quem você quer ser? — perguntou ele, chutando para o lado uma pilha de meias velhas e roupas suadas, enquanto caminhava para uma estante de livros.

       — Francamente, não sei — respondeu ela.

       — Que tal uma espécie de nome para uma escritora? Emily Eliot. Você é a minha velha amiga Emily Eliot, nós estudamos em Brown, e agora você está escrevendo uma peça sobre, como é mesmo o nome?, Shorelands. Vejamos, você tem um Ph.D. de Harvard, lecionou durante algum tempo, mas abandonou o ensino para ser uma escritora freelance. — Ele folheava uma gorda lista telefônica. — Precisamos torná-la uma cidadã respeitável, ou Mark Foil não a receberá. Você publicou um livro há cinco anos. Era sobre... humm... Robert Frost? Será que ele chegou a hospedar-se em Shorelands?

       — Provavelmente.

       — E quem publicou o livro? A Casa Chancel, imagino.

       — E fui editada por Merle Marvell.

       — Quem? Oh, entendi, ele é o figurão por lá.

       — O maior — disse Nora, sorrindo.

       — Toda a questão sobre mentir é ser tão específico quanto possível. — Ele chegou a uma página e correu o dedo por uma lista de nomes. — Lá vamos nós. Se este for o Mark Foil de quem falamos, talvez ele esteja passando o verão em uma ilha grega, mas tentaremos. Como se chamava o namorado dele? Algo como Monk, como Thelonious?

       — O nome era Creeley — disse ela.

       Harwich discou o número e manteve os dedos cruzados, enquanto a campainha tocava.

       — Alô? Eu desejaria saber se posso falar com Mark, por favor... Aqui é Dan Harwich... Sim, claro. Alô? Como vai, Andrew?... Oh, é você? Formidável... Provincetown, é muita gentileza sua... Bem, se você achar que pode... Obrigado.

       Ele colocou a mão sobre o receptor.

       — O namorado dele diz que os dois vão passar o resto do verão em Provincetown. Não me parece muito bom. — Ele tornou a falar ao telefone. — Olá, Mark, aqui é Dan Harwich... Uma velha amiga minha de Brown, escritora, apareceu aqui fazendo pesquisa para um livro e, por causa disso, ela desejaria entrar em contato com você... Certo. O nome dela é Emily Eliot, aliás, gente finíssima, Ph.D. de Harvard... Um poeta chamado Creeley Monk?... Sim, é isso mesmo. Ela está interessada nas pessoas que estiveram com ele em uma propriedade chamada Shorelands, e viu seu nome em algum lugar.

       Harwich olhou para Nora.

       — Foil quer saber onde você viu o nome dele.

       Dart não lhe explicara como sabia sobre Mark Foil.

       — Fazendo pesquisa a respeito de Creeley Monk.

       Ele repetiu a frase ao telefone.

       — Não, ela escreveu um livro antes deste. Robert Frost... Sim, ela está aqui no momento.

       Harwich estendeu o fone para ela.

       — Emily? O dr. Foil quer falar com você.

       Quando Nora pegou o fone, Harwich fingiu estar trabalhando com uma pá. Uma voz brusca e incisiva, em nada semelhante à paródia efeminada de Harwich, disse:

       — O que está havendo, srta. Eliot? Dan Harwich não tem nenhuma amizade séria.

       — Eu fui um erro da juventude — replicou Nora.

       — Você não pode estar escrevendo um livro sobre Creeley Monk. Ninguém mais se lembra dele.

       — Conforme disse Dan, estou trabalhando em um livro sobre o que aconteceu em Shorelands, durante o verão de 1938. Creio que o sucesso de Hugo Driver eclipsou injustamente os outros escritores que também estavam lá.

       — Você tem um editor?

       — Sim. A Casa Chancel.

       Houve um longo silêncio.

       — Por que não vem até aqui e me permite dar uma espiada em você? Vamos sair da cidade esta manhã, porém ainda dispomos de algum tempo.

      

UM HOMEM JOVEM, esguio e sorridente, usando um leve terno cinza e camisa de seda preta, abriu a porta da casa de pedra entre os carvalhos, e os recebeu. Harwich apresentou sua amiga Emily Eliot ao rapaz, Andrew Martindale, que encarou Nora fixamente, ampliou o sorriso e, em um piscar de olhos, mudou do diplomático modelo masculino para uma pessoa real, cheia de curiosidade, humor e boa-vontade.

       — É formidável que esteja aqui — disse ele a Nora. — Mark está tremendamente interessado em seu projeto. Eu me pergunto se você sabe bem o que está fazendo!

       — Eu apenas fico grata por ele querer falar comigo.

       — Querer, dificilmente seria a palavra. — Martindale deixou que eles entrassem na casa, e então recuou alguns passos para um espesso tapete persa. Uma ampla escada, com reluzentes degraus de madeira, situava-se ao fim de uma fileira de colunas brancas. — Vou levá-los à biblioteca.

       No final da fila de colunas, ele abriu uma porta para um aposento de paredes cobertas de livros, duas vezes do tamanho da biblioteca de Alden Chancel. À ofuscante claridade do sol que penetrava por uma janela, um homem de cabelos brancos e trajando elegante terno escuro, que a Nora pareceu inesperadamente familiar, estava em pé ao lado de uma caixa-arquivo, aberta sobre uma mesa cintilante. Ele sorriu para os recém-chegados acima do topo de seus óculos escuros de meias lentes e ergueu um grosso volume, encadernado em tecido vermelho.

       — Vê, Andrew? Você disse que eu o encontraria — e encontrei!

       — Nada fica perdido nesta casa — disse Martindale —, apenas escondido, até que a gente precise. E aqui, bem a tempo de partilharem o seu triunfo, estão Dan e a srta. Eliot. Aceitam um café? Chá, talvez?

       Isto foi endereçado a Nora, que respondeu:

       — Se já tiver o café pronto, eu adoraria uma xícara.

       O homem de cabelos brancos enfiou o livro vermelho debaixo do braço, retirou do nariz seus óculos de meias lentes, dobrou as hastes e os guardou no bolso da camisa. Depois cruzou o aposento, com a mão direita estendida. Era ágil como um gato e, embora devendo andar pelos setenta e tantos anos, parecia não ter sofrido quaisquer mudanças físicas essenciais, desde os cinqüenta anos. Apertou a mão de Harwich, depois virou-se para Nora, absolutamente atento, interessado e curioso. Ela sentiu que, com um perscrutador e rápido olhar, Mark Foil captara instantaneamente tudo o que era importante em seu íntimo, incluindo-se muito do que ela própria não percebia.

       Harwich apresentou-os.

       — Por que não nos sentamos, e assim poderá me falar mais sobre si mesma?

       Ele indicou um macio sofá e duas poltronas combinando, perto da janela cheia do sol ofuscante. Uma mesa de vidro, com uma bem arrumada pilha de revistas, situava-se ao alcance de quem se sentasse ali. Nora ocupou uma extremidade do sofá, e Mark Foil deslizou para a outra. Como se quisesse deixá-la à vontade, Harwich contornou a mesa de vidro, sentou-se na poltrona ao lado da extremidade mais distante do sofá, e reclinou-se contra o encosto.

       — Você não tem estado dormindo muito bem, não é mesmo? — perguntou Foil.

       — Não tanto quanto eu gostaria — respondeu Nora, surpresa com a pergunta.

       — E esteve submetida a uma grande dose de estresse. Se minha pergunta não a incomoda, por que isso acontece?

       Ela olhou para Harwich, que parecia inteiramente desligado.

       — Os últimos dias foram um tanto estranhos — disse ela.

       — Em que sentido?

       Olhando para o rosto inteligente e gentil abaixo dos cabelos brancos, Nora quase chegou ao ponto de admitir que estava ali sob falso pretexto. Mark Foil percebeu a hesitação e inclinou-se para diante, sem alterar a expressão.

       Ela ergueu os olhos de Foil para Harwich, o qual a fitava com ar alarmado.

       — Para dizer a verdade — falou ela — acabei de entrar na menopausa e meu organismo parece ter-se voltado contra mim.

       Foil tornou a reclinar-se no sofá, assentindo. Atrás dele, sem ser visto, Harwich também tornou a descansar o corpo em sua poltrona.

       — Além de ter uma aparência bastante jovem, isso faz bastante sentido — declarou Foil. — Esteve vendo seu ginecologista, mantendo um registro do que está acontecendo?

       — Sim, obrigada.

       — Lamento se pareci bisbilhoteiro. Sou como um velho cavalo treinado no combate ao fogo. Meus reflexos são mais fortes do que meu senso comum. Você e Dan eram amigos na Brown?

       — Exatamente.

       — E que tal o nosso eminente neurocirurgião naquela época?

       Nora olhou para o nosso eminente neurocirurgião e tentou adivinhar como ele havia sido na Brown.

       — Selvagem e acanhado — disse ela. — Sempre zangado. Melhorou, assim que entrou para a Escola de Medicina.

       Foil riu.

       — Que coisa maravilhosa é a recordação de um velho amigo! Ela impede que esqueçamos os casulos dos quais emergimos.

       — Alguns velhos amigos lembram-se de bem mais do que você imaginaria possível — disse Harwich.

       — Quando eu tinha essa idade, li Browning e Tennyson, até me saírem pelos ouvidos. Não são muito modernos, receio. Suponho que grande parte do que apreciei na obra de Creeley foi que, embora ele fosse muito melhor do que eu jamais poderia ser, tampouco era muito moderno. Na medicina, a gente precisa estar sempre atualizado para ser útil de algum modo, mas creio que isso não é válido nas artes, concorda?

       Andrew Martindale surgiu à porta, trazendo uma enorme bandeja de prata com três xícaras e um bule também de prata, em tempo de ouvir a última frase de Foil. Virando-se, ele carregou a bandeja para a mesa de tampo de vidro.

       — De novo? — exclamou. — Oh, não!

       — Bem, desta vez temos uma Ph.D. de Harvard e escritora profissional para consultar. O que você acha, Emily? Eu e Andrew vivemos discutindo tradição versus avant garde, e ele é absolutamente turrão em suas opiniões.

       Martindale fez a bandeja deslizar em cima da mesa, quase derrubando a pilha de revistas. Nora olhou para eles e viu-se perdida, fora de seu campo de ação e prestes a ser denunciada como fraude. Avec, Lingo e Conjunções, que quase certamente representavam o gosto de Martindale em literatura, poderiam muito bem ter sido escritos em paquistanês pois para ela não faria diferença, já que ignorava o que continham.

       — Ponha um fim à nossa discussão — pediu Foil.

       — Você não deveria... — começou Harwich.

       — Não, está tudo bem — cortou Nora. — Não creio que eles desejem pôr um ponto final em sua discussão, porque ambos se divertem muito com isso. Pessoalmente falando, eu tanto aprecio Benjamin Britten como Morton Feldman, mas é bem provável que um detestasse a música do outro.

       Ela passou os olhos em torno, fitando os três homens. Dois deles a olhavam com indisfarçada e amistosa aprovação, o terceiro com indisfarçado pasmo.

       Martindale sorriu para eles todos, e desapareceu.

       Como se seguisse indicações de palco, os três pegaram suas xícaras e bebericaram o excelente café.

       — Você tem razão, nós nos divertimos com nossa constante discussão, e parte do que aprecio em Andrew é o fato dele ficar tentando tornar-me atualizado. Embora a obra de Creeley não seja da espécie geralmente de seu agrado, ele tem apoiado meus esforços para publicar uma Coletânea de Poemas. — Foil sorriu para ela. — Seria ótimo se seu trabalho me permitisse finalmente fazer justiça a ele.

       Nora sentiu vontade de rastejar para fora daquela casa.

       — Merle deve ser seu editor.

       — Como disse?

       — Merle Marvell. Na Casa Chancel. Ele não é o seu editor?

       — Oh, sim, naturalmente. Não imaginei que o senhor o conhecesse.

       — Nós nos vimos uma meia dúzia de vezes, porém eu realmente só o conheço de reputação. Até onde sei, Merle é a única pessoa na Chancel que teria coragem suficiente para levar avante um projeto que pudesse revelar-se menos do que lisonjeiro para Lincoln. Aliás, tenho a impressão de que Merle é o único editor real na Casa Chancel.

       Nora sorriu para ele, porém aquela conversa a deixava cada vez mais constrangida.

       — Você acha que a Chancel House desejaria publicar algo capaz de colocar Driver em uma luz diferente? Para começar, Creeley não o tinha em grande conta e, pelo fim do verão, ele positivamente detestava o homem.

       — Eu penso que eles estão desejando apresentar um ponto de vista equilibrado — disse Nora.

       — Sendo assim, tudo bem. — Foil colocou sua xícara no pires. — Não vejo por que eu não deva partilhar isto com você. — Ele pegou o grosso livro vermelho. — Este é o diário que Creeley manteve durante seu último ano de vida. Eu o li quando examinei os papéis dele, após a sua morte. Se os li? Bem, eu os estudei. Como todo sobrevivente de um suicídio, eu buscava uma explicação.

       — E encontrou alguma?

       — Alguém encontra? Ele ficara decepcionado na véspera de matar-se, porém eu não pensaria... — Foil abanou a cabeça, com a lembrança da derrota bem nítida em seus olhos. — Ainda não é nada fácil. De qualquer modo, se você está interessada em abaixar um pouco a crista do famoso Hugo Driver, isto lhe será útil. O homem era um poltrão. Ele foi pior do que isso. Creeley levou algum tempo a convencer alguém do fato, porém ele era um ladrão.

      

O SANGUE DE NORA PARECEU desacelerar nas veias.

       — Está querendo dizer que ele roubou a obra de outros escritores?

       — Oh, todos eles fazem isso, a começar por Shakespeare. Estou falando de roubo real. A menos que você diga que Driver realmente plagiou Jornada na Noite. Entretanto, se era esta a sua história, é difícil acreditar que Chancel a apóie. — Ele sorriu. — Ao invés de lhe darem um contrato, o mais provável é que eles arranquem um de você, com ou sem Merle Marvell.

       Harwich deu uma risadinha contida, e Nora o silenciou com um olhar homicida.

       — O senhor quer dizer que Creeley Monk o viu roubar coisas dos outros convidados?

       — Não apenas Creeley, por sorte. Você está interessada em todos eles, não está? Em tudo que aconteceu naquele verão?

       Ela assentiu.

       — Pois estou preparado para fazer isto. — Foil gesticulou com o livro na mão. — Descreverei parte do conteúdo deste diário. Você continuará sua pesquisa, enquanto eu e Andrew estivermos em Cape Cod. Assim que voltar, falarei com Merle Marvell e ouvirei o que ele tem a dizer sobre você e seu projeto. Poderia fazer isto agora, porém nosso tempo é limitado esta manhã. Você conta com o mais, ah, pitoresco, neurocirurgião do estado testemunhando em seu benefício, de maneira que irei mais longe do que iria normalmente. Entretanto, quero ser tão cauteloso quanto o razoavelmente possível. Presumo que não faça objeções, não é mesmo?

       Nora refletiu firmemente por um momento, enquanto os dois homens olhavam para ela — Harwich despedindo faíscas de fúria e indignação, e Foil muito calmo.

       — Eu poderia enviar-lhe os capítulos depois de escritos, não? Se me emprestasse o diário haveria mais tempo de recolher todas as informações, e ele lhe seria devolvido no final do verão.

       Ele já estava abanando a cabeça.

       — Eu conservo a documentação de Creeley em custódia. — Vendo que Nora pretendia objetar, Foil ergueu um dedo indicador. — Seja como for, quando Merle me disser que você é de fato o que afirma ser, e estou certo de que ele dirá isso, eu lhe darei uma cópia de todas as páginas relevantes deste diário. Estamos combinados?

       Harwich dirigiu a ela um olhar sombrio e infeliz.

       — Acho que assim estará ótimo — respondeu Nora.

       — Então, tudo bem. — Uma contida vitalidade surgiu nas feições do homem, e Nora viu o quanto ele ansiara, o tempo todo, em fazer justiça ao amante morto. — Permita-me dizer-lhe algo sobre o background dele, a fim de que possa avaliar a espécie de pessoa que foi Creeley. — Foil fez uma pausa para coordenar os pensamentos. — Ele era um ano mais atrasado do que eu na Academia Garand, e tinha uma bolsa de estudos. Todos nós éramos parecidos, exceto Creeley. Ele era tão conspícuo quanto um pavão em meio a um bando de gansos.

       “O pai dele era barman, e sua mãe uma imigrante irlandesa. Moravam num pequeno apartamento em cima do bar e ele precisava tomar dois ônibus para chegar à escola. Creeley comparecia às aulas usando enormes sapatos pretos de trabalho, um hediondo terno listrado grande demais para ele, e colarinho Buster Brown, com uma gravata-borboleta de veludo. É claro que os rapazes mais velhos o surravam, e isso era por causa dos colarinhos Buster Brown, mas Creeley insistia em usar a gravata-borboleta de veludo. Esta fora idéia dele. Havia lido que os poetas usavam gravatas-borboleta de veludo, e Creeley já sabia que era um poeta. Também sabia, na avançada idade de quatorze anos, que era sexualmente atraído para pessoas de seu mesmo sexo, embora simulasse o contrário. Não havia alternativa, se quisesse sobreviver. Entretanto, não via o menor motivo em simular qualquer outra coisa.

        “Chegando ao segundo ano, ele ficou parecido com o resto de nós. Sendo absolutamente destemido e possuindo também semelhante personalidade, Creeley já conquistara um lugar na escola. Todos o cortejavam. Era algo extraordinário. Ali estava uma escola completamente prosaica, e Creeley Monk, sem ajuda de ninguém, fez com que eles, ou melhor, nós, respeitássemos uma vocação literária. Em seu penúltimo ano, ele publicou alguns poemas em revistas nacionais.

       “Fui para Harvard, e ele chegou lá um ano depois, com uma bolsa de estudos integral. Não demorou muito para ficarmos íntimos. Eu e Creeley vivemos juntos enquanto cursei a Escola de Medicina, e ele se mudou para Boston, assim que fui para lá como interno e residente. Ele conseguiu emprego escrevendo cópias de catálogos para uma firma editora e tivemos apartamentos separados no mesmo prédio, isto por escolha sua. Ele não queria fazer algo que pudesse comprometer minha carreira. Em todos os demais sentidos, no entanto, éramos um casal estabelecido, de maneira que quando me mudei para cá, ele fez o mesmo. De novo morávamos em apartamentos separados, e comecei a clinicar com dois homens mais velhos. Durante essa época, eu e Creeley éramos como pessoas vivendo um casamento aberto. Ele me era dedicado, e Deus sabe que também lhe fui dedicado. Entretanto, Creeley era uma pessoa promíscua por natureza, e estava indo trabalhar em Boston quase todos os dias, de maneira que assim corria a nossa vida.

       “Ele começou a ter obras publicadas em todo tipo de jornais e revistas, fez palestras e ganhou alguns prêmios. O Campo Desconhecido foi publicado em 1937, e fico feliz em dizer que recebeu indicação para um Prêmio Pulitzer. Georgina Weatherall convidou-o para Shorelands durante o julho seguinte, e ambos encaramos isto como um grande sinal.

       “No fim, ele ficou desapontado. Nenhum dos escritores que mais admirava esteve presente, e duas pessoas que lá se encontravam jamais haviam publicado livros — Hugo Driver e Katherine Mannheim. Creeley tinha visto uma história de Katherine Mannheim em uma revista literária e até apreciou-a, mas ela publicara uma quantidade razoável de poesia, que ele apreciava muito mais. Em pessoa, ela revelou-se uma surpresa sumamente agradável. Creeley a imaginara uma espécie de coisinha perdida, como um animal sem dono, de modo que sua mordacidade e inflexibilidade foram como que uma surpresa. Havia também algo mais que ele admirava nela. Lerei parte disso no diário. Hugo Driver era outro assunto. Creeley havia lido algumas histórias dele em pequenas revistas e avaliou-as como chá fraco. Driver o deixava pouco à vontade, mesmo antes de Creeley tomar conhecimento do roubo feito por ele. Em sua primeira carta para mim, disse que Driver era ‘desagradável e desatinado’, o que acabou transformando-se em piada corrente. Após algum tempo, ele passava a referir-se a Driver como ‘D&D’ no diário, depois tornando-se ‘DD’ e finalmente ‘DeDe’, como o nome da jovem.

       “Os outros eram um punhado heterogêneo. Austryn Fain o impressionou como uma sagaz inutilidade, uma espécie de punguista literário, que passava a maior parte do tempo querendo convencer Lincoln Chancel a investir uma boa soma de dinheiro em seu próximo livro. Havia ainda Bill Tidy. Creeley o respeitava e adorou o livro dele, Nossas Frigideiras. Os dois tinham muito em comum. Assim, ele foi para Shorelands antecipando uma espécie de encontro de mentes, porém Tidy exibiu uma fachada de operário de palavreado rude, recusando-se a falar com Creeley.

       “Havia também o astro em ascensão daquela assembléia, Merrick Favor. Creeley sentiu-se instantaneamente atraído por ele, porém de nada adiantou. Pude ver o que estava para acontecer, quando ele escreveu que, ao jantar pela primeira vez na Casa Principal, viu Favor conversando com Katherine Mannheim em um canto e pensou que estivesse me vendo!”

       Nora percebeu subitamente que o motivo de Mark Foil ter-lhe parecido familiar era por ele ser uma cópia mais velha do atraente e jovem escritor na famosa fotografia.

       — Posso imaginar — conseguiu dizer.

       — Suponho que ele realmente parecesse comigo, porém isso era tudo o que tínhamos em comum. Favor era indiscutivelmente heterossexual e, além disso, um mulherengo compulsivo. Tanto ele como Austryn Fain flertavam com Katherine Mannheim, mas ela não tinha preferência por nenhum dos dois. Apenas divertia-se com eles. O próprio Lincoln Chancel tentou alguma espécie de proposta algo rude com ela, porém Katherine o liquidou com uma piada. Entretanto, qualquer um sabe a atração por aquilo que não se pode obter. Creeley acabou ficando desesperançadamente caído por Favor. Isso o deixou louco, e ele saboreou cada frustrante segundo dessa situação.

       — O senhor não se importava? — perguntou Nora.

       — Se eu me importasse com esse tipo de coisa, não aturaria Creeley uma semana, muito menos todos aqueles anos. Ele não era predestinado ao celibato. Sabe como a propriedade funcionava, como eles viviam e como eram os dias dos hóspedes?

       — Não em grandes detalhes — respondeu Nora. — Sei que eles ocupavam casas diferentes e jantavam juntos todas as noites, não é?

       Foil assentiu.

       — Georgina Weatherall morava na Casa Principal, ao passo que os convidados ficavam em chalés distribuídos entre o matagal que circundava os jardins. Eram edificações de um e dois andares, construídas originalmente para a criadagem, quando a família dona da propriedade tinha um exército de empregados. Creeley estava na Casa do Mel, um dos menores chalés, isolado e no lado mais distante do laguinho. O chalé tinha apenas dois pequeninos aposentos e uma cama de solteiro cambaia, o que o deixava mal-humorado. Sendo a única hóspede mulher, Katherine Mannheim foi colocada sozinha na casa de hóspedes maior, a Pão de Mel, escondida no fundo do arvoredo, depois dos jardins. Austryn Fain e Merrick Favor ficaram no chalé Pote de Pimenta, ao passo que Lincoln Chancel e “Desagradável & Desatinado” foram instalados no chalé maior, o Rapunzel. Este possuía uma torre de pedra em um dos lados e ficava a meio caminho entre Pão de Mel e a Casa Principal. Chancel ficou com a torre para si mesmo. Imagino que era ele quem dava as ordens.

       — Ainda não entendi bem por quê, antes de mais nada, Lincoln Chancel quis ir para lá — disse Nora, que acabara de reparar no detalhe. — Ele tinha seus negócios para cuidar e dificilmente permaneceria um mês em uma espécie de colônia literária, ainda que em benefício da Casa Chancel.

       Foil começou a responder, mas procurou conter-se.

       — Sempre aceitei a presença dele lá como certa, porém Chancel não tinha de sujeitar-se à seleção de escritores por parte de Georgina, concorda? De qualquer modo, ele não permaneceu lá o mês inteiro; apareceu somente para as duas últimas semanas.

       — A resposta é óbvia — disse Harwich. Os outros dois esperaram. — Dinheiro.

       — Dinheiro? — exclamou Nora.

       — O que mais poderia ser? Os Weatheralls eram donos da metade de Boston. Pensava-se que Lincoln Chancel fosse mais rico do que Deus, porém todo o seu império não caiu de quatro logo depois de tudo isto? Ele procurava uma boa soma em dinheiro para iniciar sua firma editora.

       — Seja como for — disse Foil — voltando ao tema Shorelands, até mesmo os hóspedes normais não tinham qualquer programação diária formal. Durante o dia, podiam fazer o que mais lhes agradasse, desde que ficassem na propriedade. Se quisessem trabalhar, as empregadas levavam caixas de almoços aos chalés. Se quisessem vida social, Georgina os recebia na varanda. Podiam nadar no laguinho ou jogar tênis nas quadras. Os jardins eram famosos. Os hóspedes perambulavam pelas diferentes áreas ou sentavam-se nos bancos e liam. Às seis e meia da tarde, reuniam-se todos na Casa Principal para drinques e, às sete, passavam para a sala de refeições. Permita-me ler-lhe algo. Foi o que Creeley escreveu, ao voltar para a Casa do Mel, em sua primeira noite:

      

“Tendo os deuses encarregados das ferrovias visto minha chegada a este tão ansiado destino com cinco horas de atraso, deste modo adiando a morte de minhas ilusões, fui apressadamente escoltado pela alarmante srta. W., uma aparição em vividas e dissonantes cores (púrpura, vermelho, laranja e azul-pastel) distribuídas entre camadas de echarpes, xales, saia, meias e sapatos. Usava também uma não-para-ser-ignorada profusão de jóias monstruosas, bem semelhante à sua pintura facial. Fui eu assim conduzido por uma estreita alameda através dos jardins — até então, todos esplêndidos — da qual passamos para uma outra mais estreita, que prosseguiu até meus aposentos, ou seja, a Casa do Mel, um nome sugerindo um rústico encanto ao meu suscetível eu. Em realidade, a rústica Choça

do Fel não possui o menor encanto. A srta. W. apontou um dedo incrustado de anéis para um quarto que mais parecia uma minúscula prisão, uma esquálida alcova-cozinha e uma mesa desconjuntada, onde deverei Criar! Criar! Crocitando, ela partiu e me deixou entregue a mim mesmo.

      “E quem vejo eu, após minha primeira entrada na Bagdá que é o salão da Casa Principal, senão o companheiro desta minha eterna vida sensória, visivelmente encantado com um belo rapaz? Salvação! Ele viera para salvar-me do Fel! Madame, de velas enfunadas, trajando farrapos ainda mais espalhafatosos, o rosto reluzente de pintura fresca, fez crocitadas apresentações para mim, porém aquele não era o meu próprio MF, mas seu perfeito sósia, MF2 que, de fato, é o queridinho literário do ano passado, Merrick Favor. Quanto ao rapaz, aliás, uma não-terrivelmente-andrógina jovem, revelou-se ser Katherine Mannheim, cujo trabalho aprecio. Como também aprecio a própria Katherine, por sua boa natureza incomodativamente anti-sentimental, sua elegância deselegante, sua cáustica espirituosidade e, não por último, sua presteza em admitir consternação ante nossa anfitriã e seu reino. De igual forma aprecio — ai de mim! — o Favorecido indivíduo, sem dúvida devido a tudo que foi dito acima (excetuada a última parte), embora esse Bem-Favorecido se mostre demasiado polido em suas palavras e, ainda mais do que isso, rendido aos encantos físicos da jovem. MF2 tolera a minha intrusão, e ficamos os três discutindo nossos projetos correntes, eu já escravizado a 2, e este todo olhos para a jovem. Ele trabalha em um romance, é claro, enquanto que KM se declara ‘inescrevendo’ um romance. Quando pergunto qual o sentido de inescrever, ela responde, ‘E exatamente como escrever, apenas ao inverso’. Murmuramos admirações sobre Georgina, que 2 aceita docemente por seu valor ostensivo. Entre os demais, identifiquei Bill Tidy, por fotos de publicidade — canhestro, introvertido e mal-humorado, com quem em breve deverei estar fazendo causa comum — e um barbudo cabeça de feijão, que deve ser Austryn Fain. (Durante o jantar estarei sentado à frente dele — e, sim, trata-se realmente de Fain, o qual, lamento dizer, é um Idiota desprovido de talento ao adular ‘Madame’, chegando a soltar exclamações a respeito da pegajosa coleção de ‘arte’ que ela possui. Essa coleção consiste de uma mixórdia de diligentes pinturas malfeitas, todas elas obliterando uma obra-prima, um belo Mary Cassatt e a única outra peça decente de ‘Madame’, isto é, um soturno Redon, largamente preferido por mim.) 2 e Idiota dividem alojamentos. 2 finge estar satisfeito com o arranjo, ao passo que Idiota, tão sonso quanto seu companheiro de alojamento, sente por KM a mesma paixão que 2. A um canto, move-se furtivamente uma alma suja, mais tarde revelando-se como Hugo Driver, sobre quem quanto menos for dito, tanto melhor. Convidado a um drinque, apóio o proletariado ao pedir um deselegante vinho Spo-dee-o-dee, metade vinho tinto e metade gim, freqüentemente servido na estalagem paterna, e KM delicia-se ao ingerir o seu borbulhantemente, depois pedindo um letal ‘Alto-e-Baixo’, isto é, partes iguais de vinho do Porto e gim. Estes são desaprovadoramente entregues.

      “Da mesma forma, o jantar consiste em iguais porções adocicadas e cruas, pois enquanto KM fulgura e o esplêndido 2 é decididamente amistoso, nossa anfitriã emite dilações sobre a Alma Germânica. Desvio minha atenção para as pinturas. Mary Cassatt recebe o que lhe é devido, enquanto os elogios dirigidos aos demais borrões malfeitos sobem aos céus, com o rastejante Fain fazendo coro. Faço um comentário sobre o pequeno Redon, e a irritada ‘Madame’ esganiça que só o pendurou na parede por causa de seu nome. O que pensa a srta. Mannheim a respeito do maravilhoso quadro de Lockesly, mostrando o campônio ao longe, diante do seu redil?, pergunta Georgina, desejando restaurar o tom moral adequado. ‘Eu penso’, diz KM, ‘em Aristóteles Contemplando o Lar de Buster.’ ‘Oh, minha cara’, diz Georgina, com um sorriso afetado, ‘você quis dizer, você certamente pretendia dizer...’ ‘Aquele carneiro-guia só pode ser um Buster, se é que já vi algum’, disse KM, e prontamente retornamos à magnificência de todas as coisas teutônicas.”

      

       Mark Foil ergueu os olhos do diário e fitou Nora de maneira quase apologética.

       — Creely descambava para este tom quando se achava assustado ou inseguro, e o álcool sempre estimulou seu lado exibicionista. Ele menciona apenas um vinho Spo-dee-o-dee, algo que só bebia quando queria ofender pessoas que achava estarem sendo pretensiosas. Entretanto, tenho certeza absoluta de que Creeley estava aturando pelo menos três delas. É claro que ele adorou ouvir a jovem pedindo um “Alto-e-Baixo”, pois isto indicava que ambos tinham idéias parecidas. Eles costumavam falar sobre seus “drinques estranhos”.

       — Drinques estranhos — repetiu Nora, Sobressaltada por outra referência a Paddi Mann.

       — Creeley os ficou conhecendo através dos músicos que freqüentavam o bar da família. Entretanto, ele também quis dar a entender que os dois eram “estranhos” em Shorelands. A piada sobre Aristóteles Contemplando o Lar de Buster (Aristotle Contemplating the Home of Buster) na realidade foi um jogo de palavras — Aristóteles Contemplando o Busto de Homero (Aristotle Contemplating the Bust of Homer) e selou a sorte dela; Georgina não era totalmente obtusa, e pelo menos sentiu que Creeley a considerava absurda, de maneira que também ele foi considerado inaceitável. Isto significa que temos aqui esta pequena situação.

       — O que foi que Driver roubou? — perguntou Nora.

       No outro lado da porta soaram duas ruidosas passadas. Andrew Martindale entrou, batendo sobre o mostrador de seu relógio de pulso, com uma expressão satisfeita no rosto.

       — Trinta e três minutos, um recorde mundial! Como estamos indo por aqui?

       — Eu estive falando demais, como de costume — respondeu Foil. Ele ergueu a manga, a fim de consultar seu próprio relógio. — Ainda temos tempo de sobra, se não vadiarmos muito no trajeto.

       Martindale foi até uma confortável poltrona no lado oposto da sala, sentou-se, cruzou as pernas a acomodou-se.

       — Onde é mesmo que estávamos? — perguntou Foil.

       — Roubando — disse Nora.

       — Estivemos roubando alguma coisa? — perguntou Martindale.

       — Hugo Driver estava roubando algo. — Foil abriu o diário vermelho e folheou páginas. — Isto foi alguns dias antes da chegada de Lincoln Chancel e de todos os tipos de malas e caixas, inclusive móveis, terem sido entregues no chalé Rapunzel e deixados na torre. Chancel insistiu em sua própria cama, tendo a antiga ido parar no porão da Casa Principal. Ele fez instalar uma máquina impressora de fita, a fim de poder acompanhar a movimentação no mercado de ações. Da Dunhill chegou uma enorme caixa de papelão contendo charutos. Uma firma fornecedora de refeições montou um bar de mogno em um aposento e o estocou com garrafas.

       Foil examinou uma das páginas.

       — Oh, aqui está! A véspera da chegada de Chancel. Como bons “deslocados no ambiente”, Creeley e Katherine Mannheim tinham estado abusando dos “Alto-e-Baixos”, de modo que no meio do jantar ele precisou deixar a mesa para ir ao banheiro. Pois quem encontraria agindo de maneira suspeita na sala de estar, senão o bom e velho D&D, Hugo Driver, que deixara a sala de refeições sem ninguém perceber?

      

“A princípio nem cheguei a vê-lo, e talvez não o visse de maneira alguma, se ele não houvesse inspirado ar bastante para encher uma bola de gás, em seguida tropeçando em um pé do sofá. Quando espiei para a fonte de tais ruídos, vi a bolsa bordada de KM deslizando pelo encosto do sofá até vir descansar no assento, com um nítido chocalhar. D&D, a quem eu julgara envolto em seu habitual e sombrio nervosismo quando sentado à mesa, emergiu em torno do lado do sofá, e deslizou algo para o bolso direito de seu surrado paletó de tweed. Ele puxou a aba do bolso sobre o mesmo e tentou intimidar-me. Que patética criatura era aquela coisa! Parei de mover-me, sorri para o coisa e, em voz muito tranqüila, perguntei-lhe o que estava fazendo. Penso que o coisa esteve perto de desmaiar. Falei que se ele repusesse o objeto roubado em seu lugar, imediatamente, eu me manteria de boca fechada. O nojento covarde exibiu-me os dentes em um sorriso forçado, e declarou que a srta. Mannheim lhe pedira para apanhar uma caixa de pílulas em um compartimento interno de sua bolsa, e que, se eu não estivesse tão concentrado em Rick Favor, decerto teria ouvido a conversa de ambos. Eu tinha observado KM falando em sussurros com D&D, como também notara o terrível e úmido regozijo do coisa ao ser assim favorecido, porém isso fora tudo. Em seguida, o coisa exibiu a prova de sua inocência, uma caixinha de prata para pílulas. Logo após meu retorno do banheiro, com outro laborioso jantar e seus hinos a Nietzsche e Wagner felizmente no passado, inseri-me na perfumada região entre ‘Rick’ (!!) e KM, aos quais relatei o que tinha visto e dito. KM esgrimiu a caixa de pílulas, e 2 implicou, sem sutilezas, que eu imaginara o roubo. Implorei a ela que vistoriasse o conteúdo de sua bolsa e, quando KM fez isso, pude observar, embora 2 nada visse, uma expressão divertida cruzar-lhe o rosto. ‘Quem rouba minha bolsa, rouba escórias’, disse ela. Agora excitado, o caro 2 se dispôs a enfrentar D&D, mas KM o deteve, dizendo-lhe que não fizesse isso, porque nada estava faltando, certamente nada valioso , — afinal de contas, ele lhe levara a inestimável caixinha, da qual ela extraiu uma diminuta pílula cor de marfim, que depois alojou, como um doce, sob sua língua pontuda.”

      

       — Duas semanas mais tarde, no entanto — disse Foil —, enquanto todos os demais cortejavam Lincoln Chancel, Driver enfiou no bolso uma pinça de prata para açúcar, pertencente a Georgina. Creeley o viu fazer isso. A primeira pessoa a quem contou foi Merrick Favor, que o chamou de degenerado, acrescentando que, se não parasse de difamar Hugo Driver, esmurrava-lhe a cara.

       — Por falar em degenerados — disse Andrew Martindale, de sua distante poltrona — o lunático que escapou da prisão no Connecticut está à solta em Springfield, aquele... como é mesmo que se chama? Dick Dirt?

       — Dart — disse Nora em voz rouca, e pigarreou. — Dick Dart.

       — Ele estava em um motel, no outro lado da cidade. Quando a polícia chegou lá, tudo que eles encontraram foi um cadáver cortado em pedaços, em um dos quartos. Nem sinal de Dart. O repórter disse que o corpo parecia uma aula de anatomia.

       O rosto de Nora ficou em brasa. Foil a observava.

       — Sente-se bem, sra. Eliot?

       — Os senhores têm que viajar para Provincetown e nós os estamos retardando...

       — Deixe que eu me preocupe sobre chegarmos a Cape Cod em tempo. Tem certeza de que está bem?

       — Tenho, claro. Apenas... — Ela tentou inventar uma explicação razoavelmente plausível para sua indisposição. — Moro no Connecticut, em Westerholm e, na realidade, conheci algumas das vítimas de Dick Dart.

       Andrew Martindale pareceu solidário, Mark Foil, preocupado.

       — Que terrível para você... Chegou a conhecer esse Dart?

       — Ligeiramente — respondeu ela, e tentou sorrir.

       — Gostaria de uns dois minutos de descanso?

       — Não é preciso, obrigada. Eu preferiria ouvir o resto.

       Foil tornou a olhar para o livro aberto em suas mãos.

       — Vejamos se consigo resumir isto. Lincoln Chancel chegou conforme o programado e imediatamente transformou Hugo Driver em uma espécie de criado, incumbindo-o de pequenas missões e, de um modo geral, explorando-o em todos os sentidos. Driver parecia enaltecido naquele papel, como se esperasse conservar o emprego quando o mês terminasse. O pobre Creeley foi mantido no gelo. Suponho que Merrick Favor mencionou a uma ou duas pessoas as acusações feitas por ele e que, depois disso, tanto Creeley como Katherine Mannheim perderam as boas graças de sua anfitriã. Ela mais do que Creeley porque, na realidade, Katherine rapidamente ficou absorvida em sua “inescritura”, seja lá o que isso signifique, a ponto de perder alguns jantares para trabalhar nela. Isto a deixou em tal desfavor, que todos começaram a achar que seria apenas uma questão de tempo antes que Georgina a mandasse embora, como era seu costume se um hóspede a decepcionasse seriamente.

       “Certa noite, todos eles tomaram parte em uma cerimônia chamada ‘o Definitivo’, que acontecia em uma área com o nome de Vale de Glen. Nada mais sei a respeito, exceto que era algo enfadonho. Tudo quanto Creeley relatou em seu diário, foi: ‘O Definitivo, ahhhh! felizmente terminou.’ No dia seguinte, entretanto, começou todo o excitamento. Depois do almoço, Creeley saiu para um passeio pelos jardins. Merrick Favor o seguiu, deu-lhe um tapinha no ombro, e Creeley quase desfalece. Por um segundo, pensou que Favor perdera a paciência e ia esmurrá-lo, mas, em vez disso, ele lhe pediu desculpas. Hugo Driver era realmente um ladrão ou lhe despertara fortes suspeitas. A seguir, Favor explicou-se.

       “Ele estivera seguindo Katherine Mannheim pelos jardins, esperando ter uma palavra a sós com ela, mas a cada vez que a jovem se sentava por um momento, um dos outros homens surgia por uma abertura na sebe e sentava-se ao seu lado. O último tinha sido Driver, e Favor os vira trocando algumas palavras, até que ela abandonou o banco e desapareceu de vista, através de uma passagem na sebe. Favor começara a caminhar para a jovem, quando viu Driver perceber que ela deixara a bolsa jazendo meio aberta em cima do banco. Então parou, a fim de ver o que acontecia. Driver relanceou os olhos em torno — Foil imitou o rápido movimento de um homem não desejando ser observado — e chegou mais para perto da bolsa. De onde se encontrava parado, Favor não pôde ver o outro remexendo no conteúdo da bolsa, e Driver era esperto o bastante para não olhar as próprias mãos. De qualquer modo, Favor estava bem certo do que acontecia, e quase certo de ter visto Driver guardar algum tipo de objeto em seu bolso do paletó, de modo que saiu de seu esconderijo e enfrentou o malandrinho. Driver negou tudo. Chegou a dizer que estava farto daquelas acusações e pretendia queixar-se a Georgina. Dito isto, afastou-se. Favor entregou a bolsa à srta. Mannheim e contou-lhe o que vira. Quando examinou a bolsa, ela riu e disse: ‘Quem rouba minha escória, escória rouba.’ Nessa noite, ela desapareceu.”

       — Depois que Favor julgou ter visto Driver roubando algo da bolsa dela — disse Nora.

       — Exatamente. Ela não apareceu para o jantar. Georgina ficou irritada e desforrou em todos os presentes, inclusive em Lincoln Chancel. Mais tarde, nessa mesma noite, Creeley saiu para uma caminhada e encontrou Chancel e Driver perto do chalé de Bill Tidy. Chancel mostrou-se extraordinariamente grosseiro com ele. Disse-lhe que parasse de ficar espionando. Na noite seguinte, mais uma ausência de Katherine Mannheim e então, depois do jantar, Georgina guiou o grupo inteiro até o chalé Pão de Mel, a pretexto de ver se a srta. Mannheim estaria adoentada. Todos puderam perceber que, a menos que Katherine Mannheim fosse encontrada ardendo em febre e fraca demais para sair da cama, Georgina iria expulsá-la no ato. Em vez disso, no entanto, ela se fora. Havia desaparecido em algum momento entre a tarde anterior e aquela noite. Georgina nem mesmo pareceu surpresa, escreveu Creeley. Comportou-se como se já esperasse encontrar uma porta sem trancar e um chalé vazio. “Lamento dizer”, falou ela, “que a srta. Mannheim parece ter pulado o muro.” E isso foi tudo. Como tinha o telefone de uma das irmãs da jovem, telefonou para ela, pedindo-lhe que retirasse as poucas coisas deixadas por ela no chalé. A irmã chegou no dia seguinte. Não tinha idéia do possível paradeiro da srta. Mannheim. Ela não se encontrava em seu apartamento de Nova York, e tampouco falara com alguém da família. Era uma pessoa imprevisível, e anteriormente já desaparecera de lugares onde não se sentia à vontade. Entretanto, sua irmã estava muitíssimo preocupada.

       — Imaginando-a morta — disse Nora.

       — Você deve saber que a srta. Mannheim tinha um coração fraco. A irmã receava que ela pudesse ter entrado na floresta e sofrido algum ataque cardíaco, de modo que insistiu em chamar a polícia. Georgina ficou furiosa, mas cedeu. Durante dois dias, a polícia de Lenox interrogou os hóspedes e a criadagem em Shorelands. Eles vasculharam o terreno e o bosque. Por fim, parecia bastante claro que ela fugira e, uma semana mais tarde, o verão chegava ao fim.

       — Então, houve todas aquelas mortes — comentou Nora.

       — Foi como uma maldição. Georgina deve ter julgado necessária alguma espécie de renovação, porque imediatamente pagou por uma grande quantidade de extensas reformas. Seja como for, aquelas mortes lançaram uma longa sombra sobre a propriedade.

       — Vai haver uma longa sombra sobre nós — disse Andrew Martindale.

       — Só mais um minuto. — Foil consultou seu relógio e saltou um grosso chumaço de páginas. — Quero que você ouça algo do final, para que fique sabendo tanto quanto eu sobre a morte de Creeley. — Ele tornou a erguer os olhos. — Caso descubra algo que possa lançar luz sobre este caso, eu ficaria grato se me deixasse saber. Sei que isto não é provável, porém mesmo assim eu lhe peço.

       — Comunicarei ao senhor qualquer coisa que descobrir — prometeu Nora.

       — Isto é tão enigmático! Aqui está o que Creeley escreveu em seu diário, três dias antes de acabar com a vida:

      

“De repente, um facho de luz atravessa a depressão em que tenho vivido desde que parti de Shorelands. Parece que, afinal de contas, existe esperança, surgida de uma grandemente Inesperada Procedência. Interesse por lugares altos! Que abençoada reviravolta, se tudo acontecer como deveria!”

      

       — Ou então isto, escrito no dia seguinte:

      

“Nada, nada, nada, nada, nada. Terminado. Acabado. Eu já devia saber. Pelo menos, não tagarelei para MF. Que cruel, ser escrito somente para ficar inescrito!”

      

       — E é isso, isso é tudo, essa foi a última anotação. Não tive notícias dele em nenhum desses derradeiros dias. Quando tentei ligar, a telefonista me disse que o telefone dele estava fora do gancho, e então presumi que Creeley estivesse trabalhando. Eu sabia que ele se sentira infeliz por muito tempo, de maneira que era bom imaginá-lo trabalhando com afinco. Entretanto, Creeley nunca ficou mais de três dias sem pelo menos falar comigo, e no dia seguinte, quando continuei sem conseguir ligar para ele, após atender meu último paciente peguei o carro e fui até seu apartamento.

       Foil parou de falar por um momento.

       — Era um dia sombrio, miserável. Enregelante. Havíamos tido um inverno terrível. Creio que levamos cerca de um mês sem ver a luz do sol. Cheguei ao prédio em que ele morava. Creeley vivia no andar de cima de uma casa de dois pavimentos, com entrada privativa para seus aposentos. Depois que saí do carro, escalei um banco de neve e ergui o rosto para as janelas dele. Todas as luzes estavam acesas. Subi os degraus até a entrada e apertei a cigarra. Os vizinhos do andar de baixo, donos do prédio, estavam fora, e pude ouvir o cachorro deles latindo. Tinham uma collie chamada “Lady”, nervosa como todos os collies. É um som desolado, caso não saiba, quando um cão fica latindo em uma casa vazia. Creeley não atendeu. Imaginei que ele houvesse aumentado o volume de seu rádio para sufocar o som dos latidos, pois durante o dia era assim que costumava fazer: aumentando e diminuindo o volume do aparelho. Ele não se incomodava, porque quando estava escrevendo ouvia música o tempo todo. O único problema em aumentar demais o volume era que às vezes não dava para ouvir a cigarra tocando. Toquei-a mais algumas vezes. Quando, mesmo assim, não o ouvi descendo a escada, usei minha chave e entrei, como já fizera centenas de vezes antes.

       “Mal entrei, ouvi seu rádio ligado a todo volume. Tocava ‘Let’s Dance’, a música-tema de Benny Goodman. Era um daqueles antigos programas radiofônicos, habituais na época. Subi a escada chamando por ele. ‘Lady’ estava a ponto de enlouquecer. Antes que chegasse ao topo da escada, comecei a sentir um cheiro estranho. Devia ter reconhecido imediatamente que tipo de cheiro era aquele. Abri a porta da sala de estar, porém ele não se encontrava ali. Gritei seu nome bem alto e baixei o volume do rádio. O infernal cachorro latiu ainda mais forte. Bati na porta do banheiro e espiei na cozinha. Depois tentei o quarto.

       “Creeley jazia em sua cama. Havia sangue por toda parte. Em todo canto. Ele usara a espingarda que o pai lhe havia dado em seu décimo sexto aniversário, quando ainda tinha esperanças de passatempos masculinos normais para seu filho. Fiquei em estado de choque. Eu simplesmente desliguei. Tive a impressão de haver ficado lá muito tempo, mas talvez fossem apenas uns dois minutos. Após um momento, liguei para a polícia e esperei, como um robô, até eles chegarem. E foi assim. Por mais que eu tentasse — e tentei bastante — jamais entendi por que ele fez isso.”

      

— POIS BEM, EU ENTENDO por que ele fez isso. — Harwich saiu da entrada de carros e ganhou a Oak Street, sacudindo os ombros várias vezes, como se tentasse livrar-se do ambiente daqueles últimos trinta minutos. Inclinando-se de lado, olhou-se no retrovisor e afofou os apertados anéis grisalhos do seu cabelo. — Mark é um cara legal, porém não quer ver a verdade.

       Nora apontou para uma entrada de carros, um pouco adiante deles, no outro lado da rua.

       — Pare ali.

       Harwich encarou-a, surpreso.

       — Como disse?

       — Quero ver os dois partindo.

       — Você quer... Oh, já entendi! — Ele freou ligeiramente à frente da entrada de carros, entre duas alas de um muro de pedra, depois deu à ré. — Viu? Pensa que não sei do que se trata, mas eu sei.

       — Que ótimo — respondeu Nora.

       — Você quer vê-los deixando a casa sãos e salvos.

       — Fico contente por você não se incomodar.

       — Eu não disse que me incomodava. Sou uma pessoa muitíssimo agradável.

       — Então, diga-me por que Creeley Monk suicidou-se.

       — Nada mais óbvio. O sujeito tinha chegado ao fim de sua linha. Antes de mais nada, era um jovem da classe trabalhadora, que pretendeu fazer parte da alta sociedade. A partir do momento em que entrou naquela escola, toda a sua vida foi uma representação. Para piorar as coisas, ele não conseguiu manter seu sucesso inicial. Imaginou que Shorelands o ergueria a um novo nível, porém ninguém quis publicar seu próximo livro. Um sopro de interesse o deixava em êxtase, mas quando se dissipava, ele ficava arrasado. Então, tirou a espingarda do armário e acabou com tudo. Simples, não?

       Aquela inteligente dissecação, rápida e convincente, como se fosse um cadáver sob um escalpelo, deixou Nora irracionalmente aborrecida; Harwich reduzira o relato de Mark Foil ao diagrama vazio do histórico de um caso médico.

       — De qualquer modo, você fez lá um bom trabalho — disse Harwich. — Apenas há esse probleminha sobre o tal editor que surge na história. Deu para perceber? Nós o encontramos umas duas vezes? Dentro em breve Mark ficará sabendo que este livro não passa de uma cortina de fumaça, e então terá um monte de perguntas a fazer-me.

       — Nada vai acontecer. Eu disse que tinha contrato para um livro, mas acontece que ainda não o escrevi. Primeiro vou escrever esse livro, depois levá-lo a um editor.

       — Ainda assim, continuo em posição delicada. Seja como for, lá estão eles, sãos e salvos! — Ele apontou a cabeça para um comprido carro cinza, de graciosa aparência, descendo a Rua Oak, à frente deles. — Inteiramente despreocupados, como de costume!

       — Você não simpatiza com eles, certo?

       — Por que simpatizaria? — explodiu Harwich. — Aqueles dois sujeitos vivem em um mundo que providencia tudo para eles. São tão presumidos, tão enamorados, tão satisfeitos consigo mesmos, partindo para Cape Cod no novo Jaguar de Martindale, enquanto seus pacientes sobem pelas paredes.

       — Pensei que ele estivesse aposentado.

       — Mark aposentou-se, exceto de todos os negócios importantes, dos conselhos estaduais e dos comitês nacionais. Ao que me consta, Andrew tem uns seis empregos. Chefe de psiquiatria aqui, professor de psiquiatria acolá, chefe disso e daquilo, uma enorme clínica particular transbordando de pintores e escritores famosos, sem falar em seus livros. Os Limites do Paciente Fronteiriço. Manual de Psicanálise. William James, Experiência Religiosa e Freud... Esqueci os outros.

       Harwich ligou o motor e afastou-se da entrada para carros, divertido com o espanto dela.

       — Eu pensei que... — Nora não quis admitir o que tinha pensado. — Como ele pode tirar um mês de folga? Oh, esqueci. Estamos em agosto, quando todos os “doutores da cabeça” vão para Cape Cod.

       — Correto, mas Andrew passa o seu mês de folga dirigindo uma clínica em Falmouth. E escrevendo. É um rapaz muito ocupado. — Harwich dirigiu-lhe um longo e apreciativo olhar. — Ei, por que você não tira também uma folga? Não devia ficar perambulando sozinha por aí, enquanto o seu maluco estiver à solta. E não faz sentido tentar encontrar esse tal Tidy.

       — O que acha que aconteceu a Katherine Mannheim?

       — É fácil responder. Todos ficaram pensando que ela havia fugido ou morrido na floresta, mas não podiam ver que as duas coisas eram verdadeiras. Ela sai à noite, carregando sua mala através da floresta, o peso é demasiado para suas forças, uma coruja a assusta, e puf! Dois tiras retardados fingem vasculhar a floresta e, surpresa... surpresa... não a encontram. Nunca estive em Shorelands, mas já vi a propriedade, e, mesmo nesta época, estamos falando de uns cinco quilômetros quadrados de matagal fechado. Um exército não conseguiria encontrá-la.

       — Você deve estar certo — disse Nora, olhando despreocupadamente para as casas suburbanas que iam ficando cada vez mais próximas umas das outras, à medida que os terrenos encolhiam e surgiam os balanços, piscinas rasas e bicicletas nas entradas para carro, como tinha visto enquanto Dick Dart a levava para Fairfield, no carro de Ernest Forrest Ernest. — Oh, meu Deus!

       Harwich olhou para ela, preocupado.

       — Eu sei por que Lincoln Chancel foi a Shorelands!

       — Foi por dinheiro, já lhe disse.

       — Não pelo motivo que imagina. Ele tentava recrutar Georgina Weatherall para sua causa fascista, o Movimento Americanista. Lincoln Chancel apoiava secretamente os nazistas. Chegou a reunir um punhado de simpatizantes milionários, porém precisaram manter-se quietos durante a guerra. Nos anos cinqüenta, Joe McCarthy atraiu-os para o anticomunismo, segundo imagino, e eles tiveram de acompanhá-lo.

       Harwich olhou desconfiadamente para ela.

       — Devo dizer que você sabe como animar as coisas! Permita-me levá-la para jantar fora esta noite. Conheço um excelente restaurante francês, nos arredores de Amherst; fica um pouco fora de mão, mas vale a pena. Comida espetacular, luz de velas, os melhores vinhos... Ninguém nos verá, e poderemos ter uma agradável e longa conversa.

       — Está preocupado com a hipótese de sermos vistos?

       — Temos de manter você em sigilo. Nesse meio tempo, encomendarei uma pizza. Não há muita comida em casa. Você poderá tirar uma soneca e eu irei ao hospital. Não atenda a telefonemas e nem abra a porta para quem quer que seja, está bem? Manteremos o mundo ao largo durante algum tempo e refaremos nosso relacionamento.

       Nora reclinou-se contra o assento e fechou os olhos. Instantaneamente, estava de pé em uma clareira de floresta, orlada por altas pedras fincadas no solo. Contando dinheiro, que separava em pilhas ordenadas sobre uma mesa de mogno trabalhado, colocada entre duas rochas eretas, Lincoln Chancel erguendo os olhos e encarando-a. Infelicidade e angústia transbordavam desta cena, e Nora estremeceu, despertando sem perceber que tinha adormecido. A Alameda Longfellow desfilava ao longo dos vidros do carro, como uma tela pintada.

       — Neste momento, alguém precisa tomar conta de você — declarou Harwich.

       Pressionando um botão existente em seu visor, ele ergueu a porta da garagem e dirigiu para dentro, estacionando o carro ao lado do Ford verde de Sheldon Dolkis. Assim que saiu do carro, Harwich foi até a parede e apertou um interruptor que fez a pesada porta baixar com um ruído chocalhante. Uma lâmpada nua pendia do teto e apagou-se automaticamente. A porta chocou-se barulhentamente contra o concreto. Nora se sentia muito cansada para mover-se. A forma difusa de Harwich passou pela frente do carro, em direção ao lado direito da garagem.

       — Você está bem? — perguntou ele.

       Em seguida, abriu uma porta interna. Um painel de claridade acinzentada apagou a frente de seu corpo e transformou-lhe os cabelos em uma espécie de halo prateado.

       — Acho que eu não sabia o quanto estava cansada...

       Nora arrastou-se para fora do assento incrivelmente confortável, e percebeu que uma figurinha, semelhante a um pardal, estava encarapitada em cima do capô do carro. Não, não era um pássaro, mas uma mulher alada, em posição de levantar vôo. Isto significava algo, mas o quê? Oh, sim, queria dizer que, entre seus bens, Dan Harwich tinha a posse de um Rolls-Royce. Que curioso! Quanto mais fundo ela descia no mundo, mais alto chegava. A porta do carro se fechou com um forte baque de caixa-forte de banco, e Nora passou diante de Harwich, que a esperava para entrarem na casa.

       — Tudo se nivela a você — disse ele, atrás dela.

       Harwich pousou uma mão compreensiva no ombro de Nora e espremeu-se no estreito espaço da entrada dos fundos, depois a beijou ligeiramente e a levou através da cozinha até a sala de estar. Ela ficou parada e constrangida, no meio de um bocejo, enquanto ele disparava rapidamente para diante e puxava um cordel, fazendo avançar cortinas escuras que encobriam a janela com sacada.

       — Vamos acomodá-la — disse Harwich, empurrando-a com delicadeza para a escada interna.

       Passaram pelo armário de roupas de cama e entraram no quarto de hóspedes, onde ele a conduziu até a cama e removeu-lhe os sapatos, assim que ela se deitou. Nora tornou a bocejar, agora com vontade.

       — Você pegou no sono por dez minutos, dentro do carro.

       — Não peguei — protestou ela, soando infantil.

       — Pegou — insistiu ele, imitando-lhe a voz teimosa. — Entretanto, não foi um sono muito tranqüilo. Você emitiu uma série de ruídos angustiados.

       Harwich começou a massagear-lhe a sola do pé direito.

       — Oh, que sensação maravilhosa!

       — Por que não tira essa camiseta e desabotoa seu jeans? Eu a ajudarei a puxá-lo pelas pernas.

       — Não — replicou ela, abanando a cabeça para um lado e para outro, sobre o travesseiro.

       — Irá sentir-se muito mais confortável. Depois poderá enfiar-se debaixo das cobertas. Ei, eu sou médico, sei o que é melhor para você, ouviu?

       Obedientemente, ela sentou-se e despiu a camiseta branca de gola em V, virando-a pelo avesso. Depois a jogou na direção dele.

       — Que belo sutiã — disse Harwich. — Agora, desabotoe a cintura desse jeans.

       Protestando, ela encolheu o ventre e desabotoou o botão, puxou o zíper para baixo e depois o jeans sobre os quadris. Harwich o foi descendo e, em um rápido movimento, o tecido das pernas sussurrou sobre as coxas, joelhos e pés de Nora.

       — Calcinha combinando com o sutiã! Você está em dia com a moda... — Ele ergueu o lençol e a colcha, a fim de que ela se enfiasse sob ambos, depois a cobriu, não sem ajeitar as cobertas em torno do seu corpo durante alguns instantes. — Pronto, está acomodada, queridinha.

       — Que sujeito! — ela se ouviu dizendo, e ergueu-se um pouco para acrescentar: — Dê-me cerca de uma hora, está bem?

       As palavras soaram distantes em seus ouvidos, enquanto suaves faixas coloridas, em movimento de câmara lenta, começaram a esfiapar-se dos poucos objetos visíveis através das fendas de seus olhos, um desses objetos sendo Dan Harwich a caminho da porta.

       O amplo círculo de relva no interior das pedras altas assemelhava-se a um palco. Nora moveu-se para diante, enquanto Lincoln Chancel prendia com faixas as pilhas de notas à sua frente e, de uma em uma, as ia colocando em uma sacolinha, tão cuidadosamente como se fossem ovos crus. Ele deu a Nora um ríspido e raivoso olhar, em seguida retornando à sua tarefa.

       — Você não é parte daqui — disse ele, parecendo falar com a sacolinha.

       Sua feiúra superava aquela percebida na famosa foto, onde ela parecera um subproduto da fúria. Era uma feiúra total, dominadora em sua própria força.

       — Você não tem sangue nas veias. Bastam alguns fracassos e cai de joelhos, choramingando, Ajude-me, papai, não consigo fazer isto sozinho! Patético. Quando os outros falam com você, tudo quanto ouve é o que já sabe.

       — Eu descobri por que você foi a Shorelands — disse ela, procurando ao máximo disfarçar o medo e a impotência que sentia.

       — Considere-se demitida! — exclamou ele, enviando-lhe um frio e feroz olhar de triunfo. Depois puxou um grosso charuto do bolso interno do paletó, arrancou a ponta com os dentes e o acendeu com um fósforo que lhe surgiu entre os dedos. — Vá embora! Este não é trabalho para uma garotinha!

       — Foda-se! — replicou Nora.

       — Com todo o prazer. — Lincoln Chancel sorriu para ela como um dragão, através de um jato de fumaça. — Mesmo sendo você magrela demais para o meu gosto. No meu tempo, gostávamos de nossas mulheres completas — matronais, costumávamos dizer. Maminhas como almofadões, nádegas em que a gente podia afundar as mãos. Eram mulheres que nos deixavam de mastro em pé e gostavam disso. Eu gostei também de outros tipos — das miúdas. Todo homem grandalhão quer foder uma coisinha dessas. Ficando em cima, a gente tem a sensação de que vai quebrar os ossos dela ou parti-la ao meio. Entretanto, você tampouco é desse tipo.

       — O tipo de Katherine Mannheim.

       Ele tirou o charuto da boca e soprou um trêmulo anel de fumaça, com o cheiro de folhas apodrecidas.

       — A fujona. — Ao invés de perder a forma e subir, dissolvendo-se no ar, o trêmulo anel de fumaça alargou-se, começando a estremecer na direção de Nora. — A pequena cretina não tinha os modos de uma prostituta.

       O anel de fumaça flutuou até o meio do círculo relvado, parou e torceu-se em coisa nenhuma. Fingindo que ela já seguira suas ordens e fora embora, Chancel fechou o cordel da sacolinha sobre o último punhado de notas, e a pergunta falou por si mesma, dentro da cabeça de Nora. O que foi que ela disse...

       — O que foi que ela disse, enquanto a foto era batida? — Chancel olhou para ela e rolou o charuto na boca.

       — Quem?

       — Katherine Mannheim.

       — Eu a convidei delicadamente a sentar-se em meu colo, e ela disse: “Já vi suas verrugas, não preciso sentir uma também.” Tidy e aquele idiota do Favor riram, os dois. Até mesmo o maricas sorriu, bem como aquele convencido, de nome engraçado. Austryn Fain. Que tipo de nome é Austryn Fain? — Ele apontou seu espantoso nariz para ela, como se fosse uma arma. — Você não sabe de nada! Nem mesmo leu os livros certos! Caia fora daqui! Vá perder-se na floresta!

       Nora soltou um grito, e descobriu o rosto penumbroso e tranqüilizador de Harwich inclinado para ela.

       — Ei, isso dói! — exclamou ele, mantendo o sorriso. — Você me bateu!

       — Sinto muito. Tive um pesadelo.

       Uma perna comprida roçou a dela, e Nora apertou os olhos, ao encará-lo.

       — Você sempre faz tanto barulho quando dorme?

       — Saia desta cama. O que está fazendo aqui?

       — Estou tentando acalmá-la. Vamos. Aqui não há mais ninguém além de mim.

       Nora deixou a cabeça cair novamente no travesseiro.

       — Ninguém irá magoá-la. O dr. Dan está bem aqui para impedir que isso aconteça. — Ele deslizou para mais perto e enfiou um braço entre a cabeça dela e o travesseiro. Um braço envolvido pela manga de uma camisa de macio algodão. — Em minha opinião médica, você precisa de um abraço.

       — Isso — disse ela, agradecida por esta simples gentileza.

       — Feche os olhos. Só irei embora daqui quando você tornar a dormir.

       Nora girou para os braços dele. Depois enfiou um canto do travesseiro entre sua cabeça e o ombro de Harwich. Ele acariciou-lhe os cabelos e começou a afagar seu braço nu.

       — Sua cirurgia — murmurou ela.

       — Ainda falta muito tempo.

       — Eu nunca durmo de dia — disse Nora, e em segundos revelou-se uma mentirosa.

      

Quando ela tornou a abrir os olhos, Harwich passava uma mão cálida por seu braço e ajeitava-lhe o lençol nos ombros. Vários mostradores e escalas internos, não inteiramente subjetivos, informaram-na de que passara um significativo tempo dormindo. Que horas seriam agora? Depois perguntou-se se Dick Dart não teria sido preso, desde que eles haviam deixado a casa de Mark Foil. Harwich passou um braço por sua cintura.

       — Você não tinha uma cirurgia para fazer logo? — perguntou ela.

       — Demorou menos tempo do que imaginei.

       — Correu tudo bem?

       — Tudo, exceto pela morte do paciente.

       Ela girou o corpo para encará-lo e viu sua cabeça apoiada em uma das mãos, sorrindo.

       — Brincadeira. Barney Hodge ainda viverá para arrancar mais mil torrões de terra nos campos de golfe do país.

       — Por quanto tempo dormi?

       — Pela maior parte do dia. São mais ou menos cinco e meia da tarde.

       — Cinco e meia?

       — Quando voltei, vim dar uma espiada em você, e a encontrei como que desacordada, porém tranqüila. Já começava a ficar com a impressão de que você voltava a lutar na guerra, a cada vez que pegava no sono.

       — Segundo Davey, eu não fazia outra coisa.

       — Não em minha casa. — Inclinando-se para frente, ele roçou os lábios na testa dela. — Minha casa é boa para você.

       — E você também — disse Nora.

       — Gosto de pensar que sim.

       Harwich ergueu-lhe o queixo com a mão e a beijou delicadamente nos lábios.

       — O perfeito anfitrião.

       — A hóspede perfeita.

       Ele tornou a beijá-la, agora demorando-se e bem mais a sério.

       — É melhor eu pular desta cama, antes que façamos alguma tolice — disse ela, aliviada por ele estar vestido. Então percebeu o braço nu, visível acima da coberta. — Você tirou a camisa.

       — Para ficar mais confortável. Amarrota menos. Por outro lado, uma camisa parecia francamente inamistosa. — Ele a abraçou pela cintura e a puxou para si, sussurrando: — As calças também. — Ela enrijeceu, e Harwich acrescentou: — Estamos sozinhos aqui. Não temos que atender o telefone e nem abrir a porta. Por que não passamos algum tempo juntos? Quero que sejamos bonzinhos um com o outro. Você é uma pessoa espetacular e, de fato, nós nos preocupamos conosco.

       — Epa! Um momento! — exclamou ela. — O que você está fazendo?

       Harwich sorriu para ela.

       — Nora, uma das melhores coisas sobre este nosso adorável relacionamento é que sempre terminamos na cama. Você vai embora e faz o diabo lá fora, enquanto eu permaneço aqui no meu covil, casando com a pessoa errada por puro tédio, suponho, porém cedo ou tarde você sempre irrompe novamente em minha vida e mais uma vez tornamos a carregar nossas baterias. Não é verdade?

       — Céus! — exclamou Nora.

       — É sempre a mesma coisa e, desta vez, você está mais deliciosa do que nunca! Apenas ficou fora de si, com tantas preocupações...

       — Dificilmente seriam apenas preocupações.

       — ...e veio direto para cá, sabendo que é parte minha. Estamos os dois nesta pequena bolha de tempo, feita expressamente para nós. Dentro dessa bolha, podemos ajudar-nos, podemos curar-nos um ao outro. Depois de curados, voltamos ao mundo e encaramos todas as outras facetas asquerosas da vida.

       — Não estou bem certa disso — falou Nora. — Um momento; preciso ir ao banheiro, antes de tomar quaisquer decisões aqui.

       — Todas as decisões já foram tomadas há muito tempo atrás — disse Harwich. — Isto é o resultado final.

       Nora sentiu-se tomada por uma impetuosa emoção que não conseguia identificar, a qual a fez levantar-se da cama, guiando-a para o banheiro. Harwich disse:

       — Estarei aqui quando você voltar.

       Nora, entretanto, nem o ouviu. Trancou a porta e sentou-se sobre o vaso, com o rosto ardendo. A enorme sensação dentro dela recusava-se a ser identificada, mesmo ao provocar as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Harwich queria cuidar dela, ela precisava dos cuidados dele. Isto parecera ser verdade.

       — Entretanto, não é forçoso transar — sussurrou para si mesma. — Não preciso que ele me foda. — Acionando a descarga, ela olhou em torno para os objetos nas prateleiras do banheiro, a touca da ducha pendurada, o macio roupão de banho de hotel, o xampu e o condicionador, o perfume... — Oh, meu Deus! — suspirou para si mesma. — Que idiota estou sendo!

       Levantando-se, lavou as mãos e envolveu o corpo no espesso roupão de banho, tudo isso enquanto via seus sentimentos ordenarem-se em novas posições. O mais forte de tais sentimentos — não humilhação, despeito, arrependimento ou inclusive o fantasma de sua antiga fixação em Dan Harwich, mas pura e simplesmente raiva — enviou-a de volta ao quarto, a fim de enfrentá-lo.

       — Para que isso? — perguntou ele, referindo-se ao roupão.

       — Para o meu amor-próprio — respondeu Nora — por mais destroçado que esteja.

       — Ora, ora! Venha, Nora, sente-se aqui e fale comigo. Eu quero ajudá-la.

       — Você já me ajudou — disse ela, movendo-se para a poltrona sobre a qual ele lhe depositara as roupas. O jeans de Harwich estava dobrado no encosto, a camisa desfraldada como um paletó, vestida também no encosto. — Você me recebeu aqui, alimentou-me, levou-me para ver Mark Foil. Sou-lhe muito grata. Obrigada, Dan.

       — Você não está grata, mas perturbada. Eu compreendo, Nora. Viveu uma terrível experiência, e isso continua a afetá-la. Acha que não pode confiar em ninguém e, quando procuro confortá-la, todos os sinos começam a repicar. De repente, acredita que nem em mim pode mais confiar. Parte da culpa é minha, posso ver isso.

       A meio caminho para a poltrona, ela deu meia-volta e o encarou, dobrando os braços no peito.

       — Que parte é essa, Dan?

       — Sou um exagerado, quando acredito nas coisas.

       — Céus, você respondeu mesmo!

       — Quero dizer que não a imaginava capaz de interpretar-me mal a esse ponto. Tem a minha palavra, Nora, de que eu não tinha a menor intenção de fazer algo que você não desejasse.

       — E uma das melhores coisas sobre o nosso relacionamento é que sempre terminamos na cama. Assim, depois de sentir-me bem e em segurança, você de fato me havia ajudado e faria sexo comigo.

       — Vamos encarar os fatos, Nora: nós vamos para a cama juntos, e ambos nos sentimos melhor depois disso.

       — Você se sente tão melhor depois disso, que dá o fora e se casa. Você sempre teve namoradas, não é mesmo, Dan? Quando uma esposa finalmente o descobre dando o fora porque se entediou, você já tem uma substituta dela, pronta para assinar o nome no contrato pré-nupcial. Na primeira vez em que apareci aqui, você me trouxe do motel para sua casa, a fim de conhecer Helen e dar a ela um motivo realmente bom para ir embora rapidamente, desta maneira deixando-lhe o campo livre para poder casar com Lark. Você não casaria comigo, eu sou maluca demais, não é mesmo?

       — Você não ia suportar a vida que levo, Nora. Aqui não há excitamento suficiente para você!

       Ela tornou a virar-se, chegou até a poltrona e enfiou-se em seu jeans, de costas para ele.

       — Sou louco por você. Acho-a uma mulher admirável.

       — Você não tem a menor idéia de quem eu sou. Sou o seu romance de bordo. — Nora abotoou o jeans e jogou o roupão para um lado, deixando Harwich boquiaberto. — Você ficou fascinado pelo caos que eu trouxe à sua existência presunçosa e monótona, mas quer mantê-lo à distância. É tempo de baderna com a emocional biruta do quarteirão e, terminado o divertimento, urge retornar à garota do círculo do convés principal, certo? — Ela lutava com a camiseta, tentava virá-la corretamente, mas, em sua agitação, conseguiu apenas enfiar a peça inteira em uma das mangas. Puxou o tecido para fora da manga e sacudiu a camiseta, até deixá-la pronta para vestir. — A garota cujas coisas estão espalhadas por todo o banheiro, a mesma que ligou para você duas vezes hoje de manhã, a que surrupia pequenas lembranças dos hotéis onde vocês dois ficam, quando saem juntos.

       — Nem toda a ficção do mundo está nos romances — comentou ele, fascinado.

       — Ela foi a mesma que lhe disse esta manhã que viria aqui, quando você mudou repentinamente de idéia e decidiu levar-me à casa de Mark Foil. Imaginou que pudesse driblar a terceira sra. Harwich por um ou dois dias. Sou arriscada demais para ficar aqui mais tempo do que isso, não sou?

       Harwich estava sentado na cama, com os braços em torno dos joelhos erguidos, olhando para ela com uma expressão de branda e meio divertida perplexidade. Hesitou por uma fração de segundo antes de falar, como se quisesse ter certeza de que ela finalmente terminara.

       — Você poderia parar de fantasiar e ouvir a verdade?

       — A única coisa que não entendi — falou Nora — é o motivo dela não dormir em seu quarto. Sinceramente, não digeri essa parte. Será que ela ronca como uma porca ou os dois estão reservando o dormitório principal para uma noite inteira juntos, depois do casamento? Algo assim como uma espécie de recompensa ou prêmio?

       Harwich inspirou fundo, inclinou-se para diante e abriu as mãos, com as palmas para cima, a imagem da razão sitiada.

       — O quadro inteiro que está descrevendo é pura invenção. Ele não é real. Dick Dart provocou um curto em seus circuitos, lembra-se? Enquanto você puder ter em mente quem sou eu, o eu real e não esse monstro que acabou de inventar, serei tão paciente e compreensivo como sempre. Talvez você não possa aceitar isso neste momento, porém é a pura verdade.

       Isto falou a todos os antigos sentimentos dela sobre Dan Harwich e sua justeza, seu firme, afetuoso e gentil carinho, enchendo-a de dúvidas. Este era Harwich, recordou a si mesma. Três anos antes, atirara-se para ele. Podia censurá-lo por aceitá-la? Era verdade. De bom grado, ajudara-o a acelerar o naufrágio do primeiro casamento.

       — Continue falando — pediu.

       — Não a culpo por sentir-se desconfortável sobre Lark. Entretanto, fui honesto sobre ela. Eu lhe disse que já saíamos juntos, quando você veio aqui da última vez. Não posso fingir que sempre fui um marido fiel, porque não tenho sido. Certo? Confesso. Eu atrapalho tudo. Fico entediado. Preciso do que você tem, dessa... sua essência. Entretanto, com toda franqueza, e estou dizendo a verdade, não tenho nenhuma noiva esperando nos bastidores.

       — Então, de quem são aquelas coisas no banheiro?

       Ele desviou os olhos por um momento, considerando a pergunta, depois tornou a fitá-la.

       — Está bem. De qualquer modo, tenha em mente que, na realidade, não tenho motivo algum para explicar isto ou seja o que for. Dá para você entender, não dá?

       — Dá. Então, esclareça-me.

       A irritada certeza dela começava a dissolver-se.

       — Que diabo, Nora, não sou nenhum monge! No decorrer de minha presunçosa e monótona vida, de vez em quando percebo que algumas mulheres realmente preferem ter seu próprio banheiro em separado. Assim, coloquei lá algumas escovas de dentes e outros objetos, apenas para uma emergência.

       — Você não mudou de idéia sobre levar-me para ver Mark Foil, só porque sua nova namorada disse que vinha para cá?

       — Não a censuro por deixar que estes últimos dias a tenham deixado suspeitando dos homens. Sei que não parece muito correto, isso de ir para a cama com você, mas juro que não tinha qualquer intenção de forçá-la a fazer sexo. Espero que acredite em mim.

       Ela suspirou.

       — Deus é testemunha, Dan, que eu quase...

       O telefone no quarto do final do corredor tocou uma, duas vezes, e o rosto de Harwich passou da mais ardente súplica para um espasmo de irritação, depois voltando a uma quase aproximação de inocente indiferença, antes que o aparelho tocasse uma terceira vez.

       — Não quer ir atender?

       — Isto é mais importante.

       — Poderia ser uma chamada do hospital.

       — Confie em mim, é apenas algum importuno.

       O distante telefone continuou a tocar: cinco, seis, nove, dez vezes.

       — Você não tem secretária eletrônica?

       Ele a ficou olhando inexpressivamente por um momento.

       — Desliguei a secretária daquela linha.

       — Por que faria isso? — Nora observou um aborrecimento e algo de vivaz e preocupado surgir no rosto dele. — Por quê, Dan?

       O telefone parou de tocar.

       — Acho que não foi uma idéia tão boa assim — respondeu ele. — Enfim, que diabo, ninguém é perfeito!

       — Seu filho da mãe! — Nora teve a sensação de haver sido esmurrada no estômago. — Seu verme pegajoso, egoísta e mentiroso! — A sensação em seu estômago aumentava. — Quase me fez dizer que ia voltar para a cama com você!

       — Ora, por que não volta, assim mesmo? Que diferença faz? Isto diz respeito a nós dois apenas. Ao diabo com os outros!

       — Ainda acha que tem uma chance, não é mesmo?

       — Reflita nisto. Eu estava protegendo seus sentimentos. Está bem, tenho uma amiguinha, conheci-a faz dois meses, e ela fica aqui de tempos em tempos. Não sei se vou casar com ela. Se não estou desejando que ela destrua o nosso relacionamento, por que você desejaria?

       Nora ficou olhando para ele fixamente, atônita.

       — Você é mesmo um perfeito filho da mãe! Rapaz, eu gostaria de saber o que você... Não, não, eu já sei.

       — Sabe o que penso de você? Oh, duvido muito que saiba. Entretanto, não perca tempo espremendo os miolos sobre isso, apenas pegue seu carro e vá embora. A essa altura, não vejo por que prolongar-se a situação. Decole! Foi bom conhecê-la, etc., etc.

       Nora pensou em jogar algum objeto pesado em cima dele, mas então compreendeu, com um triste e derradeiro choque de fracasso, que Harwich não valia o esforço.

       — Poderia responder a uma pergunta?

       — Se você insiste...

       — Por que essa mulher dorme aqui, em vez de no seu quarto? Aí está uma coisa que não entendi.

       — Por causa dos travesseiros — disse Harwich. — Se quer mesmo saber.

       — Dos travesseiros?

       — Ela é alérgica a travesseiros de penas, e eles são os únicos em que consigo dormir. Estes daqui são de espuma. Acho que dormir em um travesseiro de espuma é como fazer sexo com camisinha.

       Nora descobriu que podia sorrir.

       — Dan, não vejo muito futuro para você em seu terceiro casamento...

       O olhar dele endureceu, e a boca afinou-se como a de um lagarto.

       — A verdade, Nora, é que você sempre foi um pouco biruta. Ser biruta ficava muito bem no Vietnã, provavelmente ajudava a enfrentar a situação, mas tão certo quanto o inferno, isso não funciona mais.

       — Estou começando a perceber que você tem muito em comum com Dick Dart. — Ela caminhou ao longo da cama, em direção à porta. Harwich encolheu-se um pouco, tentando fingir que estava apenas procurando uma posição mais confortável. — De um modo geral, prefiro Dick Dart. Ele é muito mais sincero do que você.

       — Está vendo o que eu queria dizer? — indagou ele, com um sorriso tolo e pretensioso, agora que se via fora de alcance.

       Nora abriu a porta e olhou para ele, o mais calmamente que lhe foi possível.

       — Não está um pouquinho preocupado?

       — Por que não vai logo embora? Preciso dizer-lhe para nunca mais voltar aqui ou terá adivinhado isso por si mesma?

       — Aquele velho Ford na garagem está realmente estacionado bem perto de seu carro — disse ela, e fechou a porta ao sair.

       Do corredor, pôde ouvir os gritos dele, enquanto caminhava para a escada. Os gritos a seguiram através da cozinha. Quando ela ergueu a porta da garagem e deu partida no motor do carro, Harwich estava parado e nu na porta dos fundos, uma figura francamente absurda, de ventre protuberante, pernas finas de cegonha e pêlos púbicos grisalhos, gritando, mas demasiado receoso de ser visto pelos vizinhos, caso chegasse mais perto. Nora deu marcha à ré, sem tocar o Rolls.

      

— D-E-O-D-A-T-O — SOLETROU NORA.

       Durante os segundos em que o telefone permaneceu em denso silêncio, ela arrependeu-se de ligar para o empregado dos Chancels. Por que imaginara que Jeffrey não se comunicaria imediatamente com Daisy — ou Alden, se estivesse em casa — e até mesmo com a polícia? Quando foi tomada pela necessidade de falar com alguém de Westerholm, o enigmático Jeffrey parecera-lhe o candidato mais provável, embora, por um irracional momento, tivesse pensado em consultar Holly Fenn. Ela ainda desejava poder falar com Fenn, o que era uma prova absoluta — caso precisasse de alguma prova, após Harwich — de seu malfadado gosto por homens protetores. Um telefone começou a tocar, e Nora percebeu que ainda não considerara o que fazer, caso fosse atendida por uma secretária eletrônica. Moveu o fone, afastando-o um pouco do ouvido, e ouviu uma voz metálica dizer “Alô”. Seria a voz de Jeffrey? Ela visualizou um aposento apinhado de policiais, todos com fones de ouvido, inclinados para um gravador. Tornou a aproximar o receptor do ouvido, mais incerta do que nunca.

       Uma voz de homem, a de Jeffrey, tornou a soar.

       — Alô?

       Ela deu seu nome.

       Silêncio. Em seguida:

       — Nora! — Ela nunca o ouvira antes pronunciar seu nome sem chamá-la “sra.” Aliás, Jeffrey praticamente não a chamava por nome algum, exceto “senhora”. — Onde é que está?

       — Em Massachusetts.

       Houve uma pausa momentânea.

       — Preferiria que eu ficasse calado sobre isto? Ou gostaria que falasse confidencialmente a alguém em particular?

       — Oh, eu ainda não sei — confessou ela, compreendendo que “alguém em particular” significava Davey. As perguntas de Jeffrey estendiam-se à vida privada dele.

       Do outro lado da linha, Jeffrey considerou o que ela dissera.

       — Você está bem?

       — Acho que ainda não pensei nisso. Talvez esteja tentando decidir o que fazer. Está tudo muito complicado!. — Ela lutou contra a vontade de prorromper em lágrimas. — Jeffrey, sinto muito falar isso a você, mas a verdade é que, neste exato momento, não me sinto nem um pouco segura.

       — Não é de admirar — respondeu ele. — Todos os tipos de pessoas estão querendo encontrá-la.

       — Não me leve a crivá-lo de perguntas. Por favor, Jeffrey.

       Nora quase podia ouvi-lo pensar.

       — Tentarei dizer-lhe o que fazer, mas não desligue e nem desapareça do meu alcance, está bem? Não há ninguém ouvindo, estou sozinho em meu quarto, e você vai ficar ótima, desde que continue aí, pelo menos por enquanto. Está em um telefone público?

       — Estou — respondeu ela, sentindo diminuírem suas ansiedades.

       — Tudo bem. Foi uma boa coisa ter ligado para este número. Todas as outras linhas estão grampeadas.

       — Oh, Deus! — exclamou ela. — Eles ainda pensam que raptei Natalie Weil...

       — É o caminho que estão seguindo. — Uma ambigüidade pairou no ar, enquanto ele hesitava. — Pelo que ouvi dizer, não há muito sentido no que a sra. Weil vem dizendo. — Houve outro breve silêncio. — Aliás, não acredito que você tenha chegado perto dela.

       — E quanto a Davey?

       — Davey tem vivido sob um bocado de pressão.

       — Ele está hospedado com os pais?

       — Está. Dentro em breve, estará bem aqui.

       — Com você?

       — No meu apartamento. No que costumava ser o meu apartamento. Até ontem ele estava na casa de vocês, pelo menos à noite, mas com todo o excitamento, o sr. Chancel convenceu-o a mudar-se para cá. Ele fincou pé sobre continuar dormindo em seu antigo quarto, mas depois que o sr. Chancel... hum... modificou temporariamente as condições de meu emprego, ele concordou em ficar no apartamento.

       — Alden despediu você?

       — O sr. Chancel disse que é uma suspensão provisória. Ficou muito chateado a respeito. Nossos salários serão pagos lá pelo fim do mês e, se as condições forem favoráveis, poderemos retornar. Caso contrário, ele nos dará dois meses de indenização, além de excelentes cartas de recomendação.

       — Você disse “nos dará”?

       — Exatamente. Para mim e minha tia. Já fiz as malas e, quando ela terminar, ambos partiremos.

       Nora descobriu-se um tanto chocada.

       — Ora, Jeffrey, mas para onde vocês irão?

       — Minha tia pretende ficar com alguns primos em Long Island. Eu a levaria de carro até lá, mas ela não quer, então só me resta dar-lhe uma carona para a estação ferroviária. Depois vou passar algum tempo com minha mãe.

       Nora jamais imaginara que Jeffrey pudesse ter uma mãe. Ele parecia ter chegado a este planeta já adulto, sem a costumeira intermediação de pais.

       — Ele ordenou que você e Maria fossem embora apenas para que Davey ocupasse seu apartamento?

       — O sr. Chancel comunicou-nos que seus negócios não estavam marchando tão bem quanto deveriam e que, por algum tempo, seria forçado a fazer certos cortes nos gastos.

       Nora teve a sensação de que o negócio com os alemães, mencionado por Dick Dart, havia dado em nada. Ótimo. Ela esperava que a Casa Chancel passasse fome e afundasse. Por um momento sua atenção desviou-se do que Jeffrey dizia.

       — ...tudo parado. Então surge Merle Marvell, fazendo perguntas sobre aquela época, aquela propriedade, e logo em seguida nós fomos suspensos, despedidos ou seja lá o que for.

       — Perdão, Jeffrey, mas distraí-me um pouco. O que aconteceu?

       — Merle Marvell perguntou ao sr. Chancel se a firma assinara algum contrato com uma mulher para escrever um livro sobre... um certo assunto. Sobre alguns escritores. Alguém acabara de telefonar para ele interrogando-o a respeito. Marvell achou aquilo curioso, porque nunca ouvira falar no assunto.

       — Um momento, um momento. — Nora tentou assimilar o que ele havia dito. — Merle Marvell contou a Alden que alguém fazia perguntas sobre uma mulher que alegava estar escrevendo um livro?

       — Lamento ter falado nisso. Pensei que... Desculpe. Esqueça.

       — Jeffrey...

       — Minha tia me saltaria na garganta se soubesse que toquei nesse assunto. Os Chancels sempre foram muito generosos conosco. Ouça, há algo que possa fazer por você? Está precisando de dinheiro? Estou mesmo indo para Massachusetts, de modo que poderei levar-lhe o que quer que esteja precisando.

       — Jeffrey — disse Nora, e então pensou que provavelmente iria necessitar de dinheiro, dentro de bem pouco tempo. Entretanto, isso não era problema de Jeffrey; o problema dele parecia mais ligado à casa. — O livro dessa tal mulher tem a ver com uma propriedade chamada Shorelands? E com o que aconteceu lá em 1938?

       Jeffrey ficou calado por um momento. Depois disse:

       — Aí está uma pergunta interessante.

       — Tenho razão, não tenho?

       Ele tornou a considerar o que diria.

       — Como é que sabe?

       — Bem, espero que guarde isto consigo mesmo — disse ela — mas a mulher sou eu.

       Jeffrey recuperou-se em parte.

       — A mulher simulando que escrevia o livro sobre Shorelands em 1938... era você?

       — Por que isso importa a você?

       — Por que isso importa a você?

       — É uma longa história, Jeffrey. Acho que agora vou desligar. Estou começando a ficar nervosa.

       — Não desligue — disse ele. — Talvez minha pergunta nada tenha a ver com isso, mas já ouviu falar em uma mulher chamada Katherine Mannheim?

       — Ela estava em Shorelands naquele verão — disse Nora, mais perplexa do que nunca.

       — Você procurava informação sobre ela? Katherine Mannheim foi o motivo de ter inventado esta história sobre um livro?

       — O que tudo isso tem a ver com você, Jeffrey?

       — Precisamos conversar. Vou apanhá-la e levá-la para algum lugar. Diga-me onde está e eu a encontrarei.

       — Estou em Holyoke. No telefone público de uma esquina.

       — Onde?

       — Ah... Esta é a esquina de Northampton e Hampden.

       — Sei exatamente onde você está. Vá a uma lanchonete ou coisa assim, depois entre em uma livraria, há uma mais abaixo na rua, mas espere por mim. Não fuja. Isto é importante.

       A linha ficou muda. Nora olhou para o receptor por um segundo, e depois o colocou no gancho. Não mais cônscia do lugar em que se achava, ela afastou-se do telefone e tentou refletir sobre o que acabara de saber. Jeffrey pudera ouvir metade de uma conversa de Alden com Merle Marvell. Mark Foil nada tinha de tolo. Ligara para Marvell a fim de informar-se sobre “Emily Eliot”, e o atônito editor telefonara imediatamente para seu chefe, em casa no momento. Por que Alden estava em casa? Por que o presidente da Casa Chancel tinha de enfrentar a desagradável tarefa de despedir dois empregados que há muito trabalhavam para ele? Ou por que Daisy não se recuperara de seus acessos, deixando ao grande editor a tarefa de lidar com as conseqüências da demissão das pessoas que cuidavam dela? Nora não conseguia imaginar Alden levando drinques e pratos de sopa para a esposa acamada... Ah, claro! O esperto Alden conseguindo, como sempre, exatamente o que queria. A fraqueza de Daisy forçara Davey a voltar para “Os Alamos”. Alden soubera engambelá-lo, unindo a preocupação dele com a mãe à hipotética independência de aposentos separados, em cima da garagem. Conseguir o que se quer torna-se fácil, quando seu moral é semelhante ao de um predador.

       A satisfação de Nora por ter chegado a tal conclusão evaporou-se ante o mistério remanescente — o que dizia respeito a Jeffrey. Por que ele se preocuparia com um poeta obscuro, há muito tempo morto?

      

NORA CAMINHOU LENTAMENTE até a borda da calçada. No quarteirão seguinte, uma ao lado da outra, erguiam-se a vitrine da “Livros Unicórnio” e um toldo azul-escuro com o nome “Café Chinela de Prata da Dinah”. Como se aquilo fosse um sinal, seu estômago anunciou-lhe que estava faminta.

       Ela entrou na livraria, por um momento rejeitando a idéia de fome. Moveu-se em direção a Jornada na Noite e suas irmãs menos famosas, tirou todas as três brochuras da prateleira e as levou ao balcão.

       — Driver, Driver, Driver — disse o atendente. — Soturno, muito soturno, soturníssimo.

       — Parece que você não os aprova — disse Nora.

       Ele somou o total na registradora, e ela lhe deu vinte dos dólares de Sheldon Dolkis.

       — Tenho algumas dúvidas sobre Jornada na Noite.

       — Que tipo de dúvidas?

       — Não faz o meu gênero — disse ele, entregando-lhe a sacola.

       — Quero saber mais sobre suas dúvidas — disse ela, ignorando a fome. — As pessoas vivem me dizendo para ler este livro.

       — Os fãs de Driver são como os fanáticos do reverendo Moon. São piores do que escritores, e ainda piores do que as esposas dos escritores.

       — Conheço duas pessoas que lêem este livro uma vez por ano — disse Nora.

       — Todos os tipos de pessoas pegam a mania. Um bom punhado delas jamais leu outra coisa. Apaixonam-se a tal ponto pelo livro, que querem relê-lo novamente, do começo ao fim. Então, acham que ficou faltando alguma coisa e o lêem uma terceira vez. A esta altura, estão tomando notas. Comparam suas descobertas com outros fãs de Driver. Se ficarem ligados a grupos de discussão pelo computador, então é o fim. Os realmente fanáticos desistem de tudo o mais e perambulam por aquelas casas malucas, onde todo mundo finge ser um personagem diferente de Driver. — O atendente suspirou e desviou o rosto. — Bem, desculpe-me, mas não vou querer estragar seu prazer de ler o livro.

      

No interior em tons pastéis do “Café Chinela de Prata da Dinah”, uma diligente jovem conduziu Nora até uma mesa perto da janela, entregou-lhe um enorme cardápio e anunciou que sua garçonete logo viria atendê-la.

       Nora enfileirou os livros à sua frente. Os dois últimos tinham várias centenas de páginas a mais do que Jornada na Noite. Nora virou-os, a fim de ler os dizeres estampados na contracapa. Jornada na Noite era o clássico, mundialmente famoso, muitíssimo apreciado, etc., etc. Leitores de todas as partes haviam etc., etc. Os manuscritos de Jornada no Crepúsculo e Jornada para a Luz tinham sido descobertos entre os papéis do escritor, muitos anos após sua morte. Assim, a Casa Chancel e a família Driver podiam ter o prazer de proporcionar aos milhões de admiradores de Driver a oportunidade para etc., etc.

       — Um momento — disse Nora. — Papéis do escritor? Que papéis?

       Uma alarmada voz feminina perguntou:

       — Como disse?

       Uma jovem em idade colegial, usando uma camisa azul abotoada na frente e calças pretas, estava parada ao lado dela.

       — Vou querer o atum grelhado e café, por favor.

       Ela abriu Jornada na Noite, virou a página-título e chegou à Primeira Parte, intitulada “Antes do Alvorecer”, e começou impiedosamente a ler. A garçonete colocou uma cesta de pão em fatias quase no centro da mesa, e Nora comeu todas elas, antes mesmo que trouxessem a sua refeição. Comeu com uma das mãos, enquanto a outra sustinha o livro. As paisagens eram inconsistentes, os personagens insossos, o diálogo saltitante, mas desta vez ela insistiu em continuar lendo. Contra a vontade, descobriu de repente que estava interessada. O odioso livro possuía suficiente poder narrativo para prendê-la. Uma vez concentrada na leitura, os personagens e a paisagem de cavernas e árvores enfezadas, através das quais eles perambulavam, deixavam de parecer artificiais.

       Ela conhecia o motivo de sua raiva, e sabia que nada tinha a ver com Jornada na Noite ou com a infortunada influência de Hugo Driver sobre leitores suscetíveis. Jeffrey lhe contara que Davey ia mudar-se para a casa dos pais. Ele tinha sucumbido ao empuxo gravitacional de Alden.

       Mais de uma hora passou, enquanto ela consumia o atum grelhado e quase um terço de Jornada na Noite. Jeffrey devia estar perto dos limites de Massachusetts, acelerando em direção a Holyoke, a fim de apanhá-la e levá-la para algum lugar.

 

A CHAVE DE OURO

      

“VOCÊ A ENCONTRARÁ, PIPPIN”, DISSE O VELHO. SUA BARBA ROÇAVA O CHÃO. “TEM A MINHA PALAVRA. ENTRETANTO, SABERÁ RECONHECÊ-LA QUANDO A ENCONTRAR? E IMAGINA QUE, SE TIVER ÊXITO EM RECLAMÁ-LA, ISSO O DEIXARÁ FELIZ?”

 

NORA VOLTOU, caminhando pela calçada, e sentou-se em um banco de ferro forjado, de frente para a Northampton Street, à sombra de um toldo. O Ford de Shelley Dolkis continuava junto a um parquímetro, distante quase quatro metros da cabine do telefone público. Alguns carros passaram por ali, mas nenhum deles contendo Jeffrey. Em Holyoke, às cinco e meia de uma tarde de agosto, a maioria das pessoas já chegara aos lugares a que se destinavam.

       Nora esquecera de pôr mais um punhado de moedas no parquímetro, que agora exibia uma tarja vermelha de violação. Ela não sentia vontade de tornar a entrar naquele carro. Então, lembrou-se de sua mala no assento traseiro e caminhou até lá rapidamente. Inclinando-se para a estufa rarefeita do interior do carro, agarrou a alça da mala e jogou as chaves em cima do assento dianteiro.

       Inicialmente, deixou a mala a seu lado no banco, depois enfiou-a debaixo dele, dando a si mesma uma medalha de ouro por velhacaria criminosa. Jeffrey estava demorando a aparecer. Dois ou três minutos mais tarde, um veículo azul-escuro com a sobriedade de um carro funerário foi-se aproximando em marcha lenta. Nora ficou ereta e esperou que ele parasse junto ao meio-fio, atrás do Ford, mas à velocidade de vinte e poucos quilômetros horários, ele seguiu em direção à esquina de Northampton e Hampden. O motorista, um macilento velhote de óculos escuros e chapéu de pescador, olhava diretamente para frente, quando o carro rastejou ao lado dela.

       Agora, os dois únicos carros na rua estavam a uma quadra de distância, indo para o norte, a direção errada. Nora recostou-se no banco e fechou os olhos. Contou até sessenta, antes de tornar a abri-los. Uma enlameada pick-up, com uma flâmula dos Red Sox pendurada na antena, surgiu do sul com fortes ruídos de descarga. Nora suspirou, abriu a bolsa e apanhou Jornada na Noite. Pippin estava escondido em uma velha casa arruinada, onde uma velha maligna arrastava-se de aposento em aposento, procurando por ele. A porta rangeu, e Pippin ouviu os peludos pés da bruxa roçando pelas tábuas carcomidas do assoalho. Nora ergueu os olhos. O velho do chapéu de pescador havia parado em um pátio de estacionamento diante do “Café Chinela de Prata da Dinah”, e agora caminhava cautelosamente para a entrada do restaurante. Atrás dele, como um transatlântico seguindo um rebocador, viu uma mulher idosa, em um vestido estampado de cores vivas. Nora olhou para o lado contrário, e uma viatura da polícia, com a inscrição HOLYOKE D.P. na porta, bisbilhotava em torno da pick-up enlameada.

       Nora voltou ao livro. “Onde, oh, onde estará o meu lindinho? Eu quero abraçar o meu lindinho!”

       A viatura policial seguiu em frente, e o formigamento no couro cabeludo dela diminuiu. Nora mantinha a cabeça inclinada para o livro, ao mesmo tempo em que via o carro mover-se para o fim do quarteirão. Ele girou para a esquerda e fez uma ampla curva em U, diante da pick-up. Nora chegou o livro para mais perto do rosto. A viatura policial fez alto à frente do carro funerário azul. Ela olhou disfarçadamente para os policiais. O agente no banco do passageiro saltou, cruzou a calçada e entrou no “Chinela de Prata”.

       A polícia estava à procura de Nora Chancel, uma mulher de cabelos castanho-escuros, que não usava maquiagem. Ela abriu a bolsa, encontrou o estojo do creme de limpeza Cover Girl e puxou-lhe o fecho, a fim de examinar-se ao espelho. Muito de Nora Chancel emergira através de seu disfarce. Ela passou uma camada de base e apagou as linhas mais proeminentes, aplicou máscara e brilho para lábios, alisou e depois afofou os cabelos, de maneira parecida à que Dick Dart usara. Arriscou outro olhar para os policiais, e sentiu que a tensão abandonava-lhe o corpo. Eles estavam encostados no carro e bebiam café.

       Na distância, do lado sul, uma sirene elevou-se no ar, a princípio apenas audível, mas aumentando aos poucos e com mais insistência, até finalmente tornar-se as distantes explosões do vermelho e amarelo das luzes no teto de uma viatura policial do estado. Nora enfiou a bolsa debaixo do braço, ficou em pé e deu um passo à frente. Um dos tiras de Holyoke olhou em sua direção. Ela estendeu os braços, torceu o direito e o esquerdo, depois voltou a sentar-se no banco. Onde está o livro, pegue o livro, ele está aqui, em algum lugar. Puxando um livro de dentro da confusão da bolsa, abriu-o e simulou estar lendo.

       Os dois tiras beberam o último gole de café, caminharam até a esquina e deixaram cair os copos de plástico dentro de uma cesta de arame trançado. Ajeitando camisas e gravatas, eles desceram a calçada e seguiram pela rua em direção ao Ford. Ao passarem por Nora, o agente que olhara para ela virou a cabeça e fez um gesto de bater, com a palma virada para baixo. “Fique onde está.”

       Ela empurrou a mala mais para baixo do banco e ficou olhando a espaventosa chegada do veículo estadual.

       A viatura gemeu diante do Ford, apagou as luzes e desligou a sirene um segundo antes de outro carro-patrulha de auto-estrada dobrar para a Northampton Street, com a sereia ululando. Dois homenzarrões com chapéus de abas achatadas deixaram seu carro em posição, à frente do Ford. Um deles começou a interrogar os dois policiais, enquanto o outro passava pelo carro verde e esperava a chegada do segundo veículo estadual. O clamor da sirene foi cortado na metade do uivo, mas a barra luminosa do teto continuou acesa. Um dos agentes estaduais consultou o motorista do segundo carro, o qual saiu em companhia do parceiro e comparou a chapa de matrícula com um número em seu bloco de notas. Os dois homens do segundo carro caminharam agachados em torno do Ford, para poderem espiar através de suas janelas. Tiraram luvas presas aos cinturões, calçaram-nas e abriram as portas dianteira e traseira, do lado do motorista. Um deles inclinou-se para o interior e exibiu as chaves. Depois acenou para os tiras locais. O mais novo dos dois trotou de volta à sua viatura policial, enquanto o agente estadual abria o porta-malas e começava a remexer entre sacolas e caixas.

       Seu parceiro retornou ao veículo em que tinham vindo e bateu em uma janela traseira. A vidraça foi abaixada, e o agente estadual pousou as mãos no peitoril, inclinando-se para frente a fim de falar aos dois homens que ocupavam o assento traseiro. Os agentes que haviam chegado primeiro falavam com o tira de Holyoke remanescente, os quais apontaram para o outro lado da rua, depois para o Ford, e finalmente para sua própria viatura. Nora moveu-se para diante e tateou em busca da alça de sua mala.

       O agente policial que vistoriava a mala do carro ergueu o rosto, sorridente. As portas traseiras da segunda viatura estadual se abriram, e dois homens de ternos escuros, camisas brancas e gravatas escuras, um deles mais alto e mais louro do que o outro, saíram para a calçada. O homem mais alto usava óculos escuros de armação pesada. Nora ficou gelada, com sua mala já a meio caminho de abandonar o esconderijo debaixo do banco. O sr. Shull e o sr. Hashim — Slim e Slam — caminharam devagar para a mala do carro e inspecionaram uma caixa, entregue pelo sorridente polícia estadual. Nora tornou a empurrar a mala para debaixo do banco de ferro e tentou esconder-se na sombra do toldo.

       Slim espiou dentro da caixa, e os cantos de sua boca contraíram-se para baixo. Ele exibiu o conteúdo a Sam, que assentiu. Slim devolveu a caixa ao policial estadual, e este permitiu-se uma última olhada, antes de recolocar a caixa no porta-malas. O sr. Hashim começou a remexer no porta-luvas do Ford. O sr. Shull afastou-se, de mãos enfiadas nos bolsos, e contemplou a superfície da Rua Northampton, através de seus esnobes óculos escuros.

       O policial estadual que mostrara a caixa ao sr. Shull voltou para junto dele, ouviu algumas palavras, e então fez sinal para um dos corpulentos agentes estaduais do primeiro carro. Houve outra breve troca de palavras, ele acenou para o tira local, que se aproximou rapidamente e respondeu a algumas perguntas. Ele concordou, deu de ombros, tornou a concordar e então se virou, apontando para Nora.

       O policial olhou de relance para ela, fez uma pergunta, conseguiu outro gesto de assentimento em troca, e plantou as mãos na cintura, quando o policial começou a caminhar para Nora. O sr. Shull ergueu a cabeça e a olhou, depois fitou o tira, para finalmente voltar a observá-la. Chegando até a porta do passageiro, ele disse algo ao sr. Hashim. O sr. Hashim inclinou-se e espiou Nora com ar cético, através do pára-brisa do Ford.

       O policial que se aproximava dela tinha preocupados olhos castanhos, um bigode ralo, e seu ventre começava a sobrar acima do cinto. Nora engoliu em seco para suavizar a garganta, e sentou-se ereta no banco. Descobriu que ainda segurava o livro aberto na metade de algum trecho, e inseriu um dedo, como se tivesse sido interrompida enquanto lia.

       — Olá — disse.

       O policial moveu-se para a sombra. Tirou o chapéu.

       — Como aqui está quente! — Ele enxugou a testa com a mão, depois passou a mão na calça. — Eu gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.

       — Não sei o que eu poderia dizer-lhe.

       — Deixe-me fazer as perguntas e ficaremos sabendo. — Ele tornou a pôr o chapéu na cabeça, tirou do bolso da camisa um bloco de notas e uma esferográfica. — Há quanto tempo está aqui, senhora?

       — Não tenho muita certeza.

       O policial pousou o pé no banco e achatou o bloco de notas sobre o joelho.

       — Podia dar-me pelo menos uma estimativa?

       — Talvez uma meia hora.

       Ele tomou nota.

       — A senhora notou alguma atividade dentro ou em torno do veículo que está sob investigação? Observou alguém em contato com o veículo?

       Ela fingiu refletir na resposta.

       — Bem, acho que não.

       — Poderia fornecer-me seu nome e endereço, por favor?

       — Oh, claro. Não há nenhum problema. Meu nome é... — Sua mente recusou-se a fornecer qualquer nome, além do de Hugo Driver. — Dinah — disse por fim. Shorelands? — Dinah Shore.

       Assim que as palavras lhe saíram da boca, ela teve a impressão de que faltava apenas estender as mãos para as algemas. O policial levantou os olhos do bloco de notas.

       — É este o seu nome? Dinah Shore?

       — Durante todos os anos em que estudei, implicaram comigo por causa desse nome. Por muito tempo fui obrigada a ouvir todas aquelas piadas de Burt Reynolds, mas isso cessou há uns dois anos. Graças a Deus — respondeu ela, esforçando-se para parar de gaguejar.

       — Posso imaginar — disse o policial. — Endereço?

       Onde é que mora Dinah Shore?

       — Boston. — Ela rebuscou a memória, procurando o nome de uma rua de Boston. — Commonwealth Avenue. Commonwealth Avenue, quatrocentos. Mudei-me para lá faz uma semana. Metade de minhas coisas continuam no guarda-móveis.

       — Entendo. — Outra anotação. — O que a trouxe a Holyoke, Dinah?

       — Estou esperando um amigo. Ele virá apanhar-me.

       — Você não tem carro, Dinah?

       É claro que tinha. Todo americano tinha um carro.

       — Tenho uma camionete Volvo, mas está na garagem. — O policial encarou Dinah Shore, uma residente de Boston, esperando que ela explicasse sua presença num banco de ferro forjado em Holyoke. — Um amigo deu-me carona até aqui, e meu outro amigo está vindo apanhar-me. Logo estará aqui.

       — E quanto tempo você permaneceu aqui, Dinah?

       O que mesmo ela havia dito antes?

       — Não estou bem certa. Talvez uns quarenta e cinco minutos.

       — Comprou seu livro na Unicórnio? — Como é que ele sabia? O policial olhou para a sacola de papel-manilha ao lado da bolsa dela, uma sacola tendo impressos a figura de um unicórnio e o nome da livraria. — Oh, sim! Eu sabia que ia ter de esperar um pouco. Então, fui à livraria e depois fui comer algo no restaurante que fica ao lado dela.

       — No Dinah’s?

       — Chama-se Dinah’s? Que coincidência...

       Ele a olhou fixamente por um momento.

       — Quer dizer que foi à Unicórnio, deu uma espiada, comprou um livro...

       — Três livros — emendou ela.

       Nora desviou o rosto, fugindo ao olhar confuso do policial. Um MG conversível, vermelho, dirigido por um homem com um boné azul de Eton, cruzava ao lado dos carros-patrulha e dos policiais que ocupavam a maioria das faixas rumo ao sul, na região do Ford de Sheldon Dolkis. Outra viatura policial de Holyoke se juntara a eles, e dois troncudos homens de paletó esporte falavam com os tiras estaduais. O homem do boné de Eton parou junto ao meio-fio, no outro lado da rua, diante do Dinah’s. O coração de Nora deu um salto de alarme: o rosto abaixo da grossa viseira do boné era o de Jeffrey. Ele olhou para trás, para o punhado de policiais e seus veículos. Um dos carros-patrulha da auto-estrada se movia para liberar o caminho, enquanto a pick-up-reboque emitia sons de “bips”, ao recuar para junto do Ford.

       — Então, comprou três livros e foi ao Dinah’s, onde comeu alguma coisa. Fez tudo isso em quarenta e cinco minutos?

       — Provavelmente deve ter sido coisa de uma hora. Meu amigo acabou de chegar.

       O policial torceu o corpo, a fim de olhar para o lado contrário da rua.

       — É aquele do MG?

       Ela ergueu um braço e acenou. Jeffrey olhava para a esquina onde Nora havia dito que o encontraria.

       — Jeffrey!

       Ele virou bruscamente a cabeça na direção dela e deparou-se com o espetáculo de uma loura desconhecida, acenando para ele de um banco de ferro, embaixo de um toldo, enquanto um policial controlava o trânsito, olhando de um lado para o outro da rua. Jeffrey começava a perceber que quem o chamara pelo nome havia sido a mulher loura. Inclinando-se por cima do topo da porta, espiou para ela. Nora rezou para que ele não proferisse seu nome.

       — Aquele cara não parece conhecê-la — disse o policial.

       — Jeffrey é um pouco míope.

       Ela abriu os braços e deu de ombros, em uma pantomima de sua bem-humorada incapacidade de abandonar o banco.

       — Oh, aí está você! — exclamou Jeffrey.

       Ele abriu a porta e pôs uma perna para fora do MG, mas ela lhe fez um gesto para que esperasse. O policial tornou a olhar para ela, voltando à posição anterior.

       — Onde disse que seu amigo de Boston a deixou?

       — Na esquina. Onde estão todos.

       — Por acaso reparou se o veículo estava estacionado lá, quando chegou?

       — Sim. Eu o vi estacionado bem ali.

       — Quanto tempo ficou na livraria?

       — Talvez uns cinco minutos.

       — E depois foi ao Dinah’s. Deram-lhe um cardápio e você o examinou, certo? Alguém anotou seu pedido, certo? Quanto tempo levou isso?

       — Mais uns cinco, dez minutos.

       — Assim, temos quarenta a quarenta e cinco minutos no Dinah’s. E durante esse tempo, esteve almoçando e conseguiu ler metade desse livro?

       — Oh! — Nora ergueu o livro, com o dedo ainda inserido entre as páginas.

       — Dinah, temos aqui um grande problema. — Ele ajustou o chapéu na cabeça. Colocou as mãos na cintura. Nora preparou-se para uma iminente detenção. O tira suspirou. — Faz pelo menos alguma idéia de que horas eram, quando seu amigo a desembarcou na esquina?

       Ela ergueu os olhos para o rosto jovem e cínico do policial.

       — Por volta de quatro e meia — respondeu.

       — Sendo assim, ficou nestes arredores por mais ou menos duas horas, não é mesmo, Dinah?

       — Deve ter sido isso.

       — Não temos muita noção de tempo, temos?

       — Aparentemente, não.

       — Aparentemente, não. Entretanto, foi esse o tempo que levou, perambulando por esta parte de Holyoke. E, enquanto isso, teria visto uma mulher que seria, digamos, uns dez anos mais velha do que você, com mais ou menos o seu peso e altura, cabelos castanhos-avelã chegando até pouco abaixo das orelhas?

       — Está procurando essa mulher?

       — Ela poderia estar usando uma blusa de seda azul-escura com mangas compridas e jeans azul. Um metro e sessenta e sete. Uns cinqüenta quilos. Olhos castanhos. Ela provavelmente veio para cá nesse carro que foi rebocado.

       — O que foi que ela fez? — perguntou Nora.

       — Deixe-me tentar mais uma vez. Viu a mulher que descrevi para você?

       — Não. Não vi ninguém assim.

       Ele tirou o pé do banco e fechou o bloco de notas.

       — Obrigado por sua cooperação, Dinah. Já pode ir.

       Ela levantou-se.

       — Obrigada — disse.

       Atravessou a calçada, e Jeffrey saiu do MG. Quando ela pisou na rua, o policial falou:

       — Mais uma coisa, Dinah.

       Nora se virou, quase esperando que ele estivesse prestes a algemá-la. O policial sacudiu a cabeça, depois inclinou-se e puxou a mala dela de sob o banco.

       — Boa sorte em todas as suas atividades, Dinah.

      

JEFFREY SÓ FALOU depois que saíram de Holyoke e aceleravam para ganhar a I-91. Com as pernas estiradas diante dele e o restante do corpo inclinado para trás, em um ângulo surpreendentemente relaxante, Nora tinha a sensação de estar sendo levada em algum meio de transporte mais semelhante a um tapete-voador do que um carro comum.

       — Fiquei preocupado com você naquele banco.

       Jeffrey engrenou para ultrapassar um ousado caminhão de mudanças, rodando a apenas uns seis quilômetros acima da velocidade limite, e o tapete-mágico alongou-se, velejou ao vento.

       — Eu também.

       — Não a reconheci. Esta... transformação... Foi uma surpresa e tanto.

       — Houve muitas surpresas ultimamente.

       — Devo dizer que, se de algum modo pretende continuar, mais mulheres deviam ser...

       — Não. Por favor, está bem? Apenas não diga mais nada. — Ele pareceu encabulado e, para consolá-lo, Nora disse: — Fiquei contente por você não ter gritado meu nome.

       — Tudo quanto eu realmente queria dizer era, “é um alívio vê-la deste jeito”. Entenda, além do... — e ele desenhou um círculo em torno do rosto, com um dedo indicador.

       — Está falando da minha transformação.

       — Foi um disfarce melhor do que um chapéu e óculos escuros.

       — Dick Dart tinha sérios conhecimentos sobre cosméticos. — Pronunciar o nome dele em voz alta fez o peito dela comprimir-se. — E ainda está por aí, em algum lugar.

       — Tem certeza?

       — Absoluta. O tira que me interrogava, enquanto você estava sendo tão sensato, disse que estavam procurando uma senhora de idade com cabelos castanhos. Não, ele não disse bem assim, não precisa ficar tão assustado. Entretanto, Dart não teria contado a eles sobre minha nova aparência, pois, do contrário, a estas horas o FBI já estaria me arrastando com correntes nos pés.

       Jeffrey assentiu, enquanto levitavam para uma nova faixa.

       — Reparei que Hashim e Shull estavam lá, aqueles dois atiçadores humanos de lareira. Uma dupla encantadora.

       — Eles estiveram em Mount Avenue?

       — Ontem, durante umas duas horas, e esta manhã, enquanto instalavam o equipamento telefônico e falavam com o sr. e a sra. Chancel... e seu marido. — Ele a fitou de relance, com a certeza de haver introduzido um novo e difícil tema. — O velho presbitério tem andado um pouco caótico nestes últimos dias.

       Por um momento, Nora evitou o assunto sobre seu marido.

       — Não teve medo de que eles o vissem?

       — Eu teria tido, se eles chegassem a ver-me. O sr. Chancel pediu que lhe levasse o almoço na biblioteca, porque tinha muita coisa a tratar pelo telefone. Os atiçadores humanos estavam na cozinha, de maneira que tive apenas um relance dos dois, quando passei diante da porta.

       — Fale-me sobre Davey. Ele vai mudar-se para “Os Alamos” porque o FBI o quer lá?

       — Está querendo saber se também não pode ter sido uma idéia do pai dele, certo? Pois foi um pouco das duas coisas. Os agentes queriam ficar de olho nele, e o sr. Chancel insistia para que o ajudasse a tomar conta da mãe. Falando francamente, eu me pergunto se o sr. Chancel não estaria procurando livrar-se de nós a fim de pressionar Davey a voltar para “Os Álamos”.

       Jeffrey olhou de relance para Nora, querendo descobrir se não estava sendo demasiado crítico em relação a seu patrão.

       — Poderia ligar o rádio, Jeffrey?

       — Oh, sinto muito. — Ele estendeu a mão para o dial. — Eu devia ter pensado nisso há mais tempo.

       Com outra suave mudança de marchas, o tapete mágico voou em torno de dois carros em laboriosa velocidade. Um locutor de voz açucarada disse que aquele seria um anoitecer glorioso nos condados de Hampden, Hampshire e Berkshire, logo depois passando a fornecer detalhes.

       — Como vai Daisy de saúde? — perguntou Nora.

       — Ela descobriu Todos os Meus Filhos, e isto parece tê-la animado um pouco. Alguém chamado Edmund raptou alguém chamado Erica, em Budapeste, e a manteve em uma adega de vinhos. Entretanto, a personagem Erica decidiu que queria permanecer seqüestrada, a fim de voltar para alguém chamado Dmitri. Minha tia falou-me a respeito. Compreendi que a sra. Chancel considera sua história similar à da personagem Erica. Você é uma heroína romântica.

       — Formidável.

       — A sra. Chancel reconsiderou o que quer que você lhe tenha dito sobre o livro dela. Minha tia lhe tem levado trechos. A sra. Chancel os reescreve, reclinada na cama.

       — Antes e depois de Todos os Meus Filhos.

       — E durante também. É inspiracional.

       — Alden a está ajudando?

       — O sr. Chancel não tem permissão de entrar no quarto dela. — Jeffrey fez uma pausa; aparentemente, já havia dito tudo o que pretendia dizer sobre os Chancels. — Poderia explicar-me por que alegou estar escrevendo um livro sobre Shorelands?

       — Essa é uma missão que compete a Dick Dart. Ele quer evitar que, seja lá quem for, prove não ter sido Hugo Driver quem escreveu Jornada na Noite. Desta maneira, pretende eliminar pessoas relacionadas a escritores que estiveram em Shorelands naquele verão. O homem com quem conversei partiu para Cape Cod pouco depois de ligar para Merle Marvell, portanto está a salvo. Só que ainda resta alguém. Um professor em Amherst. Seria bom eu entrar logo em contato com ele, uma vez que Dart tem o seu endereço.

       — Você mencionou dois homens. Os escritores com quem estavam relacionados eram...?

       — Creeley Monk e Bill Tidy. Por quê?

       — Não se tratava de Katherine Mannheim, então.

       — Não, mas segundo imagino, as irmãs dela é que deram início a todo o problema.

       Jeffrey assentiu.

       — Poderia dar-me detalhes sobre essa missão de Dart e dizer-me tudo o que sabe sobre Shorelands e Jornada na Noite?

       — Jeffrey, quem é você? Por que se interessa pelo assunto?

       — Eu a estou levando até alguém que terá resposta para a maioria de suas perguntas, de modo que prefiro nada dizer antecipadamente. Não obstante, posso falar-lhe a meu respeito, caso esteja interessada, mas aviso desde já que não sou muito importante.

       — Para quem está me levando? — Uma possibilidade totalmente imprevista ocorreu-lhe então. — Katherine Mannheim?

       Ele sorriu. Depois disse:

       — Não, não se trata de Katherine Mannheim.

       — Ela escreveu Jornada na Noite?

       — Para ser franco, espero que ela não tenha sido a autora. Sou um dos poucos que podem resistir a esse livro.

       — Nunca liguei a mínima para ele, até umas duas horas atrás.

       — E...?

       — Não vou dizer mais nada, Jeffrey, enquanto você não me falar a seu respeito. Sempre foi um grande enigma, sabia? Como é possível que alguém como você se sinta feliz trabalhando para Alden e Daisy? Estudou realmente em Harvard? Qual é a sua história?

       — Minha história, bem... — Ele pareceu mais constrangido do que ela já o tinha visto. — É muito menos interessante do que possa imaginar. Minha mãe não estava preparada para criar um filho após a morte de meu pai, de maneira que fui criado por parentes dele, todos aqueles Deodatos de Long Island. Durante dois anos, moramos em um bocado de lugares — Hempstead, Babylon, Rockville Centre, Valley Stream, Bay Shore... Via minha mãe verdadeira quando ela me procurava em suas férias e folgas, mas tinha um monte de outras mães, todas com um fraco por mim. Estudei na Uniondale High School. Consegui uma bolsa de estudos para Harvard, o que foi uma grande coisa, diplomei-me em estudos asiáticos, e fiquei quase perito em chinês e japonês, tendo sido diplomado com distinção. Em vez de fazer pós-graduação, decepcionei todo mundo alistando-me no exército. Após receber treinamento militar e fazer um curso de vietnamita no Texas, puxei um punhado de cordões e consegui ficar na polícia militar, em Saigon. Fiz um bom trabalho por lá, e minhas funções eram interessantes. Continuei as aulas de karatê que havia iniciado em Cambridge.

       “Quando voltei, fiz a prova para a polícia de Long Beach e fui encaixado, a despeito de ter sido ridiculamente superqualificado. Um de meus tios era detetive no condado de Suffolk, e isso ajudou. Exerci essa função durante três anos, tive mais aulas de japonês em Hofstra, além de aulas particulares de caligrafia, conquistei minha faixa preta, tive um monte de aulas de culinária, e então foi como se me desintegrasse. Deixei a polícia. Fiquei sem fazer nada, exceto matar tempo na calçada de tábuas da praia e trancar-me em meu apartamento. Depois de seis ou sete meses, saquei todo o dinheiro que tinha no banco e fui para o Japão. Lá, poli meu japonês e vivi em um monastério zen. Isso me tomou dois anos, mas fui aceito em um monastério — é uma longa história — no qual permaneci por dezoito meses. Foi muito satisfatório, mas enfrentava um problema: eu não era japonês e jamais seria um. Voltei, e estava tão falido, que precisei ensinar karatê em um navio de cruzeiro, como pagamento por minha passagem. Não tinha idéia do que ia fazer. Resolvi aceitar o primeiro emprego que alguém me oferecesse e dedicar-me a ele da maneira mais desprendida possível. Quando minha tia falou que os Chancels queriam contratar um mordomo, mudei-me para o Connecticut e tentei fazer o melhor trabalho que pude.”

       Nora o fitava boquiaberta, com visível espanto.

       — E você ainda diz que sua vida não é interessante? Meu Deus do céu, Jeffrey!

       — Tudo não passa de uma série de historietas. Espiritualmente, nunca cheguei a lugar algum, até ir trabalhar para os Chancels. Não tenho quaisquer ambições reais, e ajudá-los foi muito mais gratificante do que inúmeras outras coisas que eu poderia ter feito.

       Nora, que estivera pasma com a disparidade entre suas fantasias a respeito de Jeffrey e a realidade dele, subitamente ouviu o que o locutor estava falando, e aumentou o volume do rádio.

       — Preciso ouvir isto.

       Jeffrey pareceu Sobressaltado, mas nem um pouco ofendido.

       — É claro.

       O que tinha penetrado no ouvido dela era o relato sobre um incêndio em Springfield.

       — “...E, segundo fomos informados, até o momento não houve nenhum relato de perda de vidas. Entretanto, de acordo com informes mais recentes, o incêndio propagou-se a várias outras casas, na seleta área residencial da Oak Street.”

       — Foi ele — disse Nora.

       — Ele?

       — Pssst!

       — “Repetindo, presume-se agora que tenha sido criminosa a causa do incêndio na região da Oak Street, em Springfield. O alarme foi dado pouco depois das cinco desta tarde, por vizinhos do dr. Mark Foil, em cuja residência originou-se o fogo. Os moradores da área foram aconselhados a manter contato com a linha de emergência do Departamento de Incêndios, o qual está fornecendo, minuto a minuto...”

       Nora desligou o rádio.

       — Sabe quem é Mark Foil?

       — Estou completamente no escuro.

       — Mark Foil é o homem que ligou para Merle Marvell. — Jeffrey parecia ainda não ter captado o sentido geral daquilo. — Por causa desse telefonema é que Marvell ligou para Alden.

       A expressão abismada do rosto de Jeffrey deixou claro que ele agora entendia o sucedido.

       — Você está certa de que foi Dart quem botou fogo nessa casa?

       — Claro que foi ele!

       Jeffrey olhou para seu relógio, fez alguns rápidos cálculos mentais e então, inclinando-se sobre o volante, sem dar atenção aos sinais de trânsito, disparou como foguete ao cruzar duas faixas de tráfego consideravelmente pesado. Estrondearam buzinas. Ele fez o carro girar para a Saída 18, no último segundo possível. O MG guinchou rampa abaixo e avançou um sinal fechado, antes de dobrar para a direita e entrar na King Street, em Northampton.

       Nora liberou as mãos da maçaneta da porta.

       — Diabo, o que significa tudo isso?

       Jeffrey manobrou para o lado da rua e parou o carro.

       — Quero que me explique por que Dick Dart está desejando assassinar pessoas e incendiar casas, a fim de proteger a reputação de Hugo Driver. Comece do começo e termine no final.

       — Sim, senhor — assentiu Nora.

      

APÓS TER COMEÇADO a narrar, Nora descobriu que falar para Jeffrey Deodato era muito diferente de contar a mesma história a Harwich. Jeffrey estava ouvindo o que ela lhe dizia. Ao terminar, sentiu que seu relato, inicialmente tão confuso quanto o romance de Daisy, ao ser feito agora assumira outro formato, ganhara um padrão coerente, pelo menos para Jeffrey.

       — Entendo — disse ele, dando a impressão de ter visto mais do que ela. — Assim, agora que Dick Dart já fez o que pôde para prejudicar o dr. Foil, irá então à procura de Everett Tidy. E, sem dúvida, está com um carro.

       — Os carros parecem entregar-se a ele.

       — É melhor vermos o professor Tidy. Preciso apenas de um telefone.

       — Vai ligar para ele?

       Jeffrey manobrou o carro para afastar-se do meio-fio.

       — Vou ligar para um amigo dele.

       — Você o conhece?

       — Eu sempre o conheci. — Jeffrey dobrou para a direita no final do quarteirão, e parou junto a um telefone público. — Será apenas um minuto — disse, e saltou do carro, remexendo no bolso em busca de moedas.

       Nora o viu discar um número e dizer algumas frases. Virando-se de costas para ela, Jeffrey pronunciou mais algumas frases inaudíveis. Depois desligou e voltou para o carro.

       — Quem era? — perguntou Nora, e Jeffrey sorriu, mas não respondeu. Fez o MG descrever um círculo apertado e, como um raio, desceu pela Rua King abaixo. — Como é que conhece o filho de Bill Tidy?

       — Já o conheço faz muito tempo.

       — E agora, para onde estamos indo?

       — Para Amherst, que outro lugar poderia ser? — Ele dobrou à direita, internando-se em um pátio de estacionamento, continuou em linha reta para outro estacionamento, e foi emergir na Bridge Street, acelerando de volta para o desfile de carros e caminhões na auto-estrada. — Apenas por curiosidade — acrescentou —, lembra-se se Davey lhe disse o nome da garota que estava tão interessada em Hugo Driver? A tal que trabalhava ou não para a Casa Chancel, e era ou não um membro de algo chamado Clube do Fogo do Inferno?

       — Paddi Mann.

       — Era o que eu temia.

       Ela levou um momento para raciocinar.

       — Também conhecia Paddi Mann?

       — Paddi agora está morta, mas eu a conhecia. Seu verdadeiro nome era Patrícia, que ela transformou em Paddi após apaixonar-se por Hugo Driver. A pessoa que vamos ver em Amherst, a que conhece Everett Tidy, é Sabina Mann, mãe dela.

       — Como é que conhece Sabina Mann? Por que você conhece Sabina Mann? — gemeu Nora. — O que está acontecendo?

       Jeffrey não respondeu.

       Davey não tinha inventado toda a história. Ela realmente acontecera, porém cinco anos mais cedo, em New Haven. Ou então, acontecera duas vezes.

       — Não dê nó nos miolos — disse Jeffrey.

       — E você não vai me contar como os conheceu.

       — Primeiro cuidaremos de Everett Tidy.

       — Então diga para quem você me levava, em Northampton. Afinal, vou mesmo encontrá-lo, depois que deixarmos Amherst.

       — Não é ele — disse Jeffrey. — É ela.

       — Ela quem?

       — Acho que já é hora de você conhecer minha mãe.

      

A CAMINHO de Amherst, Nora inspecionou despreocupadamente uma placa de bronze e viu que a casa de tijolos, de dois pavimentos e aparência confortável, erguida em uma pequena elevação, tinha sido a residência de Emily Dickinson. Podia ouvir Dick Dart recitando, “Divinamente Feridos, ela impede Que cicatrizes se formem, Exceto internas diferenças Onde os Propósitos dormem...” e sua boca ficou seca, a pele de seus braços arrepiou-se.

       Subindo a ladeira, entraram em um setor comercial, com livrarias e restaurantes, deixaram para trás um lindo parque público, seu gramado parecendo uma piscina verde, e continuaram a subir, passando agora pela Universidade de Amherst, com seus vetustos prédios castanhos e vermelhos.

       Jeffrey dobrou para uma rua lateral marginada de atraentes casas antigas, algumas delas circundadas por gradis brancos de madeira, outras quase escondidas atrás de jardins de vividos lírios oscilantes em seus pedúnculos e exuberantes hidrângeas. Ele parou diante de uma casa, quase invisível atrás do jardim fronteiro.

       Nora o seguiu através de um caminho cimentado entre lírios rosa e amarelos, cuja altura lhe chegava à cabeça. Três degraus de tijolos levavam a uma reluzente porta de madeira, com uma sineta de bronze. O perfume dos lírios pairava em torno dela, sendo depois carregado por uma brisa tão leve, que mal chegava a ser percebida. Quando a porta foi aberta por uma mulher alta e grisalha, com óculos de lentes em meia-lua e uma frouxa bata de mangas compridas, o amarelo dos narcisos deu a Nora um rápido olhar de congelar a espinha, em seguida puxando Jeffrey para um abraço. — Jeffrey, seu malvado, às vezes tenho esperanças de que avise, com uns quinze minutos de antecedência, que pretende fazer-me o favor de uma visita. Suponho que esteja com sua mãe, pois é o único motivo que me resta para ver você!

       — Olá, Sabina, agora solte-me, antes que me quebre algo.

       Ela recuou um passo e o agarrou pelos braços.

       — Está muito elegante com esse boné.

       — Você também está com excelente aparência, pois sempre está.

       — E sua mãe, como vai? Espero que bem. Ela é geralmente tão ocupada, que nunca conseguimos conversar. Sei que fez o Banquete dos Curadores, no início do verão e, naturalmente, a recepção na Casa do Presidente, mas, para ela, comida para duzentas pessoas não é nada, hein?

       — Bolos. Montes de pedaços de montes de bolos.

       — E como vão as coisas com você? — Ela ainda mantinha o aperto nos braços dele. — Continua trabalhando para seus inferiores?

       — Estou ótimo, Sabina. Esta é minha amiga Nora.

       Ela o soltou e estendeu a mão para Nora.

       — É você a misteriosa pessoa que precisava ver Ev Tidy?

       Nora tomou a mão de Sabina Mann e fitou seus olhos inteligentes e autoritários, com alguns tons mais azulados do que água de geleira.

       — Eu mesma, e fico-lhe grata, esperando não ter trazido nenhum problema.

       — Não há qualquer problema. Ev logo chegará. Jeffrey sabe que consegue tudo o que quer. O único problema é ele não querer o suficiente.

       Sabina Mann estava fazendo uma rápida avaliação da idade de Nora, de seu estado civil, posição social e papel na vida de Jeffrey.

       — Eu jurei silêncio e sigilo, Jeffrey não me dirá por que motivo, mas suponho que posso fazer uma pergunta. Você o conhece há muito tempo?

       Nora refletiu se fora aprovada no primeiro teste.

       — Conheço Jeffrey faz uns dois anos, mas a verdade é que, ainda assim, mal o conheço direito.

       Sabina Mann prosseguiu com sua silenciosa avaliação. Estava muito mais aborrecida do que deixaria Jeffrey perceber.

       — Vamos explorar o que nosso mútuo amigo disse a você. Suponho que esteja a par daquele ridículo emprego que ele tanto aprecia, mas teria lhe falado sobre...

       — Ora, vamos, Sabina!

       — Perdoe-me, querido. Nora, nosso mútuo amigo aqui lhe falou sobre o espetacular sucesso que conquistou em Harvard?

       — Falou.

       — Ainda bem. Você sabe sobre a Estrela de Prata e a Estrela de Bronze que ele ganhou no Vietnã, ou sobre sua passagem por um monastério no Japão?

       — Não para a primeira parte, mas sim para a segunda — disse Nora, com um breve olhar para Jeffrey.

       — Uma vez que tem sido tão favorecida, deve saber que ele é fluente em mandarim, cantonês e japonês, mas eu duvido que Jeffrey lhe tenha contado...

       — Por favor, Sabina, seja justa!

       — Jeffrey lhe contou, meu bem, que escreveu duas peças, as quais foram encenadas na periferia da Broadway?

       Nora tornou a virar-se para encará-lo.

       — Sob pseudônimo — disse ele. — Não fizemos sucesso.

       — Bem, eu sei algo sobre você, Nora.

       — Já chega, Sabina!

       — Fique calado, Jeffrey. Você está usando minha casa para seus motivos particulares, portanto tenho o direito a toda informação que possa desencavar. E desencavei que esta encantadora jovem é empregada da Casa Chancel, porque aquele horrendo sr. Chancel é a pessoa de quem você mais queria guardar este particular segredo. Tenho certeza de que ela partilha o suficiente da minha antipatia por seu empregador e toda a família dele, incluindo sua singular esposa, seu filho inútil e a inadequada esposa desse filho, para manter este segredo a salvo. Não é verdade, meu bem?

       — Não sei se a esposa do filho é tão ruim quanto o resto deles — disse Nora.

       — E não é mesmo, daí o motivo de ser inadequada. O único errado com ela é que foi tola o bastante para casar com alguém daquela família. Enfim, você está sob o poder de Alden Chancel, da mesma forma que Jeffrey, portanto não se podendo esperar que compreenda a esteira de destruição deixada pelos Chancels.

       — Já terminou, Sabina? — perguntou Jeffrey.

       — Será melhor que sim. Everett não gosta de ficar esperando.

      

UM HOMEM entroncado, com uma barba Van Dyke cinza-acerada e curtos cabelos prateados, fechou abruptamente o livro que tinha nas mãos e ergueu os olhos, de cenho franzido.

       — Vinte minutos, Sabina. Vinte longos minutos!

       — Foram apenas quinze, Ev. E, como serei excluída desta reunião, precisava de algum tempo para mim mesma, com Jeffrey e sua companheira.

       Um lado da testa franzida de Everett Tidy fundiu-se à bochecha, no que poderia ter sido divertimento.

       — Aceitaria um café ou chá, Jeffrey? E você, Nora?

       — Não, obrigado — disse Jeffrey.

       — Chá — replicou Everett Tidy. — Bem forte.

       — Chá bem forte, então — disse Sabina, fechando a porta atrás de si.

       Nora relanceou os olhos para Tidy, e o surpreendeu examinando-a. Sem constrangimento, ele continuou a encará-la por um momento, antes de virar-se para Jeffrey.

       — Olá, Jeffrey — disse.

       — Obrigado por vir tão rápido.

       Tidy assentiu, depois contemplou o livro que tinha nas mãos, como que admirado por ainda segurá-lo. Moveu-se para um sofá aveludado de encosto alto, colocou o livro em uma mesinha de canto e tornou a fitar Nora. Um vento frio e cortante, tão parte dele como os vincos de sua calça cáqui e o rude, ligeiro roçar de sua barba, pareceu congelá-la.

       — Sabina acha que sou impaciente — disse ele. — O motivo dessa sua falha de percepção é que minha consciência das muitas tarefas de cumprimento imediato, que não consigo cumprir, faz-me ser teimoso.

       Enquanto ele falava, a temperatura de sua brisa privada baixou em vários graus.

       — Até a minha aposentadoria, eu morava em uma casa de propriedade da universidade, isto significando que, durante vinte e dois anos, tive uma moradia extremamente agradável, com espaço de sobra para minha família e minha biblioteca. Eu poderia ter permanecido em minha extremamente agradável moradia, porém minha esposa está morta e meus filhos se foram. Além disso, outros membros da faculdade necessitavam muito mais daquele espaço do que eu. Assim, comprei um apartamento e, quando não estou escrevendo dois livros — um sobre Henry Adams, outro sobre meu pai — fico eliminando volumes supérfluos, a fim de que possa encaixar o remanescente de minha biblioteca em três aposentos. Há meia hora, Sabina me disse que uma pessoa conhecida de Jeffrey desejava falar-me sobre um assunto da mais grave importância. Um assunto que dizia respeito à minha segurança pessoal. — Ele inalou, e seu peito expandiu-se. — Pois muito bem, aqui estou, e devo insistir para que você me diga que diabo de gentalha está para vir aqui.

       — Ev — disse Jeffrey —, você devia saber que...

       — Estou falando com sua acompanhante.

       O abismo entre a experiência deste homem e a dela própria deixou Nora momentaneamente silenciosa. Ela jamais seria capaz de convencer Everett Tidy de que alguém queria matá-lo.

       Tidy olhou conspicuamente para seu relógio, e Nora afinal entendeu por que ele precisava livrar-se de parte dos seus livros.

       — Há quanto tempo o senhor se mudou para seu apartamento?

       Ele baixou o braço com exagerada lentidão, como se o movimento súbito pudesse assustá-la.

       — Seis semanas. Isso tem algum interesse para sua pergunta?

       — Se alguém o procurasse em sua antiga casa, os novos moradores lhe diriam onde o senhor está? Eles conhecem seu novo endereço?

       Everett Tidy virou-se para Jeffrey.

       — Vamos continuar dessa maneira?

       — Por favor, responda à pergunta dela, Ev.

       — Ótimo. — Ele se virou para Nora. — O professor Hackett sabe em que rua fica o prédio de meu apartamento? Não, ele não sabe. De qualquer modo, os Hacketts estão passando o mês no vale superior do Arno, o Casentino. Quem é você e o que procura?

       — O nome dela é Nora Chancel — disse Jeffrey.

       Tidy piscou rapidamente, várias vezes.

       — Conheço esse nome.

       — Esteve vendo os noticiários dos últimos dias?

       — Não tenho televisão. Eu ouço o rádio. — Ele falava para Jeffrey, porém mantinha os olhos em Nora. Todo o seu corpo pareceu perder a rigidez. — Meu Deus, Nora Chancel! A mulher que foi... Céus! Até agora eu não ligava o nome à... Santo Deus, e pensar que... Então é você!

       — Sou eu.

       Sabina Mann cruzou a porta de costas, trazendo uma bandeja, e parou de mover-se assim que se virou.

       — Acho que estou interrompendo — disse, olhando para eles, de um em um. — Deve ser uma conversa extraordinária.

       Ela deixou a bandeja sobre a mesinha de canto e saiu rapidamente. Tidy não havia tirado os olhos de Nora.

       — Você está bem? Não parece ter sido machucada, mas nem sequer consigo imaginar o trauma psíquico provocado por semelhante coisa. Como está se saindo?

       — Sinceramente, não sei como responder a isso.

       — Sim, tem toda razão. Que pergunta impensada! Seja como for, escapou daquele sujeito e teve o bom senso de apelar para Jeffrey. Se me visse em dificuldades, também desejaria a ajuda de Jeffrey. Por favor, vamos sentar.

       Ele deu um tapinha no assento do sofá, e Nora acomodou-se sobre o veludo surrado. Tidy acrescentou leite a uma xícara de chá, que entregou a ela. Nora se sentiu ligeiramente atordoada pela mudança das maneiras dele. Jeffrey deslizou para uma poltrona estofada, no outro lado da lareira. Tidy permaneceu de pé, cofiando o cavanhaque. Não havia mais nenhuma insinuação do vento ártico.

       — Peço desculpas por esbravejar. Adquiri o hábito ao descobrir que era útil para intimidar meus alunos.

       — Fico satisfeita por querer ouvir-me — disse Nora.

       Tidy encarapitou-se na borda do sofá.

       — Posso apenas supor que o que vai dizer-me diz respeito ao homem que a seqüestrou. Por favor, lembre-me do seu nome.

       — Dart — disse ela. — Dick Dart. O senhor nunca ouviu falar nele.

       Tidy considerou aquelas palavras por alguns segundos.

       — Não, nunca ouvi. Por outro lado, deduzo que ele ouviu falar de mim. Estou certo em dizer que Dick Dart é um assassino, não? Não há qualquer dúvida sobre isto, certo?

       — Certo. Não há qualquer dúvida.

       — E ele quer o meu mal.

       — Dick Dart quer matá-lo.

       Ele esticou as costas e presenteou-a com um olhar de seus belos olhos azuis.

       — Que coisa extraordinária ouvir semelhante frase! Não sei o que pensar.

       — Everett — disse Jeffrey —, quer fazer o favor de calar a boca e deixá-la falar?

       — Permita-me uma pergunta mais, e então você poderá fornecer os detalhes, caso exista algum. Há um motivo, ou esse homem sorteou meu nome de dentro de um chapéu?

       Nora olhou para Everett Tiddy, procurando visivelmente conter-se e quase mordendo a língua.

       — Ele quer matá-lo, porque o senhor é filho de Bill Tidy.

       Tidy levou a mão ao rosto, como se houvesse sido esbofeteado. Fazendo um monumental esforço para ficar calado, esboçou um gesto de assentimento para que ela prosseguisse.

       Quando Nora terminou, ele disse:

       — Então, Dart supõe que meu pai guardou diários, o que de fato fez, que eles falam de sua estada em Shorelands, e realmente falam, e que estou de posse desses diários — o que é verdade. Diga-me uma coisa: tenho a honra de ser o primeiro na lista de Dart? Imagino que deva ser.

       — O senhor é o segundo. Esta tarde, ele começou em Springfield com um médico chamado Mark Foil. Foil foi o companheiro de vida inteira de Creeley Monk, e agora é seu executor literário. Estive com Foil pouco antes dele sair da cidade. Dart chegou lá um pouco mais tarde.

       — Dart é o autor do incêndio em Springfield?

       — Ele não é muito sutil — disse Nora.

       Tidy ficou absolutamente imóvel por um momento.

       — Eu poderia perguntar a você e a Jeffrey por que não foram à polícia, antes de arranjarem este encontro para me verem?

       — Não posso falar com a polícia.

       Tidy virou-se para Jeffrey.

       — Então é assim? Ela não pode?

       — Deixe isso para lá, Ev — disse Jeffrey.

       — Não acredito que esse indivíduo tenha a menor chance de encontrar meu apartamento, porém não posso permitir que destrua a casa do professor Hackett, pensando que ainda moro lá. Não tenho que fornecer meu nome ou mencionar vocês, de modo algum. Tudo quanto tenho a dizer é que vi um homem parecido com o sr. Dart na área; competirá a eles fazerem o resto. Bem, tenho algumas coisas a dizer-lhes, caso tenham tempo.

       — Ótimo — disse Nora.

       Tidy levantou-se e contemplou-a por um momento, mordendo o lábio inferior.

       — Não deixarei Sabina ouvir meu telefonema.

       Após dizer isso, Tidy saiu rapidamente da sala.

       — Oh, eu lhe trouxe algum dinheiro. — Jeffrey levantou-se e tirou a carteira de notas do bolso traseiro, enquanto caminhava para ela. — Trezentos dólares. Pague-me quando puder, mas aceite. Vai precisar de dinheiro.

       Jeffrey ofereceu-lhe o que parecia um grande número de notas. E ali estava ela, Nora Chancel, prestes a aceitar a oferta do dinheiro dele. Não queria apanhá-lo, mas supôs que não tinha alternativa. Tornara-se o objeto dos caprichos de outras pessoas, algumas delas bondosas, outras malignas.

       — Obrigada — disse, um tanto constrangida, mas aceitando o dinheiro. — Eu lhe pagarei assim que puder.

       — Não há pressa. — Ele olhou de relance pela porta. — Espero que Ev não esteja falando demais.

       A porta se abriu precisamente quando ele terminava de falar, e Tidy entrou, fitando-a de testa franzida, e fechou a porta com teatral cautela.

       — Tive de persuadir Sabina a ir ao andar de cima, enquanto dava meu telefonema. Receio que ela não esteja muito satisfeita conosco. — Viu Nora fechar a bolsa de mão, depois olhou para ela. — Você não se incomodaria de ir a um lugar comigo? Você também, Jeffrey, naturalmente.

       — Tudo bem — disse Nora. — Para onde, desta vez?

       — Para a Biblioteca da Universidade de Amherst, onde depositei os documentos de meu pai. Está fechada, mas possuo todas as chaves de que precisaremos. Jeffrey, seria ótimo você recolher essa bandeja.

       Sabina Mann estava parada no último degrau da escada, quando os três saíram da sala de estar. Everett Tidy só a viu ao estar quase diretamente à frente dela, e então fez alto de repente. Nora, logo atrás, quase colidiu com ele. Jeffrey a acompanhou, e foi um momento de certo embaraço para todos.

       — Sabina — começou Tidy, mas ela o interrompeu.

       — Eles chegam, fazem conferências, dão telefonemas clandestinos e, então, partem em massa. É como uma peça.

       Jeffrey estendeu a bandeja e ela desceu o degrau com relutância, a fim de apanhá-la.

       — Prometo explicar tudo, assim que puder.

       — Só Deus sabe o que isso significa. Everett, posso perguntar aonde você vai, a menos que seja outro segredo de estado?

       — Sabina — disse ele —, sei que tudo isso deve ser bastante enigmático para você, e lamento a necessidade de sair a toda pressa, sem uma explicação. Não obstante, eu...

       — Por que não experimenta dizer-me, em palavras simples, para onde os está levando?

       Ele balançou a cabeça.

       — Como sabe que os estou levando a algum lugar?

       — Você está segurando as chaves de seu carro — replicou ela.

       Com toda a dignidade que pôde encontrar, Tidy explicou:

       — Temos que ir à biblioteca da universidade, Sabina. Voltarei dentro de mais ou menos meia hora, posso?

       — Não se preocupe. Ligue para mim amanhã, se tiver alguma coisa a dizer. Você vai voltar, Jeffrey?

       — Sinto muito, mas tenho que ir a Northampton. Prometo vir vê-la bem depressa.

       — Você é a pessoa mais exasperante deste mundo! — Ela deu a Nora um olhar em que ameaçava surgir uma franca desaprovação. — Eu os levo até a porta.

      

HAVIA TANTO ESPAÇO entre o banco traseiro e o dianteiro, que os dois homens pareciam estar a duas vezes a distância normal dela.

       — Aquela mulher não é feliz comigo.

       — Não se trata de você apenas — replicou Jeffrey. — Sabina costumava ser infeliz comigo.

       — Sua tia não tem sido feliz comigo desde que deixei a Sociedade Emily Dickinson — disse Tidy.

       — Sua tia? Sabina é sua tia? — perguntou Nora.

       — Você realmente fala demais, Ev.

       Tidy virou a cabeça de lado a fim de encará-lo, depois tornou a olhar para diante.

       — Desculpe-me, Jeffrey, mas eu naturalmente supus que sua amiga soubesse quem você é. Por que ela o procuraria, se...

       — Já chega!

       — Droga, Jeffrey, deixe-o falar! — exclamou Nora. — Eu lhe contei tudo, ao passo que você se limita a mover-me de um lado para outro como uma marionete. Não me importo se você ganhou a Medalha de Honra Congressional e o Prêmio Nobel, ouviu bem? Você não é o meu precioso filho. Aliás, já estou ficando farta disso!

       O que ela de fato desejava fazer, o que cada célula do seu corpo lhe dizia para fazer, era abrir a porta do carro e pular para fora. Caso não saísse logo daquele carro, teria que dar sopapos, arranhar o rosto deles, morder o que quer que pudesse morder, porque se não fizesse isso, algo pior iria acontecer-lhe.

       — Não a censuro por estar aborrecida comigo, Nora.

       — Pare o carro!

       — Quero que você pense duas coisas.

       — Não me importa o que você quer, Jeffrey. Deixe-me sair!

       — Fique calma e ouça. Se depois disso ainda quiser sair, tudo bem, é só sair.

       — Vá para o inferno! — disse ela, segurando a maçaneta da porta.

       — Você também ficou farta disso lá na casa, não? Foi quando isso começou; quando estávamos sozinhos na sala de estar.

       Nora abriu a porta do carro, mas antes que pudesse pular para fora, Jeffrey já se tinha debruçado sobre o assento e mergulhava na direção dela. Tidy gritou alto, no banco da frente. Enquanto Nora inclinava-se pela porta, Jeffrey segurou-a pela cintura e a puxou de volta. Ainda a segurando com firmeza enquanto ela lutava para libertar-se, ele bateu a porta e a trancou. Nora socou-lhe o braço, mas ele apertou as mãos em volta dos cotovelos dela e a puxou para o banco.

       — Tire as mãos de mim!

       O rosto dele estava a centímetros do dela. Nora chutou-lhe o tornozelo, errou o golpe e tentou novamente. Seu pé colidiu com a perna dele.

       — Ai! — queixou-se ele, e seu rosto ficou mais próximo. — Diga-me por que está fora de si. Não é por minha causa!

       Nora chutou novamente, mas ele afastara a perna e o pé dela encontrou apenas o vazio. Tentou com o outro pé, tornando a errar o alvo. Ele lhe pressionou os braços contra o corpo e a fez ficar imóvel no assento.

       — Agora, vamos, diga-me por que está fora de si!

       — Solte-me! — gritou ela.

       — Está bem, vou soltá-la.

       Pouco a pouco, a pressão dele foi afrouxando, enquanto seu rosto afastou-se, até cessar inteiramente de contê-la. Nora ergueu a mão direita, porém era tarde demais para atingi-lo. Sua mente já voltara a funcionar. Baixando a mão, encarou-o fixamente. Jeffrey remexeu em algo abaixo dele, que flutuou para cima e tornou-se um assento extra.

       — Que espécie de carro é este, afinal? — perguntou Nora, caindo para trás, contra o encosto. — Um táxi?

       — Sim, daqueles antigos — disse Everett Tidy. Ele havia parado junto ao meio-fio e, com um braço passado pelo topo por cima de seu assento, olhava para os dois, no banco de trás. — Meu pai dirigia um, e eu nunca nunca tive outro tipo de carro. Este aqui me pertence desde 1972. Você está bem?

       — Como poderia estar bem? — replicou Nora. — As pessoas apossam-se de mim, levam-me de um lado para outro, e nem ao menos me dizem a verdade! Mesmo antes do FBI entrar em cena, minha vida já tinha virado uma catástrofe. Então, coisas horríveis aconteceram comigo, e acabei perdendo a razão. Todos mentem para mim, querem apenas usar-me, e já estou farta de todos estes sigilos, todas estas tramas.

       Ela parou de lamentar-se e respirou fundo. Jeffrey tinha razão. Não estava zangada com ele. Acabara de perceber que continuava furiosa com Dan Harwich — talvez não com o Dan Harwich real — mas enfurecia-a a perda do homem como o tinha imaginado. Esta perda dava-lhe a sensação de um enorme ferimento, e parte de sua fúria era originada por saber que o ferimento houvera sido auto-infligido.

       — Perdoe-me — disse Tidy.

       — Um momento — disse-lhe Jeffrey. — É por causa de Dick Dart, não? E também por Davey ter deixado a casa de vocês. Você tem sido injuriada, é natural que se sinta como se não tivesse controle sobre sua vida. Qualquer um sentiria o mesmo.

       — Suponho que sim.

       Outra percepção ganhou corpo dentro dela: a de que seu verdadeiro ressentimento tinha a ver com um aspecto quase impessoal da provação que atravessava. Desde o início, fora forçada a concentrar-se em um assunto de muito mais importância para todos à sua volta do que para ela própria. Um ciclone demolira sua vida e a arrebatara. O ciclone chamava-se Hugo Driver, ou Katherine Mannheim, ou Shorelands, ou Jornada na Noite, ou todos eles ao mesmo tempo. Ainda que Dick Dart, Davey Chancel, Mark Foil e os dois homens naquele carro se preocupassem o suficiente com o ciclone para abrir suas casas, vasculhar documentos, lutar com processos, dirigir centenas de quilômetros e, por causa disso, arriscando-se à prisão, tinha sido ela — a quem pouco importava tudo aquilo — a pessoa que se via à frente do assunto.

       — Jeffrey — disse Tidy —, eu preciso...

       — Por favor, Ev. Ouça, Nora, eu não sabia se poderia falar por minha mãe, de maneira que adiei certas coisas, até ela conhecer você. O que gostaria de fazer? A decisão é sua.

       Ela continuou recostada no encosto do assento.

       — Sinto muito ter perdido o controle. Por que não esquecemos o que houve e voltamos ao que estávamos fazendo?

       — Também eu sinto muito — disse Tidy — mas não posso fazer isso, enquanto alguém não me explicar o que você quis dizer, quando falou sobre o FBI.

       — Você a ouviu declarar que não poderia ir à polícia — disse Jeffrey. — E não pareceu nem um pouco perturbado com isso, segundo me lembro.

       — Quero saber por que o FBI está envolvido. Não vou a lugar nenhum, enquanto não souber.

       — Nora? — disse Jeffrey, pousando uma das mãos, uma das que pouco antes a tinham contido à força, sobre o joelho dela.

       Ela puxou o joelho, libertando-se do contato.

       — Não há problema. Não tenho segredos, tenho? Quer ouvir a história, professor? Ótimo, eu compreendo, o senhor quer saber se ficará moralmente comprometido, relacionando-se comigo.

       — Nora — interveio Jeffrey —, Ev está apenas...

       — Uma vizinha minha foi raptada. Pensamos que houvesse sido assassinada, mas estávamos enganados. Quando reapareceu, ela alegou que eu a raptara. Pelo menos, é uma das coisas que diz. Ela não tem sido muito racional. Como descobriram que meu marido vinha dormindo com ela, o que era novidade para mim, o FBI a levou a sério. Há mais alguma coisa que gostaria de saber?

       Tidy coçou a barbicha.

       — Creio que é o suficiente. E então, ainda vamos à biblioteca da universidade?

       — Eu nem sonharia ir a qualquer outro lugar — disse Nora.

      

EM UMA SALA monástica no último andar da biblioteca de Amherst, Nora contou a Everett Tidy o que sabia sobre Creeley Monk. Ao lado dela em uma comprida mesa de madeira, ele ouvira com crescente excitamento, o qual por fim parecera congelá-lo na incapacidade de olhar para outras coisas que não fossem a antiga e alta máquina de escrever no fim da mesa e a foto na parede, mostrando seu pai sentado diante daquela mesma máquina.

       Depois que Nora terminou, Tidy puxou em sua direção uma caixa-arquivo, dizendo:

       — Fico grato por você estar partilhando sua informação comigo.

       — Sinta-se à vontade — respondeu ela, esperando ouvir o que a história significava para ele.

       — Meu pai desconfiava de Creeley Monk, e devo explicar isto primeiro. Ele simplesmente não acreditava na história de Monk ser um jovem da classe operária, natural de Springfield, filho de um dono de bar, etc., etc. Monk havia estudado em Harvard, usava roupas caras, e meu pai, que era quase totalmente autodidata, achou que estava sendo ridicularizado. Quase tudo sobre Shorelands o deixava constrangido. Ele não teria aceito o convite de Georgina, em absoluto, se não o considerasse um meio de amenizar suas dificuldades com seu segundo livro. Contudo, soube que cometera um erro quase assim que chegou lá, mas pensou que não tinha alternativa senão manter-se firme. Ele não era do tipo que desiste com facilidade.

       — Eu compreendo — disse Nora.

       — Ele dependia do livro para ganhar o suficiente, a fim de que nunca mais precisasse dirigir um táxi. Um dia depois de estar em Shorelands, soube que Lincoln Chancel estava para chegar, presumivelmente querendo descobrir escritores para sua nova firma editora.

       Nora quis levar a conversa para o que quer que houvesse despertado o enorme senso de fracasso no íntimo daquele homem disciplinado, uma questão talvez relacionada a Katherine Mannheim, mas uma pergunta sobre o admirável Bill Tidy a perturbava.

       — Ao ir para Shorelands, de certo modo ele não abandonara sua mãe e o senhor?

       Tidy sacudiu a cabeça com veemência.

       — Não houve qualquer questão sobre abandono. Nós tínhamos um convite de pé para irmos a Key West, onde um velho amigo de meu pai, chamado Boogie Ammons, possuía um pequeno hotel. Quando chegou o convite para Shorelands, meu pai providenciou para que eu e minha mãe ficássemos lá. Durante todo aquele mês, vivemos melhor do que em nossa casa. Sentíamos sua falta, é claro, mas ele escrevia duas ou três vezes por semana, a fim de termos alguma idéia sobre o que estava fazendo.

       — O senhor conservou as cartas?

       — Ainda tenho a maioria delas. Não detalham demais a permanência dele em Shorelands. Só anos após sua morte é que me senti com coragem de ler seus diários, e então fiquei sabendo o quanto havia detestado aquele lugar.

       Tidy abriu a caixa-arquivo e tirou de lá um volume encadernado em tecido verde-escuro.

       — Também percebi o quanto ele estava pouco à vontade consigo mesmo. Você compreende? Meu pai sentia-se em uma espécie de corda bamba, da qual não queria cair.

       — Acho que não entendi — disse Nora.

       Tidy assentiu.

       — Pense na situação dele. Meu pai estava realmente lutando com um novo livro. Se tudo desse certo, ele finalmente ficaria livre para não fazer outra coisa além de escrever. Lincoln Chancel era um monstro brutal, devorador, mas representava uma saída. Meu pai estava tão desesperado, que não conseguia deixar de bajular o homem. Algo contra os seus princípios de senso moral. Infelizmente para ele, havia um outro hóspede ainda mais desesperado. Hugo Driver valeu-se da casualidade de hospedar-se na mesma casa que Chancel, para transformar-se em um indivíduo extremamente insistente e importuno.

       — Então, seu pai sentiu inveja de Driver — disse Nora.

       — O que o fez sentir-se ainda pior sobre si mesmo. Não podia confiar em sua antipatia instintiva pelo homem. Assim, nunca se juntava ao grupo no terraço, onde Chancel aparecia quase toda tarde, porque Hugo Driver não deixaria de estar lá. Como questionava sua antipatia por Driver, forçou-se a suspender um julgamento quando ouviu mexericos, ainda mais porque desconfiava da fonte.

       — Ele já pensava que Creeley Monk era mentiroso — disse Nora.

       — Monk o impressionou como exatamente o tipo de pessoa que inventa coisas sobre outras. Especialmente quando isso pode ajudar sua própria causa. Neste exemplo, com Merrick Favor.

       Finalmente, aqui havia uma possibilidade de mover-se para o centro das preocupações dele.

       — O que seu pai pensava sobre Katherine Mannheim?

       Everett Tidy a surpreendeu, quando olhou através da mesa para Jeffrey, o qual deu de ombros. Ele correu os dedos sobre a capa do livro à sua frente, claramente considerando o que dizer.

       — Em grande parte pelos motivos que já expliquei, meu pai realmente teve pouco contato com os demais hóspedes. A outra parte de seu isolamento era física. Georgina destinou-lhe a “Casa dos Trevos”, no interior da floresta e atrás do Vale de Monty, tão afastada da Casa Principal, que caçadores furtivos e larápios perambulavam pelas proximidades, no meio da noite. Ele chegou a ouvi-los, na própria noite em que a srta. Mannheim desapareceu.

       Tidy silenciou, e Nora esperou que ele encontrasse um meio de falar no que quer que o inflamara.

       — Nos diários de meu pai, nada existe sugerindo que Driver houvesse roubado um manuscrito da srta. Mannheim.

       — Entendo — disse Nora, achando que não entendia em absoluto.

       — Entretanto, você perguntou o que meu pai pensava sobre a srta. Mannheim, uma informação que poderia ser-lhe útil, e, através de você, a mim também. Posso afirmar que a minha vida inteira desejei saber o que teria acontecido em Shorelands naquele verão. — Seu misterioso excitamento pareceu intensificar-se. — Ainda há um grande tópico a discutir, o qual pode ser tão crítico para você quanto o é para mim. Havendo alguma possibilidade, você me contará o que quer que venha a descobrir?

       — Naturalmente.

       — Obrigado. Agora, voltemos a Katherine Mannheim. — Ele disse isto com o ar de adiar deliberadamente seu “grande tópico”. — Ficou bem claro que era uma presença atraente, interessante, muito segura de si. Podia ser intencionalmente rude, segundo deduzi, porém o que de fato impressionou meu pai, além da independência dela, foi o que ele denominou “sua serenidade”.

       — Serenidade?

       — Isto a surpreende, não é mesmo? Ele quis dar a entender uma mescla de confiança em si mesma, bondade instintiva, coragem e compaixão. Inicialmente, foi enganado pelo gênio irritadiço dela e seu desejo de ser indiferente ao convencionalismo, porém após a primeira semana, ele começou a enxergar estas outras qualidades.

       Tidy abriu o diário.

       — Ouça isto:

 

“Estive pensando sobre esta curiosa pessoa que é Katherine Mannheim. Ela nunca possuiu dinheiro, leva uma vida simples e sem queixas. Onde parece boêmia e inconseqüente, ela é totalmente concentrada. Escreve lentamente, com grande cuidado, publicando pouco, mas o que publica, faz sucesso. Para ela, o reconhecimento, aclamação ou qualquer espécie de recompensa pública, nada representam. Pergunto-me se eu não agiria de modo tão tolo como Merrick e Austryn, caso não me sentisse tão satisfeito casado com a minha querida Min.”

      

       — Min e Bill? — perguntou Nora. — Não houve um filme...

       — Tratava-se de uma piada de família — respondeu Tidy. — O verdadeiro nome de minha mãe era Leonie.

      

“Até mesmo o monstruoso Lincoln Chancel, com trinta anos a mais do que Katherine, e que mostra no rosto sua glutonaria, a deseja. Merrick e Austryn são atraídos pelo ser interior dela, porém imaginam que lhe querem o corpo, desta maneira não vendo que Katherine é casta. Não que seja uma castidade cálida; ela é gélida e determinada.”

      

       — Katherine Mannheim nunca esperou chegar à velhice. A vida inteira teve conhecimento de seu coração fraco, porém recusou-se a viver como inválida, exceto neste único sentido. Sempre achei que, se ela considerava potencialmente perigosas atividades como andar de bicicleta, beber vinho e dar longas caminhadas, então tinha certeza de que o sexo poderia matá-la. Em todo caso, seus instintos a conduziram para uma forma modesta de vida.

       — Seu pai sabia em que ela estava trabalhando? — perguntou Nora.

       — De maneira nenhuma. O que Georgina denominava o Definitivo, uma espécie de tradição de final-de-termo, explicaria este detalhe, porém ela não quis seguir o jogo.

       — O que era o Definitivo?

       — No fim da terceira semana de permanência dos hóspedes, todos os escritores reuniam-se para uma espécie de abaixo-assinado, com as assinaturas dispostas em círculo para ocultar a precedência. Isso acontecia no Vale de Monty, dentro do círculo de pedras eretas, conhecidas como os Pilares Cantantes. O jardineiro que criara a clareira, Monty Chandler, havia reparado que vários pedregulhos erodidos e escavados de um campo próximo tinham todos mais ou menos uns quatro metros de altura, sendo achatados nas extremidades. Ele trabalhou duro para aprumá-los na clareira. Os convidados sentavam-se em círculo no interior do anel de pilares. Georgina fazia algumas preleções sobre a história de Shorelands. Quando terminava, os hóspedes descreviam em que estavam trabalhando, como se desenvolvia esse trabalho, etc. Naturalmente, esperava-se que prestassem um tributo à hospitalidade de Georgina, descrevendo as maneiras como Shorelands os tinha inspirado. Também esperava-se que eles fossem divertidos. Georgina Weatherall gostava de ser entretida, assim como elogiada. Como era de se esperar, Katherine Mannheim recusou-se a participar do jogo.

       Ele virou mais algumas páginas.

       — Aqui está:

      

“Após a canção de elogios de Merrick à hospitalidade da srta. Weatherall, às maravilhas de Shorelands e a seus próprios talentos, foi a vez de Katherine Mannheim falar. Ela sorriu. Estava certa, disse, que todos compreenderíamos sua decisão de seguir uma costumeira prática de não comentar um trabalho em andamento. Aqueles que a tinham precedido eram mais corajosos e menos supersticiosos do que ela, qualidades que a faziam admirá-los imensamente. Quanto a Shorelands, sua magnificência era tão grande, que desafiava qualquer descrição de sua parte, porém era um prazer mencionar os serviços de Agnes Brotherhood, a criada que todas as manhãs lhe limpava a cozinha e arrumava sua cama. Ao deixar Shorelands, sentiria grande falta da assistência doméstica da srta. Brotherhood.”

      

       — Katherine recusou-se a falar sobre seu trabalho e declarou-se agradecida à empregada — disse Nora. — Dá a impressão de que esperava ser convidada a ir embora.

       — Ou que queria sê-lo — disse Tidy. — Georgina sentiu-se ultrajada. Aqui está o que meu pai diz:

 

“A srta. Weatherall ajeitou suas camadas de púrpura e carmesim em torno dos ombros. Seu rosto ficou vermelho-vivo por sob a maquiagem. Murmurou que transmitiria à criada os cumprimentos da srta. Mannheim. O seguinte na fila, Hugo Driver, começou por elogiar a generosidade da srta. Weatherall, e prosseguiu descrevendo as refeições, os jardins e conversas em tal extensão, que quando encerrou seu panegírico à nossa anfitriã, um gênio cuja grandeza jazia nisto, naquilo e naquiloutro, ninguém chegou a perceber que ele não se dera ao trabalho de mencionar seus escritos.”

      

       — Em vista disto — concluiu Tidy — nós de fato ignoramos sobre o que cada um deles esteve trabalhando naquele verão.

       — Driver viu uma chance de esconder-se por trás de uma cortina de fumaça — comentou Nora.

       — Talvez porque ele não estivesse fazendo muito progresso, isto significando que ficara cada vez mais dependente de Lincoln Chancel. Seja lá como for, chegada a vez de meu pai, ele falou tanto sobre Chancel como sobre Georgina Weatherall. A verdade é que continuou nutrindo esperanças, mesmo depois de voltar para casa.

       — Ele chegou a terminar o livro? — perguntou Nora.

       Tidy inalou bruscamente, depois girou sua cadeira a fim de encará-la com toda a contida intensidade visível nos olhos.

       — Deixe-me perguntar-lhe isto: disseram a você o que foi feito do romance em que Merrick Favor trabalhava?

       — Foi rasgado em pedaços.

       — Como o livro de meu pai. Rasgado, queimado, e tudo o mais.

       Jeffrey falou pela primeira vez, desde que tinham entrado na biblioteca:

       — O que está dizendo, Ev?

      

Com o que pareceu a Nora um deliberado e momentâneo relaxamento de seu férreo autocontrole, Tidy ergueu o rosto para a foto de seu pai.

       — Muito bem, aqui estamos nós, para o importante tópico.

       — Não nos deixe na expectativa — pediu Jeffrey.

       — Farei o possível para que isso não aconteça. — Tidy olhou para Nora, depois tornou a fitar o retrato do pai. — No inverno seguinte após voltar de Shorelands, meu pai contou para minha mãe que tinha certeza absoluta de conseguir terminar seu livro em duas ou três semanas, caso pudesse trabalhar sem interrupções. O resultado final é que fomos novamente convidados a voltar a Key West; quando meu pai terminasse o livro, seria convidado também, para comemorar. Boogie Ammons disse: “Vale alguns hambúrgueres, você finalmente tirar o peso desse livro de suas costas.” Pouco mais de duas semanas depois, um policial apareceu no hotel e contou para minha mãe que meu pai se matara.

       “Não tive condições de ler nada escrito por ele, senão quando já estava lecionando aqui e tinha formado minha própria família. Os diários dele encontravam-se em uma mala, no meu porão. Certa noite, quando todos estavam na cama, vim de carro a esta biblioteca, apanhei Nossas Frigideiras, levei-o para casa, abri uma garrafa de conhaque e fiquei acordado até terminar de ler o livro. Era uma experiência incrivelmente emocional. Em seguida, tive que ler os diários dele. Quando afinal me senti forte o bastante para enfrentar o último, descobri algo totalmente inesperado. Uma semana antes de partirmos para a Flórida, o seu agente lhe escrevera, comunicando que fora procurado por Lincoln Chancel, o qual se mostrara interessado em fazer uma exploração confidencial sobre a situação de meu pai. Chancel gostara do que tinha ouvido sobre o novo livro, quisera saber quanto faltava para ser terminado e se meu pai consideraria a publicação de seu trabalho por ele, Chancel. Meu pai respondeu, dizendo que estava prestes a terminar o livro e queria mostrá-lo a Chancel. Ele não contou nada disso para minha mãe.

       “Cerca de uma semana mais tarde, ele recebeu algumas excitantes notícias. Uma vez que estava escrevendo sobre si mesmo, meu pai não foi muito específico a respeito, em seu diário. Veja o que deduz disto:

 

‘Larguei minha máquina de escrever para atender o telefone. Declarei meu nome. Que grande mudança ocorreu então! Haverá uma visita da realeza. O Ser Real virá sozinho. Não deverei contar para ninguém e, se violar esta condição, inclusive através de uma insinuação a respeito e mesmo para minha mulher, ficará o dito por não dito. Somente Ele e eu deveremos estar presentes. O grande acontecimento terá lugar em três dias. Francamente, não sei o que esperava, porém ISTO, bem, ISTO supera tudo’.”

      

       Tidy olhou para Nora.

       — E então? — perguntou.

       — É semelhante ao acontecido com Creeley Monk — respondeu ela. — A visita foi suspensa?

       — Aqui está a última coisa que meu pai escreveu.

      

“Cancelamento. Sem explicações. Mal posso erguer-me do chão. Conseguirei prosseguir? Há uma alternativa para mim? Não tenho escolha, mas como posso continuar, sentindo-me como me sinto?”

      

       — Exatamente o que aconteceu a Creeley Monk, alguns dias mais tarde. Acredita que possa ser uma coincidência?

       — Não, não acredito — respondeu Nora — mas isso então significaria...

       — ...que Monk recebeu a mesma espécie de carta que meu pai. Não parece provável que Merrick Favor e Austryn Fain tivessem sido abordados da mesma forma? E não parece ainda mais provável que quem arranjou um encontro privado, para depois cancelá-lo, foi Lincoln Chancel?

       — Santo Deus! — exclamou Jeffrey. — Você acha que foi tudo um logro? Uma armação?

       — Seria preciso mais do que uma rejeição de Lincoln Chancel para fazer meu pai jogar a toalha.

       Nora encarou-o fixamente. Depois lançou um olhar desvairado através da mesa para Jeffrey que, evidentemente, alguma vez antes já percebera a que levava tudo aquilo.

       — O senhor acha que Lincoln Chancel assassinou seu pai e Creeley Monk, além de também Merrick Favor e Austryn Fain.

       — Eu acho que Chancel o empurrou da janela e rasgou seu manuscrito em pedacinhos, justamente como fez com Favor.

       — Talvez isto seja óbvio, mas por que ele o faria?

       — Imagino que Chancel tivesse algo a esconder — disse Tidy.

       — A verdadeira autoria de Jornada na Noite.

       — É claro — disse Jeffrey. — Monk sabia que Driver era um ladrão. Comentou isso com Merrick Favor, e tanto seu pai como Fain escutaram a conversa por acaso, porém ninguém acreditou nele. Mais tarde, Favor disse aos dois que Monk tinha razão. Estava certo de que vira Driver roubar algo de Katherine Mannheim. Todos sabiam que Driver vinha tendo problemas com seja o que for que escrevia no momento, porém seis meses depois, ele produz seu estupendo livro e dá o Copyright à Casa Chancel.

       — É isso aí — disse Tidy. — Chancel foi impiedoso com Driver, como com todos em geral. Tinha apenas de preocupar-se com a possibilidade de Katherine Mannheim haver falado sobre seu trabalho com algum dos demais hóspedes.

       — Ele marcou estas entrevistas sigilosas — disse Nora — para cancelá-las em seguida. Então, surgiu à soleira dos interessados, e esperou apenas que eles virassem as costas.

       Por um segundo, as três pessoas na sala situada no último andar da biblioteca ficaram em silêncio.

       — E agora? — perguntou Nora.

       — Parece que o resto compete a você — respondeu Tidy.

      

— E O QUE ESPERA que eu faça? — exclamou Nora. — Não posso provar que o avô de Davey assassinou quatro pessoas, há cinqüenta anos atrás. Isto faz sentido para Everett Tidy, para você e para mim, porém quem mais irá acreditar nesta história?

       — Penso que Ev quis dizer que você deveria continuar com o que já está fazendo.

       O céu ainda brilhava, e vibrantes campos verdes jaziam a cada lado da comprida e reta estrada que levava a Northampton. Um vento quente bateu no rosto de Nora e agitou-lhe os cabelos curtos, enquanto parecia passar por Jeffrey sem ao menos tocá-lo.

       — O que estou fazendo?

       — Dando um passo depois do outro.

       — Muito inteligente! Afinal de contas, acha que foi Katherine Mannheim quem escreveu Jornada na Noite?

       — Julgo isso mais provável do que julgava pela manhã.

       — Por que é tão importante que eu conheça sua mãe?

       — Sempre esqueço o quanto é bela esta parte de Massachusetts...

       Jeffrey não entregava os pontos.

       — Está bem. Tentemos outro assunto. O que fazia seu pai?

       — Era cozinheiro, ou talvez eu devesse dizer chef. Toda a minha família, pelo menos deste lado, era composta de grandes cozinheiros. Meu bisavô foi o chef principal do Grand Palazzo della Fonte, em Roma. Seu irmão foi o chef principal do Excelsior. Apesar da desvantagem de não ser italiana, minha mãe foi tão boa quanto todo o resto. Antes de meu pai morrer, eles pretendiam abrir um restaurante. Na verdade, minha mãe ainda gosta de cozinhar.

       — E agora ocupa-se cozinhando para o Banquete dos Curadores e a Recepção do Presidente.

       Jeffrey fitou-a longamente de lado.

       — Sua tia Sabina disse qualquer coisa a respeito.

       — Você tem boa memória.

       — Sabina é irmã de sua mãe?

       Jeffrey puxou o boné de Eton um pouquinho mais para baixo da testa. Pela primeira vez, a brisa passando por Nora pareceu tocá-lo também.

       — Já entendi. Aqui é o fim da linha. Pode, pelo menos, falar-me sobre Paddi?

       — Posso contar uma parte, mas o resto terá de esperar. Lembre-se de como Sabina se sente a respeito dos Chancels. Ela os responsabiliza por um monte de coisas, porém a principal delas é o que aconteceu com sua filha. Era uma boa garota, antes de sair dos trilhos. Talvez fosse um pouco parecida comigo, daí por que eu gostava dela. Patty, como se chamava então, era muito mais nova do que eu, mas sempre gostei de sua companhia. Naturalmente, fiquei ausente muito tempo, de modo que não estava por perto quando ela descobriu Jornada na Noite. O livro passou a ser sua vida. Ela modificou o nome. Por vezes, simulava ser outros personagens do livro. Acho que Patty afundou cada vez mais em sua obsessão, chegando ao ponto de desaparecer de casa para visitar outras pessoas fanáticas por Driver. Houve muito abuso de drogas, brigas em casa, toda a personalidade dela mudou, Patty não queria mais passar seu tempo com alguém incapaz de ficar dia após dia falando apenas de Driver e do livro. Então, aos dezesseis anos, fugiu de casa.

       “Um fã de Driver indicava-lhe outro, de maneira que ela ficou flutuando por esse deprimido submundo dedicado ao Pequeno Pippin, vivendo em casas de admiradores de Driver. Tais pessoas passavam a vida representando cenas do livro. Ninguém sabia onde ela estava. Uns dois anos mais tarde, Patty conseguiu falsificar sua entrada para a Escola de Desenho de Rhode Island — não consigo imaginar como — e Sabina enviou-lhe dinheiro, mas ela recusou-se a ver a mãe. Ficou estudando cerca de um ano, quando então tornou a desaparecer. Sabina recebeu um cartão-postal de Londres. Patty estava em outra escola de arte e morava em outra casa de admiradores de Driver. Drogas a granel. Depois ela se mudou para a Califórnia, onde viveu situação idêntica, e terminou em Nova York, movendo-se entre o East Village e Chinatown, totalmente submersa nesse mundo demente de Driver. Deve ter sido quando conheceu Davey. Seja como for, Patty sumiu mais uma vez e ninguém sabia de seu paradeiro, até ela morrer de uma superdose de heroína em Amsterdã, e a polícia entrar em contato com Sabina.”

       Havia bem menos floreios na história de Davey do que Nora tinha pensado.

       — Obrigada por contar-me — disse. — Contudo, ainda não entendi por que ela parecia tão obcecada pelo manuscrito e por Katherine Mannheim.

       — Pare de querer saber tudo, e fale-me sobre sua infância ou sobre como conheceu Davey. Diga-me o que pensa de Westerholm.

       Nora compreendeu que Jeffrey não forneceria mais esclarecimentos.

       — Não suporto Westerholm, conheci Davey em um bar do Village chamado Chumley’s, e meu pai costumava levar-me em suas excursões de pesca. Jeffrey, onde vou dormir esta noite?

       — Há um simpático hotelzinho em Northampton. Poderá ficar lá o tempo que quiser.

       Minutos mais tarde, eles passavam por baixo da auto-estrada e entravam em Northampton pelo leste. Filas de lojas e mercearias marginavam a rua. No sopé de uma colina, os prédios foram ficando mais altos e substanciais; o MG passou a mover-se lentamente em meio a muitos outros carros. Passaram por baixo de uma ponte ferroviária, e jovens moviam-se ao longo das amplas calçadas ou permaneciam em grupos nos enormes cruzamentos. Jeffrey apontou para uma rua larga e encurvada, indicando o Northampton Hotel, um imponente prédio castanho com um terraço florido, diante de um novo anexo envidraçado.

       — Quando tivermos esgotado o assunto em casa de minha mãe, eu a trarei de volta e providenciarei um quarto para você. Nos dois dias seguintes, conversaremos sobre o que deve fazer. Se quiser, poderemos almoçar e jantar juntos enquanto isso.

       — A grande cozinheira não o alimenta?

       — Minha mãe não tem muita tendência doméstica.

       Nora contemplou a bela e agradável Main Street — a Rua Principal — com seus postes de iluminação e restaurantes anunciando pizzas assadas em fornos de tijolos e fogo de lenha, frango tandoori e sopa fria de cerejas; viu galerias cheias de arte indígena e pedras importadas; reparou nos ajuntamentos e grupos de jovens atraentes, mulheres em sua maioria, de mochilas penduradas às costas por correias, vestindo jeans com pernas cortadas e frentes-únicas ou camisetas. Então, perguntou a si mesma: O que estou fazendo aqui?

       — Estamos chegando — disse Jeffrey.

       O MG seguiu um bando de garotas de bicicleta, desligando-se do trânsito para uma rua mais tranqüila, ao longo de uma extensão de terreno semelhante a um parque, onde dignificados carvalhos cresciam ao lado de sazonados prédios de tijolos, unidos por uma rede de alamedas. As jovens de bicicleta desviaram-se para uma alameda com uma placa da Universidade Smith. Jeffrey fez uma perfeita curva em U diante de um grande prédio de dois pavimentos, revestido de ripas castanhas e provido de uma varanda coberta de telhas, ampla o bastante para danças, que corria pela fachada e lado esquerdo da casa. Parecia um pequeno hotel de veraneio nas Adirondacks. Uma placa recuada da calçada anunciava BUFÊ “SABOR CELESTIAL”.

       Jeffrey virou-se para ela, com um sorriso de desculpas.

       — Deixe-me entrar primeiro e prepará-la, está bem? Voltarei em cinco minutos.

       — Ela não sabe que estou vindo?

       — Foi melhor assim. — Ele abriu sua porta e esticou uma perna para fora do carro. — Cinco minutos.

       — Tudo bem.

       Jeffrey saiu, fechou a porta e inclinou-se sobre ela por um momento, olhando para Nora. Se estivera tentado a dizer algo, resolvera ficar calado.

       — Não vou fugir — disse ela. — Pode ir, Jeffrey.

       Ele assentiu.

       — Volto logo.

       Subiu o comprido caminho de tijolos, saltou pelos degraus e olhou para trás, na direção de Nora. Então cruzou a varanda e abriu a porta da frente. Antes de entrar, tirou o boné da cabeça.

       Nora reclinou-se no assento, alongou as pernas diante de si e aguardou. Um inseto zumbiu na relva abaixo da placa diante da casa. No outro lado da rua, um cão latiu três vezes, roucamente, como que dando um aviso, para depois silenciar. Aos poucos, o ar ia começando a ficar mais escuro.

       Após cinco minutos, Nora olhou para a varanda, esperando ver Jeffrey surgir à porta. Minutos mais tarde, tornou a olhar, mas a porta continuava fechada. De repente, pensou em Davey, que nesse momento devia estar fazendo alguma coisa, como arrumar seus discos compactos nas estantes de Jeffrey. Pobre Davey, trancado dentro daquela jaula que era “Os Álamos”. Saindo do MG ela percorreu a calçada, de um lado para o outro. Poderia chamá-lo? Não, claro que não poderia chamá-lo, que idéia mais idiota! Ergueu novamente os olhos para a varanda e sentiu um choque elétrico na boca do estômago. Uma jovem negra, extraordinariamente bonita, com uma echarpe branca sobre os cabelos, olhava para ela, postada no janelão da casa. A jovem afastou-se da janela e desapareceu. Um momento mais tarde, a porta finalmente se abriu e Jeffrey emergiu na varanda.

       — Houve algum problema? — perguntou Nora.

       — Está tudo bem, apenas foi difícil conseguir a atenção dela.

       — Vi uma moça na janela.

       Ele olhou por sobre os ombros.

       — Estou surpreso por você não ter visto uma dúzia.

       Ela o precedeu nos degraus de madeira levemente empenados e cruzou a extensão da varanda até a porta da frente. Jeffrey disse:

       — Por aqui, permita-me — e inclinou-se diante dela, a fim de empurrar a porta e abri-la.

       Nora entrou em um enorme espaço aberto, com um computador em frente de um grande calendário na parede da direita e, no outro lado, uma televisão com tela de projeção e dois usados sofás de veludo. No extremo oposto, um amplo arco dava para um espaço ainda mais amplo, onde algumas jovens de jeans inclinavam-se sobre bancadas e outras mulheres jovens carregavam panelas e transbordantes coadores para outras destinações, mais para dentro do prédio. Uma das que carregavam panelas era a estonteante negra que ela vira na janela. Uma loura esguia, de vinte e poucos anos, que estivera vendo um desenho animado, ergueu os olhos para Nora.

       — Oi! — disse.

       — Olá — respondeu Nora.

       — Você é a primeira mulher que Jeffrey já trouxe aqui — disse a loura. — Nós achamos muito interessante.

       No outro lado do arco, dez ou doze jovens picavam vegetais e dobravam bolinhos de massa, nos dois lados de duas bancadas para corte de carnes. Panelas e caldeirões de cobre pendiam de vigas no teto. Em frente de dois fogões de restaurante, mais mulheres, a maioria em jaquetas brancas e echarpes da mesma cor nas cabeças, cuidavam de caçarolas fervilhantes e borbulhantes cubas. Uma remexeu destramente os conteúdos de uma panela wok. Um refrigerador de aço inoxidável, do tamanho de uma Mercedes, erguia-se ao lado de uma mesa onde duas mulheres empacotavam containers em caixas de papelão isolante. Além delas, uma janela se abria para uma extensa horta, na qual uma mulher de avental azul debulhava vagens de ervilhas. Todas as mulheres na cozinha deram a Nora a impressão de alunas diplomadas — da maneira como alunas diplomadas pareceriam, se estivessem por volta dos vinte e cinco anos, fossem esbeltas e excepcionalmente atraentes. Algumas das que se achavam diante das bancadas olharam brevemente para Jeffrey quando ele a guiou para o grupo diante do fogão mais próximo.

       Lentamente, como o desdobrar de uma enorme flor, elas recuaram para revelar, em seu centro, uma mulher atarracada que usava um largo vestido preto e uma massa de colares e pendentes, mexendo um espesso molho vermelho com uma colher de madeira. Seus bastos cabelos grisalhos haviam sido apanhados em apertado coque, o rosto era sem rugas e imponente. Ela olhou para Jeffrey, dirigiu a Nora um avaliador exame de suas pupilas negras, e virou-se para a jovem que fora vista na janela.

       — Maya, você sabe o que fazer em seguida, não sabe?

       — Os cogumelos de Hannah, depois os outros, e então vai tudo para o caldeirão com a vitela de Robin. Cinco minutos e, bang!, pela porta afora.

       — Ótimo. — A mulher bateu palmas e recuou dois passos do fogão. — Vejamos Sophie fazendo algo útil. Como está indo a embalagem?

       — Esta aqui está quase pronta — disse uma das jovens junto à mesa.

       — Maribel, peça a Sophie que a ajude a carregá-las para a van. — Uma jovem alta e ruiva, com óculos de aros de chifre redondos, moveu-se na direção do arco. A mulher mais velha olhou para seu relógio. — Jeffrey, escolheu um dia agitado para aparecer. Estamos fazendo a Sociedade Asiática às nove, e um jantar de gala em Chesterfield pouco antes disso, mas penso que está tudo correndo dentro do programado. — Ela fez outra rápida inspeção de suas tropas e virou-se para Nora. — Então, aqui está você, a mulher sobre quem todos estivemos lendo. Jeffrey disse que queria falar comigo sobre Katherine Mannheim.

       — Exatamente — disse Nora. — Se a senhora puder dar-me um pouco de seu tempo.

       — Claro que posso. Vamos sair daqui e sentar-nos na sala da frente. — Ela estendeu a mão, que Nora apertou. — Seja bem-vinda. Deduzi que está precisando ficar algum tempo escondida. Se quiser, esconda-se aqui. Não posso dar-lhe um quarto, mas você poderá dormir em um sofá, até encontrarmos algo mais apropriado. Sempre é possível usar mais uma ajudante e, em sua maioria, as meninas são uma companhia agradável.

       — Acho que reservarei um quarto para ela no Northampton Hotel — disse Jeffrey.

       A mãe dele não afastava os olhos de Nora.

       — Faça o que achar melhor, naturalmente, mas se estiver sem ter o que fazer, sempre poderá instalar-se aqui.

       — Obrigada — disse Nora. — Não me esquecerei disso.

       — Eu ficaria feliz em ajudar a mulher que casou com Davey Chancel.

       Nora olhou para Jeffrey, surpresa, e a mãe dele disse:

       — Parece que meu filho deixou as explicações a meu cargo.

       — Acha que eu ousaria fazer outra coisa? — replicou Jeffrey.

       Sophie e Maribel haviam estacado em seu caminho para a mesa e serviram-se de bolinhos de carne à moda sueca, tirados de uma travessa fumegante. A mulher mais velha disse:

       — Encham a van, meus pequenos elfos. — Mastigando, as duas apressaram-se para a cozinha. — Vamos sentar na sala da frente. Passei o dia todo em pé.

       Ela fez um gesto para o sofá onde Sophie se refestelara diante da televisão. Nora sentou-se, e Jeffrey enfiou as mãos nos bolsos, enquanto espiava sua mãe desligar o aparelho. Ela acomodou-se em uma ponta do sofá de Nora e descansou as mãos nos joelhos.

       — Jeffrey não nos apresentou, e imagino que você não faça idéia de quem sou, além de ser a mãe deste indivíduo.

       — Lamento, mas de fato não faço idéia — disse Nora. — A senhora conheceu Katherine Mannheim? E também conheceu os Chancels?

       — Naturalmente — respondeu a mulher. — Katherine era minha irmã mais velha. Conheci Lincoln Chancel em Shorelands e, antes de saber quem era quem, ele me contratou para servi-lo. Eu ainda estava lá, quando seu marido era apenas um garotinho.

       Nora olhou da mulher mais velha para Jeffrey. Este pigarreou para clarear a garganta.

       — O sr. Chancel não gostava do som de nomes italianos.

       — Quando o sr. Chancel contratou-me, eu era Helen Deodato, mas talvez você tenha ouvido falar de mim como Helen Day — explicou a mãe dele. — Fiquei tão acostumada a isso, que continuo a chamar-me Helen Day. Quando Alden Chancel e sua esposa assumiram a casa, preferiram chamar-me a Dona da Xícara.

 

                                                                                            CONTINUA

 

 

                      

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