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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COLECIONADOR DE OSSOS / Jeffery Deaver
O COLECIONADOR DE OSSOS / Jeffery Deaver

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Sexta-feira, das 10:30 da noite até sábado, 3:30 da manhã.
Ela só queria mesmo dormir.
O avião tinha chegado com duas horas de atraso e ainda houve toda aquela maratona de espera da bagagem. E, então, o serviço de transporte para a cidade entrou em colapso total e a limusine só saiu uma hora depois. Nesse momento, eles esperavam um táxi.
Na fila de passageiros, seu corpo magro fazia um esforço para compensar o peso do laptop. John continuava a falar ininterruptamente sobre taxas de juros e novas maneiras de reestruturar a operação, mas tudo em que ela conseguia pensar era: sexta-feira, 10:30 da noite. Só quero mesmo é vestir meu traje de moletom e cair no sono.
Olhou para a fila enorme de táxis Yellow Cab. Alguma coisa na cor e semelhança dos táxis lembrou-lhe insetos. E arrepiou-se com aquela sensação do tempo de criança, de coisa se arrastando pela pele, quando ela e o irmão encontravam um texugo morto ou passavam por cima de um formigueiro e olhavam para a massa úmida de corpos e pernas que se contorciam.

 


 


T.J. Colfax dirigiu-se lentamente para o táxi, que encostou e parou com um chiado.

O motorista abriu de dentro a mala do carro, mas permaneceu sentado. Eles mesmos tiveram que colocar a bagagem na mala, o que irritou John. Ele estava acostumado a que fizessem coisas para ele. Tammie Jean não se importou. Às vezes, ainda se espantava quando se lembrava de que tinha uma secretária para datilografar e arquivar coisas para ela. Jogou a valise na mala, fechou-a e entrou no carro.

John subiu em seguida, bateu a porta com estrondo e enxugou o rosto gorducho e a careca, como se o esforço para colocar a valise na mala o tivesse deixado esgotado.

— Primeira parada, rua 72 leste — murmurou através da divisória que o separava do motorista.

— Em seguida, Upper West Side — acrescentou T.J.

A divisória de plexiglas estava muito arranhada e ela mal conseguiu enxergar o motorista.

O táxi deixou o meio-fio em alta velocidade e logo depois descia a via expressa na direção de Manhattan.

— Olhe — disse John -, esse é o motivo dessa multidão toda.

Apontava nesse momento para um cartaz que dava as boas-vindas aos delegados à conferência de paz das Nações Unidas, marcada para a segunda-feira. A cidade esperava dez mil visitantes. T.J. olhou fixamente para o cartaz -

negros, brancos, asiáticos, todos acenando e sorrindo. Mas havia alguma coisa errada no trabalho de arte-final. As proporções e as cores não combinavam. E todos aqueles rostos pareciam descorados.

— Ladrões de corpos — murmurou T.J.

O táxi ia em disparada pela larga via expressa, que brilhava com um tom amarelo desagradável sob as luzes da estrada. Passaram pelo velho estaleiro naval e deixaram para trás os ancoradouros do Brooklyn.

John parou finalmente de falar, puxou sua calculadora e começou a teclar alguns números. T.J. recostou-se mais no assento, olhando para as calçadas quentes, de onde subia vapor, e para os rostos mal-humorados de pessoas sentadas nas escadarias de pedra cinzenta que davam para a via expressa. Elas pareciam em semi-coma em meio àquele calor.

Estava quente também no táxi. T.J. estendeu a mão para o botão que abaixaria a janela. Não se surpreendeu ao descobrir que o botão não funcionava. Estendeu a mão para o botão ao lado de John. Quebrado, também. Só então notou que faltavam as fechaduras das portas.

E as maçanetas, também.

Desceu a mão pela porta, procurando o encaixe da maçaneta. Nada...

Era como se alguém o tivesse cortado com uma serra.

— O quê? — perguntou John.

— As portas.... Como é que podemos abri-las?

John olhava de uma porta para a outra quando uma tabuleta indicando o Túnel Midtown apareceu e desapareceu.

— Ei! — disse ele, batendo na divisória. — Você errou a entrada. Para onde é que está indo?

— Talvez ele vá pegar o retorno em Queensboro — sugeriu TJ.

A ida pelo túnel implicaria caminho mais longo, mas evitaria a cobrança de pedágio. T.J. inclinou-se à frente e bateu na divisória, usando o anel.

— Você vai pela ponte?

O motorista ignorou-os.

— Ei!

Um momento depois, passaram em alta velocidade pelo desvio de Queensboro.

— Merda! — exclamou John. — Para onde está nos levando? Harlem.

Aposto que está nos levando para o Harlem.

T.J. olhou pela janela. Um carro corria paralelo a eles, ultrapassando-os lentamente.

Ela bateu com força na janela.

— Socorro! — gritou. — Por favor...

O motorista do carro lançou-lhe um rápido olhar, voltou a olhar, franzindo as sobrancelhas. Diminuiu a marcha e passou para trás deles, mas, com um solavanco forte, o táxi derrapou por uma rampa de saída para o Queens, virou para um beco e penetrou velozmente no distrito dos armazéns abandonados. Naquele momento, eles deviam estar correndo a uns 90 km por hora.

— O que é que você está fazendo?

T.J. bateu com força na divisória.

— Mais devagar. Aonde é que você...?

— Oh, Deus, não — murmurou John. — Olhe.

O motorista havia coberto o rosto com uma máscara de esquiador.

— O que é que você quer? — gritou T.J. — Dinheiro? Nós lhe daremos.

Ainda assim, silêncio do assento dianteiro do táxi.

T.J. abriu a pasta Targus e puxou para fora o laptop preto. Inclinou-se para trás e bateu com toda força com o computador na janela. O vidro aguentou, embora o som da batida parecesse ter apavorado o motorista. O carro guinou para um lado e quase atingiu o muro de tijolos do prédio por onde passavam nesse momento em alta velocidade.

— Dinheiro? Quanto? Eu posso lhe dar um bocado de dinheiro - gaguejou John, lágrimas escorrendo pelo rosto gordo.

T.J. bateu novamente com toda força na janela. A tela do computador voou com a força do impacto, mas a janela permaneceu intacta.

Tentou mais uma vez e o corpo do computador abriu-se em dois e caiu de suas mãos.

— Merda...

Os dois foram sacudidos violentamente para a frente quando o carro parou deslizando em um beco sujo e escuro.

O motorista saltou do táxi, com uma pequena pistola na mão.

— Por favor, não... — implorou ela.

O motorista veio até a parte traseira do táxi, inclinou-se à frente e ficou olhando pelo vidro sujo e engordurado. Permaneceu ali por longo tempo, enquanto ela e John recuavam e se encostavam na porta oposta, seus corpos suados muito unidos.

O motorista fez uma pala com as mãos para evitar o ofuscamento da luz causado pela iluminação pública e olhou-os atentamente.

Um estalo súbito ressoou no ar e T.J. encolheu-se. John soltou um pequeno grito.

Ao longe, por trás do motorista, o céu encheu-se de listras ígneas vermelhas e azuis. Mais explosões e assovios. Ele se virou e olhou para o alto, enquanto uma imensa aranha alaranjada cobria a cidade.

Fogos de artifício, lembrou-se T.J. de ter lido no Times. Um presente do prefeito e do secretário-geral da ONU aos delegados à conferência, dando-lhes as boas-vindas à maior cidade da terra.

O motorista voltou-se para o táxi. Com um som alto e seco, puxou a tranca e abriu lentamente a porta.

 

O telefonema foi anônimo. Como sempre.

Por isso mesmo não havia como rastrear a chamada e descobrir a qual beco vazio se referia o denunciante. A Central enviara uma mensagem pelo rádio: Ele disse rua 37, perto da Onze. Só isso.

Denunciantes anônimos não eram nada notórios por dar a localização exata de cenas de crimes.

Já suando, embora fossem apenas nove da manhã, Amélia Sachs cruzou um trecho de grama alta. Estava dando uma busca no terreno — como dizia o pessoal da Cena do Crime -, fazendo um percurso em forma de S.

Nada. Inclinou a cabeça para o fone/microfone pregado na blusa azul-marinho do uniforme.

— Radiopatrulheira 5885. Não encontrei nada, Central. Mais alguma informação?

Através da estática, o despachante respondeu: — Nada mais sobre a localização, 5885. Mas tem uma coisa... o denunciante disse que tinha esperança de que a vítima estivesse morta.

Câmbio.

— Repita, Central.

— O denunciante disse que tinha esperança de que a vítima estivesse morta. Para o bem dela. Câmbio.

— Desligo.

Tinha esperança de que a vítima estivesse morta?

Sachs passou por cima de um alambrado arruinado e deu uma busca em outro lote vazio. Nada.

Teve vontade de desistir, de enviar um 10-90, informação sem fundamento, e voltar para o Deuce, que era sua ronda regular. Os joelhos lhe doíam e ela se sentia tão quente quanto um guisado nesse horrível tempo de agosto. Teve vontade de ir até a Autoridade Portuária, conversar um pouco com os rapazes e emborcar uma grande lata de chá gelado. Em seguida, às 11:30 — dentro de umas duas horas — esvaziaria o armário em Midtown South e iria para o centro da cidade, para a sessão de treinamento.

Mas não ignorou — não podia ignorar — a ordem recebida. Continuou a andar ao longo da calçada quente, passando pelo espaço entre duas casas de cômodos desabitadas, através de outro campo coberto de vegetação.

Introduziu o dedo indicador comprido entre a cabeça e o quepe do uniforme, passando por camadas de cabelos ruivos longos, enrodilhados no alto. Coçou-se com força e, em seguida, a mão entrou por debaixo do quepe e coçou-se um pouco mais. O suor descia pela testa e dava-lhe comichão.

Coçou também a sobrancelha.

Minhas duas últimas horas na rua, pensou. Posso sobreviver a isso.

Mergulhando mais fundo nas moitas, sentiu a primeira inquietação naquela manhã.

Alguém está me espionando.

O vento quente agitava as moitas secas e carros e caminhões passavam barulhentos, entrando e saindo do Túnel Lincoln. Pensou no que o pessoal da radiopatrulha freqüentemente pensava: a porra desta cidade é tão barulhenta que alguém poderia vir bem atrás de mim, à distância de uma facada, e eu nem desconfiaria.

Ou apontar a mira de uma arma para minhas costas...

Virou-se rapidamente.

Nada, apenas folhas, maquinaria enferrujada e lixo.

Subiu, contorcendo-se, um monte de pedras. Amélia Sachs, 31 anos de idade — apenas 31 anos de idade, diria sua mãe -, sofria de artrite. Herdada do avô, tão certo quanto tinha herdado a silhueta flexível da mãe e a boa aparência e a carreira do pai (quanto aos cabelos ruivos, a especulação era livre). Outra pontada de dor, ao passar por uma alta cortina de moitas moribundas. E teve a sorte de parar a um passo de uma queda de sete metros até o chão.

Abaixo, um escuro desfiladeiro — um corte profundo no leito rochoso do West Side. Por aí passavam os trilhos dos trens da Amtrack que se dirigiam para o norte.

Apertou os olhos, examinando o chão do desfiladeiro, a uma pequena distância do leito da ferrovia.

O que era aquilo?

Um círculo de terra revirada, um pequeno galho de árvore projetando-se na parte de cima? Aquilo parecia uma...

Oh, meu bom Deus...

Sentiu um arrepio ao ver aquilo, uma náusea subindo, pinicando a pele como uma onda de fogo. Conseguiu pisar firme naquela parte minúscula dentro de si que queria dar as costas à cena e fingir que não a vira.

Ele tinha esperança de que a vítima estivesse morta. Para o bem dela.

Correu para uma escada de ferro que descia da calçada para o leito da ferrovia. Estendeu a mão para o corrimão, mas parou exatamente a tempo.

Merda. O criminoso poderia ter escapado por ali. Se ela a tivesse tocado, poderia pôr a perder quaisquer impressões digitais que ele houvesse deixado.

Muito bem, vamos fazer isso da forma difícil. Tomando uma profunda inspiração para amortecer a dor nas juntas, começou a descer pela face da rocha, os sapatos do uniforme escorregando — lustrados como prata para o primeiro dia de seu novo trabalho — em fendas na pedra. Saltou o último metro para o chão e correu até a cova.

— Meu Deus...

Não era um galho que se projetava do chão. Era a mão de alguém. O corpo tinha sido enterrado na vertical e a terra fora empilhada apenas até o antebraço, o pulso e a mão. Olhou para o dedo anular. Toda carne fora arrancada e um anel de diamante da mulher brilhava enfiado em volta do osso sangrento e descarnado.

Sachs caiu de joelhos e começou a cavar.

Enquanto a terra voava sob as mãos, que faziam um movimento de cachorrinho, notou que os dedos que não haviam sido cortados estavam ainda abertos, estirados além do ponto em que poderiam ser normalmente dobrados. Esse detalhe disse-lhe que a vítima estivera viva quando a última pá de terra fora lançada em cima de seu rosto.

E talvez ainda estivesse.

Sachs continuou a cavar furiosamente a terra frouxamente batida, cortando a mão em um caco de garrafa, seu sangue escuro misturando-se com a terra mais escura. Em seguida, chegou aos cabelos e à testa embaixo, a um cinzento-azulado cianótico por falta de oxigênio. Cavando mais, viu os olhos vidrados e a boca, que tinha se contorcido em uma careta horrenda, enquanto a vítima tentara, nos últimos poucos segundos, ficar acima da maré crescente de terra preta.

Não era uma mulher. A despeito do anel. Era um homem corpulento, na casa dos cinquenta anos. Tão morto quanto o solo onde jazia enterrado.

Recuando, não conseguiu tirar os olhos de cima dos olhos da vítima e quase caiu ao tropeçar em um trilho. Durante um minuto inteiro, não conseguiu pensar em coisa nenhuma. Exceto no que deveria ter sido morrer daquela maneira.

Em seguida: Controle-se, amor. Você está na cena de um homicídio e é uma policial.

Você sabe o que tem de fazer.

 

ADAPTAR

A significa Apanhar [prender] um perpetrador conhecido.

D significa Deter testemunhas ou suspeitos relevantes.

A significa Analisar a cena do crime.

P significa ...

O que é mesmo que P significa?

Baixou a cabeça para o microfone: — Radiopatrulheira 5885 para Central. Adicionais. Encontrei um 10-29 junto aos trilhos ferroviários, no cruzamento da 38 com a Onze. Homicídio.

Preciso de detetives, CC, rabecão e o legista de serviço. Câmbio.

— Recebido e entendido, 5885. Perpetrador preso? Câmbio.

— Nenhum sujeito.

— Cinco-oito-oito-cinco. Câmbio.

Sachs olhou para o dedo, o que tinha sido afinado até o osso. O anel absurdo. Os olhos. E o sorriso... aquele horrível sorriso. Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Amélia Sachs havia nadado entre serpentes em acampamentos à beira de rios e bravateado, honestamente, que não teve problema em se jogar de uma ponte a trinta metros de altura, amarrada em um elástico. Mas só de pensar em confinamento... pensar em estar numa armadilha, imóvel, e um ataque de pânico a acometia como se fosse um choque elétrico. O que era o motivo por que andava rápido e guiava um carro como a velocidade da própria luz.

Quando está em movimento, eles não podem pegá-la...

Ouviu um som e inclinou a cabeça para um lado.

Um murmúrio profundo, tornando-se mais alto.

Farrapos de papel soprados pelo vento ao longo dos trilhos.

Redemoinhos de poeira girando em volta dela como fantasmas irados.

Em seguida, um gemido baixo...

A patrulheira Amélia Sachs, 1,75m de altura, descobriu que olhava de frente para uma locomotiva da Amtrak, de 35 toneladas, uma laje vermelha, branca e azul de aço que se aproximava a uns resolutos 15 km horários.

— Pare, aí! — berrou ela.

O maquinista ignorou-a. Sachs saltou para o leito da estrada e se plantou bem no meio dos trilhos, as pernas abertas, sinalizando com os braços para que ele parasse. A locomotiva parou com um rangido. O maquinista enfiou a cabeça pela janela.

— Você não pode passar por aqui — disse ela.

Ele perguntou o que ela queria dizer com aquilo. Amélia pensou que ele parecia horrivelmente jovem demais para dirigir um trem tão grande.

— Isto aqui é uma cena de crime. Por favor, desligue a máquina.

— Moça, não estou vendo nenhum crime.

Sachs, porém, não o estava escutando. Olhava nesse momento para o buraco no alambrado, no lado oeste do viaduto, no alto, perto da Avenida Onze.

Aquele teria sido o caminho para trazer o corpo até ali sem ser visto - estacionando na Onze e arrastando o corpo através do beco estreito até o paredão. Na 37, onde a rua fazia esquina, ele poderia ter sido visto das janelas de dezenas de apartamentos.

— O trem, senhor. Simplesmente deixe-o parado onde está.

— Não posso deixar o trem aqui.

— Por favor, desligue a máquina.

— Ninguém desliga a máquina de um trem dessa maneira. Ela funciona o tempo todo.

— Ligue para o despachante. Ou para alguém. Diga para deterem também os trens que vêm na direção sul.

— Não podemos fazer isso.

— Ouça aqui, moço, eu anotei o número desse seu veículo.

— Veículo?

— E sugiro que faça isso agora — disse secamente Sachs.

— O que é que você vai fazer, moça? Me multar?

Amélia Sachs, porém, estava mais uma vez subindo o paredão de pedra, as pobres juntas estalando, os lábios provando o pó de pedra calcária, barro e seu próprio suor. Foi se arrastando até o beco que tinha visto do leito da estrada e, em seguida, girou sobre si mesma, olhando para a Avenida Onze e o Javits Center, do outro lado. O saguão do prédio fervilhava de gente - espectadores e pessoal da imprensa. Uma grande faixa dizia, Sejam Bem-Vindos, Delegados, às Nações Unidas! Mais cedo naquela manhã, quando a rua estava deserta, o assassino poderia facilmente ter encontrado um local de estacionamento por ali e puxado o corpo para os trilhos, sem ser visto. Sachs foi devagar até ali, passou a vista pela avenida de seis pistas, nesse momento congestionada pelo tráfego.

Mãos à obra.

Penetrou no mar de carros e caminhões e parou, imóvel, no meio das pistas por onde corria o tráfego na direção norte. Vários motoristas tentaram ultrapassá-la. Teve que multar uns dois e, finalmente, puxou latões de lixo para o meio da rua, formando uma barricada, para ter certeza de que os bons residentes do local cumpririam seu deveres de cidadania.

Sachs se lembrou por fim do item seguinte das regras de ADAPTAR.

P significa Proteger a cena do crime.

O som de sirenes iradas começou a encher o céu matutino coberto de névoa seca, logo acompanhado pelos berros ainda mais zangados de motoristas. Um momento depois, ouviu as sirenes se juntarem à cacofonia quando chegou o primeiro dos veículos de emergência.

Quarenta minutos depois, a cena borbulhava de policiais uniformizados e investigadores, dezenas deles — muito mais do que um assassinato no Hell's Kitchen, por mais horripilante que fosse a causa da morte, podia justificar. Mas ela soube por outro policial que aquele era um caso quente, um banquete para a mídia — a vítima era um de dois passageiros que haviam chegado ao JFK na noite anterior, tomado um táxi e se dirigido para a cidade. Eles jamais chegaram em casa.

— A CNN está aqui — murmurou um guarda.

Por isso mesmo, Amélia não ficou surpresa ao ver o louro Vince Peretti, chefe da Divisão de Investigação e Recursos Criminais, DIRC, que supervisionava a unidade de processamento de cena de crime, subir para o alto do paredão e parar por um momento, enquando espanava a poeira do terno de dois mil dólares.

Ficou no entanto surpresa quando ele a notou e, com um leve sorriso no rosto bem escanhoado, disse-lhe com um gesto que subisse até ali.

Ocorreu-lhe que ia receber uma inclinação de cabeça, numa indicação de gratidão por seu papel naquele trabalho de rotina. Havia resguardado as impressões digitais naquela escada, rapazes. Talvez, até mesmo um elogio no seu currículo. Na última hora de seu último dia como patrulheira. Saindo aclamada.

Ele fitou-a de alto a baixo.

— Patrulheira, você não é nenhuma recruta, é? Estou certo em fazer essa suposição?

— Desculpe, não entendi, senhor.

— Você não é uma recruta, suponho.

Ela não era, pelo menos não tecnicamente, embora só tivesse três anos de serviço, ao contrário da maioria das colegas de sua idade. Elas eram veteranas de nove a dez anos. Sachs havia sido reprovada em vários anos, antes de conseguir finalmente ingressar na Academia de Polícia.

— Não entendo bem o que o senhor está perguntando.

Ele pareceu exasperar-se e o sorriso desapareceu.

— Você foi o primeiro policial a chegar?

— Fui, sim, senhor.

— Por que fechou a Avenida Onze? No que era que estava pensando?

Amélia olhou para a larga rua, ainda bloqueada com a barreira de latões de lixo. Havia se acostumado ao som das buzinas, mas, nesse momento, deu-se conta de que elas faziam um barulho insuportável. O congestionamento se estendia por quilômetros.

— Senhor, o primeiro trabalho do policial é prender um criminoso, deter quaisquer testemunhas, proteger...

— Conheço a regra ADAPTAR, guarda. Você fechou a rua para proteger a cena do crime?

— Sim, senhor. Não achei que o criminoso fosse estacionar na rua transversal. Ele poderia ser visto com a maior facilidade daqueles apartamentos. Está vendo, ali? A Onze me pareceu a melhor opção.

— Foi uma opção errada. Não havia pegadas naquele lado dos trilhos, mas havia dois conjuntos delas na direção da escada que leva à 37.

— Fechei também a 37.

— E justamente esse o meu argumento. Aquela era a única que precisava ser fechada. E o trem? — perguntou. — Por que parou o trem?

— Bem, senhor achei que o trem, passando pela cena, poderia perturbar a prova. Ou alguma coisa assim.

— Ou alguma coisa, policial?

— Não me expressei muito bem, senhor. O que eu queria dizer...

— O que me diz do Aeroporto de Newark?

— Sim, senhor. — Amélia olhou em volta, à procura de ajuda.

Havia outros policiais por perto, mas muito ocupados e ignorando a espinafração que ela estava recebendo.

— O que, exatamente, sobre Newark? Por que não fechou também esse aeroporto?

Oh, maravilhoso. Uma professora de escola primária. Seus lábios de Julia Roberts fecharam-se com força, mas conseguiu dizer razoavelmente: — Senhor, segundo meu julgamento, pareceu provável que...

— A New York Thruway teria sido também uma boa opção. E também a Jersey Pike e a Long Island Expressway. A Interesta dual 70, o caminho todo até St. Louis. Todas elas são prováveis rotas de fuga.

Amélia baixou um pouco a cabeça e olhou de volta para Peretti. Os dois tinham exatamente a mesma altura, embora os saltos dos sapatos dele fossem mais altos.

— Recebi telefonemas do chefe de polícia — continuou ele -, do diretor da Autoridade Portuária, do gabinete do secretário-geral das Nações Unidas, do administrador daquela exposição... — inclinou a cabeça na direção do Javits Center. — Bagunçamos toda a programação da conferência, o discurso de um senador dos Estados Unidos, e o tráfego em todo o West Side. Os trilhos ficam a quinze metros da vítima e a rua que você fechou está a setenta metros de distância e a dez metros de altura. O que quero dizer é que nem mesmo o furacão Eva bagunçou tanto o Corredor Nordeste da Amtrak.

— Eu apenas pensei...

Peretti sorriu. Uma vez que Sachs era uma bela mulher — suas “reprovações” antes de ingressar na academia tinham coincidido com trabalho regular para a Agência de Modelos Chantelle, na Madison Avenue -, o chefe resolveu perdoá-la.

— Patrulheira Sachs — lançou um olhar ao crachá pregado no peito da policial, achatado castamente pelo colete à prova de balas American Body Armor -, uma lição objetiva. O trabalho numa cena de crime é uma questão de equilíbrio. Seria ótimo se pudéssemos fechar com um cordão de isolamento toda a cidade após cada homicídio e prender cerca de três milhões de pessoas.

Mas não podemos fazer isso. Digo isso construtivamente. Para seu aprimoramento.

— Na verdade, senhor — retrucou bruscamente Amélia -, estou sendo transferida da radiopatrulha. Com vigência a partir de hoje ao meio-dia.

Ele inclinou a cabeça e sorriu alegremente.

— Então, já falamos o bastante. Mas, para que conste, foi decisão sua parar o trem e fechar a rua.

— Sim, senhor, foi — respondeu ela prontamente. — Nenhum erro a esse respeito.

Com penadas rápidas da caneta suada, ele tomou notas em uma caderneta preta. Oh, por favor...

— Agora, tire de lá aqueles latões de lixo. Dirija o tráfego até que a rua fique novamente desimpedida. Entendeu o que eu disse?

Sem qualquer sim, senhor, não, senhor, ou qualquer outro sinal de que havia entendido, Amélia foi até a Avenida Onze e, lentamente, começou a retirar os latões de lixo. Todos os motoristas que passaram por ela fecharam a cara ou murmuraram alguma coisa. Sachs olhou para o relógio.

Uma hora, ainda.

Posso sobreviver a isso.


CAPÍTULO II

 

Com um seco rufar de asas, o falcão peregrino desceu até o peitoril da janela. A luz no lado de fora, em meados da manhã, era brilhante, e o ar, horrivelmente quente.

— Aí está você — disse ele baixinho.

Em seguida, inclinou a cabeça na direção do som da campainha da porta, no térreo.

— É ele? — perguntou na direção da escada. — É?

Nada ouvindo em resposta, Lincoln Rhyme voltou-se outra vez para a janela. A cabeça da ave balançou de um lado para o outro, em um movimento rápido, sacudido, mas que o falcão, ainda assim, conseguia tornar elegante.

Rhyme observou que as garras do falcão estavam manchadas de sangue. Um pedaço de carne amarela pendia do bico preto. O falcão estendeu o pescoço curto e entrou no ninho, em movimentos que lembravam não os de uma ave, mas os de uma serpente. O falcão deixou cair a carne no bico virado para cima da companheira, de cor azul esmaecida. Estou olhando, pensou Rhyme, para a única criatura viva na cidade de Nova York que não tem um predador.

Exceto o próprio Deus.

Ouviu passos de alguém que subia lentamente a escada.

— Era ele? — perguntou a Thom.

O jovem respondeu: — Não.

— Quem era? A campainha tocou, não?

Thom olhou para a janela.

— A ave voltou. Olhe, manchas de sangue no peitoril. Dá para você ver?

O falcão fêmea apareceu lentamente, azul-acinzentada como um peixe, iridescente. A cabeça da ave vasculhou o céu.

— Eles estão sempre juntos. Eles se acasalam por toda a vida? - especulou Thom em voz alta. — Como os gansos?

Os olhos de Rhyme voltaram a Thom, que se inclinava para ele a partir da cintura esguia, juvenil, olhando para o ninho, seguindo os pingos de sangue pela janela.

— Quem era? — repetiu Rhyme.

O rapaz estava ganhando tempo e isso o irritou.

— Uma visita.

— Uma visita? Ah — resmungou Rhyme.

Tentou lembrar-se de quando tivera uma visita pela última vez. Isso devia ter acontecido há uns três meses. Quem? Aquele repórter, talvez, ou algum primo distante. Bem, Peter Taylor, um de seus especialistas em medula espinhal. E Blaine esteve ali várias vezes. Mas ela, claro, não era uma vi-si-ta.

— Está congelando aqui — queixou-se Thom.

A reação dele era abrir a janela. Satisfação imediata. Juventude.

— Não abra a janela — ordenou Rhyme. — E me diga quem foi que esteve aqui.

— Está congelando.

— Você vai espantar a ave. Pode diminuir o ar-condicionado. Eu vou diminuir o ar.

— Nós chegamos aqui primeiro — retrucou Thom, erguendo um pouco mais o enorme painel da janela. — As aves chegaram sabendo perfeitamente que você estava aqui. — Os falcões olharam na direção do ruído, raiva nos olhos. Mas eles sempre olhavam assim. Permaneceram no peitoril, vigiando seu domínio, de nogueiras-do-japão anêmicas e de arborização alternada ao longo da rua.

Rhyme repetiu a pergunta: — Quem era?

— Lon Sellitto.

— Lon?

O que estaria ele fazendo ali? Thom passou a vista pelo cômodo.

— Este lugar está uma bagunça.

Rhyme não gostava da agitação de uma faxina. Não gostava da movimentação, do barulho do aspirador de pó — que considerava especialmente irritante. Sentia-se contente ali, do jeito como estavam as coisas.

Essa sala, que chamava de seu escritório, ficava no segundo andar de sua casa, em estilo gótico, no Upper West Side, de frente para o Central Park. A sala era grande, de sete por sete metros, e virtualmente cada espaço ali estava ocupado por alguma coisa. Às vezes fechava os olhos, fazendo um jogo, e tentava detectar o cheiro dos diferentes objetos espalhados por ali. Os milhares de livros e revistas, as pilhas de fotocópias formando torres de Pisa, os transistores quentes da TV, as lâmpadas elétricas empoeiradas, os painéis de cortiça para pregar bilhetes. Vinil, peróxido, látex, acolchoados.

Três tipos diferentes de uísque escocês, de uma única espécie de malte.

Merda de falcão.

— Não quero conversar com ele. Diga que estou ocupado.

— E também um policial novo. Ernie Banks. Não, esse era jogador de beisebol, certo? Você devia realmente deixar que eu fizesse uma faxina por aqui. A gente jamais nota como um lugar está imundo, até que chega uma visita.

— Uma visita? Ora, isso parece fino. Vitoriano. O que você acha? Diga a eles que se mandem, porra. O que acha disso como etiqueta de fin-de-siècle?

Uma bagunça...

Thom estava falando da sala, mas Rhyme achava que talvez estivesse se referindo também a ele, ao patrão.

Os cabelos de Rhyme eram pretos e cheios como os de um rapaz de vinte anos — embora tivesse duas vezes essa idade -, mas com os fios emaranhados e enrolados, precisavam desesperadamente de uma lavagem e de um corte. No rosto, uma barba preta por fazer de três dias e aparência suja.

Havia acordado com uma coceira incessante nas orelhas, o que significava que aqueles pêlos precisavam também ser aparados. As unhas, das mãos e dos pés, eram compridas e ele vinha usando as mesmas roupas há uma semana -

pijama de bolinhas, horrendo. Os olhos eram estreitos, de um castanho profundo, e engastados em um rosto que, como lhe dissera Blaine em várias ocasiões, em tom apaixonado ou não, era bonitão.

— Eles querem falar com você — continuou Thom. — Disseram que é muito importante.

— Faça uma grosseria com eles.

— Você não vê Lon há quase um ano.

— Por que isso tem de significar que quero vê-lo agora? Você assustou o falcão? Vou ficar uma fera, se tiver assustado.

— É importante, Lincoln.

— Muito importante, eu lembro que você disse isso. Onde está aquele médico? Ele pode ter telefonado. Eu estava cochilando. E você tinha saído.

— Você está acordado desde as seis da manhã.

— Não. — Rhyme calou-se por um momento. — Acordei, sim. Mas em seguida voltei a dormir. Dormi a sono solto. Verificou as mensagens na secretária eletrônica?

— Verifiquei — respondeu Thom. — Nenhuma dele.

— Ele disse que viria aqui no meio da manhã.

— Passa apenas um pouco das onze. Talvez a gente ainda espere um pouco, antes de notificar o serviço de socorro aéreo e marítimo. O que é que você acha?

— Você andou falando ao telefone? — perguntou bruscamente Rhyme. - Talvez ele tenha tentado ligar quando você estava batendo papo.

— Eu estava falando com...

— Eu disse alguma coisa? — perguntou Rhyme. — Agora você está zangado. Eu não disse que você não deve dar telefonemas. Pode dar. Você sempre pôde fazer isso. O que eu quis dizer é que ele pode ter telefonado quando você estava na linha.

— Não, o que você quer esta manhã é encher o saco.

— Lá vem você. Sabe, os telefones têm essa coisa... chamada à espera.

A gente pode receber dois telefonemas ao mesmo tempo. Eu gostaria que tivéssemos isso. O que está querendo o meu velho amigo Lon? E o amigo dele, o jogador de beisebol?

— Pergunte a eles.

— Estou perguntando a você.

— Eles querem falar com você. E tudo que sei.

— Sobre alguma coisa m-u-i-t-o im-por-tan-te, — Lincoln.

Thom suspirou. O jovem bonitão passou a mão pelos cabelos louros.

Usava calça esporte marrom, camisa branca, uma gravata com motivos florais, com um nó imaculado. Quando o contratou, há um ano, Rhyme lhe disse que podia usar jeans e camiseta, se quisesse. Ele, porém, sempre se vestia de maneira impecável desde aquele dia. Rhyme não sabia por que isso contribuía para sua decisão de conservar o jovem a seu serviço, mas contribuía. Nenhum dos antecessores de Thom havia durado mais de seis semanas. O número dos que tinham pedido as contas era exatamente igual ao dos que tinham sido mandados embora.

— Muito bem. O que foi que você disse a eles?

— Disse que me dessem alguns minutos, para verificar se você estava vestido para recebê-los, e que, em seguida, eles poderiam subir. Em curtas palavras.

— Você fez isso. Sem me perguntar. Muito, muito obrigado.

Thom deu alguns passos para trás e gritou pela escada estreita, que descia até o térreo: — Podem subir, cavalheiros.

— Eles lhe disseram algo, não foi? — perguntou Rhyme. — Você está me escondendo alguma coisa.

Thom deixou essas palavras sem resposta, enquanto Rhyme observava a chegada das duas visitas. No momento em que entraram, Rhyme foi o primeiro a falar, dirigindo-se a Thom: — Feche as cortinas. Você já perturbou demais os falcões.

O que realmente significava apenas que ele estava cheio de toda aquela luz barulhenta.

 

Muda.

Com o esparadrapo sujo e pegajoso sobre a boca, ela não podia pronunciar uma única palavra, e essa situação fazia com que se sentisse ainda mais impotente do que com as algemas nos pulsos. Mais impotente do que com os dedos curtos e fortes dele em seu bíceps.

O motorista do táxi, usando ainda a máscara de esquiador, levou-a pelo corredor imundo e molhado, passando por fileiras de dutos e canos. Os dois se encontravam no subsolo de um prédio de escritórios. Ela não fazia a menor idéia de onde.

Se eu pudesse falar com ele...

T.J. Colfax era uma jogadora, a vaca do terceiro andar do Morgan Stanley’s. Uma negociadora.

Dinheiro? Você quer dinheiro? Eu lhe arranjo dinheiro, dinheiro à vontade, rapaz. Barris de dinheiro. Pensou nisso uma dezena de vezes, tentando atrair seu olhar, como se pudesse realmente imprimir as palavras nos pensamentos daquele homem.

Pooooor faaaavoor, implorou em silêncio e começou a pensar na mecânica de transformar seu fundo de aposentadoria em dinheiro e dar todo a ele. Oh, por favor...

Lembrou-se da noite anterior: o homem dando as costas aos fogos de artifício, arrastando-os para fora do táxi, algemando-os. Havia trancado os dois na mala do carro e, em seguida, voltado a rodar, inicialmente sobre calçamento irregular de lajes e asfalto cheio de buraco, em seguida sobre asfalto liso e, finalmente, asfalto ondulado. Ela ouviu o zumbido das rodas em uma ponte. Mais voltas, mais estradas acidentadas. Finalmente, o táxi parou, o motorista desceu e pareceu que abria um portão ou algum tipo de porta. Ele entrou em uma garagem, pensou ela. Todos os sons da cidade desapareceram e o borbulhante cano de descarga do carro aumentou de volume, reverberando de paredes próximas.

Em seguida, a mala do carro foi aberta e o homem puxou-a para fora.

Arrancou o anel de brilhante de seu dedo e enfiou-o no bolso. Em seguida, levou-a ao longo de paredes de faces fantasmagóricas, pinturas desmaiadas de olhos vazios fitando-a, um açougueiro, um demônio, três crianças chorosas -

pintadas sobre reboco que se desmanchava. Arrastou-a para um porão bolorento e soltou-a como um fardo no chão. Em seguida, subiu a escada e deixou-a na escuridão, cercada por um cheiro nauseante — carne podre, lixo.

Ali ficou durante horas, dormindo um pouco, chorando muito. Acordou subitamente ao ouvir um som forte. Uma violenta explosão. Próxima. Em seguida, mais sono agitado.

Meia hora antes, ele tinha voltado. Levou-a para a mala do carro e rodaram por mais vinte minutos. Aqui. Onde quer que fosse aqui.

Em seguida, entraram na sala escura de um porão. No centro, ela viu um grosso cano preto. Ele a algemou ao cano e amarrou seus pés, puxando-os retos para a frente e colocando-a sentada. Agachou-se e prendeu suas pernas com uma corda fina — o que levou vários minutos. Ele usava luvas de couro.

Levantando-se, olhou-a durante um longo momento, curvou-se e rasgou e abriu a blusa dela. Passou para as costas, e ela arquejou, sentindo as mãos nos ombros, tenteando, apertando as omoplatas.

Chorando, implorando através do esparadrapo.

Sabendo o que ia acontecer.

As mãos desceram, ao longo dos braços e sob eles, passando para a frente do corpo. Mas ele não tocou os seios. Não, enquanto as mãos passavam leves pela pele, parecia que estava procurando as costelas. Cutucou-as e alisou-as. T.J. arrepiou-se e tentou afastar-se. Ele a agarrou com violência, acariciou-a um pouco mais, pressionando com força, sentindo a flexibilidade do osso.

Ele se levantou. Ela ouviu passos que se afastavam. Durante um longo momento, só silêncio, quebrado pelos gemidos dos condicionadores de ar e dos elevadores. Em seguida, ouviu um grunhido assustado bem às suas costas.

Um ruído que se repetia. Wsssh. Wssh. Um som muito conhecido, mas algo que não conseguiu identificar. Tentou virar-se para ver o que ele estava fazendo, mas não pôde. O que era aquilo? Escutando o som rítmico, repetindo-se, repetindo-se. O som levou-a diretamente de volta para a casa da mãe.

Wsssh. Wsssh.

Manhã de sábado em um pequeno bangalô em Bedford, Tennessee.

Era o único dia em que a mãe não trabalhava fora e ela ocupava a maior parte do tempo fazendo faxina na casa. T.J. acordava com o sol forte e descia trôpega a escada para ajudá-la. Wsssh. Enquanto chorava com essa recordação, escutou o som e se perguntou por que, em nome de Deus, ele estava varrendo o chão, com movimentos cuidadosos, seguros, de uma vassoura.

 

Ele notou a surpresa e o constrangimento nos rostos dos dois.

Algo que não é encontrado com muita frequência em policiais do Esquadrão de Homicídios de Nova York.

Lon Sellitto e o jovem Banks (Jerry, não Ernie) sentaram-se nos lugares que Rhyme lhes indicou com um aceno da cabeça cabeluda: cadeiras iguais de vime, empoeiradas e incômodas.

Rhyme havia mudado muito desde que Sellito esteve ali pela última vez e o detetive não conseguiu disfarçar muito bem o choque que sentiu.

Banks não tinha um indicador com que comparar o que via naquele momento, mas, ainda assim, ficou chocado. A sala desarrumada, aquele homem olhando-os desconfiado. O cheiro, com certeza — o cheiro visceral que cercava a criatura em que Lincoln Rhyme se transformara.

Rhyme sentiu grande arrependimento por tê-los deixado subir.

— Por que não ligou antes, Lon?

— Você nos teria dito para não vir.

Verdade.

Thom apareceu no alto da escada e Rhyme dispensou-o: — Thom, não vamos precisar de você.

Lembrou-se de que o rapaz sempre perguntava às visitas se queriam beber ou comer alguma coisa.

Um verdadeiro Martha Stewart.

O silêncio continuou durante um momento. O alto e amassado Sellitto — um veterano de vinte anos de serviço na polícia olhou para uma caixa ao lado da cama e fez menção de falar. O que quer que estivesse prestes a dizer foi cortado pela visão de fraldas descartáveis de adulto.

Jerry Banks tomou a palavra: — Li seu livro, senhor.

O jovem policial tinha mão pesada quando o trabalho era barbear-se, e Rhyme viu uma infinidade de pequenos cortes. E que topete encantador!

Deus do céu, ele não pode ter mais de vinte anos. Quanto mais velho fica o mundo, pensou Rhyme, mais jovens parecem tornar-se seus habitantes.

— Qual?

— O seu manual sobre cena de crime, claro. Mas estou me referindo ao livro ilustrado. O que publicou há uns dois anos.

— Nele havia também palavras. Na verdade, é constituído principalmente de palavras. Você as leu?

— Ora, claro — respondeu rapidamente Banks.

Uma pilha imensa de volumes encalhados do The Scenes of the Crime podia ser vista encostada numa parede da sala.

— Eu não sabia que o senhor e Lon eram amigos — acrescentou Banks.

— Lon não lhe mostrou aquele anuário? Não lhe mostrou a fotos? Não subiu a manga da camisa e mostrou as cicatrizes, dizendo que havia recebido esses ferimentos quando trabalhava com Lincoln Rhyme?

Sellitto, porém, não estava achando graça. Bem, eu posso dar a ele ainda menos motivo para um sorriso, se é isso o que ele quer. O detetive mais velho estava procurando alguma coisa na maleta 007. O que é que ele tem aí dentro?

— Por quanto tempo vocês parceiraram juntos? — perguntou Banks, tentando dar início à conversa.

— Ah, isso é que é um verbo para você — retrucou Rhyme e olhou para o relógio.

— Nós não fomos parceiros — explicou Sellitto. — Eu trabalhava em Homicídios e ele era o chefe da DIRC.

— Oh — disse Banks, ainda mais impressionado.

Chefiar a Divisão de Investigação e Recursos Criminais era um dos cargos de mais prestígio do Departamento de Polícia.

— Isso mesmo — disse Rhyme, olhando para a janela, como se seu médico pudesse chegar via falcão. — Os dois mosqueteiros.

Em voz paciente, que o enfureceu, Sellitto disse: — Durante sete anos, com intervalos, nós trabalhamos juntos.

— E foram anos bons — cantarolou Rhyme.

Thom fez uma carranca. Sellitto, porém, não percebeu a ironia. Ou o que era mais provável, ignorou-a. E continuou: — Estamos com um problema, Lincoln. Precisamos de um pouco de ajuda.

Snap. A pilha de papéis foi posta com força sobre a mesinha-de-cabeceira.

— Um pouco de ajuda? — A risada explodiu do nariz estreito, que Blaine sempre desconfiou ter sido produto da visão de um cirurgião, mas que não era. Ela também tinha achado que os lábios dele eram perfeitos demais.

(Acrescente uma cicatriz, disse ela em tom de brincadeira e, durante uma das brigas dos dois, quase fizera isso.) E por que, perguntou ele a si mesmo, a aparição voluptuosa de Blaine continuava a surgir à sua frente? Acordou pensando em sua ex e se sentiu obrigado a lhe escrever uma carta, que nesse momento se encontrava na tela do computador. Aproveitou a ocasião e salvou-a no disco rígido. O silêncio encheu a sala, enquanto ele dava os comandos com um único dedo.

— Lincoln? — disse Sellitto.

— Sim, senhor. Uma pequena ajuda. Minha. Ouvi.

Banks manteve um sorriso impróprio nos lábios, enquanto mexia, pouco à vontade, o traseiro na cadeira.

— Tenho um encontro a qualquer minuto agora — disse Rhyme.

— Um encontro.

— Com um médico.

— Mesmo? — perguntou Banks, provavelmente para assassinar o silêncio que os ameaçava, mais uma vez.

Sellitto, sem saber para onde a conversa se encaminhava, perguntou: — E você, como é que está indo?

Banks e Sellitto não haviam perguntado sobre sua saúde quando chegaram. Era o tipo de pergunta que pessoas tendiam a evitar quando viam Lincoln Rhyme. A resposta acarretava o risco de ser muito complicada e, quase com certeza, desagradável.

Rhyme respondeu simplesmente: — Bem. Obrigado. E você? E Betty?

— Nós nos divorciamos — respondeu rapidamente Sellitto.

— Mesmo?

— Ela ficou com a casa e eu com a metade de um filho. — O policial respondeu com uma alegria forçada, como se tivesse usado a mesma frase antes. Rhyme achou que deveria haver uma história dolorosa por trás do rompimento. História que não tinha o menor desejo de ouvir. Ainda assim, não se surpreendia que o casamento tivesse naufragado. Sellitto era um burro de carga no trabalho. Era um dos cento e tanto detetives de primeira classe do Departamento e isso durante anos — e obtinha promoções quando as notas eram dadas por mérito e não por tempo de serviço. Trabalhava quase oitenta horas por semana. Rhyme nem mesmo sabia que ele era casado nos primeiros meses em que haviam trabalhado juntos.

— Onde é que você está morando agora? — perguntou Rhyme, com esperança de que um pouco de conversa social conseguisse tirá-los dali.

— Brooklyn. Nos Heights. Às vezes vou para o trabalho a pé. Lembra-se daquelas dietas que eu andava sempre fazendo? O macete não é fazer dieta.

E exercício.

Ele não parecia nem mais gordo nem mais magro do que o Lon Sellitto de três anos antes. Ou, por falar nisso, o Sellitto de quinze anos antes.

— De modo que — interrompeu-os Banks -, é um médico, foi o que o senhor estava dizendo. Para uma...

— Uma nova forma de tratamento? — respondeu Rhyme, completando a pergunta que ia murchando. — Exatamente.

— Boa sorte.

— Muito, muito obrigado.

Eram 11:36. Bem além de meados da manhã. Atraso é imperdoável em um médico.

Observou os olhos de Banks examinarem suas pernas duas veres.

Flagrou pela segunda vez o jovem, ainda com espinhas no rosto, e não ficou surpreso quando notou que ele enrubescia.

— De modo que — continuou Rhyme -, lamento muito, mas realmente não disponho de tempo para ajudá-los.

— Mas ele não chegou ainda, não é, o médico? — perguntou Lon Sellitto, no mesmo tom à prova de bala que usava para abrir buracos em álibis de suspeitos de homicídio.

Thom apareceu à porta, trazendo um bule de café. Escroto, disse Rhyme movendo a boca, mas sem emitir nenhum som.

— Lincoln esqueceu de oferecer alguma coisa aos senhores, cavalheiros.

— Thom me trata como se eu fosse uma criança.

— Se a carapuça cabe... — respondeu o ajudante.

— Muito bem — retrucou Rhyme secamente. — Sirvam-se de café. Vou tomar um pouco do leite da mamãe.

— Cedo demais — cortou-o Thom. — O bar não abriu ainda. — E aguentou muito bem o olhar irado de Rhyme.

Mais uma vez, os olhos de Banks percorreram o corpo de Rhyme.

Talvez estivesse esperando ver apenas pele e ossos. O processo de atrofia, porém, tinha parado pouco depois do acidente e seu primeiro fisioterapeuta o esgotara com tantos exercícios. Thom, que podia ser um chato às vezes e uma velha galinha cacarejante em outras, também era um fisioterapeuta muito bom. Todos os dias submetia Rhyme a exercícios passivos de recuperação.

Fazia medições rigorosas da goniometria — medições da amplitude do movimento que aplicava a cada junta do corpo de Rhyme. Examinava com todo cuidado a espasticidade, enquanto mantinha os braços e as pernas dele em um ciclo constante de abdução e adução. O trabalho de recuperação não era nenhum milagre, mas produzia um certo tônus muscular, reduzia as contraturas debilitantes e mantinha o sangue fluindo. Para alguém cujas atividades musculares haviam sido limitadas aos ombros, cabeça e dedo anular da mão esquerda durante três anos e meio, Lincoln Rhyme não estava numa forma tão ruim assim.

O jovem detetive desviou a vista do complicado controle ECU ao lado do dedo de Rhyme, ligado por fios a outro painel de controle, de onde saíam um conduíte e cabos, ligados ao computador e a uma tela de parede.

A vida de um tetraplégico é feita de fios, disse um terapeuta a Rhyme, muito tempo antes. A dos ricos, pelo menos. Dos que têm sorte.

— Esta manhã — disse Sellitto -, houve um assassinato no West Side.

— Temos recebido relatos de homens e mulheres sem-teto que desapareceram no último mês — acrescentou Banks. — No início, pensamos que poderia ser um deles. Mas não era — disse em tom dramático. — A vítima da noite passada foi uma daquelas pessoas cujo paradeiro é desconhecido.

Rhyme olhou, o rosto sem expressão, para o jovem de rosto espinhento.

— Daquelas pessoas?

— Ele não assiste ao noticiário — explicou Thom. — Se estão falando sobre o sequestro, ele nada ouviu a esse respeito.

— Você não assiste aos noticiários? — Sellitto soltou uma risada. — Você era o CDF que lia quatro jornais por dia e gravava os noticiários para assisti-los quando voltava para casa. Blaine me disse que você a chamou de Katie Couric certa noite, quando estavam fazendo amor.

— Agora só leio literatura — respondeu Rhyme pomposa e falsamente.

Thom explicou: — Literatura é notícia que continua a ser notícia.

Rhyme o ignorou.

— Um homem e uma mulher — continuou Sellitto. — Estavam voltando de uma viagem de negócios à Costa Oeste. Tomaram um Yellow Cab no JFK.

Nunca chegaram em casa. Recebemos uma informação às onze e meia da noite. Esse táxi estava descendo a BQE, no Queens. Como passageiros, um homem e uma mulher, brancos, no assento traseiro. Parecia que estavam tentando quebrar uma janela do carro. Batendo no vidro. Ninguém anotou a placa.

— Essa testemunha... a que viu o táxi, conseguiu ver o motorista?

— Não.

— A passageira?

— Nenhum sinal dela.

Já eram 11:41. Rhyme estava furioso com o Dr. William Berger.

— Coisa ruim — murmurou, distraído.

Sellitto soltou um longo e ruidoso suspiro.

— Continue, continue — disse Rhyme.

— Ele estava usando o anel dela — explicou Banks.

— Quem estava usando o quê?

— A vítima. Foi encontrada esta manhã. Ele estava usando o anel da mulher. Da outra passageira.

— Tem certeza de que o anel era dela?

— Tinha as iniciais dela no lado de dentro.

— De modo que vocês têm um ED — continuou Rhyme — que quer que saibam que está com a mulher e que ela continua viva.

— O que é um ED? — quis saber Thom.

Vendo que Rhyme ignorava a pergunta, Sellitto explicou: — Um elemento desconhecido.

— Mas quer saber como foi que ele conseguiu que coubesse no dedo? -

perguntou Banks, um pouco esbugalhado demais para o gosto de Rhyme. — O anel?

— Desisto.

— Arrancou a pele do dedo do cara. Toda ela. Até o osso.

Rhyme sorriu levemente.

— Ah, ele é sabido, não?

— Por que sabido?

— Para ter certeza de que não ia aparecer ninguém e tirar o anel. Estava sujo de sangue, não?

— A maior sujeira.

— Para começar, era difícil ver o anel. Depois, a questão da AIDS, hepatite. Ainda assim, mesmo que alguém notasse, um bocado de pessoas iria tentar pegar o troféu. Qual é o nome dela, Lon?

O detetive mais velho inclinou a cabeça para o colega, que abriu a caderneta de notas.

— Tammie Jean Colfax. Conhecida com T.J. Vinte e oito anos.

Trabalha para a Morgan Stanley.

Rhyme observou que Banks também usava um anel. Um anel de formatura de algum tipo. O rapaz era educado demais para ter apenas a escola secundária e ser formado pela Academia de Polícia. Nada havia nele que sugerisse o Exército. Não ficaria surpreso se a jóia tivesse o nome Yale gravado. Detetive de homicídios? Para onde estava indo o mundo?

O jovem policial segurou com as duas mãos a xícara de café, que sacudia vez por outra. Com um pequeno gesto do dedo anular no painel de controle Everest & Jennings, ao qual a mão esquerda estava ligada, Rhyme clicou várias configurações, reduzindo o ar-condicionado. Geralmente, não desperdiçava tempo controlando coisas como aquecimento e ar-condicionado.

Reservava-o para coisas absolutamente necessárias, como iluminação, o computador e o dispositivo que virava páginas de livro. Mas, quando a sala ficava fria demais, o nariz começava a escorrer. E isso era uma tortura insuportável para um tetraplégico.

— Nota pedindo resgate? — perguntou Rhyme.

— Nenhuma

— Você é o detetive encarregado do caso? — perguntou Rhyme a Sellitto.

— Sou. Subordinado a Jim Polling. E queremos que você passe em revista o relatório da CC.

Outra risada.

— Eu? Eu não leio um relatório de CC há três anos. O que poderia dizer a vocês?

— Poderia dizer toneladas de coisas, Linc.

— Quem é atualmente o diretor da DIRC?

— Vince Peretti.

— O filhinho do deputado — lembrou-se Rhyme. — Peça a ele para ler.

Sellitto hesitou por um momento.

— Nós preferiríamos ter você.

— Nós, quem?

— O chefe. Sinceramente.

— E como é que o capitão Peretti — perguntou Rhyme, sorrindo como uma colegial — se sente com esse voto de desconfiança?

Sellitto levantou-se e andou pela sala, olhando para as pilhas de revistas. Forensic Science Review. Catálogo da Harding & Boyle Scientific Equipment Company. The New Scotland Yard Forensic Investigation Annual. American College of Forensic Examiners Journal. Report of the American Society of Crime Lab Directors.

CRC Press Forensics. Journal of the International Institute of Forensic Science.

— Olhe só para elas — disse Rhyme. — As assinaturas foram suspensas há anos. E todas as revistas estão empoeiradas.

— Tudo aqui está horrivelmente empoeirado, Linc. Por que você não se mexe e faz uma faxina neste chiqueiro?

Banks deu a impressão de estar horrorizado. Rhyme abafou a explosão de riso, o que lhe pareceu estranho. Havia baixado a guarda e a irritação tinha se dissolvido e transformado em divertimento. Por um momento, lamentou que ele e Sellitto tivessem se afastado um do outro. Em seguida, matou esse sentimento. Rosnou: — Não posso ajudá-lo. Sinto muito.

— Nós temos aquela conferência de paz que começa na segunda-feira.

Nós...

— Que conferência?

— Nas Nações Unidas. Embaixadores, chefes de Estado. Haverá uns dez mil caras importantes na cidade. Ouviu falar naquela coisa que aconteceu em Londres há dois dias?

— Coisa? — repetiu ironicamente Rhyme.

— Alguém tentou explodir com uma bomba o hotel onde a UNESCO

realizava uma reunião. O prefeito está se cagando de medo de que alguém tente fazer a mesma coisa na conferência aqui. Ele não quer nada de manchetes desagradáveis no Post.

— E há também o pequeno problema — observou secamente Rhyme - de que a Srta. Tammie Jean talvez não esteja gostando de sua volta para casa.

— Jerry, dê a ele alguns detalhes. Desperte o apetite dele. — Banks desviou a atenção das pernas de Rhyme para a cama, que era — e Rhyme reconheceu prontamente isso — algo mais interessante. Especialmente o painel de controle. O aparelho parecia saído de um ônibus espacial e ter custado quase o mesmo preço.

— Dez horas depois de terem sido sequestrados, encontramos o passageiro, John Ulbrecht, baleado e enterrado vivo no leito da Amtrak, nas proximidades do cruzamento da rua 37 com a Onze. Bem, quando o encontramos, ele já estava morto. Mas tinha sido enterrado vivo. A bala era de calibre .32. — Banks ergueu a vista e acrescentou: — Segundo o Catálogo Honda de Projéteis.

Isso significava que não haveria deduções astuciosas, baseadas em uso de armas exóticas pelo elemento desconhecido. Esse Banks parecia um rapaz esperto, pensou Rhyme, e ele só sofre mesmo de juventude, que poderá ou não superar. Lincoln Rhyme acreditava que ele mesmo nunca tinha sido jovem.

— Marcas no projétil? — perguntou.

— Seis endentações e estrias, giro para a esquerda.

— De modo que ele usou um Colt — observou Rhyme e olhou novamente para o diagrama da cena do crime.

— Você disse “ele” — continuou o jovem detetive. — Na verdade, são “eles”.

— O que?

— Elementos desconhecidos. Houve dois deles. Encontramos dois conjuntos de pegadas entre a cova e a base de uma escada de ferro que leva à rua — explicou Banks, apontando para o diagrama da CC.

— Alguma pegada na escada?

— Nenhuma. Havia sido apagada. Fizeram um bom trabalho nisso. As pegadas vão até a cova e voltam à escada. De qualquer modo, teve de haver dois deles quando mataram a vítima. Ela pesava mais de cem quilos. Um homem só não podia ter feito isso.

— Continue.

— Levaram-no à cova, jogaram-no dentro dela, atiraram e o enterraram, voltaram à escada, subiram e desapareceram.

— Atiraram quando já estava na cova? — perguntou Rhyme.

— Isso mesmo. Não havia trilha de sangue em lugar nenhum em volta da escada ou no caminho até a cova.

Rhyme descobriu que estava levemente interessado, mas limitou-se a dizer: — Para que é que vocês precisam de mim?

Os dentes amarelos de Sellitto apareceram quando ele sorriu.

— Temos um mistério nas mãos, Linc. Um bocado de indícios que não fazem absolutamente sentido.

— E daí?

Eram raros os crimes em que todos os tipos de prova material faziam sentido.

— Bem, isso tudo é realmente esquisito. Leia o relatório. Por favor.

Vou colocá-lo aqui. Como é que esse troço funciona?

Sellitto olhou para Thom, que colocou o relatório no dispositivo que virava páginas.

— Não tenho tempo, Lou — protestou Rhyme.

— Isto é uma geringonça e tanto — disse Banks, olhando para o dispositivo. Rhyme não respondeu. Relanceou para a primeira página e depois leu cuidadosamente. Moveu o dedo anular um exato milímetro para a esquerda. Uma vareta de borracha virou a página.

Lendo. Pensando. Bem, isso é estranho.

— Quem foi encarregado de processar a cena?

— O próprio Peretti. Quando soube que a vítima era uma das pessoas do táxi, apareceu e assumiu o comando.

Rhyme continuou a ler. Durante um minuto, as palavras rotineiras e sem imaginação do relato mantiveram seu interesse. Em seguida, a campainha da porta tocou c seu coração disparou em galope com um grande estremecimento. Olhou para Thom. Olhos frios e que deixavam claro que o tempo de brincadeira acabara. Thom inclinou a cabeça c desceu imediatamente para o térreo.

Todos os pensamentos sobre motoristas de táxi, provas e banqueiros sequestrados desapareceram da mente poderosa de Lincoln Rhyme.

— O Dr. Berger — anunciou Thom pelo telefone interno.

Até que enfim. Finalmente.

— Sinto muito, Lon, mas vou ter que pedir que se retire. Foi bom revê-lo. — Um sorriso. — Interessante, esse caso.

Sellitto hesitou por um momento, mas em seguida se levantou.

— Mas você lê o relatório até o fim, Lincoln? E depois diz o que pensa do caso?

— Pode apostar que digo — prometeu Rhyrae. E voltou a reclinar a cabeça no travesseiro. Tetraplégicos como Rhyme, com todos os movimentos da cabeça e pescoço, podiam ativar uma dezena de controles, usando apenas os movimentos tridimensionais da cabeça. Rhyme, porém, evitava descansos de cabeça. Eram tão poucos os prazeres sensuais que lhe restavam que não estava disposto a abdicar do conforto de repousar a cabeça em seu travesseiro de duzentos dólares. As visitas o haviam deixado cansado. Não era ainda nem meio-dia e tudo o que queria era dormir. Os músculos do pescoço latejavam de dor.

No momento em que Sellitto e Banks chegaram à porta, chamou-os: — Lon, espere.

O detetive voltou-se para ele.

— Há uma coisa que você não sabe. Você só encontrou metade da cena do crime. A importante é a outra metade... a cena primária. A casa dele. É nela que ele estará. E vai ser difícil como o diabo encontrá-la.

— Por que acha que há outra cena?

— Porque ele não atirou na vítima quando ela estava na cova. Ele atirou nele lá... na cena primária. E é lá que ele provavelmente conserva a mulher. Deve ser um local subterrâneo ou em uma parte muito deserta da cidade. Ou as duas coisas... Porque, Banks — Rhyme evitou dessa maneira a pergunta do jovem detetive -, ele não se arriscaria a atirar em alguém e manter uma prisioneira, a menos que o local fosse tranquilo e privado.

— Talvez ele tenha usado um silenciador.

— Não há traços de borracha ou algodão abafante no projétil — lembrou secamente Rhyme.

— Mas como a vítima poderia ter sido baleada ali? — retrucou Banks. - Quero dizer, não havia absolutamente manchas de sangue na cena.

— Suponho que a vítima foi baleada no rosto — disse Rhyme.

— Ora, foi, sim — respondeu Banks, um sorriso estúpido aparecendo nos lábios. — Como foi que o senhor soube?

— Muito doloroso, profundamente incapacitante, pouquíssimo sangue com uma bala .32. Raramente letal, se o cara erra o cérebro. Com a vítima nesse estado, o elemento desconhecido podia levá-lo para onde quisesse. Digo elemento desconhecido no singular porque foi um só.

Houve um momento de silêncio.

— Mas... mas havia dois conjuntos de pegadas — quase murmurou Banks, como se estivesse desarmando uma mina terrestre.

Rhyme deixou escapar um suspiro.

— Os solados são idênticos. Foram deixados pelo mesmo homem, que fez o percurso duas vezes. Para nos enganar. E as pegadas na direção norte têm a mesma profundidade que as que seguem para o sul. Em vista disso, ele não estava levando uma carga de cem quilos de um lado para o outro. A vítima estava descalça?

Banks folheou as notas.

— De meias.

— Bem, neste caso, o perp estava usando os sapatos da vítima para fazer seu pequeno e inteligente percurso até a escada e de volta.

— Se ele não desceu pela escada, como foi que ele chegou à cova?

— Ele conduziu o homem ao longo dos próprios trilhos, em ambas as direções.

— Não há outras escadas descendo para o leito da estrada em qualquer direção, por vários quarteirões.

— Mas há túneis paralelos à estrada — continuou Rhyme. — Eles se ligam aos porões de alguns velhos armazéns ao longo da Avenida Onze. Durante a Lei Seca, um gângster chamado Owney Madden mandou escavá-los, de modo a enviar partidas de uísque contra bandeado para os trens da New York Central que seguiam para Albany e Bridgeport.

— Mas por que simplesmente não enterrar a vítima perto do túnel? Por que correr o risco de ser visto, levando o cara o caminho todo até a passagem de nível?

Impaciente agora, Rhyme voltou a falar: — Você compreende o que ele está nos dizendo, não?

Banks fez menção de falar, mas, em seguida, sacudiu a cabeça.

— Ele tinha que deixar o corpo em um local onde fosse visto - continuou Rhyme. — Ele precisava que alguém o encontrasse. Foi por isso que deixou a mão alta no ar. Ele está acenando para nós. Para chamar nossa atenção. Desculpe, vocês podem ter apenas um elemento desconhecido, mas ele é suficientemente inteligente por dois. Em algum local nas proximidades, há uma porta de acesso a um túnel. Vão até lá e procurem impressões digitais.

Não vão encontrar nenhuma. Mas vão ter que fazer isso, apesar de tudo. A imprensa, vocês sabem. Quando a história começar a ser divulgada... Bem, boa sorte, cavalheiros. Agora, queiram me desculpar. Lon?

— Sim?

— Não esqueça a cena primária do crime. O que quer que aconteça, você vai ter que encontrá-la. E rápido.

— Obrigado, Linc. Simplesmente, leia o relatório.

Rhyme respondeu que, claro, o leria, e observou que eles acreditaram na mentira. Inteiramente.


CAPÍTULO III

 

 

Ele tinha o melhor jeito de tratar um paciente que Rhyme jamais havia visto. E se alguém conhecia a maneira como médicos tratavam pacientes, essa pessoa era Lincoln Rhyme. Certa vez, calculou que tinha consultado 78 médicos nos últimos três anos e meio.

— Bonita vista — comentou Berger, olhando pela janela.

— Não é mesmo? Bela.

Embora, por causa da altura da cama, Rhyme nada pudesse ver, exceto um céu coberto de névoa seca, brilhando acima do Central Park. Isso - e as aves — tinham constituído a essência da paisagem para ele desde que foi para ali, de volta do último hospital de reabilitação, há dois anos e meio. E conservava as cortinas cerradas durante a maior parte do tempo.

Thom, nesse momento, rolava o patrão na cama — uma manobra que ajudava a manter limpos seus pulmões — e, em seguida, cateterizava-lhe a bexiga, o que tinha que ser feito a cada cinco ou seis horas. Após trauma na medula espinhal, os esfíncteres podem ficar travados abertos ou fechados.

Rhyme teve a sorte de eles ficarem inteiramente fechados — sorte, isto é, contanto que houvesse alguém por perto para abrir, quatro vezes por dia, com um cateter e geléia KY, o pequeno tubo que não cooperava.

O Dr. Berger observou com distanciamento clínico o procedimento e Rhyme nenhuma atenção deu à falta de privacidade. Uma das primeiras coisas que paralíticos superam é a vergonha. Embora, às vezes, façam um esforço pouco convincente para manter o decoro — pedindo que lhe cubram o corpo com um lençol quando são banhados, evacuam ou urinam -, paralíticos graves, aleijados de verdade, aleijados machos, não dão bola para isso. No primeiro centro de reabilitação em que se internou, quando um paciente ia a uma festa ou voltava de um encontro na noite anterior, os outros doentes empurravam suas cadeiras até a cama do indivíduo, para lhe observar a produção de urina, o que era um barômetro do sucesso da noite fora do hospital. Certa vez, Rhyme despertou a admiração imorredoura de seus colegas paralíticos ao registrar a marca impressionante de 1.430cc.

— Dê uma olhada no peitoril da janela, doutor — disse ele a Berger. — Eu tenho meus próprios anjos da guarda.

— Ora, ora. Falcões?

— Falcões-peregrinos. Geralmente, eles fazem ninho em maior altura.

Não sei por que resolveram morar comigo.

Berger lançou um olhar às aves, deixou a cortina cair e voltou-se para o quarto. O aviário não o interessava. Não era um homem alto, mas parecia em bom estado físico, era um corredor, pensou Rhyme, arriscando um palpite.

Parecia estar em fins da casa dos quarenta anos. Os cabelos pretos, porém, brilhavam pela ausência de fios brancos e ele tinha uma aparência tão boa quanto qualquer âncora de noticiário de televisão.

— Isso aí é uma cama e tanto.

— Gostou?

A cama era uma Clinitron, uma imensa laje retangular. Era uma cama de apoio de ar fluidificado e continha quase uma tonelada de contas de vidro revestidas de silicone. Ar pressurizado fluía entre as contas, que lhe suportavam o peso do corpo. Se pudesse sentir alguma coisa, a sensação seria de estar flutuando no ar.

Berger bebia nesse momento o café pedido por Rhyme e que Thom trouxe rolando os olhos e murmurando baixinho, antes de se retirar: — Nós não ficamos subitamente bem-educados?

O médico virou-se para Rhyme: — Pelo que me disse, você foi policial.

— Fui. Eu era o chefe da Polícia Técnica, do DPNY.

— O senhor foi baleado?

— Não. Isso aconteceu quando eu dava uma busca na cena de um crime. Uns operários encontraram um cadáver num canteiro de obras, em uma estação do metrô. Era de um jovem patrulheiro desaparecido seis meses antes... Nós tínhamos nessa época um assassino que andava matando policiais.

Recebi o pedido de me encarregar pessoalmente do caso e, quando estava dando uma busca no local, uma viga caiu. Fiquei soterrado durante quase quatro horas.

— Alguém andava realmente por aí matando policiais?

— Matou três e feriu outro. O criminoso era um policial. Dan Shepherd. Um sargento da radiopatrulha.

Berger lançou um olhar à cicatriz cor-de-rosa no pescoço de Rhyme, o sinal revelador de tetraplegia — o corte de entrada do tubo de ventilação que permanecia implantado na garganta da vítima durante meses após o acidente.

Às vezes, durante anos, quando não para sempre. Rhyme, porém, graças à sua própria natureza obstinada e aos esforços hercúleos de terapeutas, havia se desmamado do ventilador. Nesse momento, possuía um par de pulmões que poderiam mantê-lo debaixo d'água por cinco minutos.

— De modo que houve um trauma cervical.

— C4.

— Ah, sim.

A C4 é a zona desmilitarizada de ferimentos na medula espinhal. Um trauma acima da quarta vértebra cervical poderia tê-lo matado. Abaixo da C4, ele poderia ter recuperado parcialmente o uso dos braços e das mãos, mas não das pernas. Um trauma na mal-afamada quarta vértebra mantinha-o vivo, embora virtualmente como tetraplégico total. Perdera o uso das pernas e dos braços. Os músculos abdominais e intercostais haviam se atrofiado na maior parte e ele respirava basicamente a partir do diafragma. Podia mover cabeça e pescoço e os ombros ligeiramente. A única sorte era que a esmagadora viga de carvalho poupara uma única e minúscula fibra de um neurônio motor, o que lhe permitia mover o dedo anular da mão esquerda.

Rhyme poupou ao médico a novela do ano que se seguiu ao acidente, o mês de tração no crânio: garras em orifícios abertos no crânio, puxando a espinha para endireitá-la, doze semanas do dispositivo chamado auréola — o babador de plástico e um andaime de aço em volta da cabeça para manter o pescoço imóvel. Para conservar os pulmões bombeando ar, usou durante um ano um grande ventilador e, em seguida, um estimulador do nervo frênico. Os cateteres. A cirurgia, o íleo paralítico, as úlceras de tensão, a tensão e a braquicardia, as escaras que se transformavam em ras de decúbito, as contraturas quando o tecido muscular começou a encolher e ameaçar acabar com a preciosa mobilidade do dedo, a enfurecedora dor fantasma - queimaduras e dores em extremidades que não podiam experimentar qualquer sensação. Falou a Berger, contudo, sobre o último problema: — Disreflexia autônoma.

Esse problema vinha acontecendo com maior frequência nos últimos tempos. Batidas fortes do coração, pressão arterial que extrapolava os limites, dores de cabeça lancinantes. Esses sintomas podiam ser provocados por algo tão simples como uma prisão de ventre. Explicou que nada podia ser feito para prevenir essas crises, exceto evitar estresse e constrição física.

O especialista em recuperação de Rhyme, Dr. Peter Taylor, estava preocupado com a frequência dos ataques. O último — ocorrido um mês antes — tinha sido tão grave que Taylor se sentiu obrigado a dar instruções a Thom sobre como tratar aquele estado sem esperar por ajuda médica e insistiu em que programasse seu número de telefone na discagem automática. Taylor avisou que uma crise muito forte poderia transformar-se em um ataque cardíaco ou num derrame cerebral.

Berger ouviu o relato com certo interesse e disse em seguida: — Antes de passar para minha atual linha de atividade, eu era especialista em ortopedia geriátrica. Principalmente em prótese da articulação de quadril. Não conheço muita coisa sobre neurologia. Quais são suas possibilidades de recuperação?

— Nenhuma, meu estado é permanente — respondeu Rhyme, talvez um pouco rápido demais. E acrescentou: — O senhor compreende meu problema, não, doutor?

— Acho que sim. Mas eu gostaria de ouvi-lo em suas próprias palavras.

Sacudindo a cabeça para afastar um fio renegado de cabelo, Rhyme respondeu: — Todos têm o direito de cometer suicídio.

— Acho que discordaria disso — retrucou Berger. — Na maioria das sociedades, o senhor pode ter o poder de fazer isso, mas não direito. Há uma diferença.

Rhyme soltou uma risada amarga.

— Não sou lá grande coisa como filósofo, mas eu diria que nem mesmo tenho o poder. E por isso que preciso do senhor.

Lincoln Rhyme tinha pedido a quatro médicos que o matassem.

Todos haviam recusado. Muito bem, disse ele a si mesmo, vou fazer isso sozinho. E deixou de comer. O processo de autofagia até a morte, porém, transformou-se em pura tortura. Deixou-o com violentas cãibras no estômago e dores de cabeça insuportáveis. Não conseguia dormir. Em vista disso, desistiu desse método e, no curso de uma conversa imensamente difícil, pediu a Thom que o matasse. O rapaz prorrompera em lágrimas — a única vez em que tinha demonstrado tanta emoção — e disse que desejava poder fazer isso Ele se sentaria ao lado e o observaria morrer, ia se recusar a iniciar os processos de ressuscitação. Mas não o mataria pessoalmente.

Então, aconteceu um milagre. Se podia ser chamado assim.

Tão logo foi publicado o The Scenes of the Crime, repórteres apareceram para entrevistá-lo. Uma matéria — no The New York Times — continha uma rígida citação do autor Rhyme: “Não, não estou pensando em escrever mais livros. O fato é que meu próximo grande projeto consiste em me suicidar. É um grande desafio. Nos últimos seis meses, ando à procura de alguém que me ajude a fazer isso.”

Essa lancinante linha final chamou a atenção do serviço de aconselhamento psicológico do Departamento de Polícia da Cidade de Nova York, e de várias pessoas de seu passado, principalmente de Blaine (que lhe disse que ele estava maluco em pensar nisso, que tinha que deixar de pensar apenas em si mesmo — exatamente como fazia quando estavam juntos — e, nesse momento, já que esta va ali, achou que podia dizer que ia voltar a casar.) A citação chamou também a atenção de William Berger que, certa noite, ligou inesperadamente de Seattle. Após alguns momentos de conversa agradável, Berger explicou que tinha lido o artigo no jornal. Seguiu-se uma pausa e ele perguntou: — Já ouviu falar na Sociedade Lethe?

Rhyme tinha ouvido. Era um grupo pró-eutanásia que há meses ele vinha tentando localizar. Era um grupo mais decidido do que o Passagem Segura ou a Sociedade da Cicuta.

— Nossos voluntários são citados para prestar depoimento em dezenas de casos de suicídios auxiliados em todo o país — explicou Berger. — Por isso temos que agir em surdina.

E disse que queria atender ao pedido de Rhyme. Mas se recusou a agir imediatamente e eles haviam tido várias conversas nos últimos sete ou oito meses. Aquele era o primeiro encontro de ambos.

— Não há nenhuma maneira como você possa fazer a passagem sozinho?

Passagem...

— A exceção do método de Gene Harrod, não. E mesmo isso é um pouco difícil.

Harrod era um rapaz de Boston tetraplégico que resolveu que queria se matar. Não tendo encontrado quem o quisesse ajudar, cometeu finalmente suicídio da única maneira que podia. Com o pouco controle de movimentos de que dispunha, provocou um incêndio no apartamento e quando as chamas pegaram para valer entrou nelas com a cadeira de rodas, tocando fogo em si mesmo. Morreu de queimaduras de terceiro grau.

O caso foi mencionado inúmeras vezes por indivíduos que achavam que tinham o direito de morrer quando quisessem e como exemplo da tragédia que as leis contra a eutanásia podiam provocar.

Berger conhecia bem o caso e sacudiu a cabeça, num gesto de simpatia.

— Não, essa não é a maneira de ninguém morrer. — Deu uma olhada no corpo, fios e painéis de controle de Rhyme. — O que me diz de suas habilidades mecânicas?

Rhyme explicou o que sabia sobre o ECU — o dispositivo de controle fabricado pela E&J que ele operava com o dedo anular, o controle de sugar e soprar que usava na boca, as varetas de sustentação do queixo, e a unidade de ditado do computador, que podia digitar na tela as palavras à medida que as pronunciava.

— Mas tudo isso teria que ser iniciado por alguém, não? — perguntou Berger. — Por exemplo, alguém teria que ir a uma loja de armas, comprar uma, montá-la, preparar o gatilho e ligá-lo a seu controlador, certo?

— Certo.

O que tornaria a pessoa culpada de cumplicidade para cometer assassinato, bem como de homicídio culposo.

— O que me diz de seu equipamento? — perguntou Rhyme. — É eficaz?

— Equipamento?

— O que o senhor usaria? Para, hã, praticar o ato?

— É muito eficiente. Nunca tive queixa de um paciente.

Rhyme pestanejou. Berger riu e Rhyme juntou-se a ele na risada. Se você não pode rir da morte, do que é que pode rir?

— Dê uma olhada.

— Trouxe-o consigo?

A esperança floresceu no coração de Rhyme. Era a primeira vez em anos que sentia uma sensação agradável.

O médico abriu uma maleta 007 e — de uma forma muito cerimoniosa, pensou Rhyme — tirou uma garrafa de conhaque. Um pequeno frasco de comprimidos. Um saco plástico e um elástico.

— Qual é a droga?

— Seconal. Ninguém a receita mais. Nos velhos tempos, o suicídio era muito mais simples. Estes bebês aqui farão o serviço, sem a menor dúvida.

Atualmente, é quase impossível matar-se com os tranquilizantes modernos.

Halcion, Librium, Dalmane, Xanax... O indivíduo pode dormir por muito tempo mas, no fim, acaba acordando.

— E o saco?

— Ah, o saco. — Berger o levantou no ar. — Este é o emblema da Sociedade Lethe. Extra-oficialmente, claro... Isso não quer dizer que temos um logotipo. Se os comprimidos e o conhaque não forem suficientes, usamos o saco. Cobrimos a cabeça, com o elástico em volta do pescoço. Juntamos um pouco de gelo, porque o saco fica muito quente depois de alguns minutos.

Rhyme não conseguiu despregar os olhos do trio de implementos. O saco, de plástico grosso, como um avental descartável de pintor. O conhaque era barato, observou, e a droga de nome genérico.

— Esta é uma bela casa — observou Berger, olhando em volta. — Central Park Oeste... O senhor vive de aposentadoria por invalidez?

— Em parte. Faço também serviço de consultoria para a polícia e o FBI. Após o acidente... a companhia de construção que estava fazendo a escavação concordou em juízo em me pagar uma indenização de três milhões de dólares. A empresa jurou que não tinha culpa alguma, mas, aparentemente, há uma jurisprudência segundo a qual um tetraplégico ganha automaticamente qualquer ação intentada contra empresas de construção, pouco importa de quem seja a culpa. Pelo menos, o queixoso vem ao tribunal babando pela boca.

— E o senhor escreveu aquele livro, certo?

— Recebo alguns direitos autorais pelo livro. Não muita coisa. O livro teve uma boa venda. Não foi um sucesso de venda.

Berger apanhou um exemplar do The Scenes of the Crime e folheou-o.

— Cenas de crimes famosos. Olhe só pra isso. — Soltou uma risada. — Há aqui... quantas?, quarenta, cinquenta cenas?

— Cinquenta e uma.

Rhyme tinha revisitado — em pensamento e imaginação, uma vez que havia escrito o livro após o acidente — tantas velhas cenas de crimes em Nova York quantas pôde relembrar. Alguns crimes solucionados, outros, não.

Escreveu sobre a Velha Cervejaria, a mal-afamada casa de cômodos em Five Points, onde haviam sido praticados treze assassinatos sem relação entre si em uma única noite de 1839. Sobre Charles Aubridge Deacon, que assassinou a mãe no dia 13 de julho de 1863, durante distúrbios motivados pela convocação para o serviço militar ao tempo da Guerra Civil. Ele alegou que ex-escravos a haviam matado, açulando a ira pública contra os negros. Sobre o assassinato do triângulo amoroso do arquiteto Stanford White em um crime no alto do Madison Square Garden original e sobre o desaparecimento do juiz Crater. Sobre George Metesky, o bombardeador louco da década de 1950, e Murph, o Surf, que roubou o diamante Estrela da Índia.

— Suprimentos de construção civil no século XIX, correntes subterrâneas, escolas para mordomos — leu Berger, folheando o livro -, banhos de gays, prostíbulos de Chinatown, igrejas ortodoxas russas... Como foi que descobriu tudo isso sobre a cidade?

Rhyme encolheu os ombros. Em seus anos como diretor da DIRC estudou tanto a cidade quanto os métodos científicos de investigação, incluindo sua história, política, geologia, sociologia, infra-estrutura. E explicou: — A criminalística não existe em um vácuo. Quanto mais sabemos sobre o ambiente, melhor podemos aplicar...

No exato momento em que sentiu o entusiasmo insinuando-se na voz, parou bruscamente.

Ficou furioso consigo mesmo por ter sido enganado com tanta facilidade.

— Boa tentativa, Dr. Berger — disse secamente.

— Ah, pare com isso. Pode me chamar de Bill. Por favor.

Rhyme não ia ser descarrilado outra vez.

— Ouvi tudo isso antes. Pegue uma grande folha de papel, limpa e em branco, e escreva todas as razões por que deve se suicidar. Em seguida, pegue outra folha de papel grande, limpa, em branco, e escreva todas as razões por que não deve fazer isso. Palavras como produtivo, útil, interessante surgem em nossa mente. Palavras impressionantes. Que dão na vista. Mas elas não significam merda nenhuma para mim. Além do mais, eu não poderia pegar a porra de um lápis nem para salvar minha alma.

— Lincoln — disse bondosamente Berger -, preciso ter certeza de que é um candidato apropriado para o programa.

— “Candidato”? “Programa”? Ah, a tirania dos eufemismos — comentou Rhyme amargo. — Doutor, eu tomei uma decisão. Gostaria de fazer isso hoje.

Agora, para dizer a verdade.

— Por que hoje?

Os olhos de Rhyme voltaram ao frasco de comprimidos e ao saco. E respondeu baixinho, em voz chorosa: — Por que não? Que dia é hoje? Vinte e três de agosto? Este dia é tão bom quanto qualquer outro.

O médico bateu com os dedos nos lábios finos.

— Vou ter que passar algum tempo conversando com você, Lincoln. Se ficar realmente convencido de que você quer ir em frente...

— Eu quero — disse Rhyme, notando, como frequentemente acontecia, como as palavras soam fracas sem gestos corporais para acompanhá-las. Ele queria desesperadamente pôr a mão no braço de Berger ou erguer as palmas das mãos em uma expressão de súplica.

Sem perguntar se incomodava, Berger tirou do bolso um maço de Marlboro e acendeu um cigarro. Puxou também um cinzeiro dobrável e abriu-o. Cruzou as pernas magras. Parecia um rapaz tímido em uma reunião de fumantes num círculo de alunos de uma universidade de prestígio.

— Lincoln, você entende o problema que temos aqui, não?

Claro que entendia. Era a própria razão por que Berger estava ali e por que um de seus médicos tinha se recusado a “praticar o ato”. Apressar uma morte inevitável era uma coisa: quase um terço dos médicos praticantes que tratam de pacientes terminais receita ou administra doses fatais de medicamentos. A maioria dos promotores públicos faz vista grossa, a menos que o médico bote a coisa a perder — como aconteceu com Kevorkian.

Mas um tetraplégico? Um paraplégico? Um aleijado? Oh, isso era diferente. Lincoln Rhyme tinha quarenta anos de idade. Tinha se libertado do ventilador. Excluindo algum gene insidioso em sua constituição, não havia razão médica para que ele não chegasse aos oitenta.

Berger voltou a falar: — Deixe que eu seja curto e grosso, Lincoln. Tenho também de me certificar de que tudo isto não é uma armação.

— Armação?

— Promotores públicos. Eu me meti em frias antes.

Rhyme soltou uma risada.

— O procurador-geral de Nova York é um homem muito ocupado. Ele não vai instalar um grampo para flagrar um defensor da eutanásia.

Rhyme olhou distraído para um relatório que descrevia uma cena de crime.

...a uns três metros a sudoeste da vítima, encontrada enrodilhada em cima de um pequeno monte de areia branca: uma bola de fibra, de aproximadamente seis centímetros de diâmetro, de cor branca desmaiada. Uma amostra da fibra foi submetida a uma unidade de raios X dispersara de energia e descobriu-se que consistia em A2, B5,(SI, AL)8 O22 (OH22)- Nenhuma origem foi indicada e as fibras não puderam ser individuadas. Amostra enviada à sede do FBI PERT para análise.

 

— Eu simplesmente tenho que ser cuidadoso — continuou Berger. — Esta, atualmente, é toda minha vida profissional. Desisti inteiramente da ortopedia. De qualquer modo, é mais do que um trabalho. Resolvi dedicar minha vida a ajudar outras pessoas a acabar com a vida delas.

 

Ao lado dessa fibra, a aproximadamente 7,5 cm de distâcia, foram encontrados dois pedaços de papel, um de papel de jornal comum, onde estavam impressas as palavras “três da tarde”, em fonte Times Roman, em tinta compatível com a usada em jornais comerciais. O outro pedaço parecia ser o canto de página tirada de um livro, com o número da página, “238” impresso. A fonte usada era Garamond e o papel calendrado. O ALS e a análise subsequente de ninhidrina não revelaram cristas latentes de marcas de impressão digitai em qualquer um deles... A individuação não foi possível.

Várias coisas incomodavam Rhyme. A fibra, por exemplo. Por que Peretti não tinha entendido o que ela significava? Uma coisa tão óbvia. E por que estavam essas provas — os pedaços de jornal e a fibra — todas juntas? Havia ali alguma coisa errada.

— Lincoln?

— Desculpe.

— Eu estava dizendo... Você não é uma vítima de queimaduras, sofredores insuportáveis. Nem uma pessoa que não tenha onde morar. Você tem dinheiro, tem talento. Seu trabalho de consultoria para a polícia... isso ajuda muitas pessoas. Se você quiser, sim, poderá ter uma vida produtiva pela frente. Uma longa vida.

— Longa, sim. Aí é que está o problema. Uma vida longa. — Estava cansado de seu bom comportamento. E disse secamente: — Mas não quero uma vida longa. É simples assim.

Berger respondeu em tom pausado: — Se houver a menor possibilidade de que você possa lamentar sua decisão... bem, eu seria o homem que teria de viver com isso. Não você.

— Quem jamais teria certeza sobre uma coisa como essa?

Os olhos de Rhyme voltaram ao relatório: Um parafuso de ferro foi encontrado em cima dos pedaços de papel. Era um parafuso comum, tendo gravadas em cima as letras “CE”. Cinco centímetros de comprimento, giro para a direita, 15/16” de diâmetro.

 

— Vou ter uma agenda muito ocupada nos próximos dias — disse Berger, consultando o relógio. Um Rolex. Bem, a morte sempre foi lucrativa. - Vamos conversar agora por uma hora, mais ou menos. Fale por algum tempo e, em seguida, tire um dia para esfriar a cabeça e voltarei depois.

Alguma coisa incomodava Rhyme. Uma coceira enfurecedora — a maldição de todos os tetraplégicos -, embora, neste caso, fosse uma coceira intelectual. Do tipo que o atormentou a vida inteira.

— Escute, será que poderia me fazer um favor? Esse relatório aí. O senhor poderia virar as páginas para mim? Veja se pode achar a fotografia de um parafuso.

Berger hesitou por um momento.

— Uma foto?

— Uma polaróide. Deve estar colada a alguma página, lá para o fim.

Virar as páginas uma por uma demora muito.

Berger tirou o relatório do dispositivo e virou as páginas para Rhyme.

— Aí. Pare.

Enquanto olhava para a foto, Rhyme foi tomado por uma pontada de urgência. Oh, não aqui, não agora. Por favor, não.

— Sinto muito, o senhor poderia virar as páginas para o lugar onde eu estava?

Berger fez o que ele pediu.

Rhyme nada disse e continuou a ler com toda atenção o relatório.

 

Os pedaços de papel...

Três da tarde... página 238.

 

O coração de Rhyme batia forte e a testa cobriu-se de suor. Ouviu um zumbido frenético nos ouvidos...

Que manchete para os tablóides, HOMEM MORRE EM CONVERSA COM O DR. MORTE. Berger pestanejou.

— Lincoln, está sentindo alguma coisa?

Os olhos astuciosos do médico examinaram-no com todo cuidado.

Da maneira mais casual que pôde assumir, Rhyme respondeu: — Sabe, doutor, sinto muito. Mas há uma coisa que tenho de fazer.

Berger inclinou a cabeça, sem saber bem o que dizer: — Os seus assuntos, afinal de contas, não estão ainda em ordem?

Sorridente. Despreocupado.

— Eu estava simplesmente me perguntando se podia lhe pedir que voltasse aqui dentro de algumas horas.

Cuidado aí. Se ele desconfiar de finalidade de sua parte, irá classificá-lo como não-suicida, pegará os frascos e o saco plástico e voará de volta para o lugar de onde veio.

Abrindo uma agenda, Berger respondeu: — No resto do dia não dá. Neste caso, amanhã... Não. Sinto muito, a data mais próxima tem que ser a segunda-feira. Depois de amanhã.

Rhyme hesitou por um momento. Deus... O desejo de sua alma estava finalmente a seu alcance, aquilo com que tinha sonhado todos os dias no ano anterior. Sim ou não?

Decida.

Finalmente, Rhyme ouviu sua própria voz respondendo: — Tudo bem. Segunda-feira. — E afivelou um sorriso impotente nos lábios.

— Qual é exatamente o problema?

— Um homem com quem trabalhei. Ele pediu alguns conselhos e não prestei a devida atenção. Vou ter que telefonar para ele.

Não, não era arritmiai, absolutamente... nem um ataque de ansiedade.

Lincoln Rhyme sentia alguma coisa que não sentira durante anos. E estava com uma pressa danada.

— Eu poderia lhe pedir que mandasse Thom subir? Acho que ele está lá embaixo, na cozinha.

— Sim, claro, será um prazer.

Rhyme notou alguma coisa estranha nos olhos de Berger. O que era?

Cautela? Talvez. Mas parecia quase um desapontamento. Nesse momento, porém, não havia tempo de pensar no assunto. Quando os passos do médico morreram escada abaixo, Rhyme berrou numa forte voz de barítono: — Thom? Thom!

— O quê? — ouviu o jovem responder.

— Ligue para Lon. Diga a ele para vir aqui. Agora!

Lançou um olhar ao relógio. Passava do meio-dia. Eles tinham menos de três horas.


CAPÍTULO IV

 

 

 

— A cena do crime foi montada — disse Lincoln Rhyme.

Lon Sellitto havia jogado o paletó para um lado, revelando uma camisa horrivelmente amassada. Nesse momento, inclinou-se para trás, os braços cruzados, apoiando-se em uma mesa coalhada de papéis e livros.

Jerry Banks também tinha voltado e seus olhos azul-claros estavam pregados nos de Rhyme. A cama e o painel de controle não o interessavam mais.

Sellitto franziu as sobrancelhas.

— Mas qual é a história que o elemento desconhecido está tentando nos vender?

Em cenas de crime, especialmente em casos de homicídio, os criminosos frequentemente bagunçavam as provas para desorientar os investigadores. Alguns eram inteligentes nesse trabalho; outros, não. Como aquele marido que espancou a esposa até a morte e tentou fazer com que a coisa parecesse latrocínio — embora ele pensasse apenas em roubar as jóias dela, deixando seus próprios braceletes de ouro e anel com um diamante corde-rosa em cima da penteadeira.

— Isso é que torna o caso tão interessante — continuou Rhyme — Não é sobre o que aconteceu, Lon. É sobre o que vai acontecer.

Sellitto, o cético, perguntou: — O que o leva a pensar assim?

— Os pedaços de papel. Eles significam três horas, hoje.

— Hoje?

— Olhe! — Rhyme indicou o relatório com um gesto impaciente da cabeça.

— Nesse pedaço de papel está escrito “três horas” — disse Banks, apontando. — Mas o outro é um número de página. Por que pensa que significa hoje?

— Não é um número de página. — Rhyme ergueu uma sobrancelha. Eles continuavam sem compreender. — Lógica! A única razão para ele deixar pistas era que queria nos dizer alguma coisa. Se é isso, então 238 tem que ser alguma coisa mais do que um simples número de página, porque não há pista de que livro veio. Bem, se não é um número de página, o que é?

Silêncio.

Exasperado, Rhyme continuou, seco: — É uma data Vinte-e-três-oito. Vinte e três de agosto. Alguma coisa vai acontecer hoje, às três da tarde. E agora, a bola de fibra?

— É asbesto.

— Asbesto? — perguntou Sellitto.

— No relatório? A fórmula? É homblenda. Dióxido de silício. Isso é asbesto. Não entendo por que Peretti enviou-a para o FBI. Muito bem, temos asbesto em um leito de ferrovia, onde não devia haver nenhum. E temos um parafuso de ferro com ferrugem na parte superior, mas nenhuma nas roscas.

Isso significa que ele esteve preso a algum lugar durante muito tempo e que só recentemente foi tirado.

— Talvez tenha aparecido na areia — sugeriu Banks. — Quando ele estava cavando a cova.

— Não — respondeu Rhyme. — No centro da cidade, a camada rochosa fica próxima da superfície, o que significa que acontece o mesmo com os lençóis freáticos. Todo o solo da rua 34 até o Harlem contém umidade suficiente para enferrujar ferro em questão de dias. A peça estaria inteiramente enferrujada, e não apenas a parte superior, se estivesse enterrada. Não, foi arrancada de algum lugar, levada para a cena do crime e deixada lá. E aquela areia... O que uma areia branca estava fazendo em um leito de estrada de ferro no centro de Manhattan? A composição do solo ali é greda, limo, granito, terra compacta e argila mole.

Banks fez menção de falar, mas foi interrompido bruscamente por Rhyme: — E o que essas coisas faziam ali, todas juntas? Oh, ele está nos dizendo alguma coisa, o nosso elemento desconhecido. Podem apostar que está. Banks, o que me diz da porta de acesso?

— O senhor tinha razão — respondeu o jovem. — Descobriram uma porta a uns trinta metros ao norte da cova. Arrombada e aberta pelo lado de dentro. O senhor também tinha razão sobre as impressões digitais. Nada. E nenhuma marca de pneus de carro ou qualquer vestígio de prova.

Uma bola de asbesto suja, um parafuso, um pedaço de jornal...

— A cena? — perguntou Rhyme. — Intacta?

— Liberada.

Lincoln Rhyme, o paralítico com pulmões de assassino, exalou um forte silvo de ar, enojado.

— Quem cometeu esse erro?

— Não sei — respondeu Sellitto, desajeitado. — O comandante do turno, provavelmente.

Peretti, compreendeu Rhyme.

— Nesse caso, você está entalado com o que tem nas mãos.

Quaisquer pistas sobre quem era o seqüestrador e sobre o que ele tencionava fazer estavam ou no relatório ou desaparecidas para sempre, pisoteadas pelos pés dos policiais, espectadores e operários da estrada de ferro. O trabalho preliminar — uma busca nas vizinhanças da cena do crime, interrogatório de testemunhas, o desenvolvimento de pistas, o trabalho tradicional do detetive — tinha sido feito de forma displicente. Cenas de crimes deviam ser processadas “como a rapidez de um relâmpago”, era o que Rhyme ordenava a seus subordinados na DIRC. E tinha demitido muitos técnicos que não se moveram com rapidez suficiente para seu gosto.

— Peretti vistoriou pessoalmente a cena? — perguntou.

— Ele e um grupo inteiro.

— Um grupo inteiro? — perguntou ironicamente Rhyme. — O que é um grupo inteiro!

Sellitto olhou para Banks, que respondeu: — Quatro técnicos da unidade de fotos, quatro de impressões digitais latentes. Oito encarregados de busca. O médico-legista do necrotério.

— Oito encarregados de busca na cena do crime?

No processamento de uma cena de crime ocorre o que é chamado de curva campanular. No caso de um único homicídio, dois policiais são considerados o grupo mais eficiente. Sozinho, um policial pode deixar passar certas coisas; com três ou mais a tendência é deixar passar ainda mais. Lincoln Rhyme sempre tinha dado buscas sozinho. Deixava que o pessoal de levantamento de impressões digitais latentes fizesse o trabalho de coleta de amostras e que a turma da foto filmasse e fotografasse o quanto quisesse. Mas sempre vasculhava sozinho o terreno.

Peretti. Ele mesmo admitira Peretti, filho de um político rico, em seu grupo, mais ou menos há sete anos, e o rapaz tinha mostrado ser um detetive competente, aplicado. A Cena do Crime era considerada um maná e havia sempre uma lista de espera de gente que queria fazer parte da unidade. Rhyme extraía um prazer perverso em diminuir a fila de candidatos, oferecendo-lhes um olhar no álbum de família — uma coleção de fotos de crime particularmente horripilantes. Alguns policiais ficavam lívidos, outros soltavam um risinho safado. Uns tantos devolviam o livro, as sobrancelhas erguidas, como se perguntando: E daí? E havia aqueles que Lincoln Rhyme contrataria. Peretti tinha sido um deles.

Sellitto fez uma pergunta. Rhyme notou que o detetive o fitava. E repetiu a pergunta: — Você vai trabalhar conosco neste caso, não vai, Lincoln?

— Trabalhar com vocês? — Rhyme soltou uma risada explosiva. — Eu não posso, Lon. Estou simplesmente atirando umas idéias para vocês. Agora elas estão com vocês. Ponha-as em prática. Thom, ligue-me com Berger.

Nesse momento, lamentava a decisão de ter adiado a conversa com o Dr. Morte. Talvez não fosse tarde demais. Não podia suportar o pensamento de esperar mais um ou dois dias para sua passagem. E na segunda-feira... Não queria morrer na segunda-feira. Pareceria comum demais.

— Diga que vai, por favor.

— Thom!

— Tudo bem — respondeu o jovem ajudante, as mãos para o alto num gesto de rendição.

Rhyme olhou para o lugar na mesinha-de-cabeceira onde haviam estado antes a garrafa, os comprimidos, e o saco plástico — tão perto, mas, como tudo mais em sua vida, inteiramente fora de seu alcance.

Sellitto deu um telefonema, inclinando a cabeça quando a chamada foi respondida. Identificou-se. O relógio na parede tocou 12:30.

— Sim, senhor. — A voz do detetive desceu para um murmúrio respeitoso. O prefeito, arriscou Rhyme. — Quanto ao sequestro no Kennedy.

Estive conversando com Lincoln Rhyme... Sim, senhor, ele tem algumas idéias sobre o caso.

O detetive foi até a janela, olhou fixamente, sem ver, para o falcão e tentou explicar o inexplicável ao homem que administrava a cidade mais misteriosa da terra. Desligou e voltou-se para Rhyme.

— Ele e o chefe querem sua ajuda, Linc. Pediram isso, especificamente.

O próprio Wilson.

Rhyme soltou uma risada.

— Lon, olhe para esta sala. Olhe para mim. Dou a impressão de que posso me encarregar de um caso?

— Não de um caso normal. Mas este não é um caso normal, ou é?

— Sinto muito. Simplesmente não tenho tempo para isso. Aquele médico... O tratamento. Thom, você ligou para ele?

— Ainda não. Vou ligar num minuto.

— Agora! Faça isso agora!

Thom olhou para Sellitto. Foi até a porta e saiu. Rhyme sabia que ele não ia ligar. Que mundo de merda!

Banks tocou em um ponto cortado pela lâmina de barba e disse impulsivamente: — Apenas algumas idéias. Por favor. Esse elemento desconhecido, o senhor disse que...

Com um gesto, Sellitto mandou que se calasse. Continuou a olhar para Rhyme.

Oh, seu escroto, pensou Rhyme. O velho silêncio. Como as pessoas odiavam o silêncio e como corriam para preenchê-lo com alguma coisa.

Quantas testemunhas e suspeitos haviam entregado os pontos sob um silêncio quente e espesso como aquele. Bem, ele e Sellitto haviam formado uma boa equipe. Rhyme conhecia provas; Lon Sellitto conhecia pessoas.

Os dois mosqueteiros. E se havia um terceiro, era a pureza da ciência séria.

Os olhos do detetive voltaram ao relatório sobre a cena do crime.

— Lincoln. O que é que você acha que vai acontecer hoje, às três da tarde?

— Não tenho a menor idéia — respondeu Rhyme.

— Não tem?

Golpe baixo, Lon. Você me paga por isso. Finalmente, disse: — Ele vai matá-la... a mulher que estava no táxi. E de uma maneira particularmente horripilante. Isso eu lhe garanto. De alguma maneira que rivalizará com ser enterrado vivo.

— Jesus! — murmurou Thom à soleira da porta.

Por que eles simplesmente não podiam deixá-lo em paz? Haveria algum proveito em lhes falar sobre a terrível dor que sentia no pescoço e nos ombros? Ou sobre a dor fantasma — muito mais fraca e muito mais sobrenatural — que lhe percorria o corpo? Sobre a exaustão que sentia com a luta diária para... bem, fazer tudo? Sobre o mais esmagador cansaço de todos - de ter que depender de outra pessoa?

Talvez pudesse lhes contar sobre o mosquito que havia penetrado no quarto na noite passada e lhe picado a cabeça durante uma hora. Ficara tonto de cansaço, espantando-o com movimentos de cabeça, até que o inseto finalmente aterrissou em sua orelha, onde Rhyme deixou que ele o picasse - uma vez que este era um lugar que podia esfregar no travesseiro para aliviar a comichão.

Sellitto ergueu uma sobrancelha.

— Hoje. — Rhyme soltou um suspiro. — Um dia. É isso.

— Obrigado, Linc. Eu lhe devo mais uma. — Sellitto puxou uma cadeira para mais junto da cama e inclinou a cabeça para Banks, dizendo-lhe que fizesse o mesmo. — Agora, conte o que está pensando. Qual é o jogo desse sacana?

— Não tão rápido assim — advertiu-o Rhyme. — Eu não trabalho sozinho.

— Bastante justo. Quem é que você quer na equipe?

— Um técnico da DIRC. O melhor no laboratório. Quero-o aqui, com o equipamento básico. E precisamos também de alguns rapazes para emprego tático. Serviços de Emergência. Oh, quero também alguns telefones — disse Rhyme, olhando para a garrafa de uísque na penteadeira.

Lembrou-se do conhaque que Berger trouxera no kit. De maneira nenhuma ia tomar um troço barato como aquele. O número de sua Passagem Final seria cortesia de um Lagavulin de dezesseis anos ou de um opulento MaCallan, envelhecido durante décadas. Ou por que não ambos?

Banks tirou do bolso o telefone celular.

— Que tipos de linhas? Simplesmente...

— Linhas convencionais.

— Aqui?

— Claro que não — retrucou Rhyme, irritado.

— O que ele está dizendo é que quer pessoas que façam as ligações - explicou Sellitto. — Do Grande Edifício.

— Oh.

— Ligue para o centro — ordenou Sellitto. — Dê um jeito para que nos consigam uns três ou quatro despachantes.

— Lon — perguntou Rhyme -, quem está fazendo o trabalho rotineiro sobre a morte desta manhã?

Banks abafou uma risada.

— Os Irmãos Hardy.

Um olhar de Rhyme e o sorriso desapareceu do rosto de Banks.

— Detetives Bedding e Saul, senhor — acrescentou rapidamente o jovem.

Sellitto, porém, sorriu também.

— Os Irmãos Hardy. Todos os chamam assim. Você não os conhece, Linc. Eles são da Força-Tarefa de Homicídios, do centro.

— Eles se parecem muito, é isso — explicou Banks. — E, bem, o produto que entregam é um bocado engraçado.

— Eu não quero comediantes.

— Não, eles são competentes — garantiu Sellitto. — Os melhores levantadores de pistas que temos. Lembra-se do caso daquele animal que sequestrou uma menininha de oito anos no Queens no ano passado? Bedding e Saul fizeram o levantamento. Entrevistaram toda a bandidagem... fizeram dois mil e quinhentos interrogatórios. Foi por causa deles que a salvamos.

Quando soubemos que a vítima desta manhã era o passageiro do JFK, o chefe Wilson incluiu-os pessoalmente na equipe.

— O que é que eles estão fazendo agora?

— Procurando testemunhas, principalmente. Ao longo dos trilhos do trem. E farejando o que for possível sobre o motorista e o táxi.

Rhyme gritou para Thom, que se encontrava no corredor: — Ligou para Berger? Não, claro que não ligou. A palavra “insubordinação” lhe diz alguma coisa? Pelo menos, torne-se útil. Traga para mais perto aquele relatório sobre a cena do crime e comece a virar as páginas.

— Indicou com a cabeça o dispositivo. — Essa droga de coisa é um Edsel.

— Mas hoje não estamos um bocado bem-humorados? — cuspiu de volta o ajudante.

— Ponha isso mais alto. Estou ficando ofuscado.

Leu o relatório durante um minuto. Em seguida, ergueu a vista.

— O que quer que aconteça hoje às três, se pudermos descobrir o lugar sobre o qual ele está falando, esta será a cena do crime. Vou precisar de alguém para trabalhar nisso.

— Ótimo — concordou Sellitto. — Vou ligar para Peretti. Jogue um osso para ele. Sei que ele está uma fera, porque nós todos o estamos ignorando.

— Eu pedi Peretti? — rosnou Rhyme.

— Mas ele é o menino de ouro da DIRC — lembrou Banks.

— Não quero nada com ele — murmurou Rhyme. — Quero outra pessoa.

Sellitto e Banks trocaram olhares. O detetive mais velho sorriu, coçando distraído a camisa amassada.

— Quem quer que você queira, Linc, já conseguiu. Lembre-se, você é rei por um dia.

 

Olhando para o olho escuro.

T.J. Colfax, refugiada morena das colinas do leste do Tennessee, formada pela Escola de Administração de Empresas da Universidade de Nova York, trader habilíssima em moedas estrangeiras, emergiu de um sonho profundo. Os cabelos emaranhados estavam colados ao rosto, o suor descia em veios pela face, o pescoço e o peito.

Quando deu por si, olhava para o olho negro — um buraco em um cano enferrujado, de uns 15cm de diâmetro, do qual uma pequena placa de visita tinha sido removida.

Sugou pelo nariz o ar bolorento... uma vez que a boca continuava fechada com esparadrapo, com gosto de plástico, quente, azedo.

E John?, pensou. Onde estaria ele? Recusou-se a pensar no estalo alto que tinha ouvido no porão na noite anterior. Havia crescido no leste do Tennessee e sabia como era um som de tiro.

Por favor, disse mentalmente, rezando pelo seu chefe. Que ele esteja bem.

Fique calma, ordenou furiosa a si mesma. Vai começar a chorar novamente, lembrando-se do que aconteceu. No porão, após o tiro, tinha perdido inteiramente o controle de si mesma, soluçando em pânico, e quase morreu sufocada.

Certo. Calma.

Olhe para o olho preto do cano. Finja que ele está piscando para você.

O olho de seu anjo da guarda.

T.J. estava sentada no chão, cercada por centenas de canos, dutos e serpentes de conduítes e fios. Mais quente do que o jantar que o irmão insistia em querer, mais quente do que o assento traseiro do Nova de Jule Whelan, há dez anos. Água pingava, estalactites pendiam das vigas antigas acima de sua cabeça. Uma meia dúzia de minúsculas lâmpadas amarelas forneciam a única iluminação. Acima de sua cabeça — diretamente acima — havia um letreiro. Não conseguiu lê-lo com clareza, embora lhe distinguisse a margem vermelha. Ao fim do que quer que pudesse ser a mensagem havia um gordo ponto de exclamação.

Lutou mais uma vez para se soltar, mas as algemas a mantiveram presa, machucando o osso. De sua garganta subiu um grito de desespero, um grito de animal. O grosso esparadrapo na boca e o ruído insistente de maquinaria engoliram o som. Ninguém poderia tê-la ouvido.

O olho negro continuou a fitá-la. Você vai me salvar, não vai?, pensou.

Subitamente, o silêncio foi quebrado por uma batida forte, um sino de ferro, muito longe. Como se fosse uma porta de navio fechando-se com um estrondo. O som vinha do buraco no cano. De seu olho amigo.

Encostou as algemas no cano e fez um esforço para se levantar. Mas não conseguiu mover-se mais do que alguns centímetros.

E foi nesse momento que conseguiu ver o letreiro acima de sua cabeça. Ao tentar levantar-se, havia se espigado ligeiramente e movido a cabeça para um lado. A posição deu-lhe uma visão oblíqua das palavras.

Oh, não... Oh, Jesus do meu coração...

As lágrimas recomeçaram.

Lembrou-se da mãe, os cabelos puxados para trás do rosto redondo, usando seu vestido caseiro azul, com enfeite de espigas de milho, murmurando: “Vai dar tudo certo, querida. Não se preocupe.”

Mas ela não acreditava nessas palavras.

Acreditava no que o letreiro dizia.

Perigo de Vida! Vapor superaquecido sob Alta Pressão. Não retire a placa de visita do cano. Telefone para a Consolidated Edison para obter acesso. Perigo de Vida!

O olho negro fitou-a, o olho que se abria para o coração de um cano de vapor. E que olhava diretamente para a carne rosada de seu peito. De algum lugar nas profundezas do cano veio outro estalo de metal sobre metal, de operários batendo com martelos, apertando velhas juntas.

Enquanto chorava e chorava, Tammie Jean Colfax ouviu outro estalo.

Em seguida, um gemido distante, muito baixo. E lhe pareceu, através das lágrimas, que o olho negro finalmente piscou.


CAPÍTULO V

 

 

— A situação é a seguinte — começou Lincoln Rhyme. — Temos uma vítima de sequestro e um prazo fatal às três da tarde.

— Não houve pedido de pagamento de resgate — disse Sellitto, suplementando a sinopse feita por Rhyme. Em seguida, virou-se para atender, ao ouvir a campainha do celular.

— Jerry — ordenou Rhyme a Banks –, passe para ele os dados sobre a cena do crime esta manhã.

Na sala escura de Lincoln Rhyme havia mais gente do que na memória recente das paredes. Bem, depois do acidente, os amigos haviam aparecido às vezes, sem se anunciar (as probabilidades eram muito boas de que ele estivesse em casa, claro), mas ele havia desencorajado essas visitas. E tinha deixado também de retornar os telefonemas, tornando-se cada vez mais recluso, mergulhando aos poucos em profunda solidão. Passou as horas escrevendo o livro e, quando lhe faltou inspiração para escrever outro, lendo.

E quando a leitura se tornava maçante, havia filmes de aluguel e TV a cabo e música. Em seguida, desistiu da TV e do estéreo e passava as horas olhando fixamente para fotos de arte, que o empregado obedientemente colava com fita na parede em frente à cama. No fim, elas também haviam sido retiradas.

Solidão.

Isso era tudo que queria, e como sentia falta dela nesse momento.

Andando de um lado para o outro, parecendo tenso, viu Jim Polling.

Lon Sellitto era o encarregado do caso, mas um incidente como esse precisava de um comandante a bordo e Polling se ofereceu para o trabalho. O caso era uma bomba de tempo e poderia acabar com carreiras num abrir e fechar de olhos, de modo que o comissário-chefe e o vice-comissário estavam muito felizes por ele estar ali para interceptar o fogo antiaéreo. Eles estariam praticando a fina arte do distanciamento e, quando a imprensa chegasse para as entrevistas, poderiam usar palavras como responsabilidade delegada, designado fulano, e de acordo com as informações de... e olhariam rápido para Polling, quando a conversa passasse ao campo das perguntas difíceis.

Rhyme não podia compreender por que qualquer policial no mundo se ofereceria para encarregar-se de um caso como aquele.

Polling era um tipo esquisito. O homenzinho havia aberto caminho à força através da Delegacia Norte do centro da cidade e se transformado em um dos mais bem-sucedidos e famosos detetives especializados em homicídios. Conhecido por seu temperamento inflamável, ele tinha se metido em sérios problemas ao matar um suspeito desarmado. Mas conseguiu, surpreendentemente, recompor a carreira ao obter a condenação no caso Shepherd — o caso do assassino em série, aquele em que Rhyme foi ferido.

Promovido a capitão após a prisão, noticiada com estardalhaço pela imprensa, Polling passou por uma das mudanças mais embaraçosas da meia-idade trocar as calças jeans e os ternos da Sears por ternos da Brooks Brothers (nesse dia ele usava um casual Calvin Klein azul-marinho) — e iniciou uma obstinada ascensão para um luxuoso escritório em um andar alto da One Police Plaza.

Outro policial encostou-se numa mesa próxima. Cabelos cortados rentes, alto, magro, de pernas compridas, Bo Haumann era também capitão e chefe da unidade Operações Especiais, a equipe SWAT do DPNY.

Banks encerrou a sinopse no momento em que Sellitto desligava e fechava o celular.

— Os Irmãos Hardy.

— Mais alguma coisa sobre o táxi? — perguntou Polling.

— Nada. Eles estão ainda procurando.

— Algum indício de que ela estivesse trepando com quem não devia? — perguntou Polling. — Talvez um namorado psicopata?

— Nada, nenhum namorado. Ela simplesmente saía uma vez ou outra com alguns caras. Ninguém que a andasse seguindo, ao que parece.

— E ainda nenhum telefonema pedindo resgate? — perguntou Rhyme.

— Nenhum.

A campainha da porta tocou nesse momento. Thom saiu para atender.

Um momento depois, o empregado subiu a escada com uma policial uniformizada. A distância ela parecia muito jovem, mas ao aproximar-se Rhyme notou que ela provavelmente tinha uns trinta anos, ou por aí. Era alta e tinha aquela beleza equina, mal-humorada, de mulheres que nos olham fixamente das páginas de revistas de moda.

Nós vemos os outros como nos vemos e, desde o acidente, Lincoln Rhyme raramente pensava nas pessoas em termos de corpo. Observou-lhe a altura, os quadris enxutos, os cabelos cor de fogo. Outra pessoa notaria esses aspectos e diria: Que avião! No caso de Rhyme, esse pensamento não lhe ocorreu. Mas o que, de fato, ficou registrado foi a expressão nos olhos da moça.

Não a surpresa — obviamente, ninguém tinha dito a ela que ele era um inválido –, mas outra coisa. Uma expressão que ele jamais tinha visto antes.

Era como se o estado dele a deixasse à vontade. O oposto exato de como a maioria das pessoas reagia. No momento em que entrou no quarto, ela parecia estar relaxando.

— Policial Sachs? — perguntou Rhyme.

— Sim, senhor — respondeu ela, controlando-se no momento em que ia lhe estender a mão.

— Detetive Rhyme.

Sellitto apresentou-a a Polling e Haumann. Ela tinha ouvido falar também nos dois, se não por outra coisa, pelo menos pela reputação, e, nesse momento, seus olhos se tornaram mais uma vez cautelosos.

Relanceou os olhos em volta da sala, para a poeira, a escuridão. Deu uma olhada rápida em um dos cartazes de arte. Estava parcialmente desenrolado, sob uma mesa. Nighthawks, de Edward Hopper. Pessoas solitárias em um jantar à noite. Aquele quadro foi o último que ele pintou.

Rhyme explicou em rápidas palavras o que significa o prazo fatal de três da tarde. Sachs inclinou calma a cabeça, mas Rhyme percebeu um lampejo — de quê? medo? repugnância? — em seus olhos.

Jerry Banks, com os dedos atrapalhados por um anel de formatura, mas não uma aliança, sentiu-se imediatamente atraído pelo brilho da beleza da moça e lhe endereçou um sorriso particular. O único olhar de resposta de Sachs, porém, deixou claro que dali não ia sair namoro. E, provavelmente, jamais sairia.

— Talvez seja uma cilada — sugeriu Polling. — Nós encontramos o lugar para onde ele está nos atraindo, entramos e uma bomba explode.

— Duvido — disse Sellitto, encolhendo os ombros. — Por que ele se daria a esse trabalho todo? Se alguém quer matar um policial, tudo que tem a fazer é procurar um e meter bala nele.

Silêncio constrangido durante um momento, enquanto Polling olhava rapidamente de Sellitto para Rhyme. O pensamento coletivo ali era de que tinha sido no caso Shepherd que Rhyme sofreu aquele acidente.

O faux pas, porém, nenhuma importância teve para Lincoln Rhyme.

Ele continuou a falar: — Concordo com Lon. Mas eu diria a quaisquer equipes de Busca e Vigilância e do HRT que ficassem de olho para uma emboscada. Parece que nosso rapaz está redigindo suas próprias regras.

Sachs olhou mais uma vez para o pôster com o quadro de Hopper.

Rhyme seguiu-lhe o olhar. Talvez as pessoas naquele jantar não fossem realmente solitárias, refletiu. Pensando bem, elas pareciam para lá de contentes.

— Temos aqui dois tipos de prova material — prosseguiu. — A prova padrão. Aquilo que o elemento desconhecido não quis deixar na cena do crime: cabelo, fibras, impressões digitais, talvez sangue, pegadas de pés calçados. Se pudermos descobrir um número suficiente delas... e se tivermos sorte, esse fato nos levará à cena primária do crime.

— Ou ao esconderijo dele — sugeriu Sellitto. — Alguma coisa temporária.

— Uma casa segura? — disse Rhyme pensativo, inclinando a cabeça. — Aposto que você tem razão, Lon. Ele precisa de um lugar de onde possa operar. — Parou por um momento, antes de recomeçar. — E há também a prova plantada no local. À parte os pedaços de papel... que nos dizem a hora e a data... temos o parafuso, a bola de asbesto e a areia.

— Uma merda de caçada de lixeiro — rosnou Haumann e passou a mão pelos cabelos à escovinha.

Era sem tirar nem pôr o sargento-instrutor de que Rhyme se lembrava.

— Se é assim, posso dizer ao chefe que há uma possibilidade de chegarmos em tempo à vítima? — perguntou Polling.

— Acho que pode, sim.

O capitão deu um telefonema e se dirigiu para um canto da sala, enquanto falava. Ao desligar, grunhiu: — O prefeito. O chefe está com ele. Vai haver uma entrevista coletiva dentro de uma hora e vou ter que estar lá para ter certeza de que o pau deles está dentro da calça e com o fecho corrido. Alguma coisa mais que eu possa dizer aos garotões?

Sellitto olhou para Rhyme, que sacudiu a cabeça.

— Ainda não — disse o detetive.

Polling deu a Sellitto o número de seu celular e passou literalmente correndo pela porta.

Um momento depois, um homem magro, começando a ficar careca, de uns trinta anos de idade, subiu vagarosamente a escada. Mel Cooper tinha uma aparência tão esquisita como sempre, do vizinho chato que passa o dia assistindo a novelas. Era seguido por dois policiais mais jovens que traziam um baú de viagem e duas valises, que pareciam pesar quinhentos quilos cada.

Os policiais arriaram a pesada carga e foram embora.

— Mel.

— Detetive.

Mel aproximou-se de Rhyme e segurou-lhe a mão direita inútil. O único contato físico naquele dia com um dos visitantes, notou Rhyme. Ele e Cooper haviam trabalhado juntos durante anos. Com diplomas em química orgânica, matemática e física, Cooper era um especialista em identificação — impressões digitais, DNA e reconstrução de indícios, de acordo com métodos científicos de investigação criminal — e análise de provas materiais.

— Como é que vai o maior criminalista do mundo? — perguntou Cooper.

Rhyme respondeu com uma bem-humorada e muda expressão de pouco caso. Esse título lhe fora dado pela imprensa anos antes, após a notícia surpreendente de que o FBI o havia escolhido — um policial municipal — como conselheiro para organizar o PERT, Physical Evidence Response Team (Equipe de Análise de Prova Material). Não satisfeitos com “cientista forense” e “especialista em assuntos criminais”, os repórteres haviam-no batizado como “criminalista”.

A palavra estava realmente em circulação há anos, inicialmente aplicada ao lendário Paul Leland Kirk, diretor da Escola de Criminologia de Berkeley, da Universidade da Califórnia. A escola, a primeira no país, fora fundada pelo ainda mais lendário chefe de polícia August Vollmer. O título tinha recentemente se tornado chique e, quando técnicos criminais em todo o país conheciam louras em coquetéis, eles se descreviam como criminalistas, e não como cientistas forenses.

— O pesadelo de todo mundo — comentou Cooper –, a gente toma um táxi e descobre que há um psicopata ao volante. E o mundo inteiro de olho na Grande Maçã por causa daquela conferência. Eu andava me perguntando se eles não iriam suspender sua aposentadoria para cuidar deste caso.

— Como vai sua mãe? — perguntou Rhyme.

— Ainda se queixando de todas as dores e incômodos possíveis. E ainda mais sadia do que eu.

Cooper morava com a senhora idosa no mesmo bangalô do Queens onde tinha nascido. Sua paixão era dança de salão — e o tango, a sua especialidade. Sendo as fofocas entre policiais o que são, houve especulações na DIRC sobre as preferências sexuais do homenzinho. Embora não sentisse interesse pela vida pessoal dos funcionários, Rhyme ficara tão surpreso como todo mundo ao finalmente conhecer Greta, a namorada firme de Cooper, uma escandinava deslumbrante que ensinava matemática avançada em Columbia.

Cooper abriu a grande mala, forrada de veludo. Retirou as peças de três grandes microscópios e começou a montá-los.

— Oh, eletricidade caseira.

Olhou para as tomadas, parecendo desapontado. Empurrou para o alto do nariz os óculos de aro de metal.

— É porque isto aqui é uma casa, Mel.

— Eu pensava que você vivia em um laboratório. Eu não teria ficado surpreso.

Rhyme olhou para os aparelhos, em tons cinzentos e pretos, com muito sinal de uso, semelhantes àqueles que haviam sido seus companheiros constantes durante quinze anos: um microscópio composto padrão, um microscópio de contraste de fase, e um modelo operado à luz polarizada.

Cooper abriu as valises, onde estava guardado o grande estoque dos frascos, potes e instrumentos científicos do Sr. Gênio. Num relâmpago, palavras voltaram à mente de Rhyme, palavras que haviam feito parte de seu vocabulário diário. Tubos de ensaio de coleta de sangue, ácido acético, ortololidina, reagente luminol, pincel Magna, contraste púrpura de Ruhemann...

O homenzinho magrelo olhou em volta da sala.

— Parece igualzinho ao que era seu gabinete, Lincoln. Como é que você encontra alguma coisa nesta bagunça? Ei, vou precisar de um pouco de espaço por aqui.

— Thom — Rhyme indicou com a cabeça a mesa menos atravancada.

Revistas, papéis e livros foram afastados para um lado, pondo à vista um tampo que Rhyme não via há um ano.

Sellitto lançou um olhar no relatório sobre a cena do crime.

— Que nome vamos dar ao elemento desconhecido? Não temos ainda um número de caso.

Rhyme lançou um olhar a Banks.

— Escolha um número. Qualquer número.

— O número da página — sugeriu Banks. — Quero dizer, a data.

— Elemento desconhecido 238. Tão bom como qualquer outro.

Sellitto anotou esse dado no relatório.

— Hummm, queira desculpar? Detetive Rhyme?

Foi a patrulheira quem falou. Rhyme voltou-se para ela.

— Eu devia estar no Grande Edifício ao meio-dia.

Era a gíria policial para designar a One Police Plaza.

— Policial Sachs... — Ele se esquecera momentaneamente dela. — Você foi o primeiro policial na cena esta manhã? Naquele homicídio nos trilhos da estrada de ferro?

— Exatamente. Fui eu que recebi o aviso. — Ao falar, ela se dirigiu a Thom.

— Eu estou aqui, policial — lembrou-lhe severamente Rhyme, mal controlando a irritação. — Bem aqui. — Enfurecia-se quando as pessoas falavam com ele através de outras, através de pessoas sadias.

Ela girou rapidamente a cabeça e ele notou que a lição havia sido bem aprendida.

— Sim, senhor — respondeu ela, com um tom macio na voz, mas gelo nos olhos.

— Estou aposentado. Simplesmente me chame de Lincoln.

— Quer, por favor, me dizer logo o motivo?

— O que foi que você disse? — perguntou ele.

— A razão por que me mandou vir aqui. Sinto muito. Eu não estava pensando. Se quiser um pedido de desculpas por escrito, faço isso. Só que estou atrasada para minha nova missão e não tive oportunidade de telefonar para meu comandante.

— Desculpas? — perguntou Rhyme.

— A coisa é a seguinte: eu não tinha qualquer experiência real com cenas de crime. O que fiz foi mais ou menos improvisar.

— Do que é que você está falando?

— De ter parado os trens e fechado a Avenida Onze. Foi culpa minha que o senador não tenha podido fazer seu discurso em Nova Jersey e que alguns delegados graduados às Nações Unidas não tenham podido chegar a tempo do aeroporto de Newark para as sessões.

Rhyme ria nesse momento.

— Você sabe quem eu sou?

— Ouvi falar no senhor, claro. Eu pensava que o senhor...

— Estivesse morto? — perguntou Rhyme.

— Não. Não foi isso o que eu quis dizer. — Embora fosse.

Rapidamente, ela continuou a falar: — Todos nós estudamos em seu livro na Academia. Mas não ouvimos nada sobre o senhor. Pessoalmente, quero dizer... — Olhou para o alto da parede e disse formalmente: — Em meu julgamento, como primeiro policial a chegar à cena do crime, achei que seria melhor parar o trem e fechar a rua a fim de proteger o local. E foi isso o que fiz, senhor.

— Chame-me de Rhyme. E você é...

— Eu...?

— Seu primeiro nome?

— Amélia.

— Amélia. O mesmo nome da aviadora?

— Não, senhor. Nome de família.

— Amélia, não quero um pedido de desculpas. Você fez o que era certo e Vince Peretti errou.

Sellitto ficou constrangido com essa indiscrição, mas Lincoln Rhyme não lhe deu bola. Ele era, afinal de contas, uma das poucas pessoas no mundo que poderia ficar com a bunda numa cadeira quando o próprio presidente dos Estados Unidos entrasse numa sala.

— Peretti administrou a cena do crime como se o prefeito estivesse olhando por cima do ombro dele, e essa é a maneira número um de botar as coisas a perder. Ele chamou gente demais, errou inteiramente ao restabelecer o tráfego de trens e carros e nunca deveria ter liberado a cena tão cedo, como fez. Se tivéssemos mantido seguros os trilhos, quem sabe poderíamos justamente ter achado um recibo de cartão de crédito com um nome. Ou uma grande e bela impressão digital de polegar.

— Pode ser que sim — disse delicadamente Sellitto. — Mas vamos simplesmente manter esse dado entre nós.

Dando ordens silenciosas, seus olhos giraram na direção de Sachs, Cooper e do jovem Jerry Banks.

Rhyme soltou uma risadinha irreverente. Em seguida, voltou-se para Sachs, que flagrou, como fizera com Banks naquela manhã, olhando fixamente para suas pernas e o corpo sob o cobertor cor de damasco. Dirigiu-se a ela: — Pedi que viesse aqui para processar para nós a próxima cena do crime.

— O quê?! — Dessa vez ela não falou através de intérpretes.

— Processar para nós — repetiu ele sucintamente. — A próxima cena do crime.

— Mas... — Ela riu — eu não sou da DIRC. Sou patrulheira. Nunca realizei trabalho de cena de crime.

— Este caso é incomum. Como o próprio detetive Sellitto vai lhe dizer.

É realmente sobrenatural. Certo, Lon? Verdade, se fosse uma cena clássica, eu não a chamaria. Mas vamos precisar de um par de olhos novos na cena de que estou falando.

Amélia lançou um olhar a Sellitto, que nada disse.

— Eu, simplesmente... Eu não seria competente nisso, tenho certeza.

— Muito bem — disse pacientemente Rhyme. — Quer saber a verdade?

Amélia inclinou a cabeça.

— Preciso de uma pessoa que teve peito para parar um trem, a fim de proteger a cena, e aguentar depois a pressão.

— Obrigada pela oportunidade, senhor. Lincoln. Mas...

— Lon — disse secamente Rhyme.

— Policial Sachs — grunhiu o detetive, dirigindo-se a Amélia –, ninguém aqui está lhe dando qualquer opção. Você foi designada para este caso, a fim de prestar serviços na cena do crime.

— Senhor, devo protestar. Estou me transferindo da Radiopatrulha.

Hoje. Consegui transferência por motivos médicos. Em vigor há uma hora.

— Motivos médicos? — perguntou Rhyme.

Amélia hesitou, olhando novamente para as pernas dele.

— Tenho artrite.

— Tem? — perguntou Rhyme.

— Artrite crônica.

— Sinto muito ouvir isso.

Rapidamente, ela continuou: — Só recebi aquele rádio esta manhã porque havia alguém doente. Não planejei isso.

— Sim, entendo. Eu também tinha outros planos — retrucou Lincoln Rhyme. — Agora, vamos dar uma olhada nas provas.


CAPÍTULO VI

 

 

— O parafuso.

Lembrando a regra clássica sobre cena de crime: Examine em primeiro lugar a prova mais incomum.

Thom girou repetidamente nas mãos o saco de plástico, enquanto Rhyme examinava o pino de metal, uma metade enferrujada, a outra, não.

Rombudo. Usado.

— Tem certeza sobre as impressões digitais? Tentou o reagente a partículas pequenas? Esse é o melhor, no caso de provas materiais expostas aos elementos.

— Tenho — garantiu Mel Cooper.

— Thom — ordenou Rhyme –, tire este cabelo de cima de meus olhos!

Bote-o para trás com um pente. Eu disse a você esta manhã para penteá-lo.

O empregado suspirou e penteou para trás os fios emaranhados.

— Tome cuidado — murmurou ele ameaçador para o patrão.

Rhyme sacudiu a cabeça, despedindo-o, e emaranhando ainda mais os cabelos. Sentada a um canto, Amélia Sachs tinha uma expressão de mau humor, as pernas sob a cadeira, na posição de um corredor de alta velocidade e, realmente, dava a impressão de estar justamente à espera do tiro de partida.

Rhyme voltou a examinar o parafuso.

No tempo em que estava na DIRC, começou a montar bancos de dados, semelhantes ao catálogo federal de lascas de pintura de automóveis e aos arquivos sobre tipos de tabaco do BATE criou uma pasta de modelos de projéteis, fibras, tecidos, pneumáticos, sapatos, ferramentas, óleo de motor, fluido de transmissão. Passou centenas de horas compilando listas, com índices e remissões recíprocas.

Mas, mesmo no tempo de trabalho obsessivo de Rhyme, a DIRC jamais chegou a catalogar peças de metal. Nesse momento perguntou-se por que e ficou zangado consigo mesmo por não ter reservado tempo para fazer isso, e ainda mais com Vince Peretti por tampouco ter pensado nesse assunto.

— Vamos ter que telefonar para todos os fabricantes de parafusos e empreiteiros do nordeste do país. Não, do país inteiro. Perguntar se fabricam um modelo como este e a quem o venderam. Mande por fax uma descrição e uma foto do parafuso aos nossos despachantes, em Comunicações.

— Diabos, poderia haver um milhão deles — disse Banks. — Todas as Ace Harware e Sears do país.

— Não acho — respondeu Rhyme. — O parafuso tem de ser uma pista viável. Ele não o deixaria se fosse inútil. Há uma fonte limitada desses parafusos. Aposto com você.

Sellitto deu um telefonema e ergueu a vista alguns minutos depois.

— Consegui os despachantes que você queria, Lincoln. Quatro. Onde é que conseguimos arranjar uma lista de fabricantes?

— Mande um patrulheiro até a rua 32 — respondeu Rhyme. — A Biblioteca Pública. Lá eles têm catálogos de empresas. Até conseguir um deles, ponha os despachantes para trabalhar nas Páginas Amarelas, seção Negócios.

Sellitto repetiu as instruções ao telefone.

Rhyme lançou um olhar ao relógio. Uma hora e meia.

— Agora, o asbesto.

Por um momento, a palavra brilhou na mente de Rhyme. Sentiu uma pontada — em lugares onde nenhuma pontada podia ser sentida. O que era que ele sabia tanto sobre asbesto? Era alguma coisa que tinha lido ou ouvido -

recentemente, ao que parecia, embora não confiasse mais em seu senso de tempo. Quando uma pessoa fica deitada de costas, no mesmo lugar, um mês após outro, após outro, o tempo passa a correr lentamente, em um estado de quase morte. Bem que poderia estar pensando em alguma coisa que tinha lido dois anos antes.

— O que é que sabemos sobre asbesto? — perguntou baixinho.

Ninguém respondeu, mas isso pouco importava. Respondia a si mesmo. Aliás, de qualquer modo, preferia que fosse assim. O asbesto era uma molécula complexa, um polímero de silicato. Não queima porque, como o vidro, já está oxidado.

Quando processava cenas de crimes de velhos assassinatos — trabalhando com antropólogos e dentistas especializados em assuntos criminais -, muitas vezes fazia isso em prédios isolados com asbesto.

Lembrou-se do gosto peculiar das máscaras faciais que os operários eram obrigados a usar durante uma escavação. Na verdade, lembrou-se nesse momento, foi durante a remoção de asbesto em uma linha do metrô da cidade, realizada três anos e meio antes, que equipes encontraram, em uma sala de geradores, o corpo de um policial assassinado por Dan Shepherd. No momento em que se curvou lentamente para tirar uma fibra da túnica azul-clara do policial, ouviu o estalo e o gemido da viga de carvalho. A máscara o havia provavelmente salvo de morrer por sufocação na poeira e areia que caíram e o cercaram por todos os lados.

— Talvez ele a tenha levado para um local de remoção de asbesto — sugeriu Sellitto.

— Poderia ser isso — concordou Rhyme.

Sellitto voltou-se para o jovem assistente: — Ligue para a EPA e para o Departamento de Defesa do Meio Ambiente, da prefeitura. Descubra se há lugares onde estão fazendo atualmente obras de remoção de asbesto.

O detetive deu o telefonema.

— Bo — perguntou Rhyme –, você tem equipes que possamos usar?

— Prontas para entrar em ação — confirmou o comandante da UOE –, embora tenha que dizer que metade da força está a serviço desse troço das Nações Unidas. Foi emprestada ao Serviço Secreto e à segurança das Nações Unidas.

— Consegui umas informações da EPA.

Banks chamou Haumann com um gesto e os dois se dirigiram para um canto da sala. Tiraram do lugar várias pilhas de livros. No momento em que Haumann desenrolava alguns mapas táticos da UOE cobrindo a cidade de Nova York, alguma coisa caiu com um estalo no chão.

Banks sobressaltou-se.

— Jesus!

Do ângulo onde se encontrava, Rhyme conseguiu ver o que havia caído. Haumann hesitou por um momento, curvou-se em seguida, pegou uma vértebra descorada de coluna vertebral e recolocou-a na mesa.

Rhyme sentiu o peso de vários pares de olhos focalizados nele, mas nada disse. Hauman curvou-se sobre o mapa, enquanto Banks, ao telefone, lhe passava informações sobre locais onde era feita remoção de asbesto. O

comandante marcou-os com um lápis de cera. Parecia haver um grande número desses locais, espalhados por todos os cinco bairros da cidade. Era desanimador.

— Temos que limitar mais a busca. Vejamos, a areia — disse Rhyme a Cooper. — Examine-a no microscópio e diga o que acha.

Sellitto passou ao técnico o envelope que continha a prova. Cooper derramou o conteúdo em uma placa esmaltada de exame. O pó brilhante soltou uma pequena nuvem de poeira. Havia também uma pedra, tornada lisa por desgaste, que ficou no centro da placa.

Lincoln Rhyme sentiu um aperto na garganta. Não com o que via - não sabia ainda para o que estava olhando –, mas com o impulso nervoso defeituoso que partiu de seu cérebro e morreu a meio caminho do braço direito inútil, em uma ânsia para pegar um lápis e usá-lo. Era a primeira vez em um ano, mais ou menos, que sentia essa ânsia. O desejo ardente encheu-lhe os olhos de lágrimas e seu único consolo foi a lembrança do pequeno vidro de Seconal e o saco plástico que o Dr. Berger levava consigo — imagens que pairaram na sala como se fossem as de um anjo salvador.

Pigarreou.

— Examine-a.

— O quê?

— A pedra.

Sellitto fitou-o, curioso.

— A pedra não devia estar aí — disse Rhyme. — Maçãs e laranjas. Quero saber por quê. Examine-a.

Usando um fórceps com pontas de porcelana, Cooper pegou a pedra e examinou-a. Colocou óculos de trabalho e tocou a pedra com o feixe de uma PoliLight — um dispositivo do tamanho de uma bateria de carro, com uma vareta luminosa.

— Nada — disse.

— DMV?1

Cooper, porém, não tinha trazido equipamento de DMV.

— O que é que você tem aí? — perguntou Rhyme, irritado.

— Preto Sudão, revelador físico estabilizado, iodo, preto de amido, DFO e violeta genciana, pincel Magna.

Trouxera também ninhidrina para tirar impressões digitais de superfícies porosas e Super-Cola para usar em superfícies lisas. Rhyme lembrou-se da notícia sensacional que tinha varrido a comunidade de polícia especializada alguns anos antes. Um técnico que trabalhava no laboratório de criminalística do Exército dos Estados Unidos no Japão usou Super-Cola para consertar uma câmera quebrada e descobrira, espantado, que a fumaça do adesivo provocava o aparecimento, com mais nitidez, de impressões digitais latentes do que a maioria dos produtos químicos elaborados para esse fim.

Esse era o método que Cooper empregava no momento. Usando o fórceps, colocou a pedra em uma pequena caixa de vidro e acrescentou uma pitada da cola na placa quente que havia no interior da caixa. Minutos depois, tirou a pedra do recipiente.

— Conseguimos alguma coisa — disse.

Borrifou a pedra com pó UV de comprimento de onda longo c iluminou-a com um facho da vareta PoliLight. Uma impressão digital apareceu com grande clareza. Bem no alvo. Cooper fotografou-a com uma polaróide CU-5, uma câmera 1:1. Passou a foto a Rhyme.

— Mais perto. — Rhyme apertou os olhos enquanto a examinava. — Isso mesmo! Ele rolou-a.

Impressões digitais roladas — passar um dedo sobre uma superfície — produziam uma imagem diferente das que eram deixadas quando alguém pegava em um objeto. Era uma diferença sutil — na largura das cristas de atrito em vários pontos no total da impressão –, mas que Rhyme reconheceu claramente nesse momento.

— Olhe aí, o que é isso? — perguntou baixinho. — Essa linha.

Viram uma marca desmaiada, em forma crescente, na impressão digital.

 

— Até parece...

— Isso mesmo — concordou Rhyme. — A unha dela. Normalmente não obteríamos isso. Mas aposto que ele inclinou a pedra justamente para ter certeza de que ela seria apanhada. O gesto deixou uma impressão oleosa.

Como uma crista de atrito.

— Por que ele faria isso? — perguntou Sachs.

Mais uma vez irritado porque ninguém ali parecia estar notando esses pontos com a mesma rapidez que ele, Rhyme explicou secamente: — Ele está nos dizendo duas coisas. A primeira: está providenciando para que saibamos que a vítima é uma mulher. No caso de não termos feito a conexão entre ela e o corpo achado esta manhã.

— Por que ele faria isso? — perguntou Banks.

— Para aumentar a aposta — retrucou Rhyme. — Para nos fazer suar mais.

Ele está nos dizendo que uma mulher corre perigo. Ele dá valor às vítimas exatamente como fazemos, embora a gente alegue que não faz isso.

Rhyme olhou por acaso para as mãos de Sachs. E ficou surpreso ao descobrir que, no caso de uma mulher tão bela, os dedos dela eram um horror. Quatro deles terminavam em Band-Aids cor de carne e vários outros pareciam roídos até a cutícula. A cutícula de um deles estava coberta de sangue pardo. Notou também a inflamação vermelha na pele embaixo das sobrancelhas, por puxá-las, supôs. E uma marca de arranhão ao lado da orelha. Todos eles hábitos autodestrutivos. Há milhões de maneiras de uma pessoa fazer mal a si mesma, além de tomar comprimidos e beber Armagnac.

— Quanto à outra coisa que ele está nos dizendo, já avisei vocês sobre ela — continuou Rhyme. — Ele conhece provas. Está dizendo: Não percam tempo com técnicas comuns de levantamento de provas materiais. Não vou deixar nenhuma. Isso é o que ele pensa, claro. Mas vamos encontrar alguma coisa. Podem apostar que vamos. — Subitamente, fechou a cara. — O mapa.

Precisamos do mapa. Thom!

— Que mapa? — perguntou espantado o empregado.

— Você sabe de que mapa estou falando.

Thom soltou um suspiro.

— Nem desconfio, Lincoln.

Olhando pela janela e falando em parte para si mesmo, Rhyme continuou, em tom pensativo: — O viaduto sobre a linha da estrada de ferro, os túneis dos contrabandistas de bebida e as portas de acesso, o asbesto... todos eles são coisas antigas. Ele gosta da Nova York histórica. Eu quero o mapa Randel.

— Qual e onde?

— Nas pastas com as pesquisas que fiz para meu livro. Onde mais?

Thom mexeu em pastas e tirou a fotocópia de um comprido mapa horizontal de Manhattan.

— Este?

— Esse mesmo !

Era o mapa Randel, desenhado em 1811 para que os comissários da cidade pudessem planejar a grade de ruas de Manhattan. O mapa tinha sido impresso horizontalmente, com o Battery Park, sul, à esquerda, e o Harlem, norte, à direita. Mostrada dessa maneira, a ilha parecia o corpo de um cão no momento do salto, a cabeça estreita erguida para um ataque.

— Pregue-o aí no alto. Ótimo.

Enquanto o empregado cumpria a ordem, Rhyme disse explosivamente: — Thom, nós vamos alistá-lo provisoriamente na polícia. Dê a ele um distintivo lustroso ou alguma outra coisa, Lon.

— Lincoln... — murmurou o rapaz.

— Nós precisamos de você. Ora, vamos. Você não quis sempre ser um Sam Spade ou um Kojak?

— Só quis ser Judy Garland — respondeu o empregado.

— Jessica Fletcher, então! Você vai escrever o perfil. Vamos, pegue aquela Mont Blanc que você sempre mostra vaidosamente no bolso da camisa.

O jovem rolou os olhos para cima, enquanto puxava uma caneta Parker e pegava um bloco empoeirado de papel amarelo em uma pilha sob uma das mesas.

— Não, tenho uma idéia melhor — anunciou Rhyme. — Pendure um desses pôsteres. Esses pôsteres de arte. Pregue-o virado e escreva nas costas com uma caneta marcadora. Com letras grandes, para que eu possa vê-las.

Thom escolheu o de nenúfares de Monet e pregou-o na parede.

— No alto — ordenou o crimininalista –, escreva “Elemento Desconhecido 238”. Em seguida, quatro colunas: “Aparência, Residência, Veículo, Diversos.” Lindo. Agora, vamos começar. O que é que nós sabemos sobre ele?

— O veículo... — começou Sellitto -, ele tem um Yellow Cab.

— Certo. E, sob “Diversos”, escreva que ele está familiarizado com procedimentos relativos à cena do crime.

— O que — acrescentou Sellitto — pode significar que ele já foi ao pote outras vezes.

— Como assim? — perguntou Thom.

— Ele pode ter ficha na polícia — explicou o detetive.

— Devemos acrescentar que ele está armado com um Colt .32?

— Droga, sim — confirmou o chefe do rapaz.

— E ele conhece CAs...

— O quê ?— perguntou Thom — Cristas de atrito... impressões digitais. É isso o que elas são, como você sabe, as cristas em nossas mãos e pés que nos dão tração. E anote aí que provavelmente ele está operando a partir de uma casa segura. Bom trabalho, Thom. Olhem para ele. Ele é um policial nato.

Thom alegrou-se todo e afastou-se da parede, espanando a camisa, onde se havia grudado uma pegajosa teia de aranha.

— Aí estamos, pessoal — disse Sellitto. — Nossa primeira olhada no Sr. 238.

Rhyme virou-se para Mel Cooper.

— Agora, a areia. O que é que você pode dizer sobre ela?

Cooper levantou os óculos de segurança para a testa pálida.

Derramou uma amostra em uma placa e introduziu-a sob a objetiva do microscópio de luz polarizada. Ajustou os botões.

— Hummm. Isso é curioso. Nada de birrefringência.2

— De modo que isso não é areia — murmurou Rhyme. — É alguma coisa tirada do fundo... Pode individuar3 a coisa?

— Talvez — respondeu o técnico -, se eu puder descobrir o que é isso.

— Vidro triturado? — sugeriu Rhyme.

Vidro é basicamente areia fundida. O processo de fabricação de vidro, porém, altera a estrutura cristalina. Não se consegue birrefringência com vidro comum. Cooper examinou atentamente a amostra.

— Não, não acho que seja vidro. Não sei o que é. Como eu gostaria de ter aqui um EDX 4.

 

— Consiga um para ele — ordenou Rhyme a Sellitto. Em seguida, olhou em volta da sala. — Precisamos de mais equipamento.

Quero também uma unidade de levantamento de metal de impressões digitais em vácuo. E um GC-MS.

O cromatógrafo de gás decompõe substâncias em seus elementos componentes, enquanto a fotoespectrometria usa luz para identificar cada um deles. Esses instrumentos permitem que criminalistas submetam a testes amostras desconhecidas de apenas um milionésimo de grama e as comparem com um banco de dados de cem mil substâncias conhecidas, catalogadas por identidade e nome de marca.

Por telefone, Sellitto passou a lista ao laboratório da Polícia Técnica.

— Mas não vamos poder esperar por esses instrumentos sofisticados, Mel. Você vai ter que fazer isso à velha maneira. Diga mais alguma coisa sobre essa areia de araque.

— Está misturada com um pouco de sujeira. Temos aqui argila mole, um pouco de quartzo, feldspato e mica. E fragmentos mínimos de folhas e plantas em decomposição. E pontinhos do que poderia ser bentonita.

— Bentonita. — Rhyme pareceu satisfeito. — Isso é uma cinza vulcânica que os construtores civis usam em pasta de perfuração, quando estão escavando fundações em áreas tímidas de cidade onde o leito rochoso é profundo. Evita desabamentos. De modo que estamos procurando uma área urbanizada que está junto ou perto de água, provavelmente ao sul da rua 32.

Ao norte desse local, o leito rochoso fica muito mais perto da superfície e os construtores não precisam de pasta de perfuração.

Cooper moveu a placa.

— Se tivesse que dar um palpite, eu diria que isto aqui é principalmente cálcio. Espere, há aqui alguma coisa fibrosa.

Cooper girou o botão. Rhyme teria pago qualquer preço para poder dar uma espiada através daquela ocular. Lembrou-se em um relâmpago de todas as noites que passara com o rosto colado à esponja de borracha cinzenta, observando fibras, fragmentos de humo, células sanguíneas ou aparas de metal entrando e saindo de foco.

 

— E aqui há mais uma coisa. Um grânulo maior. Três camadas. Uma semelhante a tecido ceratótico e duas de cálcio. Cores ligeiramente diferentes.

A outra é translúcida.

— Três camadas? — disse irritado Rhyme. — Droga, é uma concha marinha!

Ficou furioso consigo mesmo. Devia ter pensado nessa possibilidade.

— Certo, é isso mesmo — concordou Cooper com uma inclinação de cabeça. — Ostra, acho.

Os leitos de ostras em volta da cidade eram encontrados principalmente nas costas de Long Island e Nova Jersey. Rhyme tivera esperança de que o elemento desconhecido limitasse a Manhattan a área geográfica de busca — onde havia sido encontrada a vítima daquela manhã.

Murmurou: — Se ele está abrindo toda a área do metrô, a busca vai dar em nada.

— Estou vendo agora outra coisa — disse Cooper. — Acho que é limo.

Mas muito antigo. Granular.

— De concreto, talvez? — sugeriu Rhyme.

— Possivelmente. Sim. Mas, neste caso, não entendo o motivo das conchas — acrescentou Cooper pensativo. — Em volta de Nova York, os leitos de ostras estão cheios de vegetação e lama. Esta está misturada com concreto e nela não há virtualmente qualquer matéria vegetal.

— Bordas! — disse subitamente Rhyme. — Com que se parecem as bordas da concha, Mel?

O técnico voltou a espiar pela ocular.

— Fraturadas, não desgastadas. Isto foi pulverizado por pressão seca.

Nenhum sinal de erosão por água.

Os olhos de Rhyme passearam pelo mapa Randel, escaneando-o à direita e à esquerda e concentrando-se nas ancas do cachorro.

— Entendi! — exclamou.

Em 1913, F.W. Woolworth construiu a estrutura de sessenta andares que ainda leva seu nome, revestida de terracota e adornada com gárgulas e esculturas góticas. Durante dezesseis anos, foi o prédio mais alto do mundo.

Uma vez que o leito rochoso naquela parte de Manhattan se situava a mais de trinta metros abaixo da Broadway, os operários tiveram que abrir profundas chaminés para ancorar o prédio. Não muito depois do início das obras, os operários descobriram os restos mortais de Talbott Soames, industrial de Manhattan, que tinha sido sequestrado em 1906. O corpo foi encontrado enterrado em uma espessa camada do que parecia ser areia branca, mas que na realidade eram conchas pulverizadas de ostras, fato este que foi um carnaval para os tablóides, mencionando a obsessão do rico magnata por comidas suculentas. As conchas eram tão comuns na ponta leste da baixa Manhattan que passaram a ser usadas para aterros. E foram elas que deram nome à Pearl Street.

— Ela está em algum lugar no centro da cidade — anunciou Rhyme. — Provavelmente, no East Side. E talvez perto da Pearl. E estará em um subterrâneo, possivelmente a uma profundidade de um e meio a quatro metros e meio. Talvez em um canteiro de obras, talvez em um porão. Em um velho prédio ou em um túnel.

— Faça uma checagem cruzada no diagrama da EPA, Jerry — ordenou Sellitto a seu auxiliar. — Onde é que andam fazendo remoção de asbesto?

— Ao longo da Pearl? Nada. — O jovem policial ergueu o mapa em que ele e Haumann estavam trabalhando. — Há umas três dezenas de locais de limpeza: em Midtown, no Harlem, e no Bronx.

Mas nada no centro.

— Asbesto... asbesto... — disse mais uma vez Rhyme em voz baixa, pensativo. O que era tão conhecido sobre o asbesto?

O relógio marcava nesse momento 2:05.

— Bo, temos que começar a agir. Mande sua gente para lá e inicie uma busca. Todos os prédios ao longo da Pearl Street. Na Water Street também.

— Homem — suspirou o policial –, isso é um bocado de prédios.

Mas dirigiu-se para a porta.

Rhyme voltou-se para Sellitto: — Lon, é melhor você ir também. Isso vai ser como um final de corrida decidido apenas por foto. Eles vão precisar de todas as pessoas que puderem arranjar para a busca. Amélia, quero que você também vá para lá.

— Escute, estive pensando...

— Policial Sachs — cortou-a secamente Sellitto –, você recebeu suas ordens.

Um leve rubor cobriu o belo rosto da moça. Rhyme dirigiu-se nesse momento a Cooper: — Mel, você veio até aqui de ônibus?

— Em um VRR — respondeu ele.

Os grandes ônibus empregados em cenas de crime eram enormes caminhões cobertos — cheios de instrumentos e suprimentos para coleta de prova, mais bem equipados do que laboratórios completos de muitas pequenas cidades. Quando chefiou a DIRC, porém, Rhyme encomendou veículos menores para uso nas cenas de crimes — basicamente, caminhonetes -, contendo o equipamento essencial para coleta e análise. Os Veículos de Resposta Rápida (VRR) pareciam ter uma aparência bem comum, mas Rhyme conseguiu, na base da carteirada, mandar equipá-los com os motores turbinados dos carros de interceptação da polícia. Não raro, eles chegavam à cena do crime antes das radiopatrulhas. Muitas vezes, o primeiro policial a chegar à cena do crime era um veterano técnico de laboratório. O que constituía o sonho de todo promotor público.

— Dê as chaves do veículo a Amélia.

Cooper entregou-as à moça, que olhou por um momento para Rhyme, girou sobre si mesma e desceu correndo a escada. Até os passos dela pareciam furiosos.

— Muito bem, Lon. No que é que você está pensando?

Sellitto lançou um olhar para o corredor vazio e aproximou-se de Rhyme.

— Você quer realmente F.P. neste caso?

— ER?

— Ela, Sachs. ER é o apelido dela.

— Significando o quê?

— Não diga isso quando ela estiver presente. Ela explode. O pai dela foi patrulheiro de ronda a pé durante quarenta anos. Por isso, chamam-na de Filha do Patrulheiro.

— Você acha que eu não devia tê-la escolhido?

— Não, acho que não devia. Para que você a quer?

— Porque ela subiu um aterro de dez metros para não contaminar a cena. Porque fechou uma avenida muito movimentada e uma linha da Amtrak. Isso é iniciativa.

— Ora, vamos, Linc. Conheço uma dezena de policiais que fariam alguma coisa como essa.

— Bem, ela é a pessoa que eu quero.

Rhyme lançou um olhar solene a Sellitto, lembrando-lhe sutilmente e sem discussão quais haviam sido os termos da combinação de ambos.

— Tudo que vou dizer é o seguinte: acabei de falar com Polling. Peretti está uma fera porque foi passado para trás — disse Sellitto. — E se... não, quero dizer, quando... os chefões descobrirem que alguém da Radiopatrulha está dando busca na cena, vai haver um arranca-rabo daqueles.

— Provavelmente — disse Rhyme baixinho, os olhos no pôster do perfil do elemento desconhecido. — Mas eu tenho a impressão de que esse vai ser o menor de nossos problemas hoje.

E deixou a cabeça cansada recair no grosso travesseiro.

 

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1 A deposição de metal a vácuo é o Cadillac das técnicas para fazer com que apareçam impressões digitais invisíveis em superfícies não-porosas. Ela produz evaporação de ouro ou zinco em uma câmara de vácuo contendo o objeto a ser testado. O metal recobre a impressão digital latente, tornando bem visíveis os redemoinhos e picos da impressão digital.

2 Microscópios de luz polarizada mostram birrefringências — a refração dupla de cristais, fibras e alguns outros materiais. Areia de praia apresenta birrefringências espetaculares.

 

3 Individuação... O objetivo do criminalísta. A maior parte da prova material pode ser identificada. Mas, mesmo que se saiba o que é, há centenas, ou milhares, de origens de onde ela poderia ter vindo. A prova individuada é aquela que só pode provir de uma única fonte ou de um número muito pequeno de fontes.

Uma impressão digital, um perfil de DNA, uma lasca de pintura que se ajusta em um ponto descascado no carro do perpetrador como se fosse uma peça de quebra-cabeça.

4 Instrumento muito popular em laboratórios de polícia técnica, o EDX é um microscópio escaneador de elétrons, acoplado a uma unidade de raios X dispersora de energia. O aparelho mostra que elementos há em amostras vestigiais encontradas em cenas de crime.


CAPÍTULO VII

 

 

A caminhonete partiu em alta velocidade na direção dos escuros e fuliginosos canyons de Wall Street, no centro de Nova York.

Os dedos de Amélia Sachs dançavam de leve no volante, enquanto tentava imaginar onde T.J. Colfax poderia estar sendo mantida em cativeiro.

Encontrá-la parecia um trabalho sem esperança. O distrito financeiro que ora se aproximava jamais pareceu tão enorme, tão cheio de becos, tão cheio de bocas-de-lobo, vãos de portas e janelas escuras.

Tantos lugares para esconder um refém!

Mentalmente, reviu a mão projetando-se da cova no leito da estrada de ferro. E o anel de brilhante no osso sangrento do dedo. Ela conhecia aquele tipo de jóia. Chamava-os de anéis de consolo — o tipo de jóia comprada por moças ricas e solitárias.

Continuou a acelerar na direção sul, esquivando-se de mensageiros em bicicletas e de táxis.

Mesmo nessa tarde clara, sob um sol forte, aquela parte da cidade era fantasmagórica. Os prédios lançavam sombras escuras e estavam cobertos pela sujeira escura como sangue coagulado.

Fez uma curva a 65 por hora, derrapando no asfalto esponjoso, e pisou no acelerador para trazer a caminhonete de volta aos 85 por hora.

 

 

ELEMENTO DESCONHECIDO (238) Aparência Residência Veículo Diversos • Prov. tem casa segura • Táxi Yellow Cab • Conhece proc. de CC

• Possivelmente tem antec. criminais • Conhece levantamento de impressões digitais • Arma = .32 Colt

Um motor excelente, pensou. E resolveu descobrir qual era o comportamento da caminhonete a 120.

Anos antes, enquanto o pai dormia — ele em geral fazia a ronda das três às sete da manhã –, a adolescente Amie Sachs pegava as chaves do Camaro do velho e dizia à mãe, Rose, que ia às compras. Ela queria alguma coisa do açougue de suínos Fort Hamilton? E antes que a mãe pudesse dizer “Não, é melhor você pegar o trem. Não você não vai dirigir”, ela desaparecia pela porta, ligava o motor e partia corno uma bala na direção oeste.

Voltando para casa três horas depois, sem trazer carne de porco Amie subia em passos leves a escada e encontrava uma mãe nervosa e furiosa que — para divertimento da filha — lhe passava um sermão sobre os riscos de engravidar, e como isso lhe arruinaria as possibilidades de usar aquele belo rosto para ganhar um milhão de dólares como modelo profissional. Mas quando finalmente descobriu que a filha não andava trepando por aí, mas simplesmente dirigindo o carro a 160 por hora nas estradas de Long Island, voltou a ficar nervosa e enfurecida e passou-lhe sermões sobre o perigo de amassar aquele belo rosto e arruinar suas possibilidades de ganhar um milhão de dólares como modelo profissional.

As coisas ficaram ainda piores quando tirou a carteira de motorista.

Sachs, nesse momento, espremeu-se entre dois caminhões parados em fila dupla, alimentando a esperança de que nem o motorista nem o passageiro abrissem uma porta. Em um chiado que só seria captado por um medidor Doppler, passou por eles.

Quando você está em movimento eles não podem pegá-la...

Massageando o rosto redondo com os dedos curtos e rombudos, Lon Sellitto nenhuma atenção prestava naquela maneira tipo Indy 500 de dirigir.

Falava com o parceiro sobre o caso, como se fosse um contador discutindo um balancete. Quanto a Banks, embora não estivesse mais lançando olhares esperançosos para os olhos e lábios de Sachs, tinha passado a conferir o velocímetro a cada dois minutos.

Derraparam em uma curva furiosa do outro lado da Ponte do Brooklyn. Amélia pensou novamente na prisioneira, imaginando as unhas longas e elegantes de T.J., enquanto batia com seus próprios dedos roídos no volante. Mais uma vez, ocorreu-lhe a imagem que se recusava a desaparecer: o galho branco de bétula que era uma mão, projetando-se da cova úmida. E o único osso, sanguinolento.

— Esse cara é meio louco — disse, de repente, para mudar a direção dos pensamentos.

— Quem? — perguntou Sellitto.

— Rhyme.

— Eu acho — disse Banks, entrando na conversa — que ele se parece com o irmão mais moço de Howard Hughes.

— Sim, bem, eu também fiquei surpreso — reconheceu o detetive mais velho. — Ele não estava parecendo nada bem. E ele era um cara bonitão. Mas, bem, vocês sabem, depois de tudo aquilo por que passou... Como é que você, Sachs, pode estar na radiopatrulha dirigindo dessa maneira?

— Foi para onde me designaram. Ninguém me perguntou, simplesmente me deram ordens. — Exatamente como você fez, pensou ela. — Ele era realmente tão competente assim?

— Rhyme? Melhor ainda. A maioria dos caras da Polícia de Nova York lida com duzentos cadáveres por ano. Os melhores. Rhyme fazia o dobro disso. Mesmo quando dirigia a DIRC. Veja o caso de Peretti, ele é competente, mas sai em campo apenas uma vez a cada duas semanas, mais ou menos, e apenas em casos que despertam atenção da mídia. Você não está ouvindo isso de mim, policial Sachs.

— Não, senhor.

— Rhyme, porém, ia pessoalmente às cenas de crime. E quando não estava fazendo isso, andava por aí.

— Fazendo o quê?

— Simplesmente andava. Olhando para coisas. Andava quilômetros.

Por toda cidade. Comprando coisas, apanhando coisas, colecionando coisas.

— Que tipo de coisas?

— Tipos de provas. Areia, restos de comida, revistas, calotas de carro, sapatos, livros de medicina, drogas, plantas... Diga qualquer coisa e ele andava por aí procurando-as, catalogando-as. Você sabe como é... Quando aparecia uma prova material, ele formava uma idéia melhor de onde o perpetrador poderia ter estado ou o que estava fazendo. A gente ligava para ele pelo teletrim e ele estava no Harlem, no Lower East Side ou na Hell's Kitchen.

— Ele tinha o trabalho de polícia no sangue?

— Não. O pai dele era uma espécie de cientista em um laboratório de fama nacional ou alguma coisa assim.

— Foi isso o que ele estudou? Ciências?

— Foi. Estudou na Champaign-Urbana e conquistou uns dois diplomas de prestígio. Química e História. Por que escolheu isso, não faço a menor idéia. Os pais dele já haviam falecido quando o conheci, o que vai fazer agora uns quinze anos. E nem tem irmãos nem irmãs. Cresceu em Illinois. Esse é o motivo do nome dele, Lincoln.

Ela quis saber se ele era ou tinha sido casado, mas não perguntou.

Ficou no “Ele era realmente tão competente assim?”.

— Pode perguntar.

— Um merda?

Banks riu.

— Minha mãe tinha uma expressão para isso — respondeu Sellitto. — Ela dizia que alguém era “meio esquisito”. Essas palavras descrevem Rhyme. Ele é esquisito. Certa ocasião, um técnico de laboratório imbecil borrifou luminol...

um reagente para identificar amostras de sangue... em cima de uma impressão digital, em vez de ninhidrina, e inutilizou a impressão. Rhyme demitiu-o na hora. Em outra ocasião, um policial urinou em uma cena de crime e deu descarga no toalete. Cara, Rhyme subiu nas tamancas como se fosse um foguete balístico, disse ao babaca que fosse até o porão e trouxesse o que houvesse na peça de retenção da fossa. — Sellitto soltou uma risada. — O

policial, um oficial, respondeu: “Eu não vou fazer isso. Sou um tenente.” E

Rhyme: “Que bom saber disso. Agora, você é bombeiro.” Eu podia contar casos como esses indefinidamente. Porra, você está indo a 130 por hora!

Passaram como um relâmpago pelo Grande Edifício e ela pensou, sentindo-se mal: Era aí que eu devia estar neste exato momento. Conhecendo outros companheiros em Informações, assistindo à sessão de treinamento, saturando-me do ar-condicionado.

Manobrou habilmente em volta de um táxi que nesse momento furava um sinal vermelho.

Jesus, que calor. Poeira quente, fedor quente, gasolina quente. As horas feias da cidade. O mau humor subia alto como a água cinzenta nos hidrantes do Harlem. Dois Natais antes, ela e o namorado haviam feito uma curta celebração de feriado — das onze à meia-noite, o único tempo comum de folga que suas escalas de serviço permitiam — numa noite de quatro graus centígrados. Ela e Nick, sentados em frente ao Rockefeller Center, perto do rinque de patinação, tomando café e conhaque. E os dois haviam concordado que preferiam uma semana de frio a um único dia quente de agosto.

Finalmente, descendo como uma bala a Pearl, ela descobriu o posto de comando de Neumann. Deixando no asfalto marcas de 2,5m de deslizamento de freada, Sachs enfiou o VRR em uma vaga entre o carro dele e um ônibus do SEM.

— Poxa, você dirige bem paca — comentou Sellitto, descendo.

Por alguma razão, Sachs ficou muito feliz ao ver as suadas impressões digitais de Jerry Banks bem visíveis no vidro da janela quando ela abriu a porta traseira.

Policiais do SEM e patrulheiros uniformizados enchiam o local, uns cinquenta ou sessenta deles. E mais estavam a caminho. Até parecia que toda a atenção da Police Plaza tinha se concentrado no centro de Nova York.

Quando deu por si, Sachs pensava distraidamente que se alguém quisesse tentar um assassinato ou invadir a Gracie Mansion ou um consulado, este seria o momento mais conveniente.

Haumann aproximou-se rápido da caminhonete. Dirigiu-se logo a Sellitto: — Estamos fazendo diligências de porta em porta, examinando todas as obras em construção na Pearl. Ninguém sabe de nada sobre trabalho com asbesto e ninguém ouviu gritos de socorro.

Sachs fez menção de descer da caminhonete, mas foi detida por Haumann: — Não. Suas ordens são de ficar aqui com o veículo da cena de crime.

Ela desceu, de qualquer maneira.

— Sim, senhor. Quem foi exatamente que disse isso?

— O detetive Rhyme. Acabei de falar com ele. Você deve ligar para a Central quando chegar ao posto de controle.

Mal terminou de falar, Haumann começou a afastar-se. Sellitto e Banks apressaram os passos na direção do posto.

— Detetive Sellitto — gritou Sachs.

Ele se virou.

— Desculpe, detetive — disse a moça. — O negócio é o seguinte: quem é meu comandante de turno? A quem estou subordinada?

— Você está subordinada a Rhyme — retrucou ele secamente.

Amélia soltou uma risada.

— Mas não posso ficar subordinada a ele.

Sellitto fitou-a, sem entender.

— Quero dizer, não há questões de hierarquia, coisas assim? De jurisdição? Ele é um paisano. Eu preciso de alguém, de um escudo, a quem possa ficar subordinada.

Conservando a calma, Sellitto respondeu: — Escute aqui. Todos nós estamos subordinados a Lincoln Rhyme.

Não me importa se ele é paisano, se é o chefe, ou se é a porra do Cruzado Capado. Entendeu bem?

— Mas...

— Se quiser se queixar, faça isso por escrito, mas amanhã.

E deu-lhe as costas. Sachs fitou-o por um momento, voltou ao volante da caminhonete e ligou para a Central, informando que estava 10-84 na cena do crime. E que aguardava instruções.

E riu sombriamente quando a mulher respondeu: — Dez-quatro, radiopatrulha 5885. Fique de prontidão. O detetive Rhyme entrará em contato brevemente, câmbio.

Detetive Rhyme.

— Dez-quatro, câmbio — retrucou Sachs e olhou para os fundos de caminhonete, especulando indolentemente sobre o que havia dentro daquelas valises pretas.

 

Eram 2:45 da tarde.

O telefone tocou na casa de Rhyme. Thom atendeu.

— É o despachante da Central.

— Complete a ligação.

O telefone ganhou vida: — Detetive Rhyme, o senhor não se lembra de mirn, mas trabalhei na DIRC quando o senhor foi o chefe lá. Paisana. Fazia serviço de telefonista.

Emma Rollins.

— Claro que me lembro. Como é que vão as crianças, Emma: Rhyme lembrava-se de uma negra grandalhona e alegre que sustentava cinco filhos com dois empregos. Lembrava-se dos dedos grossos dela cutucando os botões com tanta força que, certa vez, quebrou de fato um dos telefones oficiais.

— Jeremy vai entrar na faculdade dentro de umas duas semanas e Dora continua dando uma de atriz, ou pensa que está. Os menores estão indo muito bem.

— Lon Sellitto recrutou-a, foi isso?

— Não, senhor. Ouvi dizer que o senhor estava trabalhando nesse caso e devolvi as crianças para o 911. Emma vai aceitar esse trabalho, eu disse a ela.

— O que é que você tem para nós?

— Estamos trabalhando com um catálogo de companhias que fabricam parafusos. E com um livro que contém uma lista de firmas que os vendem por atacado. O que descobrimos foi o seguinte. O que resolveu foram as letras. As que estão gravadas no parafuso. As letras CE. Eles são fabricados especialmente para a Con Ed.

Diabo! Claro.

— São marcados dessa maneira porque têm comprimento diferente da maioria dos parafusos fabricados pela companhia... quinze, dezesseis de polegada e com muito mais roscas do que a maioria dos outros parafusos. A fabricante é a Michigan Tool and Die, de Detroit. Os parafusos são usados em velhos canos e apenas em Nova York. Canos fabricados há sessenta, setenta anos. Pela maneira como as partes dos canos se engatam, eles têm que ter uma vedação muito boa. Se encaixam mais fundo do que o noivo e a noiva na noite do casamento, foi isso o que me disse o homem da companhia. Estava querendo me deixar encabulada.

— Emma, eu amo você. Fique de sobreaviso, sim?

— Pode apostar que fico.

— Thom! — berrou Rhyme. — Este telefone não vai funcionar. Eu mesmo preciso fazer as ligações. Use aquela coisa de ativação de voz no computador. Posso usá-la?

— Você nunca mandou instalar isso.

— Não mandei?

— Não.

— Estou precisando disso.

— Nós não a temos.

— Faça alguma coisa. Eu quero poder dar os telefonemas.

— Acho que há um ECU manual em algum lugar por aqui.

Thom deu uma busca em uma caixa encostada na parede. Descobriu um pequeno painel eletrônico e ligou uma de suas extremidades ao telefone e a outra a um controle próximo do pescoço de Rhyme.

— Isso é desajeitado demais!

— Mas é tudo que temos. Se tivéssemos ligado o infravermelho acima de sua sobrancelha, como sugeri, você poderia ter feito ligações de sacanagem nos dois últimos anos.

— Fios demais — disse Rhyme, enojado.

O pescoço entrou em espasmo súbito e jogou o controle fora de seu alcance.

— Merda!

Subitamente, essa tarefa insignificante — quanto mais a missão — pareceram-lhe impossíveis. Estava exausto, o pescoço doía, a cabeça doía. E

doíam principalmente os olhos. Ardiam — o que para ele era mais doloroso — e sentiu uma grande necessidade de passar as costas dos dedos sobre as pálpebras fechadas. Um minúsculo gesto de alívio, uma coisa que o resto do mundo fazia todos os dias.

Thom recolocou o joystick no encaixe. Rhyme extraiu confiança sabe-se lá de onde e perguntou ao empregado: — Como é que isso funciona?

— Aí está a tela. Está vendo no controlador? Simplesmente mova o stick até ficar sobre o número, espere um segundo e o número é programado.

Para ligar para o número seguinte, faça a mesma coisa. Quando tiver digitado todos os sete números, empurre o stick até aqui para discar.

— Não está funcionando — disse secamente Rhyme.

— É só praticar.

— Não temos tempo para isso!

— Venho atendendo ao telefone para você por um tempo longo demais — rosnou Thom.

— Tudo bem — disse Rhyme, baixando a voz, o que era sua maneira de pedir desculpas. — Eu pratico depois. Poderia, por favor, me ligar com a Con Ed? E vou precisar falar com um supervisor.

 

A corda doía, as algemas doíam, porém o que mais a assustava era o barulho.

Tammie Jean Colfax sentiu todo o suor que havia em seu corpo descer pelo rosto, peito e braços, enquanto lutava para serrar os elos das algemas, de um lado para o outro, no parafuso enferrujado. Embora os punhos estivessem dormentes, achou que estava conseguindo gastar um pouco a corrente.

Parou, exausta, e movimentou os braços de um lado para o outro a fim de evitar uma cãibra. Voltou à escuta. Aquilo era, pensou, o som de operários apertando parafusos e encaixando peças a golpes de martelo.

Batidas finais dos martelos. Pensou que eles estavam justamente acabando o trabalho nos canos e pensando em ir para casa.

Não se vão, gritou para si mesma. Não me deixem. Enquanto houvesse operários trabalhando ali, ela estaria segura.

Uma batida final e, em seguida, silêncio tonitruante.

Acabe com isso, menina. Vamos.

Mamãe...

T.J. chorou durante vários minutos, pensando na família lá no Tennessee. As narinas entupiram, mas, quando começou a sufocar, assoou-se violentamente e sentiu uma explosão de lágrimas e muco. Mas voltou a respirar. Ficou mais confiante. Resistir. Recomeçou a serrar.

 

— Compreendo a urgência, detetive, mas não sei como posso ajudá-lo.

Nós usamos parafusos em toda a cidade. Canalizações de petróleo, condutos de gás...

— Tudo bem — disse Rhyme secamente, falando com a supervisora da Con Ed na sede da companhia, na rua 14. — Vocês isolam fios com asbesto?

Hesitação.

— Nós removemos noventa por cento desse material — respondeu a mulher em tom defensivo. — Noventa e cinco por cento.

As pessoas podiam ser tão irritantes!

— Compreendo. Preciso simplesmente saber se algum asbesto ainda é usado para isolamento.

— Não — respondeu ela, inflexível. — Bem, nunca no caso de eletricidade. Usamos asbesto apenas no caso de vapor, e isso representa a menor porcentagem de nossos serviços.

Vapor!

Era o menos conhecido e o mais perigoso serviço de utilidade pública da cidade. A Con Ed aquecia água a mil graus e em seguida enviava-a através de uma rede de 160km de canos que passavam por baixo de Manhattan. O

próprio vapor causticante era superaquecido — a cerca de 380 graus — e disparado como um foguete pela cidade a 120 quilômetros por hora.

Rhyme lembrou-se nesse momento de um artigo de jornal.

— Vocês tiveram algum rompimento na linha recentemente?

— Tivemos, sim, senhor. Mas não houve vazamento de asbesto. Esse local foi submetido à limpeza há anos.

— Mas há asbesto em volta de alguns dos canos no sistema do centro da cidade ?

A mulher hesitou.

— Bem...

— Onde foi o rompimento? — perguntou Rhyme depressa.

— Na Broadway. Em um quarteirão ao norte da Chambers.

— A Times não publicou um artigo sobre esse assunto?

— Não sei. Talvez. Sim.

— O artigo mencionava asbesto?

— Mencionava — reconheceu ela -, mas dizia simplesmente que, no passado, a contaminação por asbesto havia sido um problema.

— O cano que se rompeu... por acaso cruza a Pearl Street, mais ao sul?

— Um momento, deixe-me ver. Sim, cruza. Na Hanover Street. No lado norte.

Ele viu a imagem de T.J. Colfax, a mulher de dedos finos e unhas longas que estava prestes a morrer.

— E o vapor será religado às três da tarde?

— Isso mesmo. A qualquer minuto, agora.

— Vocês não podem fazer isso! — berrou Rhyme. — Alguém mexeu na linha. Vocês não podem religar agora o vapor!

Cooper levantou a vista do microscópio constrangido. A supervisora voltou a falar: — Bem, não sei...

Rhyme gritou para Thom.

— Ligue para Lon. Diga a ele que a moça está em um porão na esquina da Hanover e Pearl. No lado norte. — Falou-lhe sobre o vapor. — Mande para lá também o corpo de bombeiros. Com equipamento de proteção contra calor.

E voltou a gritar no microfone-telefone: — Chame as equipes de manutenção! Agora! Elas não podem religar aquele vapor. Não podem!

Repetiu distraído as palavras, detestando sua imaginação estranha, a mostrar em um loop interminável as carnes da mulher tornando-se rosadas, em seguida vermelhas e finalmente se rompendo sob as nuvens abrasadoras do vapor branco que escapava em golfadas.

 

Na caminhonete, o rádio estalou. Faltavam três minutos para as três, pelo relógio de Sachs. Respondeu à chamada: — Radiopatrulha 5885. Câmbio...

— Esqueça o linguajar oficial, Amélia — disse Rhyme. — Não temos tempo para isso.

— Eu...

— Nós achamos que sabemos onde ela está. No cruzamento da Hanover e Pearl.

Amélia olhou por cima dos ombros e viu dezenas de policiais da UOE

correndo a toda velocidade para um velho prédio.

— Você quer que eu...

— Eles vão procurá-la. Você tem que se preparar para trabalhar na cena do crime.

— Mas eu poderia ajudar...

— Não. Quero que volte à caminhonete. Há nela uma valise com a etiqueta zero dois. Leve-a com você. E em uma pequena caixa preta há uma PoliLight. Você viu uma delas em minha sala. Mel estava usando-a. Leve-a, também. Na valise marcada zero três você vai encontrar fones de ouvido e um microfone de lapela. Ligue-o ao seu celular Motorola e siga para o prédio para onde foram os policiais. Canal trinta e sete. Estarei em uma linha convencional, mas você será transferida para mim.

Canal trinta e sete. A frequência especial de operação que cobria toda a cidade. A frequência da prioridade.

— O quê? — perguntou, mas o rádio silenciou.

No cinto, ela levava uma comprida lanterna de halógeno. Deixou por isso o volumoso equipamento de doze volts nos fundos da caminhonete e pegou a PoliLight e a valise. Ela devia pesar uns 25 quilos. Exatamente o que as drogas de minhas juntas precisam.

Ajustou a empunhadura, rilhou os dentes para combater a dor e correu para o cruzamento.

Sellitto, arquejante, corria também para o prédio. Banks juntou-se a ele.

— Você ouviu? — perguntou o detetive mais idoso.

Sachs inclinou a cabeça.

— É esse lugar aí? — indagou.

Sellitto indicou o beco com um movimento da cabeça.

— Ele teve que trazê-la por aqui. A portaria do prédio tem uma estação de vigilância.

Nesse momento, os dois caminharam rapidamente pelo canyon escuro de lajes, horrivelmente quente, de onde saía um cheiro forte de urina e lixo.

Por perto, caixas de lixo amassadas.

— Ali — gritou Sellitto. — Aquelas portas.

Os policiais se separaram em leque, correndo. Três das quatro portas estavam fechadas por dentro.

A quarta havia sido forçada e agora estava fechada por uma corrente.

A corrente e o cadeado eram novos.

— É essa aí!

Sellitto estendeu a mão para a porta, mas hesitou. Pensando provavelmente em impressões digitais. Mas em seguida pegou a maçaneta e deu um puxão. A porta abriu-se por alguns centímetros, mas a corrente aguentou. Deu ordem a três guardas uniformizados para irem para a frente do prédio e tentarem chegar ao porão pelo lado de dentro. Um dos guardas soltou uma pedra do chão do beco e começou a bater na maçaneta da porta.

Meia dúzia de golpes, uma dúzia. Contorceu-se quando a mão bateu na porta, sangue escorrendo de um dedo ferido. Um bombeiro chegou correndo com uma Halligan — uma combinação de picareta e pé-de-cabra. Enfiou a ponta da peça na corrente e quebrou o cadeado. Sellitto olhou para Sachs, esperando orientação. Ela retribuiu o olhar.

— Ora, entre! — berrou ele.

— O quê?

— Ele não lhe disse?

— Quem?

— Rhyme.

Droga, ela se esquecera de ligar o fone de ouvido ao celular. Mexeu nos dois e finalmente conseguiu fazer a ligação. Ouviu logo: — Amélia, onde...

— Estou aqui.

— Está no prédio?

— Estou.

— Entre. A companhia desligou o vapor, mas não sei se a tempo. Leve um paramédico e um patrulheiro da UOE. Vá até a sala das caldeiras. Você provavelmente vai vê-la logo, a moça, a Colfax. Dirija-se para ela, mas não diretamente, não em uma linha reta da porta até ela. Não quero que você estrague quaisquer pegadas que ele possa ter deixado. Entendeu?

— Entendi.

Amélia inclinou enfaticamente a cabeça, sem pensar que ele não podia vê-la. Chamando com um gesto um paramédico e um policial da Unidade de Operações Especiais e dizendo que a seguissem, entrou no corredor escuro, sombras por toda parte, gemido de máquinas, som de água gotejando.

— Amélia — disse Rhyme.

— Sim?

— Nós conversamos antes sobre a possibilidade de uma emboscada.

Pelo que sei a respeito dele agora, não creio que esse seja o caso. Ele não está aí, Amélia. Seria ilógico. Mas mantenha livre a mão com que atira.

Ilógico.

— Tudo bem.

— Agora, vá! Depressa!


CAPÍTULO VIII

 

 

Uma caverna escura. Quente, preta, úmida.

Os três desceram rapidamente o imundo corredor na direção da única porta visível. Uma tabuleta advertia: Sala de Caldeiras. Ela se encontrava atrás de um policial da UOE, equipado com colete à prova de bala completo e capacete. O paramédico fechava a retaguarda.

As articulações da mão direita e o ombro lhe doíam com o peso da valise. Passou-a para a mão esquerda, quase a deixou cair e reajustou a empunhadura. Continuaram a avançar para a porta.

Ao chegar à porta, o policial da SWAT empurrou-a para dentro e girou a submetralhadora em volta da sala fracamente iluminada. A lanterna presa ao cano da arma lançou um feixe de luz fraca sobre tiras de vapor que flutuavam por ali. Sachs sentiu cheiro de umidade, de mofo. E outro cheiro, repugnante.

Click.

— Amélia? — A explosão de estática na voz de Rhyme pegou-a de surpresa e a deixou apavorada. — Onde está você, Amélia?

Com mão trêmula, ela baixou o volume.

— Dentro — arquejou.

— Ela está viva?

Sachs vacilou sobre os pés, olhando para aquilo. Apertou os olhos, insegura sobre o que estava realmente vendo. Em seguida, compreendeu.

— Oh, não.

Falou em um murmúrio, sentindo vontade de vomitar.

O cheiro enjoativo de carne cozida a envolveu. Mas isso não era o pior. Nem a visão da pele da mulher, vermelha brilhante, quase alaranjada, despelando em enormes escamas, o rosto inteiramente descascado da pele.

Não, o que lhe causou o maior pavor foi ver o ângulo em se encontrava o corpo de T.J. Colfax, a torção impossível dos membros e do torso, quando ela tentara fugir do borrifo do calor abrasador.

Ele tinha esperança de que a vítima estivesse morta. No seu interesse...

— Ela está viva? — repetiu Rhyme.

— Não — sussurrou Sachs. — Não vejo como... Não.

— A sala está segura?

Sachs lançou um olhar para o policial, que também ouvira a transmissão e inclinou a cabeça.

— Cena do crime segura.

— Quero que o policial da UOE saia daí e que, em seguida, você e o paramédico examinem a mulher.

Sachs engasgou-se mais uma vez com o cheiro e se obrigou a controlar esse reflexo. Ela e o paramédico tomaram um caminho oblíquo até o cano. Ele se inclinou para a frente, sem demonstrar emoção, e apalpou o pescoço da mulher. Sacudiu a cabeça.

— Amélia? — perguntou Rhyme.

Seu segundo cadáver no cumprimento do dever. Ambos no mesmo dia.

— MCCC — disse o paramédico.

Sachs inclinou a cabeça e, formalmente, disse ao microfone: — Temos uma pessoa morta: morte confirmada na cena do crime.

— Morta por queimadura de vapor? — perguntou Rhyme.

— É o que parece.

— Amarrada à parede?

— A um cano. Algemada, mãos nas costas. Pés amarrados com corda de varal de roupa. Mordaça. Ele abriu o cano de vapor. Ela estava a apenas uns 60cm do cano. Deus!

— Acompanhe o paramédico até a saída, pelo mesmo caminho por onde vieram. Até a porta. Cuidado com o lugar onde pisam.

Ela obedeceu às instruções, olhando para o cadáver. Como pele podia ficar tão vermelha? Como a casca de um caranguejo cozido.

— Muito bem, Amélia. Você vai processar a cena do crime. Abra a valise.

Sachs nada respondeu. Continuou a olhar para o corpo.

— Amélia, você está à porta?... Amélia?

— O quê? — gritou ela.

— Você está à porta?

A voz dele estava tão horrivelmente calma! Tão diferente da voz escarninha, exigente, do homem de que se lembrava naquela sala. Calma... e alguma coisa mais. Ela não sabia o quê.

— Estou, estou à porta. Sabe, isto é loucura.

— Inteiramente insano — concordou Rhyme, quase alegre. — A valise está aberta?

Sachs levantou a tampa da valise e olhou para dentro. Alicates e fórceps, um espelho com cabo, bolas de algodão, colírio, pinças, pipetas, espátulas, bisturis...

O que significa tudo isso?

...um espanador, um pedaço de tecido grosseiro de algodão, envelopes, peneiras, pincéis, tesouras, sacos de papel e de plástico, latas de metal, garrafas... ácido nítrico a cinco por cento, ninhidrina, silicone, iodo, suprimentos para levantamento de impressões digitais.

Impossível. Falando ao microfone, disse: — Acho que o senhor não acreditou em mim, detetive. Não sei realmente coisa alguma sobre trabalho em cena de crime.

Os olhos continuavam presos ao corpo destruído da mulher, água gotejando do nariz despelado. Um pedaço branco de osso aparecia no rosto.

E o rosto estava contraído em uma espécie de sorriso angustioso. Tal como a vítima daquela manhã.

— Eu acreditei em você, Amélia — disse ele, encerrando o assunto. -

Agora, a valise está aberta? — Ele estava calmo e parecia... o quê? Sim, era esse o tom. Sedutor. Ele parece um amante falando.

Eu o odeio, pensou Amélia. E errado odiar um paralítico. Mas, com todos os diabos, eu o odeio.

— Você está no porão, certo?

— Sim, senhor.

Rhyme, porém, ao contrário de Peretti naquela manhã, não deu atenção a isso. E continuou: — Então é isso. Ele varreu o local depois.

Amélia ficou surpresa.

— Sim, é isso! Marcas de vassoura. Como foi que soube?

Rhyme soltou uma risada — um som irritante para Sachs, ali naquela tumba malcheirosa. Rhyme continuou: — Ele foi sabido o bastante para cobrir suas pegadas esta manhã. Não há razão para ficar parada agora. Oh, esse rapaz é competente, lá isso é. Mas você também é competente. Continue.

Sachs inclinou-se à frente, as articulações em fogo, e iniciou a busca.

Cobriu cada centímetro quadrado do chão.

— Nada aqui. Nada, absolutamente.

Ele notou o tom definitivo na voz de Amélia.

— Você apenas começou, Amélia. Cenas de crime são tridimensionais.

Lembre-se disso. O que você está dizendo é que nada há no chão. Agora, dê uma busca nas paredes. Comece com o local mais longe do vapor e cubra cada centímetro.

Lentamente, ela descreveu um círculo em volta da boneca horripilante que estava no centro da sala. Lembrou-se de uma brincadeira de Mastro de Maio, de que participara ao tempo de criança, quando tinha uns cinco ou seis anos de idade, em alguma festa de rua no Brooklyn, enquanto o pai a filmava orgulhosamente. Fazendo círculos lentos. Aquilo ali era uma sala vazia, mas, ainda assim, havia milhares de lugares diferentes para examinar.

Não tinha como... Impossível.

Mas não era. Em uma beirada, a cerca de l,80m do chão, descobriu o conjunto seguinte de pistas. Soltou uma risada alta.

— Descobri alguma coisa aqui.

— Muitas?

— Isso mesmo. Uma lasca grande de madeira preta.

— Pauzinhos para comer.

— O quê? — perguntou ela.

— Os lápis. Use-os para apanhar a prova. Está molhada?

— Tudo por aqui está molhado.

— Certo, tinha que estar. O vapor. Coloque-a em um saco de papel para guardar provas. O plástico conserva a umidade e, nesse calor, bactérias destruirão as provas vestigiais. O que é que há mais aí? — perguntou ele ansiosamente.

— Hã, não sei bem, cabelos, acho. Curtos, aparados. Uma pequena pilha deles.

— Soltos ou presos à pele?

— Soltos.

— Há um rolo de fita gomada de duas polegadas na valise. 3M. Pegue-os com a fita.

Sachs apanhou a maior parte dos cabelos e enfiou-os em um envelope de papel. Estudou a beirada em volta dos cabelos.

— Estou vendo algumas manchas. Parecem ser de ferrugem ou sangue.

— Iluminou o local com a PoliLight. — Elas estão ficando fluorescentes.

— Você sabe fazer um teste de presunção de sangue?

— Não.

— Então vamos supor que seja sangue. Poderia ser sangue da vítima?

— Não parece. Está longe demais e não há nenhuma trilha até o corpo dela.

— A beirada vai até algum lugar?

— Parece que sim. Até um tijolo no muro. O tijolo está solto. Não há impressões digitais nele. Vou movê-lo para um lado. Eu... oh, Jesus Amélia arquejou, recuou tropeçando uns trinta ou sessenta centímetros, e quase caiu.

— O que foi? — perguntou Rhyme.

Ela deu um passo para a frente e ficou olhando, incrédula.

— Amélia. Fale comigo.

— É um osso. Um osso ensanguentado.

— Humano?

— Não sei — respondeu ela. — Como é que eu poderia...? Não sei.

— Morte recente?

— Parece que sim. De mais ou menos cinco centímetros de comprimento por cinco de diâmetro. Nele há sangue e carne. Foi serrado, meu Deus. Quem faria uma porra dessas...

— Não perca a calma.

— E se ele o arrancou de outra vítima?

— Nesse caso, vamos ter que encontrá-lo o mais rápido possível, Amélia. Guarde-o. Saco plástico para o osso.

Enquanto ela o fazia, Rhyme perguntou: — Qualquer outra prova plantada aí? — Ele parecia preocupado.

— Não.

— Isso é tudo? Cabelos, um osso, e uma lasca de madeira. Ele não está facilitando as coisas para nós, está?

— Devo levar as provas a seu... escritório?

Rhyme ria nesse momento.

— Ele gostaria que a gente se satisfizesse com isso. Mas não. Não acabamos ainda. Vamos descobrir mais alguma coisa sobre o Elemento Desconhecido 238.

Embora furiosa com o tom professoral usado por ele, Amélia ficou calada.

— Você tem uma lanterna elétrica?

— Tenho minha lanterna regulamentar de halógeno...

— Não — resmungou ele. — O feixe é estreito demais. Você vai precisar de um feixe largo de doze volts.

— Eu não o trouxe — retrucou ela secamente. — Devo voltar lá e pegá-lo?

— Não há tempo para isso. Examine os canos.

Amélia examinou-os durante dez minutos, subindo até o teto e com a luz forte, examinou locais que talvez não tivessem sido iluminados nos últimos cinquenta anos.

— Não, não encontrei nada.

— Volte para a porta. Rápido.

Amélia hesitou e avisou quando chegou ao local.

— OK, estou aqui.

— Agora, feche os olhos. Que cheiro está sentindo?

— Que cheiro estou sentindo? Você disse cheiro? — Será que ele está louco, pensou.

— Sempre cheire o ar numa cena de crime. Isso pode lhe dizer uma centena de coisas.

Ela manteve os olhos abertos, inspirou, e disse: — Bem, eu não sei o que estou cheirando.

— Essa resposta não é aceitável.

Amélia exalou em desespero e teve esperança de que o silvo estivesse chegando alto e claro ao telefone de Rhyme. Apertou os lábios, inalou, lutou novamente contra a vontade de vomitar.

— Mofo, bolor. O cheiro da água quente do vapor.

— Você não sabe de onde vem o perfume. Simplesmente descreva-o.

— Água quente. O perfume da mulher.

— Tem certeza de que é o perfume dela?

— Bem, não.

— Você está usando algum perfume?

— Não.

— Que tal loção após barba? Do paramédico? Do policial da UOE?

— Acho que não. Não.

— Descreva-o.

— Seco. Como gim.

— Dê um palpite, loção após barba de homem ou perfume de mulher?

O que Nick tinha usado? Arrid Extra Dry.

— Não sei — confessou ela. –— Perfume de homem.

— Vá até o corpo.

Ela olhou uma vez para o cano e, em seguida, para o chão.

— Eu...

— Faça isso — ordenou Lincoln Rhyme.

Ela fez. A pele que se soltava parecia casca de bétula preta e vermelha.

— Cheire o pescoço dela.

— O pescoço todo está... Quero dizer, não sobrou muita pele.

— Sinto muito, Amélia, mas você vai ter que fazer isso. Temos que saber se é o perfume dela.

Vou vomitar, pensou Amélia. Exatamente como Nick e eu naquela noite no Pancho's, derrubados por aquelas drogas de frozen daiquiris. Dois policiais traquejados, emborcando bebidas malucas, nas quais nadavam peixes-espada azuis de plástico.

— Está sentindo o cheiro do perfume?

Lá vem de novo... Engasgando-se novamente.

Não. Não! Fechou os olhos, concentrando-se nas juntas doloridas. Na mais dolorosa — a do joelho. E, milagrosamente, a onda de náusea passou.

— Não é o perfume dela.

— Ótimo. De modo que nosso rapaz é vaidoso o suficiente para usar um bocado de loção após barba. Isso poderia ser um indicador de classe social. Ou, quem sabe, ele quer disfarçar algum outro cheiro que poderia deixar. Alho, charuto, peixe, uísque. Vamos ter que descobrir isso. Agora, Amélia, ouça com toda atenção.

— O quê?

— Eu quero que você seja ele.

Oh, psicomerda. Exatamente o que eu precisava.

— Acho que realmente não temos tempo para isso.

— Nunca há tempo suficiente em uma cena de crime — disse Rhyme em tom apaziguador. — Mas isso não vai nos deter. Simplesmente ponha isso na cabeça. Você esteve pensando da maneira como nós pensamos. Quero que pense da maneira como ele pensa.

— Tudo bem, mas como é que faço isso?

— Use a imaginação. Foi por isso que Deus nos deu imaginação. Agora, você é ele. Você a algemou e amordaçou. Trouxe-a para essa sala. Algemou-a ao cano. Apavorou-a. E está gostando disso.

— Como é que você sabe que ele estava gostando?

— Você está gostando. Não ele. Como é que eu sei? Porque ninguém se dá a esse trabalho todo para fazer alguma coisa de que não gosta. Agora, você sabe se mexer por aí. Esteve aí antes.

— Por que é que pensa assim?

— Você precisava examinar o local antes... descobrir um lugar abandonado, com um cano alimentador ligado ao sistema de vapor. E para reunir as pistas que ele deixou no leito da estrada.

Sachs ficou hipnotizada pela voz fluida, baixa, que ele usava.

Esqueceu-se inteiramente de que o corpo dele era uma ruína.

— Oh. Certo.

— Você retira a tampa do cano de vapor. No que é que você está pensando?

— Não sei. Que quero acabar logo com isso. Quero ir embora daqui.

Mal dissera essas palavras, porém, pensou: errado. E não ficou surpresa quando ouviu a língua de Rhyme clicar nos fones de ouvido: — Você quer, realmente?

— Não. Quero que isso dure.

— Isso mesmo! Acho que é exatamente isso o que você quer. Você está pensando no que é que o vapor vai fazer com ela. O que mais você sente?

— Eu...

Um pensamento vago formou-se em sua mente. Viu a mulher lutando para se soltar. Viu outra coisa... viu alguém. Ele, pensou. O Elemento Desconhecido 238. Mas o que era que havia com ele? Estava perto de compreender. O que... o quê? Subitamente, porém, o pensamento desapareceu. Sumiu.

— Não sei — murmurou.

— Você sente qualquer sensação de urgência? Ou está muito fria sobre o que está fazendo?

— Estou com pressa. Tenho que ir embora. A polícia pode chegar a qualquer minuto. Mas eu ainda...

-O quê?

— Psiu... — ordenou ela e escaneou novamente a sala, à procura do que quer que fosse que havia plantado em sua mente a semente do pensamento desaparecido.

A sala estava rodando, uma noite escura, estrelada. Redemoinhos de escuridão e luzes distantes, ictéricas. Senhor, por favor, não deixe que eu desmaie!

Talvez ele...

Ali! É isso. Os olhos de Amélia seguiam o cano de vapor. Estava olhando para outra placa de visita na alcova escura da sala. Aquilo teria sido um local melhor para esconder a moça — não se podia vê-la da porta, se alguém passasse por ali — e a segunda placa só tinha quatro parafusos, e não oito, como o que ele havia escolhido.

Por que não aquele cano?

Nesse momento, compreendeu.

— Ele não quer... Eu não quero ir embora exatamente agora, porque quero manter um olho nela.

— Por que você pensa isso? — perguntou Rhyme, repetindo-lhe as palavras, como momentos antes.

— Há outro cano ao qual eu podia tê-la acorrentado, mas escolhi este que está à vista de todos.

— De modo a poder vê-la?

— Acho que sim.

— Por quê?

— Talvez para ter certeza de que ela não vai fugir. Talvez para ter certeza de que a mordaça está segura... Não sei...

— Ótimo, Amélia. Mas o que é que isso significa! De que maneira podemos usar esse fato?

Sachs olhou em volta da sala à procura do lugar onde ele teria a melhor visão da moça, sem ser visto. Achou que seria um lugar escuro entre dois grandes tanques de óleo de aquecimento.

— Isso mesmo! — exclamou, excitada, olhando para o chão. — Ele estava aqui! — disse, esquecendo que estava representando um papel. — Ele varreu o lugar.

Vasculhou a área com a luz cor de bile da PoliLight.

— Nenhuma pegada — continuou, desapontada.

Mas, quando ergueu a lanterna para apagá-la, uma mancha brilhou em um dos tanques.

— Consegui uma impressão digital! — anunciou.

— Uma impressão?

— Conseguimos uma vista melhor da moça se nos inclinamos para a frente e nos apoiamos no tanque. Foi isso o que ele fez, tenho certeza.

Apenas, é sobrenatural isso, Lincoln. Ela... é deformada. A mão dele. -

Arrepiou-se toda olhando para a palma de mão monstruosa.

— Na valise, há uma garrafa de aerossol rotulada DFO. Torna uma mancha fluorescente. Borrife a impressão digital, acenda a PoliLight e fotografe a imagem com uma polaróide 1:1.

Amélia avisou-o quando concluiu a operação e ele disse: — Agora, limpe o chão entre os tanques com o aspirador de pó. Se tivermos sorte, ele coçou a cabeça e perdeu um fio de cabelo ou roeu uma unha.

Meus hábitos, pensou Sachs. Essa era uma das coisas que acabou arruinando sua carreira de modelo — as unhas manchadas de sangue, as sobrancelhas em um ângulo de preocupação. Tentou, vezes sem conta, acabar com isso. Finalmente, desanimada, desistiu, sem entender bem como um pequeno hábito podia mudar de forma tão dramática a vida de uma pessoa.

— Ponha num saco a poeira recolhida.

— Saco de papel?

— Sim, de papel. Agora, o corpo, Amélia.

— O quê?

— Ora, você vai ter que processar o corpo.

O coração de Amélia caiu para o estômago. Outra pessoa, por favor.

Mande alguém fazer isso. Respondeu: — Não, só depois que o legista terminar. A regra é essa.

— Hoje as regras não estão valendo, Amélia. Estamos fazendo as nossas. O legista receberá o corpo, mas depois de nós.

Sachs aproximou-se da mulher.

— Você conhece a rotina? — disse Rhyme.

— Conheço.

Aproximou-se mais do corpo mutilado.

Não posso fazer isso. Estremeceu. Disse a si mesma para continuar.

Mas não conseguiu: os músculos não respondiam ao comando.

— Sachs? Você ainda está aí?

Ela não conseguiu responder.

Eu não posso fazer isso... A questão é tão simples assim. Impossível.

Não posso.

— Sachs?

Mas, nessa ocasião, olhou dentro de si mesma e, sem saber por que, viu o pai, uniformizado, abaixando-se sobre a calçada quente e esburacada da rua 42 oeste, passando o braço por baixo de um bêbado imundo a fim de ajudá-lo a voltar para casa. Em seguida, viu-se em companhia de Nick, bebendo cerveja em um bar do Brooklyn, em companhia de um seqüestrador, que o mataria instantaneamente se soubesse que um jovem policial estava ali trabalhando à paisana. Os dois homens em sua vida, fazendo o que tinham que fazer.

— Amélia?

As duas imagens apareceram repentinamente em seus pensamentos.

Não soube por que a acalmaram. E sequer podia começar a desconfiar de onde veio a calma.

— Estou aqui — respondeu a Lincoln Rhyme e iniciou o trabalho, da maneira como tinha sido ensinada, verificando se havia alguma coisa sob as unhas ou entre os cabelos, passando um pente através de pêlos — incluindo os pubianos. E dizendo a Rhyme o que estava fazendo, enquanto fazia.

Ignorando as órbitas cegas dos olhos.

Ignorando a carne escarlate. Fazendo força para ignorar o cheiro.

— Pegue as roupas dela — ordenou Rhyme. — Corte tudo. Ponha uma folha de jornal embaixo delas para recolher qualquer vestígio que cair.

— Devo examinar os bolsos?

— Não, faremos isso aqui. Embrulhe as roupas no jornal.

Sachs cortou e tirou a blusa e a saia, a calcinha. Estendeu a mão para o que pensou que fosse o sutiã, pendurado no peito. A sensação foi curiosa, e a peça desintegrou-se em seus dedos. Em seguida, como se tivesse levado uma bofetada, compreendeu o que era que estava segurando e soltou um pequeno grito. Não era pano, era pele.

— Amélia? Você está bem?

— Estou — respondeu ela, ofegante. — Estou bem.

— Descreva as peças que foram usadas para imobilizá-la.

— Veda-juntas para a mordaça, de duas polegadas de largura. Algemas tipo padrão para as mãos, corda de varal de roupa para os pés.

— Passe a PoliLight pelo corpo dela. Ele pode tê-la tocado com mãos limpas. Procure impressões digitais.

Amélia fez o que ele ordenou.

— Nada.

— Nós vamos precisar das algemas — disse Rhyme.

— Certo. Eu tenho uma chave de algemas.

— Não, Amélia. Não as abra.

— O quê?

— O mecanismo de fechamento da algema é uma das melhores maneiras de descobrir alguma coisa sobre o perpetrador.

— Bem, como é que vou tirar as algemas sem a chave? — perguntou e soltou uma risada.

— Há uma serra na valise.

— Você quer que eu serre a algema?

Houve uma pausa. Rhyme finalmente respondeu: — Não, não a algema, Amélia.

— Então, o que é que você quer que eu faça... Oh, não, você não pode estar falando sério. As mãos dela?

— Você vai ter que cortá-las. — Rhyme estava irritado com a relutância.

Tudo bem, é isso. Sellitto e Polling escolheram um doido varrido como parceiro. Talvez a carreira deles esteja afundando, mas não vou afundar com eles.

— Esqueça.

— Amélia, isso é simplesmente outra maneira de reunir prova.

Por que ele parecia tão razoável? Em desespero, ela procurou desculpas.

— Elas vão ficar todas ensanguentadas se eu as cortar...

— O coração dela não bate mais. Além disso — acrescentou ele como se fosse um cozinheiro dando entrevista na TV -, o sangue foi cozido e se tornou sólido.

A ânsia de vomitar, novamente.

— Continue, Amélia. Vá até a valise. Pegue a serra. Está na tampa da valise. — E acrescentou, gélido: — Por favor.

— Por que você me mandou raspar embaixo das unhas dela? Eu poderia simplesmente lhe ter levado as mãos!

— Amélia, nós precisamos das algemas. Temos que abri-las aqui e não podemos esperar pelo legista. Isso é uma coisa que tem de ser feita.

Amélia voltou à porta. Abriu a valise, tirou do estojo a serra de aspecto sinistro. Olhou para a vítima, imóvel em uma pose de pessoa torturada, no centro daquela sala horripilante.

— Amélia? Amélia?

No lado de fora, as nuvens ainda continuavam paradas, o ar amarelado e os prédios próximos estavam cobertos de fuligem, como se fossem ossos calcinados. Ela, porém, nunca tinha se sentido tão feliz na vida em estar na rua, envolvida pelo ar da cidade. Com a valise da Polícia Técnica em uma das mãos, a serra afiada na outra, os fones em volta do pescoço, ignorou a grande multidão de policiais e curiosos que a fitavam e dirigiu-se em linha reta para a caminhonete.

Ao passar por Sellitto, entregou-lhe a serra, sem parar sequer, praticamente jogando-a na direção dele.

— Se ele quer tanto assim que isso seja feito, que venha aqui e o faça pessoalmente.

 

 

C O N T I N U A