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O COLECIONADOR DE OSSOS
Parte II
Series & Trilogias Literarias
Parte 2
O PRINCÍPIO DE LOCARD
Na vida real, você só é baleado na cena do crime de homicídio.
VERNON J. GEBERTH
Tenente-Comandante (Apos.)
Departamento de Polícia de Nova York
CAPÍTULO IX
Sábado, das 4:00 da tarde às 10:15 da noite
— Estou numa enrascada, senhor.
O homem do outro lado da escrivaninha parecia a idéia de um programa de TV do que era um vice-comissário de polícia de uma grande cidade. O que, por acaso, era o cargo dele. Cabelos brancos, uma carranca aceitável, óculos de aros de ouro, uma postura para defender até a morte.
— Muito bem, qual é o problema?
O vice-comissário Randolph C. Eckert olhou-a, através do nariz comprido, com um tipo de olhar que Sachs reconheceu imediatamente: seu aceno para o princípio de igualdade seria tão severo com mulheres policiais quanto com seus colegas homens.
— Tenho uma queixa, senhor — disse ela formalmente. — O senhor ouviu falar naquele caso do sequestro no táxi?
O VC inclinou a cabeça.
— Ah, aquele caso que causou o maior transtorno na cidade.
Amélia achou que aquilo se parecia com a brincadeira infantil de pular corda, mas não se arrogou o direito de corrigir o vice-comissário.
— Aquela droga de conferência das Nações Unidas — continuou ele — e o mundo todo olhando. Isso é injusto. Ninguém fala sobre crimes em Washington. Ou em Detroit. Bem, em Detroit, falam. Digamos, Chicago.
Nunca. Não, é em Nova York que as pessoas viram presuntos. Richmond, Virgínia, teve mais assassinatos per capita do que nós no ano passado. Conferi esse dado. E preferia descer em qualquer dia de pára-quedas, desarmado, em Central Harlem do que dirigir por South East, Washington, D.C., com os vidros do carro levantados.
— Sim, senhor.
— Sei que encontraram a moça já morta. Deu em todos os noticiários.
Aqueles repórteres...
— No centro da cidade. Agora mesmo.
— Bem, isso é uma pena.
— Sim, senhor.
— Ela foi simplesmente assassinada? Nenhum pedido de resgate ou qualquer outra coisa?
— Não ouvi falar em qualquer resgate.
— Qual é a queixa?
— Fui a primeira policial a chegar à cena de um homicídio relacionado com esse.
— Você trabalha na radiopatrulha? — perguntou Eckert.
— Trabalhava. Eu devia estar me transferindo esta manhã para Assuntos Públicos. Para uma sessão de treinamento. — Ergueu as mãos, cobertas com Band-Aids cor de carne, e deixou-as cair em seguida no colo. — Mas eles me sequestraram.
— Quem?
— O detetive Lon Sellitto, senhor. E o capitão Haumann. E Lincoln Rhyme.
— Rhyme?
— Sim, senhor.
— Não é o cara que chefiou a Polícia Técnica há alguns anos?
— Sim, senhor. Ele mesmo.
— Eu pensava que ele havia falecido.
Egos como aquele não morrem nunca.
— Está para lá de vivo, senhor.
O vice-comissário olhou pela janela.
— Ele não pertence mais à Força Policial. O que está fazendo, metido nesse caso?
— Como consultor, acho. O encarregado do caso é Lon Sellitto. O
capitão Polling está supervisionando as investigações. Estive esperando por essa transferência durante dezoito meses. Mas eles me obrigaram a trabalhar na cena do crime. Eu nunca trabalhei em cenas de crime. Isso não faz nenhum sentido e, para ser franca, não gostei de ser transferida para um trabalho para o qual não fiz treinamento.
— Cena de crime?
— Rhyme me deu ordem para me encarregar de tudo na cena do crime.
Sozinha.
Eckert não compreendeu o que ela estava dizendo. As palavras não faziam sentido para ele.
— Por que um paisano está dando ordens a policiais uniformizados para fazer alguma coisa?
— O que quero dizer, senhor — e Amélia preparou a isca -, bem, o que quero dizer é que estou pronta para ajudar, até certo ponto. Mas não estou preparada para esquartejar vítimas...
— O quê?!
Ela pestanejou, como se espantada por ele não ter ouvido falar nisso.
Contou a história das algemas.
— Deus do céu! Que diabo eles estão pensando? Perdoe meu linguajar.
Será que eles não sabem que o país inteiro está olhando? O assunto esteve na CNN o dia todo, esse sequestro. Amputar as mãos dela? Ei, você não é a filha de Hermann Sachs?
— Sou, sim.
— Bom policial. Excelente policial. Concedi a ele uma das condecorações que recebeu. O homem que um policial de ronda deve ser.
Midtown South, certo?
— Hell's Kitchen. Minha ronda.
Minha antiga ronda.
— Herman Sachs provavelmente impediu mais crimes do que toda a divisão de detetives soluciona em um ano. Simplesmente acalmando as pessoas, você sabe como é.
— Esse era o papai. Com certeza.
— As mãos dela? — rosnou Eckert. — A família da moça vai nos processar, tão logo descubram isso. Somos processados por tudo. Há um estuprador agora que está nos processando por ter sido baleado na perna ao atacar com uma faca o policial. Os advogados dele estão defendendo a teoria de que o policial deveria ter usado “a alternativa menos mortal”. Em vez de atirar, devemos levar a coisa no bico ou usar um spray imobilizador. Ou falar delicadamente com eles. Não sei. Talvez eu deva conversar com o chefe e com o prefeito sobre isso que está me contando. Vou dar uns telefonemas. -
Olhou para um relógio de parede. Passava um pouco das quatro da tarde. — Encerrou seu turno pelo dia de hoje?
— Tenho que apresentar relatório na casa de Lincoln Rhyme. É de lá que estamos operando. — Lembrou-se da serra e disse friamente: — Na verdade, o quarto dele. Esse é o nosso posto de comando.
— O quarto de dormir de um paisano é o posto de comando de vocês?
— Eu ficaria muito grata pelo que o senhor pudesse fazer, senhor.
Espero há muito tempo essa transferência.
— Amputar as mãos da moça! Meu bom Deus!
Amélia levantou-se e dirigiu-se à porta, saindo por um dos corredores do prédio que, muito em breve, seria seu novo local de trabalho.
A sensação de alívio demorou apenas um pouco mais para chegar do que esperava.
Ele estava em pé a uma janela fechada por vidro azulado tipo garrafa, observando uma matilha de cães selvagens à caça no terreno do outro lado da rua.
Encontrava-se no primeiro andar desse velho prédio, uma estrutura revestida de mármore, dos idos do século XIX. Cercado por lotes vazios e casas de cômodos — algumas desertas, outras ocupadas por inquilinos, embora a maioria invadida por sem-tetos — a velha mansão ficou vazia durante anos.
O colecionador de ossos pegou mais uma vez um pedaço de lixa e continuou a usá-lo. Olhou para o que estava fazendo. E em seguida novamente pela janela.
As mãos executavam um movimento circular, preciso, o pequeno pedaço de lixa sussurrando shhhh, shhhh... Como uma mãe pedindo ao filho para calar a boca.
Uma década antes, em dias promissores em Nova York, um artista louco qualquer tinha se mudado para ali. Enchera o prédio úmido de dois andares de antiguidades quebradas e enferrujadas: grades de ferro trabalhado, pedaços de enfeites de gesso e metros quadrados de vitrais, colunetas descascadas. Algumas obras do artista continuavam penduradas nas paredes.
Afrescos em reboco velho: murais, jamais completados, mostrando operários, crianças, amantes consumidos pela angústia. Faces redondas, destituídas de emoção -os temas usados por aquele homem –, olhavam sem ver para a frente, como se a alma tivesse sido seccionada dos corpos lisos.
O pintor nunca teve muito sucesso, mesmo depois de pôr em prática sua idéia de marketing mais original — seu próprio suicídio — e o banco executou a hipoteca do prédio muitos anos antes.
Shhhh...
O colecionador de ossos achou aquele prédio por acaso um ano antes e imediatamente teve certeza de que aquele era o seu lar. A desolação do bairro era certamente importante para ele — e obviamente prática. Mas havia outro motivo de interesse, mais pessoal: o terreno no outro lado da rua.
Durante uma escavação alguns anos atrás, uma enxada havia desenterrado um bocado de ossos humanos. Descobriu-se que aquele terreno tinha sido um dos velhos cemitérios da cidade. Artigos de jornal sugeriram que as sepulturas podiam conter não só os restos de nova-iorquinos do tempo da colônia, mas também de índios das tribos manate e lenape.
Nesse momento, ele pôs de lado o que estava polindo com a lixa — um osso cárpico, delicado, de palma de mão — e pegou o punho, que havido soltado cuidadosamente do rádio e do cúbito na noite passada, pouco antes de dirigir-se ao Aeroporto Kennedy para pegar as primeiras vítimas. O osso ficou secando durante mais de uma semana e a maior parte da carne tinha desaparecido, mas ainda precisou fazer um pouco de força para separar o complicado conjunto de ossos. Eles se soltaram com pops baixos, como peixes rompendo a superfície de um lago.
Oh, os policiais, eles eram muito mais competentes do que esperava.
Observou-os na busca ao longo da Pearl Street, especulando consigo mesmo se eles algum dia descobririam onde tinha deixado a mulher que pegara no aeroporto. Ficou atônito quando os viu correr subitamente para o prédio certo. Achava que seriam necessárias duas ou três vítimas para que desenvolvessem sensibilidade para as pistas. Eles não a salvaram, claro. Mas poderiam ter conseguido isso. Um ou dois minutos mais cedo teriam feito toda diferença.
Como acontece com tantas outras coisas na vida.
O navicular, o lunato, o hamato, o capitato... os ossos, entrelaçados como um quebra-cabeça grego, separaram-se sob seus dedos fortes. Tirou deles fragmentos de carne e tendão. Escolheu o maior multangular — na base onde se encaixava antes o polegar — e voltou a lixar.
Shhhhh, shhhhhh.
O colecionador de ossos apertou os olhos enquanto olhava para fora e imaginou que via um homem de pé ao lado de uma das velhas sepulturas. Isso devia ser sua imaginação, porque o homem usava chapéu-coco e estava vestido com uma capa cor de mostarda. Ele depositou algumas flores escuras ao lado da lápide e em seguida virou-se, evitando os cavalos e carruagens, a caminho da ponte que formava um arco elegante sobre o tubo de descarga Collect Pond, na Canal Street. Quem ele estava visitando? Os pais? Um irmão? Filhos que haviam falecido de tuberculose ou de uma das terríveis epidemias de gripe que vinham assolando recentemente a cidade...
Recentemente.
Não, recentemente, não, claro. Há cem anos — era isso o que tinha em mente.
Apertou os olhos e dirigiu novamente a vista para o local. Nenhum sinal de carruagens ou cavalos. Nem do homem de chapéu-coco. Embora tivessem parecido tão reais como se tivessem sido de carne e osso.
Como quer que eles fossem reais.
Shhhhh, shhhhh.
O passado, mais uma vez, estava se intrometendo. Estava vendo coisas que haviam acontecido antes, que haviam acontecido naquelas ocasiões, como se fossem agora. Poderia controlar isso. Sabia que poderia.
Mas enquanto olhava pela janela, compreendeu que, claro, não havia nem antes nem depois. Não para ele. Ele ia e voltava no tempo, um dia, cinco anos, cem ou duzentos anos, tal como uma folha seca em um dia ventoso.
Olhou para o relógio. Hora de sair.
Deixando o osso na cornija da lareira, lavou as mãos com todo cuidado — como se fosse um cirurgião. Em seguida, durante cinco minutos, passou uma escova redonda pela roupa, para pegar quaisquer fragmentos de poeira, sujeira ou cabelos corporais que pudessem trazer os policiais até ele.
Entrou na garagem de carruagens do outro lado de um quadro semiterminado de um açougueiro, de uma pessoa com cara de lua cheia, vestida com um avental sanguinolento. O colecionador de ossos pensou em usar o táxi, mas mudou em seguida de idéia. Imprevisibilidade é a melhor defesa. Dessa vez, tomaria uma carruagem... a sedã, a Ford. Deu partida no carro, entrou na rua, fechou e trancou a porta da garagem.
Nem antes nem depois...
Ao passar pelo cemitério, a matilha de cães levantou os focinhos para o Ford e, em seguida, voltou a fuçar as moitas, procurando ratos e cavando loucamente em busca de água no calor insuportável.
Nem naquela época nem agora...
Tirou do bolso a máscara de esquiador e as luvas, colocou-as no assento ao lado e saiu em alta velocidade do velho bairro. O colecionador de ossos saía novamente à caça.
CAPÍTULO X
Alguma coisa tinha mudado na sala, mas ela não conseguiu descobrir o quê.
Lincoln Rhyme notou a curiosidade nos seus olhos.
— Sentimos falta de você, Amélia — disse ele, fazendo-se de tímido. — Outras atividades?
Amélia desviou a vista.
— Parece que ninguém informou a meu novo comandante que eu não ia comparecer ao trabalho hoje. Acho que alguém devia ter feito isso.
— Ah, é.
Amélia olhava para a parede, procurando lentamente descobrir o que era aquilo. Além dos instrumentos básicos trazidos por Mel Cooper, havia nesse momento um microscópio de escaneamento de elétrons, equipado com unidade de raios X, e aparelhos de alta temperatura para testar amostras de vidro, um microscópio de comparação, um tubo de gradiente de densidade para examinar amostras de solo e centenas de copos de boca larga, potes e vidros de produtos químicos.
E, no meio da sala, o orgulho de Cooper — o cromatógrafo computadorizado de gás e espectômetro de massa. E outro computador, ligado on-line ao do próprio Cooper na DIRC.
Sachs passou por cima dos grossos cabos que desciam pela escada — a corrente doméstica funcionava, sim, mas as amperagens exigidas eram demais para as tomadas do quarto. E, naquele pequeno passo para o lado, uma manobra elegante e treinada, Rhyme observou como ela era realmente bonita.
Certamente a mulher mais bela que já tinha visto nas fileiras do Departamento de Polícia.
Durante um momento, julgou-a imensamente atraente. Dizia-se que o sexo estava todo na cabeça e ele sabia que era verdade. Cortar os cabos não diminuía a ânsia. Lembrou-se, ainda com uma sensação de horror, de uma noite, seis meses após o acidente. Ele e Blaine haviam tentado. Apenas para ver o que acontecia, esforçando-se para serem displicentes a esse respeito.
Nada.
Mas tinha sido um grande nada. Para começar, sexo é um assunto complicado e quando se acrescentam cateteres e sacos à equação, é preciso um bocado de resistência e senso de humor, além de uma base mais sólida do que eles possuíam. Na maior parte, porém, o que liquidou com aquele momento, e rápido, foi a cara que ela fez. Viu no sorriso duro, proposital, de Blaine Chapman Rhyme que ela estava fazendo aquilo por piedade e constatar isso foi para ele uma punhalada no coração. Pediu divórcio duas semanas depois. Blaine protestou, mas assinou os documentos na primeira entrevista de conciliação.
Sellitto e Banks, de volta nesse instante, organizavam a prova coletada por Sachs. Ela observou-os, levemente interessada.
— A Unidade de Provas Latentes encontrou apenas oito outras impressões parciais e elas pertencem aos dois empregados de manutenção do prédio.
— Oh.
Ele inclinou generosamente a cabeça.
— Só oito?
— Ele está fazendo um elogio a você — explicou Thom. — Aproveite-o.
Isso é o máximo que conseguirá dele.
— Traduções não são necessárias, por favor, e obrigado, Thom.
— Gostei de ter podido ajudar — respondeu ela, na entonação mais agradável que pôde dar à voz.
Bem, o que era isso? Rhyme esperava realmente que ela entrasse na sala como um furacão e jogasse os sacos de prova em cima de sua cama.
Talvez a própria serra e até mesmo o saco de plástico com as mãos amputadas da vítima. Estava esperando um arranca-rabo daqueles, demorado. As pessoas raramente tiram as luvas quando lutam com um paralítico. Estivera pensando naquela expressão nos olhos dela quando a conhecera, talvez prova de alguma relação ambígua entre eles.
Mas, não. Nesse momento notou que tinha errado. Amélia Sachs era igual a todo mundo — dando-lhe uma palmadinha na cabeça e procurando a saída mais próxima.
Com um estalido, seu coração transformou-se em gelo. Ao falar, foi como se estivesse se dirigindo a uma teia de aranha no alto na parede mais distante: — Estivemos conversando sobre o prazo fatal da próxima vítima.
Aparentemente, não há uma ocasião específica.
— O que achamos — disse Sellitto –, é que o que quer que esse escroto tenha planejado para a próxima, a coisa está em andamento. Ele não sabe exatamente quando será o momento da morte. Lincoln pensou que talvez ele tenha enterrado algum pobre filho da puta em algum lugar onde não haja muito ar.
Os olhos de Sachs apertaram-se ligeiramente ao ouvir essas palavras.
Rhyme notou o movimento. Enterrar uma pessoa viva. Se você vai ter uma fobia, essa é tão boa quanto qualquer outra.
Foram interrompidos por dois homens usando ternos cinzentos, que subiram a escada e entraram no quarto como se morassem ali.
— Nós batemos à porta — disse um deles.
— Tocamos a campainha — disse o outro.
— Ninguém respondeu.
Estavam ambos na casa dos quarenta anos, um era mais alto do que o outro, mas tinham os dois os mesmos cabelos cor de areia. Sorriam da mesma maneira e, antes que o sotaque do Brooklyn destruísse a imagem, Rhyme pensou: gente do interior. Um deles tinha uma autêntica coleção de sardas ao longo do nariz pálido.
— Cavalheiros.
Sellitto apresentou os Irmãos Hardy: detetives Bedding e Saul, a equipe do trabalho pesado. O talento deles era procurar pessoas — conversar com pessoas que residiam perto de uma cena de crime, à procura de testemunhas e pistas. Embora esta fosse uma das belas artes, era algo que Rhyme jamais tinha aprendido, nem sentido desejo de aprender. Sentia-se contente em desencavar fatos sólidos e passá-los a policiais como esses, que, armados com os dados, transformavam-se em detectores de mentiras vivos, que podiam reduzir a migalhas os melhores álibis de suspeitos. Nenhum dos dois parecia achar que houvesse algo estranho em ter de prestar contas a um paisano entrevado.
Saul, o mais alto e que não tinha sardas, começou: — Nós encontramos trinta e seis...
— ...oito, se contarmos uns dois usuários de crack. O que ele não faz, eu faço.
— ...elementos. Conversamos com todos eles. Não tivemos muita sorte.
— A maioria é de cegos, surdos e sofrendo de aminésia. O senhor sabe, o habitual.
— Nenhum sinal do táxi. Passamos um pente fino no West Side. Zero.
Fim.
— Mas conte a eles a melhor notícia — disse Bedding.
— Encontramos uma testemunha.
— Uma testemunha? — perguntou Banks, entusiasmado. — Fantástico.
Rhyme, muito menos entusiasmado, disse: — Continue.
— Na esquina da TOD esta manhã, no leito da estrada de ferro.
— Ele viu um homem descer a Avenida Onze, virar...
— Subitamente — acrescentou Bedding, o sem sardas — e entrar em um beco que leva a uma passagem subterrânea do trem. Ele simplesmente ficou ali durante um momento...
— Olhando para baixo.
Rhyme ficou aborrecido com a história.
— Isso não parece coisa de nosso rapaz. Ele é sabido demais para se arriscar a ser visto dessa maneira.
— Mas... — prosseguiu Saul, erguendo um dedo e olhando para o parceiro.
— Só havia uma única janela em toda a vizinhança de onde se podia ver o local.
— Que era o lugar onde estava nossa testemunha.
— Ele acordou cedo, Deus o abençoe.
Antes de lembrar-se de que estava zangado com ela, Rhyme perguntou: — Bem, Amélia, o que é que você acha disso?
— Como disse? — Sua atenção desviou-se da janela.
— Que estava certa — disse Rhyme. — Você fechou a Onze. Não a rua 37.
Ela não soube o que responder. Rhyme, porém, voltou-se imediatamente para os gêmeos: — Descrição.
— Nossa testemunha não pôde contar muita coisa.
— Estava bêbado. Já a essa hora.
— Ele disse que foi um cara baixote. Não deu a cor dos cabelos. Raça...
— Possivelmente branco.
— Usando? — perguntou Rhyme.
— Alguma coisa escura. Foi o melhor que ele conseguiu dizer.
— E fazendo o quê? — perguntou Sellitto.
— Vou citar o que ele disse: “Ele simplesmente ficou ali, olhando para baixo. Pensei que ele fosse saltar. Vocês sabem, na frente do trem. Olhou para o relógio umas duas vezes.”
— E depois foi finalmente embora. Disse que continuou a olhar em volta. Como se não quisesse ser visto.
O que ele estaria fazendo?, perguntou Rhyme a si mesmo.
Observando a vítima morrer? Ou isso teria acontecido antes de colocar o corpo ali, checando para ver se o leito da estrada estava deserto?
— Ele chegou dirigindo ou andando? — perguntou Sellitto.
— Andando. Demos uma conferida cm todos os pátios de estacionamento...
— E garagens.
— ...do bairro. Mas isso foi perto do centro de convenções, de modo que havia manobreiros que levavam os carros. Havia um bocado de pontos de manobreiros com bandeiras alaranjadas, chamando os carros.
— E, por causa da exposição, metade dos pátios estavam cheios por volta das sete horas. Pegamos uma lista de uns novecentos tíquetes de estacionamento.
Sellitto sacudiu a cabeça.
— Trabalhem nessa lista... — disse.
— Já mandamos alguém fazer isso — explicou Bedding.
— ...mas pode apostar que esse elemento desconhecido não ia deixar seu carro em um estacionamento — continuou o outro detetive. — Ou receber tíquetes de estacionamento.
Rhyme inclinou a cabeça em um gesto de concordância e perguntou: — Que prédio na Pearl Street?
Um deles — ou ambos os gêmeos — respondeu: — Esse é o item seguinte em nossa lista. Estamos a caminho.
Rhyme notou que Sachs consultava o relógio, bem junto do punho branco e dos dedos vermelhos. Rhyme deu instruções a Thom para acrescentar as novas características do elemento desconhecido à tabela do perfil.
— Quer conversar com esse cara? — perguntou Banks. — O que estava junto da estrada de ferro?
— Não. Eu não confio em testemunhas — respondeu Rhyme bombasticamente. — Quero voltar ao trabalho. — Lançou um olhar a Mel Cooper. — Cabelos, sangue, osso e uma lasca de madeira. O osso, primeiro — disse.
Morgen...
A jovem Monelle Gerger abriu os olhos e, lentamente, sentou-se na cama meio arriada. Em seus dois anos no East Greenwich Village, nunca se acostumou às manhãs.
O corpo roliço, de 21 anos de idade, moveu-se para a frente e ela recebeu nos olhos vermelhos o golpe de um implacável sol de agosto.
— Mein Gott...
Deixara o cabaré às cinco, chegou em casa às seis, fez amor com Brian até as sete...
Que horas seriam?
O início da manhã, disso tinha certeza.
Apertou os olhos para ver melhor o relógio. Quatro horas e trinta minutos da tarde.
Não tão früh morgens assim, afinal de contas.
Tomar café ou ir lavar a roupa?
Era por volta dessa hora do dia que ela ia vagarosamente até o Dojo's para um desjejum de hambúrguer e três xícaras do café forte que serviam ali.
Ali encontrou as pessoas que conhecia agora, frequentadores de cabarés como ela — gente do centro da cidade.
Mas ultimamente havia negligenciado um bocado de coisas, coisas domésticas. Nesse momento, vestiu duas camisetas para esconder o corpo roliço e o jeans, pendurou cinco ou seis colares no pescoço, pegou a cesta de roupa suja e jogou dentro uma caixa de sabão.
Soltou as três cavilhas da fechadura da porta. Levantou a cesta de roupa e desceu a escura escada da casa de cômodos. Parou ao chegar ao nível do porão.
lrgendwas stimmt hier nicht.
Sentindo-se inquieta, Monelle olhou em volta da escada deserta, para os corredores escuros.
O que há aqui de diferente?
A luz, é isso! As lâmpadas na entrada estão queimadas. Não — olhou com mais atenção -, foram tiradas. Esses garotos escrotos roubam tudo. Tinha vindo morar aqui, a Deutsche Haus, porque, ao que se dizia, era um oásis para pintores e músicos alemães. E acabou descobrindo que era simplesmente outro prédio sem elevador, sujo, de East Village, caro demais, como tantas outras casas de cômodos por ali. A única diferença é que podia espinafrar o zelador em sua própria língua.
Atravessou a porta do porão e entrou na sala do incinerador, que estava tão escura que teve de tatear ao longo da parede, para ter certeza de que não ia tropeçar no lixo espalhado no chão.
Empurrando e abrindo a porta, entrou no corredor que dava para a sala da lavanderia.
Um arrastar de pés. Movimentos leves e rápidos.
Virou-se rápido, mas nada viu, exceto sombras imóveis. Tudo que ouviu foi o som do tráfego e os gemidos de um prédio velho, velhíssimo.
Na escuridão, distinguiu pilhas de caixas e cadeiras abandonadas. Sob fios com uma capa de sujeira engordurada. Continuou a andar na direção da lavanderia. Nada de lâmpadas também ali. Sentiu-se nervosa, lembrando-se de algo que tinha lhe ocorrido durante anos, quando ia em companhia do pai por um estreito beco que saía da Langer Strasse, perto de Obermain Brücke, a caminho do zoológico. Nessa época, devia ter uns cinco ou seis anos. O pai a agarrou subitamente pelo ombro e apontou para a ponte, dizendo-lhe em tom de voz comum que um ogro esfomeado vivia ali embaixo. Quando a cruzassem de volta para casa, avisou ele, teriam que andar rápido. Nesse momento, ela sentiu um calafrio de pânico subir pela espinha até os cabelos louros cortados rentes.
Estúpido. Ogros...
Continuou a descer o corredor úmido, escutando o zumbido de algum equipamento elétrico. Bem longe, ouviu uma canção dos irmãos inimigos do Oasis.
A sala da lavanderia estava às escuras.
Bem, se haviam tirado as lâmpadas, tinha que ser assim. Subiria a escada, bateria com força na porta de Herr Neischen, até que ele viesse correndo. Diria a ele o diabo por causa dos ferrolhos quebrados nas portas da frente e dos fundos e dos garotos bebedores de cerveja que ele nunca expulsava a pontapés da escada do prédio. E lhe diria também o diabo por causa das lâmpadas que haviam desaparecido.
Entrou e apertou o comutador.
Luz branca, brilhante. Três grandes lâmpadas refulgiam como sois, revelando uma sala vazia, mas imunda. Monelle foi até as quatro máquinas de lavar e jogou as peças brancas na mais próxima. Contou moedas, deixou-as cair nas fendas e empurrou as alavancas para a frente.
Nada.
Sacudiu a alavanca. Em seguida, bateu na própria máquina. Nenhuma resposta.
— Merda. Este prédio gottverdammte.
Nesse momento, viu o fio. Algum idiota tinha desligado as máquinas.
Sabia quem. Neischen tinha um filho de doze anos que era responsável pela maioria das confusões que acontecia no prédio. Quando se queixou de alguma coisa no ano anterior, o pestinha tentou lhe dar um pontapé.
Pegou o fio e agachou-se, estendendo a mão para trás da máquina, à procura da tomada. Fez a ligação.
E sentiu a respiração do homem na nuca.
Nein!
Ele estava espremido entre a parede e a parte traseira da lavadora.
Soltando um grito agoniado, ela vislumbrou uma máscara de esquiador e roupas escuras e, em seguida, a mão dele desceu sobre seu braço como se fosse a boca de um animal. Ela perdeu o equilíbrio e ele virou-a para a frente facilmente. Monelle caiu no chão, batendo no concreto áspero com o rosto e engolindo o grito que lhe subia à garganta.
Ele saltou sobre ela no mesmo momento, prendendo seus braços contra o concreto e tapando-lhe a boca com um peça grossa de fita preta.
Hilfe!
Nein, bitte nicht. Bitte nicht.
Ele não era grandalhão, mas era forte. Rapidamente, virou-a sobre o estômago e ela ouviu o tinido de algemas fechando-se em volta de seus punhos.
O homem levantou-se. Durante um longo momento, nenhum som, só o gotejar de água, os arquejos da respiração de Monelle, o clique de algum pequeno motor em algum lugar do porão.
Ficou à espera de mãos em seu corpo, rasgando-lhe o vestido. Ouviu quando ele foi até a porta, a fim de certificar-se de que estavam a sós ali.
Oh, ele tinha privacidade completa, disso ela sabia, furiosa consigo mesma: ela era uma das poucas moradoras que usavam a lavanderia. A maioria a evitava porque o local era deserto demais, perto demais das portas e janelas dos fundos, longe demais de qualquer ajuda.
Ele voltou e rolou-a outra vez, colocando-a de costas. Murmurou alguma coisa que ela não conseguiu entender. Em seguida: “Hanna.”
Hanna? É um engano. Ele pensa que sou outra pessoa. Sacudiu com força a cabeça, tentando fazer com que ele compreendesse isso.
Mas, olhando-o nos olhos, parou. Mesmo que usasse máscara de esquiador, era claro que havia nele alguma coisa errada. Ele estava nervoso.
Ele examinou-lhe o corpo de alto a baixo, sacudindo a cabeça. Fechou os dedos enluvados em volta de seus grossos braços. Apertou-lhe os ombros carnudos, agarrou uma dobra de gordura. Ela estremeceu de dor.
E foi isso o que ela viu: desapontamento. Ele a havia capturado e, nesse momento, não tinha certeza se, afinal de contas, a queria.
Ele enfiou a mão no bolso e, lentamente, retirou-a. O estalido do canivete se abrindo foi como um choque elétrico. E deu início a uma crise de soluços.
Nein, nein, nein!
Um silvo escapou dos lábios dele como se fosse de vento através de árvores no inverno. Ele agachou-se sobre ela, como se estivesse debatendo alguma coisa consigo mesmo.
— Hanna — murmurou. — O que é que vou fazer?
Subitamente, ele tomou uma decisão. Guardou o canivete, levantou-a com um puxão e levou-a pelo corredor, passando pela porta dos fundos — a porta com o ferrolho quebrado, o motivo por que tinha batido à porta de Herr Neischen durante semanas, pedindo-lhe que mandasse consertá-lo.
CAPÍTULO XI
O criminalista é um homem da Renascença.
Tem que conhecer botânica, geologia, balística, medicina, química, literatura, engenharia. Se está a par dos fatos — se sabe que aquela cinza com alto teor de estrôncio provavelmente veio de uma sinaleira flamejante de estrada de rodagem, que faca é uma palavra portuguesa que corresponde a knife em inglês, que etíopes não usam talheres e comem apenas com a mão direita, que um projétil com marcas e estrias produzidas por cano de arma, com giro para a direta, não poderia ter sido disparado por uma pistola Colt — se conhece essas coisas, pode estabelecer a conexão que coloca o elemento desconhecido na cena do crime.
Mas se há um assunto que todos os criminalistas conhecem, este é anatomia. E esta certamente era uma especialidade de Lincoln Rhyme, porque tinha passado os três últimos anos e meio mergulhado na lógica estranha dos ossos e nervos.
Nesse momento, olhava para o saco, nas mãos de Jerry Banks, que continha as provas coletadas na sala das caldeiras. E disse: — Osso de perna. Não humano. De modo que não pertence à próxima vítima.
Era um anel de osso de cerca de 5,5cm de circunferência, serrado com perfeição. Havia sangue nos riscos deixados pela lâmina da serra.
ELEMENTO DESCONHECIDO 238
Aparência Residência Veículo Diversos • Branco, homem, estatura baixa • Roupa escura • Prov. tem casa segura • Táxi Yellow Cab • Conhece proc.de CC
• Possivelmente tem antec. criminais • Conhece levantamento de impressões digitais • Arma = .32 Colt
— Um animal de tamanho médio — continuou. — Um cão, ovelha ou cabra, grande, acho, pesando cerca de 65 quilos. Mas vamos tirar a limpo se o sangue pertence realmente a um animal.
Ainda assim, poderia pertencer à vítima.
Mel Cooper preparou um teste de difusão em geléia para descobrir a origem do sangue.
— Vamos ter que esperar pelos resultados — explicou, em tom de desculpa.
— Amélia — disse Rhyme -, você talvez possa nos dar uma mãozinha aqui. Use a lupa e examine com todo cuidado o osso. E diga o que vê.
— Não o microscópio? — perguntou ela.
Ele pensou que ela fosse protestar. Amélia, porém, pegou o osso e examinou-o, curiosa.
— Ampliação demais — explicou Rhyme.
Amélia pôs os óculos de proteção e curvou-se sobre a placa branca esmaltada. Cooper torceu um abajur de pescoço longo para iluminar a amostra.
— As marcas de corte — disse Rhyme. — São irregulares ou uniformes?
— Bastante uniformes.
— Uma serra elétrica.
Rhyme ficou pensando se o animal estava vivo quando o elemento fez aquilo.
— Está vendo alguma coisa diferente?
Ela concentrou-se no osso por mais um momento e murmurou: — Não sei. Acho que não. Isso parece apenas um pedaço de osso.
Nesse momento, Thom passou por ali e lançou um olhar à bandeja.
— Essa aí é sua pista? Que coisa engraçada.
— Engraçada — repetiu Rhyme. — Engraçada?
— Você tem alguma teoria? — perguntou Sellitto.
— Nenhuma teoria. — Curvou-se e cheirou o osso. — É osso bucco.
— O quê?
— Canela de vitela. Preparei uma para você um dia desses, Lincoln.
Osso bucco. Canela de vitela refogada. — Olhou para Sachs e fez uma careta. — Ele disse que o prato precisava de sal.
— Droga! — exclamou Sellitto. — Ele a comprou em um mercado.
Cooper confirmou que o teste de precipitina tinha dado negativo quanto a sangue humano nas amostras recolhidas por Sachs.
— Provavelmente, bovina — disse.
— Mas o que é que ele está tentando nos dizer com isso? — perguntou Banks.
Rhyme não fazia a menor idéia.
— Vamos continuar. Oh, alguma coisa na corrente e no cadeado?
Cooper deu uma olhada nas peças de metal, guardadas em um saco plástico.
— Ninguém mais põe nome de marca em correntes. De modo que, neste particular, não temos sorte. O cadeado é um Secure-Pro, modelo de meio de linha. Não é muito seguro e, definitivamente, não profissional.
Quanto tempo foi preciso para quebrá-lo?
— Três segundos inteiros — respondeu Sellitto.
— Está vendo? Nenhum número de série e são vendidos em todas as lojas de ferragens e bazares do país.
— Chave ou segredo? — perguntou Rhyme.
— Segredo.
— Ligue para o fabricante. Pergunte se podemos desarmá-lo e reconstruir a combinação à vista das tranquetas, se pode dizer em que remessa estava o cadeado e para onde foi.
Banks hesitou.
— Homem, isso é uma possibilidade muito remota.
O olhar de Rhyme provocou-lhe uma forte vermelhidão no rosto.
— E o entusiasmo em sua voz, detetive, está me dizendo que você é justamente a pessoa indicada para fazer esse trabalho.
— Sim, senhor — respondeu o jovem, levantando defensivamente o telefone celular. — Já estou trabalhando.
— Isso aí na corrente é sangue? — perguntou Rhyme.
— De um de nossos rapazes — explicou Sellitto. — Deu um corte sério na mão quando tentava quebrar o cadeado.
— Nesse caso, a peça está contaminada — comentou Rhyme, fechando a cara.
— Ele estava tentando salvar a moça — desculpou-o Sachs.
— Compreendo. Bonito gesto da parte dele. Mas a peça está contaminada. — Voltou-se para a mesa ao lado de Cooper. — Impressões digitais?
Cooper respondeu que a havia examinado e encontrado apenas as impressões digitais de Selitto nos elos da corrente.
— Muito bem, agora a lasca de madeira encontrada por Amélia. Procure impressões digitais.
— Já procurei — disse rapidamente Sachs. — Na cena do crime.
ER, Rhyme pensou por um momento. Ela não parecia ser o tipo de pessoa que a gente trata por apelido. Mulheres belas raramente são.
— Vamos experimentar a artilharia pesada, apenas para termos certeza — resolveu e deu instruções a Cooper. — Use DFO ou ninhidrina. E, em seguida, aplique o nit-yag.
— Aplicar o quê? — perguntou Banks.
— Um laser de granada de neodimiomitrio de alumínio.
O técnico umedeceu a lasca com o líquido de um borrifador plástico e apontou o feixe de laser para a peça. Colocou óculos de proteção escuros e examinou atentamente o material.
— Nada.
Desligou a luz e submeteu a lasca a um exame visual cuidadoso. Ela media aproximadamente 15cm, e era de madeira escura. Notou umas manchas pretas, como se fossem de alcatrão, impregnadas de sujeira. Segurou-a com o fórceps.
— Sei que Lincoln gosta do método dos pauzinhos para comer — disse Cooper –, mas sempre peço um garfo quando vou ao Ming Wa's.
— Você pode esmagar as células dessa maneira — resmungou o criminalista.
— Eu poderia, mas não estou — respondeu Cooper.
— Que tipo de madeira? — perguntou Rhyme. — Vai precisar fazer um espodograma?
— Não. Carvalho. Nenhuma dúvida.
— Marcas de serra ou de plaina?
Rhyme inclinou a cabeça para a frente. Imediatamente, o pescoço entrou em espasmo e foi insuportável a cãibra que lhe percorreu os músculos.
Arquejeou, fechou os olhos e torceu o pescoço, estirando-o. Sentiu as fortes mãos de Thom massageando-o. A dor passou, finalmente.
— Lincoln? — perguntou Sellitto. — Você está bem?
Rhyme tomou uma respiração profunda.
— Ótimo. Não foi nada.
— Aqui.
Cooper trouxe a peça de madeira à cama, baixou a lente para que Rhyme pudesse ver o espécime. Rhyme examinou-o.
— Cortado na direção dos veios com uma serra de arco. Há uma grande variação nos cortes. De modo que acho que era de um pilar ou viga fabricados há mais de um século. Uma serra a vapor, provavelmente. Aproxime mais a peça, Mel. Quero cheirá-la.
Cooper pôs a bandeja embaixo do nariz de Rhyme.
— Creosoto... um destilado de alcatrão. Usado para proteger madeira contra os efeitos do tempo, antes que as madeireiras começassem a usar tratamento sob pressão. Cais, docas, dormentes de estrada de ferro.
— Talvez a gente tenha aqui um maníaco por trens — sugeriu Sellitto. — Lembre-se do leito ferroviário nesta manhã.
— Poderia ser. Procure compressão celular — ordenou Rhyme.
O técnico estudou a lasca com o microscópio composto.
— Madeira comprimida, sem a menor dúvida. Mas a favor dos veios, não contra. Não é de dormente. Isto foi tirado de um pilar ou coluna. A direção do peso.
Um osso... um velho pilar de madeira...
— Estou vendo terra impregnada na madeira. Isso nos diz alguma coisa?
Cooper colocou um grande bloco de papel de imprensa em cima da mesa, tirou a capa do bloco, pôs a lasca em cima e puxou com um pincel um pouco da terra inserida na lasca. Examinou os pontinhos no papel branco — uma constelação ao avesso.
— Você tem aí o suficiente para fazer um teste de gradiente de densidade? — perguntou Rhyme.
Nesse teste, a areia é posta em um tubo contendo líquidos de gravidade específica diferentes. O solo se separa e cada partícula fica suspensa de acordo com sua própria gravidade. Rhyme reunira uma extensa biblioteca de perfis de gradientes de densidade da areia de todos os cinco bairros da cidade. Infelizmente, o teste só funciona com um volume razoável de solo.
Cooper não achava que tivessem o suficiente.
— Poderíamos tentar, mas teríamos que usar toda a amostra. E se não funcionar, nada mais teremos para outros testes.
Rhyme instruiu-o para fazer um exame visual e, em seguida, analisá-la com o GC-MS — cromatógrafo-espectrômetro a gás.
O técnico pincelou uma lâmina com um pouco de areia. Examinou-a durante alguns minutos sob o microscópio composto.
— Isso é estranho, Lincoln. É de camada de solo de superfície.
Com um nível incomumente alto de vegetação. Mas numa forma curiosa. Muito deteriorada, profundamente decomposta.
Ergueu a vista e Rhyme notou rugas profundas sob os olhos que o técnico retirou das oculares. Lembrou-se de que, após horas de trabalho de laboratório, as marcas eram muito visíveis e que, às vezes, um técnico que emergia do laboratório da Polícia Técnica era recebido por um coro que o aclamava como Guaxinin.
— Queime-o — ordenou Rhyme.
Cooper montou uma amostra na unidade de GC-MS. A máquina acordou com um zumbido, seguido de um silvo.
— Mais um ou dois minutos.
— Enquanto esperamos — disse Rhyme –, o osso... Continuo a pensar nesse osso. Passe-o pelo microscópio, Mel.
Com todo cuidado, Cooper pôs o osso no estágio de exame do microscópio composto. Curvou-se com todo cuidado sobre a peça.
— Epa, temos alguma coisa aqui.
— O quê?
— Muito pequena. Transparente. Passe-me o hemostato — disse Cooper a Sachs, indicando com a cabeça uma pinça de garras.
Ela lhe entregou o instrumento, que ele usou sondando com cuidado a medula do osso. Puxou alguma coisa.
— Uma pequena peça de celulose regenerada — anunciou Cooper.
— Celofane — identificou-a Rhyme. — Dê mais detalhes.
— Marcas de estiramento e pressão. Eu diria que ele não a deixou intencionalmente. Não há aqui bordas cortadas. Não é incompatível com papel celofane para trabalho pesado — observou Cooper.
— Não incompatível. — Rhyme franziu as sobrancelhas. — Não gosto das apostas que ele faz.
— Temos que pagar para ver, Lincoln — retrucou Cooper, alegre.
— “Associado com”. “Sugere”. Odeio especialmente esse “não incompatível com”.
— Muito versátil o material — esclareceu Cooper. — O máximo que ouso dizer é que se trata provavelmente de celofane usado em açougue comercial ou em mercados. Nada de especial. Definitivamente não é material de embrulho de marca conhecida.
Jerry Banks entrou nesse momento, vindo do corredor.
— Más notícias. A companhia Secure-Pro não mantém quaisquer registros dos segredos dos cadeados. Uma máquina escolhe aleatoriamente os segredos.
— Ah.
— Mas, interessante... Os fabricantes dizem que recebem telefonemas da polícia o tempo todo, com perguntas sobre seus produtos, e você foi o primeiro a pensar em descobrir a origem de um cadeado através do segredo.
— Até que ponto isso pode ser “interessante”, se é um beco sem saída?
— resmungou Rhyme e voltou-se para Mel Cooper, que nesse momento sacudia a cabeça, enquanto olhava a tela do computador GC-MS. –O quê?
— Consegui o resultado da amostra de solo. Mas lamento dizer que a máquina pode estar biruta. O conteúdo de nitrogênio não combina com as tabelas. Vamos ter que fazer o teste novamente, usando mais amostras desta vez.
Rhyme ordenou-lhe que fosse em frente e voltou os olhos para o osso.
— Quanto tempo, desde a morte do animal?
Cooper examinou alguns raspas no microscópio eletrônico.
— Conglomerados mínimos de bactérias. O Bambi aqui provavelmente morreu há pouco tempo, é o que parece. Ou saiu da geladeira há umas oito horas.
— Então nosso criminoso comprou-o recentemente — observou Rhyme.
— Ou comprou-o há um mês e congelou-o — sugeriu Sellitto.
— Não — disse Cooper. — A peça não foi congelada. Não há prova de dano aos tecidos ocasionado por cristais de gelo. E não foi refrigerado por tanto tempo assim. E não está seco. Refrigeradores modernos desidratam os alimentos.
— É uma boa pista — comentou Rhyme. — Vamos trabalhar nisso.
— Trabalhar? — repetiu Sachs com uma risada. — Você. está dizendo que devemos visitar todos os mercados da cidade e descobrir quem vendeu ossos de vitela ontem?
— Não — corrigiu-a Rhyme. — Nos dois últimos dias.
— Quer os Irmãos Hardy?
— Deixe que eles continuem a fazer o que estão fazendo. Ligue para Emma, no centro, se ela ainda estiver trabalhando. E se não estiver, chame-a de volta à sede com as outras despachantes e coloque-as em regime de trabalho extraordinário. Consigam uma lista de todos os mercados da cidade.
Aposto que nosso rapaz não está comprando gêneros para uma família de quatro pessoas, de modo que limite a lista a fregueses que compram cinco artigos ou menos.
— Ordens de busca? — perguntou Banks.
— Se alguém se recusar, conseguiremos a ordem — resolveu Sellitto. — Mas vamos ver se conseguimos sem isso. Quem sabe? Alguns cidadãos poderiam mesmo cooperar. Disseram-me que isso, às vezes, acontece.
— Mas como é que os mercados vão saber quem comprou canela de vitela? — perguntou Sachs.
Ela não estava mais tão indiferente como antes. Havia uma pontada de irritação em sua voz. Rhyme especulou se a frustração da moça não poderia ser um sintoma do que ele mesmo frequentemente sentia — o peso incômodo da prova. O problema básico do criminalista não é que haja prova de menos, mas que haja demais.
— Verifiquem os scanners — lembrou Rhyme. — Eles salvam as vendas nos computadores. Para fins de levantamento de estoque e reabastecimento.
Vá em frente, Banks. Vejo que alguma coisa lhe passou pela cabeça. Fale.
Desta vez não vou mandá-lo para a Sibéria.
— Só cadeias de mercados é que possuem scanners, senhor — sugeriu o jovem detetive. — Há centenas de mercados independentes e açougueiros que não os possuem.
— Bom argumento. Mas acho que ele não iria a um pequeno estabelecimento. O anonimato é importante para ele. Ele deve estar fazendo suas compras em grandes mercados. Impessoais.
Sellitto ligou para Comunicações e explicou a Emma o que precisavam.
— Vamos tirar uma foto polarizada do celofane — disse Rhyme a Cooper.
O técnico colocou o minúsculo fragmento em um microscópio polarizado, ajustou uma câmera polaróide à ocular do aparelho, e tirou uma foto. Era uma foto colorida, um arco-íris riscado por listras cinzentas. Rhyme examinou-a. A configuração em si nada lhes dizia, mas poderia ser comparada com outras amostras de celofane para verificar-se se provinha de uma origem comum.
Um pensamento ocorreu a Rhyme: — Lon, chame aqui uma dezena de policiais da Unidade de Operações Especiais. Em acelerado.
— Aqui? — perguntou Sellitto.
— Nós vamos montar juntos uma operação.
— Tem certeza a respeito disso?
— Tenho! Quero eles aqui, agora.
— Tudo bem.
Inclinou a cabeça na direção de Banks, que ligou para Haumann.
— E agora, a respeito daquela outra pista deixada de propósito... os pêlos encontrados por Amélia?
Cooper separou-os com um bastonete e, em seguida, colocou vários deles sob a ocular de um microscópio de contraste de fase. Esse instrumento dispara duas fontes de luz contra um único objeto, o segundo feixe ligeiramente retardado — fora de fase –, de modo que a amostra é simultaneamente iluminada e lança uma sombra.
— Não é humano — disse Cooper. — Isso eu posso dizer agora mesmo.
E são pêlos de proteção, não de baixo.
Pêlos da pelagem de um animal, era o que ele queria dizer.
— Que tipo? De cão?
— De vitela? — sugeriu Banks de novo juvenilmente entusiasmado.
— Verifique as escamas — ordenou Rhyme.
Com essas palavras, ele se referia às escamas microscópicas que formam a bainha externa de um fio de cabelo.
Cooper digitou alguma coisa no computador e, segundos depois, imagens pequenas de bastonetes escamados surgiram na tela.
— Isso, graças a você, Lincoln. Lembra-se do banco de dados?
Na Polícia Técnica, Rhyme organizara uma enorme coleção de microfotografias de diferentes tipos de pêlos.
— Lembro-me, sim, Mel. Mas na última vez em que os vi, eles estavam organizados em cadernos de três furos. Como foi que você conseguiu baixá-
los no computador?
— ScanMaster, claro. JPEG compactado.
Jay-peg. O que isso significava? Em uns poucos anos, a tecnologia o havia deixado para trás, e como. Espantoso...
Enquanto Cooper examinava as imagens, Lincoln Rhyme especulava novamente sobre o que estava pensando durante todo o dia — a pergunta que continuava a emergir na superfície de sua mente: por que as pistas? A criatura humana é imprevisível, mas devemos pensar, antes de qualquer outra coisa, que ela é apenas isso — uma criatura. Um animal que ri, um animal perigoso, inteligente, assustado, mas que sempre age por uma razão — um motivo que fará com que a besta se mova na direção de seus desejos. O cientista Lincoln Rhyme não acreditava em acaso, aleatoriedade, frivolidade. Até mesmo psicopatas obedeciam a uma lógica própria, deformada como fosse, e ele sabia que havia uma razão por que o Elemento Desconhecido 238 só lhes falava dessa maneira cifrada ou codificada.
— Descobri — gritou Cooper. — De roedor. Provavelmente, de rato. E
os pêlos foram raspados.
— Que droga de pista! — exclamou Banks. — Há um milhão de ratos nesta cidade. Essa prova não nos leva a lugar nenhum. Do que adianta ele nos dizer isso?
Sellitto fechou por um momento os olhos e disse alguma coisa entre dentes. Sachs não notou o olhar. Olhou para Rhyme, curiosa. Rhyme ficou surpreso por ela não ter descoberto o que significava a mensagem do seqüestrador, mas nada disse. Não via razão para, por ora, contar aos outros o que significava esse horripilante dado de conhecimento.
A sétima vítima de James Schneider, ou a oitava, caso se queira incluir entre elas a pobre, angelical e pequenina Maggie O'Connor, foi a esposa de um imigrante esforçado, que tinha escolhido uma modesta habitação para sua família nas proximidades da Hester Street, no Lower East Side.
E foi graças à coragem dessa infeliz mulher que os guardas municipais e policiais descobriram a identidade do criminoso. Hanna Goldschmidt era de origem judaico-alemã e altamente considerada na comunidade fechada na qual residiam ela, o marido e os seis filhos (o sétimo falecera no parto).
O colecionador de ossos dirigiu lentamente pela cidade, com todo cuidado para permanecer abaixo do limite de velocidade, embora soubesse perfeitamente que os guardas de trânsito de Nova York não deteriam ninguém por uma infração tão banal como correr demais.
Parou em um sinal e lançou um olhar a outro cartaz das Nações Unidas. Viu faces vazias, sorridentes — tais como as faces sobrenaturais pintadas nas paredes da mansão — e, em seguida, estendeu a vista para mais longe, para a cidade em volta. Ocasionalmente, ficava surpreso quando erguia os olhos e descobria prédios tão maciços, de cornijas de pedra tão altas, de vidro tão liso, de carros tão elegantes, de pessoas tão bem ensaboadas. A cidade que conhecia era escura, baixa, fumacenta, cheirando a suor e a lama.
Cavalos pisavam nos transeuntes, bandos errantes de malfeitores — alguns de não mais de dez ou onze anos — derrubavam a pessoa com um golpe de um porrete ou saco cheio de chumbo na cabeça e corriam para longe, levando o relógio e a carteira de notas... Essa era a cidade do colecionador de ossos.
Às vezes, porém, descobria que estava numa situação como aquela — dirigindo um reluzente Taurus XI, por uma rua lisa, asfaltada, escutando a WNYC, e irritado, como todos os nova-iorquinos, quando perdia um sinal verde, perguntando-se por que, com todos os diabos, as autoridades municipais não permitiam uma curva para a direita num sinal vermelho.
Inclinou a cabeça, escutou várias batidas surdas vindas da mala do carro. Mas havia tanto barulho no ambiente que ninguém ouviria os gritos de Hanna.
A luz mudou.
Claro que é incomum, mesmo nestes tempos avançados, que uma mulher se aventure sozinha pelas ruas da cidade à noite, sem a companhia de um cavalheiro. E, naqueles dias, isso ainda era mais incomum. Ainda assim, nessa noite infeliz, Hanna não teve outra opção senão deixar a casa por um curto período de tempo. O filho mais jovem estava com febre e, enquanto o marido rezava devotamente na sinagoga próxima, saiu para comprar uma compressa e colocá-la na testa em fogo da criança. Ao fechar a porta, disse à filha mais nova: “Feche bem o ferrolho quando eu sair. Vou voltar logo.”
Infelizmente, porém, ela não cumpriria essas palavras. Isso porque, apenas alguns momentos depois, encontrou por acaso James Schneider.
O colecionador de ossos olhou em volta para as ruas maltratadas nesse local. Essa área — perto do local onde tinha enterrado a primeira vítima — era a Hell's Kitchen, no West Side, outrora a cidadela das gangues irlandesas e, nesse momento, cada vez mais preferida por jovens profissionais liberais, agências de publicidade, estúdios de fotógrafos e restaurantes elegantes.
Sentiu o cheiro de esterco e não ficou absolutamente surpreso quando, de repente, um cavalo empinou à sua frente.
Mas, em seguida, notou que o animal não era uma aparição do século XIX, mas que estava atrelado a um dos coches abertos que cruzavam o Central Park, cobrando preços muito século XX. As cocheiras dos animais se situavam nas proximidades.
Riu consigo mesmo. Embora fosse um som oco.
Podemos apenas especular sobre o que aconteceu, porque não houve testemunhas. Mas podemos imaginar com uma clareza até grande demais o horror. O bandido puxou a mulher que esperneava para um beco e golpeou-a com uma adaga, com a intenção cruel não de matá-la, mas de subjugá-la, como era seu costume. Mas tal era a força da alma da boa Sra. Goldschmidt, pensando, como sem dúvida aconteceu, nos seus pintinhos no ninho, que ela surpreendeu o monstro, atacando-o furiosamente — esmurrando-lhe repetidamente o rosto e arrancando-lhe cabelos.
Libertou-se momentaneamente e de sua boca saiu um grito horripilante. O covarde Schneider apunhalou-a várias outras vezes e fugiu.
A corajosa mulher cambaleou até a calçada e perdeu os sentidos, morrendo nos braços de um guarda municipal que tinha ouvido o alarme dado pelos vizinhos.
A história foi contada em um livro, nesse momento no bolso traseiro da calça do colecionador de ossos: Crime in Old New York. Não conseguia explicar a atração irresistível que sentia pelo volume fino. Se tivesse que descrever sua relação com esse livro, seria obrigado a dizer que era viciado nele. Setenta e cinco anos de idade e ainda em um estado notável, uma jóia de encadernação. O livro era seu amuleto e talismã. Ele o havia descoberto em uma das pequenas filiais da biblioteca pública e tinha cometido um dos poucos pequenos crimes de sua vida enfiando-o certo dia no bolso da capa de chuva e saindo do prédio.
Leu centenas de vezes o capítulo sobre Schneider e virtualmente o sabia de cor.
Continuou a dirigir lentamente. Estavam quase chegando.
Quando o pobre e choroso marido de Hanna curvou-se sobre o corpo sem vida, fitou-lhe o rosto — pela última vez antes de ela ser levada à funerária (porque, de acordo com a fé judaica, os mortos devem ser enterrados com a maior rapidez possível). E notou no rosto de porcelana da mulher uma contusão em forma de um curioso emblema. Era um símbolo redondo, parecendo uma lua crescente, e um grupo formado do que pareciam ser estrelas acima da lua.
O guarda municipal disse que aquilo devia ter sido uma marca deixada pelo anel do hediondo assassino quando atacou a pobre vítima. Detetives pediram ajuda de um pintor e ele fez um esboço da marca. (O bom leitor é remetido à prancha XXII.) Visitas foram feitas a joalheiros na cidade, tendo sido obtidos os nomes e endereços de homens que haviam comprado recentemente anéis como aquele. Dois dos cavalheiros que os haviam adquirido estavam acima de qualquer suspeita, sendo um deles diácono em uma igreja, e o outro, um culto professor de universidade renomada. O
terceiro, porém, era um homem do qual os guardas desconfiavam como autor de atividades nefárias, ou seja — um certo James Schneider.
Em seguida ao horrendo assassinato de Hanna Goldschmidt, uma busca pelos antros duvidosos da cidade nenhum sinal revelou do local onde Schneider poderia ser encontrado. Os guardas colocaram cartazes no centro da cidade e nas zonas próximas ao rio, contendo a descrição do bandido, mas ele não pôde ser preso — uma verdadeira tragédia, para sermos exatos, à luz da carnificina que logo depois aconteceria na cidade às suas mãos vis.
As ruas estavam desimpedidas. O colecionador de ossos entrou no beco. Abriu a porta do armazém e desceu uma rampa de madeira até um longo túnel.
Depois de certificar-se de que o lugar estava deserto, foi até a traseira do carro. Abriu a mala e puxou Hanna para fora. Ela era pelancuda, gorda, como um saco de adubo mole. Ficou novamente zangado e levou-a com violência por outro largo túnel. O tráfego da West Side Highway corria célere por cima da cabeça deles. Ouviu-a espirrar e ia justamente estender a mão para afrouxar a mordaça, quando lhe apalpou o ombro e ela desmaiou.
Arquejando com o esforço de carregá-la, soltou-a no chão do túnel e afrouxou a mordaça. O ar penetrou debilmente pelas narinas da mulher. Teria ela simplesmente desmaiado? Verificou os batimentos cardíacos. O coração parecia estar funcionando normalmente.
Cortou a linha de varal de roupa que lhe prendia os pés, inclinou-se para a frente e murmurou: — Hanna, kommen Sie mit mir miti, Hanna Goldschmidt...
— Nein — murmurou ela e a voz morreu no silêncio.
Ele se aproximou mais e esbofeteou-a de leve.
— Hanna, você tem que vir comigo.
— Mein name ist nicht Hanna — gritou ela. E deu-lhe um pontapé bem no queixo.
Uma explosão de luz amarela relampejou através da cabeça do criminoso e ele saltou quase um metro para o lado, tentando manter o equilíbrio. Hanna levantou-se de um salto c correu cegamente pelo corredor escuro. Mas ele veio rápido em seu encalço. Pegou-a antes que tivesse corrido dez metros. Ela caiu com força no chão, ele também, grunhindo ao perder o fôlego.
O colecionador de ossos ficou deitado sobre um lado do corpo durante um minuto, sentindo forte dor, lutando para respirar, agarrando-lhe a camiseta, enquanto ela se debatia. Deitada de costas, ainda algemada, a moça usou a única arma que tinha — um dos pés, que ergueu no ar e desceu com força na mão do homem. Uma pontada de dor percorreu o corpo dele e a luva voou para longe. A moça ergueu novamente a perna forte e só a sua má pontaria salvou-o do salto do sapato, que bateu com tanta força no chão que teria quebrado ossos, se acertasse o alvo.
— So nicht! — exclamou ele furioso. Agarrou-a pelo pescoço com a mão nua e apertou até que ela estrebuchou, gemeu e parou de estrebuchar e gemer.
Sacudiu-se várias vezes e ficou imóvel.
Ao tomar-lhe a pulsação, o coração batia muito de leve. Nada de macetes desta vez. Pegou a luva no chão, calçou-a e arrastou-a pelo túnel até o poste. Mais uma vez, amarrou-lhe os pés e pôs um novo pedaço de fita colante na boca. No momento em que ela recuperou os sentidos, as mãos dele exploravam-lhe o corpo. Ela arquejou no início e procurou afastar-se, enquanto ele lhe acariciava a carne atrás da orelha. O cotovelo, o queixo. Não havia muitos outros lugares onde quisesse tocá-la. Ela era tão acolchoada... e isso o repugnava.
Ainda assim, embaixo da pele... Segurou-lhe com força a perna. Os grandes olhos dela se esbugalharam quando ele meteu a mão no bolso e o canivete de mola apareceu. Sem um momento de hesitação, ele cortou-lhe a pele, descendo até o osso branco-amarelado. Ela gritou através da fita, um uivo de louca, e escoiceou com toda força. Está gostando disso, Hanna? A moça soluçou e gemeu alto. Por isso, ele teve que baixar a orelha para a perna da moça a fim de escutar o som delicioso da ponta da lâmina raspar o osso de um lado para o outro. Skrisss.
Em seguida, pegou-lhe o braço.
Seus olhos se prenderam durante um momento e ela sacudiu pateticamente a cabeça, implorando em silêncio. O olhar dele desceu para o antebraço gordo e, mais uma vez, o corte foi profundo. O corpo da moça ficou rígido com a dor. Outro grito selvagem, mudo. Mais uma vez, ele baixou a cabeça, como se fosse um músico, para ouvir o som da lâmina raspando o osso cúbito. Skrissss, skrissss... Um momento depois, ele se deu conta de que a moça tinha desmaiado.
Finalmente, saiu de cima dela e voltou para o carro. Plantou as pistas seguintes, pegou uma vassoura na mala do carro e varreu com todo cuidado as pegadas. Subiu a rampa, estacionou, deixou o motor em funcionamento e desceu mais uma vez, varrendo com todo cuidado as marcas dos pneus.
Parou e olhou de volta para o túnel embaixo. Olhando para ela, simplesmente olhando. De repente, um raro sorriso passou pelos lábios do colecionador de ossos. Ficou surpreso ao notar que o primeiro dos convidados já tinha aparecido. Uma dúzia de pares de minúsculos olhos vermelhos, duas dúzias, em seguida três dúzias... Parecia que eles estavam olhando curiosos para a carne do corpo de Hanna... e com o que poderia ser fome. Mas isso podia ser imaginação dele. Mas Deus sabia, era uma imagem mais do que vívida.
CAPÍTULO XII
— Mel, examine as roupas da Colfax. Amélia, você poderia ajudá-lo?
Ela fez outra gentil inclinação de cabeça, o tipo usado na sociedade educada. Rhyme reconheceu estar realmente furioso com ela.
Seguindo instruções do técnico, calçou luvas de látex, abriu com cuidado as roupas e passou uma escova de crina pelo tecido, tudo isso em cima de grandes folhas limpas de papel de imprensa. Caíram pequenos fragmentos. Cooper recolheu-os com a fita colante e examinou-os no microscópio composto.
— Não há muita coisa aqui — comunicou. — O vapor eliminou a maior parte dos vestígios. Estou vendo um pouco de solo. Não o suficiente para fazer um D-G. Espere... Excelente. Peguei uns dois fragmentos de fibra. Olhe para eles...
— Ora, eu não posso — retorquiu Rhyme, irado.
— Azul-marinho, uma mistura de acrílico e lã, acho. Não é grosso o suficiente para ser material de tapete e não é fio torcido. De modo que é de pano.
— Neste calor, ele não vai usar meias grossas ou suéter. Máscara de esquiador?
— Essa seria minha aposta — disse Cooper.
Rhyme pensou por um momento.
— De modo que ele está sendo sério ao nos dar uma oportunidade de salvá-las. Se estivesse decidido a matá-las, pouca diferença faria se elas o vissem ou não.
Sellitto entrou na conversa: — Isso significa também que o canalha pensa que pode safar-se. Não pensa em suicídio. Poderá nos dar algum poder de barganha, se tiver reféns quando o localizarmos.
— Gosto desse seu otimismo, Lon — disse Rhyme.
Thom atendeu nesse momento a campainha da porta e um momento depois Jim Polling subiu a escada, parecendo desgrenhado e preocupado.
Bem, ir de uma para outra de duas entrevistas à imprensa, no gabinete do prefeito e no edifício federal, fazia isso com um cara.
— É uma pena a respeito da truta — disselhe Sellitto. Em seguida, explicou a Rhyme: — Jimmy é um desses pescadores de verdade. Põe no anzol suas próprias iscas e tudo mais. Quanto a mim, saio num barco com um grupo e com caixas de latinhas de cerveja e me sinto feliz.
— Vamos pegar esse escroto e depois nos preocuparemos com o peixe — retrucou Polling, servindo-se do café que Thom tinha deixado no peitoril da janela.
Olhou para fora e pestanejou, surpreso, ao ver duas grandes aves fitando-o. Virou-se para Rhyme e explicou que, por causa do sequestro, tinha sido obrigado a adiar a pescaria em Vermont. Rhyme jamais havia pescado -
nunca teve tempo nem inclinação para hobbies — mas deu-se conta de que sentia inveja de Polling. A serenidade da pescaria agradava-o. Era um esporte que se podia praticar sozinho. Esportes de paralíticos tinham que ser de outro tipo. Competitivos. Provando coisas ao mundo... e a si mesmos. Basquete, tênis, maratona em cadeira de rodas. Rhyme resolveu que, se fosse praticar um esporte, seria pesca. Embora jogar a linha com um único dedo estivesse provavelmente além da tecnologia moderna.
— A mídia deu a ele o título de seqüestrador em série — disse Polling.
Se a carapuça der nele, pensou Rhyme.
— E o prefeito está ficando maluco. Quer chamar os federais. Convenci o chefe a resistir a isso. Mas não podemos perder outra vítima.
— Faremos o melhor que pudermos — retrucou causticamente Rhyme.
Polling tomou um gole do café preto e aproximou-se mais da cama.
— Você está bem, Lincoln?
— Ótimo — respondeu Rhyme.
Polling fitou-o por mais um momento e, em seguida, inclinou a cabeça para Sellitto.
— Passe as informações. Vamos ter outra entrevista coletiva dentro de meia hora. Assistiu à última? Ouviu o que o repórter perguntou? O que achávamos da maneira como a família da vítima se sentia por ela ter sido cozida até a morte?
Banks sacudiu a cabeça.
— Cara...
— Eu quase derrubei o filho da puta com um murro — disse Polling.
Três anos e meio antes, lembrou-se Rhyme, durante a investigação do matador de policiais, o capitão havia quebrado a câmera de uma equipe de TV, quando o repórter perguntou se Polling estava sendo agressivo demais na investigação simplesmente porque o suspeito, Dan Shepherd, era membro da força policial.
Polling e Sellitto retiraram-se para um canto da sala e o detetive o pôs a par das últimas novidades. Quando ele desceu a escada, Rhyme notou que o capitão não estava tão animado quanto antes.
— Muito bem — disse Cooper. — Temos um cabelo. Estava no bolso dela.
— O cabelo inteiro? — perguntou Rhyme sem muita esperança e não ficou surpreso quando Cooper respondeu: — Sinto muito. Nada de bulbo capilar.
Sem o bulbo, cabelo não é prova individuada, mas meramente prova de um tipo de classe. Não se pode fazer com ele um teste de DNA e ligá-lo a uma pessoa específica. Ainda assim, tem bom valor probatório. O famoso estudo da Polícia Montada do Canadá, realizado anos antes, concluíra que se um fio de cabelo encontrado em uma cena de crime corresponde ao do suspeito, as probabilidades são de um para 4.500 de que foi ele quem o deixou ali. O problema com o cabelo, porém, é que não se pode deduzir muita coisa sobre a pessoa a quem pertencia. É quase impossível determinar o sexo, e a raça tampouco pode ser estabelecida com confiança. A idade pode ser calculada apenas no caso de cabelo de bebês. A cor engana por causa de grandes variações na pigmentação e do uso de tinturas cosméticas e, uma vez que todas as pessoas perdem dezenas de fios por dia, não se pode nem dizer que o suspeito está começando a ficar careca.
— Compare-o com os cabelos da vítima. Faça uma contagem de escamas e uma comparação de pigmentação da medula — ordenou Rhyme.
Um momento depois, Cooper levantou a vista do microscópio.
— Não é dela, da moça Colfax.
— Descrição? — pediu Rhyme.
— Castanho-claro. Nada de enroladinho, de modo que eu diria que não é negróide. A pigmentação sugere que tampouco é mongolóide.
— Neste caso, é branco — concluiu Rhyme, indicando com a cabeça a tabela na parede. — Confirma o que a testemunha disse. Cabelo da cabeça ou do corpo?
— Há pouca variação de diâmetro e uma distribuição uniforme da pigmentação. E cabelo de cabeça.
— Comprimento?
— Três centímetros.
Thom perguntou se podia acrescentar ao perfil que o seqüestrador tinha cabelos castanhos. Rhyme respondeu que não.
— Vamos esperar por corroboração. Simplesmente escreva que achamos que ele usa uma máscara de esquiador, azul-marinho. Raspas de unhas, Mel?
Cooper examinou os vestígios, mas nada encontrou de útil.
— A impressão digital que você encontrou. A da parede. Vamos dar uma olhada nela. Você poderia mostrá-la, Amélia?
Sachs hesitou por um momento e, em seguida, lhe levou a foto polaróide.
— O seu monstro — disse Rhyme.
Era uma palma de mão grande e deformada, na verdade, grotesca, não com os redemoinhos e bifurcações elegantes de cristas de atrito, mas uma configuração confusa de linhas minúsculas.
— É uma foto maravilhosa... Você é uma virtual Edward Weston, Amélia. Mas, infelizmente, não é uma mão. Isso aí não são cristas. É uma luva. De couro. Velha. Mão direita, Mel?
O técnico confirmou com um aceno de cabeça.
— Thom, escreva que ele tem um velho par de luvas. — Rhyme voltou-se para os outros presentes: — Estamos começando a reunir algumas idéias sobre ele. Ele não vai deixar suas impressões digitais na cena do crime. Mas está deixando impressões de luvas. Se encontrarmos a luva com ele, ainda poderemos colocá-lo na cena do crime. Ele é sabido. Mas não brilhante.
— E o que é que criminosos brilhantes usam? — perguntou Sachs.
— Camurça forrada com algodão — explicou Rhyme. Em seguida, perguntou: — Onde está o filtro? Do aspirador de pó.
O técnico esvaziou o filtro em forma de cone — parecido com um coador de café — sobre uma folha de papel branco.
Prova vestigial...
Promotores públicos, repórteres e jurados adoram pistas óbvias.
Luvas sangrentas, facas, armas recém-disparadas, cartas de amor, sêmen e impressões digitais. A prova favorita de Lincoln Rhyme, porém, era a vestigial — poeira e efluentes nas cenas de crime, tão facilmente esquecidas por perpetradores.
O aspirador, porém, nada recolhera de útil.
— Muito bem — disse Rhyme -, vamos em frente. Agora, uma olhada nas algemas.
Sachs enrijeceu-se quando Cooper abriu o saco de plástico e deixou as algemas caírem em cima de uma folha de papel de imprensa. Como previra Rhyme, era mínima a quantidade de sangue. O médico de plantão do serviço do legista tinha feito as honras da casa com uma serra, depois que um procurador do Departamento de Polícia de Nova York enviou uma autorização ao Instituto Médico Legal.
Cooper examinou com todo cuidado as algemas.
— Boyd & Keller. O fundo da linha. Nenhum número de série. -
Borrifou o aço cromado com DFO e acendeu a PoliLight. — Nenhuma impressão digital, apenas uma mancha deixada pela luva.
— Vamos abri-las.
Cooper pegou uma chave genérica de algemas para abri-las. Usando uma seringa com proteção, jogou ar dentro do mecanismo.
— Você ainda está furiosa comigo, Amélia — disse Rhyme. — Sobre as mãos.
A pergunta pegou-a de guarda baixa.
— Eu não fiquei furiosa — respondeu ela, após um momento. — Achei que aquilo era antiprofissional. O que você sugeriu.
— Você sabe quem foi Edmond Locard?
Amélia sacudiu a cabeça.
— Um francês. Nascido em 1877. Ele fundou o Instituto de Criminalística da Universidade de Lyon. E estabeleceu a única regra que me orientou enquanto dirigi a Polícia Técnica. O Princípio da Troca, de Locard.
Ele pensava que, em todas as ocasiões em que dois seres humanos entram em contato, algo de um é trocado com algo do outro, e vice-versa. Talvez poeira, sangue, células da pele, sujeira, fibras, resíduos metálicos. Pode ser difícil descobrir exatamente o que foi trocado e ainda mais difícil descobrir o que isso significa. Mas uma troca de fato ocorre... e por causa dela podemos prender nossos elementos desconhecidos.
Esse fragmento de história não a interessou nem um pouco.
— Você tem sorte — disse Mel Cooper a Sachs, sem levantar a vista. – Ele ia pedir a você e ao paramédico que fizessem uma autópsia no local e que examinassem o conteúdo do estômago dela.
— Isso não teria sido útil — disse Rhyme, evitando os olhos de Amélia.
— Eu o convenci a não pedir isso — continuou Cooper.
— Autópsia — repetiu Sachs, suspirando, como se nada que viesse da parte de Rhyme pudesse surpreendê-la.
Ora, ela nem está aqui, pensou Rhyme zangado. A mente dela está a milhares de quilômetros de distância.
— Ah! — exclamou Cooper. — Encontrei alguma coisa. Acho que é um pedaço da luva.
Cooper montou um pontinho na lâmina do microscópio composto. E examinou-o.
— Couro. Cor avermelhada. Polido num dos lados.
— Vermelha. Isso é bom — disse Sellitto. E explicou para Sachs: – Quanto mais esquisitas as roupas deles, mais fácil descobrir os perpetradores.
Ninguém ensina isso na Academia, pode apostar. Em alguma ocasião, vou lhe contar como foi que prendemos Jimmy Plaid, que era da turma de Gambino.
Lembra-se disso, Jerry?
— A gente podia ver aquelas calças a quilômetros de distância -
lembrou-se o detetive mais jovem.
— O couro está esturricado — continuou Cooper. — Não há muita coisa na textura. Você tinha razão quando disse que as luvas eram velhas.
— De que tipo de animal?
— Eu diria que de pele de cabrito. Alta qualidade.
— Se fossem novas, isso poderia significar que ele é rico — resmungou Rhyme. — Mas já que são velhas, ele pode tê-las achado na rua ou as comprado de segunda mão. Nada de deduções rápidas a partir dos acessórios usados por 238, ao que parece. Muito bem. Thom, adicione simplesmente ao perfil que as luvas são de pele de cabrito, avermelhadas. O que mais temos?
— Ele usa loção após barba — lembrou-lhe Sachs.
— Eu havia esquecido isso. Talvez para disfarçar outro cheiro.
Elementos desconhecidos fazem isso, às vezes. Escreva isso também, Thom.
Repetindo, como era o cheiro, Amélia? Você o descreveu.
— Seco. Como gim.
— O que me diz sobre a corda de varal de roupa? — perguntou Rhyme.
Cooper examinou-a.
— Já vi isso antes. Plástico. Várias dezenas de fios internos, compostos de seis a dez tipos diferentes de plástico e um... não, dois... filamentos metálicos.
— Eu quero o nome do fabricante e a origem.
Cooper sacudiu a cabeça.
— Impossível. Genérico demais.
— Droga! — murmurou Rhyme. — E o nó?
— Bem, isso é estranho. Muito eficiente. Está vendo como enlaça duas vezes? PVC é a corda mais difícil de dar nó e este nó pára aqui.
— A Polícia Técnica tem lá no centro um arquivo de nós?
— Não.
Imperdoável, pensou Rhyme.
— Senhor?
Rhyme virou-se para Banks.
— Eu velejo um pouco...
— Baseado em Westport — sugeriu Rhyme.
— Bem, para dizer a verdade, sim. Como foi que soube?
Se houvesse um teste de Polícia Técnica para localização da origem de Jerry Banks, o resultado seria positivo no tocante a Connecticut.
— Um palpite de sorte — Não é um nó de marinheiro. Nunca vi um desses.
— É bom saber isso. Pendure-o ali. — Rhyme, com um movimento de cabeça, indicou a parede, ao lado da foto polaróide do papel de celofane e o pôster de Monet. — Voltaremos a ele mais tarde.
A campainha da porta tocou nesse momento e Thom desceu a escada para atender. Rhyme passou por um mau momento, pensando que talvez fosse o Dr. Berger, voltando para lhe dizer que não estava mais interessado no “projeto” de ambos.
O som pesado das botas, porém, disselhe quem era que estava chegando.
Os policiais da Unidade de Operações Especiais, todos eles grandalhões, todos de fisionomia séria, usando uniforme de combate, entraram educadamente na sala e inclinaram a cabeça para Sellitto e Banks.
Todos eles eram homens de ação e Rhyme apostaria que, por trás de dez olhos imóveis, havia dez reações muito desfavoráveis à vista de um homem deitado para sempre de costas.
— Cavalheiros, os senhores ouviram falar do sequestro na noite passada e da morte da vítima esta tarde. — E continuou, após ouvir o murmúrio de assentimento: — Nosso elemento desconhecido tem em seu poder outra vítima.
Temos uma pista no caso e preciso que vocês procurem locais na cidade e consigam provas. Imediata e simultaneamente. Um homem, uma localização.
— O senhor quer dizer — um policial bigodudo perguntou, em dúvida –, nada de apoio tático?
— Os senhores não vão precisar disso.
— Com todo devido respeito, senhor, não gosto de entrar em qualquer situação tática sem reforço. De um parceiro, pelo menos.
— Não acredito que vá haver qualquer fogo de artifício. Os alvos são as maiores cadeias de mercados da cidade.
— Mercados?
— Não todos. Apenas um de cada cadeia. J&G's, ShopRite, For Warehouse...
— O que exatamente vamos fazer?
— Comprar canelas de vitela.
— O quê?!
— Um pacote em cada mercado. Lamento dizer que vou ter que lhes pedir que paguem a compra de seu próprio bolso, cavalheiros. Mas a Prefeitura os reembolsará. Oh, e precisamos delas com urgência.
Ela estava deitada de lado, imóvel.
Tendo acostumado os olhos à escuridão do velho túnel, podia ver os pequenos sacanas aproximando-se mais. Mantinha os olhos em um, em especial.
A perna lhe doía horrivelmente, embora a maior dor fosse no braço, onde ele cortara fundo a pele. Como estava algemada com as mãos atrás das costas, não podia ver o ferimento, não sabia o quanto havia sangrado. Mas devia ter perdido muito sangue. Estava muito tonta e podia sentir o líquido pegajoso escorrendo pelos braços e lados do corpo.
Som de atrito — garras afiadas como agulhas no concreto, corcovas cinzento-pardacento correndo pelas sombras. Os ratos continuavam a se aproximar lentamente. Devia haver uma centena deles.
Ela se obrigou a ficar inteiramente imóvel e manteve a vista no grande rato preto. Schwarzie, foi o nome que lhe deu. Ele estava à frente dos outros, movendo-se para a frente e para trás, estudando-a.
Aos dezenove anos de idade, Monelle Gerger já tinha feito duas viagens em volta do mundo. Pegando carona, fora até Sri Lanka, Camboja e Paquistão. Passou pelo Nebraska, onde as mulheres olharam fixamente e com desprezo para os anéis em torno das sobrancelhas e seios sem sutiã. Pelo Irã, onde os homens olhavam para seus braços como se fossem cães no cio.
Dormiu em parques públicos na Cidade da Guatemala e passou três dias com as forças rebeldes na Nicarágua, após perder-se a caminho de um santuário de vida silvestre.
Mas nunca teve tanto medo quanto naquele momento.
Mein Gott.
Mas o que mais a assustava era o que estava prestes a fazer consigo mesma.
Um rato correu perto dela, o corpo marrom adiantando-se rápido, recuando, aproximando-se mais alguns centímetros. Os ratos estavam com medo, pensou ela, porque se pareciam mais com répteis do que com roedores.
Nariz e cauda de serpente. E aqueles horríveis olhos vermelhos.
Atrás deles viu Schwarzie, do tamanho de um gato pequeno. Ele se levantou sobre as ancas e olhou para aquilo que o fascinava. Vigiando.
Esperando.
Nesse momento, o pequenino atacou. Correndo a toda com os pés finos como agulhas, ignorando-lhe o grito abafado, ele veio rápido e direto.
Rápido como uma barata, arrancou um pedacinho de sua perna cortada. A mordida doeu como se fosse fogo. Monelle soltou um uivo — de dor, sim, mas também de raiva. Eu não quero porra nenhuma com você! Bateu com toda força do calcanhar nas costas do rato, ouvindo um som surdo de coisa esmagada. O rato estremeceu uma vez e ficou imóvel.
Outro correu para seu pescoço, arrancou um pedaço e saltou para trás, fitando-a, torcendo o nariz como se estivesse passando a língua em volta da pequena boca, saboreando o petisco.
Dieser Schmerz...
Estremeceu com a dor lancinante que se irradiava da mordida. Dieser Schmerz! A dor! Monelle obrigou-se a ficar novamente imóvel.
O pequenino atacante preparou-se para outra corrida, mas, de repente, deu uma volta e se afastou. Monelle viu por quê. Schwarzie finalmente assumira a frente do grupo. Tinha vindo buscar o que queria.
Ótimo, ótimo.
Era por ele que ela estava esperando. Porque ele não parecera interessado em seu sangue ou carne. Chegara bem perto vinte minutos antes, fascinado pela fita prateada que lhe tapava a boca.
O rato menor correu para dentro do grupo, enquanto Schwarzie vinha devagar para a frente, seus pés obscenamente minúsculos. Em seguida, tornou a avançar. Um metro e oitenta, um metro e cinquenta.
Chegou a um metro.
Monelle permaneceu absolutamente imóvel, respirando tão superficialmente quanto ousava, receando que uma inalação mais profunda o assustasse.
Schwarzie parou. Adiantou-se novamente. E parou. A sessenta centímetros de sua cabeça.
Não mova nenhum músculo.
O lombo dele estava encurvado alto e os beiços continuavam a retrair-se sobre os dentes marrons e amarelos. Ele se moveu mais trinta centímetros, parou, os olhos virando rápidos de um lado para o outro. Sentou-se, esfregou uma pata na outra e adiantou-se outra vez.
Monelle Gerger fingiu-se de morta.
Mais quinze centímetros. Vorwarts!
Venha!
Ele chegou a seu rosto. Monelle sentiu cheiro de lixo e óleo no corpo do rato, de fezes, de carne podre. Ele farejou e ela sentiu a coceira insuportável dos bigodes do rato no nariz quando os pequenos dentes emergiram da boca e começaram a roer a fita.
Durante cinco minutos, ele roeu em volta da boca. Outro rato aproximou-se e fincou os dentes em seu tornozelo. Ela fechou os olhos para a dor e fez força para ignorá-la. Schwarzie expulsou-o dali e em seguida ficou em pé nas sombras, estudando-a.
Vorwãrts, Schwarzie! Venha!
Lentamente, ele veio em pés macios. Com lágrimas lhe escorrendo pelo rosto, Monelle relutantemente baixou a boca para ele.
Roendo, roendo...
Venha!
Monelle sentiu a respiração imunda, quente, na boca, quando ele rompeu o plástico e começou a rasgar e puxar grandes pedaços do plástico brilhante. O rato puxou os pedaços da boca e apertou-os gulosamente com as garras dos pés dianteiros.
Já é suficiente?, pensou ela.
Teria que ser. Ela não podia aguentar mais.
Devagar, levantou a cabeça, um milímetro de cada vez. Schwarzie pestanejou e inclinou-se curioso para a frente.
Monelle abriu a boca e ouviu o som maravilhoso da fita se rasgando.
Sugou profundamente ar para os pulmões. Podia respirar de novo!
E podia gritar, pedindo socorro.
— Bitte, helfen Sie mir! Por favor, me ajudem!
Schwarzie recuou, espantado com o uivo desarticulado, deixando cair a preciosa fita prateada. Mas não foi muito longe. Parou, voltou-se e levantou-se sobre as ancas gordas.
Ignorando-lhe o corpo preto, encurvado, ela chutou o pilar onde estava amarrada. Poeira e sujeira desceram flutuando como se fossem neve, mas a madeira resistiu. Gritou até sentir a garganta em fogo.
— Bitte. Ajudem-me!
O barulho pegajoso do tráfego engoliu o som.
Silêncio por um momento. Em seguida, Schwarzie aproximou-se dela novamente. E não estava sozinho dessa vez. O bando repugnante o acompanhou indo e vindo, nervosos. Mas atraídos irresistivelmente pelo cheiro tentador de seu sangue.
Osso e madeira, madeira e osso.
— Mel, o que é que temos aí?
Rhyme indicava com a cabeça o computador ligado ao cromatógrafo-espectrógrafo. Cooper submetera a novo teste a areia encontrada na lasca de madeira.
— Continua rica em nitrogênio. Não combina com as tabelas.
Três testes separados e os mesmos resultados. Um exame na unidade mostrou que ela estava funcionando perfeitamente. Cooper pensou um pouco e disse: — Esse excesso de nitrogênio... talvez de um fabricante de armas ou munições.
— Isso seria Connecticut, não Manhattan.
Rhyme olhou para o relógio. Seis horas e trinta minutos. Como o tempo corria rapidamente naquele dia. E como tinha corrido lentamente nos três últimos anos e meio. Sentia-se como se tivesse ficado acordado durante dias e dias.
O jovem detetive examinou atentamente o mapa de Manhattan, afastando para um lado a vértebra esbranquiçada que tinha caído mais cedo no chão.
O disco foi deixado ali pelo especialista de Rhyme em recuperação, Peter Taylor. Ele foi um dos primeiros que consultou. O médico examinou-o como bom conhecedor, recostou-se em seguida na cadeira de vime e tirou alguma coisa do bolso.
— Hora de mostrar e dizer — começou o médico.
Rhyme olhou para a mão aberta.
— Esta aqui é a quarta vértebra cervical. Exatamente igual à existente em seu pescoço. A que se partiu. Está vendo essas pequenas caudas na extremidade? — O médico revirou-a várias vezes durante um momento. — No que é que você pensa quando a vê?
Rhyme respeitava-o — um homem que não o tratava como se ele fosse uma criança, um débil mental ou um grande chato –, mas naquele dia, como não estava com vontade de fazer o jogo de inspiração, não respondeu.
Taylor, ainda assim, continuou: — Alguns de meus pacientes pensam que ela se parece com uma arraia.
Outros dizem que lembra uma nave espacial. Ou um avião. Ou um caminhão.
Sempre que faço a pergunta, as pessoas geralmente a comparam com alguma coisa grande. Ninguém jamais diz: “Oh, com um pedaço de cálcio ou magnésio.” Entenda, elas não gostam da idéia de que alguma coisa tão insignificante transformou sua vida em um verdadeiro inferno.
Rhyme voltou a olhar ceticamente para o visitante, mas o tranquilo médico de cabelos grisalhos era um veterano no tratamento de paraplégicos e disse bondosamente: — Não me desligue, Lincoln.
Taylor tinha aproximado mais o disco do rosto de Rhyme.
— Você está pensando que é injusto que esta coisinha lhe cause tanto sofrimento. Mas esqueça isso. Esqueça. Quero que você se lembre como ela era, antes do acidente. O bom e o ruim na sua vida. Felicidade, tristeza... Você pode sentir isso novamente. — O rosto do médico se tornara imóvel. — Mas, para ser franco, tudo que eu vejo agora é alguém que desistiu de lutar.
Taylor deixou a vértebra na mesinha-de-cabeceira. Por acaso, ao que parecia. Mas Rhyme veio a pensar depois que aquele ato tinha sido deliberado.
Nos últimos meses, enquanto tentava decidir se iria se suicidar ou não, olhou fixamente para o pequeno disco. E ele tinha se tornado um emblema do argumento de Taylor — um argumento em favor da vida. Mas, no fim, esse lado perdeu. As palavras do médico, por mais válidas que fossem, não podiam superar o peso da dor, da exaustão e do sofrimento que Lincoln Rhyme sentia, dia após dia.
Nesse momento, desviou a vista do disco... olhou para Amélia Sachs, e disse: — Quero que você pense novamente na cena do crime.
— Eu lhe contei tudo que vi.
— Não o que você viu. Quero saber o que foi que você sentiu.
Rhyme lembrou-se das milhares de vezes em que tinha processado uma cena de crime. Às vezes, acontecia um milagre. Olhava em volta quando, de algum lugar, surgiam idéias sobre o elemento desconhecido. Não podia explicar como isso acontecia. Os behavioristas falavam em elaboração de perfil como se o tivessem inventado. Os criminalistas, porém, vinham fazendo isso há centenas de anos. Percorra a grade, ande pelo lugar onde ele andou, descubra o que ele deixou no local e o que ele levou — e você sairá da cena do crime com um perfil tão nítido quanto um retrato.
— Diga-me — insistiu ele. — Como foi que você se sentiu?
— Inquieta. Tensa. — Amélia encolheu os ombros. — Não sei. Realmente, não sei. Lamento.
Se tivesse podido se mover, Rhyme teria saltado da cama, agarrado Amélia pelos ombros e lhe dado umas boas sacudidas. E gritado: Mas você sabe do que é que estou falando! Sei que você sabe. Por que você não colabora comigo?... Por que está me ignorando?
Nesse momento, compreendeu uma coisa... Que ela estava lá, no porão cheio de vapor. Olhando para o corpo arruinado de T.J. Sentindo aquele cheiro nauseante. Viu isso na maneira como o polegar de Amélia soltou uma cutícula sangrenta, viu isso na maneira como ela mantinha a polidez da terra de ninguém entre os dois. Ela detestou ficar naquele porão nojento e odiava-o por lhe lembrar que uma parte sua ainda continuava lá.
— Você está cruzando o porão — disse ele.
— Realmente não acredito que possa ajudar em mais alguma coisa.
— Vamos continuar o jogo — disse ele, lutando para controlar a impaciência. Sorriu. — Diga o que foi que você pensou.
O rosto da moça tornou-se imóvel e ela respondeu: — São... apenas pensamentos. Impressões que todos têm.
— Mas você estava lá. Todos não estavam. Diga.
— Era assustador ou alguma coisa assim...
Ela pareceu lamentar a palavra desajeitada.
Antiprofissionl.
— Eu senti...
— Alguém espionando-a? — perguntou ele.
As palavras dele surpreenderam-na.
— Sim, foi exatamente isso.
O próprio Rhyme sentira isso antes. Muitas vezes. Havia sentido isso três anos e meio antes, curvado sobre o corpo em decomposição do jovem policial, tirando uma fibra do uniforme. Teve certeza de que havia alguém por perto. Mas não havia ninguém — apenas uma grande viga de carvalho que escolheu aquele exato momento para soltar-se com um chiado, partir-se e descer sobre o ponto onde se localizava sua quarta vértebra cervical, com todo o peso da terra.
— O que foi que você pensou, Amélia?
Ela não resistia mais. Os lábios estavam relaxados, os olhos se dirigiram para o pôster enrolado de Nighthawks — pessoas sentadas para jantar, solitárias, ou se sentindo contentes por estarem sozinhas. Respondeu: — Eu me lembro de ter dito a mim mesma: “Cara, que lugar mais velho.” Era como uma das fotografias que a gente vê de fábricas e coisas assim do início do século. E eu...
— Espere — cortou-a Rhyme. — Vamos pensar nisso. Velhas...
Seus olhos moveram-se para o mapa do Levantamento Randel.
Antes, ele tinha comentado o interesse do elemento desconhecido pela Nova York histórica. E o prédio onde T.J. Colfax morreu era velho, também. E também o túnel da estrada de ferro onde haviam encontrado o primeiro corpo. Os trens da New York Central costumeiramente corriam pela superfície. Mas tinha havido tantas mortes de gente cruzando a linha que a Avenida Onze ganhou o nome de Avenida da Morte e a estrada foi finalmente obrigada a desviar as linhas para o subsolo.
— E a Pearl Street — disse Rhyme pensativo para si mesmo — era uma importante linha auxiliar na velha Nova York. Por que ele está tão interessado em coisas antigas? — Voltou-se para Sellitto e perguntou: — Terry Dobyns ainda trabalha para nós?
— O psiquiatra? Ainda. Trabalhamos juntos em um caso no ano passado. Falando nisso, ele perguntou por você. Disse que ligou umas duas vezes e que você nunca...
— Certo, certo, certo — interrompeu-o Rhyme. — Chame-o aqui. Quero saber o que ele pensa sobre os hábitos mentais do 238. Agora, Amélia, o que foi mais que você pensou?
Ela encolheu os ombros, mas com uma indiferença grande demais.
— Em nada.
— Nada?
E onde era que ela escondia seus sentimentos?, especulou ele, lembrando-se de alguma coisa que Blaine dissera certa vez, vendo uma mulher deslumbrante descendo a Quinta Avenida: Quanto mais belo o pacote, mais difícil desembrulhado.
— Não sei... Tudo bem, lembro-me de uma coisa em que pensei. Mas ela não significa coisa alguma. Não é nada como se fosse uma observação profissional.
Profissional...
É uma merda quando você estabelece seus próprios padrões, não é, Amélia?
— Vamos ouvi-la.
— Quando você estava querendo que eu fingisse que era ele? E quando eu descobri onde ele ficou para olhar para ela?
— Continue.
— Bem, eu pensei... — Durante um momento, pareceu que lágrimas ameaçavam encher seus belos olhos. Eles eram de um azul iridescente, notou Rhyme. Mas, no mesmo instante, ela se controlou. — Eu me perguntei se ela teria um cachorro. A moça, a Colfax.
— Um cachorro? Por que pensou nisso?
Amélia hesitou por um momento e, em seguida, respondeu: — Uma amiga minha... há alguns anos. Estávamos combinando comprar um cachorro quando, bem, quando fôssemos morar juntas. Eu sempre quis ter um cachorro. Um collie. Foi engraçado. Essa era a raça que minha amiga também queria. Mesmo antes de a gente se conhecer.
— Um cachorro. — O coração de Rhyme bateu como besouros se chocando em uma porta de tela no verão. — E...?
— Eu pensei que aquela mulher...
— T.J. — disse Rhyme.
— T.J. — continuou Sachs. — Simplesmente pensei como aquilo era triste... se tivesse um bicho de estimação, ela não voltaria mais para casa e para ele e não brincaria mais com ele. Não pensei em namorados ou marido dela.
Pensei em bichos de estimação.
— Mas por que esse pensamento? Cachorros, bichos de estimação? Por quê?
— Não sei.
Silêncio.
Finalmente, Amélia disse: — Acho que, vendo-a amarrada ali... E pensei nele ali, de pé, vigiando-a.
Simplesmente ali, entre os tanques de óleo. Era como se estivesse observando um animal numa gaiola.
Rhyme olhou para as ondas sinoidais na tela do computador do GC-MS.
Animais... Nitrogênio...
— Merda! — exclamou ele.
Cabeças voltaram-se para ele.
— É merda! — disse Rhyme, olhando para a tela.
— É, claro! — disse Cooper, excitado, penteando os cabelos com as mãos. — Todo esse nitrogênio. É esterco. E esterco velho, por falar nisso.
De repente, Lincoln Rhyme teve um daqueles momentos em que havia pensado antes. O pensamento simplesmente explodiu em sua mente. A imagem era de cordeiros.
— Lincoln, você está bem? — perguntou Sellitto.
Um cordeiro, andando tranquilamente pela rua.
Era como se ele estivesse observando um animal...
— Thom — perguntou Sellitto nesse momento –, ele está bem?
...numa gaiola.
Rhyme imaginou o animal, confiante. Um chocalho no pescoço, dezenas de outros vindo atrás dele.
— Lincoln — disse Thom, preocupado -, você está suando. Está se sentindo bem?
— Psiu — ordenou o criminalista.
Sentiu a coceira do suor descendo pelo rosto. Inspiração e ataque do coração. Os sintomas são estranhamente semelhantes. Pense, pense...
Ossos, postes de madeira e esterco...
— Isso mesmo! — disse baixinho. Um cordeiro judas, levando o rebanho para o abate. — Currais — disse ele para a sala. — Ela está sendo mantida em cativeiro em um curral.
CAPÍTULO XIII
— Não há currais em Manhattan.
— No passado, Lon — lembrou Rhyme. — Coisas antigas excitam nosso rapaz. Dão tesão nele. Temos que pensar em velhos currais. Quanto mais antigos, melhor.
Ao relizar pesquisas para seu livro, Rhyme leu sobre um assassinato de que fora acusado Owney Madden, um bandido refinado: de ter matado a tiros um contrabandista rival em frente à sua casa na Hell's Kitchen. Madden nunca foi condenado — pelo menos, não por esse crime em particular. No banco das testemunhas, falando com sua voz melodiosa, de sotaque britânico, ele deu ao tribunal uma aula sobre traição. “Todo esse caso foi inventado por meus rivais, que estão contando mentiras a meu respeito. Meritíssimo, sabe o que é que eles me lembram? No meu bairro, na Hell's Kitchen, rebanhos de cordeiros eram levados pelas ruas, dos currais para os matadouros na rua 42.
E sabe quem ia à frente deles? Não um cachorro, não um homem. Mas um deles. Um cordeiro judas, com um chocalho em volta do pescoço. Ele ia à frente do rebanho, subindo aquela rampa. Mas parava aí e o resto entrava. Eu sou um cordeiro inocente e essas testemunhas que depõem contra mim são os judas.”
— Ligue para a biblioteca, Banks — continuou Rhyme. — Eles devem ter lá um historiador.
ELEMENTO DESCONHECIDO 238
Aparência Residência Veículo Diversos • Branco, homem, estatura baixa • Roupa escura • Luvas velhas, pelica, avermelhadas • Loção após barba: para encobrir cheiro?
• Máscara de esquiador? Azul-marinho?
• Prov. tem casa segura • Táxi Yellow Cab • Conhece proc. de CC
• Possivelmente tem antec. criminais • Conhece levantamento de impressões digitais • Arma = .32 Colt • Amarra vít. com nós incomuns • O “Antigo” o atrai
O jovem detetive abriu o telefone celular e fez a ligação. A voz baixou um tom ou dois enquanto falava. Depois de explicar o que necessitavam, parou de falar e olhou para o mapa da cidade.
— E então? — perguntou Rhyme.
— A biblioteca está procurando alguém. Conseguiram... — baixou a voz enquanto alguém respondia do outro lado e ele repetia o pedido. Começou a balançar a cabeça para baixo e disse às pessoas na sala: — Consegui duas localizações... não, três.
— Quem é? — perguntou Rhyme. — Com quem você está falando?
— Com o curador dos arquivos da cidade... Ele disse que houve três grandes áreas de currais em Manhattan. Uma no West Side, perto da rua 60...
Outra no Harlem, nas décadas de 1930 e 1940. E, finalmente, no Lower East Side durante a Revolução.
— Precisamos de endereços, Banks. Endereços.
Banks voltou à escuta.
— Ele não tem certeza.
— Por que ele não pode verificar isso? Diga a ele para fazer uma pesquisa!
— Ele ouviu o que o senhor disse, senhor — respondeu Banks. — E perguntou: onde? Verificar onde? Naquela época não havia ainda as Páginas Amarelas. Ele está examinando velhos...
— Mapas demográficos de bairros comerciais, sem nomes de rua – especulou Rhyme. — Obviamente. Diga a ele para dar um palpite.
— É isso que ele está fazendo. Está pensando.
— Precisamos que ele dê um palpite logo.
Banks continuou a escutar, inclinando a cabeça.
— O que, o que, o que, o quê?
— Perto da rua 60 com a Décima — respondeu o jovem policial. E um momento depois: — Lexington, perto do rio Harlem.... E em seguida... onde ficava a fazenda Delaney. Isso fica próximo da Delaney Street?
— Claro que fica. A partir de Little Italy, o caminho todo até o East River. Um bocado de território. Quilômetros. Pergunte a ele se não pode ser mais preciso.
— Nas imediações da Catherine Street. Lafayette... Walker. Ele não tem certeza.
— Perto dos prédios das cortes de justiça — sugeriu Sellitto e voltou-se para Banks: — Ponha as equipes de Haumann em ação. Divida-as. Diga-lhes para visitar todos esses três bairros.
O jovem detetive fez a ligação e em seguida levantou a vista: — E agora, o quê?
— Odeio essa merda de esperar — murmurou Sellitto.
Sachs virou-se para Rhyme: — Posso usar seu telefone?
Rhyme indicou com a cabeça o aparelho na mesinha-de-cabeceira.
Ela hesitou por um momento.
— Vocês têm um lá fora?
E apontou para o corredor.
Rhyme confirmou com um aceno de cabeça.
Com uma postura perfeita, ela saiu da sala. Pelo espelho do corredor, ele pôde vê-la, solene, dando o precioso telefonema. Para quem?, perguntou a si mesmo. Namorado? Marido? Creche? Por que tinha hesitado ao mencionar a “amiga”, quando lhes falou sobre o collie? Havia uma história por trás disso, apostava.
Quem quer que ela estivesse procurando não estava no número chamado. Rhyme notou que seus olhos se transformaram em dois seixos azul-escuros quando não recebeu resposta. Ela ergueu a vista e surpreendeu Rhyme observando-a do vidro empoeirado. Virou as costas. Repôs o telefone no gancho e voltou para a sala.
Houve silêncio durante cinco minutos inteiros. Rhyme carecia do mecanismo que a maioria das pessoas usa para aliviar tensão. Quando tinha os movimentos, fora um maníaco em andar de um lado para o outro, o que deixava loucos os funcionários da Polícia Técnica. Nesse momento, seus olhos vasculhavam energicamente o mapa Randel da cidade, enquanto Sachs enfiava a mão sob o quepe de patrulheira e coçava o couro cabeludo. O invisível Mel Cooper catalogava provas, calmo como um cirurgião.
Todos, menos uma pessoa na sala, saltaram quando o telefone de Sellitto deu sinal. Ele escutou e os lábios se abriram num sorriso.
— Ouvi!
Era de um dos homens de Haumann, que se encontrava no cruzamento da Onze com a rua 60. Tinham ouvido gritos de mulher vindo de algum lugar por ali. Não sabiam com certeza onde. Estavam fazendo investigação de porta em porta.
— Calce seus sapatos de corrida — ordenou Rhyme a Sachs.
Notou seu ar de frustração. Ela olhou para o telefone de Rhyme, como se o aparelho pudesse tocar a qualquer momento com uma ordem do governador de sua retirada daquele caso. Em seguida, olhou para Sellitto, que examinava nesse momento um mapa tático da Unidade de Operações Especiais cobrindo a área do West Side.
— Amélia — disse Rhyme -, nós perdemos uma vítima. Foi uma pena.
Mas não temos que perder mais outra.
— Se você a tivesse visto — murmurou ela. — Se apenas tivesse visto o que ele fez com ela...
— Mas eu vi, Amélia — disse ele tranquilamente, os olhos implacáveis e desafiadores. — Eu vi o que aconteceu com T.J. Vi o que aconteceu com corpos deixados em malas quentes durante um mês. Vi o que meio quilo de C4 faz com braços, pernas e rostos. Processei a cena do crime no clube social Happy Land. Mais de oitenta pessoas queimadas até a morte. Tiramos fotos polaróide do rosto das vítimas, ou do que restava delas, para que fossem identificadas pelas famílias... porque não há maneira de um ser humano passar por aquelas fileiras de corpos e permanecer em seu juízo. Exceto nós. Não tínhamos opção. — Tomou uma profunda respiração para tentar combater a dor lancinante que lhe percorreu o pescoço. — Entenda, se vai ter sucesso neste trabalho, Amélia... Se quer ter sucesso na vida, vai ter que aprender a esquecer os mortos.
Um após outro, todos ali na sala haviam interrompido o que estavam fazendo e olhavam para os dois.
Nada de palavras gentis nesse momento da parte de Amélia Sachs.
Nada de sorrisos polidos. Ela tentou por um momento manter o rosto impassível. Mas o rosto era transparente como vidro. A fúria que sentia contra ele — desproporcional ao comentário que ele tinha feito — fervia dentro dela, o rosto longo contraído sob a força de uma sombria energia. Empurrou para o lado um cacho dos cabelos ruivos e agarrou na mesa os fones de ouvido. No alto da escada, parou e lançou-lhe um olhar de secar pimenteira, lembrando a Rhyme que nada havia de mais frio que o sorriso frio de uma bela mulher.
E, por alguma razão, Rhyme se descobriu pensando: Que bom ter você de volta, Amélia.
— O que foi que conseguiu? Você tem mercadoria para entregar, tem uma história para contar, tem fotos?
Malandro estava sentado em um bar no East Side de Manhattan, na Terceira Avenida — que para a cidade era o que os shopping centers são para os subúrbios grã-finos. Aquele bar de segunda classe logo estaria agitado com candidatos a yuppies. Nesse momento, porém, era o refúgio de moradores locais malvestidos, que faziam refeições de peixe duvidoso e saladas amolecidas.
O homem magro, com uma pele que lembrava ébano, usava uma camisa muito branca e um terno muito verde. Inclinou-se mais para Malandro.
— Você tem notícias, tem códigos secretos, tem cartas? Tem alguma merda?
— Cara... Ah...
— Você não está rindo quando diz “Ah” — observou Fred Dellray, na realidade, D'Ellret, mas isso fora há gerações. Tinha l,88m de altura, raramente sorria, a despeito de falar em gíria, e era um agente especial de primeira-classe da Superintendência do FBI em Manhattan.
— Não, cara. Não estou rindo.
— Então, o que foi que você conseguiu!
— A coisa demora, cara.
Malandro, um homem de pequena estatura, coçou o cabelo seboso.
— Mas você não tem tempo. Tempo é precioso, o tempo voa, e tempo é uma coisa que você não tem. Entendeu?
Dellray pôs a mão enorme sob a mesa, na qual havia duas xícaras de café, e apertou a coxa de Malandro até que ele gemeu.
Seis meses antes, aquele cara magrelo tinha sido flagrado tentando vender M-16s automáticos a uma dupla de tipos fanáticos da direita que – fossem isso na verdade ou não — eram também agentes do BATF.
Os federais, claro, não queriam o próprio Malandro, aquela coisa pequenina, de olhos esbugalhados, sebosa. Queriam quem quer que estivesse fornecendo os fuzis. A ATF obteve algum sucesso, mas não eram esperados estouros de depósitos clandestinos de armas, de modo que o entregaram para Dellray, o Número Uno do FBI para tratar desses casos, e descobrir se o homenzinho podia ter alguma utilidade. Até esse momento, porém, ele tinha provado que era apenas um rato irritante, que aparentemente não tinha nem informações confidenciais, nem códigos secretos e nem mesmo merda nenhuma para passar aos federais.
— A única maneira de a gente evitar fazer uma acusação contra você, qualquer acusação, é você nos passar alguma coisa bela e nojenta. Estamos entendidos neste particular?
— Não tenho nada para vocês agora, é isso o que estou dizendo.
Simplesmente agora.
— Mentira, mentira. Você tem alguma coisa pra contar. Posso ver isso nas suas fuças. Você sabe de alguma coisa, seu sacana.
Um ônibus parou do lado de fora, com um silvo do freio a ar Um grupo de paquistaneses cascateou pela porta.
— Cara, essa merda de conferência das Nações Unidas — murmurou Malandro -, para que diabos eles vieram para cá? Esta cidade já está atravancada demais. Todos eles são estrangeiros.
— “Merda de conferência”. Seu safadinho, seu bostinha — disse Dellray.
— O que é que você tem contra a paz mundial?
— Nada.
— Agora me conte alguma coisa boa.
— Não sei de nada bom.
— Com quem você estava conversando? — Dellray sorriu diabolicamente. — Eu sou o Camaleão. Posso rir e ficar feliz, ou posso fazer cara feia e apertar.
— Não, cara, não — guinchou Malandro. — Merda, isso dói. Pare com isso.
O garçom do bar lançou a vista sobre eles. Um rápido olhar de Dellray e ele voltou a enxugar os copos.
— Tudo bem, eu sei de uma coisa. Mas preciso de ajuda. Preciso...
— Hora de apertar, de novo.
— Vá se foder, cara. Simplesmente, vá se foder!
— Oh, isso é o que eu chamo de um diálogo esperto — retrucou Dellray.
— Você até parece que está trabalhando nesses filmes ordinários, você sabe, o bandido e o mocinho finalmente se encontram. Talcomo Stallone e qualquer outro cara. E tudo que um consegue dizer ao outro é: “Foda-se, cara.” “Não, foda-se você.” Agora, você vai me contar alguma coisa que valha a pena.
Estamos entendidos?
E simplesmente olhou para Malandro, até que ele pediu arrego.
— Tudo bem, o negócio é o seguinte. Estou confiando em você, cara, estou mesmo.
— Sei, sei, sei. O que foi que descobriu?
— Eu estava conversando com Jackie. Conhece Jackie?
— Conheço.
— E ele estava me contando.
— O que era que ele estava contando?
— Ele me disse que tinha ouvido uma coisa, que alguém estava indo e vindo esta semana, fazendo isso nos aeroportos.
— O que era que estava entrando e saindo? Mais fuzis M-16?
— Eu lhe disse, cara, não foi nada que eu fiz. Estou contando o que Jackie...
— ...lhe disse.
— Certo, cara. Apenas de modo geral, sabia? — Malandro virou os grandes olhos castanhos para Dellray. — Eu ia mentir pra você?
— Jamais perca sua dignidade — avisou solenemente o agente, apontando um dedo severo para o peito de Malandro. — Agora, que história é essa sobre aeroportos? Kennedy? La Guardia?
— Não sei. Tudo que sei é que alguém ia a um aeroporto aqui. Alguém que era muito mau.
— Dê um nome.
— Não soube de nome.
— Onde está Jackie?
— Não sei, droga. África do Sul, acho. Talvez, Libéria.
— O que é que tudo isso significa?
Dellray apertou novamente o cigarro.
— Acho que havia uma chance de alguém se ferrar, você sabe, de modo que ninguém ia receber as remessas que vinham.
— Dê um palpite.
Malandro se encolheu todo de medo, mas Dellray não estava pensando em atormentar mais o homenzinho. Estava ouvindo sinos de alarme: Jackie — um traficante de armas que os dois departamentos conheciam há anos — podia ter ouvido alguma coisa de um de seus clientes, soldados que estavam na África, na Europa Central, em células de milícias na América, sobre algum ataque terrorista em aeroportos. Normalmente, Dellray não pensaria em coisa alguma sobre um assunto como esse, exceto por aquele sequestro no JFK na noite passada. Não deu muita atenção ao caso — era um caso do DPNY. Mas, nesse momento, estava pensando também naquele ataque a bomba frustrado na reunião da UNESCO em Londres, num desses dias.
— Seu amigo lhe disse mais alguma coisa?
— Não, cara. Nada. Ei, estou com fome. A gente não pode comer alguma coisa?
— Lembra-se do que eu lhe disse sobre dignidade? Pare de gemer. -
Dellray levantou-se. — Vou ter que dar um telefonema.
O VRR derrapou e parou na rua 60.
Sachs tirou do veículo a valise usada nas cenas de crime, a PoliLight e a grande lanterna de doze volts.
— Vocês chegaram a ela a tempo? — gritou Sachs para um membro da Operações Especiais. — Ela está bem?
Ninguém respondeu, no início. Em seguida, ela ouviu gritos.
— O que é que está acontecendo? — disse ela em voz baixa, correndo arquejante para a grande porta, que havia sido derrubada pelos homens da Operações Especiais. A porta abria para uma grande entrada de automóveis que descia para um prédio de tijolos abandonado.
— Ela ainda está lá?
— Está tudo bem.
— Por quê? — perguntou uma chocada Amélia Sachs.
— Recebemos ordens de não entrar.
— Não entrar? Ela está gritando. Não estão ouvindo?
Um policial da UOE respondeu: — Eles nos disseram para esperar por você.
Eles. Não, não eles, absolutamente. Lincoln Rhyme. Aquele filho da puta.
— É você quem deve encontrá-la — disse o policial. — Você é quem deve entrar.
Amélia ligou os fones de ouvido.
— Rhyme! — disse secamente. — Você está na linha?
Nenhuma resposta... O covarde escroto.
Esquecer os mortos... Filho da puta! Furiosa como se sentiu ao descer como um pé-de-vento a escada da casa dele há alguns minutos, nesse momento ela estava duplamente furiosa.
Olhou para trás e notou um paramédico ao lado do ônibus da UOE.
— Você, venha comigo.
Ele deu um passo à frente e viu que ela sacava a arma. Parou.
— Estou fora — disse o paramédico. — Não sou obrigado a entrar até que a área esteja segura.
— Agora! Mova-se!
Ela girou na direção dele e ele deve ter visto mais boca de arma de fogo do que queria. Fez uma careta e correu atrás dela. Ouviram um grito que vinha do subsolo.
— Aiiii! Hilfe! — Depois soluços.
Jesus! Sachs começou a correr para a porta enorme, de uns quatro metros de altura, e para a escuridão esfumaçada no lado de dentro.
Dentro da cabeça, ouviu uma voz: Você é ele, Amélia. O que é que você está pensando?
Vá embora, disse ela mudamente.
Lincoln Rhyme, porém, recusou-se a desaparecer.
Você é um assassino e um seqüestrador, Amélia. Por onde você andaria, no que é que tocaria?
Esqueça! Eu vou salvá-la. Foda-se a cena do crime...
— Mein Gott! Por favooor! Al... guém! Por favooor, me ajudem!
Vá, gritou Sachs consigo mesma. Corra! Ele não está aqui.
Você está em segurança. Vá até ela, vá...
Acelerou, a valise de material chocalhando enquanto corria. Em seguida, já uns sete metros dentro do túnel, parou. Não queria saber que lado tinha ganho a parada.
— Oh, foda-se — cuspiu. Pôs a valise no chão e abriu-a. Bruscamente, perguntou ao paramédico: — Você, qual é o seu nome?
O jovem, nervoso, respondeu: — Tad Walsh. Quero dizer, o que é que está acontecendo?
E olhou para dentro da escuridão.
— Oh... Bitte, helfen Sie mir!
— Dê-me cobertura — disse Sachs baixinho.
— Cobertura? Espere aí, isso não é minha atribuição.
— Pegue a arma, certo?
— Eu devo dar proteção a você contra o quê?
Enfiando a automática na mão do rapaz, ela caiu de joelhos.
— Puxei a trava de segurança. Tenha cuidado.
Amélia pegou dois elásticos e passou-os em volta dos sapatos.
Retomando a pistola, disse a ele que fizesse o mesmo com os elásticos.
Com mãos trêmulas, o rapaz fez o que ela mandou.
— Estou justamente pensando...
— Calado. Ele ainda pode estar aqui.
— Espere aí, madame — disse baixinho o paramédico. — Essa não é a descrição de minhas funções.
— Nem das minhas. Segure esta luz. — E entregou a lanterna ao rapaz.
— Mas se ele ainda estiver aqui, provavelmente vai atirar na luz. Quero dizer, era nisso que eu atiraria.
— Neste caso, mantenha a luz alta. Acima de meu ombro. Eu entro na frente. Se alguém levar um tiro, serei eu.
— Nesse caso, o que é que faço?
Tad parecia um adolescente falando.
— Eu mesma vou correr como o diabo — disse Sachs baixinho. — Agora, siga-me. E mantenha firme esse facho de luz.
Levando a valise preta da Polícia Técnica na mão esquerda, com a arma apontada para a frente, olhou para a porta e os dois entraram na escuridão. Ela viu novamente as conhecidas marcas de vassoura, exatamente como na outra cena de crime.
— Bitte nicht, bitte nicht, bitte... — Um curto grito e depois silêncio.
— O que diabo está acontecendo lá embaixo? — murmurou Tad.
— Shhhhh — silvou Amélia.
Andaram devagar. Sachs soprou os dedos que empunhavam a Glock -
para secar o suor pegajoso — e, com todo cuidado, olhou para possíveis alvos, como pilares de madeira, sombras, maquinaria abandonada, iluminados pela lanterna mantida oscilante nas mãos de Tad.
Não encontrou pegadas.
Claro que não. Ele é sabido.
Mas nós também somos sabidos, ouviu Lincoln Rhyme dizer em sua mente. E ela lhe disse que calasse a boca.
Mais devagar nesse momento.
Mais um metro e meio. Parada. Novamente movendo-se devagar.
Fazendo força para ignorar os gemidos da moça. Sentiu aquilo novamente – aquela sensação de estar sendo espionada, o arrastamento suave do aparelho de mira de uma arma seguindo-a. O colete, pensou, não deteria uma bala de metal. A metade dos bandidos, de qualquer modo, usava Black Talons — de modo que um tiro numa perna ou braço matava o cara com tanta eficiência quanto um tiro no peito. E com muito mais dor. Nick tinha lhe contado que uma dessas balas podia abrir em dois um corpo humano. Um de seus parceiros, atingido por dois desses projéteis, havia morrido em seus braços.
Acima e atrás...
Pensando nele, lembrou-se de uma noite, deitada sobre o sólido ombro de Nick, olhando para a silhueta de seu belo rosto italiano no travesseiro, enquanto ele lhe contava sobre a invasão de um local para salvar um refém. “Quem quiser pegá-la quando você entrar, vai fazer isso de cima e de trás...”
— Merda. — Deixou-se cair em um agachamento, girando em volta de si mesma, apontando a Glock para o teto, pronta para esvaziar todo o carregador.
— O quê? — murmurou Tad, acovardando-se. — O quê?
O vazio escancarou-se para ela.
— Nada. — Respirou fundo e levantou-se.
— Não faça isso.
Os dois ouviram um som de engasgamento à frente.
— Jesus! — disse Tad novamente. — Odeio esta coisa.
Esse cara é bicha, pensou ela. Sei disso porque ele está dizendo tudo que eu queria dizer. Parou.
— Ilumine aquele lugar lá em cima. A frente.
— Oh, meu bendito...
Sachs, finalmente, compreendeu os pêlos que tinha encontrado na última cena de crime. Lembrou-se do olhar trocado entre Sellitto e Rhyme.
Ele soube na ocasião o que o elemento desconhecido havia planejado. Ele soube que era isso que estava acontecendo com ela — mas, ainda assim, ordenou à UOE que esperasse. E por isso odiou-o ainda mais.
À frente deles, viu uma moça gordinha estendida no chão, em uma poça de sangue. Ela virou para a luz os olhos vidrados e desmaiou, exatamente no momento em que um rato preto enorme — do tamanho de um gato doméstico — rastejou por cima da barriga da moça e dirigiu-se para a garganta carnuda. E arreganhou os dentes imundos para morder-lhe o queixo.
Em movimentos suaves, Sachs ergueu a pesada Glock preta, a palma da mão esquerda embaixo do cabo para lhe dar um apoio firme. Fez pontaria com todo cuidado.
Atirar é respirar.
Inale, exale. Aperte o gatilho.
Pela primeira vez no cumprimento do dever, Sachs usou a arma.
Quatro tiros. O rato imenso que estava em cima do peito da moça praticamente explodiu. Ela acertou em outro no chão atrás da moça e em outro que, em pânico, correu para ela e para o paramédico. Os outros desapareceram silenciosamente, tão rápidos como água sobre areia.
— Jesus! — exclamou o paramédico. — Você podia ter atingido a moça.
— De dez metros de distância? — resmungou Sachs. — Dificilmente.
O rádio explodiu em sons e Haumann perguntou se eles estavam sob fogo.
— Negativo — respondeu Sachs. — Eu estava apenas atirando em alguns ratos.
— Ouvido e entendido.
Amélia tomou a lanterna das mãos do paramédico e, apontando o facho para o chão, deu um passo à frente.
— Está tudo bem, moça — disse em voz alta. — Você vai ficar bem.
Os olhos da moça se abriram, a cabeça balançou frouxamente de um lado para o outro.
— Bitte, bitte...
Ela estava muito pálida. Os olhos azuis colaram-se em Sachs, como se tivesse medo de perdê-la.
— Bitte, bitte... Por favoor...
A voz subiu para um alto ganido e ela começou a soluçar e a debater-se em pavor, enquanto o paramédico aplicava ataduras nos ferimentos.
Sachs aninhou nos braços a cabeça loura, sussurrando: — Você vai ficar bem, querida, vai ficar bem, vai ficar bem.
CAPÍTULO XIV
O escritório, no alto de um edifício no centro de Manhattan, tinha vista para Nova Jersey. A poeira que pairava no ar transformava o pôr-do-sol em beleza perfeita.
— Temos que fazer isso.
— Não podemos.
— Temos que fazer isso — repetiu Fred Dellray e tomou um gole de café... ainda pior do que o servido no restaurante onde ele e Malandro estavam, não muito tempo antes. — Tirar o caso das mãos deles. Eles sobreviverão.
— É um caso local — disse o agente assistente especial chefe da Superintendência do FBI em Nova York. O AECS era um homem meticuloso, que jamais poderia trabalhar clandestinamente. Porque, quando se olhava para ele, todo mundo pensava: Oh, um agente do FBI.
— Não é local. Eles o estão tratando como caso local. E é um caso importante.
— Estamos com um desfalque de oitenta agentes por causa dessa coisa das Nações Unidas.
— E o caso tem relação com ela — retrucou Dellray. — Tenho certeza disso.
— Se é isso, vamos informar à Segurança da ONU. Deixar que todos...
Oh, não me olhe desse jeito.
— Segurança das Nações Unidas? Segurança das Nações Unidas?
Escute aqui, você já ouviu alguma vez a palavra oximoro?... Billy, está vendo esta foto? Da cena, esta manhã? A mão saindo da terra, toda a pele arrancada desse dedo? Foi uma merda o que fizeram lá.
— O DPNY está nos mantendo informados — respondeu o superintendente. — Temos a Divisão de Comportamento Criminal ligada conosco, se as Nações Unidas quiserem alguma outra informação.
— Oh, Jesus Cristo. Comportamento ligado conosco? Temos que pegar esse estripador, Billy. Pegá-lo. E não perder tempo com burocracia.
— Diga de novo o que lhe disse seu informante.
Dellray reconhecia uma rachadura numa pedra, quando a via. Não ia deixar que ela se fechasse de novo. Fogo rápido nesse instante: sobre Malandro, Jackie em Joanesburgo ou em Monróvia, e a conversa à boca pequena no tráfico de armas de que alguma coisa ia acontecer no aeroporto de Nova York naquela semana e que era melhor evitar esse lugar.
— É ele — garantiu Dellray. — Tem que ser.
— O DPNY tem uma unidade de operações especiais.
— Mas não antiterrorismo. Dei uns telefonemas. Ninguém na AT sabe de coisa alguma a esse respeito. Para o DPNY, turista morto é péssimo para relações públicas. Eu quero esse caso, Billy. — E Fred Dellray pronunciou uma palavra que jamais tinha dito em seus oito anos como agente secreto: — Por favor.
— Sobre que fundamentos você está falando?
— Oh, oh, que pergunta mais boba — respondeu Dellray, apontando-lhe o dedo indicador como uma professora rigorosa. — Vamos ver. Conseguimos aquela lei antiterrorismo novinha em folha. Mas isso não é suficiente para você. Quer que seja observada a questão de jurisdição? Eu lhe dou jurisdição.
Um crime contra a Autoridade Portuária, que administra os aeroportos.
Sequestro, que é crime da alçada federal. Posso mesmo argumentar que esse sacana está usando um táxi e, portanto, afetando o comércio interestadual.
Mas não queremos fazer esses jogos, queremos, Billy?
— Você não está me ouvindo. Posso recitar as leis federais até dormindo, obrigado. Quero saber se vamos assumir a solução do caso, o que é que vamos dizer às pessoas e tornar todo mundo feliz. Porque, lembre-se, quando esse elemento desconhecido for preso e acusado, vamos ter que continuar a trabalhar com o DPNY. Não vou mandar meu irmão mais velho para bater no irmão mais velho dele, mesmo que eu possa fazer isso quando eu quiser. Lon Sellitto está encarregado das investigações e ele é um cara competente.
— Um tenente? — resmungou Dellray. — Puxou o cigarro de trás da orelha e colocou-o embaixo das narinas por um momento.
— Jim Polling é quem está supervisionando o caso.
Dellray recuou com fingido horror.
— Polling? O pequeno Adolph? O “você-tem-o-direito-de-ficar-calado-porque-vou-bater-em-você-nessa-sua-cabeça-de-merda”? Polling? Ele?
O AECS não tinha resposta para essas palavras. Disse apenas: — Sellitto é competente. Um verdadeiro burro de carga. Trabalhei com ele em duas forças-tarefa da OC.
— Esse elemento desconhecido está sequestrando gente à esquerda e à direita, e este rapaz aqui aposta que ele vai ficar ainda mais ambicioso.
— Significando o quê?
— Temos senadores na cidade. Temos deputados, temos chefes de Estado. Acho que esses caras que ele está sequestrando agora são apenas para fins de treinamento.
— Você esteve conversando com Comportamento e não me disse?
— É o que ando farejando por aí.
Dellray não pôde evitar de tocar no nariz fino. O AECS soprou o ar de dentro das bochechas de agente federal bem escanhoado.
— Quem é o IC?
Dellray teve problema para descrever Malando como informante confidencial, o que parecia alguma coisa saída dos romances de Dashiell Hammett. A maioria dos ICs era composta de esqs., abreviatura de esqueletos, significando sacaninhas magrelos, repugnantes. Uma carapuça que cabia perfeitamente na cabeça de Malandro.
— Ele é um mentiroso — reconheceu Dellray. — Mas, Jackie, o cara de quem ele ouviu a coisa é um tipo que merece fé.
— Sei que você quer esse caso, Fred. Compreendo isso.
O chefe disse essas palavras com certa simpatia. Isso porque sabia exatamente o que havia por trás do pedido de Dellray.
Desde o tempo de menino no Brooklyn, Dellray queria ser policial.
Não importava muito que tipo de policial, desde que pudesse passar 24 horas por dia fazendo esse trabalho. Mas, logo depois de ingressar no FBI, encontrou sua vocação — trabalho secreto.
Trabalhando com seu parceiro visível e anjo da guarda, Toby Dolittle, Dellray foi responsável por tirar de circulação, por muito tempo, um grande número de criminosos — em sentenças que totalizavam mil anos. “Podem nos chamar de 'O Time do Milênio', Toby-O”, dissera ele certa vez a seu parceiro.
A pista para o sucesso de Dellray podia ser encontrada em seu apelido: “Camaleão”, título que lhe foi concedido depois de ter representado — durante um período de 24 horas — o papel de um doidão imbecil em uma boca de crack do Harlem e de dignitário haitiano em um jantar no consulado panamenho, desta vez com uniforme completo, incluindo uma faixa diagonal de condecoração no peito e um sotaque inquestionável. Os dois agentes eram regularmente emprestados ao ATF ou ao DEA e, às vezes, a departamentos de polícia municipal. Drogas e armas eram a especialidade de ambos, embora tivessem boas notas em “mercadorias contrabandeadas”.
A ironia do trabalho clandestino estava no fato de que, quanto mais competente o cara, mais cedo a aposentadoria. Palavras se espalham e os caras importantes, os criminosos dignos de ser caçados, tornam-se mais difíceis de enganar. Dolittle e Dellray descobriram que trabalhavam menos nesse campo e mais como contatos com informantes e outros agentes clandestinos. E apesar de esse trabalho não ter sido a primeira opção de Dellray — nada o excitava tanto quanto bater as ruas -, ele, ainda assim, arranjava pretexto para sair mais da Superintendência do que a maioria dos outros agentes do FBI.
Nunca lhe ocorreu solicitar transferência.
Isso até dois anos antes — até uma quente manhã de abril em Nova York. Dellray ia justamente deixar a Superintendência para pegar um avião no La Guardia, quando recebeu um telefonema de um diretor-assistente do FBI em Washington. O FBI é um ninho de hierarquias e Dellray não podia imaginar por que o figurão estava, em pessoa, lhe telefonando. Até que ouviu a voz sombria do figurão dar a notícia de que Toby Dolittle, juntamente com um promotor federal-assistente, lotado em Manhattan, estavam no térreo do prédio federal de Oklahoma City naquela manhã, preparando-se para prestar depoimento em uma sessão à qual o próprio Dellray iria comparecer.
Seus corpos seriam enviados de avião para Nova York no dia seguinte.
Que foi também o dia em que Dellray preencheu o primeiro dos formulários RFT-2230, solicitando transferência para a Divisão Antiterrorismo do FBI.
Aquele ataque com bomba foi o maior de todos os crimes para um Fred Dellray que, quando ninguém estava olhando, devorava livros sobre política e filosofia. Acreditava que nada havia de basicamente antiamericano em cobiça ou avidez — ei, essas qualidades são estimuladas em toda parte, de Wall Street à Colina do Capitólio. E se pessoas que faziam de cobiça ou avidez um negócio ultrapassavam a linha da legalidade, Dellray tinha todo prazer em identificá-las — embora nunca o fizesse por animosidade pessoal. Mas assassinar pessoas por causa de suas crenças — merda, assassinar crianças antes mesmo de elas saberem no que acreditavam -, oh, meu Deus, isso era uma punhalada no coração do país. Sozinho em seu apartamento de dois cômodos escassamente mobiliado no Brooklyn, após o enterro de Toby, Dellray concluiu que era esse o tipo de crime em que queria trabalhar.
Infelizmente, porém, a reputação do Camaleão o havia precedido. O melhor agente clandestino do FBI era nesse momento o melhor contato, lidando com agentes e ICs em toda a Costa Leste. Seus chefes simplesmente não podiam dar-se ao luxo de perdê-lo para um dos departamentos mais mudos do FBI. Dellray era uma pequena lenda, pessoalmente responsável por alguns dos grandes sucessos mais recentes do FBI. Por isso mesmo, com grande pena, seus insistentes pedidos eram indeferidos.
O chefe conhecia bem toda essa história e, nesse momento, acrescentou, com sinceridade: — Eu gostaria muito de poder ajudá-lo, Fred. Sinto muito.
Tudo que Dellray ouviu nessas palavras, porém, foi a pedra rachando um pouco mais. E, por isso, o Camaleão puxou um personagem do cabide e olhou fixamente para o chefe. Desejou ter ainda aquele falso dente de ouro. O urbano Dellray era um hombre durão com a merda de um olhar maldoso. E naquele olhar estava a mensagem inequívoca que todos os que andavam pelas ruas reconheceriam imediatamente. Eu fiz uma por você, agora você faz uma por mim.
Finalmente, o agoniado AECS disse, desajeitado: — A questão é que precisamos de alguma coisa.
— Alguma coisa?
— De um gancho — continuou o chefe. — Não temos um gancho.
O que ele queria dizer era que precisava de uma razão para tirar o caso da jurisdição do DPNY.
Política, política, politimerda.
Dellray baixou a cabeça, embora os olhos, castanhos como verniz, não se afastassem um único milímetro do superintendente.
— Esta manhã, ele cortou a pele do dedo daquela vítima, Billy. Cortou até o osso. Em seguida, enterrou-o, ainda vivo.
Duas mãos bem lavadas de agente federal se encontraram sob uma mandíbula tensa. Em voz pausada, o AECS disse: — Um pensamento para você. Sobre um vice-comissário no DPNY. O nome dele é Eckert. Conhece? Ele é amigo meu.
A moça, estirada na maca, olhos fechados, embora consciente, estava tonta. Ainda pálida. Um quarto de litro de soro era injetado nesse momento em seu braço. Em seguida, reidratada, ela ficou coerente e notavelmente calma, considerando-se tudo que acontecera.
Sachs voltou novamente aos portais do inferno e ficou olhando para o outro lado da soleira escura da porta. Ligou o rádio e chamou Lincoln Rhyme.
Desta vez, ele respondeu.
— Qual é o aspecto da cena? — perguntou ele, em tom casual.
A resposta de Amélia foi seca: — Conseguimos tirá-la de lá. Se estiver interessado...
— Ah, ótimo. Como está ela?
— Não está ótima.
— Mas viva, certo?
— Quase.
— Você está nervosa por causa dos ratos, não, Amélia?
Ela ficou calada.
— Porque não deixei que o pessoal de Bo a tirasse de lá imediatamente. Você ainda está aí, Amélia?
— Estou.
— Há cinco contaminadores em cenas de crime — explicou Rhyme.
Amélia notou que ele tinha voltado ao tom baixo, sedutor.
— O tempo atmosférico, a família da vítima, o suspeito, os caçadores de lembranças. O último é o pior de todos. Adivinhe qual é?
— Diga você.
— Outros policiais. Se eu tivesse deixado que a turma de Operações Especiais entrasse, eles poderiam ter destruído todos os vestígios. Você sabe agora como processar uma cena de crime. E aposto que preservou tudo que foi uma beleza.
Sachs teve que dizer: — Acho que ela nunca mais será a mesma, depois de tudo isto. Os ratos estavam por toda parte em cima dela.
— Sim, imagino que estavam. Essa é a natureza deles.
A natureza deles...
— Mas cinco ou dez minutos não iam fazer qualquer diferença. Ela...
Amélia desligou o rádio e dirigiu-se a Walsh, o paramédico.
— Quero conversar com ela. Está grogue demais?
— Ainda não. Aplicamos nela anestesia local... para costurar as lacerações e as mordidas. Mas ela vai precisar de um pouco de Demerol dentro de meia hora, mais ou menos.
Sachs sorriu e agachou-se ao lado da vítima.
— Oi, como é que você se sente?
A moça, gorda mas bonita, inclinou a cabeça, dizendo que estava lúcida.
— Posso lhe fazer algumas perguntas?
— Sim, por favor. Quero que vocês o prendam.
Sellitto chegou e aproximou-se delas em passos lentos. Sorriu para a moça, que o fitou com uma expressão vazia. Ele mostrou um distintivo, pelo qual ela não demonstrou qualquer interesse, e identificou-se.
— Você está bem, moça?
Monelle encolheu os ombros.
Suando horrivelmente no calor pegajoso, Sellitto, com um aceno de cabeça, chamou Sachs para um lado.
— Polling esteve aqui?
— Não o vi. Talvez ele esteja na casa de Lincoln.
— Não, não está. Acabo de ligar para lá. Ele tem de ir à Prefeitura, rápido.
— Qual é o problema?
Sellito baixou a voz, o rosto redondo e amassado contorcido.
— Uma cagada... Nós pensávamos que nossas transmissões eram seguras. Mas os putos desses repórteres conseguiram um decodificador ou coisa parecida. Descobriram na escuta que não invadimos imediatamente o local para resgatá-la.
E inclinou a cabeça na direção da moça.
— Bem, nós não entramos — retrucou asperamente Sachs. — Rhyme disse ao pessoal de Operações Especiais que esperasse até eu chegar.
O detetive contraiu-se todo.
— Cara, tomara que não tenham gravado isso em fita. Precisamos de Polling para controle de avarias. — Com um gesto de cabeça, indicou novamente a moça. — Já conversou com ela?
— Não. Ia justamente fazer isso.
Com certa pena, Sachs ligou o rádio e ouviu a voz de Rhyme, falando em tom urgente: — ...você está aí? Esta droga de coisa não...
— Estou aqui — respondeu friamente Sachs.
— O que foi que aconteceu?
— Interferência, acho. Estou com a vítima.
A moça pestanejou ao ouvir essas palavras e Sachs sorriu-lhe.
— Não estou conversando comigo mesma. — Mostrou o microfone. – Chefia da Polícia. Seu nome?
— Monelle. Monelle Gerger.
A moça olhou o braço mordido, levantou uma atadura e examinou o ferimento.
— Tome rápido o depoimento dela — instruiu-a Rhyme. — Em seguida, vá processar a cena do crime.
Com a mão cobrindo o microfone, Sachs murmurou ferozmente para Sellitto: — É um pé no saco trabalhar com esse cara, senhor.
— Faça a vontade dele.
— Amélia! — berrou Rhyme. — Responda!
— Estamos conversando com ela, tudo bem? — retrucou ela secamente.
— Você pode nos contar o que aconteceu? — perguntou Sellitto.
Monelle começou a contar uma história desconjuntada, de estar na lavanderia de uma casa de cômodos, no East Village. Ele ficou escondido, à espera dela.
— Que casa? — perguntou Sellitto.
— A Deutsche Haus. Os moradores são, na maioria, expatriados e estudantes alemães.
— O que foi que aconteceu? — continuou Sellitto.
Sachs notou que, embora o detetive grandalhão parecesse mais áspero, mais genioso do que Rhyme, ele era na realidade o mais compassivo dos dois.
— Ele me jogou na mala do carro e me trouxe para cá.
— Conseguiu dar uma olhada nele?
A mulher fechou os olhos. Sachs repetiu a pergunta. Monelle disse que não. Ele estava, como Rhyme tinha adivinhado, usando uma máscara azul-marinho de esquiador.
— Und luvas.
— Descreva-as.
Eram escuras. Ela não se lembrava de que cor.
— Quaisquer características incomuns? Do sequestrador?
— Não. Ele é branco. Isso eu posso dizer.
— Viu a placa do táxi? — perguntou Sellitto.
— Was? — perguntou a moça, passando para sua língua nativa.
— Você viu...
Sachs deu um salto quando foi interrompida por Rhyme: — Das nummernschild.
E Sachs, pensando: Porra, como é que ele sabe tudo isso? Repetiu a palavra, a moça sacudiu a cabeça, dizendo não, e em seguida apertou os olhos.
— O que é que você quer dizer? Táxi?
— Ele não estava dirigindo um Yellow Cab?
— Táxi? Nein. Não. Era um carro comum.
— Ouviu isso, Lincoln?
— Ouvi. Nosso rapaz arranjou outro jogo de rodas. E, como ele a colocou na mala, não é uma caminhonete nem um hatchback.
Sachs repetiu as palavras de Rhyme. A moça inclinou a cabeça, confirmando.
— Como um sedã.
— Alguma idéia da marca ou da cor? — continuou Sellitto.
— Clara, acho — respondeu Monelle. — Talvez prateado ou cinza. Ou aquela, vocês sabem, como é? Marrom-claro.
— Bege?
A moça confirmou com um aceno.
— Talvez bege — acrescentou Sachs, para que Rhyme soubesse.
— Havia alguma coisa mais na mala do carro? — perguntou Sellitto. - Qualquer coisa? Ferramentas, roupas, valises?
Monelle respondeu que não. Estava vazia. Rhyme tinha uma pergunta a fazer: — Que cheiro tinha ela? A mala.
Sachs retransmitiu a pergunta.
— Não sei.
— Óleo ou graxa?
— Não. A mala tinha cheiro de... coisa limpa.
— De modo que, talvez, um carro novo — refletiu Rhyme.
Durante um momento, Monelle dissolveu-se em lágrimas. Em seguida, sacudiu a cabeça. Sachs segurou-lhe a mão e ela finalmente voltou a falar: — Nós rodamos por muito tempo. Pareceu um longo tempo.
— Você está se saindo muito bem, querida — disse Sachs.
Foi interrompida pela voz de Rhyme.
— Diga a ela para se despir.
— O quê?
— Tire as roupas dela.
— Isso eu não faço.
— Diga aos paramédicos para lhe darem um robe. Precisamos das roupas dela, Amélia.
— Mas — sussurrou Sachs — ela está chorando.
— Por favor — disse Rhyme em tom de urgência. — É importante.
Sellitto inclinou a cabeça. Sachs, os lábios duros, explicou à moça a importância das roupas e ficou surpresa quando Monelle inclinou a cabeça.
Ela estava, como descobriram, ansiosa para, de qualquer modo, livrar-se daquelas roupas sujas de sangue. Dando-lhe privacidade, Sellitto afastou-se para conversar com Bo Haumann. Monelle vestiu o robe entregue pelo paramédico. Um dos detetives à paisana cobriu-a com seu casaco esporte.
Sachs enfiou numa sacola o jeans e as camisetas.
— Consegui a roupa — disse ao microfone.
— Agora ela tem que ir andando com você até a cena do crime — disse Rhyme.
— O quê?!
— Mas ela sempre atrás de você, não se esqueça. De modo a evitar que contamine qualquer prova material.
Sachs olhou para a jovem, enrodilhada em cima de uma maca de rodas, ao lado de dois ônibus da Unidade de Operações Especiais.
— Ela não está em condições de fazer isso. Ele a cortou. Até o osso.
Ela sangrou muito e os ratos a atacaram.
— Ela pode se mover?
— Provavelmente. Mas você sabe o que foi que ela teve que suportar?
— Ela pode lhe dizer qual foi o caminho que seguiram. E onde ele ficou também, observando-a.
— Ela vai agora para o pronto-socorro. Perdeu muito sangue.
Hesitação. Em um tom agradável de voz, ele disse: — Simplesmente, pergunte a ela.
Mas essa jovialidade era falsa c Sachs ouviu somente um tom de impaciência. Dava para ver que Rhyme não era um homem acostumado a mimar pessoas, que não tinha que fazer isso. Era um homem acostumado a ver obedecida sua vontade.
Ele insistiu: — Apenas uma vez, em volta da grade.
Por que não vai se foder, Lincoln Rhyme?
— É importante. Eu sei.
Nada do outro lado da linha.
Amélia olhava nesse momento para Monelle. Em seguida, ouviu uma voz, não, ouviu a sua voz dizer à moça: — Vou descer até lá embaixo à procura de provas. Quer vir comigo?
Os olhos da moça feriram fundo Sachs, no coração. E ela se desfez em lágrimas.
— Não, não, não. Não vou fazer isso. Bitte nicht, oh, bitte nicht...
Sachs inclinou a cabeça, apertou-lhe o braço num gesto de carinho.
Começou a falar ao microfone, preparando-se para a reação dele. Rhyme, porém, surpreendeu-a ao dizer: — Tudo bem, Amélia. Deixe as coisas como estão. Simplesmente pergunte a ela o que foi que aconteceu quando chegaram lá.
A moça explicou que havia dado um pontapé nele e fugido por um túnel vizinho.
— Chutei ele novamente — disse ela com certa satisfação. — Arranquei a luva. Então, ele ficou furioso e começou a me estrangular. Ele...
— Sem as luvas? — interrompeu-a Rhyme.
Sachs repetiu a pergunta e Monelle confirmou: — Sim, sem a luva.
— Impressões digitais. Excelente! — berrou Rhyme, a voz distorcendo-se no microfone. — O que foi que aconteceu? Há quanto tempo?
Monelle calculou uma hora e meia.
— Droga — murmurou Rhyme. — Impressões digitais na pele duram uma hora, noventa minutos no máximo. Você sabe tirar impressões digitais de pele, Amélia?
— Nunca fiz isso antes.
— Pois vai fazer agora. Mas rápido. Na valise CS deve haver um pacote com a etiqueta Kromekote. Tire um cartão.
Amélia encontrou uma pilha de cartões de cinco por sete polegadas, semelhantes a papel fotográfico.
— Peguei o cartão. Borrifo o pescoço dela?
— Não. Aperte o cartão contra a pele, com o lado lustroso para baixo, no lugar onde ela acha que ele a tocou. Aperte por uns três segundos.
Sachs fez o que ele mandava, enquanto Monelle olhava estoicamente para o céu. Em seguida, seguindo instruções de Rhyme, pulverizou o cartão com um pó metálico, usando um pincel Magna-Brush fofo.
— E aí? — perguntou ansiosamente Rhyme.
— Nada bom. Uma forma de dedo. Mas nada de cristas visíveis. Devo jogá-la fora?
— Jamais jogue fora qualquer coisa encontrada em uma cena de crime, Sachs — disse ele severamente. — Traga-a de volta. Eu quero vê-la, de qualquer maneira.
— Uma coisa que estou pensando que esqueci — disse Monelle. — Ele tocou em mim.
— Você quer dizer, ele a molestou? — perguntou suavemente Sachs. – Estupro?
— Não, não. Não de maneira sexual. Ele tocou meu ombro, rosto, atrás de minha orelha. Cotovelo. Apertou. Não sei por quê.
— Ouviu isso, Lincoln? Ele a apertou. Mas não parecia que isso o estava excitando.
— Sim.
— Und... E mais uma coisa de que me esqueci — continuou Monelle. – Ele falou em alemão. Não em bom alemão. Como se só o tivesse estudado na escola. E me chamou de Hanna.
— Chamou-a do quê?!
— Hanna — repetiu Sachs ao telefone. — Sabe por quê? — perguntou à moça.
— Não. Mas foi disso que ele me chamou. Parecia que ele gostava de dizer esse nome.
— Ouviu isso, Rhyme?
— Ouvi. Agora, processe a cena. O tempo está se esgotando.
No momento em que Sachs se levantou, Monelle estendeu subitamente a mão e segurou-lhe o punho.
— Srta... Sachs, você é alemã?
Amélia sorriu e respondeu: — Há muito tempo. Há umas duas gerações.
Monelle inclinou a cabeça. Apertou a mão de Amélia contra seu rosto.
— Vielen Dank. Obrigada, Srta. Sachs. Danke schon.
CAPÍTULO XV
Ao serem acesas, as três lanternas de halógeno da Unidade de Operações Especiais encheram o túnel escuro com um fulgor branco.
Sozinha na cena do crime nesse momento, Sachs olhou para o chão durante um momento. Alguma coisa havia mudado. O quê?
Sacou novamente a arma e caiu em agachamento.
— Ele está aqui — murmurou ela, escondendo-se atrás de um dos pilares.
— O quê? — perguntou Rhyme.
— Ele voltou. Havia aqui alguns ratos mortos. Agora não há mais nenhum. Desapareceram.
Amélia ouviu a risada de Rhyme.
— O que é que há de tão engraçado?
— Nada, Amélia. Os amigos deles levaram os corpos.
— Os amigos deles?
— Certa vez, trabalhei em um caso no Harlem. Corpo esquartejado, em decomposição. Muitos ossos escondidos em um grande círculo em torno do torso da vítima. O crânio, em um barril de óleo, os pés sob uma pilha de folhas... Aquilo pôs o bairro em polvorosa. A imprensa falou em satanistas, assassinos seriais. Adivinhe quem se descobriu que fora o criminoso?
— Não faço a menor idéia — respondeu ela em tom formal.
— A própria vítima. Foi suicídio. Guaxinins, ratos e esquilos levaram o resto. Como se fossem troféus. Ninguém sabe por que, mas ele adoram esses suvenires. Agora, onde é que você está neste momento?
— Ao pé da rampa.
— O que está vendo?
— Um túnel largo. Dois túneis laterais, mais estreitos. Teto plano, sustentado por pilares de madeira. Os pilares estão muito estragados e escalavrados. O chão é de concreto antigo, coberto de areia.
— E esterco?
— É o que parece. No centro, bem na minha frente, o pilar onde ela estava amarrada.
— Janelas?
— Nenhuma. Nem portas. — Olhou para o comprido túnel, o chão desaparecendo em um universo negro a milhares de quilômetros de distância.
Sentiu o arrepio da impotência. — Isso aqui é grande demais! Há espaço demais para cobrir.
— Amélia, relaxe.
— Jamais vou encontrar alguma coisa aqui.
— Sei que parece impossível. Mas simplesmente não se esqueça de que existem apenas três tipos de provas materiais que nos interessam. Objetos, materiais corporais e impressões digitais. Só isso. A coisa fica menos difícil se você pensa nela dessa maneira.
Para você, é fácil dizer isso.
— E a cena do crime não é tão grande quanto parece. Simplesmente, concentre-se nos lugares por onde eles andaram. Vá até o pilar.
Sachs seguiu o caminho. Olhando para baixo.
As luzes da Unidade de Operações Especiais eram brilhantes, mas tornavam também as sombras mais nítidas, revelando dezenas de lugares onde o seqüestrador poderia esconder-se. Um calafrio desceu-lhe pela espinha.
Fique perto, Lincoln, pensou, relutante. Estou morta de medo, certo, mas quero ouvi-lo. Respire ou faça alguma coisa.
Parou e iluminou o chão com a PoliLight.
— Está todo varrido? — perguntou ele.
— Está. Exatamente como antes.
O colete à prova de balas irritava os seios, a despeito do sutiã e da calcinha esporte que usava, e, quente como estivesse lá fora, o calor era insuportável ali embaixo. A pele coçava e ela sentiu um desejo quase irresistível de coçar-se sob o colete.
— Cheguei ao pilar.
— Passe o aspirador na área, à procura de vestígios.
Sachs passou o aspirador pelo chão. Odiando aquele barulho, que abafava qualquer som de passos que se aproximassem, o estalido de uma arma sendo engatilhada, canivetes sendo abertos. Involuntariamente, olhou para trás duas vezes. Quase deixou cair o aspirador quando a mão desceu para a pistola.
Olhou para a marca na poeira onde estivera estendido o corpo de Monelle. Eu sou ele. Eu a estou puxando. Ela me dá um pontapé. Eu tropeço...
Monelle só podia tê-lo chutado em uma única direção, para longe da rampa. O elemento desconhecido não caíra, segundo ela dissera. O que significava que ele devia ter aterrissado sobre os pés. Sachs deu um ou dois passos escuridão adentro.
— Bingo! — gritou.
— O quê? Diga!
— Pegadas. Ele esqueceu um lugar ao varrer.
— Não é dela?
— Não. Ela usava tênis de corrida. Essas solas são lisas. Como sapatos sociais. Duas boas pegadas. Vamos saber o tamanho do pé dele.
— Não, a pegada não vai nos dizer isso. Solas podem ser maiores ou menores do que a parte superior do sapato. Mas podem nos dizer alguma coisa. Na valise da Polícia Técnica você vai encontrar uma impressora eletrostática. Nela há uma pequena caixa, com uma vareta em cima. Deve haver também junto algumas folhas de acetato. Pegue o papel, ponha o acetato sobre a pegada e passe a vareta por cima.
Amélia achou o aparelho e tirou duas imagens da pegada, guardando com todo cuidado as folhas em um envelope de papel. Voltou ao pilar.
— E há aqui um pouco de palha da vassoura.
— Da...?
— Desculpe — disse rapidamente Sachs –, não sabemos de onde. Um pedaço de palha. Vou pegá-lo e guardá-lo.
Ela estava ficando competente com aqueles lápis. Ei, Lincoln, seu filho da puta, sabe o que vou fazer para comemorar minha aposentadoria permanente da unidade de cena de crime? Vou jantar num restaurante chinês.
Os halógenos da UOE não chegavam ao túnel lateral por onde Monelle tinha corrido. Sachs parou diante da linha dia-noite e mergulhou em seguida nas sombras. A luz da lanterna varreu o chão à frente.
— Fale comigo, Amélia.
— Não há muita coisa para ver. Ele varreu também por aqui.
Jesus, ele pensa em tudo.
— O que é que você está vendo?
— Simplesmente marcas no chão.
Eu a agarro. Derrubo. Estou zangado. Furioso. Tento estrangulá-la.
Sachs olhou fixamente para o chão.
— Aqui há uma coisa... marcas de joelho! Quando estava tentando estrangulá-la, ele deve ter ficado escanchado sobre ela, na altura da cintura.
Ele deixou aqui marcas do joelho e se esqueceu delas quando varreu.
— Tire imagens eletrostáticas delas.
Amélia fez o que ele mandava, mais rápido desta vez. Aprendendo a mexer no equipamento. Estava enfiando a foto num envelope quando alguma coisa lhe chamou a atenção. Outra marca na poeira.
O que é isso?
— Lincoln... Estou olhando para o local onde... parece que a luva caiu aqui. Quando eles estavam lutando.
Ligou a PoliLight. E não pôde acreditar no que viu.
— Uma impressão digital. Consegui uma impressão digital.
— O quê? — perguntou Rhyme, incrédulo. — Não é dela?
- Não, não pode ser. Posso ver a poeira no lugar onde ela estava estendida. As mãos dela ficaram algemadas o tempo todo. No lugar onde ele apanhou a luva. Ele provavelmente pensou que varreria esse lugar, mas esqueceu. É uma impressão grande. E linda!
— Aplique nela o contraste, ilumine-a e fotografe a filha da puta numa razão um por um.
Ela precisou de apenas duas tentativas para obter uma polaróide nítida. Sentiu-se como se tivesse achado na rua uma nota de cem dólares.
— Passe o aspirador na área e, em seguida, volte ao pilar. Um pé de cada vez.
Ela andou com cuidado, de um lado para o outro, um pé de cada vez.
— Não se esqueça de olhar para cima — lembrou-lhe ele. — Certa vez peguei um elemento desconhecido por causa de um único fio de cabelo no teto. Ele havia posto um projétil de calibre .357 em um .38 e o coice da arma colou um fio de cabelo da mão no teto.
— Estou olhando. É um teto de telha. Sujo. Nada mais. Nenhum lugar para esconder alguma coisa. Nem ressaltos nem vãos de porta.
— Onde estão as pistas plantadas no local? — perguntou ele.
— Não estou vendo nada.
De um lado para o outro. Cinco minutos passaram. Seis, sete.
— Talvez ele não tenha deixado nenhuma, desta vez — sugeriu Sachs. - Talvez Monelle seja a última.
— Não — disse Rhyme, categórico.
Atrás de um dos pilares de madeira, um brilho lhe chamou a atenção.
— Há alguma coisa naquele canto... Isso mesmo. Aqui estão elas.
— Fotografe-as, antes de tocá-las.
Ela tirou a foto e, em seguida, levantou do chão, usando os lápis, um pedaço de pano branco.
— Roupa de baixo de mulher. Úmida.
— Sêmen?
— Não sei — respondeu Amélia, perguntando a si mesma se ele ia lhe pedir que a cheirasse.
Rhyme, porém, ordenou: — Tente a PoliLight. Proteínas ficam fluorescentes.
Amélia foi buscar a lanterna e ligou-a. A luz iluminou o tecido mas o líquido não brilhou.
— Não.
— Ponha em um saco. De plástico. O que mais? — perguntou ele, ansioso.
— Uma folha. Comprida, fina, pontuda numa extremidade.
Tinha sido cortada algum tempo antes, estava seca e ficando marrom.
Ouviu o suspiro de frustração de Rhyme.
— Há cerca de oito mil variedades de plantas decíduas em Manhattan - explicou ele. — Isso não vai ajudar muito. O que é que há embaixo da folha?
Por que é que ele pensa que pode haver alguma coisa nesse lugar? Mas havia. Um pedaço de jornal. Branco em um lado. No outro, um desenho impresso das fases da lua.
— Da lua? — disse Rhyme pensativo. — Alguma impressão digital?
Borrife-a com ninhidrina e faça um escaneamento rápido com a luz.
O feixe da PoliLight nada revelou.
— Só isso.
Silêncio durante um momento.
— As pistas estavam em cima do quê?
— Oh, não sei.
— Você tem que saber.
— Ora, no chão — respondeu ela secamente. — Na poeira. Onde mais elas poderiam estar?
— A poeira é igual ao resto do que há por aí?
— Bem, não exatamente. É de uma cor diferente.
Ele estaria sempre certo?
— Ponha-a em um saco — instruiu-a Rhyme. — De papel.
Enquanto ela recolhia os grãos de poeira, ele disse: — Amélia.
— Sim?
— Ele não está aí — disse, tranquilizador.
— Acho que não.
— Ouvi alguma coisa em sua voz.
— Estou bem — respondeu ela, seca. — Estou cheirando o ar. Sinto cheiro de sangue. De mofo e fungos. E, novamente, da loção após barba.
— A mesma de antes?
— A mesma.
— De onde vem o cheiro?
Farejando o ar, Sachs andou em espiral, o Mastro de Maio, novamente, até que chegou a outro pilar de madeira.
— Aqui. Aqui o cheiro é mais forte.
— O que significa “aqui”, Amélia? Você representa minhas pernas e meus olhos, lembre-se.
— Uma dessas colunas de madeira. Igual àquela onde ela esteve amarrada. A uns cinco metros de distância.
— De modo que ele pode ter descansado encostado nela. Algumas impressões?
Amélia borrifou a coluna com ninhidrina e iluminou-a.
— Não. Mas o cheiro é muito forte.
— Tire uma amostra do pilar no lugar onde o cheiro é mais forte. Há uma MotoTool na valise. Preta. Uma furadeira portátil. Pegue uma ponteira de perfuração... uma ponteira parecendo oca... e ajuste-a à ferramenta. Há aí uma coisa chamada chave. É uma...
— Eu tenho uma furadeira — respondeu ela, áspera.
— Oh! — exclamou Rhyme.
Ela tirou um fragmento da coluna e em seguida limpou o suor da testa.
— Ponho a amostra num saco plástico? — perguntou.
Ele respondeu que sim. Ela sentiu uma sensação de desmaio, baixou a cabeça e prendeu a respiração. Não havia quase ar ali.
— Alguma coisa mais? — perguntou Rhyme.
— Nada que eu possa ver.
— Estou orgulhoso de você, Amélia. Volte para cá e traga seus tesouros.
CAPÍTULO XVI
— Cuidado! — gritou Rhyme.
— Eu sou especialista nisso.
— Nova ou velha?
— Psiu — fez Thom.
— Oh, pelo amor de Deus. A lâmina, ela é velha ou nova?
— Prenda a respiração... Ah, lá vamos nós. Liso como bunda de bebê.
Esse procedimento nada tinha de criminalística. Era apenas cosmético.
Thom estava fazendo a primeira barba em Rhyme naquela semana.
Havia também lavado sua cabeça e penteado os cabelos para trás.
Meia hora antes, esperando a chegada de Amélia e das provas, Rhyme tinha mandado Cooper sair da sala, enquanto Thom introduzia um cateter com K-Y e usava o tubo. Terminada essa parte, Thom o olhou e disse: — Você está com uma aparência de merda. Reconhece isso?
— Não me importo. Por que deveria me importar?
E compreendeu subitamente que se importava.
— Que tal fazer a barba? — perguntou o rapaz.
— Não temos tempo para isso.
A grande preocupação de Rhyme era que, se o Dr. Berger o visse todo arrumado, ficasse menos disposto a ir em frente com a idéia de suicídio.
Paciente desgrenhado é paciente deprimido.
— E uma lavagem de cabeça.
— Não.
— Nós agora temos companhia, Lincoln.
Finalmente, Rhyme resmungou: — Tudo bem.
— E vamos jogar fora esse pijama, certo?
— Não há nada de errado com ele.
Mas essas palavras significavam também “tudo bem”.
Nesse momento, esfregado e barbeado, usando jeans e camisa branca, Rhyme ignorou o espelho que o empregado lhe colocou à frente.
— Tire isso daqui.
— Melhoramento notável.
Lincoln Rhyme rosnou, em tom de desprezo: — Vou sair para dar um passeio, até que eles voltem — anunciou e recostou de novo a cabeça no travesseiro.
Mel Cooper virou-se para ele, uma expressão de perplexidade no rosto.
— Na cabeça dele — explicou Thom.
— Na sua cabeça?
— Eu imagino o passeio — disse Rhyme.
— Isso é um macete e tanto — observou Cooper.
— Posso andar por qualquer bairro que quero e nunca sou assaltado.
Passeio pelas montanhas e nunca fico cansado. Escalo uma montanha, se quiser. Vou olhar as vitrines na Quinta Avenida. Claro, as coisas que vejo não estão necessariamente lá. Mas e daí? As estrelas também não estão.
— O que foi que você disse? — quis saber Cooper.
— A luz estelar que vemos é velha de milhares ou milhões de anos.
Quando chega à Terra, as próprias estrelas mudaram de lugar. Elas não estão onde as vemos. — Rhyme suspirou ao sentir uma onda de exaustão. — Acho que algumas delas já queimaram por completo e desapareceram.
Fechou os olhos.
— Ele está tornando as coisas mais difíceis.
— Não necessariamente — respondeu Rhyme a Lon Sellitto.
Sellitto, Banks e Sachs acabavam de voltar da cena do curral.
— Roupa de baixo, lua e uma planta — disse Banks, alegremente pessimista. — Isso não é exatamente um mapa rodoviário.
— Areia, também — lembrou-lhe Rhyme, sempre um apreciador de solos.
— Tem alguma idéia do que significam? — perguntou Sellitto.
— Ainda não — reconheceu Rhyme.
— Onde está Polling? — murmurou Sellitto. — Ele ainda não respondeu à mensagem no pager.
— Não estive com ele — disse Rhyme.
Uma figura apareceu à porta.
— Quem está vivo sempre aparece — ribombou a suave voz de barítono do estranho.
Com uma inclinação de cabeça, Rhyme mandou entrar o homem alto, magro e desconjuntado. Tinha uma aparência sombria, mas o rosto fino subitamente abriu-se em um sorriso caloroso, como lhe acontecia em estranhos momentos. Terry Dobyns era a soma total da Divisão de Ciências do Comportamento, do DPNY. Tinha estudado com os behavioristas do FBI em Quântico e tinha diplomas em criminalística e psicologia.
O psicólogo adorava ópera e futebol e, quando Lincoln Rhyme acordou no hospital após aquele acidente, três anos e meio antes, Dobyns estava sentado a seu lado, escutando Aída em um walkman. Em seguida, passara as três horas seguintes realizando o que acabou por ser a primeira de muitas sessões de aconselhamento sobre o ferimento de Rhyme.
— Agora, o que é que me lembro sobre o que os livros dizem sobre “pessoas que não retornam telefonemas”?
— Analise-me depois, Terry. Ouviu falar em nosso elemento desconhecido?
— Um pouco — respondeu Dobyns, examinando Rhyme de alto a baixo.
Não era médico, mas conhecia psicologia. — Você está bem, Lincoln? Estou achando você um pouco alterado.
— Estou fazendo um bocado de exercícios hoje — reconheceu Rhyme. - E bem que poderia tirar um bom cochilo. Você sabe que filho da puta preguiçoso eu sou.
— Sei, mesmo. Você era o cara que me ligava às duas da manhã com uma pergunta sobre um elemento e não podia entender por que eu estava dormindo. Por isso pergunto: o que está havendo? Está querendo um perfil?
— Tudo que você puder nos dizer vai ajudar.
Sellitto passou as informações para Dobyns que — como Rhyme se lembrava dos dias em que trabalharam juntos -, embora jamais tomasse notas, conseguia arquivar tudo que ouvia em uma cabeça coroada por uma cabeleira ruiva escura.
O psicólogo andou de um lado para o outro em frente à tabela na parede, erguendo ocasionalmente a vista, enquanto ouvia a voz monótona do detetive.
Levantou um dedo, interrompendo Sellitto.
— As vítimas, as vítimas... Todas elas foram encontradas embaixo da terra. Enterradas, num porão, no túnel de um curral.
— Isso mesmo — confirmou Rhyme.
— Continue.
Sellitto continuou, explicando como havia sido o resgate de Monelle Gerger.
— Ótimo, muito bem — disse Dobyns em tom distraído. Parou de medir passos e virou-se novamente para a parede. Abriu as pernas, mãos nos quadris, e examinou os fatos esparsos sobre o Elemento Desconhecido 238. - Fale mais sobre essa sua idéia, Lincoln, de que ele gosta de coisas antigas.
— Não sei como entender isso. Até agora, as pistas que ele deixou têm alguma coisa a ver com a Nova York histórica. Materiais de construção do início do século, os currais, o sistema de aquecimento.
Subitamente, Dobyns deu um passo à frente e bateu no perfil.
— Hanna. Fale sobre Hanna.
— Amélia? — pediu Rhyme.
Ela contou a Dobyns que, sem razão aparente, o elemento desconhecido havia chamado Monelle Gerger de Hanna.
— Ela disse que ele parecia gostar de pronunciar o nome. E de falar com ela em alemão.
— E ele se arriscou um pouco para sequestrá-la, não? — observou Dobyns. — O táxi, o aeroporto, isso foi seguro para ele... Mas esconder-se em uma lavanderia... Ele devia estar muito motivado para sequestrar uma alemã.
Dobyn enrolou em um dedo alguns fios de cabelos avermelhados e deixou-se cair em uma das cadeiras de vime, estirando as pernas.
— Muito bem, vamos experimentar isso para ver se dá. O subsolo... aí é que está a chave. Isso me diz que ele é alguém que está escondendo alguma coisa e, quando ouço isso, começo a pensar em histeria.
— Ele não está agindo de maneira histérica — comentou Sellitto.
— Ele é muito calmo e calculista.
— Não histeria nesse sentido. É uma categoria de distúrbio psíquico.
Esse estado se manifesta quando alguma coisa traumática aconteceu na vida do paciente e o subconsciente converteu o trauma em alguma outra coisa. E
uma tentativa do paciente de proteger-se. No caso da conversão histérica tradicional, ocorrem sintomas físicos: náusea, dor, paralisia. Aqui, porém, acho que estamos lidando com um problema correlato. Dissociação... é assim que a chamamos quando a reação ao trauma afeta a mente, e não o corpo físico.
Amnésia histérica, estados de fuga. E personalidades múltiplas.
— Jekyll e Hyde? — Mel Cooper se adiantou, passando à frente de Banks nessa observação.
— Bem, não acho que ele tenha autênticas personalidades múltiplas -
continuou Dobyns. — Esse diagnóstico é muito raro e a personalidade múltipla clássica é jovem e tem um QI mais baixo do que o de seu rapaz. — Indicou a tabela com um movimento de cabeça. — Ele é escorregadio e esperto.
Evidentemente, um criminoso organizado. — Durante um momento, olhou pela janela. — Isso é interessante, Lincoln. Acho que seu elemento desconhecido veste a outra personalidade quando lhe é conveniente... quando quer matar... e isso é importante.
— Por quê?
— Por duas razões. Em primeiro lugar, isso nos diz alguma coisa sobre sua principal personalidade. Ele é alguém que foi treinado... talvez no emprego, talvez por criação... para ajudar pessoas, não para machucá-las.
Padre, conselheiro, político, assistente social. E, em segundo, acho que significa que ele achou um projeto. Se descobrir o que é, talvez possa chegar a ele.
— Que tipo de projeto?
— Ele pode, há muito tempo, ter desejado matar alguém. Mas não agiu até que descobriu um modelo de papel a imitar. Talvez em um livro ou filme.
Ou alguém que ele conhece realmente. É alguém com quem pode identificar-se, alguém cujos crimes, na prática, lhe dão permissão para matar. Bem, aqui estou improvisando...
— Continue — disse Rhyme -, continue...
— A obsessão dele com história me diz que sua personalidade é de um personagem do passado.
— Vida real?
— Isso não posso dizer. Talvez de ficção, talvez não. Hanna, quem quer que seja, figura em alguma parte da história. A Alemanha também. Ou germano-americanos.
— Alguma idéia do que deve ter provocado essa manifestação?
— Freud achava que ela era causada por... o que mais?... conflito sexual no estágio edipiano. Atualmente, o consenso é que problemas na fase de desenvolvimento são apenas uma das causas... qualquer trauma pode provocá-los. E não tem de ser um único fato. Poderia ser uma falha de personalidade, uma longa série de desapontamentos pessoais ou profissionais. É difícil dizer.
— Os olhos brilhavam enquanto ele examinava o perfil: — Mas tenho grande esperança de que consiga prendê-lo vivo, Lincoln. Eu adoraria a oportunidade de deitá-lo em um divã por algumas horas.
— Thom, você está anotando isso?
— Estou, bwana.
— Mais uma pergunta... — começou Rhyme.
Dobyns girou para ele.
— Eu diria que essa é a pergunta, Lincoln: por que ele está deixando pistas? Certo?
— Certo. Por que as pistas?
— Pense no que ele fez... Ele está falando com você. Não falando incoerentemente, como o Filho de Sam ou o matador do Zodíaco. Ele não é um esquizofrênico. Ele está se comunicando... em sua linguagem. Na linguagem da criminalística. Por quê? — Mais passos de um lado para o outro, olhos de vez em quando voltando-se para a tabela. — Só consigo pensar mesmo em que ele quer dividir a culpa. Entenda, é difícil para ele matar. A coisa se torna mais fácil se ele nos transforma em cúmplices. Se não salvamos a vítima a tempo, a morte dela é, em parte, culpa nossa.
— Mas isso é bom, não? — perguntou Rhyme. — Isso significa que ele continuará a nos fornecer pistas que podem ser decifradas. De outra maneira, se o enigma for complicado demais, ele não estará dividindo a culpa conosco.
— Bem, isso é verdade — disse Dobyns, já sem sorrir. — Mas há em ação outro fator.
Sellitto forneceu a resposta: — A atividade em série aumenta exponencialmente.
— Isso mesmo — confirmou Dobyns.
— De que maneira ele poderá atacar com mais frequência? — murmurou Banks. — A cada três horas não é tempo suficientemente rápido?
— Ele encontrará uma maneira — continuou o psicólogo. — Com maior probabilidade, começará a visar múltiplas vítimas. — Os olhos do psicólogo se estreitaram. — Ei, você está bem, Lincoln?
Gotas de suor cobriam a testa do criminalista e ele estava apertando com força os olhos.
— Simplesmente cansado. Excitação demais para um velho paralítico.
— Uma última coisa. O perfil das vítimas é vital em crimes em série.
Mas aqui temos sexos, idades e classes econômicas diferentes. Todos brancos, mas ele vem agindo em uma população predominantemente branca, de modo que isso não é estatisticamente significante. Com o que sabemos até agora, não podemos descobrir o motivo por que ele escolheu essas pessoas em particular. Se puder, você poderá justamente chegar à frente dele.
— Obrigado, Terry — disse Rhyme. — Fique mais um pouco.
— Claro, Lincoln, se você quiser.
Em seguida, Rhyme deu as ordens: — Agora, vamos examinar a prova material recolhida na cena do curral.
O que foi que conseguimos? As roupas de baixo?
Mel Cooper juntou os sacos que Sachs trouxera da cena do crime.
Olhou para o que continha a roupa íntima.
— Coleção Katrina Fashion's D'Amore — anunciou. — Cem por cento algodão, elástico na cinta. Tecido fabricado nos Estados Unidos. Cortado e costurado em Taiwan.
— Você pode saber isso só de olhar para a peça? — perguntou Sachs, incrédula.
— Não, eu estava lendo — respondeu ele, apontando para a etiqueta.
— Oh.
Os policiais riram.
— Ele então está dizendo que sequestrou outra mulher? — perguntou Sachs.
— Provavelmente — disse Rhyme.
Cooper abriu o saco.
— Não sei o que é o líquido. Vou fazer um teste com o cromatógrafo.
Rhyme pediu a Thom que segurasse o pedaço de papel com as fases da lua. Estudou-o atentamente. Um fragmento como esse era uma prova individuada maravilhosa. Podia ser ajustada à folha de onde tinha sido rasgada e ligar os dois com tanta perfeição como se fosse uma impressão digital. O problema, porém, é que não tinham a peça original de papel. E se perguntou se algum dia a encontrariam. O elemento desconhecido poderia tê-la destruído logo que rasgou aquele pedaço. Ainda assim, preferiu pensar que não. Gostava de imaginá-la em algum lugar, esperando simplesmente para ser encontrada.
Era assim que sempre imaginava fontes de prova: o automóvel de onde saiu aquela lasca de pintura, o dedo que perdeu a unha, o cano de arma que disparou a bala com marcas de raias encontrada no corpo da vítima. Essas fontes — sempre perto do elemento desconhecido — adquiriam personalidade própria em sua mente. Elas podiam ser imperiosas ou cruéis.
Ou misteriosas.
Fases da lua.
Perguntou a Dobyns se o elemento poderia sofrer de compulsão de agir ciclicamente.
— Não. A lua não está em grande fase agora. Passamos quatro dias da lua nova.
— Então, a lua significa alguma outra coisa.
— Se, para começar, são luas iguais — disse Sachs.
Satisfeita consigo mesma, e com razão, pensou Rhyme.
— Boa observação, Amélia — disse ele. — Talvez ele esteja falando sobre círculos. Sobre tinta. Sobre papel. Sobre geometria. O planetário...
Rhyme notou que ela o olhava fixamente. Talvez reparando, só naquele momento, que ele tinha sido barbeado, penteado e mudado de roupa.
E qual era o estado de espírito dela nesse momento?, especulou.
Zangada com ele ou desinteressada? Não podia saber. Nesse momento, Amélia Sachs era tão misteriosa como o Elemento Desconhecido 238.
A máquina de fax no corredor escolheu esse momento para dar sinal.
Thom saiu para pegar a mensagem e voltou um momento depois com duas folhas de papel.
— De Emma Rollins — explicou. — Pôs as páginas em uma posição em que Rhyme pudesse vê-las. — Nossa pesquisa de scanners de mercados. Onze mercados em Manhattan venderam canelas de vitela a clientes que compraram menos de cinco artigos nos dois últimos dias. — Thom preparou-se para escrever no pôster, mas parou e lançou um olhar a Rhyme. — Os nomes das lojas?
— Claro. Vamos precisar deles para referência cruzada mais tarde.
Na tabela do perfil, Thom escreveu os nomes: B'way & 82nd, ShopRite B'way & 96th, Anderson Foods Greenwich & Bank, ShopRite 2nd AVe., 72nd-73rd, Grocery World Baterry Park City, J&G's Emporium 1706 2nd AVe., Anderson Foods 34th&Lex., Food Warehouse 8th Ave. & 24th, ShopRite Houston & Lafayette, ShopRite 6th Ave. & Houston, J&G's Emporium Greenwich & Franklin Grocery World — Isso aí abrange toda a cidade — disse Sachs.
— Paciência — advertiu-a o implacável Rhyme.
Mel Cooper examinava nesse momento a palha encontrada por Amélia.
— Nada de excepcional aqui.
Jogou-a para um lado.
— Ela é nova? — perguntou Rhyme.
Se fosse, poderiam fazer um cruzamento de informações com mercados que tinham vendido vassouras e canelas de vitela no mesmo dia.
— Pensei nisso — disse Cooper. — Essa aí tem seis meses de idade ou mais.
Começou a derramar em uma folha de papel de jornal a prova vestigial encontrada nas roupas de Monelle.
— Há várias coisas aqui — disse, examinando atento a folha de papel. - Areia.
— O suficiente para um teste de gradiente de densidade?
— Não. Na realidade, só poeira. Provavelmente, da cena do crime.
Cooper examinou o resto dos vestígios que havia retirado das roupas manchadas de sangue.
— Pó de tijolo. Por que há tanto tijolo?
— Dos ratos que matei. A parede era de tijolo.
— Você atirou neles? Na cena do crime? — Rhyme estremeceu.
— Ora, atirei — respondeu Sachs, em tom defensivo. — Eles estavam por toda parte, em cima do corpo dela.
Ele ficou zangado, mas deixou passar, acrescentando apenas: — Com tiros, aparecem todos os tipos de contaminadores. Chumbo, arsênico, carbono, prata.
— E aqui... outro pedaço de couro avermelhado. Da luva. E... Temos outra fibra aqui. Diferente.
Criminalistas adoram fibras. Esta era um minúsculo tufo cinzento, quase invisível a olho nu.
— Excelente — disse Rhyme. — E o que mais?
— A foto da cena — acrescentou Sachs — e as impressões digitais. A que tirei da garganta dela e a que havia no lugar onde ele apanhou a luva.
E mostrou-as.
— Ótimo — disse Rhyme, e examinou-as cuidadosamente.
Havia um leve vestígio de triunfo relutante no rosto da moça — a emoção da vitória, que é o reverso de odiar-se por ter sido antiprofissional.
Rhyme estudava as polaróides das impressões digitais quando ouviu passos na escada. Jim Polling entrou, deu uma dupla olhada no recondicionado Lincoln Rhyme e dirigiu-se a Sellitto.
— Estou vindo diretamente da cena do crime — disse. — Vocês salvaram a vítima. Grande trabalho, caras. — Inclinou a cabeça para Sachs, indicando que o substantivo a incluía também. — Mas o sacana sequestrou outra?
— Ou está para fazer isso — murmurou Rhyme, olhando para as impressões digitais.
— Estamos trabalhando nas pistas agora mesmo — explicou Banks.
— Jim, andei procurando entrar em contato com você — começou Sellitto. — Liguei até para o gabinete do prefeito.
— Eu estava com o chefe. Tive praticamente que suplicar que ele me fornecesse mais gente para usar nas buscas. Consegui que mais cinquenta homens fossem retirados do destacamento de segurança nas Nações Unidas.
— Capitão, há uma coisa sobre a qual temos que conversar. Estamos com um problema. Aconteceu uma coisa na última cena...
Uma voz até então não ouvida ali trovejou através da sala.
— Problema? Quem é que está com um problema7. Não temos problema aqui, temos? Nenhum... absolutamente.
Rhyme ergueu a vista para o homem alto e magro que apareceu à soleira. Preto retinto, usava um ridículo terno verde e sapatos que brilhavam como espelhos marrons. O coração de Rhyme caiu para o estômago.
— Dellray.
— Lincoln Rhyme. O próprio bamba de Nova York. Ei, Lon. E Jim Polling, como é que andam as coisas, amigão?
Atrás de Dellray, meia dúzia de homens e uma mulher. Rhyme teve certeza, entre uma e outra batida do coração, do motivo por que os federais estavam ali. Dellray passou a vista pelos policiais reunidos na sala, a atenção parando por um momento em Sachs e, em seguida, voando para longe.
— O que é que você quer? — perguntou Polling.
— Será que nem desconfiaram, cavalheiros? Vocês estão acabados.
Viemos fechar suas portas. Sim, senhor. Exatamente como se fosse uma casa de apostas clandestina.
CAPÍTULO XVII
Um de nós.
Era assim que Dellray olhava para Lincoln Rhyme, enquanto andava em volta da cama. Algumas pessoas fazem isso. A paralisia é um clube e elas entram como bicões em festas, dizendo piadas, fazendo inclinações de cabeça, piscando um olho. Você sabe que eu o adoro, cara, é por isso que estou fazendo troça com você.
Lincoln tinha aprendido que essa atitude cansa, com muita rapidez.
— Olhem só para isso — disse Dellray, tateando a cama Clinitron. — Isso é uma coisa saída de Jornada nas estrelas. Comandante Riker, entre no ônibus espacial.
— Caia fora daqui, Dellray — cortou-o Polling. — Este caso é nosso.
— E como está indo nosso paciente, Dr. Quebra-Ossos?
O capitão estava dando um passo à frente, um galinho de briga superado muito em altura pelo magro agente do FBI.
— Dellray, você ouviu o que eu disse? Caia fora daqui.
— Cara, vou comprar uma dessas, Rhyme. Descansar meu rabo nela, assistir ao jogo. Falando sério, Lincoln, como vai você? Há anos que a gente não se vê.
— Eles bateram à porta? — perguntou Rhyme a Thom.
— Não, não bateram.
— Vocês não bateram — disse Rhyme. — Posso sugerir que se retirem?
— Tenho uma ordem judicial — murmurou Dellray, tirando papéis do bolso do paletó.
A unha do indicador da mão direita de Amélia Sachs coçava o polegar, que estava a ponto de sangrar.
Dellray olhou em volta da sala. Ficou evidentemente impressionado com o laboratório improvisado, mas abafou logo essa impressão.
— Vamos assumir o comando. Sinto muito.
Em vinte anos de atividade policial, Rhyme nunca tinha visto um ato de tomada de poder tão peremptório como esse.
— Não fode, Dellray — começou Sellitto -, vocês deixaram passar esse caso.
O agente virou o lustroso rosto negro até poder olhar de cima para baixo na direção do detetive.
— Passar? Passar? Nunca recebi um único telefonema a esse respeito.
Você ligou para mim?
— Não.
— Nesse caso, quem foi que pisou na bola?
— Bem...
Sellitto, surpreso, lançou um olhar a Polling, que disse: — Vocês receberam um boletim. Isso era tudo que precisávamos fazer com vocês. — Na defensiva também, nesse momento.
— Um boletim. Sim. E... ei, exatamente como foi enviado esse boletim?
Teria sido pelo correio a cavalo? Pelo correio comum, tarifa de livros? Diga-me uma coisa, Jim: para que serve um boletim da noite anterior, quando há uma operação em andamento?
— Nós não vimos necessidade — disse Polling.
— Nós? — perguntou rapidamente Dellray. Como um cirurgião que descobre um tumor microscópico.
— Eu não vi a necessidade — respondeu secamente Polling. — Disse ao prefeito para conservar este caso como uma operação local. E nós a temos sob controle. Agora, tire seu rabo daqui, Dellray.
— E você pensou que podia solucioná-lo a tempo de sair no noticiário das onze.
Rhyme ficou atônito quando Polling berrou em resposta: — O que nós pensamos não era nada da sua maldita conta. A porra desse caso é nosso. — Ele conhecia o lendário mau humor do capitão, mas nunca o havia visto em ação.
— Na verdade, a porra do caso agora é nosso.
Dellray passou por ele, indo em direção à mesa onde se encontravam os equipamentos de Cooper.
— Não faça isso, Fred — disse Rhyme. — Nós estamos conseguindo entender esse cara. Trabalhe conosco, mas não nos tome o caso. Esse elemento desconhecido não se parece com qualquer coisa que você já tenha visto na vida.
Dellray sorriu.
— Vejamos. Qual foi a última notícia que ouvi a respeito dessa porra de caso? Que vocês têm um paisano fazendo toda a parte da polícia técnica. — O agente lançou um olhar à cama Clinitron. — Vocês mandaram uma patrulheira fazer o processamento da cena do crime. Mandaram soldados comprar gêneros alimentícios.
— Padrões de coleta de provas, Frederick — lembrou-lhe Rhyme, falando em tom estridente. — Isso é rotina.
Dellray pareceu desapontado.
— Mas e a Unidade de Operações Especiais, Lincoln? Gastando todos aqueles dólares dos contribuintes? E, em seguida, retalhando pessoas como no massacre da serra elétrica?
Como essa notícia havia vazado? Todo mundo jurou segredo em relação à questão do esquartejamento.
— E o que foi que ouvi sobre os rapazes de Haumann terem encontrado a vítima, mas não invadido o local para resgatá-la imediatamente?
O Canal Cinco tinha um microfone ultra-sensível ligado. Durante uns bons cinco minutos, gravou os gritos dela, antes de vocês mandarem alguém entrar.
— Olhou para Sellitto com um riso irônico. — Lon, meu homem, teria sido esse o problema de que vocês estavam justamente falando?
Eles tinham ido tão longe, pensou Rhyme. Estavam desenvolvendo sensibilidade para o elemento, começando a entender sua linguagem.
Começando a vê-lo. Com um choque de surpresa, deu-se conta de que estava, mais uma vez, fazendo aquilo que adorava. Depois de todos esses anos. E, nesse momento, alguém chegava e lhe tomava o caso. Sentiu a raiva borbulhar no seu íntimo.
— Assuma o caso, Fred — murmurou. — Mas não nos deixe de fora. Não faça isso.
— Vocês perderam duas vítimas — lembrou-lhe Dellray.
— Nós perdemos uma — corrigiu-o Sellitto, olhando constrangido para Polling, que continuava a fumegar de raiva. — Não houve nada que pudéssemos ter feito sobre a primeira. Ela foi o cartão de visita.
Dobyns, braços cruzados, apenas observava a discussão. Jerry Banks, porém, entrou na briga: — Nós descobrimos agora qual é a rotina dele. Não vamos perder mais nenhuma vítima.
— Vão, se a Unidade de Operações Especiais ficar sentadinha, ouvindo as vítimas se esgoelarem até a morte.
— Foi minha... — começou Sellitto.
— Minha decisão — disse Rhyme em voz alta. — Minha.
— Mas você é um paisano, Lincoln. Desse modo, não pode ter sido decisão sua. Pode ter sido sugestão sua. Ou recomendação sua. Mas não acredito que tenha sido decisão sua.
A atenção de Dellray voltou-se novamente para Sachs. Fitando-a, disse a Rhyme: — Você disse a Peretti para não processar a cena do crime? Isso é muito estranho, Lincoln. Por que foi que você fez uma coisa dessas?
— Porque sou melhor do que ele — retrucou Rhyme.
— Peretti não é um escoteiro feliz. De jeito nenhum. Ele e eutivemos um bate-papo com Eckert.
Eckert? O vice-comissário? Como é que ele se meteu nisso?
Com um olhar de relance a Sachs, aos olhos azuis evasivos, emoldurados por cachos de cabelos ruivos emaranhados, ele soube como.
Perfurou-a com um olhar, que ela imediatamente evitou, e disse a Dellray: — Vejamos... Peretti? Não foi ele quem mandou abrir o tráfego no local onde o elemento desconhecido estava observando a primeira vítima? Não foi ele quem liberou a cena do crime antes que tivéssemos oportunidade de coletar quaisquer indícios importantes? A cena que a minha própria Sachs, aqui presente, teve a previsão de interditar? A minha Sachs entendeu a situação corretamente, enquanto Peretti e todo mundo mais meteram os pés pelas mãos. Isso mesmo, ela fez isso.
Amélia olhava para o polegar, um olhar que indicava que estava vendo uma coisa muito conhecida. Tirou um Kleenex do bolso e enrolou-o em volta do dedo sangrento.
Dellray resumiu a situação, dizendo: — Vocês deviam ter nos chamado desde o começo.
— Simplesmente, caia fora daqui — murmurou Polling. Alguma coisa rompeu-se nos olhos dele e a voz subiu de tom. — Desinfete daqui! — berrou.
Até o próprio frio Dellray piscou e recuou quando o cuspe partiu da boca do capitão.
Rhyme franziu as sobrancelhas na direção de Polling. Havia uma possibilidade de que pudessem salvar alguma coisa do caso, mas não se Polling tivesse uma crise de mau humor.
— Jim...
O capitão ignorou-o.
— Fora! — berrou novamente. — Você não vai tomar nosso caso!
E, surpreendendo todos os presentes, Polling saltou para a frente, agarrou o agente pelas lapelas verdes do paletó e empurrou-o contra a parede.
Após um momento de atordoado silêncio, Dellray simplesmente empurrou o capitão para trás com a ponta dos dedos e pegou o telefone celular. Ofereceu-o a Polling.
— Ligue para o prefeito. Ou para o chefe Wilson.
Instintivamente, Polling afastou-se de Dellray — um homem baixo pondo alguma distância entre si e um homem muito mais alto.
— Você quer o caso, então enfie naquele lugar.
O capitão dirigiu-se à escada e começou a descê-la. Em seguida, ouviu-se a batida forte da porta.
— Jesus, Fred — pediu Sellitto -, trabalhe conosco. Nós podemos prender esse safado.
— Nós vamos precisar do AT do FBI — disse Dellray, parecendo nesse momento a própria voz da razão. — Vocês não estão preparados para o ângulo terrorista.
— Que ângulo terrorista? — perguntou Rhyme — A conferência de paz das Nações Unidas. Um informante meu disse que andava circulando por aí que alguma coisa ia acontecer no aeroporto. No lugar onde ele sequestrou as vítimas.
— Eu não faria um perfil dele como terrorista — disse Dobyns. — O que quer que esteja acontecendo com ele, ele é psicologicamente motivado. Não é nada ideológico.
— Bem, o fato é que Quântico e nós o estamos vendo assim. Entendo que você possa pensar de outra maneira. Mas é assim que estamos tratando do caso.
Rhyme desistiu. A fadiga estava acabando com ele. Como desejou que Sellitto e seu assistente, de rosto marcado por pequenas cicatrizes de barba, nunca tivessem aparecido naquela manhã. Como desejava jamais ter conhecido Amélia Sachs. Como desejava não estar usando essa ridícula camisa branca engomada, que sentia dura no pescoço e nada sentia embaixo dela.
Notou que Dellray se dirigia a ele.
— Como disse?
Rhyme virou para ele uma vigorosa sobrancelha.
— Quero dizer, política não poderia ser também um motivo? -
perguntou Dellray.
— O motivo não me interessa — retrucou Rhyme. — A prova me interessa.
Dellray olhou mais uma vez para a mesa de Cooper.
— Muito bem. O caso é nosso. Estamos entendidos a esse respeito?
— Quais são nossas opções? — perguntou Sellitto.
— Vocês nos dão apoio tático com turmas de busca. Ou podem sair inteiramente do caso. Isso é praticamente tudo que resta. Vamos levar agora a prova material, se não se importarem.
Banks hesitou.
— Entregue a eles — ordenou Sellitto.
O jovem policial reuniu os sacos de prova da cena de crime mais recente, colocou-os dentro de uma grande sacola de plástico. Dellray estendeu as mãos. Banks olhou para os dedos finos, jogou a sacola em cima da mesa e se dirigiu para o lado mais distante da sala — o lado dos policiais. Lincoln servia de zona desmilitarizada entre eles. Amélia Sachs permaneceu rebitada ao pé da cama.
Dellray dirigiu-se a ela: — Policial Sachs?
Após uma pausa, os olhos pregados em Rhyme, ela respondeu: — Sim?
— O comissário Eckert quer que você venha conosco para prestar conta de missão a respeito das cenas de crime. E ele disse alguma coisa sobre o início de sua nova designação na próxima segunda-feira.
Amélia inclinou a cabeça.
Dellray voltou-se para Rhyme e disse, sinceramente: — Não se preocupe, Lincoln. Nós vamos pegá-lo. Quando menos esperar, a cabeça dele estará enfiada em um pau nos portões da cidade.
Inclinou a cabeça na direção de seus colegas, que reuniram a prova e desceram a escada. No alto da escada, Dellray perguntou: — Vai com a gente, moça?
Amélia levantou-se, mãos juntas como uma escolar em uma festa à qual lamentava ter comparecido.
— Em um minuto.
Dellray desapareceu pela escada.
— Aqueles putos — murmurou Banks, lançando a caderneta de notas em cima da mesa. — Vocês acreditam numa coisa dessas?
Sachs balançou-se sobre os pés.
— É melhor você ir, Amélia — disse Rhyme. — Sua carruagem a espera.
— Lincoln.
Aproximou-se mais da cama.
— Está tudo bem — retrucou ele. — Você fez o que tinha de fazer.
— Não tenho nada a ver com trabalho em cena de crimes — disse ela impetuosamente. — Eu jamais quis isso.
— E não vai fazer mais isso. Assim, tudo acabou bem, não?
Ela começou a dirigir-se para a porta, voltou-se impulsivamente e disse: — Você não se importa com coisa nenhuma, exceto com provas, não é?
Sellitto e Banks se levantaram, mas ela ignorou-os.
— Thom, quer fazer o favor de acompanhar Amélia?
Amélia continuou: — Tudo isso para você é simplesmente um jogo, não? Monelle...
— Quem?
Os olhos de Amélia relampejaram.
— Aí! Está vendo? Você nem mesmo se lembra do nome dela! Monelle Gerger. A moça naquele túnel... ela era para você simplesmente uma peça de um quebra-cabeça. Havia ratos andando por cima de todo o corpo dela e você disse: “É a natureza deles.” É a natureza deles? Ela nunca mais vai ser a mesma pessoa e tudo que o interessava eram suas preciosas provas.
— Em vítimas vivas — disse ele em tom monótono, de professor dando uma aula — mordidas de roedores são sempre superficiais. Logo que a primeira pequena criatura babou em cima dela, ela passou a necessitar de vacina anti-rábica. O que mais algumas poucas mordidas podiam significar?
— Por que não perguntamos a opinião dela?
O sorriso de Amélia, nesse momento, era diferente. Tornou-se maldoso, como o daquelas enfermeiras e ajudantes de terapeutas que odeiam paralíticos. Andam em volta de enfermarias de reabilitação com sorrisos iguais àquele. Bem, ele não se sentia feliz com a Amélia Sachs educada. Queria a Amélia irascível...
— Responda uma coisa, Rhyme. Por que você, realmente, me quis aqui?
— Thom, nossa convidada passou da hora. Você poderia fazer o favor...
— Lincoln... — começou a dizer o empregado.
— Thom — disse secamente Rhyme -, acho que lhe pedi para fazer uma coisa.
— Porque eu não sabia merda nenhuma disso — explodiu Sachs.
— Foi por isso! Você não queria um verdadeiro especialista em cena de crime, porque, neste caso, não estaria no comando. Mas eu... você poderia me mandar para aqui, para ali. Eu faria exatamente o que você quisesse e não me acovardaria nem reclamaria.
— Ah, motim das tropas... — comentou Rhyme, levantando a vista para o teto.
— Mas eu não sou um de seus soldados. Para começar, jamais quis isso.
— Eu também não queria. Mas aqui estamos. Juntos na cama. Bem, um de nós está.
E ele teve certeza de que seu frio sorriso era muito, muito mais frio, do que qualquer um que ela pudesse pôr nos lábios.
— Ora, você não passa de um menino mimado, Rhyme.
— Ei, policial, tempo de ir embora — disse secamente Sellitto.
Amélia, porém, continuou: — Você não pode percorrer mais uma cena de crime e sinto muito por isso. Mas está pondo em risco uma investigação simplesmente para massagear seu ego e eu digo: isso que se foda.
Pegou o boné de patrulheira e saiu furiosa da sala.
Ele esperou ouvir o estrondo da porta lá embaixo, talvez o som de vidro quebrado. Mas escutou apenas um baixo clique e, em seguida, silêncio.
Enquanto Jerry Banks pegava a caderneta de notas e folheava-a com mais concentração do que era necessário, Sellitto disse: — Lincoln, sinto muito. Eu...
— Não importa — respondeu Rhyme, bocejando exageradamente, na vã esperança de que isso lhe acalmasse o coração apertado. — Não importa, absolutamente.
Os policiais ficaram por alguns momentos ao lado da mesa parcialmente vazia, em um silêncio constrangedor. Cooper falou, finalmente: — É melhor arrumar as malas.
Colocou a caixa preta do microscópio em cima da mesa e começou a desaparafusar uma ocular com o cuidado amoroso de um músico desmontando seu saxofone.
— Bem, Thom — disse Rhyme -, já anoiteceu. Sabe o que é que isso me diz? O bar está aberto.
A sala de planejamento de operações deles era impressionante. Dava de dez a zero na de Lincoln.
Metade de um andar do edifício federal, três dezenas de agentes, computadores e painéis eletrônicos de um filme de Tom Clancy. Os agentes pareciam advogados ou banqueiros de investimento. Camisas brancas, gravatas. Nos trinques, era a palavra que subia à mente. E, no centro de tudo aquilo, ela, Amélia Sachs, bem visível em seu uniforme azul-marinho, manchado de sangue de rato, poeira e merda granulada de gado morto há cem anos.
Não tremia mais, como após sua explosão com Rhyme, e embora a mente continuasse em velocidade vertiginosa com as centenas de coisas que queria dizer, desejava ter dito, obrigou-se a concentrar-se no que estava acontecendo em volta.
Um agente alto, usando terno cinza imaculado, conferenciava com Dellray — dois homens grandalhões, cabeças baixas, solenes. Pensou que ele era o agente especial que dirigia a Superintendência do FBI em Manhattan, Thomas Perkins, mas não tinha certeza. Um policial de radiopatruha tem tanto contato com o FBI quanto um empregado de lavanderia ou um vendedor de seguros. Ele parecia sério, eficiente, e continuava a lançar olhares para um grande mapa de Manhattan pendurado na parede. Perkins inclinou a cabeça várias vezes, enquanto Dellray lhe passava os dados. Em seguida, levantou-se, dirigiu-se a uma mesa coberta de pastas de papel manilha, olhou para os agentes e começou a falar.
— Se fizerem o favor de me dar atenção... Acabei de entrar em contato com o diretor e o AG em Washington. Por esta hora, todos vocês ouviram falar no elemento desconhecido do Aeroporto Kennedy. Ele tem um perfil incomum. Sequestro, ausência do componente sexual, raramente constituem as bases de atividade serial. Na verdade, este é o primeiro elemento desconhecido desse tipo que tivemos no Distrito Sul. A luz da possível conexão com os eventos que ocorrem nas Nações Unidas nesta semana, estamos coordenando nossas atividades com a sede, com Quântico, e com o gabinete do secretário-geral. Recebemos ordens de nos dedicarmos inteiramente a este caso. Que tem a mais alta prioridade possível.
O chefe olhou para Dellray, que começou a falar: — Tiramos o caso das mãos do DPNY, mas vamos usar o departamento no apoio tático e como mão-de-obra. Temos aqui conosco a policial que processou as cenas dos crimes e que nos vai dar as informações pertinentes a esse respeito.
Dellray, nesse ambiente, parecia uma pessoa inteiramente diferente.
Nem o mínimo sinal do Supermosca.
— Você preencheu os cartões de custódia das provas? — perguntou Perkins.
Amélia admitiu que não tinha.
— Estávamos trabalhando para salvar as vítimas.
O superintendente ficou um tanto perturbado ao ouvir isso. Em juízo, casos, acusações de outras maneiras sólidas, faziam água por causa de desleixo em registrar a cadeia de custódia de prova material. Era a primeira coisa que os advogados dos criminosos exploravam.
— Não se esqueça de fazer isso antes de deixar o prédio.
— Sim, senhor.
Que expressão aquela no rosto de Rhyme, quando ele adivinhou que eu havia me queixado a Eckert e ele mandou encerrar a operação. Que expressão...
Minha Sachs solucionou isso, minha Sachs preservou a cena.
Mexeu novamente numa unha. Pare com isso, disse a si mesma, como sempre fazia, e continuou a cavoucar a carne. A dor lhe fez bem. Isso era uma coisa que os terapeutas jamais compreenderiam.
— Agente Dellray, poderia fazer o favor de informar à sala que tipo de enfoque vamos adotar? — disse o superintendente.
Dellray olhou do superintendente para os outros agentes e retomou a palavra: — No momento, temos agentes de campo invadindo todas as grandes células terroristas da cidade e desenvolvendo quaisquer pistas que possamos encontrar que nos levem à residência do elemento desconhecido. Todos os informantes, todos os agentes clandestinos. Isso vai implicar prejudicar algumas operações em andamento, mas chegamos à conclusão de que vale a pena correr esse risco.
— Nosso trabalho aqui é o de reação rápida. Os senhores se dividirão em grupos de seis agentes cada, prontos para se mexerem ao aparecimento de qualquer pista. Terão apoio completo no que interessa a resgate de reféns e entrada em áreas interditadas.
— Senhor... — disse Sachs.
Perkins ergueu a vista, franzindo as sobrancelhas. Aparentemente, ninguém interrompia sessões de instruções, até o tradicional tempo de perguntas e respostas.
— Sim, o que, policial?
— Bem, eu estava apenas pensando, senhor. O que é que o senhor diz sobre a vítima?
— Quem? Aquela moça alemã? Você acha que devemos entrevistá-la novamente?
— Não, senhor. Estou me referindo à próxima vítima.
— Certamente — respondeu o chefe da agência — continuamos a saber que outros casos podem ocorrer.
— Ele está com outra vítima, agora.
— Está? — O chefe olhou para Dellray, que encolheu os ombros.
Perkins voltou-se para Sachs: — Como é que você sabe?
— Bem, eu não sei exatamente, senhor. Mas ele deixou pistas na última cena de crime e não teria feito isso se não tivesse outra vítima. Ou estava prestes a sequestrar outra.
— Anotado, policial — continuou o chefe. — Vamos nos mobilizar com toda rapidez possível para nos certificarmos de que nada lhe acontecerá.
Dellray virou-se para Sachs: — Achamos que é melhor nos concentrarmos no próprio animal.
— Detetive Sachs... — começou Perkins.
— Não sou detetive, senhor. Estou lotada na radiopatrulha.
— Sim, bem... — o superintendente olhou para a pilha de pastas. — Se pudesse nos apresentar alguns de seus melhores argumentos, isso seria útil.
Trinta agentes a observavam. Duas mulheres entre eles.
— Simplesmente, diga-nos o que viu — sugeriu Dellray, segurando um cigarro apagado entre os dentes.
Amélia fez um resumo de suas buscas nas cenas dos crimes e das conclusões a que Rhyme e Terry Dobyns haviam chegado. A maioria dos agentes ficou perturbada com a curiosa motivação do elemento desconhecido.
— Parece um jogo muito complicado — murmurou um agente.
Outro perguntou se as pistas continham alguma mensagem política que pudessem decifrar.
— Bem, senhor, realmente, não pensamos que ele seja um terrorista -
insistiu Sachs.
Perkins voltou para ela sua atenção de alta voltagem.
— Quero lhe fazer uma pergunta, policial Sachs, você admite que ele é esperto, esse elemento desconhecido?
— Muito esperto.
— Ele não poderia estar fazendo um duplo blefe?
— Não estou entendendo.
— Você... eu deveria dizer, o DPNY pensa que ele é simplesmente um louco. Quero dizer, uma personalidade criminosa. Mas não será possível que ele seja suficientemente esperto para fazer com que vocês pensem isso?
Quando alguma outra coisa está em andamento?
— Tal como?
— Veja essas pistas que ele deixou. Elas não poderiam ser ações diversivas?
— Não, senhor, elas são indicações — respondeu Sachs. — Que levam às vítimas.
— Compreendo — disse logo Thomas Perkins -, mas, ao fazer isso, ele também está nos levando para longe de outros alvos, certo?
Ela não havia pensado nisso.
— Acho que é possível.
— E o chefe Wilson vem retirando efetivos do destacamento de segurança nas Nações Unidas e os usando para trabalhar no sequestro. Esse elemento desconhecido pode estar mantendo todos nós distraídos com outra coisa, o que o deixa livre para sua verdadeira missão.
Sachs lembrou-se de que ela mesma teve um pensamento semelhante no começo do dia, observando todos aqueles investigadores percorrendo a Pearl Street.
— E o alvo seria o prédio das Nações Unidas?
— Achamos que sim — respondeu Dellray. — Os responsáveis pela tentativa de ataque com bomba à UNESCO em Londres poderiam querer tentar novamente.
Significando isso que Rhyme estava seguindo numa direção inteiramente errada. Essa possibilidade aliviou de certa maneira o peso que sentia.
— Agora, policial Sachs, poderia detalhar para nós, ponto por ponto, a prova encontrada?
Dellray lhe entregou a folha com o inventário de tudo que ela tinha encontrado e Amélia começou a explicar, item por item. Enquanto falava, Sachs tornou-se consciente de grande atividade à sua volta — alguns agentes recebendo telefonemas, alguns em pé, falando em voz baixa a outros, uns tantos tomando notas. Mas quando, olhando para o papel, disse “Em seguida, descobri as impressões digitais dele na última cena de crime”, percebeu que a sala caiu em completo silêncio. Ergueu a vista. Todos ali olhavam-na fixamente com uma expressão que poderia passar por choque — se agentes federais fossem capazes disso.
Sem saber o que fazer, ela olhou para Dellray, que inclinou a cabeça para um lado.
— Você está dizendo que conseguiu uma impressão digital?
— Bem, consegui. A luva dele caiu na luta com a última vítima e, quando ele a apanhou, a mão tocou o chão.
— Onde está ela? — perguntou rapidamente Dellray.
— Jesus! — exclamou um agente. — Por que você não disse nada?
— Bem, eu...
— Procure-a, procure-a! — gritou alguém.
Um murmúrio varreu a sala.
As mãos tremendo, Sachs procurou nos sacos de prova e entregou a Dellray a polaróide da impressão digital. Ele ergueu-a bem alto e examinou-a atentamente. Mostrou-a a alguém que, imaginou Amélia, era o perito em cristas de atrito.
— Ótimo — disse o agente. — Ela é definitivamente classe A.
Sachs sabia que impressões digitais eram classificadas como A, B e C, sendo a categoria mais baixa inaceitável para a maioria dos órgãos mantenedores da lei. Mas qualquer orgulho que sentisse pela sua perícia em descobrir provas foi esmagado pelo desalento coletivo por ela não ter falado nisso antes.
Logo em seguida, tudo começou a acontecer ao mesmo tempo.
Dellray entregou a foto a um agente, que correu para um computador incrementado num canto do escritório e colocou a polaróide no leito curvo, grande, de alguma coisa denominada Opti-Scan. Outro agente ligou o computador e começou a digitar comandos, enquanto Dellray agarrava um telefone. Ele bateu nervoso o pé e, em seguida, baixou a cabeça quando, em algum lugar, alguém respondeu.
— Ginnie, Dellray. Isso vai ser um verdadeiro chute no saco, mas preciso que suspenda o atendimento de todos os pedidos da Região Nordeste AFIS e dê prioridade máxima à que estou enviando... Perkins está aqui. Ele aprovará e, se isso não for suficiente, eu ligo para o próprio homem em Washington... E aquela coisa das Nações Unidas.
Sachs sabia que o Sistema de Identificação Automatizado do FBI era usado por departamentos de polícia em todo o país. E era isso que Dellray ia parar naquele momento.
O agente ao computador informou: — Foto escaneada. Estamos transmitindo agora.
— Quanto tempo isso vai levar?
— Dez, quinze minutos.
Crianças. Estudantes em cursos de verão. Skatistas. O ambiente era festivo, estranho. Cantores, malabaristas, acrobatas. A visão lembrou-lhe os “museus” do Bowery, muito populares na década de 1800. Não eram absolutamente museus, claro, mas arcadas, fervilhando com espetáculos burlescos, exibição de tipos deformados e engolido-res de fogo, camelôs que vendiam tudo, desde postais pornográficos franceses a lascas da Verdadeira Cruz.
Diminuiu a marcha uma ou duas vezes, mas ninguém queria um táxi ou não podia pagar pela corrida. Virou para o sul.
Schneider amarrou tijolos aos pés do Señor Ortega e rolou-o para baixo de um píer no rio Hudson, de modo que a água suja e os peixes pudessem reduzir-lhe o corpo à condição de um mero esqueleto. O corpo foi encontrado duas semanas após ele ter desaparecido, e assim nunca se soube se a infeliz vítima estava viva ou se tinha pleno domínio de seus sentidos quando foi jogado na água. Desconfia-se, porém, que foi o que aconteceu. Isso porque Schneider, cruelmente, encurtou a corda, de modo que o rosto do Señor Ortega ficou a apenas cinco centímetros abaixo da superfície da eclusa Davy Jones.
As mãos dele, sem a menor dúvida, bateram em desespero enquanto olhava para o ar que teria sido sua salvação.
O colecionar de ossos viu um rapaz de aparência doentia em pé ao meio-fio. AIDS, pensou. Mas seus ossos são sadios — e tão visíveis. Seus ossos durarão para sempre... Mas não queria um táxi e ele seguiu em frente, olhando esfomeado, pelo espelho retrovisor, para o corpo magro do rapaz.
Voltou a olhar para a rua exatamente a tempo de manobrar para não bater em um idoso que havia descido do meio-fio, o braço magro erguido para chamar um táxi. O homem saltou para trás tanto quanto pôde e o táxi parou com um rangido de pneus logo adiante.
O homem abriu a porta traseira e inclinou-se para dentro.
— Você devia prestar mais atenção por onde anda. — Disse isso em um tom de quem dá um conselho. Não com raiva.
O idoso senhor hesitou por um momento, olhou rua acima e não viu outros táxis. Entrou.
Bateu a porta.
O colecionador de ossos pensou: Velho e magro. A pele cobre seus ossos como se fosse seda.
— Para onde? — perguntou.
— East Side.
— Estamos indo — disse ele, enquanto punha em volta do rosto a máscara de esquiador e virava rapidamente o volante para a direita. O táxi correu em alta velocidade na direção oeste.
Parte 3
A FILHA DO PATRULHEIRO
Derrubem, derrubem, derrubem! este é o axioma de Nova York (...) Os próprios ossos de nossos antepassados não podem mais permanecer em repouso por um quarto de século e uma geração parece decidida a remover todas as relíquias daqueles que a precederam.
PHILIPE HONE
Prefeito de Nova York DIÁRIO, 1845
CAPÍTULO XVIII
De sábado, 10:15 da noite, a domingo, 5:30 da manhã
— Repita, Lon.
Rhyme bebia em um canudinho, Sellitto em um copo. Ambos tomavam a bebida escura pura. O detetive afundou-se na cadeira de vime, que rangeu, e Rhyme concluiu que ele se parecia um pouco com Peter Lorre, no filme Casablanca.
Terry Dobyns tinha ido embora — depois de passar para eles algumas acerbas introvisões psicológicas sobre narcisismo e aqueles indivíduos contratados pelo governo federal. Jerry Banks tinha ido embora também. Mel Cooper continuava laboriosamente a desmontar e embalar o equipamento.
— Este é dos bons, Lincoln — comentou Sellitto, bebericando o uísque escocês. — Droga, não tenho mesmo condições financeiras para beber um troço como este. Que idade?
— Acho que da década de 1920.
O detetive examinou o líquido castanho-amarelado.
— Diabos, se isto aqui fosse uma mulher, ela seria legal, e mais alguma coisa.
— Quero saber uma coisa, Lon. E Polling? Aquela pequena crise de mau humor que ele teve. Qual o motivo de tudo aquilo?
— O pequeno Jimmy? — Sellitto riu. — Ele está agora numa enrascada.
Foi ele quem influiu para tirar Peretti do caso e para mantê-lo longe das mãos dos federais. Realmente se esforçou muito. Meteu-se por isso em apuros.
Pedir sua colaboração custou também certo esforço. Um bocado de gente torceu o nariz por causa disso. Um paisano num caso “quente” como este.
— Polling pediu que eu fosse chamado? Pensei que tinha sido o chefe.
— Isso mesmo, mas, para começar, foi Polling quem pôs a pulga na orelha dele. Ele ligou tão logo ouviu dizer que tinha havido um sequestro e que havia umas provas materiais esquisitas na cena do crime.
E queria minha ajuda?, pensou Rhyme. Esse fato era curioso. Não teve qualquer contato com Polling durante anos — não desde o caso do policial assassino, no qual tinha sido ferido. Polling esteve à frente das investigações e acabou prendendo Dan Shepherd.
— Você parece surpreso — observou Sellitto.
— Que ele tenha pedido minha ajuda? Estou. Não estávamos nos melhores termos. De qualquer modo, nunca estivemos.
— Por quê ?
— Porque taquei um 14-43 nele.
O código era de um formulário de queixa do DPNY.
— Há cinco, seis anos, quando ele era tenente, flagrei-o interrogando um suspeito bem no centro de uma cena segura. Contaminou-a. Fiquei uma fera. Citei o fato em um relatório, que constou de uma das avaliações rotineiras do trabalho dele... aquela em que ele baleou um suspeito desarmado.
— Acho que tudo foi perdoado, porque ele queria muito sua colaboração.
— Lon, dê um telefonema por mim, sim?
— Claro.
— Não — disse Thom, tomando o telefone da mão do detetive. — Deixe que ele mesmo faça isso.
— Não tive tempo de aprender como essa coisa funciona — protestou Rhyme, inclinando a cabeça na direção do ECU de discagem, que Thom havia instalado antes.
— Você não passou nisso o tempo necessário. Há uma grande diferença. Quer ligar para quem?
— Berger.
— Não, não vai — disse Thom. — Já está tarde.
— Estou aprendendo a ver as horas já há algum tempo — respondeu friamente Rhyme. — Ligue para ele. Está hospedado no Plaza.
— Não ligo.
— Eu lhe pedi que ligasse.
— Olhe aqui. — O empregado pôs com um estalo um pedaço de papel em cima da mesa. Rhyme, porém, leu-o facilmente. Deus podia ter tirado muito de Lincoln Rhyme, mas lhe deu a vista de um garoto. Rhyme executou o processo de discagem, com o rosto sobre a vareta de controle. A coisa foi mais fácil do que pensava, mas, de propósito, demorou muito, resmungando o tempo todo. E, o que foi enfurecedor, Thom ignorou-o e desceu para o térreo. Berger não se encontrava em seu quarto no hotel. Rhyme desligou, furioso por não poder bater com o telefone no gancho.
— Problema? — perguntou Sellitto.
— Não — rosnou Rhyme.
Onde está ele?, pensou irritado. Era tarde. Por essa hora, Berger devia estar no quarto do hotel. Foi tomado por um sentimento estranho — o ciúme de que seu Dr. Morte estivesse fora, ajudando alguma outra pessoa a morrer.
De repente, Sellitto soltou uma risadinha. Ergueu a vista. O policial estava comendo uma barra de chocolate. Esqueceu que comida lixo tinha sido a peça de resistência da dieta daquele homenzarrão, no tempo em que trabalhavam juntos.
— Eu estava pensando... Lembra-se de Bennie Ponzo?
— O OC da Força-Tarefa 10, há doze anos?
— Ele mesmo.
Rhyme gostava do trabalho do crime organizado. Os criminosos eram profissionais. As cenas de crime, um desafio. E as vítimas raramente eram inocentes.
— Quem foi ele? — perguntou Mel Cooper.
— Um pistoleiro de Bay Ridge — respondeu Sellitto. — Lembra-se, depois que o pegamos, do sanduíche de chocolate?
Rhyme soltou uma risada, lembrando-se.
— Qual é a história? — perguntou Cooper.
— Bem, estávamos na Central, Lincoln, eu e mais uns dois outros caras.
E Bennie, você se lembra, era um cara grandão, estava sentado, todo encurvado, apalpando o estômago. De repente, ele disse: “Estou com fome.
Quero um sanduíche de chocolate.” Ficamos nos entreolhando, sem saber o que era aquilo. Então, perguntei: “Como é um sanduíche de chocolate?” Ele me olhou como se eu fosse um homem de Marte, e perguntou: “Que merda você pensa que é? Você pega uma barra de Hershey, põe entre duas fatias de pão e come. Isso é uma merda de sanduíche de chocolate.”
Eles riram. Sellitto estendeu a barra de chocolate a Cooper, que recusou com um movimento de cabeça, e em seguida a Rhyme, que sentiu uma vontade súbita de dar uma dentada. Fazia mais de um ano desde que comera chocolate pela última vez. Evitava comidas assim — açúcar, balas.
Comida trabalhosa. As pequenas coisas da vida eram os fardos mais pesados, os fardos que mais entristeciam e esgotavam um cara. Certo, você nunca fez pesca submarina ou passeou a pé pelos Alpes. E daí? Um bocado de gente tampouco faz isso. Mas todo mundo escova os dentes. Visita o dentista, faz uma obturação, toma o trem para voltar para casa. Todo mundo tira um pedaço de amendoim de trás de um molar quando ninguém está olhando.
Todo mundo, menos Lincoln Rhyme.
Sacudiu a cabeça na direção de Sellitto e tomou um grande gole do uísque. Os olhos voltaram à tela do computador, lembrando-se da carta de adeus a Blaine, que estivera escrevendo quando Sellitto e Banks o interomperam naquela manhã. E havia também algumas outras cartas que queria escrever.
A que estava adiando era a que seria endereçada a Peter Taylor, o especialista em traumas da coluna vertebral. Na maior parte das vezes, conversara com Taylor não sobre seu estado, mas sobre morte. O médico era inimigo declarado da eutanásia. Achou que lhe devia uma carta, explicando por que resolvera pôr em prática a idéia de suicídio.
E Amélia Sachs?
A patrulheira receberia também um bilhete, resolveu.
Paralíticos são generosos, paralíticos são bondosos, paralíticos são ferro...
Paralíticos nada são, se não perdoam.
Querida Amélia: Minha Querida Amélia: Amélia: Querida Policial Sachs: Na medida em que tivemos o prazer de trabalhar juntos, eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para declarar que, embora a considere uma judas traidora, eu a perdôo. Além disso, desejo-lhe todo sucesso em sua futura carreira como baba-ovo da mídia...
— Qual é a história dela, Lon? De Sachs?
— A parte o fato de que tem um mau gênio que enche o saco de qualquer um e que eu não sabia disso?
— Ela é casada?
— Não. Com um rosto e um corpo como aqueles, a gente pensaria que algum gostosão já a teria papado. Mas ela nem mesmo namora. Ouvimos dizer há alguns anos que ela estava firme com alguém, mas ela nunca fala sobre isso. — Baixou a voz. — O boato que rola por aí é que ela é sapatão. Mas não sei nada disso. Minha vida social se resume em arranjar mulheres nas lavanderias nos sábados à noite. Ei, isso funciona. O que é que posso dizer?
Você vai que ter que esquecer os mortos...
Rhyme pensou na expressão no rosto da moça quando lhe dissera isso. O que significava aquilo? Mas depois ficou com raiva de si mesmo por estar perdendo tempo pensando nela. E tomou um bom gole do uísque escocês.
A campainha tocou nesse momento e ouviram passos na escada.
Rhyme e Sellito olharam de soslaio para a porta. O som era dos sapatos de um homem alto, usando culote e capacete azul. Um membro da Polícia Montada, um corpo de elite do DPNY. Ele entregou um grosso envelope a Sellitto e voltou à escada.
O detetive abriu-o.
— Olhem só o que temos aqui.
E esvaziou em cima da mesa o conteúdo do envelope. Rhyme levantou a vista, irritado. Três ou quatro dezenas de sacos plásticos de prova, todos etiquetados. Todos continham um pedaço de celofane, tirado dos pacotes de canela de vitela que eles haviam mandado o pessoal do UOE
comprar.
— Um bilhete de Haumann. — Leu-o: “Para: L. Rhyme. L. Sellitto. De: B. Haumann, TSRE”
— Que diabo é isso? — perguntou Cooper.
O Departamento de Polícia é um ninho de abreviaturas e acrônimos. PMR — patrulha móvel remota — é um carro de radiopatrulha. DEI - dispositivo explosivo improvisado — é uma bomba. Mas TSRF era coisa nova.
Rhyme encolheu os ombros.
Sellitto continuou a ler, rindo ao mesmo tempo: — “Força Tática de Resposta de Supermercado. Ref.: Canelas de vitela.
Uma busca em toda a cidade descobriu 46 elementos, todos os quais foram presos e neutralizados com emprego mínimo de força. Lemos para eles os seus direitos e os transportamos para uma instalação de detenção na cozinha da mãe do policial T.P. Giancarlo. Quando terminados os interrogatórios, uma meia dúzia de suspeitos serão transferidos para a custódia dos destinatários deste memorando. Aqueça-os a 350 graus durante 30 minutos.”
Rhyme soltou uma risada. Bebericaram mais uísque, apreciando-lhe o sabor. Isso era uma coisa que lhe fazia falta, o cheiro fumacento do uísque.
(Embora, na paz de um sono inconsciente, como era que alguém podia sentir falta de alguma coisa? Exatamente igual à prova: retire-se o padrão básico e nada temos com que julgar a sua perda e estamos em segurança por toda eternidade.) Cooper espalhou algumas das amostras.
— Quarenta e seis amostras de celofane. Uma de cada rede de supermercados e dos grandes mercados independentes.
Rhyme olhou para as amostras. As probabilidades eram boas de identificação por classe. A individuação do celefane seria dificílima — o fragmento encontrado na pista do osso de vitela não corresponderia exatamente, claro, a qualquer um desses. Mas, uma vez que as matrizes compram suprimentos idênticos para todas as suas lojas, seria possível descobrir em que cadeia de supermercados 238 tinha comprado a vitela e reduzir o número de bairros onde ele poderia morar. Talvez ele devesse ligar para a equipe de exame de prova física do FBI e...
Não, não. Lembre-se: agora a porra do caso pertence a eles.
Rhyme deu uma ordem a Cooper: — Embrulhe tudo isso e envie o pacote aos nossos irmãos federais.
Rhyme tentou desligar o computador e tocou a tecla errada com o dedo anular às vezes genioso. O alto-falante-telefone reagiu com um alto gemido.
— Merda — murmurou irado. — Porra de máquina.
Inquieto com a súbita raiva de Rhyme, Sellitto olhou para o copo e brincou: — Ei, Linc. Todo mundo espera que uísque bom assim torne o cara mais jovial.
— Entendi — respondeu azedamente Thom. — Ele é jovial.
Ele estacionou perto do enorme cano de esgoto.
Descendo do táxi, sentiu o cheiro da água fétida, lodosa, podre. Ele se encontrava no beco que levava ao grande cano de escoamento que começava na West Side Highway e descia para o rio Hudson. Ninguém podia vê-los ali.
O colecionador de ossos foi até a parte traseira do táxi, saboreando o prazer de olhar para o idoso cativo. Da mesma maneira que tinha gostado de olhar para a moça que amarrara em frente ao cano de vapor. E também para a mão que acenava dos trilhos, em princípios da manhã.
Examinou os olhos assustados. Aquele homem era mais magro do que pensava. Mais grisalho. Cabelos despenteados.
Velho no corpo, mas jovem nos ossos...
Acovardado, o homem afastou-se dele, os braços cruzados em um gesto de defesa sobre o peito estreito.
Abrindo a mala, o colecionador de ossos encostou o cano da pistola no esterno da vítima.
— Por favor — disse baixinho o cativo, a voz tremendo. — Eu não tenho muito dinheiro, mas você pode levar tudo. Nós podemos ir a um caixa automático. Eu...
— Desça.
— Por favor, não me machuque.
O colecionador gesticulou com a cabeça. A vítima frágil olhou em volta, amedrontada, e inclinou-se subitamente para a frente, os braços ainda cruzados, tremendo, a despeito do calor.
— Por que você está fazendo isso?
O colecionador deu um passo para trás e as algemas brilharam quando as tirou do bolso. Como estava usando grossas luvas, precisou de alguns segundos para encontrar os elos cromados. Enquanto os puxava para fora, achou que via um barco de quatro mastros subindo o Hudson. A corrente contrária não era tão forte quanto no East River, onde barcos a vela enfrentavam a maior dificuldade para navegar vindo de leste, de Montgomery e dos ancoradouros do Out Ward ao norte. Apertou os olhos. Não, espere... não era um barco a vela, mas apenas uma lancha cabinada. Yuppies preguiçosos no longo tombadilho da proa.
Quando ele se aproximou com as algemas, o cativo agarrou sua camisa com força e disse: — Por favor. Eu estava indo para o hospital. Foi por isso que o mandei parar. Ando sentindo dores no peito.
— Cale a boca.
O homem subitamente atacou o rosto do colecionador, as mãos cheias de cloasmas segurando-lhe o pescoço e ombro e apertando com força.
Uma pontada de dor irradiou-se do local onde as unhas amarelas penetraram no corpo. Com uma explosão de raiva, o sequestrador afastou as mãos da vítima e algemou-a violentamente.
Pregando um pedaço de fita adesiva na boca do homem, o colecionador o arrastou pelo aterro de cascalho na direção da boca do cano, de l,20m de diâmetro. Parou e olhou atentamente para o velho.
Seria tão fácil reduzi-lo a osso.
O osso... Tocá-lo. Ouvi-lo.
Levantou a mão da vítima. Olhos apavorados fitaram-no, lábios tremendo. O colecionador acariciou os dedos do homem, apertando-lhe as falanges entre as suas (adoraria tirar as luvas, mas não ousava). Em seguida, ergueu a palma da mão do homem e pressionou-a com força contra sua própria orelha.
— O quê...
Sua mão esquerda se fechou em volta do dedo mínimo da confusa vítima e puxou-o lentamente, até ouvir o thonk profundo do osso quebradiço se partindo. Um som muito agradável. O homem gritou, um grito abafado e trêmulo através da mordaça. E desabou no chão.
O colecionador levantou-o com um safanão e levou a trôpega vítima para a boca do cano. Empurrou-a para a frente.
Saíram embaixo do píer antigo e arruinado. Era um lugar repugnante, coberto de corpos em putrefação de animais e peixes, lixo acumulado nas pedras molhadas, uma lama esverdeada de algas. Um bolo de sargaço subia e descia na água como se fosse um homem gordo fazendo amor. A despeito do calor da tarde no resto da cidade, fazia frio ali, como num dia de março.
Señor Ortega...
Empurrou o homem para o rio, algemou-o a uma coluna do píer e prendeu novamente o bracelete no punho da vítima. O rosto lívido do cativo ficou a cerca de 90 cm acima da água. O colecionador foi pisando com cuidado sobre as pedras escorregadias até o cano de esgoto. Virou-se e parou por um momento, observando, observando. Não tinha dado muita importância se os guardas municipais encontrariam ou não os outros. Hanna, a mulher no táxi. Mas este... O colecionador tinha esperança de que não o achassem a tempo. Na verdade, que não o encontrassem absolutamente.
Dessa maneira, poderia voltar ali dentro de um ou dois meses e ver se o rio inteligente tinha lavado a carne e deixado apenas o esqueleto.
De volta à passagem de cascalho, tirou a máscara e deixou, não muito longe do local onde havia estacionado, as pistas da próxima cena. Estava zangado, furioso mesmo com os guardas municipais e, por isso mesmo, dessa vez escondeu as pistas. E incluiu também entre elas uma surpresa especial.
Uma coisa que estava reservando para eles. E voltou ao táxi.
A brisa era suave e trazia o cheiro do rio azedo, o farfalhar da relva e, como sempre na cidade, o shushhh do tráfego.
Igualzinho à lixa sobre osso.
Parou e escutou esse som, a cabeça inclinada para um lado enquanto olhava para os bilhões de luzes dos prédios, estendendo-se para o norte como se fosse uma galáxia oblonga. Nessa ocasião, uma mulher, correndo em velocidade, apareceu em uma pista de jogging ao lado do cano de esgoto e quase colidiu com ele.
Usando bermudas e bustiê púrpura, a morena baixinha evitou a colisão com um passo de dança para o lado. Arquejando, parou, sacudiu o suor do rosto. Ela estava em boa forma — tinha músculos rijos — mas não era bonita. Nariz adunco, lábios grossos, pele manchada.
Mas, por baixo daquilo...
— O senhor não devia... Não devia estacionar aqui... Isto aqui é uma pista de jogging...
As palavras morreram e o medo lhe surgiu nos olhos, que saltaram do rosto do homem para o táxi e para o bolo formado pela máscara de esquiador que ele tinha na mão.
Ela sabia quem era aquele homem. Ele sorriu, notando-lhe a clavícula notavelmente pronunciada.
O tornozelo direito da moça mudou ligeiramente de posição, pronto para lhe suportar o peso quando saísse correndo dali a toda velocidade. Mas ele pegou-a antes disso. Abaixou-se para interceptá-la e, quando ela soltou um rápido grito e baixou os braços para bloqueá-lo, o colecionador de ossos arrumou-se bruscamente a partir da postura evasiva e atingiu-a na têmpora com o cotovelo. Houve um estalo, como uma correia que se rompe.
Ela caiu, bateu com força no chão, e ficou imóvel. Horrorizado, o colecionador caiu de joelhos e segurou-lhe a cabeça nos braços.
— Não, não, não...
Estava furioso consigo mesmo por ter batido com tanta força, enojado no fundo do coração pela possibilidade de ter quebrado o que parecia ser um crânio perfeito sob os tentáculos dos cabelos pegajosos e rosto comum.
Amélia Sachs terminou de preencher outro cartão da cadeia de custódia e resolveu fazer uma pequena pausa. Descobriu uma máquina vendedora automática e comprou um copo de papel de café horroroso.
Voltou ao escritório sem janelas e olhou para a prova que tinha reunido.
Sentiu um estranho carinho por aquela coleção macabra, talvez por causa das situações por que tinha passado para reuni-la — as juntas ficavam em fogo e ainda se arrepiava toda quando se lembrava do corpo enterrado na primeira cena naquela manhã, das carnes penduradas de T.J. Colfax. Até esse dia, prova material nada significava para ela. Provas materiais eram assunto de aulas tediosas, em tardes sonolentas de primavera, na Academia de Polícia.
Prova material era matemática, gráficos e tabelas, era ciência. Era morte.
Não, Amie Sachs ia ser uma policial de gente, fazendo ronda, apartando brigas, expulsando drogados, espalhando respeito pela lei — como fez seu pai. Ou implantando esse respeito na marra. Como o belo Nick Carelli, um veterano de cinco anos, o astro de Crimes de Rua, alegre para o mundo com aquele sorriso tipo você-está-com-algum-problema?
E era exatamente isso o que ela ia ser.
Olhou para a folha marrom, seca, que tinha encontrado no túnel do curral. Uma das pistas deixadas por 238. E ali estava também a roupa de baixo. Lembrou-se de que os federais haviam tomado aquela prova material antes de Cooper concluir o teste no... como era o nome daquela máquina?
Cromatógrafo? Especulou sobre qual seria o líquido que umedecia o tecido de algodão.
Esses pensamentos, porém, levaram-na a Lincoln Rhyme, e ele era a única pessoa no mundo em quem não queria pensar naquele momento.
Voltou à burocracia de anotar nos cartões o resto da prova material.
Cada cartão continha uma série de linhas em branco, onde seriam listados em sequência os nomes das pessoas que haviam manuseado a prova, desde a sua descoberta inicial na cena do crime até o julgamento na justiça. Ela tinha transportado várias vezes e seu nome constava dos cartões. Mas essa era a primeira vez em que A. Sachs, DPNY 5885, ocupava a primeira linha.
Mais uma vez, ergueu o saco plástico que continha a folha.
Ele havia realmente tocado naquela folha. Ele. O homem que tinha assassinado T.J. Colfax. Que havia segurado o braço gordo de Monelle Gerger e cortado até o osso. Que estava nesse exato momento à procura de uma nova vítima — se é que já não a havia sequestrado.
Que naquela manhã tinha enterrado aquele pobre homem, a implorar com a mão por uma compaixão que jamais recebeu.
Pensou no Princípio da Troca, de Locard, sobre pessoas que entram em contato, cada uma transferindo alguma coisa para a outra. Coisas grandes, coisas pequenas. Com a maior probabilidade, elas nem sabiam que faziam isso.
Teria alguma coisa de 238 vindo com aquela folha? Uma célula de sua pele? Uma gota de suor? Era um pensamento intrigante. Sentiu uma pontada de excitação, como se o assassino estivesse ali, em sua companhia, na pequena sala abafada.
De volta aos cartões. Durante dez minutos preencheu-os e estava justamente terminando o último quando a porta foi aberta bruscamente, sobressaltando-a. Girou sobre si mesma.
Viu Fred Dellray à soleira, sem o paletó verde, a camisa engomada branca amassada, dedos beliscando o cigarro atrás da orelha.
— Venha aqui por um minuto ou dois, policial Sachs. Tempo de recompensa. Pensei que você gostaria de estar presente.
Sachs seguiu-o pelo curto corredor, dois passos atrás das enormes passadas.
— Os resultados da AFIS estão chegando — explicou Dellray.
A sala de planejamento estava ainda mais movimentada do que antes.
Agentes em mangas de camisas, debruçados sobre mesas. Todos com suas armas de serviço — as volumosas automáticas Sig-Sauer e Smith & Wesson, 10mm. e .45s. Meia dúzia de agentes formavam um bolo em volta do terminal do computador, ao lado do Opti-Scan.
Amélia não tinha gostado da maneira como Dellray lhes tomou o caso, mas tinha que reconhecer que, por baixo daquela conversa sedosa de hipster, Dellray era um policial muito bom. Agentes — velhos e moços -
procuravam-no com perguntas e ele pacientemente lhes respondia. Arrancava um telefone do gancho e lisonjeava ou espinafrava quem estivesse no outro lado da linha para conseguir o que queria. Em certas ocasiões, olhou de um lado para outro da sala movimentada, rugindo: “Nós vamos pegar aquele escroto. Isso mesmo, podem apostar que vamos.”
E os olhares diretos e contrafeitos que recebia de volta traziam o pensamento óbvio de que, se alguém podia pegar o escroto, esse alguém era Dellray.
— Está chegando agora — disse um agente.
— Quero linhas livres para Nova York, Jersey e Connecticut — disse em voz alta Dellray. — E também com Casas Correcionais e Livramento Condicional. E com o INS, também. Digam que fiquem de prontidão para pedido de identificação. Suspendam todas as demais operações.
Os agentes se afastaram e começaram a telefonar. A tela do computador encheu-se nesse instante. Amélia não pôde acreditar que Dellray fez realmente figa com os dedos compridos e finos. Silêncio total na sala.
— Pegamos o canalha! — berrou o agente ao teclado.
— Ele não é mais um elemento desconhecido — cantarolou, entoado, Dellray, curvando-se para a tela. — Escutem. Temos o nome: Victor Pietrs.
Nascido aqui, 1948. Os pais eram de Belgrado. Temos, portanto, uma conexão sérvia. Identificação fornecida por cortesia da Promotoria Pública de Nova York. Condenações por drogas, assaltos, um deles com arma mortal.
Cumpriu duas penas de prisão. Ouçam só isso: história psiquiátrica, internado três vezes compulsoriamente. Internações no Bellevue e no Manhattan Psychiatric. Ultima alta há três anos. UEC Washington Heights. — Ergueu a vista. — Quem está ligado com as companhias telefônicas? Vários agentes levantaram a mão.
— Façam as ligações — ordenou Dellray.
Passaram-se cinco minutos intermináveis.
— Ausente. Não está listado na New York Telephone.
— Nada em Jersey — disse outro agente.
— Connecticut, negativo.
— Merda — murmurou Dellray. — Misturem os nomes. Tentem variações.
E dêem uma busca em serviço telefônico cancelado por falta de pagamento.
Durante vários minutos, vozes subiram e desceram como uma maré.
Dellray andou de um lado para o outro como um maníaco-ob-sessivo e Sachs compreendeu por que ele era tão magro.
De repente, um agente berrou: — Achei!
Todos se viraram para ele.
— Estou ligado com a NY DMV — disse em voz alta outro agente. -
Têm o nome dele. A informação está vindo agora... Ele é motorista de táxi.
Tem licença para trabalhar.
— Por que é que isso não me surpreende? — murmurou Dellray.
— Devia ter pensado nisso. Onde é que fica o lar, doce lar, dele?
— Morningside Heights. A um quarteirão do rio. — O agente anotou o endereço e ergueu-o alto no ar, onde Dellray pegou-o ao passar rápido por ali.
— Conheço o lugar. Muito deserto. Cheio de viciados.
Outro agente digitou um endereço no terminal de seu computador.
— OK, conferindo transações imobiliárias... A propriedade dele é uma casa velha. Hipotecada a um banco. Ele deve alugá-la.
— Vocês querem a HRT? — gritou um agente do outro lado da movimentada sala. — Estou com Quântico na linha.
— Não temos tempo — resolveu Dellray. — Ligue para a sede da SWAT.
Pessoal pronto para operar, coletes à prova de bala, tudo.
— E o que é que você me diz sobre a vítima seguinte? — perguntou Amélia.
— Que vítima seguinte?
— Ele já sequestrou alguém. Ele sabe que temos as pistas já há uma ou duas horas. Ele deve ter deixado a vítima há pouco tempo em algum lugar.
Ele tinha que fazer isso.
— Não há notícia de ninguém desaparecido — respondeu o agente. — E se ele as sequestrou, estão provavelmente na casa dele.
— Não, não estão.
— Por que não?
— Elas captariam provas materiais demais — explicou ela. — Lincoln disse que ele tem uma casa segura.
— Nesse caso, vamos pegá-lo e obrigá-lo a nos dizer onde elas estão.
Outro agente comentou: — Nós podemos ser muito convincentes.
— Vamos nos mexer — disse Dellray em voz alta. — Vocês, todos aqui, vamos agradecer à policial Sachs, aqui presente. Foi ela quem descobriu e revelou a impressão digital.
Amélia ficou corada. Sentiu isso, e odiou. Mas não pôde evitar a sensação. Baixando a vista, notou estranhas linhas em seus sapatos. Apertando a vista, descobriu que ainda estava usando os elásticos.
Ao erguer a vista, viu uma sala cheia de agentes federais de rostos sérios, checando armas e dirigindo-se à porta, enquanto lhe lançavam um olhar. Da mesma maneira, pensou ela, que os lenhadores olham para toras de madeira.
CAPÍTULO XIX
Em 1911, uma tragédia de enorme dimensão abateu-se sobre nossa bela cidade.
No dia 25 de março, centenas de moças esforçadas trabalhavam duramente em uma fábrica de vestuários, uma das muitas tristemente famosas como locais de “suor demais, paga de menos”, em Greenwich Village, no centro de Manhattan.
Tão enamorados estavam dos lucros os donos dessa companhia que negavam às pobres moças instalações rudimentares que escravos poderiam ter possuído. Acreditavam que as trabalhadoras não mereciam a confiança de ir sozinhas ao banheiro em rápidas visitas e, assim, mantinham fechadas a sete chaves as salas de corte e costura.
O colecionador de ossos voltava nesse momento no táxi para o prédio onde morava.
Passou por um carro de radiopatrulha, mas manteve os olhos voltados diretamente à frente e os guardas municipais nem mesmo o olharam.
No dia em questão, começou um incêndio no oitavo andar do prédio que, em minutos, espalhou-se pela fábrica, de onde as jovens empregadas fizeram tudo para fugir.
Não puderam escapar, contudo, porque havia uma corrente passada pela porta. Muitas morreram ali mesmo e diversas outras, algumas com o corpo em chamas, saltaram no ar de uma altura de dezenas de metros sobre as lajes embaixo e morreram no choque com a inamovível Mãe Terra.
Houve 146 vítimas no incêndio da Triangle Shirtwaist. A polícia, no entanto, ficou perplexa com a incapacidade de localizar uma das vítimas, uma mulher jovem, Esther Weiraub, que várias testemunhas viram saltar em desespero do oitavo andar. Nenhuma das moças que saltou da mesma maneira sobreviveu à queda. Era possível que ela tivesse, miraculosamente, sobrevivido? Pois quando os corpos foram alinhados na rua para que chorosos membros de famílias as identificassem, a pobre Srta. Weinraub não foi encontrada.
Histórias começaram a circular sobre um violador de tumbas e devorador de cadáveres, um homem que foi visto saindo com um grande volume da cena do incêndio. Tão indignados ficaram os guardas municipais que alguém pudesse violar os restos sagrados de uma inocente vítima que iniciaram uma busca pelo tal homem.
Após várias semanas, seus diligentes esforços produziram frutos. Dois moradores de Greenwich Village comunicaram ter visto um homem deixando a cena do incêndio levando um pesado fardo, “como se fosse um tapete”, em cima do ombro. Os guardas municipais descobriram a pista e seguiram-na até o West Side, onde conversaram com moradores e souberam que o homem correspondia à descrição de James Schneider, que continuava à solta.
Acabaram por restringir a busca a uma residência decrépita em um beco da Hell's Kitchen, não muito longe dos currais da rua 60. Ao entrarem no beco, foram recebidos por uma fedentina repugnante...
Nesse momento, ele estava passando pelo próprio local do incêndio da Triangle - talvez ele tivesse sido levado subconscientemente a passar por ali. O Asch Building — o nome irônico da estrutura onde funcionava a fábrica condenada — havia sido demolido e o local era nesse momento parte da Universidade de Nova York. Naquela ocasião como agora... O
colecionador de ossos não teria ficado surpreso se tivesse visto moças operárias usando blusa branca, deixando um rastro de fagulhas e fumaça, caindo graciosamente para a morte, caindo em volta dele como se fossem flocos de neve.
Ao invadir a habitação de Schneider, as autoridades descobriram um espetáculo que fez cambalear de horror até mesmo os mais empedernidos entre elas. O corpo da infeliz Esther Weinraub — (ou o que restava dele) — foi encontrado no porão. Schneider estava encurvado sobre o corpo, terminando o trabalho do trágico incêndio e lentamente removendo a carne do corpo da moça, usando meios chocantes demais para descrever aqui.
Uma busca no horripilante local revelou a existência de um quarto secreto, ao lado do porão, cheio de ossos que haviam sido inteiramente descamados.
Embaixo da cama de Schneider, os guardas encontraram um diário, no qual o louco tinha escrito sua história do mal. “O osso” — (escreveu Schneider) — “é o núcleo final do ser humano. Ele não se altera, não engana, não cede. Logo que a fachada de nossos dissolutos caminhos da carne, os defeitos de raças inferiores, e o sexo mais fraco são queimados ou cozidos, nós somos — todos nós — osso nobre. O osso não mente. É imortal.”
O diário do lunático continha uma crônica de experimentação horripilante, enquanto ele procurava descobrir a maneira mais eficaz de descamar o corpo de suas vítimas.
Tentara cozinhá-los, queimá-los, lixiviá-los, empalá-los em paus para serem devorados por animais e imergi-los em água.
Em seu macabro esporte, porém, ele preferia um método a todos os outros.
“Concluí que é melhor”, continuava o diário, “simplesmente enterrar o corpo na terra generosa e deixar que a Natureza se encarregue do tedioso trabalho. É o método mais demorado, porém o menos capaz de despertar suspeita, uma vez que os odores são reduzidos ao mínimo. Prefiro enterrar os indivíduos enquanto eles ainda estão vivos, embora não possa dizer com certeza o motivo.”
Nesse quarto até então secreto foram descobertos três outros corpos nessa exata condição. As mãos abertas e expressão confusa das pobres vítimas documentavam que estavam na verdade vivas quando Schneider jogou a última pá de terra sobre suas cabeças atormentadas.
E foram essas sinistras inclinações que levaram os jornalistas do dia a batizar Schneider com o nome pelo qual será para sempre conhecido: “O Colecionador de Ossos”.
Continuou a dirigir, a mente voltando à mulher dentro da mala do carro, Esther Weinraub. O cotovelo fino, a clavícula delicada como uma asa de ave. Acelerou mais o táxi e arriscou-se mesmo a desobedecer dois sinais vermelhos. Não podia esperar muito tempo mais.
— Não estou cansado — disse secamente Rhyme.
— Cansado ou não, você precisa descansar.
— Não. Eu preciso é de outro drinque.
Valises pretas alinhavam-se ao longo da parede, à espera de policiais da 22a Delegacia, que as levariam de volta para o laboratório da DIRC. Nesse momento, Mel Cooper levava uma caixa de microscópio escada abaixo. Lon Sellitto continuava sentado na cadeira de vime, mas não falava muito. Estava justamente chegando à conclusão de que Lincoln Rhyme, afinal de contas, não era absolutamente um bêbado jovial.
— Tenho certeza de que sua pressão arterial subiu — disse Thom. — Você precisa descansar.
— Preciso é de um drinque.
Diabos a levem, Amélia Sachs, pensou ele. E não soube por quê.
— Você devia largar isso. A bebida nunca lhe fez bem.
Bem, eu estou largando tudo, respondeu silenciosamente Rhyme. Para sempre. Segunda-feira. E nada de doze passos para mim. Vai ser um passo só.
— Prepare outro drinque — ordenou.
Sem querê-lo, realmente.
— Não.
— Prepare um drinque para mim, agora! — disse Rhyme, áspero.
— De jeito nenhum.
— Lon, você poderia fazer o favor de me preparar um drinque?
— Eu...
— Ele não vai tomar outro — declarou Thom. — Quando está num estado desses, ele se torna insuportável e não vamos tolerar isso.
— Você vai me negar alguma coisa? Eu poderia mandá-lo embora.
— Pois mande.
— Maltratar um paralítico! Vou processá-lo por isso. Prenda-o, Lon.
— Lincoln... — começou Sellitto, procurando acalmá-lo.
— Prenda-o!
O detetive ficou surpreso com a crueldade das palavras de Rhyme.
— Ei, amigão, talvez você deva maneirar um pouco — aconselhou Sellitto.
— Oh, Cristo — gemeu Rhyme. E começou a gemer em voz alta.
— O que é isso? — perguntou Sellitto, preocupado.
Thom permaneceu calado, olhando atentamente para Rhyme.
— Meu fígado — O rosto de Rhyme se transformou em um sorriso cruel.
— Cirrose, provavelmente.
Thom deu-lhe as costas, furioso, dizendo: — Eu não vou aguentar essa merda, está bem?
— Não, não está bem...
Uma voz de mulher à porta: — Nós não temos muito tempo.
— ...absolutamente.
Amélia Sachs entrou e olhou para as mesas vazias. Rhyme sentiu baba na boca. Ficou alucinado de raiva. Porque ela viu a saliva. Porque ele usava uma camisa branca engomada, que vestira apenas por causa dela. E porque queria desesperadamente ficar sozinho, para sempre, sozinho na escuridão de uma paz imóvel — onde era o rei. Não rei por um dia. Mas rei por toda eternidade.
A baba engrossou. Contraiu os músculos já doloridos do pescoço para passar a língua pelos lábios e secá-los. Habilmente, Thom tirou um lenço de papel de uma caixa e secou a boca e o queixo do patrão.
— Policial Sachs — disse Thom. — Seja bem-vinda. Um exemplo notável de maturidade. Não estamos vendo muito disso neste exato momento.
Amélia não usava o quepe e a blusa azul-celeste estava aberta na gola.
Os cabelos ruivos longos cascateavam pelos ombros. Ninguém teria o menor trabalho para diferenciar aquele cabelo sob um microscópio de comparação.
— Mel me deixou entrar — explicou ela, indicando a escada com um movimento de cabeça.
— Já não passou a hora de você ir dormir, Sachs?
Thom deu uma palmadinha no ombro do patrão. Comporte-se, era o que o gesto dizia.
— Acabei de vir do edifício federal — disse ela a Sellitto.
— O que é que estão fazendo com nossos dólares de imposto?
— Eles o pegaram.
— O quê?! — perguntou Sellitto. — Tão fácil assim? Jesus. Já sabem disso lá no centro?
— Perkins ligou para o prefeito. O cara é um motorista de táxi. Nasceu aqui, mas o pai dele era sérvio. De modo que estão pensando que ele estava querendo se vingar das Nações Unidas, ou coisa assim. Tem antecedentes criminais. Oh, e também uma história de problemas mentais. Dellray e a SWAT federal estão a caminho agora mesmo.
— Como foi que eles conseguiram isso? — perguntou Rhyme. — Aposto que foi aquela impressão digital.
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
— Eu desconfiei que aquela impressão ia ser importante. E, diga-me uma coisa, qual a preocupação deles com a próxima vítima?
— Eles estão preocupados — respondeu ela, honestamente. — Mas querem principalmente pegar o elemento desconhecido.
— Bem, essa é a natureza deles. Deixe-me pensar. Eles estão achando que poderão forçá-lo a revelar o local onde deixou a vítima, depois de o prenderem.
— Isso mesmo.
— Isso pode demandar muito esforço — observou Rhyme. — Arrisco essa opinião sem o benefício das luzes do nosso Dr. Dobyns e dos sábios de Ciência Comportamental. De modo que mudou de idéia, Amélia? Por que voltou aqui?
— Porque, consiga ou não Dellray agarrá-lo, acho que não temos tempo a esperar. Quero dizer, para salvar a próxima vítima.
— Oh, mas nós fomos desmontados. Não ouviu falar nisso? Nossas portas foram fechadas, somos considerados acabados. — Rhyme olhava nesse momento para a tela escura do computador, tentando ver se seu cabelo continuava penteado.
— Você está desistindo? — perguntou ela.
— Policial — disse Sellitto -, mesmo que quiséssemos fazer alguma coisa, não temos mais nenhuma prova material. Esse é o único elo...
— Eu a tenho.
— O quê?
— Toda ela. Está lá embaixo, no VRR.
O detetive olhou pela janela.
Sachs continuou: — Da última cena de crime. De todas as cenas.
— Você tem as provas? — perguntou Rhyme. — Como?
Sellitto, porém, estava rindo.
— Ela furtou-as, Lincoln. Porra!
— Dellray não precisa delas — observou Sachs. — Exceto para o julgamento. Eles pegaram o elemento desconhecido, nós vamos salvar a vítima. Funciona bem, não?
— Mas Mel Cooper acaba de ir embora.
— Não, ele está lá embaixo. Pedi a ele para esperar. — Sachs cruzou os braços no peito. Olhou para o relógio. Passava das sete. — Não temos muito tempo — repetiu.
Os olhos de Rhyme também estavam no relógio. Deus, como estava cansado. Thom tinha razão. Estava acordado por mais tempo do que em anos. Mas estava surpreso — não, chocado — por descobrir que, embora pudesse ter se sentido furioso, embaraçado ou apunhalado por uma cruel frustração naquele dia, os minutos que se escoaram não foram pesos insuportáveis em sua alma. Como haviam sido nos três últimos anos e meio.
— Ratos de igreja que estão no céu! — exclamou Rhyme com uma risada.
— Thom? Thom! Precisamos de café. Em acelerado. Sachs, leve essas amostras de celofane ao laboratório, juntamente com a polaróide do fragmento que Mel tirou do osso de vitela. Eu quero, dentro de uma hora, um laudo de polarização-comparação. E nada dessa merda de “com a maior probabilidade”. Quero uma resposta: em qual rede de mercados nosso elemento desconhecido comprou o osso de vitela. E traga de volta para cá aquela sua pequena sombra, Lon. Aquela que tem o nome de um jogador de beisebol.
As vans pretas corriam em alta velocidade pelas ruas secundárias.
Era uma rota mais demorada para a casa do elemento, mas Dellray sabia o que estava fazendo: espera-se que operações antiterrorismo evitem as grandes artérias urbanas, que são com frequência monitoradas por cúmplices.
Dellray, na parte traseira da van que seguia na frente, apertou mais a correia do colete à prova de bala. Estavam a menos de dez minutos de distância do local.
Enquanto seguiam em alta velocidade, olhava para os prédios de apartamentos em ruínas, para os lotes cheios de lixo. Na última vez em que esteve nesse bairro decrépito, ele era o rastafári Peter Haile Thomas, do Queens. Comprou 65kg de cocaína de um portoriquenho pequenino e mirrado, que, no último minuto, resolveu roubar o comprador. Pegou o dinheiro de Dellray e lhe apontou uma pistola para a virilha, apertando o gatilho com tanta calma como se estivesse comprando verduras na A&P.
Clique, clique, clique. A pistola negou fogo. Toby Dolittle e o grupo de apoio tático pegaram o filho da puta e seus cúmplices, antes que o escroto sacasse a outra arma, deixando um chocado Dellray refletindo sobre a ironia de ser quase morto porque o elemento acreditou realmente no seu desempenho - que ele era um traficante de drogas e não um policial.
— Tempo estimado de chegada, quatro minutos — avisou o motorista.
Por alguma razão, os pensamentos de Dellray voltaram a Lincoln Rhyme. Lamentava ter sido um grande calhorda ao assumir o comando do caso. Mas não teve muita opção. Sellitto era um buldogue e Polling um psicopata — embora pudesse dar conta deles. Era Rhyme que o deixava constrangido. Afiado como uma navalha (droga, foi a equipe dele que encontrara a impressão digital de Pietrs, mesmo que não a tivessem aproveitado com a rapidez devida). Nos velhos dias, antes do acidente, ninguém podia derrotar Rhyme, se ele não quisesse ser derrotado. E tampouco se podia enganá-lo.
Nesse momento, Rhyme era um brinquedo quebrado. Era uma coisa triste o que podia acontecer a qualquer homem, morrer e ainda continuar vivo. Dellray tinha entrado no quarto dele — no quarto de dormir dele, nada menos do que isso — e batido nele com força. Com mais força do que devia.
Talvez desse um telefonema para ele. Ele poderia...
— Hora do espetáculo — disse o motorista, e Dellray esqueceu tudo sobre Lincoln Rhyme.
As vans entraram na rua onde Pietrs morava. A maioria das ruas por onde haviam passado estava cheia de moradores suados, as mãos ocupadas com garrafas de cerveja e cigarros, na esperança de pegar uma ou duas lufadas de ar fresco. Mas essa estava escura, vazia.
Vagarosamente, as vans pararam. Duas dezenas de agentes desceram, usando uniformes táticos de cor preta, levando suas H&Js equipadas com lanternas e miras laser presas aos canos. Dois vagabundos olharam para eles: um deles escondeu rapidamente sob a camisa a garrafa de uísque Colt 44.
Dellray olhou para uma janela no prédio de Pietrs, de onde saía uma pálida luz amarelada.
O motorista da van deu marcha a ré, estacionando em um lugar escuro, e sussurrou para Dellray: — Perkins — e bateu no fone de ouvido. — O diretor está ao telefone.
Eles querem saber quem está comandando a invasão.
— Eu — respondeu seco o Camaleão. Virou-se para o grupo: — Quero vigilância de um lado a outro da rua e nos becos. Atiradores de elite, ali, e ali.
E quero todo mundo em seus lugares em cinco minutos. Estamos entendidos sobre isso?
Descendo a escada, a velha madeira estalando.
O braço em volta do corpo da vítima, guiando-a, meio zonza com o golpe recebido na cabeça, para o porão. Ao pé da escada, jogou-a no chão sujo e fitou-a.
Esther...
Os olhos dela se ergueram ao encontro dos seus. Desespero, súplica.
Ele nem notou. Tudo que via era o corpo. Começou a tirar-lhe a roupa, o uniforme púrpura de jogging. Era inconcebível que uma mulher saísse realmente para a rua, neste dia e tempos, usando o que nada mais era do que, bem, roupas íntimas. Não pensava que Esther Weinraub fosse uma puta. Ela tinha sido uma operária, que costurava vestidos, cinco por um níquel.
O colecionador observou como a clavícula da mulher se destacava ao lado da garganta. E enquanto algum outro homem poderia olhar para os seios e os escuros pêlos pubianos, ele olhou para a endentação do manúbrio e as costelas que dele se projetavam como se fossem pernas de aranha.
— O que é que você está fazendo? — perguntou ela, ainda tonta com o golpe na cabeça.
O colecionador observou-a atentamente, mas o que viu não foi uma mulher jovem, anoréxica, nariz largo demais, lábios carnudos demais, e pele parecida com areia suja. Viu por baixo dessas imperfeições a beleza perfeita de sua estrutura.
Acariciou-lhe a têmpora, alisou-a suavemente. Não deixe que isso seja quebrado, por favor...
Ela tossiu e as narinas se alargaram — os vapores eram muito fortes ali embaixo, embora ele dificilmente os notasse naquele momento.
— Não me machuque de novo — murmurou ela, a cabeça balançando solta. — Simplesmente, não me machuque. Por favor.
Ele tirou o canivete do bolso e lhe cortou e tirou a calcinha. A mulher olhou para o corpo nu.
— E isso o que você quer? — perguntou ela, arquejante. — Tudo bem, pode me foder. Tudo bem.
O prazer da carne, pensou ele... simplesmente não chega nem perto...
Ele levantou-a com um arranco. Alucinada, ela se afastou dele e começou a correr tropeçando para uma pequena porta no canto do porão.
Não correndo, não tentando realmente fugir, simplesmente soluçando, estendendo uma mão à frente, andando em voltas na direção da porta.
O colecionador de ossos observou-a, fascinado pelos passos lentos, patéticos.
A porta, que outrora abria para uma calha de carvão, nesse momento levava a um túnel estreito ligado ao porão do prédio deserto contíguo.
Esther foi se arrastando até a porta de metal, abriu-a e entrou.
Não mais de um minuto depois, ele ouviu o lamentoso grito, seguido por um arquejante e dilacerante: — Deus, não, não, não...
Outras palavras, também, perdidas nos uivos cada vez mais altos de pavor.
Em seguida, ela voltou pelo túnel, movendo-se mais rápida nesse instante, batendo com as mãos no corpo, como se estivesse tentando arrancar de si o que tinha acabado de ver.
Venha para mim, Esther.
Ela veio tropeçando pelo chão imundo, soluçando.
Venha para mim.
Ela correu para os braços pacientes dele, à espera, que se fecharam em volta de seu corpo. Ele apertou-a com força, como se fosse um amante, sentiu a clavícula maravilhosa sob os dedos e, lentamente, arrastou a mulher em pânico para a porta do túnel.
CAPÍTULO XX
As fases da lua, a folha, a roupa íntima úmida, a terra. A equipe estava de volta no quarto de Rhyme - todos, exceto Polling e Haumann. Seria forçar demais a lealdade trazer capitães para o que era, não havia como sofismar, uma operação clandestina.
- Você testou no cromatógrafo o líquido encontrado na calcinha, certo, Mel?
- Tive que fazer isso novamente. Eles cortaram nosso barato antes de eu obter o resultado.
Pegando uma amostra, ele injetou-a no cromatógrafo. Enquanto operava a máquina, Sachs aproximou-se para observar os picos e fossas do perfil que apareciam na tela. Tal como um índice de ações na Bolsa. Rhyme notou nesse momento que ela estava perto dele, como se tivesse se aproximado quando ele não estava olhando. Amélia disse em voz baixa: - Eu fui...
- Sim?
- Fui mais rude do que queria. Antes, quero dizer. Eu tenho mau gênio. Não sei de onde o herdei. Mas tenho.
- Você estava certa - reconheceu Rhyme.
Eles se entreolharam, sem problemas, e Rhyme pensou nas vezes em que ele e Blaine tiveram discussões sérias. Quando falavam, sempre focalizavam a atenção em algum objeto entre eles - um dos cavalinhos de cerâmica que ela colecionava, um livro, uma garrafa quase vazia de Merlot ou Chardonnay.
- Eu processo as cenas de maneira diferente da usada pela maioria dos criminalistas - disse ele. - Preciso de alguém sem quaisquer idéias preconcebidas. E preciso também de uma pessoa que pense por si mesma. As qualidades contraditórias que procuramos naquele esquivo amante perfeito.
Força e vulnerabilidade, em medidas iguais.
- Quando conversei com o comissário Eckert - disse ela -, foi simplesmente para conseguir a efetivação de minha transferência. Isso era tudo o que eu queria. Nunca me ocorreu que aquilo que eu disse chegaria aos federais e que eles tomariam o caso.
- Sei disso.
- Eu ainda perco a cabeça. Sinto muito por aquilo.
- Não se arrependa, Sachs. Preciso de alguém que me diga que sou um palhaço, quando me comporto como um. Thom faz isso. É por isso que o amo.
- Não fique sentimental comigo, Lincoln - gritou Thom, do outro lado da sala.
Rhyme continuou: - Ninguém mais me manda pro inferno. Todos parecem pisar em ovos. Odeio isso.
- Aparentemente, não houve por aqui, nos últimos tempos, muitas pessoas para lhe dizer muito sobre alguma coisa.
Após um momento, ele confirmou: - Isso é verdade.
Na tela do cromatógrafo-espectrômetro os picos e fossas pararam de mover-se e se transformaram em uma das infinitas assinaturas da natureza.
Mel Cooper dedilhou as teclas do computador e leu os resultados: - Água, óleo diesel, fosfato, sódio, minerais vestigiais... Não tenho idéia sobre o que seja isso.
Qual era, perguntou Rhyme a si mesmo, a mensagem ali contida? A própria calcinha? O líquido?
- Vamos continuar - disse. - Quero ver a areia.
Sachs trouxe-lhe o saco. Continha areia rosada, misturada com pedaços de argila e seixos.
- Fígado de boi - anunciou ele. - Mistura de pedra e areia.
Encontrada imediatamente acima do leito rochoso de Manhattan. Na mistura há também silicato de sódio? Cooper voltou ao cromatógrafo.
- Há. Muito.
- Neste caso, estamos procurando uma localização no subsolo, a uns 45 metros de água. - Rhyme soltou uma risada ao notar a expressão de espanto no rosto de Sachs. - Não é magia, Sachs. Eu simplesmente fiz meu dever de casa, só isso. Os empreiteiros misturam silicato de sódio com fígado de boi para estabilizar a terra quando fazem escavações em áreas de leito rochoso profundo perto de água. Isso significa que vai ter que ser no centro da cidade. Agora, vamos dar uma olhada na folha.
Amélia estendeu-lhe o saco.
- Nenhuma pista sobre o que é isso - reconheceu Rhyme. - Acho que nunca vi uma folha como essa. Não em Manhattan.
- Eu tenho uma lista de horticulturas em sites na internet - disse Cooper, olhando para a tela do computador. - Vou surfar um pouco.
O próprio Rhyme tinha passado algum tempo on-line, rodando pela Internet. Como aconteceu com livros, filmes e pôsteres, seu interesse pelo cibermundo acabou minguando. Talvez porque parte tão grande de seu mundo fosse virtual, a Internet era, no fim, um lugar sem esperança para Lincoln Rhyme.
A tela de Cooper piscava enquando ele continuava a clicar hyperlinks e descia mais fundo na web.
- Estou baixando alguns arquivos. Isso deve levar dez, vinte minutos.
- Tudo bem - concordou Rhyme. - Quanto ao resto das pistas encontradas por Sachs... Não as que foram plantadas. As outras. Elas podem nos dizer onde ele esteve. Vamos dar uma olhada em nossa arma secreta, Mel.
- Arma secreta? - perguntou Amélia.
- A prova vestigial.
O agente especial Fred Dellray havia montado uma operação de dez homens. Duas equipes, além do pessoal de busca e vigilância. Os agentes, protegidos por coletes à prova de bala, esconderam-se nas moitas, suando horrivelmente. Do outro lado da rua, no alto de uma casa abandonada, a equipe de S&S tinha suas Grandes Orelhas e filmadoras de vídeo de infravermelho apontadas para a casa do elemento.
Os três atiradores de elite, com suas grandes Remingtons carregadas e travadas, estavam em posição de tiro, deitados no alto de telhados; seus localizadores de alvos, munidos de binóculos, agachados ao lado, Dellray - usando uma jaqueta do FBI e jeans, em vez do terno verde de duende - escutava tudo em um fone de inserção na orelha.
- Vigilância ao Comando. Sensor infravermelho apontado para o porão. Há alguém se movendo lá embaixo.
- O que é que vocês estão vendo? - perguntou Dellray.
- Nada. As janelas estão sujas demais.
- Ele está sozinho, com seu humilde eu? Talvez ele tenha consigo uma vítima neste momento, hã?
De alguma maneira, ele sabia que a policial Sachs estava provavelmente certa, que por essa hora ele já havia sequestrado alguém.
- Não posso dizer. Localizamos apenas movimento e calor.
Dellray tinha enviado outros agentes para guardar os lados da casa.
Eles deram informações nesse momento: - Nenhum sinal de vida no primeiro ou segundo andar. A garagem está fechada.
- Atiradores de elite? - perguntou Dellray. - Informem.
- Atirador Um para Comando. Fui designado para cobrir a porta da frente.
Os outros estavam cobrindo o corredor e um quarto no primeiro andar.
- Arma carregada e travada - informaram pelo rádio.
Dellray sacou a grande pistola automática.
- Muito bem, nós temos um papel - disse ele, referindo-se a uma ordem de busca. Eles não teriam que bater à porta. - Vamos! Grupos um e dois, preparar para entrar em ação, preparar para entrar em ação, preparar para entrar em ação.
O primeiro grupo atacou a porta da frente com um aríete, enquanto o segundo usava o método ligeiramente mais civilizado de quebrar, empurrando para dentro, a janela da porta dos fundos e abrir o ferrolho por dentro.
Entraram rápido, Dellray seguindo o último dos policiais do Grupo Um pela casa velha e imunda. O cheiro de carne podre era sufocante e Dellray, nenhum novato em cenas de crime, engoliu em seco com força, lutando para não vomitar.
O segundo grupo ocupou e tornou seguro o térreo e, em seguida, subiu pela escada em direção ao quarto, enquanto o primeiro descia correndo a escada do porão, as botas ressoando alto no madeirame antigo.
Dellray entrou correndo no porão malcheiroso. Ouviu uma porta sendo fechada em algum lugar abaixo e um grito: - Não se mova! Agentes federais. Parado, parado, parado!
Mas, quando chegou à porta do porão, ouviu o mesmo agente dizer em um tom de voz muito diferente: - Que diabo é isso? Oh, Jesus.
- Porra - gritou o outro homem. - Isso é merda!
- Merda em pilha fumegante! - Dellray escarrou, sufocando, ao entrar, engolindo em seco quando foi atingido pelo cheiro asqueroso.
O corpo do homem estava estendido no chão, dele escapando um fluido preto. Garganta cortada. Os olhos mortos, vidrados, fixos no teto, embora o torso parecesse estar se movendo - inchando e mudando de lugar.
Dellray arrepiou-se. Nunca desenvolveu muita imunidade à visão de uma infestação de insetos. O número de insetos e vermes sugeria que a vítima estava morta há pelo menos três dias.
- Por que foi que conseguimos leitura positiva no infravermelho? - perguntou um agente.
Dellray apontou para marcas de dentes de ratos e camundongos na perna e lado inchado da vítima.
- Eles estão em algum lugar por aqui. Nós interrompemos a hora do jantar.
- O que foi que aconteceu? Uma das vítimas pegou o criminoso?
- Do que é que você está falando? - perguntou secamente Dellray.
- Esse aí não é ele?
- Não, não é ele - explodiu Dellray, olhando para um ferimento em especial no cadáver.
Um dos membros do grupo franzia nesse momento as sobrancelhas.
- Não, Dellray. Esse aí é o cara. Conseguimos fotos dele. Esse aí é Pietrs.
- Claro que é o merda do Pietrs. Mas ele não é o elemento desconhecido. Não entendeu?
- Não? O que é que você quer dizer com isso?
Nesse momento, tudo estava claro para ele.
- O filho da puta.
Nesse momento, o telefone de Dellray tocou e ele sobressaltou-se.
Abriu-o, escutou por um minuto.
- Ela fez o quê? Oh, como se eu ainda precisasse de mais isso... Não, não temos o puto do perpetrador na porra de uma custódia.
Apertou com violência o botão off e apontou um dedo irado para os agentes da SWAT.
- Vocês vêm comigo.
- O que está acontecendo, Dellray?
- Vamos fazer uma visita. E o que é que a gente não vai ser quando fizer isso? - Os agentes entreolharam-se, franzindo as sobrancelhas. O próprio Dellray deu a resposta: - A gente não vai ser absolutamente delicado.
Mel Cooper despejou em uma folha de papel de jornal o conteúdo dos envelopes. Examinou a poeira com uma lupa.
- Bem, aqui há pó de tijolo. E algum outro tipo de pedra. Mármore, acho.
Colocou a amostra em uma lâmina e examinou-a sob o microscópio composto.
- Isso mesmo. Mármore. Cor-de-rosa.
- Havia algum tipo de mármore no túnel do curral? No lugar onde você encontrou a moça alemã?
- Nenhum - respondeu Sachs.
Cooper sugeriu que o mármore podia ser da pensão onde morava Monelle, coletado quando o elemento desconhecido 238 a sequestrou.
- Não. Conheço o quarteirão onde fica a Deutsche Haus. É apenas uma casa de cômodos convertida do East Village. A melhor pedra que poderia existir lá seria granito polido. Talvez, apenas talvez, seja um fragmento do esconderijo dele. Alguma coisa notável na poeira?
- Marcas de cinzel - disse Cooper, curvando-se sobre o microscópio.
- Ah, ótimo. Bem feitas?
- Não muito. Denteadas.
- Tal como de uma velha cortadora de pedra a vapor.
- Acho que sim.
- Escreva, Thom - disse Rhyme, indicando o pôster com um movimento de cabeça. - Há mármore na casa segura do elemento. E a casa é antiga.
- Mas por que é que a gente se preocupa com a casa segura do elemento? - perguntou Banks, olhando para o relógio. - Os federais estarão lá por esta hora.
- Nunca temos informações suficientes, Banks. Lembre-se disso.
Agora, o que foi mais que conseguimos?
- Outro pedaço da luva. Aquela de cor vermelha. E o que é isso? - perguntou ele a Sachs, mostrando um saco de plástico com uma rolha de madeira.
- A amostra da loção após barba. No lugar onde ele se encostou em uma coluna.
- Quer que eu faça um perfil olfativo? - perguntou Cooper.
- Deixe que eu a cheire primeiro - decidiu Rhyme.
Sachs trouxe-lhe o saco. Dentro havia um pequeno disco de madeira.
Ele abriu o saco e inalou o ar.
- Brut. Como foi que você não reconheceu? Thom, acrescente que nosso homem usa água-de-colônia comprada em farmácias.
- Temos aqui aquele outro fio de cabelo - disse Cooper. O técnico montou a amostra em um microscópio de comparação. - Muito parecido com o que encontramos antes. Oh, com todos os diabos, para você, Lincoln, eu diria que é o mesmo.
- As extremidades estão cortadas ou se quebraram naturalmente?
- Cortadas.
- Ótimo, estamos chegando à cor do cabelo - disse Rhyme.
Thom escreveu castanho exatamente no momento em que Sellitto disse: - Não escreva isso!
- O quê?
- Obviamente, não é castanho - continuou Rhyme.
- Eu pensei...
- É tudo, menos castanho. Louro, amarelado, preto, ruivo...
O detetive explicou: - É um velho macete. A gente entra em um beco atrás de uma barbearia, pega no lixo alguns fios de cabelo. Deixa-os na cena do crime.
- Oh! - disse Banks e arquivou a informação em algum lugar em seu cérebro entusiástico.
Cooper montou o fio no microscópio de polarização. Enquanto ajustava botões, disse: - Birrefringência de .053.
- Nylon 6 - disse imediatamente Rhyme. - Com o que é que se parece, Mel?
- Muito áspero. Vista transversal lobulada.
- Carpete.
- Exato. Vou verificar no banco de dados. - Um momento depois, ergueu a vista, tirando-a do microscópio. - E uma fibra HampsteadTextile 118B.
Rhyme soltou um suspiro de nojo.
- O quê? - perguntou Sachs.
- O revestimento de mala de carro mais usado por montadoras americanas. Encontrado em duzentas marcas de carros fabricados nos últimos quinze anos. Inútil... Mel, há alguma coisa na fibra. Use o MEE.
O técnico levantou o microscópio escaneador de elétrons. A tela acendeu-se com um brilho sobrenatural azul-esverdeado. O fio de fibra parecia uma grossa corda.
- Encontrei alguma coisa aqui. Cristais. Um bocado. Os fabricantes usam bióxido de titânio para tornar opacos tapetes brilhantes. Pode ser isso.
- Ponha no cromatógrafo a gás. Pode ser importante.
- Não há aqui o suficiente para isso, Lincoln. Eu teria que queimar toda a fibra.
- Queime, então.
Delicadamente, Sellitto interveio: - Tomar emprestadas provas federais é uma coisa. Mas, destruí-las?
Estou em dúvida, Lincoln. Se houver um julgamento...
- Vamos ter que fazer isso.
- Oh, cara... - disse Banks.
Sellitto inclinou relutante a cabeça e Cooper montou a amostra. A máquina silvou. Um momento depois, a tela pestanejou e apareceram colunas.
- Aí está, é uma molécula de polímero de cadeia longa. Náilon. Mas essa pequena onda, isso é outra coisa. Cloro, detergente... É um produto de limpeza.
- Lembre-se - disse Rhyme - de que aquela moça alemã disse que o carro tinha cheiro de coisa limpa. Descubra de que tipo é.
Cooper passou a informação pelo banco de dados de nomes de marca.
- E fabricado pela Pfizer Chemicals. Vendido sob o nome de fantasia Tidi-Kleen, pela Baer Automotive Products, em Teterboro.
- Perfeito! - exultou Lincoln Rhyme. - Conheço a companhia. Vendem por atacado a frotas de carros. Principalmente a empresas de aluguel de carros. Nosso elemento desconhecido está usando um carro alugado.
- Mas ele não seria louco para dirigir um carro alugado até cenas de crime, seria? - perguntou Banks.
- É roubado - murmurou Rhyme, como se o rapaz tivesse perguntado qual a soma de dois mais dois. - E deve estar com placa roubada. Emma ainda está trabalhando conosco?
- Provavelmente, a esta hora já foi para casa.
- Acorde-a e mande-a fazer uma busca na Hertz, Avis, National, e Budget, para saber se algum carro foi roubado.
- Vou fazer isso - respondeu Sellito, embora contrafeito, sentindo talvez o mau cheiro fraco de prova federal que subia no ar.
- As pegadas? - perguntou Sachs.
Rhyme examinou as impressões eletrostáticas que ela havia recolhido.
- Desgaste incomum nas solas. Está vendo a parte desgastada na parte externa de cada sapato, na parte arredondada da sola do pé?
- Dedos virados para dentro? - especulou Thom em voz alta.
- Provavelmente, mas não há desgaste correspondente no calcanhar, o que seria de esperar. - Rhyme examinou a pegada. — O que acho é que ele é um leitor.
- Leitor?
- Sente-se nessa cadeira aí - sugeriu Rhyme a Sachs. - E encurve-se sobre a mesa, fingindo que está lendo.
Ela se sentou e, em seguida, ergueu a vista.
- E...?
- Finja que está virando páginas.
Ela fez isso, várias vezes. Levantou novamente a vista.
- Continue. Você está lendo Guerra e paz.
As páginas continuaram a ser viradas, ela de cabeça baixa. Após um momento, sem pensar, ela cruzou os tornozelos. As partes externas dos sapatos eram as únicas partes que tocavam o chão.
Rhyme chamou a atenção para esse fato, dizendo: - Ponha isso no perfil, Thom. Mas acrescente um sinal de interrogação.
- Agora vamos examinar as bordas de atrito.
Sachs disse que não tinha consigo a impressão digital boa, aquela com que os federais haviam identificado o elemento desconhecido.
- Ela ainda está no edifício federal.
Rhyme, porém, não estava interessado nessa prova. A que queria examinar era a outra, a Kromekote que Sachs tirou da pele da moça alemã.
- Não escaneável - anunciou Cooper. - Não é nem mesmo de classe C.
Eu não ousaria dar uma opinião sobre ela, se me pedissem.
- Não estou interessado em identidade - esclareceu Rhyme. - Estou interessado nessa linha aí.
Era uma linha em forma crescente e estava bem no meio da almofada do dedo.
- O que é isso? - perguntou Sachs.
- Uma cicatriz, acho - sugeriu Cooper. - De um velho corte. Um corte fundo. Parece que foi até o osso.
Rhyme pensou em outras marcas e defeitos que vira em pele durante anos. Naqueles dias, antes de o trabalho tornar-se principalmente movimentação de papéis e digitação em computador, era muito mais fácil saber a profissão de um cara examinando-lhe as mãos: almofadas distorcidas de dedos com o uso de máquinas de escrever, furos de máquinas de costura e agulhas de sapateiro, endentações e manchas de tinta de canetas usadas por estenógrafas e contadores, cortes feitos por folhas de papel por máquinas impressoras, cicatrizes de cortadores de gabaritos, calos característicos dos vários tipos de trabalho manual...
Uma cicatriz como aquela, porém, nada lhes dizia.
Pelo menos, ainda não. Não até que tivessem um suspeito, cujas mãos pudessem examinar.
- O que mais? A impressão do joelho. Essa é boa. Dá uma idéia do que ele estava usando. Levante-a, Sachs. Mais alto! Calça frouxa. Conservou esse vinco forte aí, de modo que é de fibra natural. Neste tempo, aposto que é algodão. Lã, não. Hoje em dia ninguém vê muita calça de seda.
- Leve, não é jeans - disse Cooper.
- Roupa esporte - concluiu Rhyme. - Acrescente isso ao nosso perfil,Thom.
Cooper voltou a examinar a tela do computador e digitou mais alguma coisa.
- Nenhuma sorte com a folha. Não corresponde a coisa nenhuma existente no Smithsonian.
Rhyme recostou-se mais uma vez no travesseiro. Quanto tempo mais eles teriam? Uma hora? Duas?
A lua. A areia. A salmoura.
Olhou para Sachs, sozinha num canto. Tinha a cabeça baixa e os longos cabelos pendiam dramaticamente para o chão. Ela olhava para o saco de prova, fazendo carranca, perdida em concentração. Quantas vezes ele, Rhyme, tinha ficado naquela mesma pose, tentando...
- Um jornal! - exclamou ela, erguendo a vista. - Onde é que há um jornal por aqui? - Os olhos saltaram nervosos, enquanto passavam de uma mesa a outra. - O jornal de hoje?
- O que é, Sachs? - perguntou Rhyme.
Ela tomou o The New York Times das mãos de Banks e começou a folheá-lo rapidamente.
- Aquele líquido... na roupa de baixo - disse ela a Rhyme. - Poderia ser água salgada?
- Água salgada? - Cooper examinou a tabela do GC-MS. - Claro! Água, sódio e outros minerais. E óleo, fosfatos. É água salgada poluída.
Os olhos de Sachs encontraram-se com os de Rhyme e os dois disseram, simultaneamente: - Maré alta!
Mostrou o jornal, aberto no boletim meteorológico. Continha um diagrama das fases da lua exatamente idêntico ao encontrado na cena do crime. Embaixo, um gráfico das marés: “Maré alta em 40 minutos!”
O rosto de Rhyme contorceu-se de nojo. Ele nunca ficava mais zangado do que quando zangado consigo mesmo.
- Ele vai afogar a vítima. Eles estão sob um píer no centro da cidade. - Olhou desesperado para o mapa de Manhattan, com seus quilômetros de linha de praia. - Sachs, tempo de bancar novamente o piloto de corrida. Você e Banks vão para oeste. Lon, porque você não fica com o East Side? Lá pela South Street Marina. E, Mel, descubra o que diabo essa folha significa!
Uma pequena onda tocou-lhe a cabeça encurvada.
William Everett abriu os olhos e espirrou a água que lhe enchia o nariz. Estava gelado ali e sentiu o coração fraco trepidar, enquanto lutava para enviar sangue quente pelo corpo.
Quase desmaiou outra vez, como daquela vez em que o filho da puta lhe quebrou o dedo. Em seguida, voltou a ficar alerta, pensando na falecida esposa - e, por alguma razão, nas viagens que haviam feito juntos. Tinham ido a Gizé. A Guatemala. Ao Nepal. A Teerã (uma semana antes de a embaixada ser ocupada).
O avião da Southeast China Airlines em que viajavam havia perdido um dos dois motores uma hora depois de terem deixado Beijing. Evelyn tinha baixado a cabeça, a posição a adotar em caso de desastre, preparando-se para morrer e olhando fixamente para um artigo em uma revista distribuída durante o vôo. A revista dizia que beber chá quente imediatamente após uma refeição era prejudicial para a saúde. Ela lhe contou isso depois, no bar do Raffles, em Cingapura, e os dois riram histericamente até que seus olhos se encheram de lágrimas.
Pensou nos olhos frios do seqüestrador. Nos dentes dele, nas luvas volumosas.
Nesse momento, nessa horrenda tumba líquida, a dor insuportável subiu pelo braço e penetrou na mandíbula.
Dedo quebrado ou ataque de coração?, perguntou a si mesmo.
Talvez um pouco das duas coisas.
Fechou os olhos até que a dor diminuiu. Olhou em volta. A câmara onde estava algemado ficava embaixo de um píer podre. Um pedaço de madeira caiu da borda do píer na água agitada, que estava a uns 15 cm abaixo da borda. Luzes de barcos no rio e de localizações de indústrias em Jersey refletiam-se através da estreita fenda. A água lhe chegava ao pescoço e embora o telhado do píer estivesse a algumas dezenas de centímetros acima de sua cabeça, as algemas estavam já estendidas até onde podiam ir.
A dor subiu novamente do dedo, a cabeça rugiu com o sofrimento e caiu para a água quando ele desmaiou. Um nariz cheio de água e a tosse dilacerante que se seguiu acordaram-no novamente.
Nesse momento, a lua puxou a lâmina d'água um pouco mais para cima e, com um súbito gole, a câmara foi fechada e isolada do rio no outro lado. O lugar ficou escuro. Ouviu os sons das ondas gemendo e seus próprios gemidos com a dor.
Sabia que estava morto, sabia que não poderia manter a cabeça acima d'água por mais de alguns minutos. Fechou os olhos e encostou o rosto na coluna preta, escorregadia.