Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COMODORO - P.2 / Patrick O'brian
O COMODORO - P.2 / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Chegou Stephen, e depois de agüentar durante um bom momento os gritos, a indignação e o relato detalhado dos fatos, pediu às senhoras que o deixassem sozinho com o paciente. Realizou o exame: tinha ante si um rosto verdadeiramente inchado, e a costas e os glúteos marcados pelo extremo das cordas e das hastes com as quais o haviam açoitado; contudo, não tinha ossos quebrados, cortes ou incisões. Para Stephen lhe surpreendeu o fato de que um homem tão acostumado aos hipódromos estivesse tão incomodado com tais mostras de moderada violência; apesar disso, Briggs estava prostrado e bem prostrado, assustado e mesmo aterrorizado. Tinha a dignidade no chão, a sensação de ter sido ultrajado, e talvez era represa de algo póximo a uma covardia abjeta. Stephen aprovou os curativos do senhor Owen, prescreveu alguns
medicamentos inofensivos e adequados, e cruzou o corredor até onde as duas inquietas damas esperavam sentadas.

X

X
X
X
X
X

- Necessita tranqüilidade, luz tênue e uma companhia que não seja muito exigente - disse. - Se a senhora Morris fosse tão amável de ficar com ele, explicarei os pormenores do tratamento à senhora minha tia Williams, pois nossa relação familiar me permite o uso de termos e expressões médicas que acharia embaraçoso empregar na presença de qualquer outra dama.
- Não o terão castrado? - perguntou alarmada a senhora Williams quando ficaram sozinhos. - Creio que ao dizer "embaraçoso" não se referisse a isso.
- Não, senhora - respondeu Stephen. - Não terá a senhora um eunuco a seu serviço, não tema.
- Quanto me alegra sabê-lo - disse a senhora Williams. - Ouvi que os ladrões amiúde fazem essas coisas quando suas vítimas resistem. Fazem porque, conscientes de que amiúde o cavalheiro oculta em..., bem, o senhor já entendeu.
- Conhece a identidade dos ladrões?
- Estamos praticamente seguros disso, e me propus de imediato a informar a sir John Wriothesley, o juiz de paz. No início meio suspeitamos dos marinheiros de cuja justa reprimenda era responsável, mas o senhor Aubrey, o comodoro Aubrey, negou redondamente tal possibilidade; e o senhor verá, praticamente é um almirante. Mas então resultou que tinham todos rostos negros, de modo que se tratava obviamente do bando conhecido como os Negros de Hampton, que atuam com o rosto enegrecido quando saem de noite para caçar furtivamente. Suponho que sabiam perfeitamente que costuma transportar somas consideráveis desde Bath.
- Levaram algo?
- Não. Agarrou-se com tal bravura ao seu relógio e ao dinheiro que não roubaram nada em absoluto.
- Excelente. Convém que descanse e medique-se com regularidade, e acredito poder assegurar à senhora que dentro de sete dias voltará a ser o mesmo de sempre.
- Então não corre nenhum perigo? - perguntou a senhora Williams. - Ou seja, que posso enviar ao moço para que diga ao pastor que não precisa que venha. Estou segura
de que não me cobrará o serviço se o avisarmos a tempo. O senhor deve saber que o senhor Briggs é um papista. - Stephen consentiu com a cabeça, e a senhora Williams
acrescentou: - Que alívio. - E sacudiu o sino para pedir vinho de Madeira para o doutor. Uma vez deu boa conta dele, e é que Jack sempre tinha o melhor madeira em
casa, a senhora Williams acrescentou, divertida: - Não é que tenha nada pessoal contra os papistas. O senhor ouviu falar da senhora Thrale? - Stephen voltou a assentir
com a cabeça. - Pois bem, ela se casou com um depois da morte de seu marido, um homem de posição um pouco inferior, além disso, um estrangeiro; mas conforme entendi
a recebem em toda parte.
- Sem dúvida. Aqui tem uma breve lista das medidas e doses necessárias, que me agradaria que a senhora respeitasse com total regularidade. E agora, senhora, eu gostaria
de falar-lhe de minha filha Brigid. Deve ter percebido que sua saúde mental é delicada; mas o que provavelmente não sabe é que seu progresso alcançou uma fase crítica
na qual a menor impressão ou revés poderiam resultar desastrosos. Portanto, devo pedir-lhe que interrompa de momento suas bem-intencionadas visitas a Barham.
- Está me pedindo que deixe de ver o sangue de meu sangue? A minha própia neta? Creia-me se lhe digo, doutor Maturin - disse alterada a senhora Williams, cuja voz
havia alcançado um timbre metálico e dominante, - que é melhor deter o quanto antes e com firmeza estes caprichos infantis, egoístas, teimosos e obstinados: uma
boa surra, o poço ou o quarto escuro, pão, água e talvez uma boa surra com a vara, e o senhor terá solucionado o problema sem maiores dispêndios de meios: ainda
que o senhor seja o médico, quem melhor que o senhor para dar-me razão?
- Lamentaria muito ter que proibir sua entrada em minha casa - disse Stephen.
- E permita-me dizer, senhor - continuou a senhora Williams, já atirada e quase sem escutar, - que não posso dar minha aprovação com respeito à jovem que neste momento
cuida da menina. Naturalmente era meu dever formular-lhe algumas perguntas para satisfazer a curiosidade que sentia por sua competência; mas tudo o que recebi em
troca foram respostas breves e insatisfatórias. Se manejou com tal repulsiva reserva, tal confiança em si mesma, tal autosuficiência, e uma necessidade tal de que
a tratasse com respeito que não pude senão surpreender-me. Correm rumores de dívidas, fazem-se perguntas no povoado e se questiona sua moralidade...
- Estou familiarizado com os antecedentes da dama - asegurou Stephen com voz decidida, - e plenamente satisfeito com as qualidades com que conta a senhora Oakes
para cuidar de minha filha; assim que não sigamos por este caminho, se é tão amável.
- Deveria nomear-me a sua tutora, com direito de inspeção quando esteja embarcado nessas suas viagens tão longas. O que sim tenho é o direito moral de visitá-la;
e também o legal, disso estou segura.
- Discordo. E se, apesar de supor que isso não ocorrerá depois de expor claramente minha posição, cometesse a senhora a torpeza de invadir minha morada, não só meu
servente irlandês (homem forte e perigoso) a expulsaria à força, como a senhora enfrentaria as sérias conseqüências legais: não só pela invasão de morada, como também
por dirigir, e ter dirigido, um escritório de apostas ilegais. Apartir desse momento, a menor amostra de indiscrição de sua parte resultaria infalivelmente no recrutamento
forçoso na Armada de seu homem, Briggs. Ele seria enviado a bordo de um barco repleto de marinheiros normais e comuns, que amiúde são violentos e nenhum deles teria
o menor motivo para portar-se bem com ele; a este barco o destinariam sem dúvida às mortíferas Índias Ocidentais, ou, talvez, a Botany Bay.
 
- Senhor - exclamou George, interrompendo-lhe no jardim. - Papai diz que provavelmente o senhor gostaria de dar uma rápida espiada na esquadra enquanto ainda resta
luz no mar.
- Isso é precisamente o que mais me agradaria no mundo - afirmou Stephen. - George, aqui tem uma moeda de três xelins para você.
- Oh, obrigado, senhor. Muito obrigado. Não conseguimos os quatro peniques, mas agora quando alguém for a Hampton o acompanharei para dar um pançada de... - Suas
palavras se perderam na distância.
- Entre, entre, Stephen - convidou Jack desde as profundidades, as profundidades moderadas, do observatório. - Tenho a lente preparada. Tem cuidado com a viga saliente...
Oh, nem pense em tocar nessa roda de espigas. Cuidado com a caixa ocular, se é tão amável. Não se preocupe, depois o arrumarei e o limparei. Bem, vejamos, entre
aqui e sente bem reto no tamborete: reto no tamborete, aí. Pelo amor de Deus, Stephen, deixe essa porca em paz. Se necessitar agarrar em algo, pegue na carcaça da
torre. Será muito mais fácil quando seus olhos se acostumarem com a penumbra: a penumbra é para ter um bom contraste, entende? Aí, sente-se reto. Introduzi uma espécie
de olho mágico, como poderá ver. Não, aproxime o olho até o ocular, Stephen. Pequeno tipo raro é; de fato, são fios de teia de aranha estirados, colocados no lugar
preciso. Engenhoso, não acha? A irmã de Herschel me ensinou a fazê-lo. O enfoque é o correto para meu olho bom, mas se achar um pouco borrado gire esta roda - explicou
ao mesmo tempo que guiava seus dedos - até que o distinga perfeitamente. De momento há pouca turbulência. O telescópio está apontado com muita precisão, de modo
que nem pense em tocar em nada mais, ouviu?
Stephen se acomodou, meteu o olho a fundo no ocular, respirou fundo várias vezes e girou a roda com cuidado. De repente o olho mágico ganhou em nitidez e em sua
interseção viu um navio de linha, nítido e claro como a água, que pertencia a outro mundo, a outra dimensão por mais familiar que fosse. Penduravam as joanetes para
arejar-se, e muitas pessoas se encontravam nos costados, concentradas em arrumar e pintar o barco, coisa que não diminuia beleza da cena, nem tampouco diminuia um
pingo à sensação de força concentrada. Fazia do barco um ser vivo, um navio não isento de consciência própia e coletiva, de ansiedade, que prendia a respiração pousando
para seu própio retrato, preparado para receber a visita de um almirante.
- Tenho ante mim o barco mais elegante do mundo - assegurou Stephen. - Um setenta e quatro, não me cabe a menor dúvida.
- Bem feito, Stephen - exclamou Jack, e se tratasse de outra pessoa lhe teria dado uma palmada nas costas. - Pequena planta tem este setenta e quatro. E esse galhardetão
vermelho de rabo de galo é meu galhardetão. O almirante enviou seu tenente de bandeira para expressar-me seu desejo de que o hasteasse de imediato, coisa que agradeci.
Saberá que é necessário obter permissão para isso.
- De modo que se trata do Bellona, pedra angular de seu comando! Hurra, hurra! Eu lhe felicito, Jack. Cá, eu diria que tem um senhor castelinho, o que diz muito
a favor de sua dignidade.
- E não só de sua dignidade, mas também de sua segurança. Quando está no castelo de popa em metade de um combate com um inimigo feroz que lhe dispara tanto com a
artilharia de grande calibre como com a fuzilaria, é um consolo dispor de um sólido castelinho a suas costas.
- De minha parte prefiro ficar abaixo, muito abaixo. Eu lhe rogo que me mostre o restante da esquadra.
- Ali tem a Pyramus - indicou Jack movendo a lente até que o olho mágico repousou em uma esplêndida fragata de trinta e oito canhões. - É como a Belle Poule francesa.
Agora pertence a Frank Holden, um bom tipo, e corajoso também; mas duvido que fiquemos comela. Asseguram os desagradáveis rumores que correm que a enviarão para
fazer um cruzeiro por conta própia, e que a substituirão por uma embarcação de porte inferior, mais velha e lenta. Temo que o ar começa a cintilar no porto e em
Gosport - seguiu dizendo enquanto girava o telescópio e o deslocava pela guia, - mas se voltar a enfocá-lo a seu olho acho que distinguirá um barco que anda devagarzinho
junto a Priddys Hard. É o Stately, um navio de sessenta e quatro; me o deram depois de arrebatar-me súbita e injustamente ao Terrível, nosso outro setenta e quatro.
Muito me temo que vamos ficar com ele. Um barco de sessenta e quatro canhões é uma embarcação muito lamentável, Stephen; de certa forma pior inclusive que o horrível
e velho Leopardo que era um simples cinqüenta. A bordo deste último poderíamos fugir de um setenta e quatro holandês sem temor de ruborizar-nos, e prender a vela
até que todos voltássemos a rir e pudéssemos nos olhar ao espelho com a consciência tranqüila; mas um sessenta e quatro teria que mudar de bordo e enfrentar-se ao
inimigo, a risco de cubrir-se de desonra. O capitão do Stately, William Duff (recorda-se de Billy Duff de Malta, Stephen?), faz o que é possível, mas... Aí, já escurece.
O sol se oculta. Só consigo distinguir o Aurora, uma fragata de vinte e oito canhões, e o bergantim Orestes, mas ambos se esfumam e terei que esperar para falar-te
deles quando tenhamos levado algo ao estômago. Deve estar com uma fome de lobo.
- Se Deus quiser os verei a todos amanhã. Tenho que embarcar cedo, para reunir-me com meus ajudantes e revisar o instrumental médico e a botica. Quantos somos no
total?
- Para dizer verdade, Stephen, não sei. Há tantas mudanças e cortes. Ainda nos falta uma fragata; é possível que percamos a Pyramus; as corvetas e os bergantins
vêm e vão; e a data se adia uma e outra vez. Não devia ter insistido tanto para que regressasse logo. Afinal de contas, conheço a Armada desde que era um girino,
e jamais, jamais, há se lançado ao mar uma esquadra na data designada em primeira instância pelo almirante ao comando do porto, ou pelo comodoro, e tampouco nunca
se fez com os barcos atribuídos no início. Mas agora, por minha vida, que vai comer como é devido. Sophie não deixou de se queixar por não lhe ter visto devido ao
sarampo das crianças, e não o deixa de repetir. Nós a arrastaremos para longe de suas contas e se sentará comodamente conosco e um prato de pães. Amanhã cedo terá
ocasião de ver a esquadra sob a luz do amanhecer, antes do café da manhã e se não chover, claro; e depois cavalgaremos direto para Pompey.
 
Stephen se alojava no quarto de costume, afastado das crianças e do ruído, em um canto da casa que dava para a cerca e para a pista de bochas. Apesar de sua prolongada
ausência, aquele lugar lhe era tão familiar que quando despertou mais ou menos às três se aproximou da janela quase tão rapidamente como se estivesse a ponto de
amanhecer, abriu-a e saiu para a sacada. A lua havia se ocultado, e quase não viu uma única estrela. O orvalho impregnava de frescura a quietude que se respirava
no ar; enquanto que, ao longe, nas plantações de Jack, um tardio rouxinol entonava com voz indiferente seu rotineiro canto; mais perto, na cerca, e muito mais agradável,
ouviu o agradável canto de dois, ou talvez três bacuraus que gorgeavam na cerca, gorgeios que ficavam mais forte e amainavam entrelaçados, de tal maneira que não
podia localizá-los com total segurança. Preferia poucas aves aos bacuraus, mas não fora seu canto o responsável por Stephen ter despertado: permaneceu de pé apoiado
na grade da sacada e Jack Aubrey, no quiosque que havia junto ao campo de bochas, começou a tocar de novo, suavemente, ao amparo da escuridão: improvisava com seu
violino e fantaseava com uma maestria que Stephen não podia comparar com nada, apesar dos anos e anos que tocavam juntos.
Como tantos outros marinheiros, Jack Aubrey também havia sentindo saudade da possibilidade de descansar em sua cama quente durante toda a noite; contudo, agora que
tinha a possibilidade de fazê-lo com a consciência tranqüila, amiúde se despertava a horas pouco cristãs, sobretudo se se sentia impelido por uma forte emoção, e
saía de seu quarto de roupão para passear pela casa ou os estábulos ou perambular pela pista de bochas. Amiúde levava consigo o violino. De fato era melhor intérprete
que Stephen, e agora que empregava seu precioso Guarneri em lugar do resistente instrumento que tocava no mar, a diferença era, se couber, mais notável. Ainda que
não seria justo atribuir todo o mérito ao Guarneri. Jack dissimulava sua maestria quando tocavam juntos para manter-se ao medíocre nível de Stephen: este o descobriu
quando suas mãos se recuperaram finalmente das empulgueras{10} e demais instrumentos com que os oficiais da contra-espionagem francesa o torturaram em Menorca; mas
pensando bem, Stephen achou provável que tivesse começado a superar-lhe muito antes, pois, além da sua saúde delicada durante aquele período, Jack pertencia a esse
tipo de pessoa que detesta se exibir.
Agora, naquela noite quente, não havia ninguém a quem consolar, ninguém a quem desconcertar, ninguém que pudesse zombar dele por ser um virtuoso, assim que podia
se deixar levar completamente; e a medida que fluía a grave e sutil música de seu violino, Stephen serviu uma vez mais de testemunha à aparente contradição encarnada
naquele enorme, alegre e ruborizado oficial da marinha que a todos deslumbrava apenas com sua presença, mas a quem ninguém descreveria como epítome de sutileza,
nem sequer como alguém capaz de sutileza alguma (excetuando, talvez, seus adversários em combate), e a quem ninguém tampouco teria relacionado com a intrincada e
reflexiva música que criava nesse momento. Pólo oposto à limitação de seu vocabulário, que em ocasiões riscava em uma incapacidade total.
- Minhas mãos recuperaram a medíocre habilidade que tinham antes de que me capturassem - observou Maturin em voz alta, - mas as de Jack alcançaram um ponto que jamais
achei possível nele: não só suas mãos, também sua inteligência. Estou assombrado. A seu modo, ele é o agente secreto. Só gostaria que sua música fosse mais alegre.
 
Contudo, à primeira hora da manhã voltava a ser o Jack Aubrey de sempre.
- Se não tivesse nomeado Adams meu secretário pessoal - disse Jack enquanto caminhavam sobre o orvalho em direção de seu observatório, - agora lhe pediria que ficasse
aqui para ajudar Sophie com a papelada. A propriedade de Woolcombe não é grande coisa, terra baldia em sua maior parte, mas dá muita dor de cabeça porque hospeda
alguns arrendatários que não poderiam ser mais ardilosos, uma corja de ladrões, e a pobre tenta levar tudo sozinha, para não dizer nada deste lugar e dos infernais
impostos, dos necessitados, dos dízimos... E esse pássaro?
- É um picanço real, ainda que há quem o toma por picanço, somente.
- Sim. O guarda do primo Edward sempre os chamou assim. Quando era menino me mostrou um ninho. Mas voltando aos dízimos, temos um novo pastor, o senhor Hinksey.
Recorda-se dele?
- Não, a menos que fosse aquele cavalheiro com quem encontrei em uma ou duas ocasiões em minhas livrarias, e que teve a amabilidade de levar alguns ensaios náuticos
para Sophie.
- Trata-se do mesmo homem que a pretendeu quando levamos o pobre senhor Stanhope a Kampong, nas Índias Orientais. A senhora Williams o considerava o pretendente
ideal. É um pastor muito cavalheiresco, com uma boa renda de quinhentas, ou, mesmo, de seiscentas libras anuais. Era um nosequé de Oxford; talvez um querelador em
matemáticas. Há laureados em matemáticas{11} em Oxford, Stephen?
- Inclino-me a pensar que são coisa de outro lugar. Diria que em Oxford só há fornicadores, ainda que poderia equivocar-me.
- Bem, seja como for se tratava de um título louvável. E ela assegura que a razão dele nunca ter casado não se deve a Sophie ter quebrado seu coração quando fugiu
para casar-se comigo. E olha, aí o tens agora, instalado em nossa reitoria pelo menos há dezoito meses. Não lhe parece assombroso?
- Não acredito já ter estado tão assombrado.
- Tal e como suporá me dispunha a odiá-lo com todas minhas forças, mas é um ginete consumado e um rebatedor de primeira, um tipo tão agradável, aberto e amistoso
que não pude fazê-lo. É um homem de compleição forte, com uma altura de seis pés e pouco; e no colégio costumava boxear. Tem o nariz quebado.
- Claro, claro, isso por si diz muito a seu favor.
- Bem, significa que não pode conversar decentemente na linha evangélica, como alguns outros pastores e alguns de nossos oficiais secundaristas com seus ensaios
devotos. Veio de vez em quando, quando a mãe de Sophie ou a própia Sophie andavam perdidas com a contabilidade, coisa que me parece muito atenta de sua parte. Porém,
por Deus, como posso ter desviado do tema desta maneira? Falava de Adams. Vejamos, compreenderá, Stephen, que existe uma diferença incomensurável entre ser o secretário
de um oficial de bandeira e o escrevente de um capitão, de modo que depois de nomeá-lo como meu secretário a decência não me deixa pedir-lhe que fique em terra para
ajudar a Sophie. Contudo, pedirei que busque entre seus conhecidos em Plymouth e Gosport a alguém que ocupe seu lugar na casa... Bem, já chegamos. Stephen, cuidado
com essa vala: caminhe pelo centro da tábua. Demos este rodeio porque queria mostrar uma trepadeira à qual tento convencer para que converta uma árvore desmochada
em um parreiral, ainda que ao que parece as urtigas terminarão por devorá-la. Agora deixe-me ir antes para enfocar de novo a lente; como suporá, existe uma diferença
prodigiosa entre um espelho de manhã e outro de noite, certamente. Não tardará em ver toda a esquadra que vale a pena ver. Alguns dos bergantins e uma escuna ou
duas se reunirão conosco em Lisboa. Como a luz vem do leste não poderá apreciar todos os detalhes, mas espero que pelo menos faça uma idéia do que há.
Ninguém teria surpreendido em Jack Aubrey o menor indício de façanhice, exceto, talvez, nesse caso, que era especial. Ele mesmo fizera o telescópio, tinha afinado
sete espelhos antes de conseguir aquela peça prima; inventara a sela melhorada, assim como o descobridor de observação de precisão; e neste único caso fez trejeitos,
tentando que o invento fizesse milagres, enquanto esperava que o sol desprendesse uma iluminação mais difusa e equilibrada, tudo isso enquanto resmungava toda sorte
de ociosas explicações.
Stephen ignorou o bate-papo difuso de seu amigo, principalmente composto de tecnicismos incompreensíveis entre os quais difração, aberração e imagens virtuais se
erigiam como protagonistas, e em lugar disso deu uma espiada às sucessivas visões distantes e silenciosas, a medida que se meterializavam no ocular.
Primeiro o esplêndido Bellona, que estava de perfil: parte da dotação seguia concentrada baldeando o castelo de proa e tudo o que podia ver-se no convés superior,
enquanto as guardas de popa e do castelo atritavam a popa e o castelo de popa com pedra arenito.
- Setenta e quatro canhões, certamente - disse Jack, - um peso em metal por descarga de novecentas vinte e seis libras: vinte e oito canhões de trinta e seis libras
no convés principal, vinte e oito canhões de dezoito libras no convés superior, dois longos de doze libras como guarda-lemes, e seis curtos, além das dez caronadas
de trinta e duas libras e quatro pequenas para a popa.
- Isso o converte em um navio de setenta e oito canhões.
- Pelo amor de Deus, Stephen. Estou seguro de que se fizer um esforço recordará que não costumamos incluir as caronadas quando contamos o total de peças que arma
um navio.
- Peço que me perdoe.
- É um barco de Chatham: mil seiscentas e quinze toneladas, uma ponte de cento e sessenta e oito pés, um vau mestre de quarenta e seis pés por cinco; e tem um calado
de dezenove pés com nove na bodega, o que considero muito aceitável. Com apetrechos para seis meses afunda vinte e dois pés com nove na popa. Muito menos na proa,
certamente.
- Quando o construiram?
- Em 1760 - respondeu Jack a contragosto, um pouco na defensiva. - Mas ninguém o consideraria um barco velho. O Victory foi lançado um ano antes, e pelo que entendo
está como novo. Dizem que respondeu toleravelmente bem em Trafalgar. Além disso, em 1805 forraram o Bellona, e dispõe de um aparelho novo, de modo que é como se
acabasse de sair do estaleiro. Muito melhor, pois tudo está em seu lugar.
- Desculpe-me.
- Sempre foi um barco peculiarmente marinheiro, recordo-me muito bem dele de quando estive nas Antilhas quando criança. Balança com desenvoltura, anda a nove e mesmo
dez nós de bolina com vento de joanetes, bom governo, vira em redondo rapidamente, aperta perfeitamente com a gávea maior e a de estai de mezena, e entra prodigiosamente
bem em todos os sentidos... Diabo, como o baldearam bem.
- Alegra-me ouvir isso. Por favor, informe-me o número de tripulantes.
- A dotação estipulada é de quinhentos e noventa homens, mas acho que andamos com falta de uns vinte ou quarenta, mas esperamos grandes coisas do recrutamento da
segunda-feira, no Nore. Ainda que, bem, isso é coisa de Tom; eu só devo me preocupar com a papelada do Almirantado, da Junta Naval, do almirante ao comando do porto
e dos demais capitães que pertencem à esquadra. Agora permita-me mostrar o outro navio de linha que nos acompanhará. - Manipulou uma rodinha. Paus, vergas, velas
arejadas, exárcia e trechos de água clara e brilhante desfilaram ante o campo de visão de Stephen; de repente o alvo se deteve, trêmulo, e aí, tão nítido, firme
e distinguível como Jack ou qualquer outro construtor de telescópios teria podido desejar, apareceu outro navio de duas pontes, desta vez não de perfil, mas visto
a quatro quartas pela amura de estibordo, posição que lhe permitia apreciar as vergas perfeitamente perpendiculares com o casco. Tinha os costados pintados de negro,
e as portalós dos canhões com uma faixa de azul-claro, enquanto que por cima destas refletia uma linha da mesma cor, combinação que causou em Stephen uma pontada
no coração, pois era uma das favoritas de Diana.
- Esse é o Stately, o navio de sessenta e quatro canhões - informou Jack. - Ele nos foi imposto depois de nos arrebatarem o Terrível, mostra mais vil de favoritismo
e politicagem na Armada.
- Contudo, está claro que seu capitão é um homem de bom gosto - manifestou Stephen.
- Bem, quem sou eu para falar do gosto de alguém, não sou nenhum diletante. Ainda que se a trama enxadrezada de Nelson valia para esse grande homem, então também
vale para mim. - Jack fez uma pausa. - E lhe direi uma coisa, Stephen, não sou amigo de desbocar ninguém por suas costas, mas você é médico, e isso lhe converte
em alguém especial, como compreenderá. Já sabe, odeio o fato de que se enforque ou se açoite aos sodomitas em toda a frota, e gosto de Duff, mas se alguém não quer
que a disciplina vá a pique, convém não se relacionar com os jovens gavieiros de água doce. Duff é um bom marinheiro, e faz o que pode, mas o Stately demorou toda
a noite para fundear em sua paragem... Bem, em qualquer caso aí tem um barco velho: talvez não o lançassem até oitenta e dois, mas serviu no bloqueio de Brest durante
anos e anos, o que bastou para fatigá-lo antes do tempo; já sabe, esses temíveis ventos do sudoeste que duram semanas e semanas, e algumas marejadas do Pai e nosso
Senhor. Não voltaram a forrá-lo nem a trocar o aparelho como Deus manda. Em estes momentos, é tão pouco marinheiro como a Arca depois que Noé a pôs para secar nas
alturas do Ararat, e talvez seja a mais lenta das embarcações de sua classe fabricadas. Cai para sotavento de tal maneira que consideraria parecido com qualquer
lavrador do interior arando. Dado que temos que conviver com ele, lhe direi que arquea mil trezentas e setenta toneladas; cento e cinqüenta e nove pés e seis polegadas
de distância de popa a proa, com um vau mestre de quarenta e quatro pés por quatro. Arma vinte e seis canhões de vinte e quatro libras, vinte e seis de dezoito libras,
seis de nove libras e dezesseis caronadas mistas, para um total de apenas setecentas e noventa e duas libras contra as mais ou menos mil do Terrível. Se puder efetuar
duas descargas a cada cinco minutos será um milagre. Busquemos algo mais satisfatório. - De novo a imagem se tornou borrada. - Oh! - exclamou
Jack, muito mais alegre. - Não esperava vê-lo tão cedo. Reconhece-o, né? - Stephen não respondeu. - É o cúter Nimble, a bordo do qual nos levou para casa de Groye
esse jovem, Michael Fitton. Mas não vou me deter muito nele. Aqui, olhe, é a jóia de nossa esquadra, a Pyramus, uma autêntica fragata moderna de trinta e seis canhões
de dezoito libras, novecentas e vinte toneladas de arqueio, cento e quarenta e um pés de distância de popa a proa, trinta e oito pés por cinco do vau mestre, e um
peso de metal por bombardeio de quatrocentas e sessenta e sete libras. Conta com uma dotação de duzentos e cinqüenta e nove dos melhores homens, pois levam tempo
navegando juntos e são feitos o seu capitão, esse tipo estupendo e empertigado do Frank Holden, assim como de seus oficiais, alguns dos quais já navegaram conosco.
- Observou o barco com a aprovação desenhada no olhar, antes de seguir adiante com a inspeção. - Aí tem a Aurora, nossa outra fragata - disse. -Temo que poderíamos
considerá-la outra relíquia: foi lançada em 1771, e apenas arma vinte e quatro canhões de nove libras, como naquele época, mas sinto certo afeto por ela devido à
Surprise, ainda que não possa compará-la em rapidez e a Surprise seja muito mais marinheira e cômoda. Quinhentas e noventa e seis toneladas, cento e vinte pés com
seis de distância de popa a proa, e neste momento provavelmente conte com cento e cinqüenta homens, de uma dotação total de cento e noventa e seis. É comandada por
Francis Howard, O Grego, a quem conhece perfeitamente porque nos encontramos com ele frente a Lesbos. Mais para lá, em direção a Saint Helens, está a Camilla, de
vinte canhões, e o Orestes, um bergantim com aparelho de corveta, além de outras embarcações. Eu lhe falarei delas enquanto cavalgarmos para o porto, e certamente
lhe mostrarei quando estejamos lá. Porém, por agora, acho que já viu bastante.
- Não, em absoluto - disse Stephen ao abandonar uma postura intolerável por mais incômoda que fosse. - É um comando muito mais imponente do que tinha imaginado,
e muito mais glorioso.
- Sim é mesmo, né? - perguntou Jack enquanto o guiava para a saída do observatório. - Apesar desses coroas, e mesmo prescindindo do Terrível, é uma esquadra estupenda.
Sinto-me tão orgulhoso como Poncio Pilatos. Ainda que já imaginará o peso de tamanha responsabilidade. Em Mauricio tinha o almirante por minhas costas, ainda que
não estivesse presente, mas neste caso estarei totalmente sozinho.
 
Sophie os recebeu a meio caminho da casa. Estava radiante e linda, mas ao mesmo tempo parecia inquieta. Expôs uma das razões que justificavam tal incômodo ainda
antes de chegarem na casa: ao que parece, sua mãe e a senhora Morris tinham decidido voltar a Bath, levando Briggs; ela lhes cedera o coche, mas Bentley o traria
de volta quando os cavalos tivessem descansado. Aquela era uma ação muito mais decidida do que Stephen pudera esperar; contudo, ela não parecia dar-lhe a menor importância.
Não, era o fato de ter prescindido do coche e de um par de cavalos o que a inquietava, e nem por sua mãe ter se ausentado.
- Oh! - exclamou Jack, que apenas assentiu com a cabeça ante semelhantes notícias. - Cheira a bacon e café - disse ao abrir a porta. - E inclusive a ovos recém feitos.
Não tem melhor forma de começar o dia. E rins defumados!
Os três se sentaram sozinhos na sala de desjejum, a sala mais cômoda da casa, e parte original da fazenda de Ashgrove tal e como era antes de que Jack Aubrey, durante
uma dessas avalanchas de ouro que às vezes alcançam os comandantes mais afortunados em sua guerra particular por butim, empreendesse a construção de alas, estábulos,
a dupla cocheira, basculante aqui e lá, a sacada de canto, e uma fileira de casas modestas para os velhos companheiros da Armada. Estavam sozinhos os três, pois
ainda que amavam às crianças de todo coração estas comiam com a senhorita O'Hara, sentados com a costas bem reta, sem nunca chegar a tocar o respaldo da cadeira,
e falando somente quando lhes dirigiam a palavra.
Os saborosos rins defumados não tardaram em desaparecer; durante, esvaziou-se a primeira cafeteira, e Jack em silêncio atacou os ovos e o bacon, escutando pela metade
o relato preciso e circunstancial que fazia Stephen da moda importada de Madras de preparar um prato composto de pescado esmiuçado, ovos e arroz, momento em que
Killick entrou com o queixo inclinado em direção ao comodoro.
- Chegou o tenente de bandeira do almirante do porto, e roga por favor que o receba. Ordenei a Davies, O Lerdo, que levasse o pangaré ao estábulo, e o acompanhei
ao salão aveludado. - Para Killick, o veludo tinha uma forte conotação de riqueza, assim como a palavra "salão"; pois o salão frontal tinha um sofá coberto de veludo,
além de algumas almofadas, nada no mundo lhe teria induzido a referir-se a ele de nenhuma outra maneira. Tão somente acompanhava à sala em questão os oficiais de
guerra.
- Oh - disse Jack antes de jogar tomar o restante de café, - desculpe-me, querida. Já volto. Sem dúvida se trata do informe semanal.
Mas transcorreram os minutos e as torradas deixaram de se considerar como tais; provavelmente havia algo muito mais complexo em jogo que o relatório semanal.
Sophie esquentou uma segunda cafeteira, inclinou a cabeça e serviu outra xícara para Stephen.
- Quanta alegria tê-lo aqui de novo - disse. - Quase não lhe tive para mim sozinha nem por cinco minutos, apesar do muito tempo que passara fora, e aos milhares
e milhares e milhares de milhas que nos separaram. Tampouco vi muito a Jack. Recebe continuamente mensagens do almirantado, ou vem gente para entrevistar-se com
ele ou para pedir-lhe que aceite a um de seus filhos a bordo de qualquer de seus barcos. E também está tão contente por ter conseguido este esplêndido comando -
daqui para a bandeira, não, Stephen? - que anda também muito preocupado, sobretudo com tantas mudanças e cortes. Também está preocupado com o Parlamento, e com suas
propriedades em Woolcombe... Oh, Stephen, quanto éramos felizes sendo pobres. Agora tem tanto o que fazer e tanto como o que se preocupar - por não falar do banco
asqueroso que não responde à correspondência, - que já não temos tempo nem para conversar como costumávamos fazer. Na próxima quinta-feira convidamos para almoçar
a todos os capitães, ainda que seja a data de nosso aniversário. Certamente alguém se embebedará. Diga-me, como o encontra, depois de todas estas semanas?
- Mais cansado do que me agradaria vê-lo - respondeu Stephen, olhando-a nos olhos.
- Sim - admitiu Sophie, que guardou silêncio alguns segundos antes de acrescentar: - Tem algo em mente. Não é o mesmo. Não se trata apenas dos barcos e do trabalho.
Além disso, o senhor Adams, que é um tesouro, encarrega-se de aliviar boa parte de seu trabalho. Não. Eu o noto como reservado..., não digo que não seja amável...
Mas quase lhe diria que se mostra frio. Não. Isso seria um absurdo exagero. Mas amiúde dorme em seu estúdio devido à papelada ou porque fica até tarde. E mesmo quando
não é assim se levanta de noite e vai passear até o amanhecer.
Imerso em uma conversa tão pouco promissora, não ocorreu nada melhor a Stephen que dizer:
- Talvez recupere o ânimo no momento em que se jogue ao mar. - O que lhe fez credor de um olhar de censura. Ambos estavam quase certamente a ponto de dizer algo
desafortunado quando Jack entrou depois de acompanhar à porta o tenente de bandeira, com os vestígios do sorriso de despedida nos lábios.
- Temo que dizia respeito à Pyramus. Vão afastá-la da esquadra, e em lugar dela nos acompanhará a Thames. A Thames, uma fragata de trinta e dois canhões de doze
libras.
- São apenas quatro canhões a menos que a Pyramus - observou Sophie, em um de seus infelizes esforços para consolar seu marido.
- Verdade. Mas seus trinta e dois canhões só são de doze libras, em contraposição aos de dezoito que arma a Pyramus. A descarga por bombardeio quase não alcança
as trezentas libras, enquanto que a outra descarregaria um total de quatrocentas e sessenta e sete. Mas queixar-nos não vai nos servir de nada. Venha, Stephen, temos
que ir. Seria possível outra xícara de café?
- Oh, querido - lamentou-se Sophie, - temo que não. Mas não tardarei nem cinco minutos em fazer outra cafeteira. - Fez soar o sino, mas o fez soar em vão. Jack já
se havia posto em marcha e metia pressas a Stephen para que atravessasse primeiro a porta. - Não se esqueceu que os Fanshaw, a senhorita Liza e o senhor Hinksey
vêm para jantar? - perguntou.
- Tentarei voltar a tempo para o jantar - respondeu Jack. - Mas se o almirante me entretém, apresente-lhes minhas desculpas. Certamente Fanshaw entenderá.
 
Cavalgaram por um terreno que podia ser considerado um bosque respeitável: Stephen montado em sua égua, e Jack em um baio castrado e forte.
- Ontem mesmo lhe falava desse pastor, o senhor Hinksey - disse Jack, rompendo um longo silêncio.
- Acho recordar que disse que não podia odiá-lo.
- Isso mesmo. Porém, ainda que não poderia chegar a odiá-lo com todas minhas forças, agora que me sinto tão condenadamente maltratado por ter perdido a Pyramus lhe
direi que tampouco me agrada. Nos visita muito amiúde para meu gosto; e caminha pela casa como se... Uma vez inclusive o encontrei sentado em minha poltrona favorita,
e ainda que deu um pulo ao ver-me entrar enquanto conjugava a desculpa conveniente me pegou de surpresa. Sophie e ele falam continuamente das coisas que sucederam
comigo no mar... Caramba! Aí tem de novo o seu picanço que parece um roedor.
Stephen falou então durante um tempo dos picanços que pudera reconhecer ao longo de sua vida, e em particular do picanço de dorso vermelho de sua infância; ofereceu
a Jack a possibilidade de mostrar-lhe a diferença entre o mosquiteiro comum e o mosquiteiro musical, pois alguns deles volteavam ao redor das folhas que pendiam
sobre suas cabeças. Mas se conteve ao perceber que o comodoro havia se consentrado em um profundo silêncio, remoendo, talvez, ao assunto das fragatas e dos modestos
navios de linha de que dispunha, assim como a criminosa despreocupação de quem despachava milhares de homens ao mar sem contar com um plano consistente, uma preparação
cabal ou a adequada previsão.
Cavalgaram silenciosos até alcançar a ponte que conduzia à ilha Portsea, onde Jack exclamou:
- Santo Deus, já chegamos à ponte. Stephen, acho que perdeu o dom da fala; de tanto cismar nem sequer se deu conta de que já chegamos. - Aquela descoberta pareceu
comprazer-lhe descomedidamente, assim como a prova de que o castrado cavalgava a bom passo. Seu mau humor havia desaparecido, e cavalgaram através da familiar paisagem
que moldava os arredores do povoado, e depois, mais alegre se cabe, por suas ruelas esquálidas, até chegar a Keppels Head, sua pensão favorita que conhecia desde
seus tempos de guarda-marinha. Ali largaram os cavalos e seguiram a pé até o Hard às dez horas. Bonden os esperava, acompanhado pelos sorridentes tripulantes da
falua de Jack, e vogaram com precisão para governar a embarcação de um oficial de bandeira, olhando com desprezo as demais embarcações auxiliares que infestavam
em todas as direções aquele enorme porto.
E vogaram com brio, pois o Bellona fundeava junto a Haslar, e a mente de Stephen, arrulhada pelo ritmo constante, nadou longe, atrás no tempo, até parar nos picanços
de sua infância, da etapa catalã de sua infância cuja paisagem era objeto das carícias do sol. Pensava na língua catalã quando Jack, por decepção de seu timoneiro,
ordenou atracar por bombordo.
Não era momento de importunar à dotação de um barco ocupado - que andava acarretada com a estiva dos apetrechos, e que, para mais afronta, estava necessitada de
homens - com a chegada cerimoniosa do comodoro pelo lado de estibordo; mas para Bonden lhe doeu, pois, assim como Killick, sentia fraqueza pela pompa e circunstância
desde quando se tratasse da pompa e circunstância de seu oficial ao comando. Sentia não menos afeição pela sapatada e o estampido metálico dos infantes da marinha
quando apresentavam armas, depois de que o contramestre e seus ajudantes chamassem ao toque de apito aos homens para avisar que Jack ia subir a bordo do castelo
de popa, cheio de oficiais e guardas-marinhas expectantes; ademais, hospedava a esperança de que Stephen servisse de testemunha ao esplendor que rodeava ao seu comodoro.
Mas como não tinha nem voz nem voto puxou da cana para obedecer a ordem, e a falua rodeou a embarcação para que Jack pudesse subir a bordo de seu barco sem exigir
as devidas atenções.
Subiu discretamente, o que não quer dizer que ninguém o viu. Certamente tinham visto o bote desatracar, e certamente ali estava o capitão Pullings para recebê-lo,
assim como os marinheiros do portaló, limpos da cabeça aos pés, que se encarregaram de jogar-lhe um cabo quando subiu agilmente pela escada. E menos mau que tenha
sido assim, pois o doutor Maturin o seguiu de imediato, tão impermeável às destrezas de um marinheiro como o era o senhor Aubrey à literatura na moda. Mais ainda,
dado que não fazia muito que Jack lera em voz alta o Macbeth para suas filhas, que o escutaram encantadas, enquanto que Stephen não pensara nem em barcos nem no
mar desde que botou um pé em terra, e lhe tinha bastado para esquecer quase todo o pouco que tinha aprendido. Além do mais, fazia pouco que tinha abandonado seu
ensimesmamento, quando a falua se encostou ao costado do barco e cessou o movimento constante. Bonden e a maioria de marinheiros que formavam a dotação da falua
estavam muito familiarizados com seus ocasionais despistes, e eram perfeitamente conscientes da fraqueza de seus conhecimentos náuticos; e ainda que o mar estivesse
calmo como um tanque cheio de patos o empurraram pelas nádegas, ao mesmo tempo que o animaram a pegar-se "a esses cabos acolchoados, senhor", assim como a colocar
os pés sucessivamente nos degraus da escada de corda. Não precisa nem falar que conseguiram subi-lo a bordo completamente seco, coisa que para eles constituiu todo
um triunfo.
Contudo, ao chegar ao convés ficou olhando ao seu redor de um modo simplório, igual como faria um lunático ou um peixe fora d’água. Fazia muito tempo, e muitas milhas,
tantas como para dar a volta ao mundo, que seu barco não fora mais que uma pequena fragata; e apesar de que anos antes servira a bordo de um navio de linha durante
um breve período de tempo, a recordação havia desaparecido de sua memória: media tudo comparando com a Surprise, e a enormidade do Bellona, a existência de um castelinho
e de toda essa gente o afundaram em um estado de perplexidade. Jogava com desvantagem, e seu rosto adotou uma expressão fria e reservada; mas seu velho amigo Tom
Pullings, que se aproximava para apertar sua mão e dar-lhe a boas-vindas a bordo, estava inclusive mais familiarizado com as extravagâncias do doutor que a dotação
da falua, e com voz alta e clara lhe explicou que dois dos ajudantes de cirurgião que serviriam sob suas ordens tinham chegado na noite anterior e o esperavam na
enfermaria da coberta dos alojamentos. Talvez desejasse vê-los, expressou Tom, que contudo se antecipou a sua decisão.
- Senhor Wetherby - disse a um jovem de boa cor que vestia um uniforme recém estreado, - rogo-lhe que acompanhe o doutor à enfermaria.
Desceram até a coberta da bateria alta, dotada de uma extraordinária mostra de canhões de dezoito libras dispostos de ambos os lados. Desceram de novo pela escada
da escotilha de popa até a coberta da segunda bateria, onde reinava a escuridão devido a terem fechado as portalós para pintar o exterior.
- É aí onde vivo, senhor - disse o jovem apontando a câmara dos oficiais. Stephen vestia-se de civil e não tinha aspecto de ser homem do mar, de modo que o garoto
se dispôs a acrescentar uma explicação: - Ainda não me classificaram como guarda-marinha, sabe, senhor?, de modo que me alojo com o condestável e outra meia dúzia
de garotos; a mulher do condestável é muito boa conosco. Nos ensina, por exemplo, a cerzir a roupa. E agora, senhor - guiou Stephen para a proa, - por aqui, por
favor, tenha cuidado com os degraus. Atrás desse pedaço de lona é onde dormem os marinheiros, todos eles apertados quando são chamados para descer as macas. Esse
compartimento daí, o que fica entre os anteparos de lona, é o que conhecemos como "enfermaria".
Havia duas figuras de pé na penumbra, ocultas pela escuridão mas visivelmente nervosas.
- Bom dia, cavalheiros - cumprimentou Stephen. - Sou o cirurgião a bordo, Maturin.
- Bom dia, senhor - responderam em uníssono. Então, o primeiro de seus ajudantes disse: - Sou Smith, senhor, William Smith, anteriormente servi a bordo da Serapis
e no hospital de Bridgetown.
O segundo, vermelho como a cochinilha, apresentou-se como Alexander Macaulay e lhe explicou que depois de seu aprendizado tinha estudado no Guys, onde vendou feridas
para o senhor Findlay durante quase cinco meses. Aquele navio de linha constituia seu primeiro destino na Armada.
- E realmente nos encontramos na enfermaria do Bellona? - perguntou Stephen, surpreso. - Senhor Wetherby, seja tão amável de aproximar-se ao castelo de popa e perguntar
ao oficial de guarda se posso abrir uma portaló.
Quase não havia terminado de falar quando se ouviu um chiado, seguido de um puxão, e se alçou a portaló mais próxima, permitindo a entrada de um feixe de luz quadrado
e mostrando os rostos sorridentes de Joe Plaice e Michael Kelly, ambos seguidores de Jack Aubrey desde o momento em que assumiu o comando de sua primeira embarcação,
o bergantim Sophie, e também velhos amigos de Stephen.
- Joe Plaice e Michael Kelly - cumprimentou Stephen apertando-lhes a mão através da portaló. - Quanto me alegro de vê-los. Joe, como anda sua cabeça-dura?
Os marinheiros levantaram o olhar, atentos a uma ordem que tinham recebido procedente das alturas.
- Sim, senhor - gritaram para algum distante oficial. Piscaram o olho para Stephen e desapareceram.
Stephen recuperou o tom grosseiro que havia empregado antes.
- Como é possível? - exclamou, observando o anteparo de lona parcialmente dobrado, as escassas macas e outro pedaço de lona que pendia ao fundo. Voltou-se para a
vasta caverna da coberta inferior, agora vazia excetuando as filas de canhões de trinta e duas libras e as tábuas de madeira entre elas e que de noite estariam abarrotadas
por centenas de marinheiros e infantes da marinha (além de quem fazia guarda na ponte) que roncariam e respirariam, sobretudo respirariam, pequenas quantidades de
ar naquele ambiente viciado, que se já era pernicioso de por si, era ainda mais para os enfermos. - Como é possível? É arcaico, própio da Idade Meia. Esta é a parte
mais insalubre de todo o barco: ar irrespirável, o enfermo não pode ir ao beque, e tem homens por todas as partes, gritando e uivando durante cada refeição e cada
troca de guarda; este fedor não desaparece por mais que lavem a coberta, que segue úmida, outro fator pernicioso a levar-se em conta. - Aspirou, voltou a aspirar,
e reconheceu tanto o aroma como outros obstáculos que podiam considerar-se distantes: os porcos de rancho, para a proa do barco, em sua correspondente pocilga. Ouvira
de sua existência nos barcos antigos, e os vira em uma ocasião, no início de sua carreira. - Isto não pode ser. Onde estão os enfermos que figuram na lista?
- Acredito que os trasladaram para o Haslar, senhor, quando o cirurgião anterior morreu. Um coma etílico, conforme me disseram.
- O que? - proclamou Stephen, não tanto pela questão do coma etílico, mas pela monstruosidade que o rodeava. - Vamos dar uma espiada no ambulatório, assim poderei
apresentar meu relatório. Senhor Wetherby, rogo que me mostre o caminho.
O garoto os conduziu pela proa até a escada, de onde puderam ver com claridade a pocilga em questão e o odor se fez mais intenso - os porcos levantaram o olhar ao
passarem por eles e os observaram com olhos cheios de curiosidade. - Dali passaram para a escuridão da sentina, muito abaixo da linha de flutuação, onde apesar do
débil lampejo de luz que se filtrava através dos gradeados, e de uma ou outra lanterna que encontraram no caminho, prosseguiram às apalpadelas para a popa até chegar
à enfermaria, que fazia as vezes de alojamento para os guardas-marinhas e que era um lugar ruidoso como poucos. Tão somente encontraram em seu interior a quatro
jovens, um macaco e um cachorro dogue, aos quais se podia ouvir de longe.
- Não me atreveria a entrar, senhor, se não estivesse acompanhado pelo senhor. Cuidado com o degrau - disse o jovem.
- Que aconteceria se não tivesse mais remédio que entrar sozinho? - perguntou Stephen.
- Os mais velhos e os ajudantes do piloto de derrota me torceriam o pescoço e me jogariam nas fauces do cachorro dogue, senhor - Abriu a porta e se pôs de lado.
- Cavalheiros, bom dia - cumprimentou Stephen ante um silêncio repentino.
Os cavalheiros em questão eram do mais variado: um homem de aspecto feroz e pele morena, ao qual encontraram sentado na coberta tentando ler junto a um lustre. Dois
jovens deselegantes cuja roupa era tão curta que deixava em descoberto os pulsos e tornozelos; e um endemoninhado baixinho de catorze anos que tentava ensinar ao
macaco a plantar bananeira. Contudo, todos eles compreenderam de imediato que não seria boa idéia descarregar sua má intenção com as visitas, de modo que responderam
ao cumprimento e se levantaram com toda a elegância da qual foram capazes; o diabólico garoto se dedicou de sua parte a estrangular desnecessariamente ao cachorro
dogue quando este quis aproximar-se para apresentar seus respeitos. Stephen passeou o olhar pelo ambulatório, lugar ao qual estava designado e que podia converter-se
em seu particular teatro de operações em caso de que o barco travasse um combate. Era um lugar espaçoso, pois pelo menos hospedava a uma vintena de jovens. Depois
se dirigiram para popa.
- Oh, senhor - voltou a exclamar o senhor Wetherby, - procure não tropeçar, por favor. - E tinha ricos motivos para elevar o tom de voz, pois encontraram aberta
a escotilha de coberta que dava ao paiol de pólvora de popa, por onde assomou a cabeça do condestável, decidido a ver quem se aproximava. Em seu rosto, geralmente
sério, desenhou-se um sorriso e estendeu a mão.
- Há, doutor - disse. - Ficamos sabendo que o senhor viria, e não sabe quanto nos alegrou a notícia. Rowley, fui segundo do condestável no velho Worcester.
- Certamente - disse Stephen, apertando sua mão. - Uma feia ferida de lasca no gluteus maximus. Como ela evoluiu?
- Jamais o diria o senhor, senhor. Quando voltei para casa mostrei para minha mulher. Mostrei a cicatriz, bem, o que restava dela, e lhe disse: "Kate, se soubesse
costurar tão bem como o doutor, eu te poria para trabalhar e viveria de renda". Ah, ah, ah! - Com esta, desapareceu como o boneco de uma caixa surpresa, mas ao revés,
e fechou a escotilha sobre sua cabeça.
A luz intensa expelida pela lanterna pendurada no vau os deslumbrou quando Smith abriu a porta do ambulatório.
- Espero que não creia que faço mais trabalho do que devo, senhor - disse. - Mas ontem à noite o contador me informou de que tinham chegado alguns apetrechos procedentes
da Junta de Feridos e Enfermos, e em lugar de largá-los nas mãos do despenseiro me dediquei a colocá-los no baú da botica. Ainda estava concentrado nisso quando
seu bote se amadrinhou ao barco, de modo que deixei as coisas como estavam. Temo que não caberão todos.
De repente se abriu de novo a escotilha e reapareceu o sorridente rosto do condestável.
- Eu lhe disse, disse: "Kate, se soubesse costurar tão bem como o doutor, eu lhe poria para trabalhar e viveria de renda". - E voltou a prorromper em gargalhadas.
- O senhor fez perfeitamente, senhor Smith - disse Stephen uma vez entrado, observando a miniatura que tinham por botica, com suas gavetinhas, suas prateleiras para
garrafinhas e outros compartimentos. - Mas temo que o senhor está certo. Tudo isto não caberá - disse assinalando com uma inclinação de cabeça os pós, as raízes
secas, os medicamentos, os linimentos, as bandagens, compressas, torniquetes e demais coisas que atapetavam o piso. - Não terá mais remédio que guardá-lo e estivá-lo
no ambulatório de estibordo.
- Desculpe, senhor - disse Smith depois de titubear, - mas não dispomos de nenhum ambulatório de estibordo.
- Jesus, Maria e José - exclamou Stephen. - Quinhentas e noventa almas terão que contentar-se com o conteúdo desta miserável botica, que com sorte medirá quatro
pés por três! O que são as coisas. Muito bem, cavalheiros, sejam tão amáveis de guardar tudo nesta cabine daqui - disse ao mesmo tempo que abria a porta de uma habitação
que media seis pés de largura por quatro de comprimento, - enquanto eu me dirijo ao capitão para apresentar meu relatório. E pequeno relatório, por Deus.
- O que houve, doutor? Falta-lhe algo? - perguntou Tom Pullings quando Stephen se juntou a eles.
- Você caiu, Stephen? - perguntou Jack ao vê-lo muito pálido e com os olhos abertos descomedidamente, aproximando-se dele e pegando-lhe no braço.
Observou friamente a ambos, primeiro a um e depois ao outro, e disse em um tom de voz forçadamente sossegado:
- Acabo de descobrir que este... este barco, porque por respeito não o tacharei de destroço ruim, desfruta de uma enfermaria que seria uma desgraça inclusive para
um turco, uma enfermaria que poderia ruborizar a um punhado de hotentotes, e creia-me que o fariam. É uma enfermaria tão horrível que não posso consentir ver-me
relacionado com ela e - acrescentou em um tom elevado, mais elevado e apaixonado - se não consigo que se transforme em um lugar mais tolerável que o Gólgota, pois
parece mais destinado a matar que a salvar vidas, lavarei minhas mãos com a consciência tranqüila. - Acompanhou suas palavras com o gesto de lavar as mãos, observando
seus rostos assombrados. - Afirmo que é uma vergonha para a humanidade.
- Por favor, Stephen, sente-se - pediu Jack com suavidade, acompanhando-lhe para uma cadeira. - Eu lhe peço, sente-se e beba um copo de vinho. Não se chateie conosco,
por favor.
Pullings estava transtornado demais para dizer palavra, mas lhe serviu um copo de madeira. Ambos observaram a Stephen com infinita preocupação; seguia pálido e inquieto.
- Algum de vocês já visitou essa zombaria infame que temos por enfermaria? - perguntou enquanto cravava o olhar primeiro em um e depois no outro. Oh, que fortaleza
moral possue a raiva totalmente sincera, sobretudo se está certo e se mostra altruísta.
Jack negou com a cabeça lentamente e com a consciência limpa, pelo menos a esse respeito.
- Suponho que passei por ali quando fui ver as pocilgas - confessou Tom Pullings, - mas não vi ninguém ali porque levaram os pacientes ao hospital antes de que subisse
a bordo; por isso não tinha me dado conta de que a enfermaria estava em tão más condições.
Stephen disse que uma enfermaria sem paz, luz nem ar não serviria de absolutamente nada; explicou com veemência e todo luxo de detalhes. Quando as águas se acalmaram,
acrescentou que a única enfermaria a bordo de um navio de linha com a que se sentiria a vontade devia, por força, desterrar os porcos em favor de cristãos enfermos
e que, portanto, devia encontrar-se sob o castelo de proa, e que tinha que dispor de luz, ar e acesso ao beque, conforme o plano desse eminente ingênuo, sultão da
benevolência, de nome almirante Markham.
- Doutor - disse Tom, - não diga mais nada, senhor: agora mesmo vou mandar chamrem ao Astillas e sua quadrilha. Se o senhor os dirigir, terá sua enfermaria ao Markham
antes do canhonaço da noite.
Remeteu a tensão. Stephen tomou um pouco mais de vinho e sua cor, ainda que ainda tinha uma tonalidade inquietantemente azeitonada, recuperou sua palidez natural,
em lugar da que lhe conferia a raiva. Sorriu, e o capitão Pullings enviou para buscar o carpinteiro.
- Stephen - disse Jack com timidez. - Havia pensado levar-te de visita aos outros barcos, para que pudesse conhecer seus capitães e oficiais, mas me atreveria a
dizer que acondicionar uma enfermaria como Deus manda lhe levará boa parte da tarde.
- Isso mesmo - admitiu Stephen, - e também todas minhas forças. Tom, dispõe de carpinteiros de sobra, né? Também desejaria instalar um ambulatório em condições no
lugar onde esses porcos brincam desenfreadamente com inteira liberdade, em vez de enviar a alguém constantemente à enfermaria de popa cada vez que necessite de purgante
negro. Jack, peço-lhe que me perdoe se adio este encontro até que se celebre seu almoço, ao qual assistirão todos estes cavalheiros.
CAPÍTULO 4
Quando o capitão Aubrey, seu despenseiro e seu timoneiro se faziam ao mar, Ashgrove Cottage retinha boa parte da atmosfera naval que a caracterizava graças aos antigos
companheiros de tripulação que viviam ali ou nos arredores, e que levavam a cabo seus habituais serviços de limpeza, enxugo e pintura para deixar tudo em condições
tão marinheiras como lhe permitisse a idade e os membros perdidos, costume que despertava a admiração de todas as esposas que se encontravam à distância necessária
para visitar a casa ou fofocar a respeito. Contudo, Woolcombe, a casa que Jack havia herdado fazia pouco, a casa onde fora criado, não passava de um lar de um homem
do interior. A senhora Aubrey vivia a maior parte do tempo em Ashgrove, e Woolcombe ficava em mãos de Mnason, o mordomo de toda a vida, ao qual ajudavam alguns serventes
com soldo dos que se havia prescindido em Ashgrove Cottage.
Apesar de tudo, quando Jack estava em casa e ia celebrar algum evento onde deviam primar a educação e a elegância, requeria-se em Hampshire a presença de Mnason,
que então tinha que trabalhar de sério. Desempenhava com perfeição as funções de um mordomo; cuidava do vinho madeira, de sua míngua no tonel, de seu trasfego e
engarrafamento, cuidava das garrafas e, com o tempo, repartia seu conteúdo para servi-lo na mesa em excelentes condições. Levava a cabo a parte mais ornamental de
suas funções com a dignidade apropiada. Mas os marinheiros não valorizavam nem um pouco nenhuma de suas destrezas; desprezavam-no por seu exílio em Woolcombe, lugar
onde só punham os pés uma vez ao ano, na primavera, em vez de como faziam diariamente, ao amanhecer, em Ashgrove; e se doiam ante o menor indício de que seus direitos
pudessem ver-se pisoteados; seus direitos, seus privilégios ou seus costumes de gente do mar.
O ruído causado por um destes desacordos fez Sophie correr pela sala de jantar no dia em que devia celebrar-se o almoço dos capitães. Ao abrir a porta, o rumor aumentou
consideravelmente: Killick, cujo desagradável rosto estava lívido de ira, tinha encurralado Mnason, a quem ameaçava com a faca do pescado enquanto lhe espetava com
sua voz tão chiante e desagradável que não era em absoluto uma boa pessoa, observação para a qual recorreu a todo luxo de detalhes e tal conjunto de obscenidades
que Sophie se viu na obrigação de fechar a porta ao entrar, para evitar que as crianças pudessem ouvir-lhe.
- Que vergonha, Killick, que vergonha! - exclamou.
- É que ele ousou tocar em minha prataria - replicou Killick, cuja trêmula faca passou a assinalar o nobre metal espalhado na mesa da sala de jantar. - Mudou de
lugar três colheres com esses dedos gordurentos que tem, e o vi bafejar sobre esta faca de pescado.
- Apenas lhe dava um toque profissional.
- Eu é vou lhe dar toques pro... - ameaçou Killick com fúria renovada.
- Silêncio, Killick! - disse Sophie. - O comodoro ordenou que será você que permanecerá atrás de sua cadeira, vestido com sua melhor casaca azul. Mnason permanecerá
ao seu lado com seu abrigo cor ameixa. Bonden porá suas melhores luvas. Agora apresse-os, rápido. Não há nem um minuto a perder.
E, certamente, não havia. Os convites indicavam que a hora de chegada era de três e meia às quatro da tarde, e conhecia por experiência a pontualidade naval, de
modo que entre as três e meia e as três e trinta e cinco minutos se apresentariam todos os convidados. Observou aquela mesa onde tudo reluzia, colocado exatamente
em seu lugar; ajustou um pouco um jarro de rosas, e logo depois saiu apressadamente para pôr o esplêndido vestido de seda escarlata, presente de Jack, que sobrevivera
à interminável e árdua viagem desde Batavia sem um só arranhão.
Quando Jack conduziu ao interior o primeiro dos capitães, encontrou Sophie mais bonita do que nunca, sentada na sala desejando aparentar convincentemente certo sossego
para cumprir com seu papel de anfitriã. William Duff, do Stately, era um homem atlético, alto e excepcionalmente atraente, de uns trinta e cinco anos.
Depois chegaram Tom Pullings e Howard, da Aurora; Thomas, da indesejável Thames; Fitton, do Nimble; e com este o quadro estava completo..., ou quase.
- Onde está o doutor? - sussurrou Sophie para Killick quando este entrou com uma bandeja repleta de taças. O despenseiro olhou ao seu redor, e seu rosto mudou daquela
expressão amável que resultava tão forçada nele (sorriso afetado incluído), para adotar sua habitual aspereza.
Uma regra respeitada desde tempos imemoriais na Armada estipulava que quanto mais classe tinha um marinheiro, mais tarde comia. Sendo guarda-marinha, Jack Aubrey,
assim como os marinheiros, comia ao meio-dia. Quando ascendeu ao cargo de tenente, ele e seus companheiros alojados na câmara dos oficiais comiam à uma; quando comandou
seu própio barco comia meia hora ou, mesmo, uma hora depois; e agora que era, no momento, comodoro de primeira classe com uma esquadra sob seu comando, considerou-se
apropriado que aguardasse sua vez em consonância com a hora de almoçar de um almirante. Mas seu estômago, assim como o de seus convidados, seguia pertencendo a um
capitão. E antes de dar as três estava desesperado; às três e meia estava que mordia. Bocejava e afogava bocejos de fome. A conversa, a pesar de estimulada pelos
esforços constantes de Sophie, assim como pelas azeitonas e as bolachinhas - que serviam em bandeja os marinheiros de luvas brancas, - pela genebra de Plymouth,
o madeira e o xerez, tendia já a fraquejar ou a tornar-se muito forçada quando se abriu a porta e Stephen fez uma entrada curiosa e brusca, como se o tivessem empurrado
pelas costas. Vestia um traje negro bastante decente, empoada a peruca e colocada bem direita sobre a cabeça; exibia um lenço branco amarrado com a precisão de um
cirurgião, tão forte que quase não podia respirar. Ainda parecia assombrado, mas se recuperou enquanto se inclinou ante os presentes para saudá-los, para dirigir-se
depois rapidamente à Sophie, disposto a apresentar suas desculpas. Aduziu em sua defesa que estivera contemplando os picanços e que perdera a hora.
- Pobre Stephen - disse ela, sorrindo com amabilidade, - em tal caso estará faminto. Cavalheiros - disse ao mesmo tempo que se levantava, para alívio de todos os
presentes, - o que lhes parece se entrarmos e deixarmos as apresentações para depois? - E, ao ouvido do doutor: - Stephen, aproveite a sopa e o pão: não acho que
o bolo de carne esteja à altura.
Depois dos titubeios de rigor e da cessão de preferência na porta que conduzia à sala de jantar, a mesa se encheu rapidamente. Sophie sentou-se em um extremo e Jack
no outro.
Stephen, tal e como lhe haviam recomendado, atacou a sopa com vontade; prato incrivelmente saboroso, cozinhado, sobretudo, com lagostas trituradas, cujas antenas,
cuidadosamente arrancadas, flutuavam sobre a promissora massa, e quando apaziguou os arrebatamentos de seu estômago olhou ao redor da mesa. Pois se tratava de uma
reunião social convocada por Sophie, a ordem dos lugares não era o ortodoxo do ponto de vista da Armada, ainda que havia respeitado a antiguidade até o ponto de
situar a William Duff à direita de sua esposa, enquanto que a sua esquerda havia sentado a Michael Fitton, filho de um antigo companheiro de tripulação e bom amigo.
Para si havia reservado a dois oficiais excepcionalmente tímidos: Tom Pullings, que tinha uma feia ferida e voz de homem do interior (ambas qualidades faziam que
sua companhia fosse algo incômoda na mesa); e Carlow, do Orestes, que não tinha nenhum motivo para mostrar-se tímido, pois era bem relacionado e contava com uma
sólida educação, mas que não gostava de almoçar fora por muito que, ou isso pareceu a ele, necessitasse que cuidassem dele.
Stephen passeou o olhar ao redor da mesa. Não era muito amigo da vida em sociedade, era mais um observador que um participante, mas lhe agradava ver seus colegas,
e muito amiúde lhe agradava escutá-los. A sua esquerda se sentava o capitão Duff, que falava animadamente com Jack a respeito dos amantilhos de Bentinck: Stephen
foi incapaz de detectar pista alguma dos gostos que lhe atribuíam. Além do mais, teria jurado e perjurado que Duff tinha certo êxito com as mulheres. Ainda que o
mesmo, refletiu, pôde ter-se dito de Aquiles. Sua mente vagou pelas diversidades desta faceta da sexualidade: o enfoque comparativamente direto do Mediterrâneo;
os curiosíssimos negócios que tinham lugar em Inns of Court; o sentimento de culpa, furtividade e obsessão que parecia aumentar a cada cinco ou dez graus de latitude
norte. No extremo oposto da mesa, não em frente de Stephen mas em um lugar mais para o lado, encontrava-se Francis Howard, da Aurora, talvez o maior erudito em língua
grega da Armada. Passara três felizes anos no Mediterrâneo Oriental reunindo inscrições, e Stephen confiara em poder sentar-se ao seu lado. À direita de Howard viu
a Smith, do Camilla, e a Michael Fitton, ambos de rosto moreno, cabeça redonda, alegres, jovens de aspecto inteligente que obedeciam a um quadro típico na Armada.
Impossível confundi-los por soldados. Por que a Armada atrairia homens de cabeça redonda? Que teria que dizer o frenólogo Gall a esse respeito? À de Stephen se encontrava
o capitão Thomas, que, para mais afronta, também tinha a cabeça redonda e a pele morena, ainda que não era alegre nem jovem. Depois de uma longa carreira como comandante,
principalmente nas Índias Ocidentais, o haviam nomeado capitão de navio ao conceder-lhe o comando da Eusebio, uma fragata de trinta e dois canhões, destruída pelo
furacão de 1809. Agora comandava a Thames. Era o mais velho dos presentes, e seu rosto autoritário tinha adquirido um aspecto de desaprovação que lhe fazia parecer
perpetuamente irritado. Na Armada era conhecido pelo apelido de Imperador Púrpura.
- Senhor - murmurou uma voz familiar ao ouvido de Stephen, - há metido a manga na sopa. - Era Plaice, marinheiro do castelo de proa, com os luvas brancas postas
e uma casaca de servente do camarote.
- Obrigado, Joe - disse Stephen, que tirou a manga da sopa e a enxugou apressadamente, sem deixar de olhar para Killick com inquietação.
- Uma sopa estupenda, senhor - elogiou Duff, sorrindo-lhe.
- Pura ambrosia, senhor, no lugar adequado, está claro- disse Stephen, - ainda que talvez se revele um tanto espessa sobre o velar-te negro. Desculpe o incômodo,
mas poderia alcançar-me um pedaço de pão? Acho que me fará melhor serviço que o guardanapo.
Conversaram distendidamente. E depois do primeiro prato, serviu-se uma vasilha de costeletas de novilho assadas que colocaram diante de Stephen.
- Senhor, permita-me que lhe sirva - propôs o doutor.
- O senhor é muito amável, senhor. Poucas coisas temo mais que ter que trinchar a carne.
- E o senhor, senhor? - perguntou Stephen, virando-se para Thomas.
- Se é tão amável - respondeu o Imperador Púrpura. - Há, o senhor corta tão bem como um cirurgião.
- É que sou o cirurgião, senhor, de modo que isso não constitue nenhuma virtude. O cirurgião do navio insígnia do comodoro, se é assim mesmo como se diz. Chamo-me
Maturin.
Joe Plaice deu uma risada rouca e alegre, e de imediato tentaram asfixiá-lo com uma luva branca. Stephen e Duff se voltaram para olhá-lo com um sorriso nos lábios.
Thomas parecia furioso.
- Oh, certamente - disse. - Tinha entendido que esta refeição era para oficiais de guerra, para oficiais ao comando. - E não disse mais nada.
 
- Sophie, querida - disse Stephen na manhã seguinte. - Pequeno festim nos preparou ontem. Da próxima vez que veja o padre George terei que admitir ter pecado de
gula, de deliberada e premeditada gula. Repeti o bolo de carne não três, mas quatro vezes. E também repetiu o capitão Duff. Animávamos um ao outro.
- Alegra-me tanto que tenha gostado - disse ela, olhando-o com carinho. - Mas como lamento ter lhe sentado junto desse tipo tão antipático. Jack diz que sempre encontra
faltas em tudo; e como muitos desses montes capitães das Antilhas, parece convencido de que se puder conseguir que sua tripulação trabalhe tão duro a ponto de ser
capaz de desenvergar e envergar os mastaréus de joanete em treze minutos, e polir o bronze para que brilhe como o ouro dia e noite, poderia por conseqüência vencer
a qualquer uma dessas pesadas fragatas americanas, por não falar das francesas. Jack tentará persuadir ao almirante a que realize uma troca.
- Se é tão amável, senhor, o capitão Tom lhe espera com o dócar na porta - informou George.
- Mas ele disse às nove - protestou Stephen, tirando o relógio, seu adorado Breguet. Apesar de ser de movimento perpétuo e mais confiável que o Banco da Inglaterra,
sacudiu-o duas vezes. A carcaça de platina que mantinha o mecanismo em seu lugar produziu um rangido afogado. Os ponteiros lhe informaram de que passavam dez minutos
das nove. - Pelo amor de Deus - disse. - Mas já são nove e dez. Sophie, desculpe-me mas devo passar a correr.
Como comandante e capitão de navio, Jack Aubrey nunca tinha desbocado com Stephen dos oficiais que serviam em seu própio barco. Na qualidade de comodoro havia lhe
explicado a vida e os milagres de Duff, ainda que com certa objetividade, mais como se fosse um médico que outra coisa. Também lhe falou dos defeitos do Imperador
Púrpura, pois já não se aplicava a regra que havia dirigido sua relação: Stephen e o Imperador não eram companheiros de rancho, por assim dizer, nem tinham que submeter-se
à lealdade do camarote. Contudo, era muito improvável que, a partir desse momento, Jack voltasse a fazê-lo.
Tom Pullings não sofria de tais inibições. Conhecia Stephen desde que servia como guarda-marinha e sempre falara com ele sem a menor reserva.
- Aquele tipo não deveria ter passado de imediato - disse enquanto conduziam em direção a Portsmouth naquela doce manhã, falando do almoço da noite passada (pois
se estendeu até a noite) e do restante dos convidados. - Nunca deveriam ter lhe concedido a autoridade. Não sabe o que fazer com ela, de modo que está sempre dando
ordens para demostrar o contrário. Sempre está mal-humorado e reclamando de alguém. O senhor deve conhecer muitos pais de família assim. Tem gente de sobra a mão
para surrá-lo, ou castigá-lo a pão e água ou enviá-lo para a cama por rir dissimuladamente no momento equivocado. Converte em um inferno a vida de toda a dotação,
e a julgar por sua cara avinagrada não acredito que ele o passe melhor. Ele e sua dignidade! Lorde Nelson nunca incorreu nessa afetação do "não me fale o senhor".
Se alguém peidasse no castelo de popa desse tipo, ainda que fosse a sotavento, consideraria um insulto ao representante do rei. Bah! E além disso, nunca esteve em
combate.
- Sejamos justos, nisso não se diferencia de boa parte dos oficiais da Armada.
- Não. Mas acredita que quem esteve em combate, inclusive os marinheiros, viram-lhe a cara e riem a suas costas, assim que se desabafa com eles ou com qualquer outro.
Não sabe quanto desejo que o comodoro se livre dele. Nesta esquadra, o que necessitamos é de um capitão combativo, não ao imediato de um iate da realeza, com suas
vergas embreadas e re-embreadas. Nós necessitamos de um capitão cuja marinharia seja capaz de abrir fogo, e a quem sigam como os da Sophie nos seguiram. Deus bendito,
que jornada aquela! - Tom riu ao recordar o imponente costado da fragata espanhola de trinta e dois canhões, e o modo em que ele e seus cinqüenta e três companheiros
da corveta Sophie, de catorze canhões, subiram em tropel atrás de Jack Aubrey para derrotar a bordo a trezentos e dezenove espanhóis, e depois levar a presa de volta
ao Porto Mahón.
- Eu que o diga - observou Stephen.
- E mais - continuou Tom, - o condestável da Thames disse ao nosso condestável que durante estes últimos oito meses nem sequer haviam utilizado a provisão de pólvora
destinada à prática. Ao que parece, destrincam e voltam a trincar os canhões continuamente. Igual a pedras. Além disso, confessou suas dúvidas (esteve a ponto de
passar a chorar, escute o que lhe digo) de que pudessem disparar duas descargas em cinco minutos. Agora, isso sim, qualquer esforço é pouco para manter os conveses
bonitos e a tinta fresca.
 
- O senhor tem algo pessoal em contra o capitão Thomas, comodoro? - perguntou o almirante. - Acha possível que possa faltar-lhe brio?
- Oh, não, em absoluto, senhor. Não me cabe nenhuma dúvida de que é bravo como um...
- Um leão?
- Isso mesmo. Obrigado, senhor. Tão bravo como um leão. Mas veja, senhor, acredito que seja muito importante a necessidade de contar com uma boa artilharia nesta
esquadra. Uma dotação capaz de efetuar pelo menos três bombardeios bem apontados em cinco minutos não se improvisa da noite para o dia.
- E o que lhe faz pensar que a Thames não seja capaz disso?
- O fato de que seu capitão afirmar nunca ter calculado quanto demoram em disparar, e os informes de seu condestável, que demonstram que nem sequer se utilizou a
bordo a pólvora e as balas designadas para as práticas de artilharia.
- Em tal caso terá o senhor que pô-los em dia. Não, Aubrey, não posso trocar a Thames, e o senhor terá que arrumar-se com o que tem, que, palavra, é um comando muito
atraente para um jovem de sua idade. Jamais vi um barco melhor disposto que a Thames; e nisso concordo com o duque de Clarence, que disse isto mesmo quando teve
ocasião de visitá-la no Nore. Seja como for, não se trata de obter resultados da noite para o dia, tal e como o senhor diz. Provavelmente disponha de várias semanas
antes de chegar ao apostadero, com este vento travesso e entabulado que temos do sudeste. Por outro lado, a modo de compensação por ter privado ao senhor da Pyramus,
pretendo entregar-lhe a Laurel. Ainda mais, também tenho intenção de informar-lhe finalmente da data de partida. Dependendo do vento e do tempo, procederá o senhor
a reunir-se frente às Berling, conforme se especifica em suas ordens, na quarta-feira dia 14.
- Oh, obrigado, senhor. Muito obrigado. Não sei como lhe agradecer por esta informação. Se permite que me retire de imediato, irei a bordo sem a menor demora para
dispor tudo para a quarta-feira dia 14.
- Não há nem um minuto a perder - assinalou o almirante, apertando sua mão.
 
- Avisem ao doutor Maturin - ordenou o comodoro, e o aviso passou de coberta em coberta, como um eco.
- O comodoro e ele são antigos companheiros de trança - observou o marinheiro enquanto abria passagem pela coberta dos alojamentos.
- Que é um companheiro de trança, chefe? - perguntou um homem do interior ao qual acabavam de recrutar forçosamente.
- Não sabe o que é um companheiro de trança, amigo? - perguntou o marinheiro com brincalhona tolerância. O do interior sacudiu sua cabeça; a essa altura havia umas
dezessete mil coisas que ignorava, cifra que aumentava diariamente. - Bem, saberá o que é uma trança, não? - perguntou o marinheiro mostrando-lhe a sua, uma calda
enorme que lhe chegava ao traseiro, ao mesmo tempo que elevava o tom de voz, como se falasse com um tonto ou com um estrangeiro. O do interior assentiu, e de repente
pareceu mais inteligente. - Tem-se destrançá-la, lavá-la para tirar os piolhos, penteá-la, e voltar a trançá-la para ficar apresentável com vistas a passar em revista,
companheiro. E não esperar pelo dia do juízo para fazê-lo. De modo que se faz isso com um amigo, como eu e Billy Pitt, para que ele faça a sua, enquanto se senta
a seu lardo em uma dessas buchas de queijo, ou talvez em cima de um balde virado do revés; depois você faz a dele, porque o que é justo é justo, como eu digo. É
a isso que se chama de "companheiros de trança".
- Ouvira falar desse seu Billy Pitt- disse o do interior, abrindo os olhos descomedidamente.
Naquele momento Stephen deu com a escada direita (o barco tinha, pelo menos, um piso a mais do que recordava), e encontrou ao comodoro e ao capitão do Bellona na
câmara. Ambos sorriam de orelha a orelha.
- Que notícias, Stephen, que notícias - disse Jack. - Vão nos designar a Laurel, uma corveta de vinte e dois canhões ao comando de Dick Richards, embarcação de sexta
classe e rápida na virada. Lembra-se dele, Stephen?
- Por acaso se trata do mesmo desgraçado garoto devorado pela acne, ao qual chamavam Dick, O Manchado? Então, claro que sim. Homem obstinado, ainda que não fosse
má gente.
- O mesmo. Eu lhe ensinei a disparar os canhões, e olha que estava verde, o pobre, mas ao final seus servidores se converteram no melhorzinho do barco, o melhor
barco flutuando. Confesso que estava cada vez mais nervoso: já vi tantas esquadras serem formadas, sofrerem atrasos no porto, sofrerem ainda mais atrasos, adiar-se
a data prevista, adiar-se ainda mais até que as dispersavam quando seus oficiais já tinham toda a bagagem a bordo, bagagem suficiente, digamos, para empreender uma
travessia de seis meses. Vamos, todo o plano posto a perder, e o comodoro de novo entre simples capitães de navio, obrigado a mendigar nas ruas depois de ter gasto
os últimos guinéus que lhe restavam em um galão dourado de contra-almirante.
- Quando partiremos?
- Stephen, peço que não seja indiscreto. Creio que os espiões franceses terão se dado conta de toda a agitação que há no porto, e que podem informar dela graças
a incontáveis contrabandistas, mas o ministério sente-se a salvo enquanto ninguém mencione em voz alta a data de partida. Só o que posso dizer é que não há um só
momento a perder. Encarregue-se diretamente dos apetrechos médicos, e que Deus se apiede de sua alma.
 
- Cavalheiros - disse Stephen a seus ajudantes na esplêndida enfermaria recém estreada, cheia de luz e ventilação, que incluía espaçosos ambulatórios, tanto a bombordo
como a estibordo. - Acho que poderíamos dar por supervisionados os antimônios, a jalapa e a hena, as oito jardas de bandagem de linho galês que deveria bastar-nos
para o primeiro mês; só nos faltam os torniquetes, o mercúrio e a insignificante lista de alexifármacos que Beale nos enviará amanhã. Até aqui nosso suprimento oficial.
Contudo, acrescentei certa quantidade de remédios que acharão nas caixas da esquerda, junto a um baú de sopa portátil, infinitamente preferível que a cola de carpinteiro
de segunda mão que a Junta de Provisões nos fornece, além de um pacote de minha assa-fétida particular. Que é importada para mim por um mercador turco, e como talvez
tenham podido observar, apesar da bexiga de esturjão na qual está encerrada, corresponde à variedade mais agressiva e autenticamente fétida conhecida pelo homem.
É necessário que saibam, cavalheiros, que quando se receita algo a um marinheiro, este gosta de saber do que se trata. Bastaria com que quinze grãos, ou menos, desta
valiosíssima substância impregnassem as fossas nasais do paciente ou o ar que o rodeia, para tirar qualquer dúvida que tenha a respeito; tal é a natureza da mente
humana, que empurra o paciente a experimentar mais benefícios do que o medicamento em si poderia proporcionar-lhe em caso de privá-lo de sua fetidez.
- Permite-me perguntar onde vamos guardá-lo, senhor?
- Bem, senhor Smith - respondeu Stephen, - havia pensado que quase não incomodaria na camarote dos guardas-marinhas.
- Mas se nós também vivemos lá - protestou Macaulay. - Vivemos e dormimos lá, senhor.
- Assombrar-lhes-á descobrir o rápido que um se imuniza, quão rápido se acostuma ao que as mentes débeis denominam "mau cheiro", assim como se acostuma à sacudida
do fluxo de ondas. Passemos agora para este segundo pacote, colegas, no qual encontraremos uma substância muito mais valiosa que toda a nauseabunda assa-fétida,
talvez inclusive mais que a infusão de córtex, o mercúrio ou o ópio. Ainda não figura na farmacopéia de Londres, nem sequer na de Dublim, ainda que não tardará muito
em ver-se inscrita em ambas, e em Edimburgo, com letras de ouro.
Abriu uma cesta pequena trançada conscienciosamente com junco, levantou o papel de lama e depois duas capas de seda verde-clara. Seus ajudantes observaram atentamente
as folhas marrons e secas que havia dentro.
- Estas folhas marrons e secas, cavalheiros - explicou Stephen, - provêm do arbusto peruano conhecido como Eurythroxylon coca. Não serei eu que lhes direi que isto
é a panacéia, mas lhes asseguro que possue grandes virtudes curativas recomendadas para tratar casos de melancolia, mórbida depressão do espírito (quer seja racional
ou irracional), além da inquietação incansável da mente que tão amiúde acompanha os estados febris. Provoca euforia e uma sensação de bem-estar muito mais lúcida
e superior em todos os aspectos que a produzida pelo ópio; e o faz sem causar o desafortunado vício com o qual estamos tão familiarizados. Verdade, não causa o sono
reparador do ópio, um sono doentio em todo caso, se me permitem, mas por outro lado o paciente não necessita do sono: sua mente descansa de si mesma, imbuída de
uma considerável serenidade de pensamento.
- E não é perigosa? - perguntou Smith.
- Não soube de efeitos secundários nas pesquisas que realizei entre gentes de medicina - respondeu Stephen, - e é muito conhecida, apreciada e utilizada em todo
o Peru. Enquanto o homem seja homem existirá a possibilidade de um abuso, verdade, igual que existe com o chá, o café, o tabaco, o vinho e, como não, os licores
mais fortes que nos rodeiam, mas não soube de um só caso nas semanas, ou meses, que estive entre os peruanos.
- Prescreve-se como específico para algum transtorno peruano, como tônico ou como alterativo? - perguntou Macaulay.
- Usa-se como febrífugo e como remédio para muitas doenças - aclarou Stephen, - mas principalmente os membros das classes trabalhadoras o tomam como intensificador
da vida diária. Assim como a euforia da qual já falei, a coca também proporciona ou, talvez deveria dizer que libera grandes quantidades de energia, ao mesmo tempo
que dissipa a angústia acumulada de dias. Conheci homens magros e secos, não mais altos que eu mesmo, capazes de caminhar do amanhecer ao pôr do sol a grande altitude
por terreno montanhoso, sob uma tormenta insuportável, carregando volumes pesados sem fatigar-se e sem comida. Contudo, ainda que o uso da folha de coca seja evidente
entre os pobres, os trabalhadores do campo, os mineiros e os transportadores, seus efeitos inclusive resultam mais surpreendentes entre quem trabalha com o intelecto.
Escrevi durante toda a noite até quarenta e três páginas em oitavo, sem acabar mentalmente exausto, nem ao menos cansado, depois de uma dura jornada. Ouvi informes
verídicos e corroboráveis de cirurgiões que trabalharam por vinte e quatro horas depois de celebrar-se uma batalha, operando sem que suas habilidades sofressem míngua
alguma. Mas de um ponto de vista estritamente médico, a aplicação mais evidente e imediata no dia a dia fica reservada à perturbação mental. Hospedava grandes esperanças
de poder provar seu valor durante minha recente viagem, mas lamentavelmente (sei que não deveria tachá-lo de lamentável, certamente) todos os nossos, oficiais, suboficiais
e marinheiros, não podiam estar mais contentes. Alguns casos de congelamento em frente ao cabo de Hornos, indícios de escorbuto ao norte da ilha, mas nenhuma depressão
de verdade, nem choramingos, nem tristeza, nem brigas estúpidas; além do mais, raras vezes se trocaram palavras inconvenientes. É verdade que o fato de regressar
à Inglaterra supunha motivo de satisfação, e que tinhamos sido muito afortunados no que se refere às presas, mas sua alegria entre os blocos de gelo do sul, sua
alegria nas águas pegajosas e densas das calmarias equatoriais, quando as velas pendiam flácidas dia após dia, teria bastado para enervar a um santo homem. Temos
atualmente algum caso que possamos tachar de melancolia?
- Verá, senhor - respondeu Smith depois de titubear, - muitos dos homens recrutados a forçosa andam com baixo ânimo, certamente; mas daí à melancolia clínica...
Lamento decepcionar-lhe, senhor.
Os jovens, que estavam inclinados sobre as folhas, esticaram-se quando Stephen, ao voltar-se, viu entrar na enfermaria ao capitão Aubrey.
- Na glória, para a vida... - exclamou. - Mais luz e mais ar que no mesmíssimo Céu. Seria um prazer adoecer em um lugar assim. Mas bem - acrescentou aspirando a
esquerda e direita, - pode-se saber quantos mortos o senhor guarda nesses baús?
- A nenhum - respondeu Stephen. - Esse fedor é da assa-fétida de Smyrna, a mais fétida de todas elas. Em tempos se pendurava do mastro mais alto. Talvez poderiam
convencer-me para que a recobrisse com seda empapada em óleo e a guardasse em uma caixa forrada de chumbo, que penduraríamos de alguma fresta. Ainda que, evidentemente,
guardaria aqui um pouco em uma jarra para uso diário.
- Eu lhe o rogo, doutor - pediu Jack. - Se me acompanhar poderemos falar diretamente com Astillas. Um cavalheiro da Junta de Feridos e Enfermos espera o senhor na
cabine.
O cavalheiro em questão não pertencia à Junta de Feridos e Enfermos, ainda que levava documentação oficial da mesma, mas ao Almirantado, e era um desses funcionários
que raramente se via no departamento de Inteligência Naval, um cavalheiro em quem amiúde sir Joseph Blaine havia confiado para levar a cabo as missões mais delicadas.
Não se cumprimentaram como se se conhecessem de antes, nem sequer quando Jack os deixou a sós. O senhor Judd se referiu com firmeza e autoridade a certos pontos
obscuros da administração médica, estendeu-lhe os documentos relevantes com certa ênfase, e se despediu com educação antes de ir embora por onde havia vindo.
Stephen se dirigiu diretamente à câmara do comodoro iluminada pela galeria de popa, e lá, comodamente sentado, abriu o pacote. Os papéis careciam de complicações
e interesse, pois sua única função era a de incluir a nota onde se pedia que se fosse ao bosque de coleópteros naquela mesma tarde se possível, ou que se reunisse
com o portador, a quem encontraria no Cock durante meia hora, para marcar um encontro cedo, no dia seguinte.
A estas alturas dos preparativos no Bellona, Stephen estava praticamente livre. Foi ao Cock, falou com seu homem, pegou um carro postal de volta a Ashgrove, selou
sua égua e percorreu a cavalo umas milhas em direção a Liss, antes de virar por uma série de caminhos, um dos quais o teria levado a uma casa de campo pertencente
a sir Joseph se, antes de chegar ao caminho, não se tivesse desviado por uma vereda que derivava por pastos acidentados e arenosos até chegar a um bosque afastado,
um dos poucos bosques da Inglaterra onde um entomólogo tinha uma oportunidade razoável de encontrar essa maravilhosa criatura chamada Calosoma sycophanta, assim
como, pelo menos, três variantes do escaravelho tigre.
- Quanto me alegra que tenha podido vir - cumprimentou Blaine, levantando a mão para apertar a sua. Conduziu o cavalo e o ginete até uma margem sombreada, onde Stephen
desmontou, atou simbolicamente a Lalla e se sentou, contemplando o rosto nervoso e pálido de seu amigo.
- Estou tão preocupado com os assuntos que tenho em mente que quase não sei por onde começar - disse sir Joseph. - A última vez que nos reunimos lhe expliquei que
Habachtsthal prosseguia com o trabalho de Ledward de enviar informação aos franceses; também lhe disse que foi ameaçado de sofrer um justo castigo por isso, ameaça
que pôs em xeique suas atividades até que se apercebeu do oca que era. Eu lhe adverti assim mesmo que era um homem excepcionalmente vingativo, e que tinha motivos
para suspeitar que me considerava o responsável último de ditas ameaças. Estas suspeitas se viram justificadas, o que lamento de verdade, Stephen, pois devo dizer-lhe
que também identificou ao senhor como a nêmesis de seus amigos Ledward e Wray, e a Clarissa como a fonte da informação que o senhor obteve sobre ele. De modo que
já sabe quais foram meus informantes.
- Sabe como ele descobriu?
- Quanto ao primeiro, resulta óbvio, pois é sabido o ódio que Wray professava tanto pelo senhor como por Jack Aubrey e a sua presença em Pulo Prabang quando aqueles
dois foram assassinados. Já quanto ao segundo, a verdade é que resulta muito mais obscuro... ainda que chegado a este ponto devo desviar-me do tema e voltar a elucubrar
sobre esse outro assunto, feio quer que seja, que conduziu ao capitão Aubrey a ser acusado por fraudar a Bolsa. Foi orquestado por criminosos, certamente: um bando
de fanfarrões, como se diz comumente, os mesmos criminosos que, com um ou dois golpes, tiraram do meio e desfiguraram àquela testemunha que poderia servir para absolver
ao acusado. Acreditará o senhor que o vice-procurador da Coroa e uma firma de advogados respeitável e de longa tradição têm pouco o que ver com um bando de criminosos,
mas a gente de bem conhece a quem não o é, e assim sucede até a mesmíssima porcaria. No que concerne a raison d’État, ou ao que possa disfarçar-se de raison d’État,
acho que mesmo o senhor se surpreenderia do que pode chegar a suceder. E devo lhe dizer que pela mesma comprida e sinuosa estrada, os advogados de Habachtsthal o
puseram mais ou menos em contato direto com um bando de indivíduos de semelhante aspecto, senão igual. Pratt, que está muito familiarizado com esse mundo, assegura
que pelo menos três deles pertenciam ao grupo anterior, e que um no mínimo, um homem chamado Bellerophon, assassinou ao cúmplice que matou e mutilou ao desgraçado
de Palmer, no caso de que sua riqueza o induzisse a falar pelos cotovelos.
- Pratt? - perguntou Stephen.
- Sim. Sua perspicácia, honestidade, e a peculiaridade de suas qualificações me impressionaram profundamente quando o senhor e eu o empregamos, e desde então pus
em suas mãos outras pesquisas, que sempre resolveu satisfatoriamente para o departamento. Agora conta com associados, todos homens como ele, carne de presídio e
amiúde antigos mensageiros de Bow Street.
- Isso ele me disse. Neste momento trabalha para mim, ou mais provavelmente o façam dois ou três de seus associados. Trata-se de uma investigação familiar da qual
lhe falarei quando tenhamos terminado com isto.
- Não mencionou nada a respeito, como era de esperar - respondeu sir Joseph depois de fazer uma inclinação de cabeça, - mas sim falamos do senhor e do capitão Aubrey.
Sente um grande respeito e apreço pelo senhor. Inclusive me atreveria a chamá-lo afeto. Não obstante... - Fez uma pausa, reuniu seus inquietos pensamentos e continuou,
- estes indivíduos, talvez com a ajuda de um burocrata, além do estrato mais rastreiro de procuradores criminosos, puseram em conhecimento de seu patrão os seguintes
fatos: que o senhor trouxe de volta ilegalmente a dois convictos de Nova Gales do Sul, sem que tivessem sido perdoados, que obedecem aos nomes de Patrick Colman
e Clarissa Harvill, agora senhora de Oakes; que o senhor solicitou, através de mim, seu perdão; e que como tal perdão ainda não se obteve o senhor segue passível
de processamento por uma série de delitos inegáveis que, talvez, não o levem à morte, mas no mínimo a sofrer penas de prisão e de confisco de todas suas propriedades.
Além disso, alegam que o perdão que há tempo pedimos para o senhor...
- Acho que deveria explicar-me esse ponto, Joseph.
- Desculpe-me, Stephen. A primeira vez que o departamento solicitou sua ajuda e conselho para o assunto catalão, dizia-se que o senhor e alguns amigos e familiares
seus tinham estado envolvidos no levante irlandês de 1798, o que lhe situa na ampla categoria legislativa de "cúmplice e encobridor" e "associação com malfeitores".
Para proteger-lhe incluimos seu nome em um dos perdões mais amplos. Confesso que nos tomamos certas liberdades, mas serviu a nossa causa comum. Sem isso não poderia
ter mostrado ao senhor nenhum documento confidencial sem incorrer eu mesmo em um crime, enquanto que no momento menos pensado um processo mal-intencionado e particular,
por exemplo, poderia ter-nos privado de sua valiosíssima ajuda. Como saberá, os processos particulares são comuns nestes casos.
Stephen assentiu.
- Porém, por desgraça, ao que parece esta gente teve acesso ao documento em questão - continuou Blaine, - e se diz que poderia não ser tão estanque, que se pudessem
concretizar-se novas provas poderiam prender o senhor por traição. Conforme parece, mesmo a estas alturas podem proporcionar-se ainda tais provas, em Dublim, onde
ainda hoje em dia se arrastam criaturas infames, e procurar-se a troca por um preço não muito exorbitado.
Agitado como estava, Blaine tirou um lenço do bolso, lenço no qual havia envolvido um envelope enrugado e dobrado pela metade.
- Se me esquecia - exclamou sustentando-o no alto. - Devia ter-lhe enviado este envelope. Corresponde à minuta que explicita a quantidade que se lhe há de pagar
pelo aluguel da Surprise nesta última viagem. O contador difere na soma da primeira página, que acredita excessiva por dezoito peniques, e observa que no total o
senhor omitiu a soma combinada de dezessete mil libras, mais ou menos, em caráter de aluguel, manutenção e reparações.
- Como confunde a existência de um o fato de saber-se capaz de esquecer, ou mesmo de descartar, dezessete mil libras - disse Stephen em voz baixa.
Blaine não prestou atenção a suas palavras e continuou:
- Pensando bem acho que errei em minha exposição, pois aredito ter dado a impressão de que toda esta informação se encontra nas mãos de Habachtsthal. Não é assim.
Possue uma idéia geral mas ignora os detalhes. E por mediação de duas fontes descobri que a... como chamá-la?, a... turma não só se pôs pôr um alto preço a seus
serviços, como depois o chantageou por ter procurado e usado sua ajuda. A verdade, não sei o que possa ser dele, ainda que seu final se me deseja que será bastante
desagradável. Contudo, o senhor não me é indiferente, e devo dizer-lhe com uma preocupação infinita que seu projeto mais imediato consiste em chantagear o senhor.
Lamento dizer, mas sabem que é pessoa de recursos, e também conhecem seus pontos fracos, ainda que só seja no concernente a Clarissa e a Padeen, e que poderiam pegá-los
para conseguir que os deportassem de novo para Nova Gales do Sul. A informação me chegou por duas fontes distintas. Não lhe surpreenderá saber que Pratt foi uma
delas, mas acho que a segunda sim o surpreenderá, pois se trata nada mais e nada menos que de Lawrence, o conselheiro de Jack Aubrey no caso da Bolsa. Mostrou-se
tão cauteloso e discreto como cabia esperar, mas deduzo que Habachtsthal já tem consciência de que está muito, muito mais envolvido nesta associação com malfeitores
do que esperava ver-se, que não vai poder satisfazê-los com a cifra estipulada de antemão, e que ainda que o regente soberano de um estado alemão insignificante
possa despachar expeditivamente a todo aquele que lhe resulte incômodo em seu própio terreno, aqui não terá as mesmas facilidades. O muito estúpido brigou com seu
própio advogado e agora anda em busca de proteção a direita e esquerda. E assim, direta ou indiretamente, é como Lawrence se informou do que sucede. É perfeitamente
consciente da posição em que se encontram Clarissa e Padeen. Entende com perfeição que uma longa demora em conceder um perdão que, de outra forma, deveria ter sido
rotineiro, forma parte de uma manobra a longo prazo dirigida contra minha pessoa e, através de mim, contra o senhor. Pede para que o senhor tenha muito cuidado.
- Sempre senti um grande respeito, estima e apreço pela pessoa de Brendan Lawrence - confessou Stephen, - e lhe agradeço muito sua amabilidade. Não terá oferecido
ao senhor algum conselho a respeito?
- Isso mesmo, esta mesma manhã tive a oportunidade de entrevistar-me com ele. Seus conselhos coincidem ponto por ponto com os de Pratt, que veio me dizer que, nesta
mesma segunda-feira, um procurador de segunda disporá finalmente da documentação autenticada de Newgate para completar o processo que aprova a deportação de Clarissa.
Também coincidem com a minha, se lhe serve de algo.
- Peço que me diga sua opinião sobre todo este assunto, se é o senhor tão amável.
Em pleno silêncio, um gaio-comum assobiou desde a copa da árvore que tinham acima de suas cabeças, um álamo branco; deu uma espiada desde as alturas e ao ver o que
eram afastou-se voando com um grito rouco.
- Não sei se devo dizer - disse Blaine, que olhou com firmeza para Stephen. - Acho tão extravagante que poderia tachá-lo de romântico, de excessivo. Contudo, todos
nós estamos de acordo em que o senhor deveria fugir de imediato, levando seus protegidos, assim como todo o dinheiro que possa reunir. Assim se apresentem as acusações
contra sua pessoa, assim que os arquivos de Newgate tenham percorrido o caminho que os separa dos advogados empregados por Habachtsthal, e assim que este tenha firmado
a denúncia que dará começo ao processo legal, sua conta bancária sera embargada e não poderá tocá-la. Acreditamos o senhor que deveria se esconder e permanecer oculto
pelo menos até que o duque de Sussex regresse, momento em que minha posição se verá sumamente reforçada, momento também em que o carinho que ele tem pelo senhor
se concretizará em um perdão do mais rotineiro, pois sua posição supera em muito a de Habachtsthal.
Regressou o gaio-comum, voou em círculos ao redor da égua e voltou a pousar na árvore, grunhindo para si durante um tempo antes de alçar vôo de novo.
- Tudo depende de Habachtsthal - disse Blaine. - Se fosse eliminado não poderia fazer nenhum favor, e desapareceriam todas estas dúvidas sobre o perdão. Quando os
concedam, os chantagistas não terão a que se agarrar para fustigar ao senhor. - Guardou silêncio, mas seu olhar disse tudo o que queria dizer.
- Certamente - disse Stephen. - Trata-se de um inimigo da mesma estatura que Ledward e que Wray, como alguns outros aos que eliminei ou servi de veículo para sua
eliminação sem peso algum de consciência. E ao mesmo tempo se trata de um caso diferente, e com os compromissos que adquiri com este país, não consigo sequer poder
considerar semelhante ação.
- Suponho que não. E não sabe o quanto lamento. Em caso de desaparecer o da Liga, tudo viria abaixo. É o único e principal artífice. Se morresse, toda sua sede de
vingança e toda sua influência desapareceriam com ele. Trata-se de um caso de acusação particular, de modo que também desapareceria. Não temos por que esperar por
Sussex. Deveria insistir, talvez, em que o senhor considerasse e recorresse ao seu antigo paciente o príncipe William. O departamento se livraria de um oponente
perigoso, livrar-se-ia de uma vez por todas. Contudo..., com relação ao dinheiro, Lawrence acha que o senhor dispõe de uma soma importante em ouro.
- Isso mesmo. A última vez que estive na cidade me entrevistei com ele, e depois de considerar tudo o que me explicou com respeito às participações e às ações, às
anualidades e às propriedades, decidi depositá-lo nas arcas em que veio da Espanha. Um dos sócios me mostrou-as, ficam guardadas em uma câmara forte situada no porão
de sua casa na Cidade.
- Estaria o senhor disposto a firmar algumas procurações dirigidas a algum candidato cuja confiança estaria garantida por Lawrence e por mim, para podê-lo guardar
em lugar seguro?
- Sem dúvida.
- Assim o supúnhamos, de modo que Lawrence redigiu as procurações: aqui tem uma pena e um tinteiro de bolso. O banco tardará muito pouco em ter tudo preparado. Como
saberá, não há um minuto a perder.
CAPÍTULO 5
- Por que estou tão nervoso? - perguntou-se Stephen enquanto cavalgava para Portsmouth. - Minha mente cavalga descontrolada sem um rumo determinado, ela me escapa.
Por que, oh, por que eu deixei no barco minha bolsa cheia de folhas? Era a oportunidade perfeita para que demonstrassem seus poderes, tão superiores aos da papoula,
que proporcionam pouco menos que uma estúpida modorra. Claro que, em ocasiões, é preferível desfrutar de uma estúpida modorra - refletiu ao recordar que Petersfield
contava com uma farmácia onde, em tempos, comprara láudano. - Vade retro, Satanás - exclamou ao mesmo tempo que fazia um esforço para mudar o pensamento.
As nuvens se amontoavam no alto, pelo sudoeste. Avançava a noite, tão cedo como sempre, e era quase certo que traria chuva. Havia abandonado os caminhos fazia tempo,
e agora cavalgava pela estrada entre Londres e Portsmouth, que abandonaria um pouco antes de chegar a Petersfield. As margens lisas facilitariam a viagem, e não
podia desviar-se do caminho facilmente. Tal e como havia dito sir Joseph com uma intenção de sorriso, não havia nem um minuto a perder.
Pois o estado anímico é algo que não só se contagia facilmente de pessoa para pessoa, como também de pessoa para cachorro, gato, cavalo, e vice-versa, parte de sua
alegria atual se devia a Lalla, ainda que a inusual e inquieta volatilidade da égua era devida a uma causa que provavelmente não podia ser mais remota: a estação
do ano, seu temperamento, e uma miríade de diversos fatores que lhe inspiravam a sensação de que nada seria mais agradável que achar-se com um estupendo exemplar
de cavalo. Dava pulos a medida que cavalgava, às vezes dançava para um lado, às vezes movia a cabeça. Sua atitude era mais que evidente para outros membros de sua
raça, e os pobres e desgraçados castrados elevavam o olhar para o céu, enquanto que o único potro junto ao qual passaram correu como um possesso de um lado para
o outro do pasto, relinchando. Por outro lado, um asno pretencioso proferiu um relincho de tristeza que os seguiu além do cultivo, até a margem de um árido exido
onde uma ampla vereda se unia ao caminho pelo qual cavalgava, pois ambos seguiam até fundir-se, junto às forcas, em uma estrada. Comprazida por seu êxito, Lalla
grunhiu, arqueou o pescoço e corcovou até tal ponto que Stephen gritou:
- Basta, basta. Quieta. Vamos, Lalla, pelo amor de Deus. - E puxou as rédeas com força para obrigar a égua a deter seu andar ao pé das forcas, sempre lugar de passagem
obrigatório para qualquer pessoa interessada na anatomia, inclusive para alguém tão preocupado como Maturin.
Este lugar de mau agouro em um cruzamento de caminhos, rodeado de mato de ambos os lados, perfeito para uma emboscada, fora escolhido para a exibição de terríveis
exemplos. Contudo, não pareciam ter um efeito muito dissuasório, pois ao que parece tinham que renová-los com tal regularidade que as duas parelhas de corvos de
Selborne Hanger o visitavam duas vezes por semana para desfrutar de carne fresca. A essa altura a luz era muito escassa para que Stephen pudesse fazer alguma observação
interessante; contudo, pelo rabo do olho percebeu um movimento na tojo. Talvez fosse uma cabra, pois havia visto várias no caminho. Lamentou não ter a mão a precisa
pistola de longo canhão giratório, presente de um agente de inteligência francês, que costumava levar quando viajava de noite.
Esporeou Lalla, mas esta apenas tinha franqueado o ponto exato em que os caminhos se fundiam quando ouviu um estampido de cascos a suas costas. Quando montava Lalla,
Stephen não usava esporas nem fuste, de modo que a animou a apertar o passo apertando os joelhos, os calcanhares e toda a força moral que pôde exercer, apesar de
tudo a égua não pareceu dar-se por ciente, e apenas avançou ao galope. Os cascos de seus perseguidores se aproximaram mais e mais: tinham chegado a sua altura e
os rodeavam por ambos os lados. Era uma turma de castrados sem ginete, que comiam a égua com os olhos, além de outros potrancos e cavalos de fazenda procedentes
dos exidos, tal e como Lalla sabia obviamente desde o início.
- Apesar de tudo - disse Stephen quando a grade se fechou atrás deles e se acharam trotando pela estrada de Portsmouth, - há um armeiro em Petersfield, e acho que
comprarei um par de pistolas de bolso.
Pararam no Royal Oak, onde Stephen descobriu que não só havia esquecido a arma de Duhamel, mas também seu própio dinheiro, ainda que foi graças ao fato de descobrir
por casualidade uma moeda de sete xelins que tinha guardado em um bolso, como uma curiosidade, que se poupou uma situação embaraçosa e, talvez, uma experiência desagradável.
- A mensagem de Joseph projeta sua própia sombra - refletiu. - Pois claro raras vezes me permiti o luxo de baixar a guarda desta maneira.
Cavalgou debaixo de uma chuva incessante, e voltou a pensar em Duhamel, um agente que, subutilizado e talvez a ponto de ser sacrificado por seu própio governo, mudara
de lado e proporcionara a Stephen provas da traição de Wray e Ledward. De Duhamel, por quem sentira um afeto sincero, passou a recordar de outros agentes, detendo-se
especialmente em um homem ao qual chamavam McAnon, um normando de Vauville de boa posição que acostumava infiltrar-se até Alderney para visitar uma esposa extra-oficial,
e que, assim como outros homens surpreendidos em idêntica e frágil postura, mudara de lado, tanto mais simples pois desprezava a Bonaparte com um ódio pessoal e
exacerbado, própio de um vulgar rebelde italiano e de alguém a quem haviam recusado uma proposta para a melhora do sistema de sinais telegráficos. McAnon, que ocupava
um posto de responsabilidade no departamento de comunicações, havia lhes proporcionado algumas previsões de longo alcance que resultaram muito precisas. Era ele
que aguardava o momento de que Jack Aubrey abrisse as ordens secretas quando alcançasse a latitude e longitude adequadas. Nestas ordens lhe informavam que uma esquadra
francesa de força mais ou menos equivalente, acompanhada por navios de apetrechos, reunir-se-ia em Lorient em uma data determinada, e que com a ajuda de três distrações
individuais se faria ao mar o mais perto possível da lua cheia. A intenção do comandante francês consistia em pôr proa para as Antilhas com o objetivo de enganar
possíveis observadores, a seguir rumaria para a costa sudoeste da Irlanda, onde desembarcaria suas tropas na costa do rio Kenmare ou da baía Bantry, conforme permitissem
tanto as atividades da Armada real como o tempo.
McAnon era um homem valioso onde quer que fosse, ainda que, como havia dito Blaine, seu ascendente, com ele era agora menos firme, já que a esposa extra-oficial
havia se interessado por usar bóbis em pleno dia, e a adotar a voz de uma menina pequena quando abria a boca. Mesmo assim era provável que o desprezo que sentia
pelo regime imperial, seu desfrute do perigoso jogo e a amizade que o unia ao homem que tratava com ele o mantivessem na ativa e em posição de dar informação confiável.
Mas era muito difícil sabê-lo com certeza. O outro bando contava com outros homens muito inteligentes, interessados em envenenar os brotamentos de inteligência:
recordou-se de Abel, um aliado devoto e completamente altruísta de Paris, cujo chefe lhe permitira "por acidente" ver o plano de ataque do almirante Duclerc sobre
um comboio do Báltico, e que pouco antes de sua morte enviara os pormenores com toda sua boa fé. Como conhecia tão bem ao agente em questão, o segundo de Blaine,
pois este se encontrava então em Portugal, atuara de imediato: para sua surpresa os barcos adicionais despachados para proteger aos mercantes se encontraram fortemente
superados em número. O comboio sofreu terríveis danos, apresou-se um bergantim armado, destruiu-se uma corveta, e a Melampus, fragata de sua majestade, somente conseguiu
salvar-se devido à descida de uma bruma providencial, ainda que com muitas baixas, incluída a do capitão, que era amigo de Jack, a perda de dois mastaréus e graves
danos no casco.
Situações difíceis, situações difíceis. E se Jack seguisse a bordo teria outra dentro de uma hora. O comodoro Aubrey tinha mais trabalho do que podia levar a cabo,
como sucede a todo aquele que tem ordens de partir em tão pouco tempo, com alguns preparativos que dão fé da indiferença dos comandos e tantas mudanças de última
hora. Apesar disso, estava melhor apetrechado que muitos em condições similares. Como tantos grandes homens não perdia os nervos com facilidade; não recorria ao
seu poder na hora de repreender a ninguém. Geralmente, sentia desprezo por qualquer um que se queixasse, e todo o transcurso de sua carreira profissional lhe preparara
para o desempenho do papel atual. Por outro lado, encontrava-se incrivelmente indefeso no tocante à inveja. Era um sentimento que ao que parece não conhecia, pelo
menos não em sua atual e arrasadora intensidade, de tal forma que quase não parecia capaz de reconhecer os sintomas, de modo que não podia recorrer à inteligência
para a escassa ajuda que pudesse proporcionar nestes casos.
Stephen estava muito familiarizado com a causa da cegueira no tocante à saúde: "é somente um inchaço e não tardará em desaparecer", ou nos sentimentos: "certamente
não recebeu minha carta. O correio é muito lento nos tempos que correm, e dista muito de ser considerado seguro". Apesar de tudo, surpreendia-se muito ao descobrir
que Jack Aubrey era capaz de tais sentimentos, pois era um homem muito mais inteligente do que parecia para quem não o conhecia bem. Observara com suma preocupação
o progresso de sua doença, as mudanças operados na atmosfera que envolvia Ashgrove Cottage, lugar que o senhor Hinksey seguia visitando com uma regularidade mais
do que desafortunada, aparecendo amiúde pouco antes de que Jack partisse. Também reparara nas mudanças operados no Bellona. Jack ainda seguia comportando-se amavelmente
com ele, e em tudo o tocante à esquadra se dava perfeitamente bem com quem lhe rodeava. Contudo, de vez em quando sucedia que um repente de severidade ou seu tom
autoritário surpreendia a quem havia servido com ele antes, e fazia com que seus novos subordinados o observassem com certo incômodo. Será que teriam embarcado com
outro Saint Vicent, conhecido como Velho Jarvey ou mesmo como Velho Diabo, por ser disciplinador feroz e estar sempre tenso?
Obviamente, este julgamento em particular, que na opinião de Stephen era de todo desnecessário, punha a prova o temperamento de Jack Aubrey. Stephen lamentava muito
todo o caso, o sofrimento dos dois principais envolvidos e de quem os rodeava, a impossibilidade total de representar o papel de amável mediador que endireita tudo
com algumas palavras suaves e compreensivas, comunicadas talvez de forma parabólica. Chegado a este ponto, sua tristeza adquiria um tom singularmente imediato, sentia
a angústia pessoal de quem joga muito, pois ia pedir-lhe um favor que mesmo um comandante naval bem disposto, sem pressa e famoso por sua benevolência, titubearia
na hora de conceder, isso por não falar de alguém concentrado na tarefa de preparar uma esquadra que devia fazer-se ao mar, alguém a quem lhe roía um monstro de
cuja existência quase não era consciente, um monstro que nesse momento o devorava por dentro.
Lalla se deteve e voltou a cabeça para olhá-lo. Devia tomar a estrada até Portsmouth, ou levá-lo pelo caminho que conduzia para casa?
- À esquerda, fresca - ordenou, afundando o joelho no lado. Ainda não a havia perdoado por ter-lhe feito de idiota junto às forcas, ainda que se abrandou quando
chegaram a Keppels Head. Pediu farelo molhado, mesclado com melaço, que era o refresco favorito da égua, antes de ir ao porto em busca de um bote, já que o moço
do estábulo lhe informara que o cavalo de Jack continuava no estábulo.
- O Bellona fica a uma boa distância, senhor - disse o barqueiro, - e o suportará senhor uma remada longa e úmida. Quer pôr este capote de lonita, já que, pelo visto,
esqueceu a capa?
Apesar do capote de lonita, Stephen se ensopou completamente antes de que bote se encostasse na embarcação. Ao aproximar-se do costado, iluminado e concorrido pelos
marinheiros, o barqueiro observou que a falua da Thames esperava no lado de estibordo.
- Olhe-os, parecem uma turma de pisa-verdes - disse ao mesmo tempo que assinalava com uma inclinação de cabeça para os remadores do capitão Thomas, todos eles vestidos
com o mesmo traje ostentoso, como um bando de palhaços empapados. - Será bombordo para o senhor, verdade, senhor?
- Isso mesmo - respondeu Stephen. - E lhe agradeceria que avisasse aos do barco de que necessitaria, se possível, de uma escada em boas condições.
- Aí, do bote! - gritaram desde o Bellona.
- Oi! - replicou o barqueiro.
- Vem por aqui? - perguntaram do navio.
- Não, não - respondeu o barqueiro, com o que na realidade queria dizer que sim se atracaria ao navio, que aferrara sem dificuldade com o croque, e que seu passageiro
não era um oficial de guerra; então, levantando ainda mais a voz, gritou: - O cavalheiro agradeceria por uma escada em condições, se estiver disponível!
Suas palavras foram recebidas por um silêncio fruto do assombro que durou talvez mais do que o barqueiro esperava, e quando este encheu os pulmões para repetir o
dito, ao mesmo tempo que afogava o riso, algumas vozes familiares lhe informaram de que o doutor não devia se mover por temor de que escorregasse devido à chuva,
que não saísse de onde estava, que eles se encarregariam de subi-lo a bordo.
E assim o fizeram os homens da Surprise: no convés o depenaram de sua roupa, e lhe disseram que estava empapado, empapado até o pescoço, por que não havia posto
a capa? Com o vento do sudoeste sempre teria que usar a capa.
Dirigia-se para a popa quando o capitão Pullings o interceptou.
- Há, doutor - disse, - o comodoro está ocupado neste momento, não poderia pôr melhor essa capa, pelo menos? Pegará um resfriado que o levará direitinho para a tumba.
Senhor Somers - disse ao oficial de guarda, - muita atenção, em qualquer momento a partir de agora.
- Senhor Dove - disse Somers ao contramestre, - muita atenção, em qualquer momento a partir de agora.
Um dos ajudantes do contramestre se inclinou sobre o corrimão e observou a falua. Conseguiu atrair a atenção do timoneiro e inclinou a cabeça de uma forma extra-oficial,
repleta de significado.
Uma porta se abriu a estibordo da popa: um vozeirão sem impedimentos em seu caminho disse em um tom de sonora indignação:
- Isto é tudo o que tenho a dizer, e espero que não volte a suceder nada parecido. Que o senhor tenha um bom dia, senhor.
O capitão Thomas saiu lívido da emoção, levando consigo debaixo do braço o registro de castigos da Thames. Depois, cumprimentou aos oficiais do castelo de popa com
pouco mais que uma inclinação de cabeça quando os ajudantes do contramestre fizeram soar o apito para anunciar que descia pelo costado, com toda a cerimônia que
acompanha a ocasião.
- Agora a cabine está vazia, doutor, se o senhor quiser entrar - disse Tom Pullings com uma olhada de cumplicidade.
- Ah, aqui está, Stephen - cumprimentou Jack ao mesmo tempo que levantava o olhar da escrivaninha, com um sorriso natural que transformou a severidade de sua expressão.
- Já voltou? Pelo amor do céu, está empapado até os ossos. Não deveria trocar os sapatos e as meias? Costuma-se dizer que os pés são a parte mais frágil. Aí fica
o calcanhar de Aquiles... ainda que você já saberá o que é seu calcanhar de Aquiles.
- Depois. Mas no momento, Jack...
- Bem, em qualquer caso tome um trago para tirar a umidade. A água do mar não faz estrago a ninguém, mas a chuva é farinha de outro saco quando se mete nos ossos
de um. - Moveu-se como peixe na água, pegou uma garrafa do armário e serviu dois copos de rum, glorioso rum que extraíra da madeira durante o também glorioso ano
de Trafalgar. - Deus, eu realmente necessitava disso - disse ao apurar o copo. - Quanto desprezo a quem surra de forma indiscriminada. - Deu uma espiada nos papéis
que havia em cima da mesa, e seu rosto voltou a adquirir uma expressão pétrea.
- Jack, diria que não escolhi o melhor momento - disse Stephen. - Tenho que pedir-te uma coisa. Um favor, e não sabe quanto preferiria encontrar-te mais calmo. Pois
salta à vista que teve um dia de cachorros.
- Diga-me, diga-me, Stephen. Não acredito que amanhã esteja de melhor humor. O mau humor parece ter se aninhado em meu peito - disse golpeando-o, - tanto como o
vento costumava entabular-se pelor sudeste e ficar ali quando tentávamos sair arrastados do Porto Mahón, semana após semana.
Houve um silêncio.
- Se é tão amável gostaria de pegar a Ringle emprestada- disse Stephen por fim, com voz rouca, - com a dotação adequada, para realizar uma viagem particular a Londres
tão cedo como seja possível.
Jack o observou fixa e penetrantemente, como Stephen nunca o vira fazer.
- Sabe que nos faremos ao mar com a maré da quarta-feira. - Observou depois de olhar o rosto de Stephen.
- Sim. Mas permita-me dizer que se o vento nos acompanhar, estou seguro de poder reunir-me contigo no Groyne, ou em frente a Finisterre. - Quando Jack assentiu,
Stephen aproveitou para continuar: - E permita-me também acrescentar que se trata de uma questão inteiramente pessoal, uma emergência particular.
- Isso me havia parecido - admitiu Jack. - Muito bem, ela é sua. Mas com o tempo que se aproxima, duvido muito que possa reunir-se comigo a tempo. Tem intenção de
demorar muito na cidade?
- O suficiente para carregar alguns baús perto da Torre.
- Quantas marés você calcula?
- Marés? Para dizer verdade, Jack, não tinha pensado em marés... ainda que também - disse baixando o tom de voz, tanto que pareceu fraquejar sua confiança no que
ia dizer - confiava em poder passar talvez uma noite em Shelmerston.
- Entendo. - Jack fez soar um sino. - Poderia dizer ao capitão Pullings que necessito um minuto de seu tempo? - Tom Pullings entrou de imediato. - Tom - disse, -
o doutor tem necessidade do barco de apetrechos e pretende navegar até o rio de Londres diretamente. Confia-lhe a Bonden, a Reade e a uma quadrilha tão discreta
de velhos companheiros de rancho como lhe ocorra pensar, os suficientes de forma a assegurar duas guardas e que dois fiquem livres. Talvez não possa reunir-se conosco
antes do Groyne ou de Finisterre, de modo que assegure-se de que conte com a bagagem necessária para as Berling, para ontem.
- Para ontem, senhor - disse Tom sorrindo.
- Fico sumamente agradecido, Jack, meu amigo - disse Stephen.
- Não é necessário agradecimento algum entre você e eu, irmão - disse Jack. E em outro tom, acrescentou: - Talvez demore um pouco a ficar pronto, porque está junto
a Gilkicker, mas poderá partir com a maré-cheia. Lamento não lhe ter cumprimentado alegre como umas castanholas. Tive um dia surpreendentemente esgotador. Ainda
que você também, a julgar por seu aspecto, se me permite falar deste modo tão condenadamente pessoal. Quer um café? - Sem dar tempo para uma resposta, fez soar o
sino e gritou: - Killick, uma cafeteira das grandes. Ah, e o doutor necessitará de meia dúzia de camisas limpas, um abrigo seco e umas meias imediatamente. - Deixe
que lhe fale do dia que tive hoje - disse Jack quando desfrutavam do café, - e deixo de lado a minha batalha particular com os provedores, e com esse asno de Thomas,
que se seguir assim acabará como Pigot ou Corbett, sendo pasto para as feras marinhas. Verá, tinha desembarcado para comprovar como se manejava meu segundo cronômetro,
o Arnold, que necessitava de uma limpeza, quando resulta que me topo com Robert Morley da Blanche. Ao que parece está ancorada em Saint Helens, recém chegada da
Jamaica. Choquei-me literalmente com ele e, além do mais, ao cair o fez sobre um canal. Eu o recolhi, sacudi a poeira e o levei ao Keppels Head, onde pedi um copo
de ponche de limão porque sei que Bob Morley gosta muito. Mas ainda tinha essa palidez no rosto e lhe perguntei se havia se ferido e se queria que chamasse a um
cirurgião. Disse que não, que estava perfeitamente bem, e então se inclinou sobre a mesa enquanto as lágrimas resvalavam por suas faces. Seu barco havia chegado
antes do amanhecer e havia desembarcado a toda pressa para chegar em casa antes do café da manhã. Pois bem, vai e encontra a sua esposa grávida de seis meses. estivera
fora durante dois anos. Ela estava horrorizada. Seu sogro estava presente, um pároco ancião, e disse a Bob que não devia maltratá-la nem mostrar-se desagradável.
Não devia lhe jogar uma só pedra a menos que estivesse livre de pecado; e nem sequer então, se é que em verdade era um bom homem. Pois Bem, como sabe muito bem,
Bob Morley, ainda que seja uma companhia excelente e um tolerável bom marinheiro, nunca foi muito amigo da castidade, pelo menos mais do que eu mesmo, ainda que
ele levava as coisas muito mais longe. Nas Antilhas sempre andava de cruzeiro com uma senhorita a bordo, e permitia a seus oficiais, e inclusive aos guardas-marinhas,
tais liberdades quando comandava essa Semiramis que parecia um bordel flutuante, até tal ponto que o almirante em pessoa se apercebeu disso.
- Seu cirurgião morreu de sífilis.
- Pois bem, vou e tento explicar assim a Bob, tento dizer-lhe que não podia culpar decentemente a ninguém por fazer o que com tanta alegria ele tinha feito. Certamente,
a empreendeu com aquele grito de papagaio de: "Oh, é que para as mulheres é diferente".
- E o que respondeu a isso?
- Não lhe disse que achava a resposta simplória porque me daria um esfregão, é o que penso, porque estava muito triste, o pobre, de modo que respondi que as coisas
eram assim - que bobagem, - que o fato era o mesmo para ambos, e que a única diferença era que uma mulher podia trazer um cuco ao ninho e enganar às outras aves
do quintal, mas que isso se conserta deixando ao cuco em questão fora do testamento.
- É essa sua considerada postura, irmão?
- Sim, isso mesmo - respondeu Jack com um olhar angustiado, - é minha mais profunda e considerada postura. Eu pensei uma e outra vez. O que é justo é justo, já sabe
- disse com uma ameaça de sorriso. - Sempre estive convencido disso.
- Pois lhe honro por isso.
- Alegra-me ouvir isso, ainda que alguns diriam que é uma pena. Apesar de tudo, não acredito que lhe compraza tanto ouvir que me ofereci para comparecer ante o homem
em questão para pedir-lhe uma satisfação.
- Mas vejamos, Jack, não acha que sua atitude tem certa contradição? Por um lado, a decência - e não me referirei à caridade cristã, - e, por outro, uma selvagem
ânsia de vingança...
- Stephen, não acredito que seja a pessoa adequada para me falar de selvagens ânsias de vingança, pois ambos temos as mãos manchadas. Nós dois estamos desqualificados.
E se existe uma contradição aparente, posso responder a ela desta forma: acho, mais que isso, estou plenamente convencido, de que estou com a razão quanto ao primeiro;
e que estou praticamente com a razão com relação ao segundo. Chegou em seus estudos matemáticos à equação de segundo grau, Stephen?
- De fato meus estudos na matéria não alcançaram o pé da tábua de multiplicar.
- A equação de segundo grau concerne à segunda potência de uma quantidade desconhecida, mas nada mais. A raiz quadrada.
- Ah, verdade?
- E meu argumento é o seguinte: uma equação quadrática tem duas soluções, e ambas são acertadas, demonstráveis e comprováveis. Existe uma contradição aparente mas
irreal entre ambas as respostas.
Stephen sentiu que pisava em terreno perigoso; ainda que não tivesse temido a possibilidade de infligir dor, sua mente estava tão esgotada que, apesar de dar com
possíveis objeções aos argumentos de Jack, quase não era capaz de formulá-las.
- Jack - disse em um tom completamente diferente, depois de refletir um pouco, -mencionou antes as Berlings. Quando pensa em falar-me delas?
- Vá - disse Jack, que o compreendeu perfeitamente bem, - são um grupo de rochas, ainda que você as chamaria de ilhas, que se alçam em pleno mar como o cume de uma
montanha, um pouco ao sul das Farilhoes, a umas duas léguas a oeste noroeste de cabo Carveiro, em Portugal. São muito perigosas em metade de uma borrasca, e mais
de um barco que cobre a rota de Lisboa já lamentou não contar com um bom vigia de noite e não ter se mantido bem ao mar. Contudo, supõem um ponto de encontro ideal
caso não se queira se aproximar da barra do Tajo e esperar a maré-cheia; e em condições atmosféricas moderadas é possível permanecer facilmente a pairar, a sotavento
delas, largadas as artes de pesca para ver se bica a pescadinha. - Refletiu enquanto via a silhueta das Berlings alçar-se sobre o mar de maio, cálido e morno. -
Estando no Bellerophon de guarda-marinha - continuou, - o capitão despachou o piloto, o senhor Stevens, para reconhecê-las, e este me levou com ele porque sabia
que eu gostava desse tipo de trabalho. Sempre foi muito amável comigo ou com qualquer outro jovem que demonstrasse interesse por levantar planos ou reconhecer costas.
Existe uma satisfação enorme na triangulação e no cálculo de um rumo, Stephen.
- Estou convencido disso.
- Recordo-me algumas das comprovações que fizemos, as que casavam perfeitamente. E também recordo os gigantescos bancos de aves marinhas.
- De que espécie?
- Oh, de todas as espécies, de todas. Certamente você saberia reconhecê-las. Lembro que ele me disse que a maioria eram petréis, mas como estavam assustadas não
me pareceu que voassem como estas aves costumam fazer. E algumas estavam mais cobertas de plumagem branca que os da espécie comum. Estavam assustadas porque entramos
em uma caverna enorme que não tinha fundo, e as aves surgiram voando na penumbra como uma avalanche de neve. A caverna seguia e seguia, tinha um teto alto, e ao
final vimos luz ao dobrar uma esquina no extremo oposto, porque a caverna não acabava ali, não. Ao chegar à saída, a luz penetrava oblíqua e pudemos distinguir inumeráveis
morcegos...
- Morcegos, Jack? Surpreende-me. Tão longe de terra? Suponho que não os observou detalhadamente.
- Estivemos muito ocupados medindo a braceagem, mas me dei conta de que alguns eram grandes como perdizes, bem... talvez como codornas, e que tinha outros menores.
Estou quase seguro de que um tinha as orelhas compridas. Eu o vi recortado contra a entrada da caverna antes de que saísse voando.
- Quanto me agradaria poder passar uma ou duas horas entre morcegos. Fale-me da superfície das rochas, da vegetação, dos lugares onde as aves aninhavam; certamente
teriam seus ninhos ali.
- É claro que sim, e justo um em cima do outro, quase como as gentes que vivem em Seven Dials{12}; ainda que, tal e como eu o vejo, a maioria dos petréis surgiram
dessa caverna. Era cheia de fendas, cantos e buracos.
- Que alegria. Mas vamos, fale-me da vegetação, e faça-me uma descrição superficial das aves.
Conversaram e conversaram até que se perdeu o eco do canhonaço da tarde, jantaram juntos e repassaram a viagem à Portugal que fizeram na Surprise, durante a qual
Stephen teria apreciado o contorno das Berlings se estivesse no convés, e na qual, depois de desembarcar em Lisboa, foram informados de que Sam fora ordenado sacerdote.
Tratava-se de Sam Panda, o filho ilegítimo e negro de Jack, concebido no Cabo. Discutiam ainda que oportunidades tinha de obter uma prelazia quando o buque de apetrechos
se atracou ao navio. Jack Aubrey era tão protestante como qualquer pessoa que abjurasse ao Papa e ao Impostor, mas como sentia todo o carinho do mundo por Sam convertera-se
em um especialista nos segredos da hierarquia eclesiástica, tanto como podia sê-lo na sucessão de almirantes. Conversava com ilusão dos protonotariados apostólicos
e de suas diversas fileiras de botãozinho violeta quando Reade entrou, descobriu a cabeça e disse:
- Acaba de atracar-se a escuna, senhor, com sua permissão, e tudo está disposto - disse observando Stephen de forma significativa, com o que queria dizer que Killick
subira a bordo uma mala com toda a roupa que, segundo ele, o doutor Maturin necessitaria, incluídas diversas camisas.
- Obrigado, senhor Reade - disse Stephen. Entrou apressadamente na cabine dormitório que compartia com Jack, guardou uma soma considerável de dinheiro em seu bolso,
e depois meteu em seu peito a bolsa de pele de lhama na qual guardava as folhas de coca, além da ampulheta que continha a solução de raiz de freixo e a pistola de
canhão giratório. - Adeus, Jack - disse ao sair, enquanto se abotoava o abrigo. - Por favor, cuide de seus intestinos. Há algo em seu rosto que não me diz nada bom
do estado de seu fígado. Se passar mal esta noite, peça amanhã ao senhor Smith que lhe dê ruibarbo. Todo meu carinho para Sophie, certamente. Dar-me-ei toda a pressa
do mundo, como sempre que posso. Bem, que Deus te bendiga.
 
A sensação de urgência que lhe acompanhara desde o momento em que recebeu a mensagem de sir Joseph, e que em algum momento indeterminado tinha desaparecido para
ver-se sustituída por certo grau de espaço mais que de tempo, voltou com força renovada ao descer pela escada do costado do Bellona em plena escuridão; seu desejo
largamente frustrado viu-se satisfeito, satisfeito além do que poderia desejar.
O vento, uma brisa forte do sudoeste que obrigava a levar as gáveas rizadas, alentava o mar estranho e um pouco cruzado que reinava no porto, e quando Reade - que
tinha virado a Ringle para aproar parao castelo de Southsea - ordenou marear a estai do trinquete para separar-se do imponente costado do Bellona e principiar a
caminhada, a escuna empreendeu um movimento curioso e azougado como um cavalo ao qual sustentassem as rédeas, balançando-se primeiro sobre um casco e depois sobre
o outro, ansioso para soltar-se.
O bico da carangueja se ergueu, sua vela flameou antes de aquartelar-se como o fruto de uma enorme lufada. Caçou-se a escota com brio para popa, e de imediato a
coberta se inclinou justo antes de que todo o brio impulsionasse o barco a deslizar com um ou outro cabeceio. Abriu caminho pelo porto sem alterar seu rumo, pois
Reade e Bonden tinham aproveitado todas as horas livres que tiveram para aprender a governá-la com maestria e carinho. Largaram a maior e a bujarrona, e com Bonden
ao leme e Reade ao comando começou a passar pelos outros barcos ancorados frente a Saint Helens.
Haviam pedido a Stephen que aproveitasse as manobras para estivar seus pertences como boamente pudesse em tão pouco espaço, e quando subiu ao convés a escuna pegava
o vento pela amura de estibordo. Todas as velas de cuchillo{13} estavam retesadas como a pele de um tambor, tinham largado o velacho assim como tudo o que os estais
de proa pudessem suportar, e naquele momento Reade, Bonden e dois dos veteranos de Shelmerston se perguntavam se agüentaria também as alas e as rasteiras.
Os de Shelmerston, Mould e Vaggers, constituíam excelentes exemplos do que podia chamar-se de "relatividade náutica": ambos eram fiéis seguidores de Seth, membros
respeitados da congregação, ainda que nenhum deles tivesse encontrado dificuldade alguma em reconciliar o contrabando com a mais estrita probidade em todos seus
tratos pessoais. Naquele momento, um deles dizia que se as alas e rasteiras em questão tivessem pertencido ao rei, as arriscariam sem titubear, mas como a embarcação
era de propriedade privada do capitão Aubrey, que bem, talvez... e sacudiu a cabeça. Este tipo de discussão na Armada Real não eram comuns, tampouco se animava os
homens a levá-las a cabo, mas aquela ocasião era sem dúvida excepcional. Mould e Vaggers, por assim dizer de algum modo, eram contrabandistas, e tanto seu pão como
sua liberdade dependiam em grande medida de que conseguissem andar mais rápido que os cúteres que cuidavam das costas, ou que os barcos de guerra que tentassem detê-los.
Eram os contrabandistas mais prósperos de Shelmerston, e ainda que geralmente navegavam em um lugre chamado Flying Childers, também haviam colhido êxitos em uma
escuna que, ainda que certamente não possuía tão belas linhas como a Ringle, era a mais rápida daquelas águas; sua opinião sobre as alas e rasteiras era, portanto,
a opinião de autênticos mestres, e sua autoridade se via aumentada pelo fato de que não navegavam de novo com o capitão Aubrey porque necessitassem dinheiro. Nada
mais longe da realidade, certamente: todos aqueles que há tanto tempo embarcaram com ele na Surprise, e que tinham sobrevivido para contar, tiveram tanta sorte com
a divisão do butim que se quisessem poderiam converter-se em seus própios amos. Havia quem preferia gastar o dinheiro aos montes para depois afrontar uma pobreza
total. Contudo, este não era o caso dos homens responsáveis do povoado, os anciãos, os diáconos e os presbiterianos das diversas seitas e capelas; e a razão que
justificava a presença constante de Mould, Vaggers e de muitos de seus amigos era uma revelação, talvez ilusória e certamente inoportuna, com respeito à qual os
seguidores de Seth em Shelmerston podiam praticar a poligamia (e mais, inclusive se recomendava sua prática), revelação esta que fora tão mal recebida pelas senhoras
Mould e Vaggers, por citar somente dois exemplos, que o Bellona, apesar de ser um navio de guerra, parecia em comparação um retiro de paz.
Durante a viagem de regresso, Stephen subira de vez em quando à escuna, mas sempre em águas calmas e em plena luz do dia. Agora, ao subir pela escada de chupeta
até o convés inclinado e escorregadio, não pôde reconhecer nem onde estava. Pouco podia ver, e o pouco que via era desconhecido para ele. Pouco significava para
ele a enorme espicha do mastro maior, confuso borrão branco a sotavento, e ainda que se parasse para considerar com calma era quase seguro que podia enumerar as
diferenças fundamentais que existiam entre um aparelho redondo e um aparelho de velas de cuchillo, naquele momento não tinha tempo para isso. Seu pé, cheio de um
ânimo explorador, acertou um mordedor, o convés fez uma cambalhota, perdeu o equilíbrio e rodou pesadamente até topar contra uma das caronadas da Ringle, à qual
se agarrou com força.
Recolheram-no com as perguntas típicas de pessoas do mar: "Havia se ferido?" "Por acaso esquecera que sempre devia reservar uma mão para si mesmo e outra para o
barco?" "Por que não havia pedido ajuda a qualquer um deles?"
Stephen respondeu secamente, ante o que abriram os olhos surpreendidos, pois o doutor costumava comportar-se como um cordeirinho do interior, apreciava um bom conselho
e demais admonestações, e costumava geralmente agradecer o fato de que o levantassem e, se fosse necessário, inclusive contribuía para isso. Contudo, eram criaturas
incapazes de guardar nenhum rancor, e quando compreenderam que seu velho companheiro desejava ficar onde estava, perto do que naquela embarcação denominavam proa,
onde aquelas velas não escureciam seu ângulo de visão, e seguir ali de pé, apesar da escuridão e o frio, responderam amavelmente que não era boa idéia, não nesse
tipo de barquinho que mais podia ser chamado de barco de corrida do que de uma escuna cristã, e que nem ao menos contava com um pavês para impedir que o gato caísse
na água. Vamos, que era melhor não permanecer ali, a menos que se atasse a esse mastro próximo.
E assim o fez, preso ao mastro de proa, seguiu de pé hora depois de hora. Uma parte dele acusava a força do vendaval enquanto as mortíferas ondas de proa rompiam
espumantes sobre as amuras, polvilhando-o de água, e o negro e manchado mar escorria ante seus olhos, tudo isso envolvido por um vasto pot-pourri de som embriagador.
O resto dele considerava seu futuro imediato com toda a agudeza e concentração da qual era capaz. Fazia tempo que sua mão, por vontade própia, havia se fechado sobre
a bolsa que continha as folhas de coca, ainda que finalmente se conteve. "Poderia justificá-lo aduzindo que se a crise atual merece de toda a claridade de pensamento
e antecipação possíveis, devo reservar as folhas para o caso de surgir outra crise que possa ser inclusive mais urgente; ainda que temo muito que minha reserva possa
dever-se a uma simples superstição e ao fervoroso desejo de impor-me a uma causa assustadora, de superar e deixar para trás uma mera sofisteria."
De vez em quando Reade ou um dos marinheiros se aproximava para perguntar-lhe como andava, ou para dizer-lhe que aquilo ali era Selsey Bill, que o vento esfriava
um pouco, ou que aquelas eram as luzes de Worthing, New Shoreham...
Bem entrada a segunda guarda, o fluxo de ondas veio mais do sul, de modo que quantidades enormes de chuvisco do mar, espuma e mesmo água verde banharam por completo
o baixo convés. Reade se aproximou da proa com uma capa cobrindo-lhe os ombros e rogou a Stephen que a pusesse.
- E o senhor não acha, senhor, que seria melhor que se refugiasse lá dentro? - perguntou. - Pela amura de sotavento se pode ver Beachy, e ao dobrar Beachy a coisa
ficará feia. A tripulação se preocupa que o senhor possa ensopar-se até os ossos.
- Para dizer a verdade, William, não me importa em absoluto. Nada agrada mais a meu espírito que esta sensação onipresente de velocidade que emana do ar, do mar,
e da água que salpica tudo constantemente. E isso é muito mais presente em uma embarcação como esta que em um barco grande e sólido.
- Há, senhor, é que navegamos a uma boa velocidade: dez nós a maior parte do tempo, com picos de doze. E se o vento não ceder ou o pino do leme não soltar, a nossa
será uma singradura das mais notáveis. Porém, senhor, não lhe agradaria descer e pôr algo no estômago?
Esse algo foi um prato de carne em salmoura com bolacha de barco, verdura refogada, cebola e batata, tudo isso temperado com um bom punhado de pimenta. Ao longo
da segunda guarda o haviam mantido em sua justa temperatura ao colocá-lo entre tijolos quentes, cobertos por um lençol. A comida desceu extraordinariamente bem com
um quarto de galão de cerveja que compartiram à maneira do mar, passando a jarra de um lado a outro sem maiores cerimônias.
- Não quereria tentar ao destino, senhor - disse Reade, - mas amiúde acho que se pudéssemos alcançar o início da maré-cheia a nossa seria uma singradura extraordinária.
Se não tivermos problemas entre North Foreland e Sheerness, e aproveitarmos a maré-cheia no Nore, enfiaremos no Tâmisa por cima, ah, ah! O velho Mould o conseguiu
uma vez no Flying Childers, depois de partir diante da ponta de Sainte Catherine.
- Isso seria estupendo, creio.
- E também encantaria ao capitão. Tem grande consideração por este barco, e pensou em envergar a melhor lona poldavy de Riga para o bom tempo, incluída uma vela
maior quadrada. Agora, se me desculpa, senhor, acho que devo voltar ao convés. O senhor pode deitar-se aí, atrás dessa maca. Por favor, tente descansar um pouco.
E assim o fez, e submergiu numa série de pensamentos incongruentes e lembranças meio esquecidas que costumam preceder ao sono. Despertou na penumbra ao ouvir o ruído
de uma tosse afogada, o tilintido da porcelana e o aroma do café.
- Bom dia, William - disse, - não será café isso que cheiro?
- Sou Vaggers, senhor - disse o marinheiro com a bandeja. - O capitão está no convés observando os comboios. O senhor provavelmente nunca viu semelhante linha de
barcos. Estamos nos Downs.
- Como anda o vento, Vaggers? Chegaremos a tempo de aproveitar a maré-cheia?
- O vento se mantém entabulado, senhor. Mas com relação a isso de aproveitar a maré-cheia..., frio, frio, senhor, frio, frio. Ainda que se a perdemos não será por
culpa do senhor Reade. Esteve ao leme toda a noite com os olhos bem abertos.
Ainda seguia ao leme quando Stephen o encontrou ordenando que largassem uma varredora na estai do trinquete, ainda que imediatamente se virou para ele com educação
e interesse para saber se havia dormido bem, antes de dar-lhe sua palavra de que o vento não passava, mas que o fato de perder intensidade devia-se a que South Foreland
lhes tirava um pouco o vento, "já estamos aqui em Deal, como pode ver", e que não se preocupasse pois não tardaria em refrescar. "E todos esses pobres diabos - disse
apotando para o mar, para o abarrotado ancoradouro dos Downs - estão retardando para que passe totalmente e role para nordeste. Alguns levam duas semanas, talvez
mais, detidos por ventos de proa, coisa que aqui sucede amiúde. Esse daí é o comboio das Antilhas, e já vê que está a este lado do canal de Gull. Esse outro, o que
se estende até beijar o North Foreland, é composto pelos barcos destinados ao Mediterrâneo, no mínimo serão um centena de mercantes. E ao sul de Goodwin Sands poderá
distinguir um grupo de mercantes das Índias. Eu lhe asseguro que todos eles estão rezando agora mesmo."
- Não importa quantos deles rezem, William, mas a intensidade da oração que elevem, e, certamente, sua qualidade - disse Stephen. - Não acredito que suas considerações,
puramente mercantilistas, recebam muita atenção lá no Céu.
- Creio que tem razão, senhor - disse Reade, que passou a recitar os nomes dos navios de guerra que escoltavam os comboios, e que enchiam aquele mar plúmbeo com
suas ondinhas e as enxurradas intermitentes que caíam de algumas nuvens baixas que escorriam fugazes. - Amethyst, Orion, Hercules, Dreadnought... - Inconscientemente,
pronunciou em um tom de voz que seria menos fora de lugar diante do altar.
Chegaram à altura de North Foreland, e a Ringle orçou para ajustar e rumar para oeste.
- O senhor acha que poderia se dizer que nos encontramos dentro do estuário do Tâmisa? - perguntou Stephen durante o almoço.
- Sim poderia se dizer, senhor - respondeu Reade, contente ainda que olheirudo pela falta de sono. - E acredito também que quase poderíamos dizer, ainda que toco
a madeira, que não é provável que percamos a maré-cheia.
Chegados ao Nore, mesmo o doutor Maturin pôde apreciar que mudara o movimento da escuna devido a que tinham aproveitado a maré, e que o primeiro indício de que repontava
era o fato de que a embarcação se deslizava como empurrada pela corrente. A costa distante, visível agora de ambos os lados, aproximava-se mais e mais, e após um
tempo Reade cedeu o comando para Mould, frustrado como patriarca polígamo, mas o melhor piloto do Tâmisa dentre os presentes. Mould falou a Stephen durante longo
tempo sobre os oficiais, nada bem, evidentemente, até que finalmente assinalou Muck Fiat, que vinha a ser a planície do esterco, na costa norte, onde um piloto saído
de Trinity House o fez encalhar no ano de noventa e dois.
- O senhor poderia tê-lo chamado de Planície do esterco depois do cacto que lhe metemos.
Ainda que o vento, o rio e inclusive quem navegava por ele, incluídas as faluas desajeitadas, pesadas e lentas do Tâmisa - que atuavam como se tivessem prioridade
sobre as demais embarcações que povoavam o canal - comportaram-se bem durante todo aquele dia ventoso, Mould estava de um humor sombrio. Pela noite, quando entre
enxurrada e enxurrada o céu limpou por completo, mostrando Greenwich em todo seu esplendor, que luzia branco e verde na margem do rio, inclinou o queixo em sua direção
e disse:
- Greenwich. O senhor não acreditaria, senhor, a quantidade de dinheiro que roubam dos pobres e honrados marinheiros para metê-lo nesse seu velho cofre. E aonde
o senhor acha que vai parar até o último penique? Não no bolso do velho Mould, isso lhe asseguro.
- Hei aqui Greenwich, povoada de harpias - comentou Stephen sem pensar.
- Greenwich é um lugar mau, porém mau de valor. Há um monte de trapaceiros em Greenwich. Ainda que não é nada comparado... - disse Mould, que alçou o tom de sua
voz apaixonadamente, enquanto a vara tremia sob seu pulso, - nada comparado com Shelmerston se nos referimos a feras. Pense o senhor na senhora Mould, por exemplo...
- E aproveitando o momento falou da senhora Mould, não só de sua recusa ignorante, intolerante e mundana a um homem ter mais de uma esposa: "Pense em Abraão, senhor;
pense em Salomão; recorde de Gideón: setenta filhos e um punhado de esposas!", mas também de uma miríade de defeitos que a duras penas seria decente nomear, todos
eles denunciados com tal veemência que teria sido necessário chamar-lhe a atenção se uma barcaça, mais ou menos governada por um garoto estúpido armado de um enorme
remo, não tivesse passado sobre a amura da Ringle de tal forma que se teve que pôr de imediato a gávea a pairar para parar, e largar as escotas ao vento, enquanto
todos a bordo pegavam perchas, e as agitavam entre berros de reprovação.
Foi como se aquele estrondo levasse a maré e o vento, já que enquanto a barcaça ia para a costa mais distante, a Ringle já não respondia ao leme, e se dedicou a
virar sobre si mesma e rumar para o lugar por onde havia entrado. Não navegavam precisamente por águas calmas, e nesse momento começaria a minguar a maré. Por sorte,
o fato do vento ter passado se devia ao o sol estar se pondo, e quando esfriou se viram empurrados até o Pool, antes que a corrente descendente tivesse reunido a
energia necessária para levá-los consigo. Ali jogaram a âncora para alívio de todos os marinheiros. Reade consultou seu relógio, riu em voz alta, e deu a ordem de
costume:
- Apitar para o rancho.
Havia um tráfego considerável no rio, e muitos botes que levavam tripulações de um barco para outro entre as centenas de navios mercantes, cidadãos em plena jornada
de trabalho, e quadrilhas de marinheiros que se aproximavam de Greenwich dispostos a se divertirem. Quando Stephen e um feliz Reade tinham desfrutado de uma janta
com capão e uma garrafa de clarete comprada em Kings Head para celebrar tão impoluta viagem, o doutor chamou a atenção de um bote que passava por ali, que o levou
às escadas do Temple.
Mas no escritório do senhor Lawrence teve que enfrentar-se a um surpreendido escrevente, que lhe informou de que o senhor Lawrence não se encontrava presente nesse
momento. De fato, ninguém esperava ver o doutor pelo menos durante os próximos dois dias, e o senhor Lawrence tinha se ausentado da cidade; não chegaria pelo menos
até amanhã, e tarde. Lamentaria muito não ter podido falar com o doutor.
- Não terá que lamentar nada - replicou Stephen. - Eu me alojarei em uma pensão chamada Grapes, no distrito de Savoy, e amanhã cedo irei adquirir diversas coisas
e visitar a alguns amigos. Almoçarei em meu clube, cuja localização o senhor Lawrence conhece perfeitamente. E deixarei uma mensagem no Grapes e no Blacks para dizer
onde pode encontrar-me, se por algum motivo regresse antes do esperado. De outra forma, voltarei amanhã na mesma hora, pela tarde.
- Excelente. E permita-me acrescentar, senhor - disse o escrevente em voz baixa, - que cuidamos de seus bens.
 
Stephen chegou tarde demais para encontrar Sarah e Emily acordadas, mas a senhora Broad pôde fazer-lhe um relato dos pormenores de sua felicidade, e na manhã seguinte
desjejuaram com ele, serviram-lhe elas mesmas o café, trouxeram torradas, arenques defumados, geléia, descreveram as maravilhas de Londres, interrompendo-se continuamente
uma à outra e cerceando seu relato para perguntar-lhe se recordava de Lima e do esplêndido órgão que tinham ali, da rua revestida de prata, das montanhas e da neve,
do gelo verde que viram no cabo de Hornos.
- Senhora Broad - disse ao ir embora do Grapes, - se vier alguém do escritório do senhor Lawrence, tenha a amabilidade de dizer-lhe que poderá encontrar-me no armazém
de pianos Clementi até as três, e que depois estarei em meu clube.
De fato não apareceu mensageiro algum, mas o tempo passou agradavelmente em companhia do senhor Hinksey, a quem encontrou no armazém Clementi, e, depois de almoçarem
juntos no Blacks, ele o acompanhou de passeio até o Temple Bar.
Lawrence estava emocionado e comprazido de ver-lhe, já que, obviamente, sentia mais preocupação que requeria a sua responsabilidade como conselheiro legal de Stephen.
- Alegra-me tanto de que tenha seguido nosso conselho - disse. - Entre, entre, por favor. Esta situação é tão desagradável e potencialmente perigosa como nenhuma
outra que eu já tenha visto. Aqui mesmo, sente-se e desculpe por estes papelotes e o bolo. Quanto me alegra ter-lhe aqui. Não o esperava até amanhã. Suponho que
o senhor terá tomado o carro postal...
- Vim de barco - respondeu Stephen. - Pelo mar - acrescentou, ao observar que suas palavras não colhiam o efeito esperado.
- Ah, não me diga - observou Lawrence, para quem aquele fato sem precedentes guardava uma clara relação com qualquer viagem de Richmond ou Hampton Court. - Um paquete,
sem dúvida.
- Não, senhor. Trata-se de um navio de apetrechos particular, pertencente ao senhor Aubrey, barco capaz de efetuar grandes destrezas no mar. Nenhuma outra poderia
ter-nos trazido até o Pool de Londres em um número de horas que, pelo momento, não me lembro, mas que deixou meus companheiros de tripulação mudos de assombro e
de admiração.
- De modo que o senhor ainda dispõe do barco. E no Pool. Tanto melhor. Por favor, sente-se - insistiu. - Quanto me alegro de ver-lhe; a verdade é que estava um pouco
inquieto pelo senhor. Permita-me cortar-lhe um pedaço de bolo. - Sentaram-se diante da mesa repleta de migalhas, e Lawrence procurou outro copo. - É o mesmo madeira
que o senhor me enviou há um par de anos - disse.
Relaxaram enquanto desfrutavam o vinho e comiam o bolo, zelosos de seu sabor como se da respiração se tratasse.
- Sir Joseph me trouxe os documentos firmados - disse Lawrence. - Estou muito grato ao senhor pela confiança que depositou em mim.
- Eu estou infinitamente mais agradecido ao senhor por seus conselhos e ajuda - disse Stephen.
- Proporcionei ao banco a advertência mínima de uma hora, e depois enviei Pratt - explicou Lawrence depois de inclinar a cabeça. - As transferências físicas do tesouro
exigem certa discrição em todo momento: tanto mais agora, como é o caso. Tal e como lhe disse estava cada vez mais nervoso, e Pratt compartia meus temores: nenhum
de nós ouvira nada concluente, ainda que ambos soubemos das consultas realizadas por parte dos principais advogados de Habachtsthal, assim como de algumas intervenções
violentas e mesmo homicidas por parte desses criminosos a quem tão imprudentemente contratou como agentes. - Serviu-se mais vinho, e acrescentou: - Encarreguei-me
pessoalmente de gastar algumas centenas de seus guinéus.
- Certamente, certamente. Não poderia estar-lhe mais agradecido por isso.
- Pratt, que entende destes negócios mais que qualquer outro homem que eu conheça, se encarregou de que seus baús fossem distribuídos em caixas baixas marcadas como
"Arame de platina purificado" e as levou a um armazém de chumbo, bronze e cobre que há no rio, junto às Irongate Stairs, onde seguirá até que o senhor leve a cabo
os arranjos pertinentes para seu transporte. Talvez queira embarcá-los, ainda que certamente ignoro que planos tem. Esse navio de apetrechos do qual me falou, trata-se
de um barco como é devido ou de uma embarcação para a navegação em momentos de lazer?
- Não é o que um marinheiro descreveria como barco, porém, apesar de ser uma embarcação de proporções modestas, é capaz de levar a cabo uma circunavegação. Deus
sabe que não exagero.
 
Para os companheiros do doutor Maturin o fato de carregar objetos singulares a bordo dos barcos em que navegava não era nada novo: lulas gigantes de vez em quando,
ou pequenos baús adornados de ferro que pesavam como demônios. O doutor Maturin era, e sempre fora assim, um cavalheiro peculiar. Estavam acostumados a suas manias,
pois era de todos sabido que realizava tarefas políticas e científicas em benefício do governo, e ainda que a presença dos toscos boxeadores e dos antigos corretores
de Bow Street que supervisionaram a operação não deixou de lhes intrigar um pouco, não se ofenderam em absoluto, ficaram a vontade e arrumaram a platina purificada
para que só afundasse um emborno da popa da escuna. Pretendiam largar amarras com as primeiras luzes da manhã, quando se descobriu que faltava Arthur Mould.
- Ainda não voltou? - perguntou Bonden. Os outros seguidores de Seth negaram com a cabeça e olharam para os pés. - Joe - chamou Bonden ao membro mais jovem da dotação,
- vá a Bedmaid Lane, a primeira à esquerda corrente abaixo, chame na porta de número seis, veja bem, um grande seis escrito em vermelho, e pergunte lá pelo senhor
Gideon Mould e informe-lhe que o barquinho aguarda que sua majestade se digne.
- Que se digne, ah, ah, ah!. Muito bem, amigo - vários de seus companheiros riram. - Que tipo este Mould. Não pode ser deixado sozinho.
Mould voltou, tosco e mal-humorado, sem um penique e inquieto pelo eventual resultado de suas repetidas alegrias: a Ringle içou a carangueja, ganhou avante afastando-se
do cais e chegou até a metade do canal entre uma maré e a outra, com vento entabulado pela alheta de estibordo, animada pelos berros desaforados de um negro que
governava uma canoa pintada de vermelho:
- Ei! Mas o que temos aqui? Se não é um clíper de Baltimore!
Quando tudo esteve disposto e o rio se tornou mais largo e menos abarrotado, Reade encontrou Stephen na cabine.
- O senhor gostaria de dar uma espiada no caderno de bitácula, senhor? - perguntou. - Acho que escrevi tudo em boas condições.
- Creio que está muito bom - admitiu Stephen enquanto repassava a escritura, disposta em colunas com os encabeçamentos correspondentes a data, vento e comentários.
- E aqui, senhor, tem o minuto exato em que jogamos a âncora no Pool. Por favor, assine aí mesmo, na margem, com todos os títulos e cargos que lhe ocorram, e não
esqueça seu título de membro da Royal Society. Se não, nunca me acreditarão.
Stephen assinou, e Reade, depois de recrear-se contemplando a firma durante um momento, disse:
- E por acaso não nos agradaria poder fazer o mesmo na travessia de volta?
- Oh, não, em absoluto. Mesmo que fosse, agora a escuna anda empopada, cerca de meia salva, o que sem dúvida constitue todo um alívio.
- Em que sentido isso constitue um alívio, William?
- Há, senhor, porque barlaventeará um pouco melhor. - Ao ver a ignorância desenhada no rosto do doutor, acrescentou: - Não havia percebido que o vento ainda sopra
do oés-sudoeste?
- Achava que tínhamos o vento pelo flanco, pela parte mais larga, em nosso través de estibordo - disse Stephen. - Tive ocasião de observá-lo quando meu chapéu voou.
Ainda que não resta a menor dúvida de que fomos nós que viramos, em lugar do vento, ou, como seria mais adequado, chamá-lo, a tempestade. O senhor acha que talvez
nos vejamos impedidos como esses desgraçados comboios que encontramos nos Downs, aflitos e tristes?
- Oh, não, senhor, espero que não. Eu me atreveria a dizer que por então o vento terá rolado, não tenho nenhuma dúvida, a julgar pelo formigamento que sinto na ferida.
Contudo, apesar de todo o formigamento que Reade pôde chegar a sentir, pois lhe feriram no braço durante um combate com dyaks nas Índias Orientais e Stephen não
teve outro remédio que amputá-lo, ainda soprava com força do oés-sudoeste quando passaram de novo pelo Nore no cair da tarde. Todo o pedaço do mar que ficava ao
longo do North Foreland e a todo comprimento e largura dos Downs estava manchado pelas luzes de posição dos barcos que permaneciam ali ancorados, com dois ou três
cabos pela frente, ainda impedidos pelo vento, com outros muitos que haviam se unido à procissão. O vento esfriou a medida que transcorria a noite, e na metade da
segunda guarda quatro barcos encalharam nas Goodwin Sands{14}.
 
A semana seguinte foi uma das mais desagradáveis que Stephen podia recordar. Noite após noite se entrevia uma mudança; e cada vez que o sol se afundava sob o horizonte
a mudança resultava ser uma miragem. Durante o dia havia menos abafamanetos, que geralmente se produziam ao meio-dia, momento que algumas das embarcações mais duras
de Deal aproveitavam para sair, comerciar a preços inflacionados com os mercantes mais abrigados, e depois voltar a entrar, a sotavento, em Ramsgate; mesmo estas
encalhavam de vez em quando. Alguns dias depois de que a esquadra partira - pois inclusive o própio doutor Maturin era capaz de compreender que os barcos que pairavam
frente a Saint Helens recebiam o vento do oés-sudoeste pelo través, em lugar de nos dentes, como as desgraçadas almas que o sofriam nos Downs, - subiu a bordo de
uma dessas embarcações de Deal para desembarcar em Ramsgate, meio disposto a pegar o carro postal em direção a Barham. Mas enquanto permanecia sentado em uma loja
de música, consumido na reflexão, pensou que as incertezas eram muitas. Aquela era uma empresa que devia ser levada a cabo em uma seqüência fluida, ou com facilidade
e de nenhuma maneira, com titubeios nem vacilações. A Ringle não chegaria sem ele sabe Deus senhor quando, não teria loquazes e indiscretos mensageiros fuxicando
por aí, não teria esperas indefinidas, nem despertaria onde quer que fosse a curiosidade pública.
- Senhor, se é tão amável, muito me temo que devo fechar a loja - disse o tendeiro. - Há um leilão no Deal a que devo assistir.
- Excelente - disse Stephen, - eu levarei esta - disse segurando no alto a partitura da Symphonie fúnebre de Haydn, - se o senhor fosse tão amável de envolvê-la
com cuidado; devo cavalgar de volta ao Deal para tomar meu barco.
- Em tal caso, senhor, peço que me acompanhe em meu carro. Protegerei a partitura em uma tela dupla e encerada, pois muito me temo que o senhor terá uma viagem muito
molhada no bote.
 
Desse momento até o sábado voltou-se para suas folhas de coca, convencido de que só o estrondo, o incessante ainda que variado bramar, gemer, gritar do vento, o
trovejar perpétuo do mar, justificava essa medida, além, claro, da inquietação mental que o invadia. Descobriu que tudo aquilo tinha um efeito do todo curioso e
inesperado: enquanto que desde sempre se considerara um leitor de partituras orquestrais bem ordinário e dado a titubeios, agora era capaz de ouvir quase toda a
orquestra tocando junta com apenas o cravar dos olhos na primeira página, sem chegar muito longe da perfeição na segunda ou terceira leitura. E, certamente, as folhas
também proporcionavam o que tanto ansiava delas, pois limpavam sua mente, diminuíam sua ansiedade e lhe faziam esquecer-se da fome e do sono; apesar de tudo, ao
terceiro dia era consciente da impressão que faziam essas coisas não a Stephen Maturin, mas a um homem inferior, apático e carente de interesse que, ainda que de
certa forma fosse inteligente, não considerava a peça de Haydn como algo digno do adjetivo sublime.
- Será que estou me tornando um convencido? - perguntou em voz alta enquanto contava as folhas que lhe restavam para averiguar a dose que tomaria. - Ou será que
este balanço violento e incessante me causou esta mudança abismal, esta perda da felicidade?
- Doutor - exclamou William Reade interrompendo o fio de seus pensamentos, - desta vez acho que podemos ter esperanças. O barômetro subiu!
Outras embarcações também haviam reparado nisso, mais de um olhar ansioso estava em cima do barômetro, e agora se percebia certa atividade no mar; mas o vento ainda
seguia sendo muito intenso e muito perigoso para que qualquer dos barcos, os barcos de aparelho redondo, considerassem a possibilidade de mover-se em águas tão estreitas;
ainda que tudo parecia indicar que rolaria para o oeste, e inclusive que rolaria para o noroeste. A pouco do meio-dia começou a avançar um barco de passageiros de
uma só coberta, observado, vigiado pelas escassas embarcações de aparelho de velas de cuchillo que povoavam os Downs. Por breves instantes um aguaceiro o ocultou
de quem observava desde o convés da Ringle, e quando passou de longo parecia andar como um cavalo descontrolado: o traquete perdera as relingas e andava sem rumo
por entre as demais embarcações, enredando-se em mais de um cabo, sendo maldito por todos os que estavam a distância suficiente como para fazer-se ouvir.
Na guarda de doze a quatro da tarde, Bonden, que havia descido com um pretexto mais ou menos convincente, disse a Reade:
- A estas alturas me atrevo a confessar-lhe, senhor, que alguns dos nossos foram comerciantes livres em tempos. Certamente agora se reformaram, e recusariam zombadores
um barril de conhaque ou um baú de chá que não tivesse passado pela aduana; contudo, recordam perfeitamente o que aprenderam naqueles dias de cão. Mould e Vaggers
estiveram uma vez neste mesmo lugar sem uma pitada de vento na gávea de sua escuna, e asseguram que com um vento nem a meia quarta ao oeste daqui existe uma passagem
na maré-cheia para uma embarcação marinheira. Conforme parece a tomaram em uma ocasião pois tinham certa pressa: passaram por entre Anvil e Hammer, a bigorna e o
martelo, franquearam os Downs e assim desceram pelo o canal ligeiros como uma pena, e chegaram a Shelmerston no dia seguinte para jantar, depois de encontrar-se
com seus amigos frente a Griz Nez. E seu barquinho - acrescentou olhando o horizonte, - não era tão marinheiro como o nosso.
Reade não respondeu de imediato. Assim como tantos outros guardas-marinhas levara presas aos portos; porém nunca tivera uma viagem como aquela, e muito menos semelhante
embarcação. Durante meia hora ficou observando a barlavento, e quando tinham ganhado meia quarta a seu favor chamou Mould e Vaggers.
- Mould e Vaggers - disse com voz profunda e em tom formal, - com este vento e neste estado da maré, atrever-se-iam pilotar a escuna através da passagem?
- Sim, senhor - responderam, - ainda que teríamos que nos apressar: o refluxo não tardará nem meia hora em começar.
Os da Ringle não perderam tempo. Estavam enjoados e fartos depois de ver-se sacudidos de um lado para outro como ervilhas secas em uma lata, e se sentiam mais que
dispostos a demostrar a esses recrutas dos Downs como os melhores marinheiros resolvem esse tipo de situação. Puxaram as âncoras, içaram a carangueja, marearam a
maior com seus cachos e passaram a andar por entre os navios mercantes.
Mould estava ao leme, seguro com três voltas aos cabos da cana; Vaggers e dois companheiros na escota da maior. Uma imponente capa de águas brancas cobria a superfície
do mar, e com os primeiros suspiros do refluxo as arrebentações pareciam ganhar espaço na borda das areias. Rumavam para um obstáculo em particular, e já começava
a delatar-se a seqüência que lhe dava seu nome: uma onda comprida rompia a mão direita, desprendendo uma coluna de água que, com a baixa-mar e com a forte ressaca
e o vento que a seguiam, espalhar-se-ia ao longo de vinte jardas pelo canal, indo cair com um seco estampido sobre as areias claras situadas do outro lado. A Bigorna.
Até o momento, o martelo não era senão uma modesta fonte de dez pés, mas ao aproximar-se os rostos dos homens refletiram a tensão, já que imediatamente depois passariam
por uma curva no canal que deviam calibrar com uma margem de erro de uma jarda.
Achavam-se entre a bigorna e o martelo: a pequena fonte se alçou, salpicando Stephen e Reade.
- Preparados - advertiu Mould. - Cana a sotavento. - A escuna andou com perfeição, dobrando a curva sem um só problema: Mould a manteve assim, perto do olho do vento
durante um instante no qual cobriu terreno, e depois deixou que caísse. Franqueado, tinham franqueado os estreitos, tinham franqueado os Downs; a partir de então,
para uma embarcação tão marinheira como a Ringle, com mar de sobra, era tão somente uma questão de uma dúzia de longas retas para chegar em casa.
 
Stephen Maturin, com o relógio de seu estômago desordenado pelo consumo das folhas de coca - agora, em todo caso, moderado, pois pelo menos era capaz de administrar
a dose para alguém em quem podia reconhecer-se, - entrou na sala de jantar de Barham já começada a refeição, o que equivale a dizer que Clarissa tinha quebrado a
casca do segundo ovo passado em água.
Não era mulher dada a exclamações e gritos, mas reagiu como era de esperar ante tal aparição, de modo que lançou um considerável "Oh!" e rapidamente lhe perguntou
se era ele, e se havia regressado, para depois recuperar-se, sentar-se de novo e sugerir que devia comer algo e que não tardaria nada em preparar-lhe uma fritada.
- Obrigado, querida, já comi na estrada - disse Stephen, dando-lhe um beijo em ambas as bochechas. - Que mesa mais agradável - acrescentou ao sentar-se a seu lado.
Havia herdado de seu padrinho uma absurda quantidade de prata, peruana em sua maior parte, sóbria, quase se diria severa; de modo que um rio reluzente sulcava a
toalha de mesa de ponta a ponta.
- É para celebrar o dia em que abandonei Nova Gales do Sul - explicou Clarissa. - Não gostaria de tomar uma taça de vinho, pelo menos ?
- Poderia, sim - disse Stephen. - Uma taça de vinho me cairá muito bem. Porém escute, querida. Temos que partir para Espanha dentro de uma hora, de modo que quando
tenha acabado com esse ovo, e espero que o aproveite, talvez possa empacotar tão somente o que a senhora e Brigid possam necessitar para a viagem.
Clarissa o olhou com gravidade enquanto sustentava a colher a poucos centímetros de sua boca. Antes de que pudesse falar se ouviu um estrondo procedente das escadas
e do corredor, seguido pela aparição na sala de jantar de Padeen e Brigid. Padeen começou a gaguejar algo que podia se parecer com uma saldação, ainda que não teve
tempo de terminá-lo.
- Cavalos! - exclamou Brigid em inglês; então, ao ver a Stephen, ambos guardaram silêncio, surpreendidos.
Depois de uma pausa de não mais de meio suspiro, Padeen pegou Brigid pela mão e a conduziu para ele. A menina olhou para Stephen com timidez, mas também com um interesse
sincero, inclusive com um sorriso.
- Que Deus, a virgem Maria e são Patrício estejam com o senhor, pai - cumprimentou alto e claro em gaélico, levemente animada por Padeen, ao mesmo tempo que lhe
oferecia a face.
- Que Deus, a virgem Maria e são Patrício estejam contigo, filha - correspondeu ele depois de beijá-la. - Nós vamos para a Espanha, minha querida.
Padeen explicou que se encontravam acima, no quarto do fundo, pendurando uma maca, antes de acompanhar Brigid abaixo para que tomasse o pudim, quando viu o carro
postal do Royal William entrar no pátio dos estábulos, puxado por dois cavalos que conheciam, Norman e Hamilton, e outros dois que não, que sem dúvida tinham pegado
emprestado na pensão Nalder Arms.
A senhora Warren serviu o pudim, ruborizada e transtornada por tanta atividade. Atou o babador da menina mais forte, sentou-a reta na cadeira e serviu o pudim (pudim
do normal, um tanto dominado pelo tremor).
- Os moços da posta dizem que vão dar de beber aos cavalos, e que os manterão descansados durante uma hora, não mais. Quer que lhes dê algo de comer?
- Pão, queijo e uma pinta de cerveja para cada um - respondeu Clarissa. - Brigid, querida, não se brinca com a comida. O que seu pai pensará?
De fato, Brigid tinha começado a maltratar o pudim para fazer que tremesse ainda mais, mas se conteve de imediato e inclinou a cabeça para um lado.
- Quer provar um pouco? - perguntou em gaélico.
- Um pouco, se é tão amável - respondeu Stephen.
Contemplou a Clarissa enquanto terminava o ovo.
"Quanto valorizo esta jovem por não fazer perguntas - refletiu. - É verdade que está acostumada aos modos da marinha, de abandonar o lar, a família, as casas de
jogos, as pombas e os vasos quase sem prévio aviso, não há que desperdiçar a maré, pelo amor de Deus, mas estou convencido de que não tem necessidade de fazer perguntas:
compreendeu o essencial com apenas um cruzar de olhos comigo."
Tudo aquilo não era novo para ele, pois já havia imaginado que Clarissa reagiria assim, mas a menina o deixou petrificado, completamente desarmado, nas nuvens. Ansiara,
rezara com a ajuda de mais de uma centena de círios, criteriosamente repartidos entre um total de cinqüenta e três santos, para que experimentasse um progresso mais
perceptível. Por fim, quase de improviso, a menina havia se aberto para o exterior.
Terminou o pudim e mostrando o prato dividido perguntou se podia ir aos estábulos. Tinha tanta vontade de ver de perto o carro postal, de tocá-lo. Organizou o pensamento
para dizê-lo em algo parecido ao inglês, porém então, em voz baixa como se se tratasse de algo confidencial, disse em gaélico para Stephen:
- E o que o senhor me diz? Gostaria que lhe mostrassem o carro postal com seus quatro cavalos?
- Querida, afinal de contas fui eu que vim nele. Deixei os assentos quentes. Além disso, temos que partir dentro de uma hora no máximo, nem um minuto a mais, assim
que tenha tomado o café.
A menina soltou uma risada.
- Poderei sentar-me com Padeen no lugarzinho que há acima, atrás, na boléia? - perguntou. - Que divertido!
Clarissa não havia acumulado muitos bens pessoais. Em um dado momento assomou a cabeça pela porta e perguntou:
- Fará frio?
- Um frio terrível no inverno - respondeu Stephen, - ainda que não deve preocupar-se. Compraremos tudo o necessário na Corunha, em Ávila ou mesmo em Madri. Mas leve
algo para proteger-se da umidade do norte, e não esqueça as botinas.
Quase não tinha tempo para encarregar-se do ancião e das criadas, mas lhes pagou seis meses de comida e casa, deu-lhes instruções para o cuidado do gado e da renovação
da caldeira, e uma letra de câmbio que a senhora Aubrey se encarregaria de trocar.
- Tudo carregado e preso, senhor - informou Padeen; - Acha que Brideen e um servidor poderíamos subir ao asien... ao asien... ao lugarzinho de...?
- Podem - respondeu Stephen enquanto saía da casa. Abriu a porta da carruagem para ceder a passagem para Clarissa. - Que Deus lhes bendiga - disse aos serventes
reunidos nas escadas, e depois se dirigiu aos moços da posta: - adiante.
A carruagem partiu.
- Quer que lhe explique os motivos? - perguntou Stephen.
- Padeen e eu fomos atraiçoados?
- Precisamente.
- Sim. Ao que parece alguém esteve fazendo perguntas no povoado. Gente forasteira ao longo do caminho, e inclusive no pátio dos estábulos.
- Tudo se reduz a uma questão de vingança contra mim. Os perdões que solicitei - petição da mais normal tanto para a senhora como para Padeen em um caso como este
- não foram recusados, mas estão em suspenso, atrasados e atrasados por um ato de má fé. Acho que os aprovarão, e logo; mas até então o melhor será que nos ausentemos
do país, que nos mantenhamos longe do alcance de meu inimigo. Em qualquer caso, gostaria de pôr Brigid sob os cuidados do doutor Llers, que obteve mais êxitos com
crianças de seu tipo que qualquer outro homem na Europa. E olhe, que o bom Deus esteja recompensado por isso, não é que pareça necessitar da ajuda de nenhum homem
de ciência. A mudança que experimentou é de uma natureza tal, que somente caberia atribui-la a um milagre.
- Escapa por completo a minha compreensão - confessou Clarissa. - Nada que recorde me proporcionou tanta alegria, dia depois de dia. É como uma flor que se abre
ao chegar a primavera. Antes só fuxicava com Padeen e os animais, e agora o faz com as criadas e também comigo: em inglês, ainda que um pouco tímida. No início somente
o falava com os gatos e a porca.
Stephen riu comprazido, um riso rouco e áspero.
- Também aprenderá a falar em espanhol - disse ao cabo de um tempo, - em castelhano. Lamento que não seja em catalão, língua muito mais fina, velha e pura, mais
melíflua, que conta com escritores de grande estatura - aí tem a Ramón Llull por exemplo, - ainda que como costuma dizer o capitão Aubrey: "Quem recebe uma alfinetada
a tempo não tem confusão no quintal." Eu me propus a acompanhar a senhora (ou, isto é, enviá-la acompanhada, pois não posso abandonar o barco) a um convento beneditino
de Ávila, que tem por abadesa uma tia de meu pai, e onde poderá ter à mão o doutor Llers. Ali a disciplina é relaxada, a vida agradável; as monjas são, em sua maioria,
senhoras de boa família, e inclusive algumas delas e das pensionistas são inglesas pertencentes a antigas famílias católicas ou irlandesas. Contam com um coro excelente,
e o convento possui três dos melhores vinhedos da Espanha. Tenho intenção de pedir a Padeen que a acompanhe na qualidade de servente, e como fonte de inspiração
contínua para Brideen. A senhora não estará sozinha ali; e ainda que a vida possa parecer-lhe um pouco chata, pelo menos estará a salvo.
- Não peço mais - disse Clarissa.
O carro postal transitava uma estrada plana, não muito longe de Ashgrove Cottage, e puderam ouvir a voz de Brigid lançar todo tipo de exclamações ante as enormes
pilhas de feno, maiores que qualquer outra coisa que tivesse visto em toda sua vida.
- Teremos tempo para visitar à senhora Aubrey e despedir-nos dela? - perguntou Clarissa. - Não acho que seja muito apropriado desaparecer assim, sem dizer uma palavra.
Pareceria fruto de uma mente devorada pelo ressentimento.
- Não - respondeu Stephen. - "Tal como vamos encontraremos a maré pela metade. Não podemos perder nem um minuto", refletiu antes de repetir em voz alta a palavra
"ressentimento", em tom inquisitivo.
- Sim - disse Clarissa. - Desaparecer assim não poderia ser mais desafortunado. Foi muito amável de sua parte vir de vez em quando para visitar-nos a Brigid e a
mim, e não faz muito enviou um bilhete para dizer-nos que tinha recebido uma carta do capitão Aubrey de Londres com notícias sobre minha pensão de viúva de um oficial,
e perguntando se podia vir nos visitar. Dado que um amigo de Diana havia nos presenteado com um veado, que brilhava na lua cheia e ela estava sozinha, eu a convidei
para jantar, junto com o doutor Hamish e o senhor Hinksey, nosso pároco. Nós preparamos tudo para celebrar a ocasião com certo lustre, nem mesmo aquele terrível
Killick teria se empregado mais a fundo que Padeen, e eu pus meu melhor vestido: o esplêndido vestido escarlata de seda de Java, com o qual me presenteou o capitão
Aubrey no meu casamento.
Stephen assentiu. Recordava o incidente com detalhes: o pedaço de tecido do rolo que Jack Aubrey comprara a um mercador chinês em Batavia, com a ajuda da esposa
do governador.
- Sim. Mas o caso é que a senhora Aubrey chegou com um vestido confeccionado com o mesmo tecido. Um pouco mais cheinho e recatado; mas exatamente do mesmo tom escarlata.
Ficamos nos olhando como duas tontas, e antes de que nenhuma pudesse articular palavra chegaram os homens, primeiro Hinksey e depois o doutor. Contudo, tive a absoluta
certeza, como se estivesse escrito na testa, de que ela acreditava que Aubrey tinha me presenteado o tecido por serviços prestados, e de que, de sua parte, havia
recebido as sobras que a amante de seu marido havia desprezado. A refeição foi bem, acho. O vinho era de sua adega, pois tomamos um velho Chambertin com o veado,
e de vez em quando ela recordava suas maneiras e contribuía um pouco para a conversa. Mas não saiu às mil maravilhas. O jantar, um dos poucos que organizei, foi
um completo fracasso. Brigid entrou quando a senhora Aubrey e eu nos retiramos para o salão, de modo que não houve momento propício para dar explicações, por mais
que estivesse decida a dá-las, coisa que a essas alturas não estava disposta a fazer. Por sorte os homens não ficaram muito tempo com os vinhos, de modo que a noitada
não tardou em se concluir miseravelmente. A isso me referia por ressentimento.
- Que posso dizer? - perguntou Stephen, consentindo. - Apenas que lamento realmente tanta desgraça, sobretudo por ser desnecessária. Já descemos para o mar.
 
- O mar, o mar! - gritou Brigid enquanto saltava extasiada ao encaminhar-se para a praia, onde um bote lhes esperava. - Oh, que maravilha de mar! - Era a primeira
vez que o via, e teve mais sorte que a maioria. A maré andava a meio caminho do refluxo e desde a embocadura do porto uma leve marejada enviava uma série de ondas
que rompiam brancas em leque atrás de leque sobre a areia pura e endurecida. A água tinha um vivo colorido azul-verdoso, claro, cristalino. Muito acima de suas cabeças,
o céu carecia de um colorido determinado e transbordava cúmulos elevados. A direita e esquerda a baía se curvava para dar forma a escuros escarpados de âmbar, enquanto
que mais além de Shelmerston o sol distante e poente expelia uma luz cálida, difusa, tranqüila, uniforme e confortável. Brigid passou a correr, pegou três algas
verdes e cacheadas, levou-as ao peito e voltou correndo para o grupo. - Como está, senhor? - perguntou a Bonden estendendo-lhe a mão, momento em que a dotação do
bote a cumprimentou com infinita benevolência.
- Deixe que a donzelinha do doutor se sente na amura - propôs Mould, e a passaram de mão em mão até que esteve sentada sobre seu abrigo dobrado, fuxicando encantada
da vida enquanto os do bote remavam com brio.
- Senhora Oakes, madame, seja bem-vinda a bordo - cumprimentou Reade ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para ajudá-la a subir pelo costado. - E você também, querida.
Doutor, senhor, o senhor foi tão pontual que poderemos aproveitar a maré. Creia-me, apenas havia começado a olhar a hora no relógio. Senhora, espero que tenha fome.
Nossos amigos do povoado nos trouxeram os linguados mais excelentes que jamais vimos. - Conduziu-os para baixo, rogando-lhes que tivessem cuidado com a cabeça, e
depois voltou a subir.
Os habituais sons seguiram sua habitual seqüência: puxado o cabo, engatada a gata, e a âncora e o bote em seus respectivos assentos; mesmo então, alguém familiarizado
com tais trabalhos teria podido distinguir o som das adriças deslizando em seus moitões e a inclinação da coberta inclinando-se sob seus pés. O barco se encheu todo
ele de um gemido generalizado, de uma vibração.
- Estamos nos movendo! - gritou Brigid, que escapou da cabine e subiu correndo ao convés.
"Devo evitar comportar-me como uma galinha choca", pensou Stephen, que, apesar de tudo, seguiu-a e, sentado junto à cana do leme, viu como a menina arriscava a vida
e a integridade, suavemente contida em seus excessos mais extravagantes por Padeen e os marinheiros, amáveis e dotados de uma paciência infinita: teve um momento
em que a viu descer pelas vaus do traquete, empoleirada no enrugado e crostoso pescoço do velho Mould.
Era a viajante ideal, incansável, deslumbrada ante tudo o que via; e ainda que a Ringle encontrou uma marejada do oés-sudoeste quando perdeu de vista terra firme,
uma marejada que diminuiu um pouco ao topar com a maré, a menina não mostrou o mínimo desfalecimento nem, ao que parece, medo de nenhum tipo. Tampouco lhe importava
ensopar-se até os ossos, e melhor, porque a Ringle rumava para sudoeste a duas quartas do vento, e o mar picado subia a bordo de pedaço em pedaço pela amura de estibordo,
empapando-a em intervalos regulares enquanto se agarrava aos amantilhos que havia mais a proa, e a cada pedaço do mar, quer fosse verde ou branco, o cumprimentava
com um gritinho de puro gozo.
Passou o tempo, e quando a escuridão adquiriu forças a levaram para baixo, para a popa, secaram-na, puseram-na diante de uma vasilha de carne em salmoura, verduras,
especiarias e bolacha de barco - era o único prato que se servia a bordo da Ringle, além do burgoo ou mingau de aveia - e lhe disseram que "coma, companheira, coma
com apetite, e para não deixar nem uma só migalha no prato". Depois de comer duas colheradas, adormeceu com a testa apoiada na mesa e uma mão agarrada à bolacha
de barco que havia mordido; adormeceu de tal maneira que tiveram que levá-la inconsciente, mais ou menos limpa, e metê-la em uma pequena maca.
 
- Acredite, senhor, não poderíamos navegar em melhores condições - disse Reade durante a janta. - Este barco recebe muito melhor o vento que entra pelo través de
proa, e andamos a dez nós desde que passamos por Start, tal e como o senhor nos vê: sem grinaldas, sem partir-nos o espinhaço e nem ao menos a gávea de carangueja.
Sugeri a possibilidade de forçar lona, senhora, para demonstrar-lhe do que é este barco capaz, mas não me pareceram muito entusiasmados pelo trabalho. Não estourou
um motim em toda regra, certamente, mas que se limitaram a lançar-me olhares de desaprovação e a sacudir a cabeça, e depois me fizeram saber que o barquinho navegava
com bastante soltura, tendo em conta que se tratava da primeira viagem da daminha. Ainda que faço constar que não acredito em absoluto que nem ao menos pestanejasse
se nos víssemos obrigados a correr um temporal com todo o trapo aferrado, e o perigo de que o mar chocasse contra nossa popa uma e outra vez. Vejamos, senhora, deseja
provar um pouquinho desta torta de maçã? Cortesia da esposa do carpinteiro, uma para seu rancho e outra para o nosso, detalhe que lhe agradeço muito.
- Ponha-me um pouquinho, se é tão amável. Gosto de torta de maçã, e esta tem um aspecto soberbo; mas tenho tanto sono que temo que vou desgraçar-me caindo de lado.
Sem dúvida é coisa da brisa marítima.
Sem dúvida. A brisa marítima exerceu a mesma influência nos três passageiros, que não despertaram até que o sol luziu bem no alto, momento em que fizeram ato de
presença, olheirudos, pálidos e aturdidos; não se podia dizer que algum deles estivesse melhor que o outro.
- Bom dia, senhor - exclamou Reade, ofensivamente disposto. - Que dia mais esplêndido! Desfrutamos de uma travessia estupenda esta noite, e perto de Ouessant falamos
com o Briseis: o velho Beaumont, o senhor recorda-se do velho Beaumont, do Worcester, senhor? Pois resulta que o encontramos de oficial de guarda, e nos comunicou
que alguns barcos da esquadra que protege a costa haviam trocado na quinta-feira sinais de inteligência com o comodoro, que rumava para sudoeste com pouca vela.
Ainda que, senhor, eu me atreveria a dizer que necessita de um bom café da manhã. O que a menina tomará?
- Isso mesmo eu me pergunto. O que? Senhora Oakes - chamou, - diga-me, por favor, como se alimenta às crianças?
- Com leite - respondeu Clarissa.
Todos a bordo da Ringle adotaram um olhar de incompreensão, e como a disciplina que reinava com um guarda-marinha ao comando do navio de apetrechos não era de todo
rígida que teria sido caso se encontrassem em um navio de linha, não titubearam na hora de expressar livremente seus pontos de vista.
- Deveria ter pensado nisso - disse Slade. - Devia ter trazido um balde de leite; e um pote de creme.
- O queijo é particularmente bom para os ossos das mocinhas - disse o homem do interior que estava nas escotas. - Meu primo Sturgis poderia ter-nos emprestado a
sua cabra.
Finalmente se decidiu que se a bolacha de barco e um pouco de cerveja não eram aceitáveis, e nisto a senhora Oakes se mostrou incisivamente contrária, então o mingau
de aveia era a única alternativa. Assim, Brigid se enfrentou a uma tijela de mingau de farinha de aveia, adoçada com açúcar e mesclada com manteiga. Ela o elogiou
como o melhor prato que tinha comido na vida, como se fosse seu aniversário: comeu com uma fome voraz e depois pediu mais, e finalmente lhe disseram que podia ir
ao convés para cantar "mingau, mingauzinho, mingaus, ooh hoo hoo hoo", com isso denotava que somente o teria suportado o mais tolerável dos homens, tal e como fizeram
os da Ringle, até que na hora de almoçar mudou o curso de seus pensamentos. Por ser quinta-feira, se lhe serviu assim como ao restante dos homens uma libra de porco
em salmoura e meia pinta de ervilhas secas: um galão de cerveja teria formado parte de sua ração, mas lhe aconselharam que não devia insistir mais.
O vento esfriou pela tarde. Colocaram um rizes no traquete e na maior, e a Ringle dava a ligeira sensação de estar fazendo uma boa travessia: guarda atrás de guarda,
dez nós, dez e duas braças, onze nós, senhor, com sua permissão. Brigid passou todo o tempo nas amuras, observando como se dominava a escuna sobre uma marejada cada
vez mais forte, como descia e como pulverizava a crista seguinte a grande velocidade, salpicando a sotavento com vigor, sempre a mesma, sempre distinta. Em uma ocasião,
uma linha de botos cruzou a proa do navio, acima e abaixo como se fosse uma só serpente negra e longa. Stephen também teve oportunidade de mostrar-lhe um petrel,
uma ave branca e negra que pousava nos restos espumosos do fluxo das ondas. O resto do dia foi dominado por uma luz difusa, um vasto mar cinzento, o contínuo barulho
do vento e da água, e uma frescura que chegava até o último canto do barco.
- Diria que leva o mar no sangue, querida - disse Slade quando Brigid se aproximou da popa, correndo a toda velocidade.
- Não voltarei para terra nunca mais - replicou.
Padeen não teve nenhuma dificuldade em assumir de novo seu papel de marinheiro, marinheiro ordinário, já que carecia do sem-fim de habilidades particulares necessárias
para figurar no rol como marinheiro de primeira. Contudo, não carecia de conhecimentos, mas todos tinham a ver com a terra, pois era um camponês da cabeça aos pés,
camponês de nascimento e de coração. Apesar disso, era tão marinheiro que se sentia a bordo como em casa, e durante a guarda da manhã Stephen o encontrou pescando
cavalas desde as amuras da Ringle.
Ainda faltava para o amanhecer: tempo nublado com algum ou outro aguaceiro, trovões, o mar ainda mais picado, vento intenso do oés-noroeste. Ajustava a escuna de
bordejada em bordejada, longas, longas bordejadas, e naquele momento a amurada de estibordo não estava muito longe de terra: da férrea costa norte da Espanha, invisível
até o momento. O farol de Vares pela amura de bombordo, no alto de um cabo que estendia seus longos dedos sobre o mar, expelia uma luz alaranjada quando os aguaceiros
não lhe faziam sombra. Dizia-se que aquele farol atraía de tal maneira aos peixes que amiúde os encontravam na baía. Verdade ou não, a segunda guarda tinha pescado
uma cesta inteira, e por essa razão a escuna demorava na virada, cada vez mais perto da costa. Haviam tomado seus cachos a maior e o traquete, a carangueja estava
meio aferrada, represando o fluxo de ondas que escorria vertiginoso ao dobrar o cabo, mas sem fechar distâncias com relação à costa.
- Diria que não se deitou ainda - disse Stephen.
- Isso mesmo - respondeu Padeen. - Ao terminar a guarda comecei a pensar no homem que nos atraiçoara, o informante, o Judas. Perdi o sono, remoído pela ira e o temor
de que pudessem enviar-me de volta a Botany Bay.
- Não ofereceria a outra face ao informante - disse Stephen. - O inferno está repleto de gente assim. São... - Foi interrompido por uma tripla descarga de luz que
iluminou fugaz os escarpados que se recortavam a bombordo, seguida quase de imediato por um trovão. - Aí - acrescentou, - aí está a costa da Espanha. - Outros relâmpagos
a iluminaram com maior clareza. - E assim que ponha um pé nesse país, ninguém poderá enviar-te de regresso àquele lugar infame. Seja como seja, estou seguro de que
até o final do ano obterei seu perdão, e depois poderá ir aonde queira. Porém, Padeen, pelo momento quero que acompanhe Brigid e a senhora Oakes a Ávila, Espanha,
e que cuide de ambas. Lá residirão em um convento, cujas monjas hospedam a algumas outras damas. Agora escute o que vou te dizer, Padeen. Se cuidar fielmente delas
pelo espaço de um ano e um dia, será sua uma pequena fazenda de Munster que tenho perto de Sidheán na Gháire, no condado de Clare, uma fazenda com dezessete acres
de terra, dezessete acres irlandeses, se entende. Conta com uma casa com teto de ardósia, e também com três vacas e um asno, além de alguns porcos, certamente, e
de dois favos de abelhas; terá direito a obter dezessete carregamentos de carvão fóssil no pântano. Satisfeito, Padeen?
- Satisfeito, sua senhoria, sua discrição - respondeu Padeen com voz trêmula. - Cuidaria de Brigid durante um milhar de anos e um dia em troca de nada; porém, oh,
quanto me agradaria ter uma parcela de terra em propriedade. Faz tempo, meu avô tinha quase três acres, e mais dois alugados...
Conversaram sobre a terra, sobre os prazeres derivados do cultivo, a satisfação de ver crescer o que se plantou, de cortar e de debulhar; ou melhor, foi Padeen quem
falou: soltou uma cristalina torrente de palavras como Stephen jamais ouvira em seus lábios; e amanheceu, amanheceu de repente, foi como se as nuvens se esfumassem
ante a primeira carícia do amanhecer.
- Atenção todo mundo, atenção! - rugiu Bonden de popa, ao mesmo tempo que, imitado por outros marinheiros, corria golpeando as escotilhas. - Todo mundo ao convés!
- Padeen, a quem não era difícil surpreender, tropeçou com Stephen, vara e cesta de pescado na mão, e antes de que ambos pudessem se recuperar Reade havia se plantado
no convés vestido com a camisola de dormir, dando ordens a torto e a direita. Meia milha de popa, na baía fechada pelo cabo Vares, encontrava-se um lugre de três
paus, comprido, baixo e negro. Ia fortemente armado e contava com uma considerável dotação; estava se cobrindo de lona.
Padeen havia se dirigido correndo ao seu posto na escota de proa. Stephen se colocou na alheta de estibordo, onde se encontrava razoavelmente afastado. Escutou os
rápidos intercâmbios que se produziram entre Reade e os homens cuja opinião consultou; e também pôde ouvir as opiniões dos marinheiros enquanto trabalhavam ou se
dispunham a formar. Todos se mostravam de acordo em que o lugre era francês e havia partido de Douarnenez, que se chamava Marie-Paule e que era rápido: os cúteres
aduaneiros nunca o tinham aprisionado; às vezes atuava como navio de corso, e naquele momento, tão a transbordar de homens, não podia ser mais que um corsário, que
talvez perdoassem a um rastreador de Brixham mas a ninguém mais, quer fosse cristão, turco ou judeu, e que François o patrão era um autêntico canalha. Armava a proa
uma peça de bronze de nove libras, peça que servia incrivelmente bem. Todos os marinheiros falaram em sério, com gravidade. Não pôde ver a expressão de Reade, que
estava na cana com Bonden, virado de costas, mas viu Bonden empertigado e sossegado.
Ao olhar de proa e a popa, Stephen julgou a posição enquanto a luz se afiançava a cada minuto transcorrido, e a escuna tombava mais e mais enquanto os homens puxavam
as escotas e as amarravam cada vez mais para popa. Até onde chegava sua experiência no mar, Stephen pensou que não havia escapatória possível. A menos de uma milha
da proa, o cabo Vares refletia ao norte, ao mar. Não poderiam superar a ponta estando como estavam amurados para estibordo. Teriam que ir por avante para navegar
de volta, e enquanto o fizessem o enorme lugre os abordaria sem remédio. Partia em sua direção a toda pressa, cheio a transbordar de homens.
Tinha participado de muitas perseguições navais, quer fosse como caçador ou presa, e todas elas tinham sido negócios longos, muito, às vezes questão de dias, grande
a tensão e, apesar de tudo, contida a medida que se afiançava e se fazia mais suportável com a passagem do tempo. Agora a coisa seria questão de minutos em lugar
de horas ou dias: a escuna, com o corrimãos de sotavento afundado na espuma, coberta por uma nuvem de lona, levava seus bons dez nós e, ou contornava o cabo em quatro
minutos, ou tinha que mudar de bordo e cumprimentar a chegada do lugre pelo través de estibordo.
A medida que transcorreram estes minutos se deu conta com extraordinária viveza do que sua fortuna, guardada nos baús que havia na bodega, supunha para ele, para
sua filha e para um milhar de aspectos de sua vida. Não lhe havia ocorrido pensar que o dinheiro pudesse ter tanto valor, de que pudesse valorizá-lo até esse ponto.
As gaivotas pairavam entre a Ringle e o cabo, as ondas rompiam ao longo da costa. Voltou seu rosto olheirudo para os homens que governavam o leme, e como a instâncias
de seu pensamento Reade lhe devolveu o olhar. A expressão do jovem se parecia à desaforada alegria que Stephen havia visto no olhar de Jack Aubrey em similares momentos
de crise.
- Fique aí, doutor. Tenha cuidado - gritou o guarda-marinha com um sorriso, antes de voltar-se para Slade para dizer-lhe algo com respeito à uma bolacha. Então,
Bonden e ele, com as mãos agarradas à cana pelo cabo de três voltas e o olhar posto na testa da vela traquete, puxaram a cana para sotavento, e ainda mais para sotavento.
Stephen viu a terrível costa do cabo, tão perto, afastar-se para a esquerda. Viu aparecer o extremo que dava ao mar, talvez livre de sua amura de bombordo por umas
dez jardas de distância. Ouviu ao jovem Reade gritar "jogue-a com alma, com alma!" e viu Slade lançar a bolacha, que deu contra as rochas, e em um estrondo de risadas
as franquearam, avante a mar aberto.
O lugre efetuou um disparo sem consequências antes de mudar de bordo, incapaz de superar o cabo, perdeu terreno, ímpeto e a presa. A perseguição continuou pelo espaço
de algumas horas, mas ao meio-dia já não se via ao leste mais que a lona do lugre, pois a escuna era mais veloz.
A Ringle seguiu navegando com um estado de bom humor, amiúde rindo, amiúde recordando-se uns aos outros que "haviam franqueado ao canalha do cabo Vares à distância
de bolacha, ah, ah, ah!". Houve quem tentasse explicar o triunfo à senhora Oakes e a Brigid, mas ainda que conseguiram lhes contagiar com sua alegria e a boa sorte
que haviam tido, não conseguiram que entendessem o resto antes de que a Ringle chegasse ao porto da Corunha, ou, como alguns o chamavam, ao "Quebra-mar".
Enquanto Stephen permanecia na amura, sorrindo para o agitado porto e para a cidade, Mould se aproximou como quem não quer nada, e entre os lábios disse:
- Eu e meus companheiros conhecemos o Quebra-mar tanto como Shelmerston: costumávamos vir aqui para buscar o conhaque. E se o senhor prefere que desembarquem seus
bens com discrição, se me permite a palavra, conhecemos a um tipo, honesto como ele só - pois de outra forma faria tempo que o teriam matado de uma surra, - que
poderia responder.
- Obrigado, Mould, agradeço muitíssimo sua amável sugestão, mas nesta ocasião - e repito: nesta ocasião - tenho intenção de desembarcar tudo legalmente. E isso é
o que me propus dizer ao capitão do porto e aos seus. Contudo, quero que saiba que lhe agradeço por suas boas intenções.
Algumas horas depois, Stephen, sentado na cabine com um Reade totalmente mudo e duas autoridades portuárias, disse:
- E além dos apetrechos de guerra que pertencem a esta embarcação, navio de apetrechos do navio de sua majestade britânica o Bellona, ao qual terão visto não fará
muito - nenhum dos quais pode considerar-se como mercadoria, - não há nada mais excetuando um tesouro que me pertence em propriedade, e que pretendo depositar no
Banco do Espírito Santo e do Comércio desta cidade. Conheço pessoalmente a dom José Ruiz, seu diretor, que foi a pessoa que me o envio por barco em primeira instância.
Como se trata de ouro em guinéus ingleses, fica, certamente, isento de contribuições.
- Trata-se de uma soma importante?
- Não saberia lhe dizer de quantos guinéus se trata exatamente, mas o peso, acredito, oscila entre as cinco e as seis toneladas. Essa é a razão de que devo pedir
aos senhores que me façam o incrível favor de dar ancoradouro adequado a esta embarcação, e de emprestar-me uma vintena de forçudos de confiança para transportar
os baús. Aqui - disse assinalando com um gesto um par de avultadas bolsas de lonita - há uma soma que espero distribuam da forma que considerem mais apropiada. Posso
dar por serto que chegamos a um acordo, cavalheiros? Pois, se for esse o caso, devo apressar-me a desembarcar e falar com dom José a respeito do ouro, e depois ir
direto para apresentar meus respeitos ao governador.
- Oh, senhor - exclamaram, - a estas alturas o governador deve encontrar-se a meio caminho de Valladolid. Não sabe o senhor quanto lamentará não poder ver-lhe.
- Mas confio em que esse não será o caso do coronel dom Patrício Fitzgerald Saavedra?
- Oh, sim, isso mesmo. Dom Patrício segue aqui, com todos seus homens.
 
- Primo Stephen! - exclamou o coronel, - quanto me alegra vê-lo. Que bom vento lhe traz a Galiza?
- Primeiro deixe-me perguntar como está e se é feliz. A fortuna lhe trata bem?
- Por favor, a fortuna tem me agarrado pelas partes pudendas, mas nunca permita um a soldado se queixar. Fale, por favor.
- Bem, vejamos, Patrick, trouxe a minha filha Brigid e a dama que cuida dela, porque me agradaria que passassem um tempo com a tia Petronila em Ávila. Contam com
um servente, Padeen Colman, mesmo assim, com o país tão revirado, a viagem tão comprida que lhes espera e como tenho que despedir-me aqui mesmo deles, não me agradaria
que fossem sozinhos, sem contar com alguém que fale espanhol por eles. Ruiz, o do banco, há acertado uma carruagem com um condutor que fala francês, e a guarda de
rigor, mas não sabe quanto lhe agradeceria que pudesse emprestar-me a uma dúzia de seus soldados e a um oficial. A verdade é que embarcaria muito mais tranqüilo
e feliz.
 
O coronel lhe deu bons motivos para ficar-lhe agradecido. Observava os oito cavalos que puxavam a enorme carruagem que avançava pesadamente colina acima, atrás da
Corunha, com uma escolta de soldados de cavalaria na frente e atrás, e duas mãos agitando dois lenços brancos, agitando-os e agitando-os de um lado para o outro
até que foram devoradas pela distância, mas ninguém que visse o rosto de Stephen de pé na amura da Ringle, teria pensado que o via, ali, mais feliz.
- Bem, senhor - disse Reade, que a julgar pelo tom de sua voz se sentia tão incômodo como compassivo, quando Stephen entrou na cabine, - temos intenção de largar
amarras em quanto esse português gigantesco daí se afaste de nosso caminho. E agora que o penso, senhor, não recordo do senhor ter me dito aonde devíamos aproar
no caso de não encontrarmos ao comodoro no Quebra-mar.
- Sério que não o fiz? - perguntou Stephen. Refletiu sobre isso e voltou a refletir. - Jesus, Maria e José - murmurou. - Esqueci o nome. Eu tenho na ponta da língua,
mas me escapa, é onde os petréis aninham, ou eram os fradezinhos...? Morcegos, eram morcegos. Em uma vasta caverna por onde circula um vendaval, a certa distância
em pleno mar. Ilhas... Eu o tenho, o tenho: As Berlings! As Berlings, é isso, por minha alma.
CAPÍTULO 6
No sábado pela tarde avistaram as Berlings pela amura de bombordo, órfã a Ringle do vento de joanetes que havia brincado muito com ela desde o cabo Finisterre, vento
talvez assustado pelo estrondo da batalha que se ouvia ao sudoeste, a estibordo.
A escuna, disposta para a ação, cobriu-se com mais e mais lona, orientada para aproveitar o menor sopro de vento e empurrada pela incerteza do que lhe aguardava
pela amura de estibordo. O doutor Maturin, afastado do corrimão desde o qual estivera observando as nuvens de aves marinhas perturbadas pelas detonações, a medida
que desenhavam amplos círculos sobre as distantes rochas, foi enviado abaixo, a esse sombrio e abarrotado espaço triangular no qual teria que atender aos feridos,
sem ajuda, se a Ringle podia fazer avante rumo sudoeste a tempo de unir-se à esfrega, prodigiosa esfrega a julgar pelo ruído das descargas que partiam dos navios
de linha, nada mais e nada menos.
Mould, o mais velho e mais leve dos marinheiros embarcados, pecador de pele enrugada e cinco pés de altura, encontrava-se no tope armado de uma luneta. O embriagador
aroma da pólvora se estendeu pelo convés arrastado pelo vento, no mesmo instante em que gritou:
- Convés, aí! Vejo algo além da fumaça e da escuridão. É a esquadra, que pratica com os canhões. Distingo o galhardete do Bellona. Vejo claramente ao Stately.
O vento, amável, esfriou ao som de suas palavras, e levou consigo os penachos de fumaça branca que os canhões expeliam até revelar ante seu olhar toda a esquadra
- à qual haviam se somado dois bergantins e uma escuna de Lisboa, - ao mesmo tempo que impelia a Ringle a uma boa velocidade até o ponto de reunião.
Reade se apressou a descer para tranqüilizar ao doutor.
- Se não parecia um combate de verdade, um combate de linha, como meu chapéu - disse. - Se o senhor pegar minha luneta, poderá ver que estiveram disparando de ambos
os costados em alvos dispostos ao longo da linha de barcos. De ambos os costados! Já ouvira algo parecido, senhor?
- Jamais - respondeu Stephen, armado com a verdade absoluta. Seu posto de combate se encontrava na enfermaria da coberta dos alojamentos ou o que podia ser seu equivalente,
e ainda que em certas ocasiões, todas elas memoráveis, quando o tambor não tinha redobrado para preparativo, se lhe permitira observar aos oficiais, guardas-marinhas
e marinheiros levar a cabo os exercícios com os canhões, nunca os vira servir ao mesmo tempo as peças de ambos o lados de um barco. Sucedia em raras ocasiões em
um combate real, exceto, evidentemente, quando o combate se convertia em um enfrentamento generalizado, como ocorreu em Trafalgar. Mas não se produzia quase nunca
durante uma prática. Um dos motivos era o preço da pólvora; o governo fornecia uma exígua quantidade de pólvora, que dava apenas para realizar uma prática com os
canhões de um lado. Qualquer coisa que fosse além teria que sair do bolso do capitão, e eram poucos os capitães que acreditavam na importância da artilharia e eram
ricos o bastante para adquirir a quantidade de pólvora necessária para conseguir que a dotação do barco tivesse a experiência suficiente para chegar a efetuar três
disparos bem apontados no espaço de cinco minutos. Alguns, como Thomas da Thames, homem razoavelmente próspero, tinham a convicção de que a brusquidão na manobra,
o brilho dos metais, a impoluta pintura dos costados, umas vergas enegrecidas e o arrojo natural do povo inglês serviriam para coroar com êxito qualquer propósito,
de modo que suas práticas com os canhões não iam além de destravá-los e levá-los de um lado a outro sem mais, sem sequer aproveitar a quantidade extra proporcionada,
pelo governo. A maior parte destes oficiais tinham participado de poucos combates, talvez em nenhum. De sua parte, Jack Aubrey tomara parte de muitos mais combates
que a maioria; e ele, assim como boa parte de seus amigos, estava convencido de que por mais coragem que se tivesse não se podia ganhar de um inimigo de força igual
que desfrutasse do barlavento e que pudesse disparar mais rápido e com precisão. Além disso, tinha comprovado os efeitos desastrosos de não adestrar à dotação no
disparo de ambos os lados. Em uma ocasião, por exemplo, ao estar de passageiro a bordo da fragata de sua majestade Java, quando esta enfrentou a Constitution, fragata
dos Estados Unidos, houve um momento na batalha em que o americano apresentou sua vulnerável popa ao barco inglês, mas os marinheiros, que estiveram servindo os
canhões do lado de estibordo careciam das luzes necessárias e, sobretudo e antes de tudo, do adestramento imprescindível para varrer sua popa com efetividade com
os canhões de bombordo. A Constitution andou quase de graça e, ainda que pouco depois, cheios de coragem, tentaram tomá-la pela abordagem, não serviu de nada. Ao
finalizar aquele dia de dezembro, a Java, abatida, foi apresada e queimada, enquanto que seus sobreviventes, incluído Jack, foram feitos prisioneiros e conduzidos
a Boston.
Agora dispunha de dinheiro suficiente como para gastá-lo na quantidade de pólvora que quisesse; e agora, também, decidido a ter sob seu comando uma esquadra que
pudesse enfrentar qualquer inimigo de igual porte, havia ordenado levar a cabo um exercício de fogo real de proporções homéricas, e disposto todos seus barcos em
linha de combate para que pudessem abrir fogo ao passar contra alvos espalhados a um cabo de distância, à queima-roupa.
A medida que a Ringle se aproximou do navio insígnia, que formava a pairar na metade da linha, Stephen observou não sem certa inquietação que ainda que a superfície
do oceano estivesse plana como o vidro, com quase sem dobras, seu corpo principal, essa enorme massa líquida, subia e descia arrastada por um intenso fluxo de ondas
procedente do sul, movimento claramente visível entre os botes que formavam ao lado dos costados do Bellona, já que o comodoro reunira os capitães do Stately, da
Thames e da Aurora, e suas faluas se elevavam e desciam de um modo surpreendente. A experiência lhe dizia que qualquer um que não levasse o mar no sangue teria dificuldades
para subir a bordo sem se arriscar a sofrer uma desgraça; contudo, ainda refletia a respeito daquele particular quando a Ringle deslizou por baixo da popa do Bellona,
foi direitinha situar-se por seu costado de bombordo e se enganchou às amarras da mesa de guarnição do traquete.
- Senhor Barlow - chamou Reade ao segundo do piloto, situado no castelo de proa, -jogue-me um palanquim para o doutor, se é tão amável.
Depois de assegurados os pertences do doutor, pediu-lhe que se sentasse em seu baú de marinheiro, agarrado ao cabo com ambas mãos.
- Agarre-se forte, senhor, e não olhe para baixo - advertiu Reade; então, na crista da onda, gritou: - Lá vai. Agora, pouco a pouco e sobre a borda.
Stephen e seus pertences se elevaram no ar, balançaram sobre o navio de linha e pousaram no convés com um golpe tão suave que não teria rompido um ovo.
- Há, Caley... - disse enquanto observava um daquelas rostos conhecidos, depois de agradecer aos marinheiros. Pegou com suavidade a orelha esquerda do marinheiro
em questão, orelha que havia costurado depois de que um companheiro um pouco brincalhão lhe arrancou boa parte dela, e acrescentou: - Muito bom, tem a mesma capacidade
para se recuperar que um filhote. - E sem mais se dirigiu a popa pelo corrimão de bombordo, respondendo à meia dúzia de inclinações de cabeça e gestos diversos que
lhe dedicaram seus antigos companheiros de tripulação, pois praticamente a totalidade dos marinheiros da Surprise que não tinham lar em Shelmerston navegavam agora
com o capitão, no Bellona.
Ao aproximar-se do castelo de popa viu sair da cabine do comodoro o capitão Thomas da Thames. Parecia furioso: seu rosto adquirira um colorido peculiar, e a cólera
que recobria como uma capa a pele morena conferia a sua cara o aspecto de uma máscara. Apitaram quando desceu pela borda com a devida cerimônia, sem cumprimentar
nem nada do tipo, em marcado contraste com Duff do Stately, e Howard da Aurora, que haviam precedido em suas respectivas faluas.
Stephen observou os olhares de compreensão e os sorrisos particulares que trocaram os oficiais reunidos com a devida formalidade no castelo de popa, mas quando a
falua da Thames se afastou, Tom Pullings apareceu pela porta de entrada com um amplo, cândido e alegre sorriso desenhado em seu rosto, um sorriso completamente distinto
dos outros, e se apressou para Stephen, exclamando:
- Bem-vindo a bordo, querido doutor, bem-vindo a bordo. Não esperávamos ver-lhe tão cedo, pequena surpresa. Venha ver o capi... o comodoro. Ele ficará muito contente
e aliviado de ver-lhe. Mas antes permita-me apresentar-lhe ao meu segundo tenente, o primeiro figura no boletim de enfermos, nada do outro mundo. Tenente Harding,
apresento-lhe o doutor Maturin.
Apertaram-se as mão, trocando atentos olhares, pois os companheiros podiam dar-se bem ou mal e converter qualquer destino em um inferno ou um céu. Ante o cortês
"Como o senhor está, senhor?", o outro respondeu "Encantado de conhecer-lhe".
Aquela foi a primeira ocasião em que Stephen via a Pullings enfronhado no tão ansiado uniforme de capitão de navio, e depois, ao reparar nisso, disse:
- Como esse uniforme lhe cai bem, Tom.
- Há, senhor - disse Pullings, que riu alegre. - Devo admitir que amo este uniforme de todo coração.
Chegaram ao lugar onde o infante da marinha fazia guarda.
- Devo deixar-lhe aqui, senhor - disse Pullings, - mas trarei meu relatório sobre as cadências de fogo assim que esteja redigido como Deus manda. Não há um momento
a perder, porque a metade dos números escritos na tabuinha seguem em minha cabeça, e a outra metade estão na do senhor Adams.
Stephen atravessou a sobrecâmara para chegar à câmara com um sorriso; porém, encontrou Jack sentado de costas, com o olhar voltado para a popa e ambos braços apoiados
sobre a escrivaninha cheia de papéis; permanecia imóvel, e com tal olhar de infelicidade que o sorriso de Stephen desapareceu em um visto e não visto de suas feições.
Tossiu forçadamente. Jack se voltou de imediato, com uma autêntica indignação que mascarou a infelicidade um instante antes de que se levantasse, tão magro como
quando era jovem, e abraçou Stephen com mais força da que era normal nele.
- Pela vida de... Stephen, quanto me alegra vê-lo! Como andam as coisas em casa?
- Tudo bem, que eu saiba, ainda que como compreenderá tive que vir muito rápido no carro postal.
- Sim, sim. Fale-me de sua viagem. Deve ter desfrutado de ventos favoráveis por todo o caminho. Os do paquete disseram que estiveram acalmados nos Downs até a quinta-feira
passada, a quinta-feira da semana passada, quero dizer. Meu Deus, como me faz feliz ter você aqui. Deseja um pouco de madeira e uma bolacha? Xerez? Ou talvez um
café? Que tal se tomarmos uma cafeteira inteira?
- Por favor. Aquele canalha da Ringle, ainda que sem dúvida seja um grande marinheiro, não tem nem a menor idéia do que é um café. Nenhuma em absoluto, nenhuma em
absoluto, o animal.
- Killick, Killick! - gritou Jack.
- E agora o que é? - perguntou Killick, que assomou pela a porta da cabine dormitório. Acrescentou o "senhor" depois de uma pausa, e dedicando um sorriso glacial
para Stephen, disse: - Espero que sua senhoria ande bem.
- Muito bem, obrigado, Killick, e você, como está? - Como vê, senhor, levando. Ainda que temos muitas responsabilidades com isso de exibir um galhardete.
- Esquente uma cafeteira - ordenou Jack. - E será melhor que pendure uma maca para o doutor.
- Não, se agora resultará que passei toda a manhã com os braços cruzados - replicou Killick, ainda que o fez em um tom mais suave que o seu habitual, e não sem acompanhar
suas palavras com uma olhar apreensivo.
- Conte-me então sobre sua viagem - seguiu Jack. - Temo ter interrompido seus assuntos com tantas pressas.
- Não vou lhe preocupar com meus assuntos em terra, além de observar que o navio de apetrechos e sua gente não poderiam ter se comportado de forma mais exemplar,
e que chegamos a Shelmerston e depois à Corunha, mas permita-me dizer que, apesar do vento forte e favorável que às vezes nos empurrou por um espaço de duzentas
milhas entre um meio-dia e o seguinte, pudemos ver... - A seguir recitou uma lista de aves, peixes, mamíferos marinhos (entre eles uma manada de baleias), plantas,
crustáceos e outras formas de vida que apareceram na superfície ou foram arrastadas por uma pequena rede, até ver que perdia por momentos a atenção de Jack. - Frente
a Finisterre, o vento nos abandonou durante um tempo continuou, - e me pareceu avistar uma foca-monge; mas o vento logo respondeu a nossos assobios de protesto e
nos trouxe alegremente até que avistamos as Berlings e ouvimos o estrondo dos canhões. Esse excelente jovem, Reade, cobriu a embarcação com todo tipo de lona, tão
temeroso estava de perder a batalha, pois supusemos que se tratava de tal; não pareceu disposto a arriá-la quando o vento esfriou e os paus se dobraram até o indizível.
Porém, resultou não ser mais que um exercício de artilharia de proporções homéricas. Creio que tudo deve ter saído a sua inteira satisfação, meu amigo.
- Stephen, foi um autêntico despropósito, deveras que sim. Ainda que pode ser que da próxima vez o façamos melhor. Diga-me, não se encarregou de alguma carta ao
se despedir de Shelmerston? Refiro-me a uma carta de Ashgrove em particular.
- Não - respondeu Stephen. - Lamento de verdade decepcionar-te assim, mas havia prometido ao jovem Reade aproveitar a maré da manhã, a sagrada maré da manhã. Além
disso, somando-se ao afã para não faltar ao encontro que combinara contigo - poderia-se inclusive dizer que "além do senso do dever", - viajava em companhia de Clarissa
Oakes e de minha filha, às quais levei para a Espanha, onde a segunda será tratada por uma eminente autoridade; vamos, que não passei por Ashgrove: Clarissa e Sophie
não estão em bons termos.
- Não. Eu sei.
- Lamento decepcioná-lo - repetiu Stephen ante o silêncio.
- Oh, não se preocupe por isso, Stephen - exclamou Jack. - Jamais poderia decepcionar-me. Em qualquer caso, outro dia o paquete me trouxe uma de Lisboa, pequena
carta mais desagradável. Não lhe direi que me deixou nervoso, mas...
"Irmão, somente em uma ocasião lhe vira tão abatido como agora - pensou Stephen, - e foi quando apagaram seu nome da lista de capitães da Armada."
- Entre - disse Jack.
- Tudo disposto, senhor - informou Tom Pullings. - E aqui tem o relatório do exercício. Temo que não vai lhe comprazer precisamente.
- Não - admitiu Jack depois de dar uma espiada no papel. - Não. Não é nada encantador. Será melhor que ponhamos mãos à obra para melhorá-lo. Stephen, faz tempo que
não assiste a um exercício em toda regra com os canhões, e não recordo se já viu ou não a um barco abrir fogo de ambos lados contra um alvo. Gostaria de presenciá-lo?
- É o que mais me agradaria no mundo.
Enquanto se dirigiam ao castelo de popa, Pullings deu ordem de tocar geral.
- Apenas se trata dos canhões das baterias superiores, entenda - explicou Jack alçando sua voz acima do redobre de tambores, - os localizados na coberta alta e na
coberta da segunda bateria. Vamos, os de trinta e duas libras e os de dezoito.
Nem sequer o doutor Maturin podia supor que aquele fosse um exercício normal com os canhões longos, depois de ver como ordenavam aos homens que abandonassem o que
estivessem fazendo nesse momento para servir as peças três ou quatro vezes antes de dar por terminado o exercício. Nada disso. Tinha por objetivo, coisa que todos
na esquadra sabiam perfeitamente, proporcionar um exemplo de como deviam manejar-se durante um combate. A dotação do Bellona se esforçava para assegurar-se de que
o exemplo do navio insígnia fosse precisamente isso, exemplar, pois não só existia um sentimento de orgulho tremendo no barco, como que inclusive aqueles que haviam
servido com ele em seu primeiro comando, uma desajeitada corveta no Mediterrâneo, tinham a firme intenção de comprazer ao comodoro, ou mais exatamente de evitar
dar motivo ao seu descontentamento, que podia ser devastador, sobretudo nesse momento. O senhor Meares, o condestável, seu ajudante, os cabos de canhão e, certamente,
as dotações que os serviriam, o primeiro, o segundo, o da lanada que limpava a alma, os fuzileiros, que orientavam as velas, os da parte de abordagem, os encarregados
da pólvora e os infantes da marinha, cada um fizera a sua parte, haviam embonecado suas peças, engraxado os carros, pedido gordura aos cozinheiros para lubrificar
os moitões, disposto o cordame e os suportes de balas, enquanto que os guardas-marinhas e oficiais ao comando das divisões existentes também cuidavam dos menores
detalhes dos chifres de pólvora, os buchas de fio, os guarda-cartuchos, os mecanismos de disparo, os trabalhos e outros, coisas estas que se faziam tanto nas baterias
do lado de estibordo como nas de bombordo. Ainda que o Bellona contasse com algo mais que quinhentos homens a bordo, estes não bastavam para atender ambos os costados,
de modo que cada brigada tinha que servir duas peças.
As dotações, amiúde capitaneadas por marinheiros veteranos da Surprise acostumados aos modos de Jack Aubrey, ou, em todo caso, por homens experientes que haviam
tomado parte em mais de um combate, se formaram tão logo Jack assumiu o comando, e haviam praticado juntos desde então. Era de supor que teriam que ter ganhado confiança,
mas não era assim. Amarraram o lenço ao redor de sua testa, puxaram suas calças, cuspiram em suas mãos e cravaram a vista na frente, para a luz reluzente que iluminava
aquele mar ritmicamente encrespado, enquanto o torso negro, o marrom ou esbranquiçado mas moreno pelo sol se movia de um lado para o outro inconscientemente com
o balanço da coberta: esperavam o sinal do castelo de popa e que aparecessem os alvos aos quais deviam disparar.
- Muito bem, senhor Meares - disse o capitão Pullings antes de que o canhão que devia dar o sinal abrisse fogo; o penacho de fumaça quase não havia abandonado a
popa quando apareceu o alvo de estibordo, três conjuntos de barris com sua correspondente lona gasta envergada em três berlingas que representavam o castelo de proa,
o castelo e o castelo de popa de um navio de linha, tudo isso rebocado por um senhor cabo pelas embarcações auxiliares da esquadra. Ao cabo de dois minutos apareceu
a isca de bombordo, que também andava a bom passo a trezentas jardas de distância.
- Fogo com discrição de proa a popa - gritou Pullings desde o castelo de popa, e no convés o segundo tenente repetiu suas palavras. Jack pôs em marcha o cronômetro.
Dois longos balanços e o barco inclinou sete graus enquanto os marinheiros mostravam os dentes. Ao subirem na onda seguinte, o canhão de trinta e duas libras situado
na amura da coberta da segunda bateria proferiu um bramido aborrecido, ao mesmo tempo que descarregava uma lingua de fogo que iluminou o penacho da fumaça. A bala
alcançou as berlingas{15} envergadas sobre os tonéis do alvo, o que provocou gritos de júbilo em ambas cobertas do lado, ainda que a brigada que servia o canhão
não teve tempo para juntar-se à algaravia. Safaram-se do canhão no retrocesso, o da lanada limpou a alma, meteram um cartucho e depois a bala, moveram o canhão em
bateria com a velocidade de um raio, fizeram mudar de bordo com toda sua alma ao monstro de quinhentas e cinqüenta libras de peso com um estampido e se dirigiram
correndo para o lado de bombordo, onde o segundo havia disposto tudo para que pudessem apontar ao alvo seguinte. A estas alturas o canhoneio se estendera até a metade
de ambas as cobertas do lado de estibordo. O estrépito ensurdecedor e a caprichosa fumaça já tinham o ânimo e a percepção de Stephen Maturin completamente confundidos,
e então o estrondo se redobrou se couber quando os canhões de bombordo entraram na brincadeira e um novo conjunto de alvos apareceu a distância de disparo. Sentiu
o ruído estrondoso, assustador, que acompanhava a saída de cada bala, fruto por sua vez de um trabalho intenso e concentrado, visível pelo menos lá onde podia ver
às esforçadas brigadas do castelo, banhadas em suor enquanto moviam o canhão, apontavam e disparavam os canhões, para depois correr ao outro lado, ordenadamente,
sem tropeçar uns com os outros, sem quase se dirigir a palavra; o verbo substituído por gestos, por uma leve inclinação de cabeça que não necessitava de mais e que
todos compreendiam.
Tudo terminou com um último estrondo do canhão de trinta e duas libras situado mais a popa, e o silêncio se peneirou sobre aquele mundo ensurdecido. A nuvem de fumaça
caiu para sotavento, longe da esquadra.
- Temo que tudo não foi equivalente a três descargas em cinco minutos, capitão Pullings - disse Jack, observando a um Tom nervoso.
- Temo que não, senhor - respondeu Tom, sacudindo a cabeça.
- Mas tampouco estivemos muito longe de consegui-lo; e não tardaremos muito em animar-nos um pouco - acrescentou Jack. - Em todo caso, agora tenho uma idéia aproximada
do que poderíamos esperar, uma idéia bastante aproximada. Que lhe parece, doutor?
- Não sabia que lutar por ambos os lados fosse tão árduo - confessou Stephen nesse tom de voz bem mais elevado que se utiliza depois do intenso fogo dos canhões,
- nem que se necessitasse de tal destreza e fosse tão perigoso devido ao retrocesso dos canhões em ambos os lados e à força que dispersam. Amiúde presenciei o fogo
de uma só descarga, que requer de uma surpreendente agilidade, mas isto supera todas minhas expectativas. Observei como atendiam no castelo tão horripilante tarefa
- assinalando com o dedo o empalletado{16} do castelo de popa e os canhões de dezoito libras da coberta superior, agora convenientemente trincados e batiportados{17},
- porém abaixo, na coberta da segunda bateria, com todas essas enormes peças retumbando no ouvido de um e toda essa fumaça, deve ser como estar no própio inferno.
- A prática converte ao aluno em mestre - observou Jack. - É maravilhoso comprovar ao que pode chegar um ao acostumar-se. Não há muita gente capaz de suportar seus
serrotes e cubetas de sangue, mas você nem sequer arqueia uma sobrancelha. - Voltou-se para dirigir-se à cabine e Stephen estava a ponto de fazer o mesmo quando
viu aproximar-se ao ajudante de cirurgião de mais antiguidade.
- Desculpe-me, senhor - disse, - mas nos preocupa muito o estado do senhor Gray, o imediato. Macaulay acredita que poderia tratar-se de um ataque repentino e agudo
de pedra; e se quer minha opinião, estou de acordo.
- Vamos lá, senhor Smith - disse Stephen. Os gritos afogados do paciente adquiriram força a medida que desciam coberta atrás de coberta. A chegada de Stephen supôs
certo alívio para ele, e Gray deixou de gritar enquanto durou o exame rápido que o cirurgião de bordo levou a cabo. Foi rápido porque não havia dúvida alguma a respeito,
mas quando voltaram a deitá-lo reiniciou as lamúrias, ainda que fincou o dente no lençol com todas suas forças, arqueado o corpo, estremecido pela dor. Stephen assentiu,
dirigiu-se para o ambulatório, pegou sua intacta tintura de láudano (em tempos seu único solaz, seu único deleite, que também esteve a ponto de converter-se em sua
destruição, pois se tratava de uma solução líquida de ópio) e algumas sanguessugas, administrou uma dose que seus ajudantes observaram boquiabertos, deu-lhes instruções
e vendas, colocou meia dúzia de sanguessugas, disse ao jovem em latim que estava completamente de acordo e que quando o paciente estivesse em condições, se sobrevivesse
até lá, relizaria a intervenção, provavelmente na primeira hora da manhã. O carpinteiro teria preparada a cadeira que necessitaria. Achava que o Archiboldo incluía
uma ilustração com medidas precisas.
Regressou ao castelo de popa, onde passeou um pouco desfrutando do suave anoitecer. A esquadra rumava su-sudeste com pouca lona, e proveniente do castelo de proa
do Stately, o barco seguinte na linha pela popa, chegou-lhe o som da música, enquanto os marinheiros dançavam a ponto de finalizar a segunda guarda do quartilho.
Em um dado momento viu a Killick na escuridão.
- Esta noite servirei para jantar um velho pato pouco assado, senhor - disse em tom amável e protetor, antes de afastar-se andando em silêncio ao longo do corrimãos
até o castelo de proa; uma vez ali trepou por meio dos amantilhos ao cesto da gávea do traquete, ampla e cômoda plataforma situada no alto, sobre o convés, onde
alas e rastreiras serviam de almofada e de onde se podia desfrutar de uma vista estupenda dos barcos que iam na frente, rumo à África, com as maiores e as gáveas
com um só cacho debaixo de um céu que já estava tachado de estrelas.
Mas Killick era tão indiferente às estrelas como o era à beleza da Laurel, a adorável e pequena embarcação de vinte e dois canhões que navegava justo a proa. Subira
ao cesto da gávea porque tinha um encontro em um dos poucos lugares de todo o barco onde se podia conversar em particular, e é que quinhentas pessoas ou mais conviviam
em um espaço de cento e setenta pés de comprimento por quarenta e seis pés e nove polegadas de largura, ao todo, quase totalmente cheio a transbordar de apetrechos,
provisões, água, canhões, pólvora e balas. Havia marcado um encrontro com seu velho amigo Barret Bonden, com quem quase não tinha trocado duas palavras desde que
a Ringle se reuniu com a esquadra. Ao chegar, observou aos jovens marinheiros que encontrou ali sentados, jogando damas, com uma expressão que parecia dar pé a jogar-lhes
o agraço no olho no momento menos pensado.
- Vão tomar no cu, companheiros - Bonden lhes disse com certa amabilidade. Obedeceram de imediato, pois a autoridade que destilava o timoneiro do comodoro não lhes
deixava outra opção.
- Que há de novo? - perguntou Killick ao apertar a mão de Bonden.
- Tudo adriçado e bem teso - respondeu Bonden. - Tudo adriçado e bem teso, obrigado. Porém diga-me, que sucede nesta casca de noz?
- Realemente quer saber o que sucede nesta casca de noz?
- Isso mesmo, companheiro. Como é que mudou a paisagem. Qualquer um diria que levamos a bordo ao diabo ou ao Velho Jarvey: olhares avesso, nem um sorriso, oficiais
nervosos, gente que anda por aí dando respingos como se fosse o dia do juízo ou viesse o almirante de inspeção. Quando nos despedimos de Pompey ainda não mantinham
as pessoas em trabalhos inúteis para mantê-las ocupadas, então havia muitos de nossos velhos companheiros de tripulação a bordo, marinheiros justos, e em geral parecia
que no barco reinava a harmonia. O que aconteceu?
- Bem - respondeu Killick, e pensou em dar uma resposta assombrosa, inclusive epigramática, mas desistiu e acrescentou: - não é somente coisa do Imperador Púrpura
e seu barco descontentadiço, que não poderia enfrentar-se a um bergantim ianque armado com vistas a aprisioná-lo se o bergantim fosse um pouco vivo, e tampouco se
deve a que o velho Stately esteja a bordo; ainda que, certamente, tudo isso ajuda. Não. A causa é a infelicidade familiar. É a infelicidade familiar o que se há
filtrado na casca de noz, adoentada casca de noz em todo caso, por muito que diga o contrário, cheio a transbordar de ignorantes marinheiros de água doce, uma porrada
de desgraçados desses aos quais os do recrutamento aprisionam, e um imediato muito enfermo sem condições de cumprir com seu dever. A infelicidade familiar, companheiro.
- Ao que se refere com isso de infelicidade familiar? - perguntou Bonden em tom grave.
- Refiro-me a que o cap... a que o comodoro e a senhora A. quebram o pau. É a isso que me refiro.
- Deus Todo-poderoso - sussurrou Bonden ao mesmo tempo que afundava as costas contra o arco do cesto da gávea, pois Killick parecia falar com conhecimento de causa.
Contudo, após um momento perguntou: - E você como o sabe?
- Bem - respondeu Killick, - um se dá conta das coisas. Não posso evitar de ouvir algumas conversações, e se juntar as peças... Ninguém poderia acusar-me de xereta...
- Bonden não fez comentário algum -... e ninguém se atreveria a dizer que não tenho em mente os interesses do capitão.
- Isso é verdade - disse Bonden.
- Bem, enquanto esteve fora nas Índias Orientais, na fodida Botany Bay, no Peru e tudo isso, a senhora A. Cuidava de tudo o que haviamos deixado aqui, refiro-me
a Ashgrove, em Hampshire; e também cuidou da propriedade de Woolcombe que o capitão herdou com a morte do general: pois o senhor Croft, Croft, o Letrado, não estava
precisamente bem, pois já era muito velho, o pobre. E anda por esses andurriais uma família chamada Pengelley.
- Pengelley. Sim, lembro-me deles.

x
x
x
                                          CONTINUA
x
x
x

- Agora esses Pengelley têm duas fazendas em suas terras, ambas de propriedade vitalícia do ancião Frank Pengelley, e a última vez que o capitão esteve em Dorset justo antes de zarparmos, o ancião Pengelley lhe disse que estava preocupado com o arrendamento se morresse antes do retorno do barco à Inglaterra, isto é, preocupado por sua família, pois era um arrendamento por duas gerações e ele já era a segunda. O muito filho de seu pai, se entende a que me refiro. - Bonden assentiu. Os arrendamentos por uma, duas ou três vidas não eram alheios ao canto da Inglaterra do qual provinha. - Bem, pois parece que quando o capitão subiu ao seu cavalo (aquele enorme saco de pulgas cinzento, lembra-se dele?) disse que se encarregaria do direito dos jovens Pengelley, pelo que o ancião Frank entendeu que se referia a seus filhos.
Mas quando o velho Frank morreu quando ainda não estávamos a um ano fora, a senhora entregou Weston ao seu filho mais velho William, e Alton Hill, com todos seus caminhos de gado, ao jovem Frank, sobrinho e apadrinhado do velho, deixando com as mãos vazias ao outro irmão, Caleb.

x
x
x

x
X

- Esse Caleb era um bêbado ocioso e inútil, que não servia para cuidar da terra. Ainda que tinha uma filha muito bonita.
- Sim. Mas quando voltamos para casa, resultou ser que o capitão se referiu aos filhos quando falou dos jovens Pengelley, assim que a senhora e ele tiveram umas palavras a respeito. Discutiram encarecidamente mais de uma vez. E também discutiram sobre outros mudanças que ela levara a cabo. Ao que parece morreu muita gente em Dorset durante o tempo que estivemos fora. - Killick titubeou, incapaz de distinguir a expressão de Bonden na escuridão, antes de continuar: - Sim, esse Caleb tinha uma filha preciosa que se chama Nan, e resulta que Nan é criada em Ashgrove. Conhece a Ned Hart, aquele que trabalha nosso jardim?
- Claro que sim. Claro que o conheço. Fomos companheiros de rancho. Perdeu um pé no velho Worcester.
- Pois bem, Ned e Nan pretendem se casar. E se Caleb puder obter esse arrendamento diz que cuidará deles. É por esse motivo que estou a par, porque Nan explica a
Ned o que Caleb pretende, e Ned me diz por eu ser próximo ao capitão.
- É verdade. Mas suponho que não brigariam por algo assim.
- Não. Mas uma coisa se somou à outra e cada vez discutiam mais. Diziam-se de tudo e mais. Recorda-se daquele pároco, Hinksey?
- Aquele cavalheiro que cortejou a senhorita Sophie faz tempo, o que jogava críquete?
- O própio. Pois bem, resultou ser que foi o pároco Hinksey que aconselhou o arrendamento e tudo o mais, todas as coisas pelas que discutiram. Ia a Ashgrove pelo menos uma vez por semana enquanto estivemos fora, foi o que Ned disse, e...

 

 

                                                                                                    Patrick O'brian

 

 

 

                                          Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades