As duras condições da vida em um barco durante o século XIX e a ilusão por descobrir a aventura em qualquer momento aparecem refletidas com uma força e rigor deslumbrantes.
E através das experiências, as conversações e as reflexões do capitão Jack Aubrey e o doutor e cirurgião Stephen Maturin.
XXXXXX
CAPÍTULO 1
A bruma se estendia pela entrada do Canal naquela feia noite. As nuvens corriam trepidantes, empurradas por um vendaval do noroeste que descarregava fortes chuvas.
Ouessant se encontrava em algum lugar pela amura de estibordo; as Scilly, a bombordo, mas não se via nem uma luz nem uma estrela. Não haviam feito uma só medição
já fazia quatro dias.
Dois barcos navegavam de conserva{1} rumo à Inglaterra. Um era a Surprise de Jack Aubrey, uma antiga fragata de vinte e oito canhões desativada fazia anos pela Armada,
que nesse momento servia como embarcação alugada por sua majestade, ainda que completava uma longa missão de caráter confidencial para o governo. O outro, o Berenice,
ao comando do capitão Heneage Dundas, era um navio de sua majestade de duas pontes e sessenta e quatro canhões, mais antigo mas menos usado que a Surprise. Navegavam
em companhia de seu barco de apetrechos, a Ringle, uma escuna americana da tipo conhecido como "clíper de Baltimore", que os acompanhara desde que se cruzaram ao
nordeste do cabo de Hornos, a uns cem graus de latitude ou seis mil milhas náuticas em linha reta (se as linhas retas têm algum sentido em uma travessia inteiramente
governada pelo vento), a Surprise proveniente do Peru e da costa chilena, e o navio de sua majestade, de Nova Gales do Sul. O Berenice havia encontrado a Surprise
muito maltratada depois desta sofrer um encontrão com uma fragata americana fortemente armada, e, sobretudo, por ter sido atingida por raio que destroçou seu mastro
maior e, o que é ainda pior, havia privado a embarcação de seu governo. Os dois capitães se conheciam desde que eram meninos, serviram juntos como guardas-marinhas
e tenentes, e portanto eram, sem dúvida, velhos companheiros de rancho e amigos íntimos. O Berenice proporcionara à Surprise vergas, cabos, apetrechos e um estupendo
e eficiente leme de Pakenham, construído com mastaréus de reserva; e as tripulações de ambos os barcos, a pesar da tensão inicial fruto da posição irregular da Surprise,
tinham se dado muito bem depois de celebrarem duas apaixonadas partidas de críquete na ilha Ascenção, onde se encaixou um leme mais apropriado. Também tinham se
trocado muitas visitas quando os três permaneceram nas zonas das calmarias equatoriais, com as velas golpeando durante quinze dias, balançando em um calor tão sufocante
que inclusive o breu, fundido, gotejava das vergas. Apesar de ter resultado uma viagem muito longa, não podia ter sido mais sociável, sobretudo porque a Surprise
teve oportunidade de tirar o espinho da injusta diferença existente entre quem dá e quem recebe, ao proporcionar um cirurgião ao Berenice, que estava em falta na
tripulação, pois perdera o seu (junto com seu único ajudante) quando o bote no qual navegavam virou a apenas dez jardas do barco. Nenhum deles sabia nadar, e se
agarraram um ao outro com fatídica energia, de modo que sua dotação, lamentavelmente minguada pela sífilis de Sidney e o escorbuto do cabo de Hornos, ficou a cargo
de um assistente que não sabia ler nem escrever, mas que compensava esta carência com sua audácia. Enfim, não só lhe proporcionaram um simples cirurgião naval munido
com pouco mais que um certificado emitido pela Junta de Enfermos e Feridos, mas também um médico veterano na pessoa de Stephen Maturin, autor de uma obra de referência
sobre as doenças dos marinheiros, membro da Royal Society, doutorado em Paris e Dublim, cavalheiro que conhecia à perfeição o latim e o grego (conhecimento que constituia
um alívio tremendo para seus pacientes), amigo pessoal do capitão Aubrey e, ainda que somente alguns poucos soubessem, um dos mais apreciados conselheiros do Almirantado
- e, portanto, do Ministério - em assuntos relacionados com a Espanha e a zona da América ocupada pelos espanhóis. Em resumo, um agente da Inteligência, ainda que
fosse voluntário e totalmente independente.
Mas um cirurgião, por mais que dispusesse de cabine própia e de uma bengala com empunhadura de ouro, por mais que o própio príncipe William, duque de Clarence, tivesse
solicitado seus serviços, era apenas um cirurgião, afinal de contas, e não precisamente um mastro maior, e muito menos um leme. Podia manter com vida à tripulação
e aliviar seus males, mas não podia empurrar nem governar o barco. Os da Surprise tinham portanto todo o motivo do mundo para sentir uma gratidão sem comparação
pelos marinheiros do Berenice e, com conheciam a diferença entre o que está bem e o que está mal no mar, cumpriram com acréscimo com seu agradecimento quando atravessaram
por zonas sucessivamente frias, temperadas e tórridas e, dali, ao simplesmente úmido e desagradável clima que lhes aguardava em casa. Contudo, nada no mundo lhes
teria feito estimar ao Berenice pelo que era.
A dotação da Ringle compartia seus sentimentos sem reservas. Tanto a fragata como a escuna eram barcos extraordinariamente navegáveis, rápidas, capazes de navegar
muito bem de bolina - a escuna inclusive melhor que a fragata, - e podia dizer-se de ambas que eram alheias ao abatimento, enquanto que o pesado e poderoso navio
de duas pontes era como um verme trepado a um cesto da gávea. Tinha se saído bastante bem ao receber o vento pelo través, ainda que navegasse melhor quando o recebia
justo pela alheta, mas ao recebê-lo além deste ponto sua dotação trocara olhares de inquietação. Finalmente, as alas e as rastreiras não puderam agüentar por mais
tempo e, quando o barco se aproximou do olho do vento, as bolinas pontearam retesadas, e compreendeu-se que, apesar de todo seu empenho, não poderia se aproximar
a seis quartas do vento nem impedir que caísse para sotavento de forma lamentável, igual a um caranguejo bêbado.
O Berenice se vira empurrado a comportar-se dessa forma tão lamentável durante dias, desde que, graças a uma acertada observação, tinham determinado que já podiam
pôr mãos à obra e pintar o barco, forrar os cabos com breu e polir tudo aquilo que fosse susceptível de brilhar, com vistas a picar a sonda totalmente preparados
para chegar à Inglaterra com esplendor. Contudo, ao longo dos últimos dias, o vento teimara no contrário e, ainda que a Surprise - para não mencionar a escuna -
pôde vencê-lo sobradamente barlaventeando um bom trecho, tiveram que atrasar-se devido a seu companheiro, tão pouco navegável. Haviam adentrado naquela noite feia,
naquela condenada e maldita noite, com a obra morta recém pintada arruinada pela espuma do mar, quando a essa altura já podiam estar perfeitamente bebendo todo o
devido ao estar em terra; ou, pelo menos, era isso que pensavam os marinheiros da Surprise, pois eram de Shelmerston, uma pequena povoação muito mais próxima que
Portsmouth, porto onde o Berenice fundearia.
Aquele era o sentimento que se estendera até o mais elevado, sobretudo no castelo de popa da Surprise, onde uma lufada de vento inusualmente violenta cortara a maré
ao repontar e havia empapado a todos os que estavam ali. Sob o convés, na cabine, os dois capitães permaneceram inalteráveis quando o Berenice se abateu indeciso
com as maiores e gáveas, carregando um monte de água e caindo para sotavento com sua torpeza habitual, enquanto que a Surprise mantinha sua posição exata a popa,
sem necessidade de nada mais que as gáveas duplamente rizadas e a bujarrona meio solta, e a Ringle, inclusive menos que isso. Ambos os capitães sabiam que os marinheiros
faziam todo o possível, e uma longa carreira profissional não só lhes havia mostrado a aceitar o inevitável, como a não se irritar por isso. Muito antes de fazer
as medições com a sonda, Heneage Dundas tinha sugerido que a Surprise não devia levar em conta o costume naval e se separar de seu barco, avaçar e navegar com toda
a rápidez que quisesse.
- Não estamos com pressa - replicou Jack enrugando o cenho. Um barco que levasse despachos de guerra estaria desculpado de guardar as formas e mostrar-se educado
nesse aspecto. Inclusive teria se proibido de demorar um só minuto. E assim ficou a coisa. Naquele momento, depois de que Dundas comesse e jantasse a bordo da fragata,
permaneciam sentados frente a uma senhora jarra cheia de vinho de vinho do porto, atentos pela metade aos golpes pouco fortes do mar primeiro na amura de bombordo
e, mais tarde, na de estibordo, depois que o barco virara para empreender outra bordejada. A lâmparina que pendia dos vaus se sacudia sobre a arca grande, iluminando
de forma intermitente um tabuleiro de gamão apto para o alto mar, no qual as fichas se fixavam com pinos de madeira, e que portanto ainda conservava a posição da
provável vitória de Jack Aubrey.
- Vai ganhá-la - disse Dundas antes de esvaziar o copo. - Será sua com todos seus apetrechos e sua amarração.
- Que amável de sua parte, Hen - disse Jack. - Obrigado de todo coração.
- Mas escute o que lhe digo, Jack: tem uma sorte endemoninhada. Não tem direito nem de salvar a pele.
- Devo admitir que foi muito concorrida - admitiu Jack com modéstia; então, depois de uma pausa, riu e disse: - Recordo-me de ouvir-lhe dizer essas mesmas palavras
no velho Bellerophon, antes da batalha.
- Foi mesmo - exclamou Dundas. - Foi mesmo. Meu Deus, passou muito tempo desde então.
- Ainda conservo o sinal - disse Jack. E ao descobrir seu moreno antebraço mostrou uma comprida e pálida cicatriz.
- Que lembranças - disse Dundas, e entre ambos, enquanto apuravam o vinho do porto, recordaram aquela história e todos os minuciosos detalhes que afloravam a sua
memória. Haviam se entretido com o mesmo jogo quando jovens, quando serviram sob o comando do condestável no navio de setenta e quatro canhões Bellerophon, destacado
nas Índias Orientais. Jack também ganhara naquela ocasião graças a sua infernal sorte, mas Dundas exigiu que lhe desse a revanche e voltou a perder, de novo devido
a um duplo seis. Trocaram-se palavras inconvenientes, como trapaceiro, farsante, sodomita, tonto e condenado marinheiro recruta. E como golpear-se a soco limpo subidos
na arca grande (a forma habitual de resolver tais desacordos na maioria de barcos) estava estritamente proibido a bordo do Bellerophon, combinou-se que, por não
poder tolerar de jeito nenhum semelhante linguagem entre cavalheiros, teriam que bater-se em duelo. Durante a guarda da tarde, o imediato, para quem um convés esfregado
cuidadosamente com pedra arenito constituia a maior felicidade, descobriu que o barco estava a ponto de ficar sem elas e despachou ao senhor Aubrey, a bordo do cúter
azul, para buscá-la em uma ilha na qual convergiam duas correntes e onde o grão não só era excelente, como também mais regular. O senhor Dundas o acompanhou, levando
consigo dois alfanjes recém afiados envolvidos em lonita, e quando enviaram os marinheiros que desembarcaram com eles para trabalhar com as pás, ambos se retiraram
para o amparo de uma duna, desenbrulharam o fardo, cumprimentaram-se com toda a seriedade possível e arremeteram um contra o outro. Meia dúzia de passes, o entrechocar-se
do aço, e quando Jack gritou "Mas o que você fez, Hen?" Dundas observou fixamente o sangue que brotava a jorro limpo, começou a chorar e fez em farrapos sua própia
camisa para vendar a ferida tão bem como pôde. Ao voltar a bordo do desgraçado e ocioso Bellerophon, este estava por sorte a mercê de um mar calmo. Suas explicações,
que diferiam muito entre si e que em ambos os casos eram tão pouco convincentes que ninguém pôde acreditá-las, foram desconsideradas e seu capitão surrou com severidade
seus traseiros desnudos.
- Como uivamos - lembrou Dundas. - Seus uivos eram mais agudos que os meus - disse Jack. - Muito parecidos aos de uma hiena.
Fazia um bom momento que Killick, o despenseiro do capitão, havia se retirado, de modo que Jack se serviu de um pouco mais de vinho do porto. Depois de beber durante
um momento, percebeu que curiosamente Dundas estava cada vez mais silencioso.
Ouviram-se no convés as ordens e o apito do contramestre, e a Surprise virou por avante para receber o vento pelo lado de estibordo, suave como a seda, sem contar
com mais marinheiros que os que estavam de guarda.
- Jack - disse finalmente Dundas, em um Tom de voz que aquele já ouvira antes, - talvez este lhe pareça um momento inapropiado, pois aqui estou derramando seu precioso
vinho... O caso é que mencionou que fez algumas estupendas presas no Pacífico.
- Isso mesmo. Como bem saberá, solicitaram que atuássemos na qualidade de navio de corso, e como não podia desobedecer minhas ordens, não só capturamos alguns baleeiros
que vendemos na costa, como também um estupendo barco pirata, carregado até o topo com tudo o que havia roubado de uma vintena de barcos, ainda que talvez fossem
duas vintenas.
- Enfim, vou dizer do que se trata, Jack. A areia da ampulheta se consome, e me atreveria a dizer que já percebeu isso. - Jack assentiu, observando penalizado o
atordoamento que se desenhava no rosto de seu amigo. - Quer dizer, é muito provável que o tempo aclare e o vento role para o oeste e mesmo para o sudoeste. Amanhã
ou depois de amanhã navegaremos águas acima pelo Canal, e depois teremos que nos separar. Você rumará para Shelmerston e eu irei direto para Pompey{2}. - Tudo isto,
ainda que fosse sumamente verdade, exigia toda a concentração que um fosse capaz se pretendesse que tivesse sentido, mas Dundas parecia incapaz de seguir adiante.
Baixou a cabeça, gesto digno de lástima tratando-se de um comandante tão distinto.
- Talvez leve a bordo uma moça que preferiria desembarcar em outro lugar - aventurou Jack.
- Não, desta vez não - disse Dundas. - Não. Jack, o assunto é que assim que o Berenice sinalize seu número mediante as bandeiras e se saiba em Portsmouth que está
ao alcance da mão, os aguazis sairão de suas tocas para prender-me assim que ponha um pé em terra. Prender-me-ão por minhas dívidas e me conduzirão à prisão de devedores.
Suponho que não poderia emprestar-me mil guinéus, verdade? É uma autêntica fortuna, eu sei, e me envergonha ter que lhe pedir.
- Certamente que sim. Como já lhe disse, sou assombrosamente rico, tanto que alguns me chamam de Creso. Mas mil guinéus será suficiente? A quanto ascende a dívida?
Seria uma lástima perder seu barco por...
- Oh, será mais que suficiente, eu lhe aseguro, e não sabe quanto lhe agradeço, Jack. Neste momento não me atrevo a tratar este assunto com Melville. Seria distinto
se me apreciasse tanto como lhe aprecia, mas da última vez que me acompanhou à saída me acusou de ser um maldito mexeriqueiro de segunda, e me condenou a essa vil
viagem a Nova Holanda a bordo do Berenice. - O irmão mais velho de Heneage, lorde Melville, estava ao comando do Almirantado, de modo que podia fazer tais coisas.
- Não. A sentença exige um pagamento de quinhentas e pouco. Lamento dizer que se trata da mesma jovem, ou melhor do infame de seu procurador. Mas mesmo assim, pese
a sentença e a influência a que possam recorrer, estou seguro de que mil guinéus cobrirão folgadamente a multa.
Falaram durante um tempo sobre as prisões por dívidas, os aguazis, as prisões onde se encerrava os caloteiros e coisas similares com um conhecimento profundo e íntimo
do tema, e ao cabo de um tempo Jack admitiu que bastaria um milhar de guinéus para livrar seu amigo do apuro, até que pudesse receber o pagamento que lhe deviam
já fazia tempo e visitar ao agente que se encarregava de administrar suas propriedades na Escócia. Com um navio tão lento, pouco navegável e desafortunado como o
Berenice não havia possibilidade alguma de obter dinheiro de butim, sobretudo tendo em conta aquela travessia tão pouco promissora que já estava em seu fim.
- Como me deixa feliz, Jack - disse Dundas. - Quando desembarque, com uma letra de crédito de Hoares, pois recordo perfeitamente que tem o dinheiro em Hoares, será
para mim como o escudo de Ayax.
- Nada como o ouro para satisfazer a um procurador.
- Jamais o ouvi dizer nada mais acertado, querido Jack. Porém, ainda que tivesse ouro (não me dirá que tem ouro de verdade, Jack, ouro inglês?), levaria horas para
contar mil guinéus.
- Pelo amor de Deus, Hen. Tom, Adams e eu passamos toda esta manhã e boa parte da tarde contando e pesando moedas como uma corja de agiotas, enchendo as bolsas para
quando façamos a divisão final depois de jogar a âncora em Shelmerston. O doutor também colaborou, mordendo alguma moeda ou outra das pilhas que fazíamos e marcando
todas as moedas antigas, pois acho que havia algumas de Júlio César e Nabucodonosor, e também apertou contra seu peito uma moeda irlandesa chamada "pistola de Inchiquin",
rindo comprazido, mas nos fez perder a conta e me vi obrigado a rogar-lhe que fosse tomar vento fresco, longe, muito longe. Quando se foi selecionamos e contamos,
selecionamos, contamos e pesamos, e conseguimos terminar antes da hora do jantar. Essas enormes bolsas que vê aí à esquerda do caixote de câmara, na janela de popa,
contêm cada uma um milhar de guinéus. São parte do butim do barco; as bolsas menores contêm mohures, ducados, luises de ouro, joes, e toda sorte de ouro estrangeiro
por um valor total de quinhentas cada uma; e as arcas grandes dispostas ao longo do costado e abaixo, no paiol do pão, contêm sacas de cem com prata, também ao peso.
Há tanto dinheiro a bordo que o barco sofre um bom emborno a popa, e me alegrarei muito quando tenha conseguido pô-lo em um bom lugar seguro. Pegue um dos de mil
guinéus da esquerda. Posso conseguir a soma em um momento se faltar; além disso, em prata lhe pesaria muito para levá-la pelas ladeiras.
- Que Deus lhe bendiga, Jack - agradeceu Dundas, sopesando a bolsa na mão. - Eu diria que pesa mais de catorze libras, ah, ah, ah! - E entre seus risos pôde se ouvir
o soar das quatro badaladas, quatro badaladas da guarda de prima. A elas seguiu de imediato a troca de ordens e demais gritos distantes no convés. Contudo, não eram
os ruídos de rotina que precediam à virada, de modo que os capitães aguçaram o ouvido, coisa que Heneage fez com a bolsa na mão, como se estivesse a ponto de servir
o pudim de Natal. Pouco depois, um guarda-marinha empapado até os ossos e com um sóbraço irrompeu na cabine e informou aos gritos:
- Rogo que me perdoe, senhor, mas o senhor Wilkins deseja que lhe transmita suas saldações e que lhe informe de que há um barco a umas duas milhas a barlavento,
um setenta e quatro canhões conforme sua opinião, um navio de dois conveses em todo caso; diz que não lhe agradou como respondeu ao sinal de inteligência.
- Obrigado, senhor Reade - disse Jack. - Subirei imediatamente ao convés.
- Seria tão amável de despertar à dotação de minha falua? - pediu Dundas ao tempo que guardava a bolsa na camisa, para depois abotoar o colete que a cobria. Quando
Reade desapareceu correndo, acrescentou: - Muito obrigado, Jack. Devo voltar ao meu barco. Arrebate a Surprise e passe a popa do Berenice até situar-se a sotavento
- ordenou, pois era o capitão de mais antiguidade, - que por mais desfalcado de dotação que esteja meu navio, acho que juntos podemos enfretar qualquer setenta e
quatro canhões que esteja flutuando.
Fora, no frio e úmido castelo de popa, o olhar de Jack se acostumou à relativa escuridão enquanto Dundas subia com torpeza à falua que içavam do pescante, sem afastar
a mão de seu estômago. Escuridão relativa, já que pelo momento uma lua velha e encurvada expelia luz suficiente para que, apesar das nuvens baixas, pudesse se distinguir
um borrão branco a barlavento, borrão que se converteu, ao observá-lo através do luneta, em um barco com gáveas, maiores e uma fila dupla de portalós iluminadas.
Contudo, foi o sinal que empregava o que mais chamou sua atenção, pois este não coincidia com a resposta ao sinal de inteligência que distinguia um barco aliado
de um inimigo: era formada por uma réstia de três lanternas acesas e a luz situada no alto pestanejava de forma constante. Mas as luzes deviam ser quatro e não três.
- Respondi "Não compreendemos seu sinal", senhor - informou Wilkins, - mas se mantém em seus três.
- Apite para preparativos de combate e largue trapo para fechar sobre o Berenice - disse ao tempo que assentia.
- Todos ao convés e apite para preparativo de combate - rugiu Wilkins ao segundo do contramestre, que estava despistado. - Aí de proa, ô de proa! Largar o estai
do trinquete e marear essa bujarrona!
A Surprise contava com uma dotação muito disciplinada. Participara de muitos combates no mar, e não por isso se descuidara da prática e adestramento dos homens em
todo tipo de contingências; em poucos minutos, podia passar de um barco em calma, onde três quartos do contingente cochilavam, para um barco em pé de guerra, iluminado
até os topes e com as bocas dos canhões para fora das portalós, as macas colocadas nos anteparos, o paiol de pólvora aberto e protegido com anteparos adicionais,
e todos e cada um dos homens em sua posição designada, junto ao restante de seus companheiros, dispostos a travar batalha ao comando de seu capitão. Mas não podiam
fazê-lo em silêncio, e o redobre do tambor, o estrondo abafado de quatrocentos pés e o chiado das rodas de carreta despertaram Stephen Maturin do sono profundo e
promissor em que se achava.
Havia se despedido de Jack e Dundas bastante cedo ao sentir-se um estorvo no fluxo de suas recordações. Em qualquer caso, os relatos tão detalhados da guerra naval
lhe afundavam em um mar de lágrimas ao cabo de uma hora. Fizeram os brindes correspondentes ao sábado pelas esposas e amantes, e Dundas, tão educado como sempre,
havia proposto um especial por Sophie e Diana com a taça cheia até a borda, que beberam de um só gole. Stephen, uma criatura abstêmia e exígua que apenas pesava
cento e vinte e seis libras, excedera em muito sua dose habitual de dois ou três copos e, ainda que desde o início pretendia retirar-se para a cabine situada na
coberta dos alojamentos, que raras vezes usava para dormir e à qual tinha direito por ser o cirurgião de a bordo, acabou na espaçosa e ventilada cabine que costumava
compartir com Jack, depois de fazer as rondas de rigor pela enfermaria. Estava disposto a ler, mas o vinho, que não o embebedara, mas afetara até certo ponto sua
capacidade de concentração, e como o livro que lia, Exame de Pyrrhonisme, de Clousaz, requeria de mais atenção, teve que largá-lo ao finalizar um capítulo, consciente
de que não tinha entendido nada do que se dizia no último parágrafo. Deitou-se na maca e, em um abrir e fechar de olhos, seu pensamento parou em sua esposa e filha.
A primeira era uma jovem chamada Diana que tinha o cabelo negro e os olhos azuis, esplêndida amazona. A segunda, Brigid, a menina de que tanto sentia saudade mas
a quem ainda não conhecia. Este sonho era muito normal nele, e não requeria em absoluto a menor concentração, muito pelo contrário, pois consistia em uma série de
imagens, amiúde imprecisas, amiúde intensamente vívidas, de conversações, reais ou imaginárias, e de um senso indefinido da felicidade presente. Contudo, essa noite,
pela primeira vez em toda a travessia - nada mais e nada menos que uma circunavegação completa, por não mencionar o sucedido em terra, que foi muito, - havia uma
sutil diferença, uma mudança de tonalidade. Informara-se que em qualquer momento podiam "picar a sonda", expressão que tinha um ar arrepiante, algo afastado de seu
significado. O fato em si transformava a imprecisão do que estava por vir em um presente quase imediato. A partir desse momento não era tanto questão de balançar-se
em braços de uma felicidade pretérita, mas de refletir sobre a realidade que enfrentaria em questão de alguns dias, ou mesmo menos se soprasse um vento favorável.
Certamente esperava com uma impaciência que jamais sentira o momento de reencontrar-se com Diana e conhecer a Brigid, e assim fora já fazia milhares e milhares de
milhas. Mas agora sua ansiedade se via embaçada por um receio que era incapaz de nomear, ou pelo menos não queria fazê-lo. Estavam separados desde que empreendeu
aquela viagem tão comprida. Soubera do nascimento de sua filha e de que Diana comprara Barham Down, uma mansão grande e afastada com excelentes estábulos, bons pastos,
terreno de sobra para galopar e generosas extensões de campo para os cavalos árabes que ela queria criar; mas além disso, praticamente não sabia de nada mais.
Passaram-se anos inteiros, e os anos têm má fama. Alguns versos de Horácio afloraram em sua mente:
Singula de nobis anni praedantur euntes;
eripuere iocos, venerem, convivia, ludum...
E por um instante quis dar uma tradução tolerável em inglês:
O passar dos anos nos privam de nosso deleite,
do alvoroço e do amor carnal, primeiro de um
e depois de outro, do jogo, do festejo...
Mas não lhe convenceram nem um pouco e abandonou a intenção.
De qualquer maneira a situação não era tão desesperada, pois ainda que Vênus pudesse ser um planeta distante e sua luz mortiça, ele ainda desfrutava de uma refeição
alegre em companhia de seus amigos e de uma partida encarniçada de uíste ou cinquillo{3}. Certamente que mudara de certa forma, disso não cabia a menor dúvida. Por
exemplo, cada vez estava mais convencido de que o estudo apropriado do gênero humano dependia do estudo do homem em si e não da atenta observação de coleópteros
ou aves.
Mudara, sim, e provavelmente mais do que podia imaginar. Era inevitável. Como encontraria a Diana? Como se comportariam um com o outro? Ela havia se casado com ele
sobretudo por amizade (ela gostava muito dele), talvez, de algum modo, por compaixão, posto que ele a amava já fazia muito tempo. Ele não era dessa tipo de pessoas
a que se agrada olhar e, de um ponto de vista físico, nunca fora um grande amante, fator este ao qual haviam contribuído anos de vício em ópio, que não fumava nem
ingeria, mas que costumava beber em forma de uma tintura alcoólica de láudano até alcançar doses heróicas, tudo isso para aplacar o desespero que o invadia ao pensar
em Diana. Esta, por outro lado, não havia chegado a tomar nem sequer um dracma, nem um escrúpulo de ópio, nem nenhuma outra coisa que pudesse diminuir seu temperamento
ardente por natureza.
A medida que avançava a noite chegou a preocupar-se com o passado e ofuturo, como costuma suceder a quem permanece às escuras, carente de vitalidade e coragem. Minguadas
sua capacidade de raciocínio e o senso comum, amiúde se consolava pensando na existência de Brigid, laço de união entre ambos. Outras vezes se dizia que pensar em
Diana como mãe era completamente absurdo, e ansiava dispor de sua velha amiga a tintura para relaxar o tormento ao que submetia a sua mente. Dispunha de uma alternativa
nas folhas da coca, muito apreciadas no Peru pela pausada euforia que produziam ao mastigá-las, mas tinham a desvantagem de tirar o sono, e o sono era, dentre todas
as coisas, aquilo que mais ansiava no mundo.
De algum modo, em algum momento, deve tê-lo alcançado, posto que o eco do tambor que tocava para os preparativos de combate o arrancou das profundidades. Em muitos
aspectos seguia sendo um homem do interior apesar dos anos que passara no mar; ainda que se podiam observar certas características navais nele, quase todas guardavam
relação com as funções que desempenhava na qualidade de cirurgião naval. Mesmo antes de que sua mente fosse plenamente consciente da situação, suas pernas o levaram
a toda pressa para seu posto na enfermaria, situada abaixo, à direita da popa, na coberta dos alojamentos. De um lugar frio, úmido e asfixiante, um buraco triangular
e fétido, convertera-se em uma enfermaria em toda regra, de modo que apenas teve que pôr um avental para ficar pronto para desempenhar seu trabalho. Ao chegar ali
encontrou seu assistente, um homem originário de Munster, forte, grande e praticamente monolíngüe, chamado Padeen, que nesse momento juntava duas arcas grandes sob
uma lanterna para que fizessem as vezes de mesa de operações.
- Que Deus e a Virgem Maria estejam contigo, Padeen - cumprimentou em gaélico.
- Que Deus, a Virgem Maria e são Patrício estejam com o senhor, senhoria - respondeu Padeen. - O senhor acredita que haverá combate?
- Sabe Deus. Como se encontram Williams e Ellis?
Referia-se a dois pacientes que ocupavam suas macas a estibordo da enfermaria, a quem Padeen havia vigiado toda a noite. Ao que parece, haviam brigado, armados com
balas de ferro maciço que pegavam com pinçotes para fazê-las arder ao vermelho vivo e afundá-las depois em cubas de piche ou breu, de modo que a substância se fundisse
sem risco de provocar um incêndio.
- Agora estão sóbrios, senhor. E arrependidos, pobres criaturas.
- Após prepararmos tudo irei dar um espiada - disse Stephen enquanto preparava as serras, bisturis, ligaduras e torniquetes. Fabien, seu ajudante, chegou à enfermaria
disposto a pôr as mãos na massa, seguido por duas meninas, Emily e Sarah, que a julgar por seu aspecto ainda seguiam adormecidas e cuja pele teria o tom rosáceo
própio do sono se não fossem tão negras. Encontraram-nas fazia muito em uma ilha de Melanésia, cujos habitantes tinham morrido vítimas de uma praga de varíola levada
por um baleeiro que ia de passagem. Dado que então estavam muito enfermas e famintas para cuidar de si mesmas no ossuário que tinham por povoado, Stephen levou-as
para o barco. Não presenciavam a horrível cirurgia que em ocasiões se via obrigado a praticar, mas sim a destreza de suas pequenas e delicadas mãos na hora de vendar.
Encarregavam-se daqueles a quem acabavam de intervir e dos convalescentes; também eram muito úteis ao doutor Maturin durante suas freqüentes dissecações de animais,
pois não se melindradas nem um pouco diante disso. Esqueceram completamente o idioma da ilha Sweeting, salvo quando contavam em voz alta ao saltar, e, conforme a
situação o requeresse, falavam um perfeito inglês carente de juramentos e maldições quando estavam no castelo de popa, ou uma versão mais mundana e empática para
quando tratavam com os marinheiros.
Todos dispuseram o material que poderiam necessitar durante e depois de um combate: linhas, bandagem, ripas, e também o instrumental puramente cirúrgico, como por
exemplo retratores, bisturis, lancetas e suas inflexíveis companheiras, as mordaças e as amarras forradas de couro. Quando tudo isto estava preparado em sua devida
ordem, o mais essencial à mão do cirurgião e este enfronhado em seu avental, relaxaram e prestaram toda a atenção do mundo ao que podia estar ocorrendo no convés,
tentando apreender algum som que pudesse permitir-lhes saber o que sucedia apesar do estrondo da água ao golpear contra os lados do barco, da voz do redemoinho ao
partir a barlavento do leme e da reverberação da tensa exárcia transmitida pelo própio casco. Mas não ouviram nada, e diminuiu a sensação de urgência que sentiam.
As meninas se sentaram na coberta, longe do intenso anel de luz que a lanterna expelia, para jogar em silêncio um jogo no qual uma mão podia simbolizar uma folha
de papel, uma pedra ou uma tesoura. Stephen se aproximou da cabine contígua para visitar seus pacientes, a quem perguntou como se achavam.
- Às mil maravilhas, senhor - responderam antes de agradecer-lhe de todo coração.
- Alegra-me muito ouvir isso - disse. - Ainda que tenham sofrido duas fraturas limpas e tido muita sorte ao serem imobilizados imediatamente, passará um tempo antes
de que possam subir na exárcia ou bailar sobre a grama, se é que chegaremos ao porto, que Deus o queira.
- Amém, amém, senhor - responderam em uníssono.
- Mas como chegaram a ser tão imprudentes e irrefletidos a ponte de se golpearem mutuamente com essas condenadas balas com pinçotes?
- Foi por diversão, senhor, como fazemos amiúde, e não pretendiamos nos machucar. Um tem que atacar e o outro se esquivar, e vamos nos revezando.
- Jamais tinha ouvido falar de prática tão terrível em todos os anos que estou no mar.
Os pacientes estavam dóceis como cordeiros e evitaram trocar olhares. Foi Ellis quem disse:
- Tudo depende do barco, senhor. Nós costumávamos jogar amiúde no Agamenon; e meu pai, que fazia parte da brigada do carpinteiro no velho George, tinha uma conta
pendente (coisa séria) com um do castelo de proa que o havia chamado de...
- Que o havia chamado de que?
- Preferiria não dizê-lo, senhor.
- Murmure-me ao ouvido - disse Stephen ao mesmo tempo que se inclinava até sua altura.
- "Ninfa", senhor... - sussurrou Ellis.
- Verdade que fez isso, o muito cachorro? E como terminou o caso?
- Verá, senhor, iam se enfrentar com as balas agarradas aos pinçotes, como lhe disse, e é que todo o castelo de proa estava de acordo em que era o mais correto,
e meu pai lhe deu tal surra que tiveram que amputar-lhe a perna nessa mesma noite porque foi feita em pedassos. Mas ao final o percalço resultou toda uma benção
para aquele pobre sodomita. Ao ter só uma perna, seu capitão, o honorável Byron, que sempre foi amável com seus homens, obteve para ele um nomeação de cozinheiro,
e viveu até que um dia se afogou na costa de Coromandel.
- Senhor - gritou Reade no dintel da porta, com um pote de café na mão, pote que cobria com um tecido, - o capitão lhe envia isto com seus cumprimentos, para alegrar
seu ânimo e compensar os incômodos. Afinal de contas, não haverá combate. O navio a barlavento resultou ser o Thunderer, de setenta e quatro canhões. Cingiu ao vento
ao não gostar de nosso aspecto e, ao fazê-lo, alguns dos oficiais mais brilhantes que o governam, refiro-me aos que são incapazes de contar além de três, colocaram
esse sinal falso, o que faltava uma lanterna.
- Não deveriam açoitá-los a bordo de todos e de cada um dos barcos da frota?
- Temo que não, senhor. Dizem que têm mais antiguidade que nós, o que é verdade. Lamentam todas as inconveniências que tenham nos causado e requerem a presença do
capitão Dundas, do capitão Aubrey e do doutor Maturin para tomar o café da manhã a bordo. Meu Deus, senhor, não gostaria de estar na pele do tenente encarregado
dos sinais, a quem com toda segurança não ascenderão em breve ao cargo de almirante.
A maioria dos sinais que se trocaram, e dos que Reade informou, foram decifrados com dificuldade, e em qualquer caso, devido a uma densa chuva a inteligência se
transmitiu lenta e laboriosamente mediante o uso de lanternas dispostas de formas diversas. Contudo, o convite para desjejuar sim resultou ser certo, pois se repetiu
com as primeiras luzes do amanhecer mediante as bandeiras, e inclusive um guarda-marinha empapado até os ossos se aproximou em um bote para repeti-la. Os capitães,
acompanhados pelo doutor Maturin, chegaram no barco justo antes de dar as oito badaladas da guarda da manhã, famintos, gelados, molhados e indignados.
Seu anfitrião, um homem mais velho chamado Fellowes, corria mais perigo que Reade quanto à possibilidade de que o ascendessem ao cargo de almirante, pois seu nome
figurava entre os primeiros da lista de capitães de navio, de tal forma que a fornada seguinte de almirantes que veriam seu nome escrito na lista de oficiais da
Armada provavelmente o incluísse na qualidade de contra-almirante da esquadra azul, a menos que por alguma terrível desgraça o destinassem à amarela, que não pertenecia
a nenhuma esquadra em concreto e, portanto, sem comando. Contudo, cabia a possibilidade de que se desse tão inominável desventura, afinal de contas. O desgraçado
tenente de sinais do Thunderer, que agora estava confinado em sua cabine, despertara uma ira perfeitamente justificada nas pessoas de dois eminentes cavalheiros:
em primeiro lugar, o filho de um antigo primeiro lorde do Almirantado e irmão do atual ocupante de tão temida agência. Em segundo lugar, na pessoa de um conservador,
membro do parlamento por Milport. Talvez o capitão Aubrey não representasse mais que a um punhado de burgueses, todos eles arrendatários das terras de seu primo
(era uma cadeira familiar), mas seu voto na Câmara contava tanto como o de qualquer outro membro do país. A ira de qualquer um destes cavalheiros bastaria para tingir
de amarelo uma ascensão ao cargo de almirante. E também estava esse tal doutor Maturin, por quem havia perguntado com curiosa insistência o oficial do Almirantado
que viajava rumo a Gibraltar a bordo do Thunderer. Não era o mesmo cavalheiro a quem se recorreu em uma ocasião para que visitasse ao príncipe William?
O capitão Fellowes recebeu seus convidados com toda a cordialidade do mundo, com desculpas, explicações e uma mesa disposta para o café da manhã atapetada com toda
a sorte de artigos de luxo que só um barco que partiu há alguns dias do porto podia oferecer: bifes de novilho, costeletas de cordeiro, bacon, ovos preparados de
formas variadas (ao ponto, crocantes ou torrados), champinhons, salsichas de porco, bolo de novilho e presunto, manteiga e leite frescos, uma creme se couber mais
fresco, chá e chocolate. Tudo menos o café que os paladares de Jack e Stephen tanto ansiavam.
- Suponho que não terá tido ocasião de desfrutar do exemplar mais recente do Proceedings of the Royal Society. Tenho um em minha cabine, recém saído da imprensa,
e creia-me se lhe digo que me encantaria mostrá-lo - disse o senhor Philips, o oficial de casaca negra do Almirantado que se sentava junto de Stephen. Este lhe agradeceu
muito e admitiu que seria um prazer, diante do que o senhor Philips acrescentou: - Permite-me servir-lhe um desses arenques defumados, senhor? São insolitamente
gordurosos.
- O senhor é muito amável, senhor - disse Stephen, - mas acho que deveria conter-me. Não fará mais que aumentar minha sede. - E em tom moderado e confidencial (de
fato, se conheciam o bastante bem como para falar dessa forma), acrescentou: - Não vão servir nem uma só gota de café?
- Espero que não seja assim - respondeu Philips, que em seguida perguntou ao despenseiro que passava ao seu lado.
- Oh, não, senhor. Oh, não. Neste barco se serve chocolate, senhor, ainda que se tolera o chá.
- O café relaxa os nervos - opinou em voz alta, carregada de autoridade, o cirurgião do Thunderer. - Pessoalmente recomendo o chocolate.
- Café? - exclamou o capitão Fellowes. - Quer café cavalheiro? Featherstonehaugh, vá correndo ver se pode encontrar café na câmara dos oficiais ou no camarote dos
guardas-marinhas.
- O café relaxa os nervos - repetiu o cirurgião, ainda mais alto. - É um fato científico.
- Talvez o doutor deseje relaxar-se - propôs o capitão Dundas. - Pelo menos eu o desejo, depois de ter passado toda a noite em claro.
- Senhor McAber - disse o capitão Fellowes, dirigindo-se ao imediato, sentado na outra ponta da mesa, - seja amável de ajudar a Featherstonehaugh em sua busca.
Mas por mais que se esforçaram não houve maneira de encontrar aquilo que não existia. Stephen se desfez em protestos: não tinham por que ter-se incomodado, não tinha
a menor importância, em outra ocasião (se Deus quiser) desfrutariam de um café... E finalmente assegurou que uma xícara de cerveja cairia muito bem com o salmão
em escabeche. E quando finalmente se concluiu o tão incômodo desjejum, foi até a cabine de Philips para folhear aquele novo volume do Proceedings.
- Como se encontra sir Joseph? - perguntou quando estavam sós, referindo-se ao seu amigo íntimo e superior hierárquico, além de chefe do Serviço de Inteligência
Naval.
- Fisicamente está bem - respondeu Philips, - e talvez um pouco mais forte que quando o viu pela última vez, mas também está muito preocupado. Não me atrevo a aventurar
qual pode ser a causa. O senhor sabe quão cloisonné são estes assuntos para nós, se me permite usar esta expressão.
- Nós na Armada utilizaríamos o termo "Mampareado" - observou Stephen.
- Mampareado? Obrigado, senhor, obrigado. É um termo muito mais adequado. Sem dúvida, esta carta servirá para aclarar-lhe as coisas - acrescentou tirando-a do bolso
interno da casaca.
- Fico-lhe sumamente agradecido - disse Stephen, que deu uma espiada no selo negro com a âncora encepada do Almirantado. - Agora, peço que me faça um relato detalhado
do sucedido desde o último mês de fevereiro, quando recebi um informe de Inteligência dos espanhóis.
Philips baixou o olhar, refletiu durante alguns instantes e disse:
- gostaria de poder lhe contar uma história mais agradável. Há progressos na Espanha, certamente, mas no restante dos países sofremos reveses diplomáticos. A onde
quer que Bonaparte vá encontra recursos em forma de aliados, homens, dinheiro, barcos e apetrechos navais, coisa que nós não conseguimos, ou só conseguimos algo
superando toda sorte de dificuldades. Enquanto nós estamos no limite de nossas forças, a ponto de ceder, ele parece indestrutível. O caso está tão espinhoso que
se se sai com a sua e consegue derrubar-nos de outro golpe, talvez tenhamos que submeter-nos a suas condições. "Permita-me falar da Europa, um país de cada vez..."
Falava do êxito dos agentes bonapartistas em Valaquia quando entrou um tenente para informar-lhes de que, quando o doutor estivesse com os capitães para embarcar
na falua do Berenice, seria dada a ordem para jogá-la ao mar. Ao que parece, estes já trocavam os cumprimentos de rigor a modo de despedida.
- E o vento está rolando - acrescentou o tenente. - Poderá subir a bordo sem empapar-se.
Talvez pudesse tê-lo feito, coisa difícil tendo em conta que tinha que descer aferrado a alguns cabos até o último degrau da escada do costado, e que a falua se
sacudiu até que o balanço jogou com o barco e o subiu com o mar, que nesta ocasião empapou o doutor até acima da cintura. Stephen chegou a bordo da Surprise molhado
até os ossos, como era de rigor. Também como era habitual, Killick - homem de rosto chupado, curtido e envelhecido, que também tinha um incrível humor de cachorro
por encarregar-se de cuidar tanto do capitão como do doutor, irrefletida parelha, além de suas roupas e extremidades - pegou-o e empurrou apressadamente para o interior
da cabine, gritando:
- Seus melhores calções! Além disso, seu único par de calções decentes. Tire também as cuecas, se é tão amável, senhor. Seque-se, não quererá se resfriar. E agora
dê-me isso e seque os pés também. Olhe quanto empapado está. Fique com esta toalha, que irei buscar algo razoavelmente seco. Pelo amor de Deus, onde está sua peruca?
- Está em meu peito, Killick - respondeu Stephen em tom conciliador. - Envolvi o relógio nela, e depois cobri a peruca com um lenço.
- A peruca no peito, a peruca no peito... - resmungou Killick enquanto recolhia a roupa molhada. - Pois não me parece disparatado.
- Há, Stephen, está aqui - disse Jack, que havia subido pelo costado muito mais rápido que seu cirurgião desde a cabine refeitório. - Você se...? - Então, ao recordar
que seu amigo não gostava que lhe perguntassem se havia se molhado, tossiu de propósito e seguiu dizendo em um tom alegre, incongruentemente alegre: -... se deu
conta do paupérrimo que foi o café da manhã? Que cerveja pequena tinham, e as costeletas de cordeiro eram pura gordura, e ademais servidas em bandeja fria. Uma bandeja
fria, pelo amor de Deus. Recordo-me de ter comido melhor em um barco holandês que se dedicava à pesca do arenque de frente ao Texel. E não trazia nem uma condenada
carta, nem uma nota, nem sequer a minuta do alfaiate. Mas não importa. O vento está rolando. Agora sopra do norte nordeste, e se rolar mais duas quartas, mais ou
menos, chegaremos na quarta-feira a Shelmerston pese a todos os esforços que o Berenice possa fazer para evitá-lo.
- Algum motivo em especial para ansiar o correio, irmão?
- Certamente que sim. Quando nos aproximamos de Fayal para a aguada, trocamos nosso número de identificação com o Weasel quando este franqueava a ponta com destino
à Inglaterra. Estava convencido de que informaria de nossa presença ao chegar ao porto, e esperava receber notícias. Mas não foi assim, nem uma só palavra, ainda
que Dundas tinha um senhor pacote. Um senhor pacote, ah, ah, ah! Oh, Deus, Stephen - continuou ao entrar por fim na cabine, sem que lhe impedisse o fato de encontrar
Maturin semi-nú, assim como a nudez tampouco havia suposto um impedimento para seus antepassados, encarnados em Adão, homem livre de pecado. - Mas peço que me perdoe.
Pelo visto lhe interrompi - disse ao ver pelo rabo do olho a carta que Stephen tinha na mão.
- Nada disso, meu amigo. Diga-me o que lhe faz tão feliz, apesar da decepção que teve.
Jack se sentou perto dele, e em um tom de voz que tinha por objeto evitar que Killick, a quem não escapava nada, pudesse ouvir o que dizia - vã esperança onde as
tivesse, - respondeu:
- A carta de Heneage incluía um passagem sobre mim que não podia ser mais amável. Dizia Melville que estava muito contente de saber que a Surprise estava a ponto
de entrar em águas costeiras, e que sempre me tivera por pessoa magnânima. Essas foram suas palavras, Stephen: "pessoa magnânima", e tudo por aceitar um comando
tão irregular, apesar do quão bem eu o usei, e que agora que tem a oportunidade de expressar sua opinião com respeito a meus méritos (meus méritos, Stephen, ouviu
isso?) aproveitará para oferecer-me uma esquadrilha que está reunindo, que partirá de cruzeiro diante das costas da África Ocidental com algumas corvetas muito marinheiras,
e talvez três fragatas e um par de navios de setenta e quatro canhões, para o caso de se produzir o que denominou "certas eventualidades". Nossa missão consistirá
em interceptar navios negreiros, coisa que lhe agradará, Stephen. Um comodoro de primeira classe, Stephen, com um galhardetão{4} de rabo de galo, um capitão sob
meu comando e um tenente de bandeira, não como naquela esforçada campanha que fizemos em Mauricio, quando tive que ascender por méritos própios fazendo de burro
de carga de segunda classe. Oh, ah, ah, ah, Stephen! Não tenho palavras para expressar o feliz que sou. Poderei encarregar-me de Tom, que de outra forma não voltaria
a ter um comando; esta é sua única oportunidade. E conforme parece não há pressa alguma. Desfrutaremos de um mês, talvez mais, para ficar em casa, o bastante para
que Sophie e Diana se encham de nós. Ah, ah! Primeiro Shelmerston, depois desembarcamos e, a seguir, pegamos o carro postal no Crown... Levarão uma pequena surpresa
em Ashgrove quando nos virem entrar pela porta! Suponho que deseja tomar um bom café, não?
- Com muito prazer. Jack, permita-me felicitar-lhe de todo coração por tão esplêndido comando - disse apertando sua mão, - mas com respeito a Shelmerston, verá,
escute, Jack - acrescentou Stephen, que apenas necessitara de uma espiada para decifrar a mensagem em código de sir Joseph, - tenho que aproximar-me da cidade sem
perder um minuto. Terei que esquecer-me de Shelmerston por enquanto e subir a bordo do Berenice. Não só porque vai para lá (enquanto que você teria que se desviar
para cobrir depois uma distância considerável), mas porque somente um bruto e um miserável seria capaz de desembarcar depois de semelhante ausência, beijar uma bochecha
ou duas e subir depois em um carro postal para desaparecer de novo. Contudo, em Plymouth poderei desembarcar sem passar por isso, já que ali não me espera nenhuma
bochecha a beijar.
Jack o olhou submisso, compreendeu que não poderia lhe fazer mudar de opinião e gritou:
- Killick! Vamos, Killick!
- E agora o que foi? - replicou Killick, que a julgar pela distância da qual soava sua voz se achava surpreendentemente perto.
- Acenda o fornilho e esquente uma panelinha de café. Ei, ouviu-me?
- Às ordens, senhor. Um panelinha de café.
De fato a ordem não lhe pegava de surpresa: o fervedor estava ao vermelho, e o grão recém moido. Ao cabo de alguns minutos apareceu o elegante pote refulgente, inundando
toda a cabine com o aroma que expelia. De todas as virtudes possíveis em um homem, Preserved Killick só possuía duas: extrair brilho da prataria e fazer o café.
Contudo, estas duas virtudes alcançavam tal perfeição em sua pessoa que, para quem gostava de ter a prataria brilhante e desfrutar de um café rápido, torrado como
poucos, bem moído e fervente a não poder mais, compensavam com acréscimo seus inumeráveis vícios.
levaram as xícaras para a cabine refeitório e se sentaram em um banco acolchoado (composto, de fato, por alguns baús alinhados) que percorria a popa abaixo das janelas.
- Não sabe quanto o lamento - disse Jack. - Nossa volta ao lar não será a mesma, não, muito pelo contrário. Ainda que você saberá o que faz, certamente. Mas quando
se referia a isso de não perder um minuto, dizia em sentido literal?
- Isso mesmo.
- Então, por que não sobe a bordo da Ringle? Ainda que o vento não role outra quarta, poderá navegar direitinho para Pompey tal e como está, sem ter que dar bordejadas,
e chegará ao porto pelo menos duas vezes mais rápido que esse pobre conjunto de vergas que conformam o Berenice. - Ao reparar na expressão maravilhada de Stephen,
serviu-lhe outra xícara de café e acrescentou: - Não lhe havia dito, não tive ocasião ontem à noite nem esta manhã, com esse asno, com esse impotente asno empenhado
em desempatar, mas ganhei de Heneage depois do jantar: com um duplo seis quando estava a ponto de ganhar-me. Já tinha metido seis fichas, mas ele tardou em voltar
a fazê-lo, e graças a isso ganhei. Tom, Reade e Bonden, que a governam à perfeição, levar-lhe-ão Canal acima, e de minha parte acrescentarei alguns marinheiros que
não pertençam a Shelmerston.
Stephen realizou os protestos pertinentes, ainda que foram poucos, posto que estava acostumado tanto com a generosidade da Armada como com a rapidez na tomada de
decisões. Jack devorou o conteúdo de outra xícara de café, e se apressou a pedir aos gritos a canoa.
Sozinho na cabine refeitório, Stephen pensou na mensagem de sir Joseph. Nela lhe pedia que fosse a Londres sem perder um só minuto, e o fazia com uma parcimônia
de palavras desconhecida nele. Joseph Blaine odiava a prolixidade quase tanto como odiava a Napoleão Bonaparte, mas a extremada secura do bilhete deixou Stephen
perplexo até que lembrou o sucedido tantas outras vezes no passado, virou um quarto da folha ao contrário, e ali, no canto inferior esquerdo, encontrou o caractere
n escrito a lápis, tênue, o que podia ter muitos significados. Neste caso se referia ao Comitê, órgão composto pelas principais figuras do Serviço de Inteligência
e do Ministério de Assuntos Exteriores, que o tinham enviado ao Peru para impedir, ou, isto é, para adiantar-se aos franceses em seus planos de conquistar a simpatia
dos cabecilhas do movimento de independência da Espanha. Estava claro que desejavam saber o que havia conseguido e, com toda probabilidade, esta prontidão supunha
que experimentavam algumas dificuldades à hora de mostrar o assunto sob uma luz favorável, ou mesmo tolerável, ante seus aliados espanhóis. Repassou a longa e intrincada
cadeia de fatos que moldariam seu relato, e enquanto o fazia observou a esteira da fragata, esteira que, considerando-se bem, alcançara uma enorme comprimento.
Em essas estava quando Tom Pullings, o capitão nominal do barco - nominal devido ao incompetente plano de disfarçar a Surprise de barco corsário sob o comando de
um oficial sujeito a meio soldo para enganar os espanhóis, - entrou e exclamou:
- Ah, o senhor está aí, doutor. Que notícias! Não fará nem meia ampulheta que o Berenice se pôs em pairo e a sonda picou, e a Ringle atracar-se-á diretamente. Killick,
vamos, Killick! O doutor necessita de seu baú, tão rápido como lhe seja possível.
Apenas saiu pela porta para encarregar-se de suas coisas, quando Jack voltou a bordo subindo pela escada de popa.
- Ah, está aí, Stephen! - exclamou. - Heneage pôs a pairar seu barco e picou a sonda: areia branca e pequenas conchas. Tudo está disposto a bordo da escuna. Ei,
Killick. Venha, Killick. O baú do doutor...!
- Aqui o tem, ou está cego? - protestou Killick, indignado a julgar pelo tom de sua voz. - Tudo amarrado e bem amarrado: a camisola em cima de tudo; cuecas; camisa
de batalha e os calções que deve pôr ao entrar por South Foreland; camisa branca e casaca paraLondres, e um par decente de calções negros; a melhor peruca dobrada
a mão direita, no canto dianteiro. - Caminhava pisando forte, e se podia ouvi-lo empurrar o baú de um lado para outro, ao mesmo tempo que gritava para seu companheiro:
- Mais brio aí, Bill!
- Com relação a minhas coleções... - disse Stephen, referindo-se aos barris e caixas que levava na bodega do barco e que continham inumeráveis espécimes, propriedade
de um apaixonado filósofo naturalista cujos interesses abarcavam desde os criptogramas até os grandes mamíferos, passando por insetos, répteis e aves (sobretudo
pelas aves), e que havia percorrido milhares de milhares de milhas, - eu lhe as confio por inteiro. Ah, que não se esqueçam das meninas. Conforme acredito, Jemmy
Ducks tem esposa no povoado.
- Tem o equivalente, ou pelo menos o tinha quando se fez ao mar. Espero que não creia que Sarah e Emily repararão na diferença. Seja como for, encarregar-me-ei de
alimentá-las bem até que regresse, porque dou por certo que voltará.
- Certamente. tomarei uma carro postal assim que possa. Lamentaria muito que permitisse que meu mergulhão do Titicaca se perdesse.
- Já temos a escuna pelo lado, se é tão amável, senhor - informou Bonden, timoneiro de Jack e velho amigo de ambos, a quem Stephen havia ensinado a ler.
- E Jack, peço que cumprimente afetuosamente a Diana de minha parte; asegure-lhe que se pudesse escolher...
- Vamos, senhor, se é tão amável - urgiu Tom Pullings. - A escuna está encostada ao costado, e o senhor não imagina como golpeia contra nosso casco com esta marejada
cruzada que temos hoje.
Conseguiram que chegasse a salvo a bordo da outra embarcação, seco e incólume, ainda que um pouco necessitado de fôlego depois de ter saltado, pese às advertências
de meia tripulação, quando a escuna subia na crista da onda. Não havia subido nela antes, quando era o barco de apetrechos do Berenice, apesar de tê-la contemplada
de vez em quando com certo interesse, em todas aquelas ocasiões em que os barcos estavam acalmados, seu própio esquife pintado de verde era infinitamente mais adequado
para se deslocar e explorar a superfície imediata do oceano e as modestas profundidades que estavam ao alcance de sua rede. Achou a sacudida muito mais brusca que
a da Surprise, seis ou sete vezes mais violenta, e se dirigiu cuidadosamente para a popa pelo bombordo, pelos amantilhos do maior, onde tinha a impressão de não
molestar a ninguém e pôde apoiar-se na junta situada pela popa. Entretanto, na proa, os marinheiros haviam aquartelado a bujarrona de tal maneira que a proa da Ringle
pudesse arribar. Ao cabo de um momento largaram o traquete, e depois a maior. Caçaram as escotas para bombordo, e a embarcação inclinou para sotavento, andando mais
e mais depressa. Stephen se agarrou como pôde. Sentia um estranho arrebatamento. quis sacar o lenço do bolso para cumprimentar seus amigos, mas antes de que pudesse
fazê-lo sem cair no convés, a escuna passou de largo junto ao Berenice, que parecia imóvel no mar, ainda que sua proa levantava um bom fluxo de ondas e ia coberto
de uma respeitável quantidade de lona.
Heneage Dundas se tirou o chapéu e gritou algo, amável e alegre sem dúvida, mas em qualquer caso suas palavras foram levadas pelo vento. Stephen levantou por sua
vez a mão para saudá-lo, gesto arriscado já que se viu arrastado do lugar ao que se agarrara e acabou topando, por sorte, com o musculoso Barret Bonden, que estava
na cana do leme, já que a escuna carecia de roda. Sem permitir que a Ringle se desviasse do rumo, Bonden agarrou ao doutor com a mão esquerda e lhe passou a Joe
Plaice, que o atou à groera{5} do leme, ainda que de modo que Stephen pudesse dispor de certa liberdade de movimento.
Ali teve ocasião de recuperar-se, e não tardou em colocar-se com certa comodidade, com o olhar voltado para a popa. Surpreendeu-se ao perceber que o Berenice e a
Surprise já tinham se afastado muito da escuna. Via as pessoas do castelo de proa como figuras distantes que diminuíam mais e mais a medida que as observava, indivíduos
irreconhecíveis com excessão de Davies, O Lerdo, que destacava-se com um colete vermelho. A essas alturas a Ringle havia mareado o velacho, pois, afinal de contas,
era uma escuna de gáveas, e com o vento a um largo por mais de duas quartas conseguiu andar com ânimo para regozijo de todos os marinheiros que iam a bordo. Duas
quartas para a escuna, ainda que era capaz de encostar a menos de cinco quartas do olho do vento, enquanto que um navio tão marinheiro como o era a Surprise, de
aparelho redondo, quando muito chegava às seis quartas, e por sua parte O Lerdo Berenice quase não conseguia manter-se a sete, e isso, evidentemente, a troca de
abater como um porco.
De fato, os dois barcos distantes se encontravam afundados no seio do fluxo de ondas, exceto quando subiam na crista, e se recortavam brancos sobre o cinza escuro
das nuvens. Stephen os viu mudar de bordo e rumar para Ouessant, e fazer-se ainda menores, pois a menos que o vento rolasse mais, os barcos, assim como a Ringle,
estavam condenados a bolinar e a dar uma bordejada depois da outra. Observou-os com uma curiosa mistura de sentimentos. Ao Berenice o tinha por um barco amável,
um lugar onde passara mais de uma agradável noitada em companhia de Jack, Dundas e Kearney, o imediato, jogando encarniçada mas educadamente ao uíste, ou simplesmente
assistindo a discussões pacíficas sobre portos, costumes locais e apetrechos navais, desde a China ao Peru, extraídas da experiência pessoal de cada um. Contudo,
a Surprise fora seu lar por mais tempo do que podia recordar facilmente. Passara momentos em terra e momentos em outros barcos, mas provavelmente vivera ali mais
tempo que em qualquer outra morada que pudesse recordar. Stephen Maturin tinha levado uma vida errante e sem amarras.
Transcorreram três dias até que o vento cedeu ao rolar em direção oeste, e inclusive sudoeste, vento perfeito para quem rumava Canal acima. Naquele dia por fim a
Surprise e o Berenice se separaram durante a guarda da tarde, ao chegarem à altura de Shelmerston. Todos a bordo de ambos os barcos se despediram uns dos outros
agitando o chapéu e dando vivas com toda a boa vontade de que foram capazes.
A Surprise, arrumada e recém pintada, pôs proa rumo oeste com as joanetes largadas: um belo espetáculo. Toda a dotação, incluídos os que estavam de guarda no convés,
tinha se enfeitado para a licença com toda a elegância e o asseio que podiam permitir-se depois de uma ausência tão longa: brilhantes casacas azuis com botões de
bronze, calças brancas de dril, camisas com bordados, escarpins adornados com laços e lenços de Barcelona ao redor do pescoço. A recontagem exata da divisão do butim
obtido durante a etapa de corso da viagem, processo prolongado e meticuloso, levara toda a manhã. Realizou-se com uma tal seriedade que parecia um julgamento supervisionado
por todos os oficiais da marinha, todos os oficiais de cargo e os representantes das quatro partes do barco. A quantidade que correspondia a cada marinheiro ascendia
a um total de trezentas sessenta e quatro libras, seis xelins e oito peniques, e inclusive as meninas, que por consenso geral se decidiu que compartissem a metade
de uma parte, tinham mais moedas do que podiam contar sem dificuldades, pois conforme seu peso oscilavam entre os quatro e os seis peniques. A pomposa cerimônia
foi conduzida com sobriedade, mas agora o grogue e o almoço tinham feito sua parte, haviam arrastado consigo toda a solenidade, e muitos marinheiros vagabundeavam
pelo convés, agitando os bolsos cheios e rindo de puro regozijo, enquanto o barco avançava com o refluxo da maré, rumo a uma costa que conheciam à perfeição.
Tiveram que cuidar do caminho muito antes de chegar ao porto, e pairaram com âncora pequena largada e as gáveas carregadas até que houve água suficiente para permitir
a entrada sem sofrer um só arranhão naquela fragata carregada até os topes. Então as pessoas se alinharam ao longo do costado, com o olhar posto em terra. Mais da
metade dos marinheiros da dotação pertenciam a Shelmerston, e nesse momento assinalavam todas as mudanças ocorridas e por haver, assim como tudo aquilo que não mudara
em absoluto, tal como faziam desde que chegavam ao porto.
Alguns dos escassos anglicanos que iam a bordo disseram aos gritos que o cata-vento da igreja de sua paróquia, um tubarão de vime, tinha uma calda nova; talvez tivesse
desaparecido para sempre o chiado que fazia. Havia quem se sentia reconfortado ante a visão da baixa e quadrada torre, cuja severidade normanda havia se visto dulcificada
depois de centenas de anos de chuvas e vendavais do sudoeste; mas não havia nenhuma mudança apreciável a simples vista. A maior parte de quem vivia ali pertencia
a uma ou outra das seitas inconformistas que abundavam na zona, e entre estas, os fiéis de Seth eram os mais ricos e influentes. Sua maior satisfação era a alta
capela que tinham, cujo mármore branco, decorado com lustrosas incrustações de bronze polido, refletia nesse momento a luz do sol que refulgia através de um espaço
deixado pelas nuvens carregadas de chuva. Havia se beneficiado muito de uma viagem anterior na qual o capitão Aubrey capturou, entre outras presas, um barco com
a bodega transbordando de enormes odres de couro cheios de mercúrio, e, sem saber, estava a ponto de se beneficiar também desta aventura, mais próspera se era possível.
Mas ainda não se tinha decidido que tipo de esplendor derivaria do butim, ainda que ao observar com atenção o povoado houve alguém que mencionou a possibilidade
de um capitel. Um anabatista, situado mais ou menos a uma jarda deles, um dos poucos marinheiros cujos problemas de digestão o deixava mal-humorado depois de almoçar,
manifestou sua opinião de que os capitéis fediam ao papismo. A pesar da alegria que reinava a bordo, isto poderia ter conduzido a uma discussão se William Burrowes,
um veterano marinheiro do castelo de proa dotado de uma grande autoridade, com um vozeirão que lembrou a todos os presentes o tom apropriado que devia observar-se
nas grandes ocasiões, não tivesse exclamado:
- Lá está a velaria do velho Sandby tão condenadamente feia como sempre, com aquela enorme lateral do diabo e sem perigalho que preste!
Este comentário conduziu a uma enumeração geral das casas, lojas e pensões que não tinham sofrido mudanças; apesar de tudo, o sentimento exultante decaiu pouco a
pouco. Entre os homens se espalhou certa inquietação. Afinal de contas, não tinham visto entrar ou sair uma alma do Crown, o que podia se considerar antinatural;
todos os barcos de pesca estavam ancorados em linha; ninguém tinha comparecido para observar sua chegada desde a praia, apesar que, quem dispusesse de uma luneta
- e havia centenas de lunetas em Shelmerston, - não só poderia reconhecer o barco, mas apreciar o lustre de prata arrebatado de um pirata do Grande Mar do Sul, içado
no tope do mastaréu maior. Que sucedia? A inquietação se estendeu lentamente, ainda que foram muitos os que não fizeram caso, mas quando o pastrano e bobão de Harris
disse que lhe recordava a ilha Sweeting, no Pacífico, cujos habitantes haviam morrido de repente, restando tão somente Sarah e Emily os outros se voltaram para ele
dando mostras de uma ferocidade surpreendente, armados com toda sorte de sugestões: "Podia ter ficado calado a fazer este comentário", "podia jogar-se ao rio com
uma bala atada aos pés", ou, em uma frase comum entre pessoas do mar, "podia ir tomar no cu" e levar consigo seu feio corpo roído pela sífilis e seu rosto, que parece
uma maca inimizada com o sabão.
- Gente ao cabrestante! - gritou Jack quando começaram a cair as primeiras gotas.
Recolheram a âncora pequena sem esforço algum, pois os marinheiros abarrotaram as barras do cabrestante e as empurraram com uma força incrível. E quando a âncora
repousou no pescante, a maré empurrou a proa do barco para o interior. Carregaram as joanetes e deslizaram suavemente sobre o banco de areia com uma braça de sobra.
E ao entrar, um homem ancião, muito ancião, com o rosto coberto por uma venda que tirada a força ao puxá-la, aproximou-se do barco seguido por um garoto que aparecia
atrás de seu ombro.
- Que barco é este? - cumprimentou o velho com voz aguda e chiante e uma mão no ouvido.
- A Surprise - replicou Jack ante o silêncio generalizado.
- De onde são?
- De Shelmerston, viemos de Fayal.
Surprise. Recordo, Surprise - disse o homem muito ancião ao mesmo tempo que assentia. - Levam a bordo a um jovem chamado John Somers?
Um silêncio sepulcral se estendeu no convés. John Somers havia se afogado diante do cabo de Hornos.
- Fala, jovem Somers - ordenou Jack em voz baixa.
- Avô - disse o irmão de John. - Sou William. John... John se reuniu com o Senhor. Sou seu irmão menor, avô.
- William? William? Sim. Eu conheço - respondeu o ancião com escassa ou nenhuma emoção.
- Como anda mamãe? - perguntou William.
- Morta e enterrada faz mais de um ano.
- Soltem a âncora - ordenou Jack Aubrey.
Enquanto o barco se aproximava e se içavam os botes pela borda, alguém perguntou quem era o garoto que acompanhava o ancião.
- Art Compton - respondeu.
- Então você és meu sobrinho - exclamou Peter Wills. - Eu trouxe um papagaio tagarela para Alice. Como vai tudo em casa? E onde anda todo mundo?
- Estão bastante bem, tio Peter. Foram a Worsley para ver o enforcamento de Jack Singleton e seus companheiros. Deixaram-me aqui para cuidar do primo Somers. Nós
tiramamos na sorte.
- Baixem o cúter vermelho - ordenou Jack, que procedeu a seguir a dar os gritos oportunos para que pendurassem e arriassem todas e cada uma das embarcações auxiliares
da fragata. Vogaram para a costa sob uma chuva que caía cada vez com mais força, e Jack foi direto ao Crown, levando pela mão as duas meninas. Ao chegar, bateu na
porta até que um decrépito moço de estábulo se dignou a abri-la.
A chuva parou antes do pôr do sol, e depois do regresso de toda as pessoas e das prostitutas de Shelmerston que haviam assistido ao enforcamento - sete homens e
uma criança em uma forca, espetáculo que atraiu a atenção de todo o condado, - a modesta população se tornou muito mais alegre apesar das novas mortes, de alguns
partos inesperados e outras francas deserções. E houve mais alegria ao som do violino na maioria das pensões e tabernas antes que a tripulação se dispersasse de
casa em casa, de fazenda em fazenda, com os baús repletos de maravilhosos presentes.
Quando o Crown e as outras pensões espalhadas ao longo da margem estavam a transbordar de ruído, luz e anedotas, Jack, depois de deixar Sarah e Emily aos cuidados
da senhora Jemmy, uma dama gorda inclinada ao fuxico, subira em um carro postal puxado por quatro cavalos e viajava tão rápido para Ashgrove Cottage como pudessem
levá-lo as bestas pelos bons caminhos.
Sua enorme arca grande ia presa com correias na parte posterior, mas o último presente que comprara para Sophie, um traje de renda de Madeira, não agüentaria bem
o sacolejar e por isso o levava em cima dos joelhos. Viu-se obrigado a viajar mais empertigado, ainda que de vez em quando aproveitou para dar uma cochilada, a última
delas depois de que o moço de posta mais veterano lhe despertou para pedir a direção exata, uma vez abandonada a estrada. Jack lhe deu, fez com que repetisse e voltou
a adormecer tal e como o fazem os marinheiros, em cinco minutos, perguntando-se se encontraria alguém acordado em casa.
Meia hora depois o ruído dos cascos mudou e cessou lentamente, o carro se deteve e Jack começou a despertar, maravilhado pela luz que saía da casa, no extremo posterior
do estábulo, que era por onde havia entrado o carro postal. Houve um tempo em que Jack, animado por um período temporal de riqueza, empreendera a criação e adestramento
de cavalos de corrida, do que se considerava tão bom juiz como qualquer membro da Armada, e esse esplêndido pátio pavimentado com ladrilho, assim como os belos edifícios
que o rodeavam, datavam daquela época. A luz surgia do mais bonito dos edifícios, uma cocheira dupla, e à luminosidade que perfurava a lúgubre noite era acompanhada
pelo rumor de uma conversa animada, gritos e risos, em um tom tal que ninguém se informou de sua chegada.
Jack pegou o traje de renda, em cima do qual havia apoiado os pés durante as últimas milhas de viagem, trocou algumas palavras com os moços do carro postal e lhes
pediu que carregassem sua arca grande até a entrada.
- É o capitão - gritou alguém. Cessou a algaravia, exceto no tocante à voz de uma certa mulher, surda para tudo menos para ouvir a si mesma.
- Assim que lhe digo, digo, "seu sodomita abilolado, por acaso nunca vira uma garota fazer...".
- "Quando longe estou, sinto saudade e sinto saudade e sinto saudade de meu lar..." - Ouvia-se ao fundo uma canção.
Hawker, o moço encarregado dos cavalos, aproximou-se do capitão com um sorriso nervoso.
- Bem-vindo para casa, senhor, e por favor desculpe que tenhamos tomado tantas liberdades - disse. - Era o aniversário de Abel Crawley e, como as senhoras se foram,
achamos que o senhor não se importaria... - Assinalou a Abel Crawley, que aos setenta e nove recém cumpletados, bêbado como um gambá e sem fala, tinha aspecto de
ter morrido aí mesmo. Servira como marinheiro do castelo de proa em um dos primeiros barcos onde navegou o tenente Jack Aubrey, a Arethusa, e certamente quase todos
os presentes serviram também com Jack em um momento ou outro de sua carreira, e a maioria estava incapacitada para o serviço. Suas acompanhantes eram o que se podia
esperar, um grupo de garotas atarracadas conhecidas como "as brutas de Portsmouth". O carro puxado por mulas que as havia trazido a Ashgrove Cottage estava no outro
extremo do pátio.
Aflito e decepcionado, Jack sentiu tentações de enforcar a todos esses fulanos, mas em troca limitou-se a perguntar:
- Onde está a senhora Aubrey?
- Ah, em Woolcombe, senhor, com as crianças e todo o serviço exceto Ellen Pratt. A senhora Williams e sua amiga, a senhora Morris, estão em Bath.
- Bem, diga a Ellen que esquente sopa e me prepare a cama.
- Senhor, para dizer verdade Ellie está um pouco alegre, mas eu mesmo lhe assarei um bom bife e um pouco de coelho de Gales; Jennings se encarregará da cama. Mas
temo, senhor, que o senhor terá que beber cerveja, já que a senhora Williams fechou a adega a chave.
Pela manhã, Jack preparou ele mesmo seu café e comeu alguns ovos com torradas na cozinha. Não estava com humor para vagabundear pela casa vazia, porque para ele
um lar sem Sophie não tinha sentido, mas antes de passear para o pátio fez uma rápida inspeção no jardim, que já não parecia o seu, mas o de algum negro estrangeiro.
- Diga-me, Hawker, quais são os cavalos que temos no estábulo?
- Somente a Abhorson, senhor.
- O que é o Abhorson?
- Um castrado negro, senhor: dezesseis palmos até o focinho.
- O que está fazendo aqui?
- Pertence ao senhor Briggs, senhor, ao criado da honorável senhora Morris. Não dispõem de estábulos em Bath, de modo que quando vão para lá, ele fica aqui. Quando
residem aqui, Briggs costuma muito amiúde aproximar-se de Bath a cavalo.
- Agüentará o meu peso?
- Oh, sim, senhor. É um animal forte e tem bons ossos. Mas hoje transborda vitalidade e talvez lhe pareça muito brioso.
- Não importa. Que me diz das ferraduras?
- Novinhas da semana passada, senhor. Verá que a senhora Williams cuida muito do cavalo de Briggs - disse o moço com uma curiosa ênfase. - Assim como a honorável
senhora Morris, por acaso.
- Excelente. Tenha-o preparado na porta em cinco minutos, pode ser? E veja se pode e conseguir uma capa. Choverá antes de que eu chegue a Dorset.
Efetivamente, Abhorson constituia todo um exemplo de força bruta, e sua cabeça pesada e os olhos pequenos não lhe conferiam precisamente nem beleza nem inteligência.
Recusou as carícias de Jack e levou a cabo uma evolução irregular muito mais própia de um caranguejo que de um cavalo, de tal maneira que o moço que o segurava pela
embocadura se viu arrastado de lado enquanto o própio Jack, que tentava montá-lo, foi fazendo hop, hop, hop ao longo de meio pátio até que conseguiu subir na sela.
Não tinha montado a cavalo algum desde que esteve em Java, a meio mundo de distância; mas assim que sentiu a sela de couro comodamente sob suas nádegas e teve os
pés bem metidos nos estribos, sentiu-se como em casa. Ainda que Abhorson se mostrasse muito brioso, amigo tanto de dar cambalhotas como de inclinar a cabeça ao mesmo
tempo que ofegava com violência e andava em diagonal com passos miúdos, as puxadas e os joelhos de Jack fizeram seu efeito, e quando começou a chover, ou, melhor,
a chuviscar, viajavam muito bem ajustados através das novas plantações. Jack desfrutava, admirado do modo em que suas árvores haviam crescido, muito mais do que
esperava, com umas folhas frescas e esplêndidas. Mas este deleite estava apenas na superfície de seus pensamentos: sob ela, no mais profundo, tudo aquilo que não
pendia de Woolcombe, da mansão familiar que herdara recentemente, e de Sophie e das crianças que se alojavam nela, mantinha-se inamovivelmente ancorado na encantadora
perspectiva que lhe oferecia sua futura esquadra, composta por barcos e oficiais da Armada real sem destino fixo, e no sem-fim de combinações em que poderia dispô-los.
- Uma coisa é segura: ficarei com a Ringle como barco de apetrechos - observou em voz alta.
O chuvisco obstinou-se até converter-se em uma chuva forte. Deixou de um lado suas felizes especulações. Era um homem inusualmente dotado para a felicidade, desde
quando a felicidade não fosse um impossível, e agora esta fluía de seu interior, de todos e cada um de seus poros, de modo que animou Abhorson para que apertasse
o passo, consciente de que não agüentaria muito com a chuva caindo com tanta força. O cavalo galopava tenaz e tosco, mas movia as orelhas como em resposta aos ânimos
de Jack, e o ginete se voltou para pegar a capa que havia enrolado atrás da sela.
Então um esquisito apareceu voando pela estrada sob o focinho do cavalo, piando de forma estrondosa. Abhorson deu um violento salto lateral, um meio caminho entre
a cambalhota e o giro, que jogou da sela sem maiores esforços a Jack. Ele levou uma dura queda, muito dura, pois acertou com a cabeça contra um marco de pedra que
marcava o limite de suas propriedades.
CAPÍTULO 2
- Bom dia, senhor - cumprimentou Stephen. - Chamo-me Maturin, e tenho um encontro com sir Joseph Blaine.
- Bom dia, senhor - replicou o porteiro. - Peço que seja tão amável de aguardar. James, conduza este cavalheiro à segunda sala de espera.
Este não era aquele famoso lugar com vistas para a corte e, através das cortinas, para Whitehall, no qual haviam aguardado gerações e gerações de oficiais da marinha,
geralmente com a esperança de obter uma ascensão ou qualquer tipo de destino. Era um lugar muito menor, um aposento muito mais discreto com uma única cadeira. Quase
Stephen não teve tempo de se sentar quando se abriu uma porta interna. Sir Joseph, um homem corpulento com um rosto simples e geralmente inquieto, pálido e constrangido
pelo trabalho, entrou no aposento sorrindo, com aspecto de sentir-se feliz como uma criança.
- Há, Stephen, não sabe o quanto me alegro de ver-lhe! - exclamou pegando Stephen pelas mãos - Como o senhor está, meu querido senhor? Como se encontra depois de
tantas milhas intermináveis e de tantos dias?
- Muito bem, obrigado, querido Joseph; ainda que devo dizer que me agradaria ver-lhe menos pálido, desolado e constrangido. O senhor tem dormido? Come bem?
- Devo confessar que tenho minhas dificuldades para conciliar o sono; apesar de tudo, como toleravelmente bem. Reunir-se-á comigo esta noite no Blacks? Venha e terá
a oportunidade de comprovar com seus própios olhos. Costumo jantar frango cozido molho de ostras, e uma pinta de nosso clarete.
- Será um prazer observá-lo - confessou Stephen, - ainda que de minha parte despachei um robalo e uma garrafa de Sillery. - Apalpou o bolso e acrescentou: - Peço
que aceite este presente. - Estendeu um lenço usado para sir Joseph.
- Eupator ingens! - exclamou sir Joseph depois de desenbrulhá-lo rapidamente. - Que amável de sua parte ter se recordado de mim; é um espécime esplêndido, que generoso,
pergunto-me se o senhor poderá suportar o fato de desprender-se dele. - Colocou a criatura de boca para baixo, olhou-a atentamente e murmurou: - De modo que, finalmente,
sou o feliz possuidor do escaravelho mais nobre da criação.
A porta abriu-se de novo.
- Começam a chegar os cavalheiros esperados, sir Joseph - informou um homem com a devida seriedade.
- Obrigado, senhor Heller - disse sir Joseph. - Reunir-me-ei com eles antes de que dêem as badaladas. - A porta se fechou. - Trata-se do Comitê, como suporá - informou
a Stephen. Envolveu o escaravelho com muito cuidado em seu própio lenço, devolveu o outro a Stephen e acrescentou: - Agora é mister que me dirija ao senhor na qualidade
de funcionário público: o primeiro lorde me pediu que lhe informe de que tem pensado em nomear o capitão Aubrey para o comando de uma esquadrilha. Hasteará galhardetão
e se dedicará a levar a cabo um cruzeiro frente às costas da África, com objeto de proteger nossos barcos mercantes e combater o comércio de escravos. Os negreiros
pertencem a nacionalidades diversas, contam com toda sorte de protecionismos e podem ser acompanhados de navios de guerra; de modo que é óbvio que não só necessita
da companhia de um cirurgião eminente, como a de um lingüista consumado, de um homem familiarizado com os segredos da inteligência política, e se espera que todas
estas características possam reunir-se na mesma pessoa. Apesar de tudo, existe a possibilidade de que surjam certas eventualidades, e, dado que sou consciente de
que, sem que isso prejudique em nem um pouco a nossa amizade, existem certos assuntos nos quais não estamos do todo de acordo, acho que seria conveniente perguntar-lhe,
se me permite, de que lado se decantaria seu coração se o francês tentasse de novo desembarcar em Irlanda. Creia-me quando digo que esta pergunta tem por único objetivo
evitar a possibilidade de que o senhor se mostre indeciso e reservado, em caso de ter que tomar certas decisões.
- De indeciso nada, querido amigo. Farei o que estiver em meu poder para aprisionar, afundar, queimar ou destruir ao francês. Os franceses, com seu atual e lamentável
sistema político, suporiam um mal completamente intolerável na Irlanda: aí tem o senhor a Suiça, pense nos estados italianos... Não, não, não, o senhor sabe perfeitamente
que sou dos que acreditam que todas as nações têm direito a governar-se por si mesmas. Poderá dizer-se que os irlandeses não se aplicaram à história: ela fala aos
montes a este respeito e sua leitura resulta lamentável, já que O'Brien, sem ir mais longe, Turlough O'Brien, rei de Thomond, saqueou ele própio Clonmacnois. Mas
estou me afastando da questão. Talvez meu lar necessite de uma limpeza, mas é meu lar, e não seria eu que agradeceria ao estrangeiro que se dispusesse a pô-lo em
ordem, menos ainda se tratando desse ladrão feio, velhaco e ímpio do negro corso.
- Obrigado, Stephen - disse sir Joseph apertando-lhe a mão. - Tinha postas todas minhas esperanças em que me diria isto mesmo. Agora devemos nos reunir com o Comitê.
- O senhor sabe o que vou lhes explicar?
- Sim, sim. Não sabe como lhe compadeço.
Dado o ânimo que se desprendia dos membros restantes do Comitê, era óbvio que eles também eram conscientes do resultado da missão, já que o traçado geral do resultado
era, por sua vez, perfeitamente óbvio, já que o Peru seguia fazendo parte do Império Espanhol. Mas não por isso prescindiu de fazer um relato sucinto do sucedido,
ao qual a maioria de membros do Comitê prestou atenção, explicando as perguntas pertinentes a medida que avançava sua exposição, e outras tantas quando concluíu.
Depois de resolver as dúvidas que tinham surgido, o senhor Preston, do Ministério de Assuntos Exteriores, que havia tomado notas conscienciosas, disse:
- Doutor Maturin, permitiria que eu leia este breve resumo que fiz em benefício do ministro, para que o senhor corrija qualquer erro que tenha podido cometer? -
Stephen inclinou a cabeça, e Preston seguiu adiante. - "O doutor Maturin, comparecendo ante o Comitê, assegurou que depois que o barco no qual viajava, um barco
alugado de sua propriedade que contava com a devida patente de corso, partiu da baía de Sidney, seu comandante recebeu instruções para dirigir-se a Moahu, onde duas,
ou talvez três facções rivais estavam em guerra. Tinha que aliar-se com a mais propensa a aceitar a soberania do rei, assegurar sua supremacia e anexar a ilha antes
de empreender rumo a América do Sul. Cumprida a missão, pouco depois apresou um barco corsário americano..."
- Desculpe-me, senhor, se me vejo na obrigação de interromper o senhor neste ponto - disse Stephen. - Mas temo muito que devo ter me expressado mal. O barco em questão
no qual estava embarcado por então era a Noz-moscada of Consolation, não minha Surprise, com a qual nos reunimos frente à passagem de Salibabu, e na qual navegamos
rumo ao Peru. A Noz-moscada nos foi proporcionada pelo governador de Java para substituir à fragata Diane, a bordo da qual o defunto senhor Fox e eu tivemos a alegria
de concluir um tratado com o sultão de Pulo Prabang. - Produziu-se um burburinho de aprovação ao dizer isto, e o senhor Preston dedicou a Stephen um olhar pouco
oficial e afetuoso. - O conflito em Moahu teve lugar entre a legítima soberana da ilha e um chefe descontente, que contava com o apoio de alguns mercenários brancos
e um francês chamado Dutourd, um visionário rico que desejava estabelecer um paraíso democrático em troca de assassinar todos aqueles que não estivessem de acordo
com ele, e que tinha adquirido, armado e dotado de homens a um barco na América, para levar a cabo seus propósitos. Neste caso, a moral e a conveniência coincidiram
felizmente: a Surprise derrotou ao chefe descontente e capturou tanto a Dutourd como a seu barco. Mas não houve lugar para anexação alguma. A rainha se aliou ao
rei Jorge III, aceitando sua proteção de bom grado, nada mais. Com relação ao corsário americano, o Franklin, como o chamava monsieur Dutourd, resultou que de fato
não desfrutava de sua condição, pois Dutourd passara por alto a necessária obtenção da patente de corso, de modo que o fato de ter capturado baleeiros ingleses o
convertia em um barco pirata. Esta, em todo caso, foi a opinião do comandante da Surprise, que decidiu levá-lo para a Inglaterra para que os juízes de rigor pudessem
resolver a questão.
- Obrigado, senhor. Deixarei muito claro este ponto - disse o senhor Preston enquanto escrevia a toda pressa. A seguir seguiu lendo o resumo que tinha feito, no
qual comentava o encontro de Stephen com o agente que residia em Lima, suas bem-sucedidas conversações com membros do alto clero e do Exército, particularmente com
o general Furtado, todos eles partidários da independência e, muitos deles, da abolição da escravidão; a fuga de Dutourd, seus contatos com a missão francesa dedicada
a um objetivo similar, mas muito menos bem-sucedida e pior custeada; sua denúncia de Stephen como agente inglês, e o grito de "ouro estrangeiro" em boca de quem
se opunham à independência, grito que, assumido por uma multidão paga de antemão, impossibilitou o plano perfeitamente calibrado de Stephen, baseado na ausência
temporal do vice-rei, pois o general Furtado se negou a agir, e somente Furtado podia mobilizar as tropas necessárias.
- Deve ter sido um duro golpe - observou o coronel Warren, chefe da Inteligência do Exército.
- Assim foi, certamente - disse Stephen.
- Dutourd tinha algum motivo para supor que o senhor era, de fato, um agente britânico? - perguntou outro membro do Comitê.
- Não tinha. Mas me vi obrigado a falar em francês quando atendi seus feridos depois de aprisioná-los. De fato, o mais provável é que recordasse de ter-me conhecido
em Paris e, sem dúvida, a intuição, irmanada ao desprezo pessoal e ao desejo de fazer todo o estrago possível, fizeram o restante. A sua foi uma acusação que teria
sido ignorada em qualquer outra circunstância, mas quando os contrários à independência fizeram eco dela, a opinião pública mudou completamente.
- É meu dever observar que se puseram em mãos do doutor Maturin enormes somas de dinheiro - observou o representante do Tesouro, depois de um silêncio, - entregues
de formas diversas, e devo perguntar-lhe se foi possível preservar qualquer parte, como por exemplo as notas, fáceis de transportar, e os bônus que ainda não foram
trocados.
- Não é senão com certa complacência que posso responder ao cavalheiro que o ouro, que teria que ser repartido entre os diversos regimentos numa quarta-feira se
Furtado não os retirasse numa terça-feira, ficou (menos algumas poucas centenas de libras empregados em subornos) nas mãos de nosso agente em Lima. O papel moeda,
os bônus e outros se encontram atualmente a bordo da pequena embarcação que me trouxe ao Pool, no interior de um caixote que está debaixo do atento olhar do capitão.
- Alguns membros do Comitê não puderam ocultar sua intensa satisfação, e Stephen percebeu que graças a isso poderia organizar-se um novo plano, talvez tão custoso
como o que tentara levar a cabo. - Com relação ao ouro - acrescentou, - nosso agente no Peru opina, e se lhes interessa minha opinião saibam que estou completamente
de acordo com ele, que o dinheiro resultaria muito útil de empregar-se no reino do Chile, onde dom Bernardo O'Higgins conta com um apoio considerável. Finalmente,
permita-me observar que nosso agente tem negócios marítimos, e que poderia engenhá-las, no caso, para transportar tão chato metal.
- Falando do chato metal - disse Blaine enquanto caminhavam juntos por Whitehall, - poderia fazer-me um grande favor se voltasse a Shelmerston na escuna. Com este
vento do noroeste chegaria lá muito mais rápido e mais comodamente que em um carro postal. Além disso, poupar-se-ia a chatice de trocar de carruagem.
- Diga-me por favor de que se trata.
- Verá, tenho que transportar uma estátua que prometi entregar a um amigo em Weymouth; empresa impossível para um carro, mas que seria uma minúcia para um barco.
Stephen, que não desejava em absoluto tomar um carro postal que o conduzisse diretamente a Barham e a Diana, parou uma carruagem de aluguel e com a mão na maçaneta
perguntou a sir Joseph Blaine:
- O senhor sabe quanto ela pesa? Pois se trata de um barco muito pequeno.
- Cerca de três toneladas, suponho. É um Júpiter de nada, feito de pórfido.
- Escute, querido amigo. Permita-me dizer-lhe que não haverá nenhum problema, e que para mim será um prazer, a menos que o capitão Pullings afirme que em caso de
subi-la a bordo a estátua acabaria atravessando o fundo da escuna. Vou cumprimentar a senhora Broad nas Liberties do Savoy. Lembra da senhora Broad, a dona do Grapes?
- Certamente. Apresente-lhe meus respeitos, se é tão amável.
- E do Grapes me aproximarei ao Pool, porque estão um ao lado do outro.
- Em tal caso, até esta noite - cumprimentou Blaine, que se encostou rapidamente na parede quando a carruagem puxada por quatro cavalos passou, salpicando barro
para os quatro cantos.
Stephen e a senhora Broad eram velhos amigos. Ele tinha alugada durante todo o ano um quarto do segundo andar, ainda que estivesse de viagem pelo outro hemisfério.
Assim podia dispor em Londres de um armário para os esqueletos, e de prateleiras com toda sorte de coisas que podia necessitar: instrumental, espécimes, livros,
um manuscrito incompleto de um trabalho sobre litotomía, e um grande número de cartas velhas e envelopes usados com notas no dorso. Ela havia se acostumado às extravagâncias
do doutor, e também às de Padeen, que fazia as vezes de servente do doutor em terra e que usava alguns calções com botões e fivelas de prata dos quais estava excessiva
e pecaminosamente orgulhoso. Conhecia Stephen já fazia muito tempo, e o havia tratado em circunstâncias tão difíceis que nada podia surpreendê-la muito. Tivera ursos
na carvoeira, junto à roupa suja, e texugos capturados nas armadilhas que o doutor punha no alpendre, para não mencionar certas dissecações bastante estranhas, de
modo que quando mencionou as duas meninas não se preocupou muito, por mais negras e papistas que pudessem ser. Além do mais, chorou aos prantos ao saber das circunstâncias
nas quais as tinham encontrado em sua ilha.
- Que o Senhor o bendiga, doutor - disse depois de secar suas lágrimas, agradecida pelos receios de Stephen, - aqui serão muito felizes. Aqui em Liberties temos
de todas as cores: negro, cinza, marrom e amarelo, todos excetuando talvez o azul celeste; e poderão perambular pelo cemitério da igreja ou observar o tráfego que
circula pelo Strand. Porém, oh, querido senhor, o que o senhor estará pensando de mim? Nem sequer lhe perguntei pela senhora Maturin. Como se encontra sua dama,
senhor? E a senhorita Brigid, que Deus a bendiga?
- Ainda não tive oportunidade de vê-las, senhora Broad. Não tive mais remédio que vir diretamente pela boca do Canal a bordo da escuna, enquanto o capitão Aubrey
desembarcava em Shelmerston. Mas talvez amanhã volte a bordo do barco de apetrechos, que me levará para seu lado. Sopra um vento perfeito, claro que também poderia
tomar um carro postal.
- Bem, pelo menos o senhor poderá jantar aqui e dormir em seu quarto. Lucy e eu o arejamos desde que Padeen veio e nos fez compreender que o senhor andava por aqui.
"Clo, clo, clo", nos disse a sua maneira, o pobre diabo; e ao ver que eu punha cara de não entender nada, Lucy exclamou: "Quer dizer que o doutor está na cidade",
e todos rompemos a rir. Oh, querido senhor, não sabe como rimos. De modo que trocamos os lençóis da cama, que previamente arejamos com alfazema.
- Não posso ficar para o jantar, senhora Broad, porque me comprometi com sir Joseph Blaine, que por certo me pediu que lhe transmitisse seus respeitos. Mas dormir
já é farinha de outro saco e será um prazer. Seria preferível que me desse a chave da porta, pois é possível que chegue tarde. Agora mesmo tenho que aproximar-me
ao Pool.
Ao entrar no Blacks encontrou Blaine, de pé na frente do fogo que ardia no salão, com a casaca sobre os ombros e o traseiro voltado para o fogo.
- O capitão Pullings me disse que poderá carregar mais três toneladas- informou Stephen, - mas já que deve partir com a maré alta, pergunta se o senhor poderá levar
a estátua a tempo.
- Oh, o senhor me traz excelentes notícias! Isso não será nenhuma dificuldade, pois já se encontra em Somerset House, e dispomos de uma embarcação de apetrechos
capaz de trazê-la para a escuna em um abrir e fechar de olhos. Em um abrir e fechar de olhos. Stephen, o senhor não está faminto? Com este vento do nordeste tenho
tanta fome que, se estivesse falando com qualquer um que não fosse o senhor, já teria me mostrado desagradável.
- Comparto completamente suas inquietações. Ponhamos mãos à obra de imediato.
Comeram com vontade e guardaram um silêncio quase absoluto, como se fossem velhos companheiros de mesa.
- Isto já é outra coisa - disse sir Joseph, depositando alguns ossos de frango em um pratinho. - Bem, agora volto a sentir-me como um ser humano, ainda que ainda
não estou de todo satisfeito. Comeria um coelho galês e, provavelmente, alguns doces com o café. Como está a senhora Broad?
- Transbordante de saúde, obrigado. Ele lhe envia lembranças. É uma excelente pessoa, como já saberá.
- Estou seguro disso.
- Duas meninas nos acompanharam, Sarah e Emily, que recolhemos em uma ilha da Melanésia na qual toda a população, com excessão delas, havia perecido por causa de
uma varíola levada por um baleeiro. Não pudemos deixá-las ali para que enfrentassem uma morte lenta, já estavam muito debilitadas, de modo que as levei a bordo.
Talvez tivesse sido melhor matá-las de um golpe na cabeça.
- Dizem que a todos convém demonstrar certa piedade - observou sir Joseph.
- Naquele momento me pareceu que não tinha escolha; mas desde então estou confuso porque não sei o que vou fazer com elas. Gostaria que a medida que vão crescendo
aprendam a levar uma casa, mas não como se fossem criadas; proporcionar-lhes um dote razoável...
- Dotes. Graças a minha infinita boa sorte, segue intacta a fortuna do senhor - interrompeu Blaine com um sorriso, pois ao iniciar tão prodigiosa travessia um exasperado
Stephen lhe havia enviado uma carta na que lhe concedia poderes para que transferisse seu dinheiro (do qual cuidava um enorme, lento, impessoal e negligente mas
solvente banco de Londres) para um modesto banco do país que suspendeu os pagamentos poucos meses depois, e cujos clientes tiveram que contentar-se em receber quatro
peniques por cada libra que lhe haviam confiado. Uma carta que dada à pressa e ao nervosismo tinha esquecido de firmar com nada mais além de seu nome de batismo.
E este esquecimento invalidou por sorte as procurações confiadas a sir Joseph, coisa que, em primeiro lugar, dizia muito do inusual costume de Blaine e Maturin de
chamar-se um ao outro de Stephen e Joseph, e, em segundo lugar, permitiu a Stephen seguir sendo um homem de recursos. - E pelo que me lembro, quase tudo era ouro
- acrescentou Blaine.
- Isso mesmo, e sim, em boa parte, pois ainda está guardado nos baús de ferro de meu padrinho. Só troquei uma pequena soma para os gastos. Em tal caso, uns dotes
razoáveis, caso se decidam se casar no lugar de conduzir macacos no inferno. Casar, talvez, com algum artesão reflexivo e habilidoso, por exemplo um relojoeiro,
ou alguém que faça instrumentos científicos; possivelmente um boticário ou um cirurgião, ou um preparador de espécimes para as aulas de anatomia. Católico, certamente.
E nada de marinheiros. Um marinheiro que possa ausentar-se durante anos do lar faz impossível a vida de qualquer mulher casada. Se é mulher de certo temperamento
é preciso explicar, como não, a questão da castidade; e em qualquer caso a do domínio, ou talvez diria melhor a da decisão. Uma mulher dona de uma casa, de uma casa
com terras, por exemplo, adquire uma autoridade e um poder de decisão aos quais nem sempre está disposta a renunciar. O certo é que em ocasiões é preferível que
não o faça, já que nem todos os homens nascem com uma capacidade inata para as finanças. Quem passa tanto tempo no mar costuma ficar menos familiarizado com os negócios
que se fazem em terra do que uma mulher inteligente. Também há o assunto relacionado com a educação dos filhos... - Stephen continuou por estas rotas até que percebeu
que a atenção de sir Joseph estava no coelho galês que comia, e talvez também em certas preocupações que levara consigo do Almirantado, de modo que deixou de falar.
- É verdade. Pode-se dizer bem pouco do matrimônio de um marinheiro, ou de qualquer outro matrimônio. Com relação à perpetuação da raça humana, há momentos em que
me parece que o mundo estaria muito, muito melhor se nossa espécie desaparecesse por completo. Nós lhe fizemos tão mal, sacrificamos a felicidade e criamos tal miséria
em toda parte que, apesar da ave cozida, minha pinta de clarete e a companhia do senhor, sinto-me muito angustiado. - Olhou ao redor da sala, que seguia cheia de
membros do clube, alguns sentados em mesas próximas, e acrescentou: - Ainda que certamente falo na qualidade de solteiro, o que me faz recordar que agora o senhor
é um homem casado: foi inumano de minha parte atrasar sua partida com meu Júpiter de pórfido. O senhor não desembarcou em Shelmerston nem pegou o carro postal de
Hampshire em companhia de Jack Aubrey, o que significa que ainda não pode ver Diana nem teve notícias suas. Nem tampouco da senhora Oakes.
- Isso mesmo - respondeu Stephen, um pouco intrigado pela ênfase de Blaine.
- Quer que tomemos o café na biblioteca?
- Será um prazer. É o melhor aposento do clube.
Era o melhor e também o mais esplêndido: três paredes cobertas de estantes cheias de livros, mobiliada com cômodas cadeiras e um tapete turco. Nunca havia ninguém
ali.
- Stephen - disse Joseph depois que o garçon lhes serviu o café, uma bandeja com doces e uma jarra de conhaque. - Não considero adequado de minha parte falar-lhe
o que tenho em mente em um lugar público, por mais fechada que esteja a habitação. Provavelmente estes ouvidos hipotéticos não sejam mais que uma de tantas alucinações,
fruto de uma mente que tem estado submetida e entregue por tanto tempo àquilo que, na ausência de um termo melhor, chamarei de Serviço de Inteligência, mas pode
ser que existam, e é por isso que me alegra tanto estar sentado com o senhor neste aposento quente e isolado. - Serviu-se de um pouco de café e com ar distraído
devorou meia dúzia de pequenos merengues. - Nas cartas que o senhor me enviou, pedia que cuidasse de Clarissa Oakes e falava da informação excepcional que lhe proporcionou.
- Clarissa, uma jovem senhorita empobrecida, havia trabalhado em um prostíbulo de moda situado a um tiro de mosquete dos clubes que havia em Saint James Street,
onde dada sua situação descobrira uma série de fatos muito curiosos. - Encarreguei-me dela, consegui para o pobre jovem Oakes uma ascensão e um barco, e quando morreu
a apresentei a Diana. A informação era indiscutivelmente excepcional, e com sua ajuda identificamos rapidamente ao cavalheiro coxo, pertencente à Ordem da Liga{6},
que estava relacionado com aqueles condenados sodomitas do Wray e Ledward. - Os "condenados sodomitas", a quem Blaine tachava como tais com ricos motivos, tinham
proporcionado informação, sobretudo informação naval, ao inimigo; foram delatados por um agente francês, e depois de diversas vicissitudes Stephen os despedaçou
pessoalmente em uma sala de dissecações das Índias Orientais.
"Infelizmente, resultou que se tratava de um duque aparentado com a realeza, um tal duque de Habachtsthal. Foi educado principalmente na Inglaterra, mas desfruta
de um pequeno principado próximo de Hannover, e umas propriedades mais consideráveis no Reno, ambas ocupadas pelos franceses, certamente, e que servem de cortina
de fundo ideal para a chantagem do francês. O ancião rei o tinha em grande apreço e se fosse homem solteiro, que não o é, talvez poderia ter se casado com uma de
nossas princesas, mas mesmo assim praticamente intocável.
- Se não me equivoco, este cavalheiro desfruta de um bom emprego no Exército, honorário, talvez, e de uma influência considerável.
- Sim. Atua como conselheiro de diversos órgãos, e através de seu assessor, o coronel Blagden, pode-se também dizer que toma parte em alguns comitês importantes.
- Chegados a este ponto, ambos aproveitaram para tomar um trago de conhaque, e depois Blaine prosseguiu: - Certamente não havia a menor possibilidade de empreender
uma ação direta contra ele, sem dispor previamente de provas férreas como as que tínhamos contra Ledward e Wray. Contudo, como esse não é o caso, nós nos escondemos
para anunciar a tormenta. Jamais o senhor acreditaria, Stephen, quantos modos bizantinos tem Whitehall de arejar uma ameaça, de fazer que reverbere de parede em
parede até alcançar o ouvido desejado.
- E quais foram as consequências?
- Para começar, direi que foram excelentes. Continuavam passando informação, como nos tempos de Ledward, mas de repente deixaram de fazê-lo. Contudo, neste momento
nosso cavalheiro já compreendeu melhor até que ponto é imune, e no mês passado perdemos boa parte de um comboio das Índias Ocidentais. Mais que isso, é um cortesão
de muita consideração próximo ao Ministério, e acredito que afrouxou o fio até a meada, ou em todo caso está a ponto de fazê-lo. Temo que esteja ressentido, temo
tanto pelo senhor como por mim: estimava muito a Ledward, e inclusive, da maneira bizarra desses cavalheiros, a Wray. É um homem muito vingativo... Não estou totalmente
seguro do que acabo de dizer-lhe, Stephen; mas há um ou dois detalhes que não fazem senão acrescentar minha inquietação, por muito ilógicos, tênues e mesmo supersticiosos
que possam parecer. Um deles é que tanto Montague como seu primo Saint Leger parecem aproveitar qualquer ocasião para pôr-me em evidência, tal e como me atreveria
a dizer que teve oportunidade de comprovar na reunião com o Comitê, quando tive que...
Um membro do clube vestido com uma casaca azul impecável e reluzentes botões entrou na biblioteca. Observou a ambos com olhar míope e se aproximou um pouco mais.
- Sir Joseph, o senhor não terá visto por casualidade a Edward Cadogan? - perguntou.
- Não, senhor, não o vi - respondeu Blaine.
- Então terei que ir procurá-lo na sala de bilhar.
A porta se fechou ao sair; entretanto Blaine aproveitou para servir-se de mais conhaque.
- Além disso, o senhor deve se recordar que me pediu que conseguisse os perdões tanto da senhora Oakes, como de seu querido Padeen, por terem cometido o crime de
abandonar Botany Bay sem permissão. Pareceu-me coisa feita. Clarissa era a viúva de um oficial da marinha morto em um combate muito louvável, e quando me pareceu
adequado não perdi ocasião de mencionar os serviços peculiares que sua senhora prestara ao Serviço de Inteligência; por outro lado, os serviços prestados pelo senhor
ao Almirantado e a alguns de seus pacientes mais ilustres poderiam bastar para amparar ao pobre Padeen. Contudo, meus progressos extra-oficiais não foram satisfatórios;
sofri atrasos estranhos e acusado uma certa reserva encoberta. Não gosto de pressionar com uma petição direta, menos ainda de fazê-lo por escrito, pelo menos até
estar seguro de obter uma resposta favorável. Havia pensado em abandonar os canais habituais e recorrer ao duque de Sussex, tendo em conta que tanto o senhor como
ele são membros da Royal Society e membros fundadores do Conselho contra a escravidão, mas partiu para Lisboa, e neste tipo de assuntos os prolegômenos devem fazer-se
verbalmente.
- Sem dúvida - admitiu Stephen.
- Seja como for - continuou Blaine depois de considerar a questão, - este segundo caso não é senão acadêmico. Se os dois sujeitos em questão não propagandearem sua
presença, a possibilidade de que sejam incomodados é extraordinariamente remota. Cito seu caso somente como um exemplo a mais das consequências que derivam do desagrado
de alguém importante. Se ele tornou pública a sua aversão, se ele exclamou "Esse velho estúpido de Blaine, do Almirantado", por exemplo, a notícia correria como
pólvora; pelo menos eu me tornaria levemente leproso, e ninguém em seu são julgamento quereria fazer-me um favor. Isso é tudo. Não pretendo dar a entender nenhum
tipo de malignidade direto, cujo braço abarque a ninguém exceto a mim, e talvez ao senhor, se é que realmente existe tal malignidade, e não é consequência de minha
mente esgotada e de uma imaginação desmedida.
- Estas são as folhas da Erythroxylon coca, a coca ou folha de coca - disse Stephen, depois de sacar uma bolsa de pele de lhama. - Já faz algum tempo que recorro
a ela, assim como muitos habitantes do Peru. Dobra-se na forma de uma bola e a introduz na boca, acrescenta-se a seguir um pouco de suco de limão, e a mastiga suavemente
de vez em quando, primeiro com uma bochecha e depois com a outra, experimentará no início um calor agradável na língua, nas bochechas e no extremo de sua laringe,
seguido por uma clareza extraordinária de pensamento que irá aumentando, além de serenidade e uma percepção que converterá qualquer preocupação em uma simples minúcia.
A maior parte das preocupações que possamos ter são o resultado de noções confusas, geralmente falazes, e do nervosismo. Tudo isso se acumula e aumenta em proporção
direta ao declive de nossa capacidade para raciocinar. Não lhe aconselho tomá-las agora se o senhor valoriza uma noite de sono reparador, pois, geralmente, a coca
costuma tirar o sono; mas prove-as amanhã pela manhã. Não há folhas como estas em todo o mundo, eu lhe digo.
- Se reduz a ansiedade, ainda que seja em um cinqüenta por cento, peço que me permita tomá-las agora mesmo - disse Blaine. - Esse duque holandês não é minha única
preocupação, ainda que sim a mais sobrevalorizada se a comparo com a situação do Adriático, em Malta, por não mencionar a atual crise do Levante.
A Ringle chegou a Shelmerston com os últimos estertores do vento do nordeste, cruzou a barra e jogou âncora junto da Surprise, cuja tripulação de guarda, uma guarda
de porto, cumprimentou com os gritos que eram de esperar.
- Onde diabo vocês tinham se metido?
- Que estavam fazendo? Bebendo até se embebedar, creio.
- Nem o coche mais lento teria demorado tanto a chegar até aqui.
- Uma carroça lhes teria ganhado por um dia inteiro.
Stephen, Tom Pullings, Sarah, Emily e Padeen se apressaram a desembarcar, apertaram-se em seus carros postais e partiram de imediato para Ashgrove. Contudo, apesar
de toda a pressa que se deram, tanto as cartas enviadas urgentemente, como os sinais e as ordens que viajaram por semáforo desde o teto do Almirantado até Portsmouth
lhes haviam ganhado por uma mão; e foi com o resultado do terceiro destes meios em seu poder, que a senhora Williams - uma mulher baixinha, gorda e de rosto aceso,
se possível ainda mais aceso devido ao nervosa que estava - pôde dizer a sua filha, Sophie Aubrey:
- A Ringle passou por Portland Bill às quatro e meia, de modo que o doutor Maturin chegará nesta mesma tarde. Acho que é meu dever, e nisto a senhora Morris concorda
comigo, compartir com o capitão Aubrey tudo o relativo ao desgraçado comportamento de Diana, de modo que possa contá-lo tranqüilamente ao seu amigo.
- Mamãe - disse Sophie com firmeza. - Eu lhe rogo que não faça tal coisa. Sabe perfeitamente que necessita de repouso, e o doutor Gowers disse que...
- O doutor Gowers, senhora, com sua permissão - anunciou o mordomo.
- Bom dia, senhoras - cumprimentou Gowers. - Se lhes parece adequado darei uma espiada no capitão, e depois veremos que podemos fazer pelas crianças. - Mais tarde,
quando descia pelas escadas, disse: - Tão bem como era de esperar, mas deve permanecer em completo repouso, com o quarto às escuras. Talvez poderiam ler-lhe algo
em voz baixa. Os sermões de Blair, ou os Pensamentos noturnos de Young iriam de maravilha. Recentemente sofreu uma grande agitação mental. Além disso, deve ingerir
cada três horas três destas gotas, dissolvidas em um copinho de água. Que jante esta noite, mas não muito, e que coma um pouco de queijo. Nem novilho nem cordeiro,
certamente. - Ele e Sophie se apressaram a dirigir-se aos quartos de Charlotte, Fanny e George, que, imediatamente depois de sua rápida chegada de Dorset, tinham
contraído febre alta, tosse ruidosa, dor de cabeça, inquietação, sede e certa tendência a queixar-se continuamente.
Quando saíram, a senhora Williams se aproximou caminhando sem fazer ruído do quarto onde repousava seu genro. Ali se sentou junto a sua cama e lhe perguntou como
se encontrava. Depois de ouvir que estava bem e que tinha muita vontade de ver Stephen Maturin, ela tossiu e encostou a cadeira um pouco mais.
- Capitão, para que o senhor possa ajudar seu desgraçado amigo quando chegue o momento de digerir tão terríveis notícias, acho meu dever contar-lhe que, desde o
nascimento dessa filha tonta, Diana tem bebido em excesso. Esteve conduzindo pela campina, jantando em companhia de pessoas que residem inclusive a vinte milhas
de distância, amiúde indivíduos de vida dissoluta como os Willis, e assistiu a bailes e orgias em Portsmouth, empenhada continuamente na caça da raposa sem sequer
um moço que a acompanhasse. Não é boa mãe para a pobre garota, e se não fosse por sua amiga, essa senhora Oakes, a menina estaria dia e noite sob os cuidados dos
serviçais. Pior ainda - disse baixando a voz ainda mais, - pior ainda, senhor Aubrey, e como poderá imaginar isto lhe digo com grande pesar pois se trata de minha
própia sobrinha, pior ainda, dizia, existem dúvidas a respeito de sua conduta. Digo dúvidas, mas... Entre outros nomes se mencionou com freqüência ao coronel Hoskins,
e a senhora Hoskins já não devolve as visitas de Diana. A senhora Morris afirma... Oh, mas aqui está ela. Entre, entre, Selina, querida.
- Oh, capitão Aubrey, temo que trago tristes notícias para o senhor - disse Selina Morris; - não obstante acho que deveria saber. Achei que dizer era o mais adequado,
pois sucede amiúde que um alimenta uma víbora em sua própia casa sem saber. Agora mesmo, a partir de uma informação fornecida por nosso homem Frederick Briggs, surpreendi
Preserved Killick dirigindo-se aos dormitórios do serviço com um odre de vinho. "Aonde acha que vai com esse odre de vinho, Killick?", perguntei, e com esse desembaraço
e a insolência que lhe são tão própias me respondeu: "O capitão me deu", e se há afastado como se nada. Eu o adverti que informaria ao senhor do sucedido sem perder
um minuto, e vim aqui antes que pudesse ocultar o odre ou devolvê-lo à adega. Eu lhe asseguro que o esforço me deixou sem fôlego.
- Muito amável de sua parte, senhora Morris - disse Jack, - mas o fato é que eu mesmo lhe dei o odre.
- Oh, verdade? Bem, em todo caso minha intenção era boa, disso estou segura, e vim correndo todo o caminho. Meu pai não costumava dar... - Mas ao perceber que os
costumes de seu pai não tinham a menor relevância para o caso, por mais que fosse um par do reino{7}, retirou-se sacudindo de tal maneira os ombros, os braços e
o traseiro, que fez patente seu descontentamento.
- Mas como lhe dizia antes que Selina entrasse aqui, empenhada em uma errônea ainda que justificada missão, o maior motivo de desaprovação e comentários o constitue
a relação praticamente aberta (como chamá-la, se não?) que manteve com o cavalheiro que administrava sua cocheira, o senhor Wilson, tarefa imprópria de uma mulher,
por mais que se trate de uma mulher casada, por certo. Trata-se de um homem de bom aspecto com umas costeletas ruivas que não têm nem ponto de comparação com as
de Selina Briggs, e que se bem não vivia na mesma casa ficava muito perto, em um canto isolado do lugar. A última vez que a vi, e isso já faz um tempo, pois nunca
oculto nada do que penso de minha sobrinha, ainda que ela não se ajustasse nunca a obedecer a sua tia porque sempre foi uma garota rebelde...
- Mas se a senhora mesma me disse que foi ela que lhe deu uma forte soma de dinheiro.
- Talvez fora assim. Mas o dinheiro não significava nada para ela (além talvez dos enormes benefícios que podem render; pois o doutor Maturin deixou muito, muito
dinheiro em suas mãos, dinheiro que maneja de forma descontrolada, além de carecer da devida supervisão). De toda forma Selina e eu lhe devolveremos a soma assim
que nos for possível. Contudo, a última vez que a vimos, a senhora Morris estava segura de que estava grávida; e agora nos informamos de que enviaram todos os cavalos
para Londres, que estão despedindo os moços, e que ela mesma já não está, sem dúvida porque fugiu com seu capataz. Explique-o tranqüilamente ao seu amigo, ou ficará
louco.
- Não penso fazer nada semelhante.
O silêncio de Jack havia convencido a senhora Williams de que a sua era uma decisão irrevogável.
- Palavra - exclamou indignada - de que em tal caso serei eu que falarei com ele.
- Se se atrever a falar com ele a este respeito - advertiu Jack em voz baixa mas carregada de convicção, - tanto a senhora como a senhora Morris e seu servente Briggs
se encontrarão fora desta casa em menos tempo do que canta um galo.
A senhora Williams mudara muito durante sua ausência, mas não tanto como para estar disposta a renunciar por bem a alojar-se em uma casa confortável desde que surgisse
a possibilidade. Fechou com força os lábios e, pálida de ira, abandonou o quarto com mais ou menos os mesmos gestos e sacudidas de sua amiga.
Jack se recostou. Era feliz demais para que a irritação durasse muito: já conhecia a maior parte do que a senhora Williams acabava de contar-lhe a respeito de Diana.
Durante a viagem, a correspondência de Sophie, apesar de ser tão espaçada, havia lhe mantido a par da situação; e ainda que sabia perfeitamente que a opinião de
Diana à respeito da moral sexual era muito parecida com a sua, não acreditava em nem uma décima parte de toda aquela fofoca, e sobretudo não estava disposto a acreditar
que ela tivesse fugido com o homem que administrava sua cocheira. Ainda que lamentava de sério a terrível, a funda e inevitável decepção que seria para Stephen a
filha que tanto ansiara, pensou que seu matrimônio resistiria. Assim fora até o momento, apesar das tensões extraordinárias às quais se vira submetido.
A alegria e a tristeza remexiam de atividade no interior de sua cabeça, e em parte, tanto para fugir da confusão resultante, como do doloroso que era para ele sentir-se
alegre em um momento assim, refletiu deliberadamente nas mudanças experimentadas pela senhora Williams. Diana, como muitas de suas amigas, sempre estivera mais do
que disposta em respaldar um bom cavalo mediante uma aposta, e depois de apostar uma forte soma a trinta e cinco para um no animal que ganhou em Saint Leger há dois
anos, achou-se com várias milhares de libras à sua disposição. Repartiu parte de sua aposta em pequenas somas, desde meio guinéu do boxe peso galo até as vinte e
cinco para a anciã lady West (cujo marido, assim como o pai de Diana, havia servido como oficial de cavalaria), mas a maior parte foi parar em algumas apostas de
cinco guinéus jogadas por senhoras viúvas de Bath, de boa posição, que gostavam de apostar: somas que os escritórios importantes e confiáveis de Londres nem sequer
se molestariam em administrar, enquanto que não tinha objeto sequer confiá-las em mãos dos do lugar, a triste ralé. Quando pagou a todas estas felizes criaturas,
sugeriu a sua tia - que naquele momento estava sem um penique e, oh, era mansa como um cordeiro - que se encarregasse da empresa em troca de uma porcentagem, pois
fazia as vezes de agente de apostas (aí está o caso), que Diana se lhe ensinaria como fazer as contas. Não acabava de entender que papel representava a senhora Morris
em tudo isto, mas o certo é que sua presença dava respeitabilidade ao negócio. O servente desta, um homem alto enfronhado em uma casaca negra que tinha aspecto de
ser um pastor dissidente e que exigia dos outros serventes que o chamassem de senhor Briggs, trabalhara para um propietário de cavalos de corridas e estava familiarizado
com o tema. A conversa de ambas fazia delas pessoas pouco recomendáveis, mas eram membros aceitos desse mundo, e sua respeitabilidade combinada com sua habilidade,
discrição e conveniência tinham rendido frutíferos resultados. Jack não entendia como a senhora Williams tinha feito para conciliar esta ocupação com a rigidez de
seus princípios, claro que, quando era rica, os princípios nunca lhe impediram de empreender a busca ativa de qualquer investimento que rendesse elevados benefícios
(até que um procurador que lhe ofereceu uma vez alguns negócios a trinta e um por cento que foi sua perdição), e talvez tudo isso fizesse parte de um todo. Fosse
como fosse, era cada vez mais rica e cada vez mais insuportável. Jack pensava muito nisto, pensando em um aforismo que tinha na ponta da língua, quando ouviu o ruído
das rodas no caminho, seguido pelas portas de uma carruagem que se abriam e se fechavam, passos no cascalho, mais vozes elevadas, passos no corredor, até que viu
Stephen abrir a porta do quarto onde tinham colocado sua cama.
- Diabo, meu pobre Jack - exclamou em pouco mais que um sussurro, - quanto lamento ver-te prostrado, meu amigo. Seus ouvidos e olhos doem? Pode falar?
- Claro que posso, Stephen - respondeu Jack em voz alta. - Hoje estou muito melhor, e não sabe quanto me alegra vê-lo. Mas em quanto a estar prostrado, é só a cabeça,
pois meu coração dá pulos igual a um cordeiro. Na quarta-feira pela manhã recebi um bilhete que o correio me trouxe, emitido pelo almirante ao comando do porto,
que homem mais valioso. Pequeno bilhete..., mas diga-me, que tal a viagem? Encontrou tudo em ordem na cidade?
- Tudo bem, obrigado. Sir Joseph me pediu que trouxesse uma estátua para entregá-la a um amigo seu em Weymouth, de modo que voltei com Tom a bordo da Ringle, peguei
Sarah e Emily em Shelmerston e viemos todos no carro postal. Tom nos acompanhou: ordens. Pode ouvi-lo rugir no jardim. Pretendo levar as meninas para Barham para
que fiquem com Diana um tempo, e depois as levarei ao Grapes, onde viverão com a senhora Broad. Mas Jack, parece que sua casa anda um pouco alvoroçada. Quer que
peça a Tom que ponha um pouco de ordem?
- Nem pense nisso. Lamento o ruído; esse chiado que ouve é coisa de Sophie. Acho que está acima falando com ele, mas o fato é que as crianças adoeceram, as três
de uma vez, e comigo neste estado o lugar está entregue a algumas raposas. Gostaria de saber o que dizia o bilhete, Stephen?
- Se tiver a bondade.
- Bem, pois resulta que obterei o comando do Bellona, de 74 canhões, com um galhardetão e Tom como capitão sob meu comando; o Terrível, outro navio de 74 canhões,
e três fragatas, uma das quais será provavelmente a Pyramus, além de uma meia dúzia de corvetas, para cruzar frente às costas da África das que tanto me falou Heneage
Dundas. Assombrado? Palavra que me tive uma boa surpresa. Acreditava que era uma dessas coisas que se dizem por aí, muito boas para serem verdade.
- Eu lhe felicito de todo coração por seu novo comando, meu amigo. Queira Deus que seja longo e próspero.
- Virá comigo, Stephen, verdade? Em princípio temos que combater o tráfico de escravos, como bem recordará; e por volta do dia 25 do mês que vem deveria estar tudo
disposto, governado e apetrechado.
- Eu gostaria muito. Mas agora, meu querido comodoro, devo ir dar uma espiada em seus filhos. Prometi a Sophie enquanto seu médico os visitava, porque assim poderemos
contrastar nossa sapiência sobre medicina. Também lhe prometi que não lhe fatigaria. Depois partirei rápido para Barham; se não chego lá ao anoitecer, Diana poderia
pensar que estou estendido em alguma vala perdida do caminho.
- Sophie faz um tempo que não a vê... - disse Jack depois de titubear, pois de repente sentia o coração imenso. - Acho que tem algo a ver com uma diferença de opiniões
com a tia de Diana. Mas Stephen, que não se decepcione caso não a encontre. Já sabe que ninguém tinha a certeza de que voltaríamos por estas datas.
- Espero que dentro de alguns dias possa voltar com Diana para ver como anda - disse Stephen com um sorriso; - entretanto, pedirei ao doutor Gowers que lhe prescreva
um pouco de heléboro para acalmar a agitação de seu estado de ânimo e aplanar o terreno para a cura.
Encontrou Tom Pullings no saguão. Estava completamente sozinho, pulava como uma cabra louca e parecia concentrado em toda sorte de palhaçadas. Ao ouvir os passos
de Stephen se virou rapidamente, e seu rosto transluzia tal felicidade, que nem sequer o Diabo em pessoa teria evitado sorrir.
- O senhor acha que poderia ver o capitão? - perguntou.
- Pode senhor, mas não fale alto e não faça nada que possa agitá-lo.
- Hasteará um galhardetão a bordo do Bellona, e me nomeou para que seja seu capitão - sussurrou Pullings depois de apertar seu ombro com mão de ferro. - Ele me promoveu
a capitão de navio! Sou capitão de navio! Achei que isso jamais aconteceria.
- Não sabe o feliz que me sinto - Stephen o felicitou, apertando-lhe a mão. - A este passo, Tom, viverei para felicitar-lhe por hastear sua insígnia de almirante.
- Obrigado, obrigado, senhor - disse Tom enquanto subia as escadas de dois em dois degraus. - Jamais tinha ouvido nada tão bem exposto, nem com tanta elegância e
engenho.
- Sophie, meu amor- disse Stephen antes de beijá-la em ambas as bochechas, - não poderia estar mais radiante, querida, ainda que percebo certa tensão em você; além
do mais, eu diria que inclusive tem febre. Acho, doutor Gowers, que poderíamos aproveitar a situação para receitar uma dose de heléboro tanto para a senhora Aubrey
como para o comodoro.
- O comodoro - murmurou Sophie, apertando-lhe o braço.
- Concordo plenamente com meu colega - disse Stephen depois que ambos observaram as crianças, que permaneceram aturdidas desde que entrou. - Trata-se de um estado
avançado de um princípio de sarampo. Observe o aspecto inchado e retardado que tem o rosto da pobre Charlotte.
- Não sou Charlotte. Sou Fanny; e meu rosto não está inchado nem retardado.
- Oh, Fanny, que lástima - exclamou sua mãe muito preocupada, antes de passar a chorar.
- Tão inchada e retardada que não tardará em manifestar-se a erupção. Lamento muito que seja sarampo, porque não poderei trazer as meninas para que conheçam as pacientes.
Como a maioria das pessoas negras, não estão protegidas contra a doença, e pode ser mortal para elas. E agora, querida Sophie, devo ir recolhê-las. Peço que não
se mova. - E, ao seu ouvido, acrescentou: - Sinto-me muito feliz por Jack.
- Em breve verei o rosto de uma pequena que não está nem inchado nem retardado, uma criatura que, além disso, é incapaz de responder desse modo - murmurou para si
Stephen enquanto descia pelas escadas.
No salão encontrou nada mais e nada menos que a senhora Williams, que estava a ponto de estourar do mau gênio que estava.
- Onde estão Sarah e Emily? - perguntou.
- As negrinhas? Eu as enviei para a cozinha, que é onde devem ficar - respondeu a senhora Williams. - Quando entrei não me cumprimentaram nem se dirigiram a mim
tratando-me de senhora. E quando lhes disse "Não sabem que não devem se limitar a dar bom dia sem nada mais como se falássem com o gato, e que ante uma dama devem
fazer uma reverência?", pois aí ficaram, olhando-se e sacudindo a cabeça.
- Tenha a senhora em conta, senhora - disse Stephen, - que passaram boa parte de sua vida a bordo de um barco de guerra, onde não há damas que valham, e onde as
reverências, se existem, tão somente se observam com o oficialato.
- Entendo que são de sua propriedade - replicou a senhora Williams, depois de aspirar com força; - Sendo assim, devo informar ao senhor que na Inglaterra está proibida
a escravidão, de modo que o mais provável é que o senhor perca suas meninas. Nas colônias, sim; mas jamais devemos esquecer que a Inglaterra é um país livre e que
quando os escravos põem um pé em solo pátrio também eles são livres. Certamente que, como estrangeiro, não pode compreender nosso amor pela liberdade. Mas jamais
devemos esquecer de prestar atenção a todos os aspectos de um negócio vantajoso, ou poderíamos descobrir que não adquirimos mais que fumaça. - Sua natureza ardilosa
e seu mau temperamento lhe impeliam a acrescentar algo com respeito à que a caridade começava em casa de um, pois ao pensar um pouco em suas roupas e desembaraço
pensou que talvez fossem protegidas em lugar de escravas, mas a pesar de tão chateada não se atreveu a chegar mais longe.
- A seus pés, senhora - disse Stephen depois de contemplá-la largamente com seus olhos claros, arrumar o chapéu e inclinar-se. Dirigiu-se à cozinha, onde encontrou
as meninas que descreviam para dois cozinheiros de barco afastados a beleza do gelo verde que tinham visto diante do cabo de Hornos.
Estiveram muito caladas durante o restante da viagem, e aproveitaram para observar a maravilhosa e desconhecida campina inglesa sob a luz do entardecer. Stephen
fez o memo. Seus pensamentos, assim como os de Jack, eram confusos dada a variedade de emoções fortes que sentia: a ansiedade do reencontro entremesclada com um
medo que temia sequer nomear; e, assim como Jack, procurou refúgio refletindo a respeito da senhora Williams. Não só deixara de ser a parente pobre e desesperada
- continuamente consciente de sua dependência, - a recuperar seu anterior grau de segurança em si mesma (ainda que não de domínio, pois Sophie se tornara mais forte
que ela) e de revoltante beatice; também havia experimentado uma mudança nesse ser anterior, uma espécie de dissipação acrescentada, uma tendência a abandonar-se
em um divã, uma grosseria absurda, ocasional e inapropiada, ou, no mínimo, uma expressão totalmente incongruente e incivilizada, como se ao manejar as apostas tivesse
absorvido parte da rudeza que reina no ambiente das corridas de cavalos.
- Não me surpreenderia nada que tenha adotado o costume de jogar um pouco de genebra no chá - disse em voz alta, - e que também cheire tabaco em pó.
Pouco depois de pronunciar estas palavras começou a chover. A paisagem se desvaneceu, e Emily adormeceu no colo de Padeen. O postilhão acendeu as lâmparinas que
haviam no interior da carruagem, pediu perdão, voltou a perguntar o endereço, e conduziu lentamente, clop, clop, clop. Percorrida uma milha mais ou menos, depois
de trocar gritos com o granjeiro de uma carroça, o postilhão voltou a deter-se, aproximou-se de novo da porta, rogou que lhe perdoassem e disse que temia muito que
tinham tomado o caminho equivocado. Poderia girar quando encontrasse espaço para fazê-lo. Esta cena se repetiu uma ou duas vezes mais, mas não muito depois do pôr
do sol chegaram ao pelado terreno elevado que conduzia a Barham Down.
A carruagem se aproximou da imponente porta que havia em metade do imóvel, em cujo interior não havia luzes acesas. As meninas acordaram inquietas, cansadas; Padeen
começou a desatar a bagagem; Stephen fez soar o sino e chamou com os nós dos dedos à porta, enquanto seu coração batia com força.
Não houve resposta, mas um cachorro começou a latir na parte traseira da casa, talvez na cozinha. Voltou a bater na porta com a sensação de que algo raro passava
ali dentro. Puxou a corda do sino, e pôde ouvi-lo reverberar dentro da casa, muito adentro.
Uma luz se filtrou pelas fendas da porta, que se abriu tudo o que prendia a trava.
- Quem é? - perguntou a voz de Clarissa.
- Stephen Maturin, querida. Lamento ter chegado tão tarde.
A trava deslizou com um golpe um pouco forte e a porta abriu se escancarando. Ali estava Clarissa com uma lanterna na mesa que havia ao seu lado e uma pistola na
mão.
- Oh, quanto me alegro de ver-lhe - exclamou com certo receio apesar de sua alegria. Desarmou a pistola, que obviamente estava carregada, largou-a em cima da mesa
e estendeu sua mão.
- Bobagens - disse Stephen, - para meus braços. - E a beijou.
- O senhor não mudou nada - disse ela sorrindo antes de retroceder um passo e convidá-lo para entrar.
- É sério que a senhora está sozinha? - perguntou sem mover-se, apesar de que seu olhar auscultava a funda escuridão que cobria o saguão, e com o ouvido atento ao
menor ruído.
- Sim... sim - respondeu depois de titubear. - Bem, além de Brigid.
Stephen se aproximou para acertar o pagamento com o moço da posta e voltou acompanhado pelas meninas. Padeen o seguia com a bagagem a custas.
- Aqui lhe trago alguns velhos companheiros de tripulação - disse levando-as pela mão. - Sarah e Emily, façam a devida reverência diante da senhora Oakes, e perguntem-lhe
como está.
- Como está, senhora? - perguntaram em uníssono.
- Muito bem, obrigado, queridas - respondeu beijando-as. Apertou a mão de Padeen, e ainda que não se deram de todo bem quando navegaram juntos a bordo da Noz-moscada,
os viajantes ansiavam ouvir uma voz amiga naquelas paragens tão estranhas e tão alheias a sua existência no mar. Não só lhes parecia estranho a paisagem, o campo,
pois carecia de qualquer das coisas que se encontrava a bordo de um barco e dos prazeres de um porto, cheio de gente estranha que em qualquer momento podia lançar-se
sobre um, aliás esta casa em particular se encontrava fora dos limites de sua experiência. De fato, era um edifício peculiar, elevado, frio e austero, um dos poucos
casarões antigos que não tinham sofrido alterações ao longo dos últimos dois séculos, de modo que o salão estendia-se até o teto, muito mais sombrio, se cabe, graças
ao horário e à insuficiente luz da lanterna.
Clarissa os conduziu lentamente ao longo do piso, quase como se temesse fazê-lo, até que dobrou uma curva à direita e se acharam em uma sala coberta por um tapete
que dispunha de candelabros e um fogo. Uma menina construía um castelo de baralho em uma mesa, junto à chaminé.
- Não se preocupe, senhor, se ela não fala - murmurou Clarissa, e Stephen se apercebeu da angústia controlada e implícita em sua voz.
A menina da mesa estava iluminada pelo fogo e por dois candelabros: estava meio virada para Stephen, que viu que se tratava de uma menina loira, magra e extraordinariamente
bela, ainda que a sua era uma beleza inquietante, própia de um duende. A medida que colocava as cartas seus movimentos se revelavam perfeitamente coordenados; olhou
para Stephen e para os outros por um momento sem mostrar o menor interesse, quase sem largar as cartas, e depois seguiu contruindo o quinto piso.
- Venha, querida, e apresente seus respeitos ao seu pai - disse Clarissa, pegando-a suavemente pela mão e levando-a, sem que fizesse nada para resistir, até onde
Stephen esperava de pé. Ao chegar, inclinou-se empertigada ante ele, e apesar de mostrar uma intenção de se afastar deixou que a beijasse. A seguir Clarissa a conduziu
até os outros; disse seus nomes; eles se inclinaram ante a menina e Brigid caminhou gracilmente até o castelo de baralho, sem se importar com seus rostos negros
e sorridentes, ainda que tenha levantado o olhar um momento para observar a Padeen.
- Padeen - disse Clarissa, - vá por esse corredor aí, e depois da primeira porta a sua direita - disse levantando a mão direita - encontrará a cozinha; lá estão
a senhora Warren e Nellie. Por favor, dê-lhes esta nota.
Stephen se sentou em uma poltrona de canto afastada da luz, de onde observou a sua filha. Clarissa perguntou a Sarah e Emily pela viagem, por Ashgrove e sua roupa.
Todas se sentaram em um sofá, e falaram demoradamente; a medida que venciam a timidez; mas o fizeram sem afastar o olhar da frágil, absorvida e mesmo possuída figura
iluminada pelo fogo da chaminé.
A senhoras Warren e Nellie tomaram seu tempo antes de aparecer, pois tiveram que pôr uniformes e coifas para estar à altura de poder apresentar-se ante o doutor,
que, afinal de contas, era o senhor da casa. Um cachorro de focinho branco se misturou entre elas e o primeiro alívio da terrível, da extraordinária dor que torturava
Stephen - uma dor tão intensa como nunca sentira, nem em intensidade nem em natureza - sobrevia quando o velho cachorro cheirou a parte posterior do tornozelo de
Brigid, e esta, sem deixar de mover suavemente a mão esquerda, estendeu a outra para coçar-lhe a testa enquanto um lampejo de prazer rompia sua seriedade. Contudo,
não houve nada mais que perturbasse sua indiferença. Viu desabar o castelo de baralho, vítima cambaleante de uma corrente de ar, com uma compostura sem igual; mastigou
o pão e tomou o leite junto a Emily e Sarah, sem que parecesse aperceber-se de sua existência; e depois de que Stephen lhe desejou boa noite, foi para a cama sem
protestar nem se queixar. Observou com outra pontada no peito que, se por casualidade cruzavam seus olhares, seus olhos seguiam movendo-se como teriam feito diante
de um busto de mármore, como se carecesse do menor interesse, ou pertencesse a outra espécie.
- Pode falar? - perguntou quando se sentou à mesa da sala de jantar em companhia de Clarissa, servido de frango frio com presunto, queijo, e um bolo de maçã, depois
de enviar os serventes para dormir.
- Não estou segura - respondeu Clarissa. - Às vezes a ouvi articular algo parecido com a fala; mas quando entro se cala.
- Até que ponto entende o que se diz?
- Acredito que entende praticamente tudo. E a menos que esteja em um de seus maus dias, é muito boa e obediente.
- Inclusive afetuosa?
- Gostaria de pensar que sim. Certamente, é muito provável, ainda que seja difícil distinguir suas amostras de afeto.
- Quererá falar-me de Diana? - perguntou Stephen enquanto cortava outro pedaço de queijo, depois de comer com fome de lobo durante um tempo. - Quer dizer, o que
a senhora creia conveniente dizer-me. - Clarissa o olhou como se hesitasse o que fazer. - Não me refiro a nada de amantes ou detalhes que a senhora não contaria
de uma amiga. Suponho que as senhoras são amigas.
- Sim. Foi muito amável quando Oakes se fez ao mar, e ainda mais amável quando o mataram; ainda que por então estava claro que Brigid não era como as pessoas normais,
o que lhe causava uma angústia tremenda, e por isso bebia em excesso e podia falar sem travas e mesmo mostrar-se indiscreta. Mas a verdade é que foi muito amável.
Ensinou-me a cavalgar, que consolo. Muito amável, e o senhor sabe que não sou uma pessoa ingrata - disse Clarissa, apoiando a mão no braço de Stephen. - Ainda que
tinha suas reservas comigo, provavelmente porque em seu foro íntimo estava convencida de que eu era ou fora sua amante. Quando aleguei minha completa indiferença
quanto a estes assuntos, ela se limitou a sorrir educadamente e a repetir essa frase tópica: Les hommes, c'est difficile de s'endormir sans (Os homens, é difícil
dormir sem); não podia prová-lo explicando-lhe todas as confidências que o senhor tão amavelmente escutou naquela remota ilha, quando viajávamos a bordo de minha
querida Surprise. Confidências, se me permite dizê-lo, que nunca havia feito a ninguém mais que ao senhor, coisa que me propus continuar fazendo no futuro, tal e
como me recomendaram tanto o senhor como sir Joseph. Para o mundo sou uma governanta que, agoniada por seu emprego em Nova Gales do Sul, fugiu com um marinheiro.
- Quando a senhora supõe que ela começou a sentir-se infeliz?
- Oh, muito cedo; bastante antes de conhecê-la. Acho que sentia nutas saudades do senhor. E pelo que ouvi o parto foi mais difícil do habitual: um esforço interminável,
também acompanhado do estúpido que fazia as vezes de parteira. O bebê ficou aos cuidados de uma ama-de-leite, certamente. Quando voltou, a menina parecia encantadora
e Diana se deu conta de que ia amá-la com toda sua alma. Mas imediatamente deu mostras desta total indiferença por tudo e por todos. A menina não queria carinho
nem ser carinhosa. Diana nunca na vida havia se encontrado com nada parecido, não sabia o que fazer e sofria muito por isso. Acho que quando cheguei lhe servi de
certo alívio, mas minha presença não foi suficiente e cada vez se tornou mais e mais infeliz, e inclusive difícil. Sua tia, a senhora Williams, não foi precisamente
amável com ela, conforme acredito. E a medida que o tempo passava Brigid não parecia experimentar nenhuma melhora, muito pelo contrário. A indiferença se converteu
em uma clara aversão, e mesmo em frio desprezo.
- Sabe se recebeu alguma de minhas cartas?
- Desde minha chegada não recebeu nenhuma, exceto a que lhe entregamos Oakes e eu. Teriam sido uma grande ajuda para ela. Começou a perder a esperança; já sabe,
perdem-se tantos barcos. Mesmo assim ansiava seu regresso. Obviamente. Então começou a cismar com a casa: o senhor não devia ter permitido que a comprasse; é fria,
solitária e incômoda. Amou aos cavalos quase até o final, mas de repente me disse que ia abandonar a cocheira, ainda que não ia mal, e uma semana depois enviou todos
os cavalos para Tattersalls com o senhor Wilson, o capataz; todos excetuando um cavalo e duas éguas que foram ao norte... Esqueci o nome da casa à qual os enviaram.
Em qualquer caso, fica perto de Doncaster. Despediu todos os moços exceto ao velho Smith, que conservou o emprego para cuidar de meu pequeno cavalo árabe, do pônei
e da carruagem. Contudo, sei que se correspondeu com suas amizades para procurar-lhes trabalho em suas casas, e me rogou que me ficasse aqui com Brigid até que pudesse
dispor as coisas. Deixou-me certa soma em dinheiro e me asegurou que me escreveria. Soube dela em uma ocasião, desde Harrogate, mas desde então, nada.
- Nunca foi muito amiga das cartas.
- Não. Contudo, escreveu uma que devia entregar ao senhor pessoalmente, em caso de que a fragata o trouxesse de volta. Gostaria de lê-la?
- Se é tão amável.
Quando Clarissa se foi, Stephen enrolou uma bola enorme de folha de coca, que, contudo, jogou ao fogo antes de que Clarissa abrisse a porta.
- Lamento ter demorado tanto - desculpou-se. - Por favor, se desejar abra-a de imediato. Trarei um pouco de vinho do porto, se puder achá-lo.
"Stephen - leu, - sei que despreza às mulheres fracas, mas não tenho coragem suficiente para agüentar mais. Se regressar, se algum dia regressar, não me depreze."
Clarissa voltou com uma jarra. Durante alguns minutos não trocaram uma só palavra. Ouvia-se a chuva cair do beiral. Após um tempo, Stephen se serviu do vinho, e
ao recuperar a consciência de si mesmo, disse:
- Clarissa, estou infinitamente agradecido por ter ficado aqui para cuidar de minha filha. Amanhã devo ir à cidade com Sarah e Emily, mas se posso deixarei Padeen
aqui com a senhora. Com a casa vazia, não acho que seja muito adequado que as senhoras fiquem aqui com um criado ancião. Prometi voltar a Ashgrove uma semana antes
de que a esquadra parta, e até então espero que possamos dispôr tudo melhor. Estava em Bath, disse como se falasse ao acaso, e na costa de Sussex. De sua parte Gosport
oferecia a comodidade de contar com um agradável ambiente naval, pois estava claro que um lugar tão isolado como Barham Down, com o tempo, teria afetado inclusive
ao ânimo de um anjo. Clarissa estava de acordo em que a casa era fria, escura e triste, ainda que desfrutava de alguns terrenos incríveis para montar. Havia se interessado
muito em montar.
- Claro, um cavalo brioso pode converter-se em um companheiro estupendo e compreensivo - opinou Stephen. - Mas agora, querida, quando tenhamos bebido o vinho do
porto, bom vinho este, eu gostaria de me retirar se me permite. Onde vou dormir? - Ouviu-se dizer a si mesmo: quase de imediato compreendeu que aquela era, que podia
ser, uma pergunta equívoca, e sua mente começou a dar voltas e mais voltas.
Clarissa guardou silêncio com expressão séria.
- Eu estive pensado - disse. - Nellie e eu limpamos na sexta-feira o quarto de Diana. Um rato havia arrumado sua toca entre um dos postes da cama e a cortina: parecia
uma meada redonda e macia com cinco criaturas rosadas em seu interior. Passou a correr, certamente, mas deixamos a toca em uma caixa, e quando voltou fechei a tampa
e os levei ao palheiro. Até agora não recordava se tinhamos voltado a fazer a cama, mas agora estou segura. Lençóis novos e cortinas limpas.
CAPÍTULO 3
- Papai! - gritava Fanny enquanto corria em direção à cocheira, da qual ainda a separavam duzentas jardas. - Papai, o seu uniforme chegou!
- Fan - exclamou Charlotte, a mais gorda das gêmeas, que corria atrás dela, - não grite tanto que a senhorita O'Hara ainda lhe ouvirá. Por que não me espera? Espera,
oh, espera-me. - Contudo, sua irmã seguiu correndo ao mesmo passo e, ao ver que não poderia alcançá-la, Charlotte se deteve, levou a mão direita à bochecha, mais
ou menos como fazia seu velho amigo Amos Dray quando advertia de um galerno aos do traquete, e rugiu a voz em grito: - Papai! Olá papai, seu uniforme de almirante
chegou! - Então, com a voz rouca devido ao esforço, acrescentou com um grito menos meritório: - Oh, George, deveria envergonhar-se. - Nesse momento, seu irmão pequeno
apareceu correndo por uma lateral do pátio do estábulo. Demonstrou uma melhor compreensão do tempo e da distância, de modo que atalhara pelo pátio da cozinha através
das groselheiras espinhosas, sem reparar nos espinhos, e saltara o muro para cair na vereda posterior. Naquele momento entrou a toda no estábulo, onde conseguiu
explicar-se com dificuldade, entre ofegos.
- Papai. Oh, senhor. O uniforme chegou. Na carroça de Jennings.
- Obrigado, George - disse seu pai. - Jennings sempre é muito pontual. Encantam-me as pessoas que são capazes de respeitar a pontualidade. Pode pegar este estribo?
- passara em casa o tempo suficiente para que seus filhos voltassem a se acostumar com a sua presença. As filhas entraram pela porta sem observar a menor cerimônia,
e repetiram a notícia com maior veemência e riqueza de matizes, como saber quem tinha visto o carro pela primeira vez, a que distância, a cor do cavalo e dos pacotes,
seu número e formas fizesse que as notícias recuperassem parte de sua frescura.
- Sim, minhas queridas- disse Jack sorrindo: eram um par de mulher-macho, estavam a meio caminho entre a infância e a adolescência, quase eram bonitas e, às vezes,
podiam mover-se com a elegância de uma égua. - George acabou de me dizer. Abotoe essa fivela daí.
Jack seguia impertérrito.
- Bem, e não pensa em provar? - exclamou Charlotte com certa indignação. - Mamãe estava convencida de que o senhor viria para provar.
- Não há nenhuma necessidade. Tudo estava em ordem quando o provei pela última vez para ajustá-lo, exceto alguns botões que era necessário trocar, e as dragonas.
Já me aproximarei quando George e eu acabemos com este sobrecinto.
- Nesse caso, poderíamos, por favor, abrir a caixa das dragonas? Nunca vimos de perto a dragona de um almirante. A senhorita O'Hara diz que não devemos tocá-las
sob nenhum pretexto, a menos que o senhor nos dê sua permissão; e mamãe foi dar de comer à avozinha e à senhora Morris.
- Oh, papai, não viria ainda que fosse para pôr a capa do uniforme diário?
- Por favor, senhor - rogou George, - por favor, posso voltar a ver o sabre do uniforme de gala? Suponho que o senhor o usará quando vista o uniforme de gala, creio.
Jack subiu a escadinha que tinha a sua esquerda para pegar uma sovela e uma meada de fio de barbante.
- Bem, condenado George - murmurou Fanny, observando os arranhões produzidos pelos espinhos das groselheiras, - os pagará se a senhorita O'Hara o vê assim. Fique
aí, que lhe arrumarei com meu lenço.
- Mamãe terá uma decepção tremenda se não provar o traje, senhor - disse Charlotte enquanto dirigia seu vozeirão ao sótão.
Quando Sophie voltou com sua mãe e a senhora Morris, Jack se encontrava na sala azul, que dispunha de um closet ao qual só se podia aceder desde essa habitação;
neste closet, Killick, com o brilho do fanatismo em seu olhar, e sem esperar a permissão de ninguém, havia desdobrado o conteúdo de todos os pacotes do alfaiate.
Ainda que em seu foro íntimo era tão sujo, dado e bonachão como fosse possível sê-lo na Armada, regozijava-se na cerimônia - provavelmente, com vistas a um festim,
seria capaz de ficar polindo a prataria até as três da manhã - e inclusive mais ante um bonito uniforme. Pelo menos Jack havia correspondido à primeira destas paixões,
pois possuía um monte de prata e, em uma ocasião, os comerciantes das Índias Ocidentais lhe presentearam com um magnífico festim; mas até o momento sempre se havia
revelado como uma autêntica decepção quanto ao segundo, pois Killick remendara calções e capas velhas, que logo tinha virado do revés quando se viam gastas. Claro
que durante boa parte do tempo em que Killick servia ao senhor Aubrey, este fora extraordinariamente pobre e inclusive passara longas temporadas acossado pelas dívidas.
Contudo, a situação tinha dado agora um giro completo: finíssimos bordados em todas direções; uma incrível abundância de galões de ouro; solapas brancas; um novo
botão com a coroa em cima de uma âncora encepada, tudo isso brilhante como o sol; chapéus de três bicos; diversas espadas magníficas, e um sabre simples e pesado
para a abordagem; cinturões de marroquim azul; uma estrela na vistosa dragona de ouro, cujo ponte era de prata fosca; colete e calções de pano branco; meias brancas
de seda; sapatos negros com fivelas de prata...
Depois de superar a fase na qual provou o uniforme diário, que também era esplêndido, Jack abandonou o closet envolvido na gloriosa auréola do Almirantado, com o
cabelo empoado, a medalha do Nilo refulgindo presa do peito e adornado o chapéu engalanado com o pingente de diamantes que lhe havia dado o Grande Turco, cuja peça
central em forma de coração cintilava com qualquer tipo de luz.
- Hei aqui a rainha de Maio - disse.
- Oh, magnífico! - exclamaram as senhoras; e inclusive a senhora Williams e sua amiga, que tinham permanecido sentadas mordendo os lábios pois haviam se declarado
contra semelhante dispêndio, estavam que se derretiam, e acrescentaram: - Glorioso, soberbo. Soberbo. Soberbo.
- Hurra, hurra! - gritou George. - Oh, que não daria para ser almirante!
- Como me gostaria que Helen Needlam pudesse vê-lo - disse Charlotte. - Teria que pôr um ponto final ao seu fuxico incessante sobre o general e suas penas.
- Fan - disse Sophie ao mesmo tempo que voltava a colocar a capa de seu marido, e passava com a mão nas franjas de ouro de uma das dragonas, - vá perguntar à senhorita
O'Hara se gostaria de vir vê-lo.
O relógio da sala de jantar deu a hora, seguido por outros situados a diversas alturas da casa, o último dos quais era o lento e rouco carrilhão do estábulo.
- Por Deus santo - exclamou Jack tirando a capa e voltando a entrar no closet. - O capitão Hervey não tardará nada em chegar.
- Mas não o jogue no chão! - protestou Sophie. - E por favor, eu lhe rogo: cuide bem destas meias quando as tire. Killick, obrigue-o a livrar-se das meias pela fita.
Os homens partiram, descendo a toda pressa e com grande estrondo pelas escadas: Jack, vestido como um cavalheiro qualquer propietário de uma fazenda, em lugar de
ser um pavão da marinha; Killick com seu aspecto habitual, magro e arisco. As senhoras aproveitaram para entrar no tocador de Sophie. A senhora Williams e sua amiga
se sentaram juntas em um elegante divã de cetim das Índias, com corações entrelaçados no respaldo, e Sophie tomou assento em uma poltrona de canto que ficava ao
lado de uma cesta de calções por cerzir.
Chamou ao serviço para pedir o chá, mas antes de que o servissem sua mãe e a senhora Morris tinham recuperado sua habitual expressão de censura.
- Que é tudo isto que ouvimos com respeito à essas roupas tão caras que fazem parte do uniforme de um almirante? Suponho que o senhor Aubrey não será tão indiscreto
e irreflexivo como para ascender a um emprego superior ao seu, ao cargo de almirante, nada mais e nada menos. - Desde que mencionava a autoridade, a senhora Williams
adquiria uma expressão devota e respeitosa, mas antes de que desaparecesse interrompeu o argumento de Sophie com as seguintes palavras: - Recordo que faz muito,
muito tempo, fazia se chamar capitão quando só era comandante.
- Mamãe - protestou Sophie em um tom de voz mais elevado do que era habitual nela. - Acho que se equivoca: na marinha sempre chamamos um comandante de capitão, por
uma questão de cortesia; enquanto que um comodoro de primeira classe, o que equivale a dizer um comodoro com um capitão sob seu comando, um capitão de navio que
neste caso é o senhor Pullings...
- Sim, sim, o bom do senhor Pullings - disse a senhora Williams com um sorriso condescendente.
-... tem a obrigação, não só por respeito mas por ditar assim as ordenanças do Almirantado, de vestir uniforme de contra-almirante. Aqui está, - disse em voz baixa
quando chegou o chá, mas o bastante alto como para que pudessem ouvi-la.
Mesmo em Ashgrove, uma casa razoavelmente bem governada, onde havia arraigada a tradição e se respeitava a ordem e a pontualidade, o chá acarretava certo transtorno;
contudo, após um tempo as mulheres mais velhas ficaram mais tranqüilas, concentradas na tarefa de desfazer o açúcar, e Sophie estava a ponto de fazer um comentário
quando a senhora Williams, com essa presciência que amiúde encontra-se nas mães, interrompeu-a ao perguntar:
- E o que é tudo isso de umas indagações feitas no povoado a respeito de Barham Down?
- Não sei a que se refere, mamãe.
- Briggs se informou de que um homem entrou na taberna e perguntou por Barham Down e por quem vivia lá, um homem que parecia o escrevente de um advogado. E que tinha
que ir lá por um assunto relacionado com veneno para ratos, perguntou a respeito ao taberneiro. Conforme parece, a maior parte das perguntas versavam sobre a senhora
Oakes, não sobre Diana. Não era questão de recolher provas para uma conversa criminal ou um divórcio com Diana como parte culpada, tal e como eu havia pensado, aliás
que tinha algo a ver com a senhora Oakes: dívidas, não tenho a menor dúvida. Mas também cabe a possibilidade de que o senhor Wilson, o capataz, tivesse esposa em
alguma parte e...
Sophie fora criada com tal pantomimice que em primeiro lugar não tinha uma idéia concreta de como se faziam as crianças, e, em segundo, não sabia como nasciam, até
que o experimentou com evidente surpresa em suas carnes; e uma das mudanças experimentadas por sua mãe que mais a surpreendiam era este intenso, quase obsessivo
e amiúde singularmente específico interesse (um interesse matizado pela desaprovação, certamente) com respeito à quem ia, ou queria ir, à cama com quem, interesse
compartido sem reservas pela senhora Morris, de tal maneira que ambas repassavam os detalhes de crimes e presos durante uma hora ou mais. Pensava nisto quando ouviu
a sua mãe dizer:
- Assim que, certamente, tomei emprestado o calesín{8} e Briggs conduziu todo o caminho por essa estrada pedregosa e empinada que conduz a Barham. Depois de chamar
à porta me disse que não estava apresentável, mas insisti e respondi que queria ver à menina, que afinal de contas era minha neta, sangue de meu sangue. De modo
que me deixou entrar. Achei que estava muito bem vestida para ser a viúva de um simples tenente, e que seu chapéu era outré: acho que hospeda certas pretenções com
relação a seu aspecto. Em fim. Perguntei-lhe a fundo, disso pode estar segura: qual era seu sobrenome de solteira? Para quem trabalhava em Nova Gales do Sul? Ensinava
a tocar a harpa? Tinha que ser a harpa. Onde teve lugar seu curioso, por não dizer "suposto", casamento? Mostrou-se esquiva, deu-me respostas breves e insatisfatórias,
e quando confiava que se mostraria mais sincera comigo, em lugar disso me tirou da casa. Contudo, não estava disposta a permitir que uma garota adoentada à qual
em nenhuma parte lhe pagariam mais de cinqüenta libras por ano, como muito, tirasse-me da casa, assim que lhe disse que voltaria. Resulta que, estando Diana ausente,
não tenho direito de supervisionar a educação e bem-estar da menina? Se existe uma relação indesejável nessa casa, ela terá que partir. Falarei com meu agente, e
lhe direi que...
- Esquece, mamãe - interrompeu Sophie quando sua mãe parou de falar, - esquece que o doutor Maturin é o tutor legal de sua própia filha.
- O doutor Maturin, o doutor Maturin, bah, bah, hoje aqui, amanhã ali: pelo menos faz seis semanas que não sabemos nada dele. Dessa forma não pode proporcionar o
bem-estar de sua filha - disse a senhora Williams. - Eu mesma me nomearei sua tutora.
- Chegará amanhã pela tarde - disse Sophie. - Seu quarto está preparado, pois dormirá aqui e não em Barham para poder ficar mais perto da esquadra durante estes
últimos dias tão importantes.
Stephen cavalgou para Ashgrove Cottage, sombrio depois do longa e inútil viagem que realizara para o norte, sombrio por ter parado em Barham, onde se informou da
vileza da senhora Williams. Contudo, tanto pessimismo se via perfurado aqui e ali por um raio reluzente de esperança. Em um pequeno aposento quadrado no piso superior
de Barham, de cuja janela se viam os estábulos, agora quase vazios, Diana havia guardado um monte de papéis e espécimes: era um aposento seco, onde se preservariam
intactos. Do outro extremo do corredor havia um quarto, às vezes conhecido como quarto das crianças, onde havia umas bonecas sem usar, um cavalinho de madeira, aros,
bolas grandes coloridas e outros; e ao sentar-se para arrumar os papéis, folhas e folhas de uma Hortus siccus que recolheu nas Índias Orientais e que enviou para
casa de Sidney, ouviu a voz de Padeen proveniente do corredor.
Quando Padeen falava em irlandês gaguejava muito menos, e quase não o fazia a menos que estivesse nervoso, e nesse momento sua fala fluía como a água de um rio:
- Muito melhor, bendita seja a boa cravelha... Um, um pouco mais alto... Oh, o ladrão negro, que há faltado ao remo, isso fazem quatro; agora o quinto, glorioso
são Kevin, eu mesmo tenho aqui ao quinto...
Aquilo era normal. Amiúde Padeen falava sozinho quando jogava dados, tabas{9} ou cerzia a rede. Stephen não prestava atenção suficiente àquele ruído caseiro e agradável,
mas de repente deu um respingo. O papel escorregou entre seus dedos. Era como se tivesse ouvido uma vozinha infantil exclamar "Doze!" ou algo muito parecido. Doze
em irlandês, certamente. Levantou-se da cadeira com toda a precaução do mundo e semicerrou um pouco a porta, colocando um livro de cada lado para impedir que pudesse
se fechar.
- Que vergonha, bichinho, querido - disse Padeen, - deve dizer a dó dhéag. Escute, doçura, escute outra vez, certo? A haon, a dó, a trí, a ceathir, a cúig, a sé,
a seacht, a hocht, a naoi, a deich, a haon déag, a dó dhéag, com esse som parecido ao yia yia. Bem, vamos lá, a haon, a dó...
- A haon, a dó... - repetiu a voz pequena e aguda até chegar ao "a dó dhéag" que pronunciou precisamente com o sotaque de Padeen, característico do condado de Munster.
- Minha coisinha, que Deus, Maria e são Patrício lhe bendigam - celebrou Padeen dando-lhe um beijo. - Agora lhe deixarei jogar o aro ao quarto, com o que teremos
doze no total, pois oito e quatro são doze.
O sino que chamava para janta ressou no ouvido atento de Stephen, com um resultado muito particular, quase galvânico. Dispersou sua linha de pensamentos de forma
estranha, e ainda não se recuperara de tudo quando o piso do corredor rangeu com o peso de Padeen: era um grandalhão, alto como uma torre, ainda que não tão largo
de costas talvez como Jack Aubrey. Estava claro que levava a menina, pois os ouviu falar mediante burburinhos sussurrados ao ouvido.
- Não devia ter lhe informado da visita da senhora Williams - disse Clarissa depois de desfrutar de uma janta silenciosa. - Tirou seu apetite. Verá, abriu passagem
à força até chegar ao quarto de Brigid, assegurando aos gritos que a curaria com uma boa surra. Seus gritos assustaram à menina.
- Sim, verdade, causou-me uma grande angústia conhecer a conduta dessa harpia egoísta e ingovernável; mas estava a senhora em seu direito de fazer-me saber. De outra
forma, quem sabe se tivesse voltado a tentar, com todo o estrago que pode causar. Pelo menos agora posso encarregar-me disso. - Agitou o vinho com o garfo durante
um momento; percebeu o que fazia, observou atentamente o garfo, limpou-o com o guardanapo e acrescentou: - Não. Não foi a angústia o que me tirou o apetite, mas
a alegria. Ouvi Brigid falando alto e claro com Padeen.
- Oh, estou tão contente. Mas... - titubeou. - Tinha sentido o que dizia?
- Certamente que sim.
- Eu também os ouvi. E Nelly. Mas só quando estão sozinhos, porque sempre estão juntos como já saberá, no sótão, ou com as galinhas e a porca negra. Pensamos que
falava por falar, o tipo de linguagem que utilizam as crianças.
- Conversam em um gaélico de primeira.
- Estou tão contente - repetiu Clarissa.
- Escute - disse Stephen. - Acho que neste momento o equilíbrio é muito delicado, e não me atrevo a fazer nenhum movimento a respeito: não me atrevo a fazer nada
que possa dar atrapalhar sua recuperação. Devo refletir, e consultar o caso com colegas meus que saibam muito mais que eu. Há o doutor Willis, de Portsmouth. Há
o grande doutor Llers, de Barcelona. Pelo momento, peço que a senhora haja como se tudo seguisse igual. Deixemos que floresça.
Olharam-se em silêncio e Stephen acrescentou imediatamente:
- Quanto me alegra que tenha me contado dessa mulher. Na tessitura atual sua violência ignorante poderia estragar, arruinar, profanar... Devo encarregar-me dela.
- E como pensa fazê-lo? - perguntou Clarissa.
- Ocorrem-me várias possibilidades - respondeu Stephen; mas a ferocidade pálida e reservada de sua expressão se desvaneceu por completo ao entrar Nelly com o pudim,
seguida de Padeen e Brigid. Sua filha se sentou na cadeira que tinha almofadas empilhadas, e voltou a cabeça para ele quando Stephen a ajudou a comer o mingau. Achou
distinguir um inconfundível olhar de aprovação, ainda que não se atreveu a dirigir-lhe a palavra diretamente. Foi só quando a janta terminou, que disse em gaélico:
- "Padeen, dentro de doze minutos traga-me a égua pequena". - E suas palavras atraíram rapidamente a atenção daquela cabecinha loira, normalmente imóvel e abstraída
em um mundo interior.
Percorreu com um cômodo galope milhas e milhas de estrada dura, no lombo da égua pequena, até topar com a barreira de pedágio, e dali passou para uma vereda que
atravessava as plantações de Jack Aubrey até chegar ao montículo onde construíra o observatório, já que o capitão Aubrey não só era um oficial profissionalmente
interessado pela navegação astronômica, mas também um astrônomo aficionado e, ainda que ninguém suspeitaria dada a expressão franca e honesta de seu rosto, era um
matemático: um matemático de formação tardia, verdade, mas que possuía tal sabedoria que havia chegado a publicar seu estudo sobre os satélites jovianos no Philosophical
Transactions, artigo que depois fora traduzido por diversas publicações científicas do continente.
Jack acabava de fechar a porta deste edifício, e quando Stephen apareceu ao dobrar a última curva do terreno se encontrava de pé no degrau, contemplando o Canal.
- Ei, Stephen! - cumprimentou com a voz em grito ainda que a distância não desse para isso. - Já está aqui? Que tipo mais esplêndido você é, por minha honra! Chegou
no dia combinado e quase com pontualidade. Apostaria algo em que você morria de vontade de ver a esquadra, glorioso espetáculo! Ainda que não tem nada a ver com
o que lhe prometi em primeira instância, porque nenhuma esquadra é o que se espera que seja. Estive olhando-a durante esta última meia hora, desde que a Pyramus
arribou. - E como não podia ser de outra maneira, a fresta do domo móvel de cobre apontava diretamente para Portsmouth, Spithead e Saint Helens. - Gostaria de dar
uma espiada? Não, não é nenhum incômodo... - Observou a sela de Stephen, guardou silêncio, e em um tom completamente distinto, acrescentou: - Mas santo Deus, que
maneira tenho de fuxicar sobre meus própios assuntos. Desculpe-me, Stephen. Como está? Confio em que sua viagem tenha sido pro...
- Encontro-me bem, obrigado, Jack. Alegra-me muito comprovar que sua cabeça se recuperou do golpe, ainda que tenha um aspecto de cansado... Minha viagem não saíu
como tinha desejado. Esperava encontrar Diana, e não foi assim. Contudo, achei alguns de seus cavalos; hei aqui um, por exemplo.
- Eu a reconheci - disse Jack acariciando a égua. - Eu também esperava que...
- Não. Ela vendeu duas éguas e um castrado a um criador de cavalos de corridas que reside perto de Doncaster. Prontificou-se amavelmente a vender-me a Lalla, mas
pouco sabia dos movimentos de Diana além de Ripon e Thirsk, onde ela tem algumas amizades. Ao que parece mencionou também Ulster, onde vive Frances. - Saltou da
sela e passearam lentamente em direção aos estábulos. - Tudo isto não tem nenhuma importância. Recorda-se de Pratt, o caçador de recompenças?
- Por Deus, acho que sim - exclamou Jack, que tinha motivos de sobra para isso. Aprazia um tempo Jack fora acusado de fraudar a Bolsa, e Pratt, que por ser filho
de um carcereiro passara boa parte de sua infância entre ladrões, e que tinha melhorado seus conhecimentos do sub-mundo servindo com os mensageiros de Bow Street
antes de independentizar-se, havia atuado em benefício de Jack e de seus advogados, e conseguira encontrar uma testemunha essencial em um alarde de maestria, maestria
que resultou do todo ineficaz, dado que o negócio dependia da identificação da testemunha e podia-se dizer que lhe apagaram o rosto.
- Enfim, contratei os serviços de Pratt e seus colegas para encontrá-la, e não tenho nenhuma dúvida de que o farão. Não pretendo persegui-la, como bem compreenderá,
irmão. Contudo, quero dar-lhe a entender que atua sob duas suposições falsas, cuja falsidade me propus demonstrar-lhe, coisa que só posso fazer falando com ela diretamente.
- Certamente. É lógico - disse Jack para afugentar o silêncio, e a égua, ao virar a cabeça, observou-os com seus lustrosos olhos árabes, ofegando suavemente sobre
eles enquanto os olhava.
- Já sabe sobre Brigid, certamente. Acreditam que seja meio tonta, o que é completamente incorreto. A sua é uma forma particular de desenvolvimento, que se caracteriza
por ser mais lenta que a da maioria; contudo, Diana não o sabe. Acha que é meio tonta, e não pode suportar... - Jack também sentia aversão por qualquer variante
da loucura, e quase lhe escapou um comentário -... e ao pensar sem dúvida que sua presença não só era inútil como positivamente daninha, fugiu. Acha que eu deveria
culpá-la por fazê-lo, o que implica no primeiro mal-entendido. O segundo, como já disse, é que Diana acredita que Brigid é meio tonta, e me agradaria informá-la
de que está em um erro. As crianças deste tipo são muito mais raras que os autênticos meio tontos (a quem eu diria que se pode distinguir só em vê-los), mas não
são tão insólitos. Há dois no povoado de Padeen, no condado de Kerry; na Irlanda os chamam de leanaí sídhe, e não diria que ambos se curaram mas o fato é que acabaram
vivendo mais neste mundo que em qualquer outro. Foram ajudados no momento adequado. Padeen é o tipo de pessoa capaz de fazer isso. Tem dotes extraordinários para
isso.
- Recordo como pegou com a mão um gato que estava preso em uma armadilha, e o livrou sem levar um só arranhão. Por não mencionar aquele cavalo selvagem que capturamos
para o sultão.
- Precisamente: citou tão somente dois exemplos. Mas neste desenvolvimento em particular, no desenvolvimento particular de Brigid, o equilíbrio constitue um fator
exageradamente delicado. As circunstâncias, o ambiente físico sem ir mais longe, são excepcionais. Devo consultar o doutor Willis; devo escrever ao doutor Llers
de Barcelona, grande especialista na matéria. Contudo, a senhora Williams deve manter-se à margem custe o que custar. Apresentou-se em casa e insultou Clarissa fazendo-lhe
todo tipo de perguntas impertinentes, antes de insistir em ver a menina, a sua neta: assustou-a, e a ameaçou em dar-lhe uma boa surra se não falasse. Alegra-me poder
dizer que Clarissa a tirou da casa sem contemplações.
- Tenho em grande estima por Clarissa Oakes.
- Digo o mesmo. A senhora Williams não deve voltar a Barham. Devo ter umas palavras com ela a respeito.
Quase haviam chegado ao pátio do estábulo.
- De fato - disse Jack, - resulta que tanto ela como a senhora Morris estão lhe esperando: eu lhes disse que chegaria hoje mesmo, e lhe esperam. Não poderiam estar
mais apuradas.
- De que se trata?
- Seu homem, Briggs, brinca de espião muito amiúde: alguns homens lhe fizeram uma emboscada em Trumps Lane quando voltava da taberna, e o golpearam. Noite escura,
nem uma só palavra; organizaram tal estrépito que parecia que estavam surrando a um cachorrinho.
- Oh, doutor Maturin - exclamaram as três crianças mais ou menos em uníssono, ao chegar correndo pelo caminho lateral. - Aqui está. Por fim chegou! A avó nos colocou
junto ao quiosque para avisar-lhe de sua chegada. A senhora Morris e ela lhe rogam que as cumprimente de imediato. Briggs foi emboscado e golpeado pelos Negros de
Hampton...
- O senhor Owen, o boticário, pôs um emplastro nele; conforme sua opinião pode ser que sobreviva, mas duvidamos muito.
- Por favor, o senhor poderia nos acompanhar agora mesmo? Prometeram-nos quatro peniques se o levássemos lá de imediato. Papai cuidará de seu cavalo, verdade, papai?
- É uma égua, ignorante. - Objetou Fanny. E dirigindo-se a Stephen acrescentou: - Uma égua árabe se não me equivoco, senhor.
Chegou Stephen, e depois de agüentar durante um bom momento os gritos, a indignação e o relato detalhado dos fatos, pediu às senhoras que o deixassem sozinho com o paciente. Realizou o exame: tinha ante si um rosto verdadeiramente inchado, e a costas e os glúteos marcados pelo extremo das cordas e das hastes com as quais o haviam açoitado; contudo, não tinha ossos quebrados, cortes ou incisões. Para Stephen lhe surpreendeu o fato de que um homem tão acostumado aos hipódromos estivesse tão incomodado com tais mostras de moderada violência; apesar disso, Briggs estava prostrado e bem prostrado, assustado e mesmo aterrorizado. Tinha a dignidade no chão, a sensação de ter sido ultrajado, e talvez era represa de algo póximo a uma covardia abjeta. Stephen aprovou os curativos do senhor Owen, prescreveu alguns
medicamentos inofensivos e adequados, e cruzou o corredor até onde as duas inquietas damas esperavam sentadas.
XXXXXX
- Necessita tranqüilidade, luz tênue e uma companhia que não seja muito exigente - disse. - Se a senhora Morris fosse tão amável de ficar com ele, explicarei os pormenores do tratamento à senhora minha tia Williams, pois nossa relação familiar me permite o uso de termos e expressões médicas que acharia embaraçoso empregar na presença de qualquer outra dama.
- Não o terão castrado? - perguntou alarmada a senhora Williams quando ficaram sozinhos. - Creio que ao dizer "embaraçoso" não se referisse a isso.
- Não, senhora - respondeu Stephen. - Não terá a senhora um eunuco a seu serviço, não tema.
- Quanto me alegra sabê-lo - disse a senhora Williams. - Ouvi que os ladrões amiúde fazem essas coisas quando suas vítimas resistem. Fazem porque, conscientes de que amiúde o cavalheiro oculta em..., bem, o senhor já entendeu.
- Conhece a identidade dos ladrões?
- Estamos praticamente seguros disso, e me propus de imediato a informar a sir John Wriothesley, o juiz de paz. No início meio suspeitamos dos marinheiros de cuja justa reprimenda era responsável, mas o senhor Aubrey, o comodoro Aubrey, negou redondamente tal possibilidade; e o senhor verá, praticamente é um almirante. Mas então resultou que tinham todos rostos negros, de modo que se tratava obviamente do bando conhecido como os Negros de Hampton, que atuam com o rosto enegrecido quando saem de noite para caçar furtivamente. Suponho que sabiam perfeitamente que...
Patrick O'brian
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