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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CRÂNIO SOB A PELE / P.D. James
O CRÂNIO SOB A PELE / P.D. James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Webster estava obcecado pela morte e via a caveira sob a pele; as criaturas sem assumo clandestinamente se tornavam para trás em um sorriso sem lábios.
Bulbos de narcisistas em lugar de globos olhavam fixamente das conchas dos olhos. Ele sabia que o pensamento se abraça a membros mortos) estreitando seus ânsias e prazeres.
T.S. Eliot, Murmúrios de imortalidade.
Nem a mais diligente investigação de mapas e gráficos conseguirá descobrir Courcy Island ou seu castelo vitoriano cravados à altura da costa do Dorset, pois sua realidade só existe na imaginação da autora e na de seus leitores. De igual maneira, os acontecimentos passados e recentes da história do Courcy, manchada de sangue, e os personagens que participaram dela, não guardam nenhuma relação com feitos e pessoas reais.


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PRIMEIRA PARTE
VISITA Uma ILHA PRÓXIMA À COSTA.
1.
Sem dúvida alguma, a nova placa estava inclinada. Cordelia não precisava apelar ao recurso do Bevis -esquivar o tráfico de meia amanhã que lotava Kingly Street
e observá-la com os olhos entreabridos através de uma massa de táxis e chirriantes caminhonetes de partilha-- para reconhecer o fato puramente matemático: o elegante
retângulo de bronze, tão atentamente desenhado e tão caro, estava desnivelado quase dois centímetros. Pensou que assim inclinada parecia, face à simplicidade de
sua inscrição,
pretensiosa e ridícula, própria de uma esperança irracional e de uma empresa desatinada:.
Agência de detetives Pryde (Terceiro piso) - Proprietária: Cordelia Gray.
De ter sido supersticiosa, habria acreditado que o inquieto espírito do Bernie protestava contra a nova placa e a supressão de seu nome. Na verdade, em seu momento
terá-lhe parecido simbólica a eliminação definitiva do Bernie por suas próprias mãos. Não lhe tinha ocorrido trocar o nome da agência: enquanto existisse,
sempre seria Pryde. Mas lhe tinha resultado cada vez mais fastidioso que os clientes, desconcertados tanto por seu sexo como por sua juventude, sempre lhe dissessem:
"Pensei que me receberia o senhor Prydes". Seria melhor que soubessem desde o começo que agora só havia um proprietário e que era do sexo feminino.
Bevis se reuniu com ela na porta. Acentuou sua paródia de desolação com sua cara graciosa e volúvel, ao tempo que dizia:.
-Medi-a contudo cuidado do chão, seriamente, senhorita Gray.
-Sei. A calçada deve estar desigual. É minha culpa, teria que ter comprado um nível de borbulha.
Mas Cordelia tinha tratado de regular o dinheiro para os gastos menores, dez libras semanais que guardava na lata de cigarros amolgada que tinha herdado
do Bernie, com sua gravura da batalha da Jutlandia e da que o dinheiro parecia escapar mediante um misterioso processo não relacionado com o desembolso real.
Tinha-lhe resultado fácil aceitar a afirmação do Bevis no sentido de que sabia dirigir o chave de fenda, esquecendo que para ele qualquer tarefa era preferível
a que se supunha devia estar fazendo.
-Se fechar o olho esquerdo e mantenho assim a cabeça, parece corretamente colocada- disse Bevis.
-Mas não podemos confiar em uma sucessão de clientes tortos e com torcicolo, Bevis.
Ao contemplar a expressão do menino, caído agora em um desespero extremo que teria sido adequada para o anúncio de um ataque atômico, Cordelia sentiu o
escuro desejo de lhe consolar por sua própria incompetência. Um dos aspectos desconcertantes de ser empresaria -papel para o que se sentia cada vez mais inepta-
era
esse excesso de sensibilidade ante seus sentimentos, associado a uma vaga sensação de culpa. Sabia que sua atitude era irracional, pois em realidade não empregava
diretamente
ao Bevis nem à senhorita Maudsley. Contratava a ambos no escritório de emprego da senhorita Feeley, por semana, quando os recursos de sua caixa o permitiam. Estranha
vez tinha que competir para contar com seus serviços: os dois estavam invariável e sospechosamente disponíveis quando os solicitava. Ambos lhe brindavam honradez,
um estrito cumprimento do horário e uma fanática lealdade; sem dúvida alguma, ambos lhe teriam proporcionado um eficiente serviço administrativo em caso de haver
estado a seu alcance. De fato, aumentavam sua própria ansiedade, pois sabia que o fracasso da agência seria quase um golpe tão duro para eles como para si mesmo.
Quem mais sofreria seria a senhorita Maudsley, uma bondosa mulher de sessenta e dois anos, irmã de um pároco, que estirava sua atribuição em um chiqueiro do South
Kensington e cuja afabilidade, idade, incompetência e virgindade a tinham convertido no bobo dos inumeráveis serviços de mecanografia pelos que havia
transitado da morte de seu irmão. Bevis, com seu frívolo encanto ligeiramente venal, estava melhor equipado para sobreviver na selva londrino. Passava
por ser um bailarino que trabalhava temporalmente como datilógrafo enquanto descansava, inapropriado eufemismo quando se aplicava a um moço tão inquieto que constantemente
movia-se em sua cadeira ou fazia piruetas nas pontas dos pés com os dedos estendidos, os olhos exagerados e em estado de alerta, como se se dispusera a empreender
o vôo.
Uma escura escola de administrativos já fenecida lhe tinha expedido um certificado no que constava que datilografava trinta palavras por minuto, mas Cordelia
recordou-se a si mesmo que nem sequer essa entidade tinha garantido sua destreza para assumir nimias tarefas manuais.
Surpreendentemente, a senhorita Maudsley e ele resultaram advir-se no trabalho, e na recepção se conversava muito mais, entre arrebatamentos de inexperiente datilografia,
pelo que Cordelia teria esperado de duas personalidades tão díspares, habitantes de mundos tão alheios entre si. Bevis contava a fervuras suas tribulações pessoais
e profissionais, generosamente salpicadas de imprecisas fofocas do mundo artístico, em ocasiões caluniosos. A senhorita Maudsley aplicava a esse desconcertante
mundo sua própria mescla de inocência, teologia, moralidade de reitoria e sentido comum. Às vezes a recepção se voltava muito acolhedora, mas a senhorita Maudsley
sustentava
pontos de vista antiquados sobre a correta distinção que devia fazer-se entre empresário e empregado, e o despacho interior onde trabalhava Cordelia era sacrossanto.
De improviso, Bevis gritou:.
-Santo céu, é Tomkins!.
Apareceu na porta um gatinho negro e branco que meneou uma pata com enganosa indiferença, desdobrou sua cauda rígida, estremeceu-se com enlevada apreensão e logo
precipitou-se debaixo de uma caminhonete de correios, desaparecendo da vista. Bevis saiu como uma flecha em sua perseguição. Tomkins era um dos fracassos da
agência, pois tinha sido repudiado por uma solteirona desse sobrenome, que tinha contratado a Cordelia para que procurasse a seu perdido bichano negro, um exemplar
com
um emplastro branco em um olho, duas patas brancas e a cauda raiada. Tomkins se ajustava exatamente à descrição, mas seu presunta ama se deu conta no
ato de que se tratava de um impostor. depois de salvar o de uma iminente inanição em um solar situado detrás de Vitória Station não tiveram coração para abandoná-lo
e agora vivia na recepção, com uma cubeta para suas necessidades fisiológicas, uma cesta acolchoada e acesso ao telhado por meio de uma janela entreabierta para
suas excursões noturnas. Resultava uma verdadeira sangria para os recursos da agência, nem tanto a causa do crescente custo da comida para gatos -embora
era uma pena que a senhorita Maudsley tivesse estimulado seu vício a sabores que superavam seus meios comprando para sua primeira comida a lata mais cara que encontrou
no mercado, e que Tomkins, em geral um gato estúpido, aparentemente soubesse ler as etiquetas-, mas sim porque Bevis perdia muito tempo jogando com ele, lhe arrojando
uma bola do PING-pong ou atirando de uma pata de coelho atada a uma corda, por tudo o escritório, ao grito de: "Olhe, senhorita Gray! Não é um muito preparado e
brincalhão
bichinho?".
O muito preparado e brincalhão bichinho, depois de provocar o caos no meio do tráfico do Kingly Street, transpôs como um raio a entrada traseira de uma farmácia,
com
Bevis atrás. Cordelia adivinhou que nenhum dos dois voltaria a aparecer até muito depois. Bevis colecionava novas amizades com a mesma
obsessão com que outros juntam coisas inúteis, e Tomkins era um estupendo mediador. A Cordelia lhe caiu a alma aos pés ao compreender que a manhã do Bevis
já estava condenada a ser quase totalmente improdutiva e teve consciência de sua própria aversão letárgica a realizar o menor esforço. Permaneceu apoiada na ombreira
da porta, com os olhos fechados, levantou a cara por volta da tibieza anacrônica do sol de finais de setembro. Distanciando-se, mediante um esforço de vontade,
da estridência e o clamor da rua, do penetrante vapor a gasolina, do som das pegadas dos transeuntes, jogou com a tentação -embora tinha a certeza
de que resistiria a cair nela- de afastar-se de tudo, deixando a placa inclinada como aviso de seus intentos por cumprir com a palavra dada ao defunto Bernie
e com seu sonho impossível.
Provavelmente deveria sentitse aliviada ao ver que a agência começava a fazer um nome, embora só fora por encontrar bichinhos domésticos perdidos. Sem
dúvida existia a necessidade desse serviço -de que suspeitava sua agência tinha o monopólio- e os clientes, banhados em lágrimas, desesperado-se, indignados pelo
que consideravam uma dura indiferença por parte do Departamento de Investigação Criminal da zona nunca regateavam a importância da fatura, e pagavam com maior
prontidão do que o teriam feito, suspeitava Cordelia, pelo retorno de um parente. Inclusive quando os esforços da agência tinham sido vãos e Cordelia
apresentava a fatura desculpando-se, invariavelmente lhe pagavam sem pôr objeções. Possivelmente os proprietários se sentiam motivados pela natural necessidade humana,
em momentos de aflição, de pensar que tinham feito algo, por pouco prometedor que fosse, para recuperá-lo. Mas com freqüência tinham êxito. Sobre tudo a senhorita
Maudsley era persistente em suas investigações de porta em porta ao que somava uma compenetração quase sobrenatural com a mente felina, condições que haviam
feito voltar para redil a pelo menos meia dúzia de gatos molhados, meio mortos de fome, de miado débil, deixando ao descoberto algumas vezes a perfídia
dos animais, que tinham vivido uma dobro vida e se transladaram de forma mais ou menos permanente a seu segundo lar. Conseguia dominar seu acanhamento quando perseguia
a ladrões de gatos, e os sábados pela manhã percorria com resolução a briguento exuberância e os semiclandestinos terrores dos mercados guias de ruas londrinos,
como se contasse com o amparo divino, pelo que sem dúvida ela mesma estava convencida. Mas algumas vezes Cordelia se perguntava o que teria pensado o pobre,
ambicioso e patético Bernie ante semelhante separação de seus sonhos. Amodorrada pelo calor e o sol em uma paz que era quase um transe, Cordelia recordou com surpreendente
claridade aquela voz sonora e segura de si: "Aqui temos uma mina de ouro, sócia, se alguma vez arrancarmos". Alegrava-se de que Bernie não tivesse sabido que pequenas
eram as sementes, quão magra a nervura.
Uma discreta voz masculina e autoritária, interrompeu seu sonho:.
-Essa placa está torcida.
-Sei.
Cordelia abriu os olhos. A voz a tinha enganado: o homem era major do que esperava; calculou-lhe algo mais de sessenta anos. Pese ao calor, levava uma jaqueta
de tweed, bem atalho mas com cotoveleiras de couro. Não era alto -provavelmente não chegava ao metro setenta- mas se mantinha muito erguido, em uma postura natural
e
aplomada, quase com elegância, em que Cordelia percebeu se ocultava uma inquietação interior, como se estivesse nervoso à espera de uma voz de mando. perguntou-se
se não teria sido militar. O homem levava a cabeça alta e firme; seu cabelo, grisalho e algo escasso, caía para trás de uma frente alta e sulcada de rugas. A
cara era larga e ossuda, com um nariz dominante que me sobressaía entre bochechas avermelhadas cruzadas por acidentadas veias; sua boca era larga e bem formada.
Seus
olhos a escrutinavam (não sem benignidade, pensou Cordelia) penetrantes baixo as povoadas sobrancelhas. Observou que a esquerda estava mais elevada que a direita,
e viu que
tinha o costume de franzir o sobrecenho e mover as comissuras dos lábios, o que conferia a seu semblante uma inquietação em aberta discrepância com o repouso
de seu corpo e que não lhe permitia lhe olhar aos olhos. O homem disse:.
-Será melhor que encargo que lhe façam esse trabalho corretamente.
Cordelia não respondeu enquanto lhe olhava deixar a carteira que levava, tirar-se de um bolso uma pluma e a carteira, procurar um cartão e escrever no dorso
com letra vertical, quase infantil.
Cordelia agarrou o cartão, notou que só levava um nome, Morgan, e um número de telefone. Deu-lhe a volta e leu: Sir George Ralston, baronet, D.S.O., M.C. Havia
acertado: era militar.
-Cobra caro este senhor Morgan? -perguntou-lhe.
-menos do que lhe terá saído esta porcaria. lhe diga que eu lhe proporcionei seu número de telefone. Cobrará-lhe o que valha o trabalho, nem um céntimo mais.
Cordelia recuperou o ânimo. A placa inclinada, seriamente inspecionada pelo olho crítico daquele inesperado e excêntrico cavalheiro errante, de repente lhe pareceu
irresistivelmente divertida: já não era uma calamidade a não ser uma piada. Até o Kingly Street se transformou ao ritmo de seu humor, convertendo-se em um deslumbrante
bazar
banhado pelo sol, palpitante de vida e otimismo. Esteve em um tris de rir estentóreamente. Conseguiu dominar sua tremente boca e disse em tom grave:.
-Muito amável de sua parte. É você perito em placas ou só um benfeitor público?.
-Alguns opinam que sou uma ameaça pública. Em realidade, sou um cliente, em caso de que você seja Cordelia Gray. A gente não está acostumada lhe dizer.....?.
Embora irracionalmente, Cordelia se sentiu decepcionada. por que tinha suposto que era diferente do resto de seus paroquianos de sexo masculino? Terminou a oração
por ele:.
-Que é um trabalho impróprio de uma mulher? Dizem-me isso, mas se equivocam.
-ia perguntar lhe se a gente não está acostumada lhe dizer que é difícil encontrar seu escritório -esclareceu sir Ralston-. Esta rua confunde a qualquer. A metade
dos edifícios
não estão bem numerados. Suponho que isso se deve ao feito de que se produzem muitos mudanças. Mas a nova placa ajudará assim que esteja posta corretamente.
Será melhor que o faça logo. Dá muito má impressão.
Nesse momento apareceu Bevis ofegante, com os cachos úmidos pelo exercício e o indiscreto chave de fenda aparecido em bolso da camisa. Com o lhe ronronem
Tomkins apoiado em uma de seus arroboladas bochechas, mostrou sua expressão culpado ao recém-chegado. Foi recompensado com um lacônico "que porcaria" e um olhar
que
instantánesmente lhe descartou como apto para a vida militar. Sir George se dirigiu a Cordelia:.
-Subimos?.
Cordelia evitou o olhar do Bevis -ao que adivinhou com os olhos em branco e em direção ao céu- e começaram a subir em fila a Índia a estreita escada coberta
de linóleo; passaram junto ao único lavabo que usavam todos os inquilinos do edifício (Cordelia abrigou a esperança de que sir George não precisasse usá-lo) e chegaram
ao escritório de recepção do terceiro andar. A senhorita Maudsley os olhou com olhos ansiosos por cima da máquina de escrever. Bevis depositou ao Tomkins em
sua cesta (onde o micifuz se dedicou a limpá-la contaminação do Kingly Strect) e jogou à senhorita Maudsley um olhar admonitório com os olhos muito abertos,
ao tempo que articulava a palavra "cliente". A senhorita Maudsley se ruborizou, incorporou-se pela metade, voltou a sentar-se e se consagrou a apagar um engano com
mão
tremente. Cordelia conduziu a sir Ralston a seu santuário interior.
Quando ambos estiveram sentados, Cordelia lhe perguntou:.
-um pouco de café?.
-Café ou sucedâneo?.
-Suponho que você o chamaria sucedâneo. Mas é da melhor qualidade em sucedâneos.
-Então chá, se tiver. Prefiro-o índio. Leite, por favor. Sem açúcar. Nada de bolachas.
O modo de pedi-lo não tinha a inención de ser ofensivo Era um homem acostumado a avaliar a situação e a solicitar o que queria.
Cordelia apareceu a cabeça à porta e lhe pediu à senhorita Maudsley que por favor servisse o chá. A infusão chegaria ao despacho nas delicadas taças de porcelana
do Rockingham que a senhorita Maudsley tinha herdado de sua mãe e emprestado à agência para uso exclusivo dos clientes especiais: não tinha a menor duvida de
que sir George reunia as condições que o faziam digno daquele serviço.
olharam-se por cima do escritório do Bernie. Os olhos de sir Ralston, cinzas e vivazes, inspecionaram o rosto da Cordelia como se ele fora um examinador e
ela uma opositora, o que até clerto ponto era verdade. A repentina, direto e faiscante olhar, em contraste com o espasmódico sorriso, era desconcertante.
-por que lhe deu o nome do Pryde a sua agência?.
-Porque foi criada por um ex-polícia metropolitano Bernie Pryde. Trabalhei como ajudante sua uma temporada e logo nos associamos. Ao morrer, deixou-me a agência.
-Como morreu?.
Pergunta-a, incisiva como uma acusação, pareceu-lhe estranha, mas respondeu serenamente:.
-cortou-se as veias.
Cordelia não teve necessidade de fechar os olhos para reviver a onipresente cena, gritã e agudamente perfilada como um fotograma. Bernie estava fundo no
assento que ela ocupava agora, com a mão direita semicerrada perto da navalha barbera desdobrada, a esquerda encolhida, com a boneca aberta repousando, com
a palma para baixo, na terrina, como uma exótlca anêmona de mar vislumbrado em um lago rochoso que enrola, na morte, seus pálidos e enrugados tentáculos.
Mas nunca um lago rochoso tinha sido tão chocantemente rosa. Voltou para olisquear o persistente aroma adocicado do sangue recém derramado.
-Ou seja, que se suicidó.
O tom de sir Ralston era mais ligeiro. Poderia ter sido um companheiro de golfe que felicitasse ao Bernie por um golpe acertado, enquanto a rápida olhada que dirigiu
ao despacho sugeria que, dadas as circunstâncias, seu ato tinha sido razoável.
Cordelia não necessitava do olhar dele para confirmá-lo. O que via com seus próprios olhos era bastante deprimente. Tinha arrumado o despacho com ajuda da
senhorita Maudsley, pintando as paredes de amarelo claro, para dar uma impressão de luminosidade, limpando a desbotado tapete com um líquido que se secou
de maneira desigual, de modo que a impressão final fazia pensar em uma pele deteriorada por alguma doença. Com seus visillos recém lavados, o despacho parecia
ao menos limpo e ordenado, muito ordenado, já que a ausência de papéis soltos indicava escassez de trabalho. Toda superfície livre estava abarrotada de novelo.
A senhorita Maudsley tinha mão para a jardinagem, e os galhos que tinha pego de seu próprias novelo e atendido amorosamente em uma variedade de recipientes
de estranhas formas acumulados durante suas excursões pelos mercados, tinham prosperado face à escassa luz. O abundante verdor resultante sugeria um ardiloso
desdobramento para ocultar algum defeito sinistro da estrutura ou do cenário. Cordelia seguia usando o velho escritório de carvalho do Bernie, e ainda se acreditava
capaz de rastrear o perfil da terrina em que ele tinha sangrado sua vida, que ainda podia identificar uma determinada mancha de água e sangue derramadas. Mas havia
tantos círculos, tantas manchas! Ainda pendurava do perchero de madeira o chapéu do Bernie, com sua asa levantada e sua cinta suja. Nenhum mercadillo de compra-venta
o quis ficar e ela foi incapaz de jogá-lo ao lixo. Duas vezes o tinha levado até o cubo do pátio traseiro mas não tinha conseguido deixá-lo cair, descobrindo
que aquele último retalho simbólico do Bernie era ainda mais pessoal e traumático que a exclusão de seu nome da placa. Se em última instância a agência fracassava
-e Cordelia tratava de não pensar a quanto ascenderia o aluguel quando se renovasse o contrato, três anos mais tarde-, supunha que o deixaria pendurado ali em toda
sua patética decrepitude, para que mãos desconhecidas o arrojassem, com melindrosa repugnância, ao cesto de papéis.
Chegou o chá. Sir George esperou a que a senhorita Maudsley saísse. Logo, enquanto adicionava atentamente o leite, gota a gota, disse:.
-O trabalho que lhe ofereço é uma combinação de funções. Será em parte guarda-costas, em parte secretária particular, em parte investigadora e em parte... babá.
um pouco de cada coisa. Não tudo irá sobre rodas. Não sabemos qual será o resultado.
-Em princípio sou uma investigadora privada.
-Não me cabe a menor duvida. Mas nestes tempos não devemos ser muito puristas. Um trabalho é um trabalho. Poderia encontrar-se implicada em uma investigação,
inclusive em situações violentas, embora não me parece provável neste caso. Será uma tarefa possivelmente desagradável mas não perigosa. Se pensasse que existe algum
risco
real para minha esposa ou para você, não empregaria a uma aficionada.
-Possivelmente pudesse me explicar o que é, exatamente, o que quer que faça -disse Cordelia.
Sir George contemplou carrancudo o chá, como se lhe custasse começar. Entretanto, quando o fez, seu relatório foi lúcido, conciso e claro.
-Minha esposa é a atriz Clarissa Lisle. Possivelmente a tenha ouvido nomear. Quase todo mundo parece conhecê-la, embora não atuou muito nos últimos tempos. Eu sou
seu terceiro marido e nos casamos em junho de 1978. Em julho de 1980 a contrataram para fazer o papel de lady Macbeth no teatro Duke of Clarence. A terceira noite
da temporada, programada para seis meses, recebeu uma nota que considerou uma ameaça de morte. Após se repetiram intermitentemente.
Começou a beber o chá. Cordelia tirou o chapéu lhe contemplando com a ansiedade de uma criatura que espera que sua oferta seja aceitável. A pausa lhe pareceu tão
larga,
que perguntou:.
-Diz você que ela considerou ameaçadora a primeira nota. Quer dizer que seu significado era ambíguo? Que forma exata adotam essas ameaças?.
-Notas datilografadas. Em uma diversidade de máquinas ao que parece. Cada mensagem está coroada por um pequeno desenho de um ataúde ou uma caveira. Todas são entrevistas
de obras nas que atuou minha esposa e todas se referem à morte ou à agonia: o medo à morte, o julgamento final, a inevitabilidad da morte.
A reiteração da sinistra palavra era opressiva. Cordelia se perguntou se seria sua imaginação ou se ele a saboreava entre seus lábios com cáustica satisfação.
-Mas não a ameaçam concretamente?.
-Ela considera ameaçadora essa insistência na morte É sensível. Suponho que todas as atrizes o são. Precisam gostar, e essas notas não têm nada de amistoso.
Aqui as trago, quer dizer, as que guardou. As primeiras foram parar ao lixo. Você necessitará as provas.
Sir George desabotoou a carteira e tirou um grosso sobre de papel manila de que deixou cair um montoncito de pequenas folhas de papel que começou a estender sobre
o
escritório. Cordelia reconheceu imediatamente o tipo de papel: popular, de qualidade média, branco, de que vendem em três tamanhos com os envelopes correspondentes,
em qualquer papelaria. O remetente tinha sido ahorrativo, escolhendo o formato mais pequeno. Cada uma das folhas continha uma entrevista datilografada, coroada por
um pequeno desenho de uns dois centímetros e meio de altura, que representava um ataúde em sentido vertical, as iniciais R.I.P. na tampa, ou uma caveira com dois
mornas em sinal de multiplicação. Os bosquejos não tinham exigido muita habilidade para o desenho; eram emblemas mais que representações precisas. Por outro lado,
estavam desenhados
com certa segurança de linha e sentido decorativo, o que sugeria alguma facilidade com a pluma, ou neste caso, com uma caneta de ponta negra. Sob os dedos
ossudos de sir George, as partes de papel branco com seus emblemas absolutamente negros trocavam de lugar e se reacomodaban como os naipes de algum jogo agoureiro:
busca a entrevista, caça ao assassino. A mayoria das entrevistas eram conhecidas, palavras que acudiriam facilmente à mente de qualquer que tivesse lido medianamente
bem ao Shakespeare e aos jacobinos, de qualquer que pensasse em referências à morte e ao terror a morrer características do teatro inglês. Inclusive as lendo
agora, truncadas e infantilmente embelezadas como estavam, Cordelia sentiu seu potente e nostálgico poder. Quase todas eram do Shakespeare e nelas aparecia a
seleção óbvia. A mais larga era, com muito o angustiado grito do Claudio -e como podia haver resistido o remetente?- em "Medida por medida":.
Sim...! Mas morrer e ir não sabemos onde;) jazer em frite cavidades e ficar ali para apodrecer-se;) este calor, esta sensibilidade, este movimento,) converter-se
em
um punhado de branda argila;) esta inteligência deliciosa, banhar-se em ondas de fogo,) ou residir em alguma região calofriante, de muralhas de gelos espessos;)
estar
aprisionado em ventos invisíveis) e formar redemoinhos-se, com violência sem trégua,) em redor de um mundo surpreso no espaço))... .
A vida terrestre mais penosa e mais maldita,) que a velhice, a enfermidade, a miséria ou a prisão) possam impor a uma criatura, é um paraíso) em comparação a
o que tememos da morte)).
Era difícil interpretar aquela passagem tão conhecida como uma ameaça pessoal, mas quase todo o resto das entrevistas podia considerar-se mais diretamente lhe intimidem
e apontava, pensou Cordelia, a algum castigo por culpas reais ou imaginárias.
que morre pagamento todas suas dívidas.
OH você, maleza, é tão encantadoramente bela e tão docemente cheira) que doem os sentidos ao pensar) que poderia não ter nascido nunca)).
A eleição das ilustrações tinha requerido certo cuidado. A caveira adornava os versos do Hamlet que diziam:.
Agora vá à câmara de minha senhora e lhe diga,) deixando que grossa maquiagem cubra seu rosto,) que a este favor acuda)).
O mesmo emblema se repetia na passagem no que Cordelia acreditou reconhecer ao John Webster, embora não conseguiu identificar a obra:.
Inundada até agora na segurança,) não sabe como viver nem como morrer;) mas tenho um objeto que te surpreenderá) e te fará saber aonde vai)).
Mas até admitindo a hipersensibilidade de uma atriz, era necessário um forte egocentrismo para tirar aquelas palavras de seus contextos e as aplicar a si mesmo;
do contrário, seu temor a morrer era tão intenso para sugerir a intervenção de um componente patológico. Cordelia tomou uma caderneta nova da gaveta de seu
escritório e perguntou:.
-Como chegam?.
-A maioria, por correio; no mesmo tipo de sobre que o papel e com a direção escrita a máquina. A minha esposa não lhe ocorreu guardar nenhum dos envelopes.
Algumas foram levadas a emano ao teatro ou a nosso piso de Londres. Uma a deslizaram sob a porta do camarim durante a representação do Macbeth. As primeiras
seis ou sete foram destruídas..., o melhor que se podia fazer com elas, no meu entender. Estas vinte e três são todas as que temos agora. Numerei-as com lápis
no dorso por ordem de chegada, dentro do que minha esposa recorda, e com informação a respeito de quando e como se recebeu cada uma.
-Obrigado. Isso será útil. Sua esposa representou muitos personagens do Shakespeare?.
-Pertenceu a Malvern Repertory Company durante três anos quando terminou a Escola de Arte Cênica, e então atuou o bastante. Nos últimos anos, muito menos.
-E as primeiras, as que atirou ao lixo, chegaram quando fazia o papel de lady Macbeth. O que ocorreu?.
-A primeira lhe preocupou, mas não o disse a ninguém. Pensou que era uma amostra isolada de malignidad. Diz que não recorda o texto, mas que levava o desenho de
um ataúde. Depois chegaram a segunda, a terceira e a quarta. Durante a terceira semana da temporada, minha esposa começou a derrubar-se e constantemente tinham
que lhe apontar. na sábado seguinte saiu correndo do cenário durante o segundo ato e a suplente teve que ocupar seu lugar. Tudo é questão de confiança. Se
pensa que te vais quebrar, acredito que assim chamam no teatro ao feito de emudecer, quebrará-te. Voltou para cenário uma semana depois, mas teve que fazer um
grande esforço para cumprir a temporada. Depois devia aparecer em Brighton, em uma reposição de uma dessas obras policíacas dos anos trinta em que a dama
jovem se chama Bunty, o herói é Clive e todos os homens usam calças largas de flanela para jogar tênis e não fazem outra coisa que entrar e sair por grandes
ventanales. É curioso. Não era exatamente o tipo de papel adequado para ela, que é uma atriz clássica, mas não surgem muitas oportunidades para as de certa
idade. Há muitas boas atrizes à caça de uns poucos papéis, conforme tenho entendido. Ocorreu o mesmo. A primeira entrevista apareceu na manhã do dia do
estréia, e a partir de então chegaram a intervalos regulares. A obra se retirou de pôster quatro semanas depois, e possivelmente a atuação de minha esposa tenha
tido
algo que ver. Ao menos isso pensou ela. Eu não estou tão seguro: era um argumento estúpido ao que eu mesmo fui incapaz de lhe extrair algum sentido. Clarissa não
voltou
a atuar até que aceitou no Nottingham um papel em "O diabo branco", do Webster, o de Vitória Não-Sei-Quantos.
-Vittoria Corombona.
-Se? Eu estive dez dias em Nova Iorque e não a vi. Mas aconteceu o mesmo A primeira nota voltou a chegar o dia da estréia. Essa vez minha esposa foi à polícia.
Não passou nada. levaram-se as notas, refletiram sobre elas e as devolveram. Amáveis mas não muito eficazes. Esclareceram que não se tomavam a sério as ameaças
de morte. Puseram de relevo que quando alguém quer matar a sério o faz, não ameaça. Devo confessar que esse era também meu ponto de vista. Não obstante, algo
descobriram. A nota que chegou enquanto eu estava em Nova Iorque foi datilografada em minha velha Remington.
Cordelia interveio:.
-Ainda não me explicou que colaboração espera de mim.
-A isso queria chegar. Este fim de semana minha esposa atuará no papel principal de uma representação de aficionados de "A duquesa do Malfi". A obra se montará
com vestuário vitoriano no Courcy Island, a umas duas milhas da costa do Dorset. O proprietário da ilha, Ambrose Gorringe, restaurou o pequeno teatro
vitoriano que em seu dia fez construir seu bisavô. Conforme tenho entendido, esse primeiro Gorringe, que reconstruiu o castelo medieval em ruínas, estava acostumado
a receber ao
príncipe do Gales e a seu amante, a atriz Lillie Langtry; os hóspedes se entretinham assistindo a representações de aficionados. Suponho que o proprietário
atual tenta ressuscitar acontecidas glórias. Faz mais ou menos um ano apareceu em um dos periódicos dominicais um artigo sobre a ilha, a restauração do castelo
e o teatro. Talvez o tenha lido.
Cordelia não o recordava.
-E você quer que eu vá à ilha para acompanhar a lady Ralston? -perguntou.
-Eu abrigava a esperança de assistir pessoalmente, mas não será possível. Tenho uma reunião no West Country a que não posso faltar. Proponho-me ir com minha esposa
em carro até o Speymouth a primeira hora da manhã da sexta-feira, para deixá-la na lancha. Mas necessita que alguém esteja a seu lado. Esta representação é muito
importante para ela. Na primavera voltará a ficá-la obra no Chichester e, se Clarissa consegue recuperar sua confiança, sentirá-se capaz de fazê-la. Mas há algo
mais. Acredita que as ameaças podem alcançar seu ponto culminante este fim de semana, que alguém tentará matá-la no Courcy Island.
-Terá alguma razão para pensá-lo.
-Nenhuma que possa explicar. Nada que possa impressionar à polícia. Possivelmente seja algo irracional, mas assim pensa ela. Pediu-me que me pusesse em contato com
você.
E ele tinha ido ficar em contato com ela. Sempre proporcionava a sua mulher o que ela queria? Insistiu:.
-Exatamente para que me emprega, sir George?.
-Para que a proteja contra qualquer moléstia. Para que atenda as chamadas telefônicas que lhe façam. Para que abra as cartas. Para que registre o cenário
antes da representação se tiver a oportunidade de fazê-lo. Para que esteja disponível de noite, que é quando fica mais nervosa. E para que contribua com idéias
novas ao assunto das mensagens. Para que descubra, se pode fazê-lo em só três dias, quem está detrás disto.
antes de que Cordelia pudesse responder a essas breves instruções, voltou a perceber o desconcertante e agudo olhar cinza sob as discordantes retrocede.
-Gosta das aves?.
Cordelia se sentiu momentaneamente aniquilada. Supunha que muito pouca gente -exceto as pessoas afetadas por algum tipo de fobia- reconheceria que não gostava
os pássaros. A fim de contas, figuram entre as mais graciosas das frágeis diversões que oferece a vida. Mas lhe ocorreu que sir George lhe podia estar perguntando
em forma encoberta se era capaz de reconhecer a uma arpella a cinqüenta metros de distância, pelo qual respondeu cautamente:.
-Não sou muito boa para identificar às espécies menos comuns.
-É uma pena. A ilha é uma das reservas ornitológicas naturais mais interessantes de Grã-Bretanha, provavelmente a mais importante em mãos privadas, quase tão
interessante como Brownsea Island, no Poole Harbour. Muito similar, bem pensado, Courcy conta com muitas aves estranhas: faisões de orelhas azuis e Swinhold, além
disso
de gansos canadenses, limosas negras e ostreros. É uma pena que não lhe atraiam. Alguma pergunta? Refiro-me ao caso ..... .
Cordelia disse, a modo de meço:.
-Se tiver que passar três dias com sua esposa, não teria que me entrevistar ela antes de tomar uma decisão? É importante que me cria digna de confiança. Não me conhece.
Não nos vimos nunca.
-Sim, viram-se. Por isso sabe que pode confiar em você. A semana passada estava tomando o chá com a senhora Fortescue quando você lhe devolveu seu gato..., acredito
que responde no nome do Solomon. Aparentemente você o encontrou à meia hora de iniciar a busca, por isso a fatura foi reduzida. A senhora Fortescue
idolatra ao animal e teria pago o triplo. Não teria posto a menor objeção. Isso impressionou a minha esposa.
-Somos algo caros porque temos que sê-lo -replicou Cordelia-. Mas somos honrados.
Recordou o salão do Eaton Square, uma estadia feminina se femineidad implicar suavidade e luxo; um armazém lotado de fotografias com marco de prata, um chá excessivamente
pródigo, servido em uma mesa baixa diante da chaminé uso Adam, muitas flores convencionalmente arrumadas. A senhora Fortescue, incoerente em seu alívio
e alegria, tinha apresentado a sua convidada a Cordelia por mero formalismo, embora sua voz, afogada na pelagem do Solomon, soou imprecisa e Cordelia não entendeu
o
nome. Mas a impressão tinha sido precisa. A visitante permanecia muito quieta em seu assento junto à chaminé, com as magras pernas cruzadas e as mãos
encrespadas descansando nos braços da poltrona. Cordelia recordava seu cabelo loiro intrincadamente amontoado e enroscado por cima de uma frente alta, uma boca
de pinhão e olhos imensos, afundados mas com pálpebras posadas, quase inchados. Parecia impor ao exuberante conformismo do salão uma graça hierática e angular,
uma distinção que, face à simplicidade do formal traje de ante, insinuava uma individualidade histriônica ou excêntrica. Tinha inclinado gravemente a cabeça e observado
as efusões de seu amiga com sorriso quase zombador. Apesar de sua imobilidade não dava impressão de quietude.
-Não reconheci a sua esposa mas a lembrança muita bem.
-Aceita o trabalho?.
-Sim, aceito-o.
Ele disse, sem a menor confusão:.
-É bastante distinto de procurar gatos perdidos. A senhora Fortescue comentou a minha esposa que você cobra por dia. Suponho que neste caso será mais caro.
-A tarifa diária é a mesma, qualquer que seja o trabalho. A fatura final depende do tempo que tenha levado, de se tiver tido que recorrer a meu pessoal, e
do nível de gastos, que às vezes pode ser muito elevado. Mas como me alojarei no castelo, não haverá faturas de hotel. Quando quer que me presente?.
-A "Shearwater", a lancha do Courcy, estará no mole do Speymouth para juntar com o trem das nove e trinta e três do Waterloo. Neste sobre está seu
bilhete. Minha esposa telefonou para lhe fazer saber ao senhor Gorringe que levará consigo a uma secretária-acompañante, com o propósito de que a ajude em diversas
tarefas durante o fim de semana. Estarão-a esperando.
De modo que Clarissa Lisle tinha crédulo em que aceitaria o trabalho. E por que não? Acaso não o tinha aceito? Evidentemente, também confiava em sair-se com
a sua com o Ambrose Gorringe. Sua desculpa para incluir uma secretária na partida era mas bem débil e Cordelia se perguntou até que ponto lhe teria acreditado.
Chegar a uma casa de campo para passar o fim de semana em companhia de um detetive privado era permissível para a realeza, mas em qualquer convidado de menos categoria
evidenciava falta de confiança no anfitrião, em tanto que levar um detetive de incógnito podia considerar-se, com toda razão, uma contravenção da etiqueta.
Não lhe seria fácil proteger a Carissa Lisle sem delatar que estava ali sob uma falsa identidade, descobrimento que não podia ser agradável para o dono da casa
nem para o resto dos convidados.
-Tenho que saber o que outras pessoas estarão na ilha e tudo o que delas saiba.
-Não é muito o que posso lhe dizer. na sábado pela tarde, depois da chegada dos atores e do público convidado, haverá ao redor de um centenar de pessoas
na ilha. Mas os hóspedes do castelo são poucos. Por descontado, minha esposa com o Tolly, melhor dizendo a senhorita Tolgarth, sua garçonete. Também Simon Lessing,
o enteado de minha mulher. É um estudante de dezessete anos, filho do segundo marido da Clarissa, que morreu afogado em agosto de 1977. Não era feliz com os parentes
que lhe faziam de tutores, por isso minha esposa decidiu tomá-lo a seu cargo. Não sei por que lhe hão convidado, já que o único que lhe interessa é a música. Provavelmente
Clarissa pensou que chegou a hora de que conheça mais gente. É um moço tímido. Também assistirá sua prima, Roma Lisle. Antes era professora mas agora leva
um livraria na parte norte de Londres. Solteira, de uns quarenta e cinco anos. Vi-a duas vezes em minha vida. Tenho entendido que possivelmente a acompanhará seu
sócio,
mas não sei lhe dizer quem é. Também encontrará na ilha ao crítico teatral Ivo Whittingham, um velho amigo de minha esposa. Fará um artigo sobre o teatro e a
representação para um suplemento dominical. Estará Ambrose Gorringe, naturalmente. Há três criados: o mordomo Munter com sua mulher e Oldfield, barqueiro e factótum.
Acredito que isso é tudo.
-me fale do senhor Gorringe.
-Gorringe conhece a Clarissa da infância. Os pais de ambos pertenciam ao serviço diplomático. Ele herdou a ilha de seu tio, em 1977, durante uma estadia
de um ano no estrangeiro. Uma viagem que tinha algo que ver com uma forma de evitar impostos. Voltou para Reino Unido em 1978 e aconteceu estes últimos três anos
restaurando o castelo e cuidando a ilha. É um homem já amadurecido. Solteiro. Acredito que estudou história em Cambridge. É uma autoridade na era vitoriana. Não
sei
nada desfavorável dele.
-Uma última pergunta. Aparentemente sua esposa teme por sua vida, até o ponto de mostrar-se reacia a ir ao Courcy Island desprotegido. Nessa companhia há alguém
a quem ela tenha motivos para temer, para suspeitar?.
Cordelia se deu conta em seguida de que a pergunta não era bem acolhida, possivelmente porque obrigava a sir George a reconhecer o que em todo momento tinha insinuado
sem
expressá-lo: que o temor de sua esposa era histérico e irreal. Ela tinha pedido amparo e ele a proporcionava. Mas não a considerava necessária, não acreditava em
o perigo nem nos meios a que apelava para tranqüilizá-la. Agora uma parte de sua mente se sentia repelida pela idéia de que o anfitrião de sua esposa e seus
convidados estariam sob vigilância.
-Acredito que pode tirar-se essa idéia da cabeça. Minha esposa não tem nenhuma razão para suspeitar que algum dos convidados deseja lhe fazer danifico, nenhuma razão.
.
2.
Sir George olhou a hora e se incorporou. Dois minutos depois se despediu brevemente no portal, sem mencionar a irritante placa nem olhá-la de soslaio. Enquanto subia
uma vez mais a escada, Cordelia se perguntou se não poderia ter levado melhor a entrevista. Era uma pena que tivesse concluído tão bruscamente. Lamentou que não
lhe tivesse ocorrido fazer certas perguntas, em especial se alguma das pessoas que encontraria no Courcy Island conhecia as mensagens ameaçadoras. Agora teria
que esperar a reunir-se com a Clarissa Lisle.
Quando abriu a porta do escritório, a senhorita Maudsley e Bevis a olharam com olhos ávidos por cima de suas máquinas de escrever. Teria sido uma crueldade lhes
negar
uma participação na notícia. Eles perceberam que sir George não era um cliente corrente, e a curiosidade e o entusiasmo os tinha virtualmente paralisados.
Durante sua visita se produziu uma suspeita ausência de teclo nas máquinas de escrever da recepção. Cordelia lhes comentou, sem estender-se em detalhes,
que Clarissa Lisle procurava uma secretária e acompanhante que a protegesse de uma fastidiosa embora não muito importante sacanagem epistolar anônima. Não disse
nada aproxima
da natureza das ameaçadoras mensagens nem da convicção da atriz no sentido de que sua vida corria grave perigo. Advertiu-lhes que aquela tarefa,
como qualquer outra, inclusive a mais corriqueiro, devia tratar-se de maneira confidencial. A senhorita Maudsley disse:.
-É obvio, senhorita Gray. Bevis o compreende perfeitamente bem.
O moço defendeu exaltado sua discrição:.
-Sou mais confiável do que parece. Não direi uma palavra, seriamente. Nunca o faço, ao menos no que se refere à agência. Mas falharei se me torturam para me tirar
informação. Não suporto a dor.
-Ninguém te torturará, Bevis -disse Cordelia.
Decidiram, por unanimidade, comer cedo. Bevis foi procurar sanduíches à loja do Carnaby Street e a senhorita Maudsley preparou café. Comodamente sentados
na recepção, entregaram-se a entusiasmadas especulações a respeito de onde podia conduzir a nova e interessante missão. E não desperdiçaram o tempo. Surpreendentemente,
tanto a senhorita Maudsley como Bevis contavam com informação útil sobre o Courcy Island e seu proprietário, informação que transmitiram em uma inundação de palavras
salmódico. Não era a primeira vez que ocorria algo semelhante. podia-se duvidar de suas habilidades mais ortodoxas, mas freqüentemente davam dividendo em forma de
fofoca
aproveitável.
-Gostará do castelo, senhorita Gray, se lhe interessar a arquitetura vitoriana. Meu irmão levou a União de Mães à ilha para a excursão do verão, um
mês antes de seu falecimento. Eu não sou membro de pleno direito, não poderia sê-lo, é obvio, mas quase sempre somava às excursões, e aquela foi muito
interessante. Desfrutei especialmente com os quadros e as porcelanas. No castelo há um dormitório delicioso, que é quase um museu, dedicado ao movimento de
artes e ofícios vitoriana: azulejos de o Morgan, desenhos do Ruskin, mobiliário do Mackmurdo. Lembrança que foi uma excursão muito cara. O proprietário, Ambrose
Gorringe,
só permite a entrada uma vez por semana durante a temporada estival e limita o número de visitantes a doze por vez, por isso suponho que tem que cobrar
muito para que o prova litográfica algum benefício. Mas ninguém se queixou, nem sequer a senhorita Baggot, que sempre se sentia inclinada a protestar ao final do
dia. A
ilha propriamente dita é formosa e muito variada, um verdadeiro remanso de paz. Escarpados baixos, bosques, campos e restingas. É uma Inglaterra em miniatura.
-Queridas amigas, eu estava no teatro quando se quebrou, refiro a Clarissa Lisle. Foi horroroso. Não só porque esqueceu seu papel, embora não entendo como alguém
pode esquecer-se de lady Macbeth, já que é um papel que se diz sozinho. quebrou-se por completo. De onde estávamos sentados, meu amigo Peter e eu ouvíamos como vociferava
o apontador. Ela lançou uma espécie de estertor e saiu do cenário, como alma que leva o diabo.
Indignada-a voz do Bevis arrancou à senhorita Maudsley de suas felizes lembranças dos retratos do Orpen e as tapeçarias do William Morris.
-Pobre mulher! Deveu ser terrível para ela!.
-Terrível para o resto da partilha e também para nós. Uma verdadeira vergonha. Ao fim e ao cabo é uma atriz profissional de certa reputação. Um não espera
que se comporte como uma colegiala histérica que fica nervosa em sua primeira atuação escolar. Surpreendeu-me que Metzler lhe oferecesse fazer a Vittoria depois
daquele "Macbeth". Começou muito bem e as críticas não se mostraram do todo negativas, mas dizem que as coisas foram de mal em pior até que a obra se retirou
de pôster.
Bevis falava como quem está a par de tudo. Freqüentemente, Cordelia se tinha admirado ante a segurança que o menino adotava sempre que falavam de teatro, esse
exótico mundo de fantasia e desejo, sua terra prometida, sua atmosfera natural.
-eu adoraria ver teatro vitoriano no Courcy Island --prosseguiu Bevis-. A sala é muito pequena, não tem mais de um centenar de poltronas, mas, conforme dizem, é
perfeita.
O primitivo proprietário construiu o teatro para o Lillie Langtry quando ela era amante do príncipe do Gales. Ele estava acostumado a visitar a ilha, e os convidados
se entretinham
com representações de aficionados.
-Como sabe essas coisas, Bevis?.
-Apareceu um artigo sobre o castelo em um dos dominicais, pouco depois de que o senhor Gorringe concluíra a restauração. Mostrou-me isso meu amigo, porque
sabe que me interessa. A sala parecia encantadora. Inclusive tem um camarote real decorado com o distintivo do príncipe do Gales. Oxalá pudesse vê-lo. Morro
de inveja.
-Sir George me falou do teatro -interveio Cordelia-. O proprietário atual deve ser rico. Não pode ter sido nada barato restaurar o teatro e o castelo,
além de reunir tantas peças vitorianas.
Para assombro da Cordelia, esta vez a que respondeu foi a senhorita Maudsley:.
-Vá se o é! Fez uma fortuna com sua novela "Autópsia" que foi um êxito. O é A. K. Ambrose. Não sabia?.
Cordelia não sabia. Tinha comprado o livro em rústica -como tantos milhares de pessoas- porque, farta já de ver sua espetacular coberta olhando-a desde todas as
livrarias e supermercados, sentia curiosidade por saber como era uma primeira novela que, conforme se dizia, tinha reportado meio milhão antes de sua publicação.
Resultou
ser elegantemente larga e elegantemente moderna; recordava que, tal como anunciava a publicidade, tinha-lhe resultado difícil deixá-la, embora agora era incapaz
de
lembrar-se claramente do argumento ou dos personagens. A idéia era bastante engenhosa. A novela tratava da autópsia de uma vítima de homicídio e se ocupava
em profundidade das histórias de todos os implicados: o patologista forense, o oficial de polícia, o encarregado do depósito de cadáveres, a família da vítima,
a vítima propriamente dita e, por último, o assassino. Supunha que podia qualificar-se de novela policíaca com uma diferença, consistindo a diferença em que continha
mais sexualidade -tão normal como anormal- que investigação, e que o livro tinha tentado combinar, com certo êxito, a popular epopéia familiar com o misterlo.
O estilo estava habilmente calculado para o mercado de massas: nem tão bom para pôr em perigo o interesse popular nem tão mau como para que a gente se
envergonhasse de que a vissem lendo-o em público. Ao terminar sua leitura,
Cordelia se havia sentido insatisfeita, mas ignorava se era devido a que se considerou manipulada ou à convicção de que o autor que se assinava A. K.
Ambrose poderia ter escrito um livro melhor, de haver-lhe proposto. Entretanto, os interlúdios sexuais, astutamente espaçados -escritos com insinuações de
ironia e certo asco- e a detalhada descrição da disección de um corpo feminino tinham, sem dúvida alguma, um poder de provocação. Ao menos nessa questão,
o autor se mostrou tal como era.
A senhorita Maudsley se apressou a negar a possibilidade de que sua pergunta levasse implícita nenhuma crítica.
-Não me surpreende que não soubesse. Eu mesma não me teria informado se não nos tivesse contado isso uma das excursionistas, cujo marido trabalha em uma livraria.
Ao
senhor Ambrose não gosta que se saiba. Acredito que é o único livro que tem escrito.
Cordelia começou a experimentar uma viva curiosidade por conhecer ilustre e talentoso Ambrose Gorringe e sua ilha próxima à costa. Pensou nas possíveis surpresas
da nova tarefa enquanto Bevis recolhia as taças de café, pois esse dia lhe tocava esfregar. A senhorita Maudsley tinha cansado em um reflexivo silêncio, com as mãos
cruzadas sobre o regaço. De improviso levantou a vista e disse:.
-Espero que não corra nenhum perigo, senhorita Gray. Há algo malvado, poderíamos dizer perverso, nas ameaças anônimas. Uma vez recebemos muitas na paróquia
e tudo terminou tragicamente. Esse tipo de mensagens está acostumadas ser malévola!.
-Malévolo mas não perigoso. É mais provável que o caso me aborreça e não que me assuste. Não acredito que no Courcy Island possa ocorrer nada terrível.
Bevis, que mantinha em precário equilíbrio as três taças, voltou-se para chegar à porta e disse:.
-Mas ali ocorreram coisas terríveis. Ignoro exatamente o que. O artigo que li não o esclarecia. Mas o castelo atual está construído no solar de uma antiga
fortaleza medieval que estava acostumado a proteger essa parte do canal, e é muito provável que tenha herdado um ou dois fantasmas. O autor do artigo mencionava
a história
brutal e sangrenta de toda a ilha.
-Isso só é um tópico jornalístico -esclareceu Cordelia-. Todo o passado está manchado de sangue, o que não significa que seus fantasmas sigam rondando.
Falou sem nenhum tipo de premonição, contente de ter por fim um verdadeiro trabalho, ditosa ante a idéia de sair de Londres enquanto durava a cálida temperatura
outonal; imaginou os muito altos torreões, as restingas transbordantes de gaivotas, as suaves mesetas e arvoredos daquela a Inglaterra em miniatura, tão misteriosa
e
bela, que a esperava a pleno sol.
.
3.
Ultimamente ia tão poucas vezes a Londres que começou a perguntar-se se se justificava sua assinatura ao clube. Havia âmbitos da capital nos que ainda se sentia
cômodo, mas muitos mais nos que antes andava com prazer e agora lhe pareciam sujos, despojados, estranhos. Quando os entendimentos com seu corredor de bolsa, seu
agente
ou seu editor faziam desejável uma visita, planejava um programa do que para seus adentros descrevia como caprichos, uma reactivación adulta das férias escolar,
sem deixar nenhuma porção do dia tão desocupada que lhe deixasse tempo para refletir sobre a estupidez de estar onde estava. Invariavelmente figurava em seu programa
uma visita à loja de antiguidades do Saul Gaskin, perto do Notting Hill Gate. Comprava a maioria de seus quadros e móveis vitorianos nos leilões londrinos,
mas Gaskin conhecia -e parcialmente compartilhava- sua paixão pela época e podia confiar em que sempre encontraria, à espera de sua inspeção, uma pequena coleção
das bagatelas que com tanta freqüência resultavam mais evocadoras do espírito da época que suas aquisições mais importantes.
No meio do extemporâneo calor de setembro, o abarrotado e mau ventilado despacho da trastienda cheirava como uma guarida em que Gaskin -com seu rosto pálido
e cansado, suas pequenas mãos precisas e seu sujo colete de ante- escorria-se como um tenaz roedor. Abriu uma gaveta do escritório e reverentemente expôs ante o
cliente predileto seus tesouros dos últimos quatro meses. A jarra Bristol de cor azul, decorada com desenhos de uvas e folhas de parra, era atrativa, mas só
havia cinco taças e lhe gostavam dos jogos completos, enquanto que um dos dois vasos Wedgwood, desenhado pelo Walter Crane, estava levemente lascado.
Surpreendeu-lhe que Gaskin, sabendo que ele exigia perfeição, incomodou-se em guardar-lhe Entretanto o menu decorativamente recortado, correspondente
ao banquete devotado pela rainha no castelo do Windsor em 10 de outubro de 1844 -para celebrar a designação do rei Luis Felipe da França como Cavalheiro
da Ordem da Liga- era um verdadeiro achado. Jogou com a idéia de servir a mesma comida no castelo do Courcy para o aniversário, mas se recordou
que existiam limites às habilidades culinárias da senhora Munter e também à capacidade de ingestão de seus convidados.
Gaskin tinha guardado o melhor para o final. O mostrou com seu acostumado ar grave de que oficia uma missa secular para um solo devoto: dois pesados broches
de luto, magnificamente lavrados em esmalte negro e ouro, cada um deles com uma mecha de cabelo intrincadamente trabalhado em forma de verticilos e pétalas; uma
touca negra de viúva, ainda guardada na chapeleira em que tinha sido entregue; e a escultura em mármore do gordinho braço truncado de um bebê, que repousava sobre
uma almofada de veludo arroxeado. Gorringe agarrou a touca e acariciou o braçadeira de luto de raso, as cintas da dor ostentosa. perguntou-se o que lhe teria ocorrido
a sua destinatária.
Tinha seguido a seu marido a uma temprana sepultura, transida de pena? Ou a luxuosa touca não lhe tinha gostado, simplesmente? Quão mesmo os broches, somaria-se
ao dormitório do castelo do Courcy ao que tinha posto o nome do Memento Mori e no que guardava sua coleção de necrofilia vitoriana: as máscaras de
Carlyle, Ruskin e Matthew Arnold, os bilhetes mortuários debruados de negro, com seus anjos chorosos e seus versos sentimentais, as taças, medalhas e tigelas
comemorativos, o armário com pesadas vestimentas de luto negras, cinzas e malva. Naquela habitação Clarissa tinha entrado uma só vez, estremecida, e agora
fingia que não existia. Mas ele tinha observado com prazer que aqueles de seus convidados que eram amantes -confesos ou furtivos- gostavam em ocasiões de dormir
ali,
à maneira em que as prostitutas do século dezoito copulavam com seus clientes nas superfícies plainas das tumbas dos cemitérios do East End londrino.
Contemplava com olhar sardônico e ligeiramente desdenhoso aquela simbiose de erotismo e morbosidad, o mesmo olhar que dedicava a todas as debilidades humanas
que não compartilhava.
-Levarei-me estes -disse-. Provavelmente também fique com o mármore. Onde o encontrou?.
-Em um leilão privado. Não acredito que seja um aviso. O proprietário me assegurou que era a cópia de uma das extremidades em mármore dos infantes reais
do Osborne, esculpidos para a rainha Vitória. Este é, provavelmente, o braço da princesa quando era menina.
-Pobre Vicky! Entre sua formidável mãe, seu filho e Bismarck, não deveu ser a mais feliz das princesas. É uma peça quase irresistível, mas não a este preço.
-A almofada é o original. E se for o braço da princesa, provavelmente seja único. Que eu saiba, não se conhecem cópias das peças do Osborne.
sumiram-se em seu habitual e amigável regateio, mas Gorringe percebeu que Gaskin não punha todo seu afã nisso. Era um homem supersticioso, e ao Gorringe resultou
evidente que o mármore, que o antiquário não se decidia a tocar com suas próprias mãos, fascinava-lhe ao tempo que lhe repelia: queria vê-lo fora de sua loja.
Assim que concluíram o trato, soou o timbre da porta principal, que estava fechada com chave. Gaskin foi abrir e Gorringe lhe pediu permissão para usar o
telefone em sua ausência. Lhe tinha ocorrido que se se dava pressa conseguiria agarrar o trem anterior. como sempre, foi Munter quem atendeu a chamada.
-Castelo do Courcy.
-Gorringe, Munter. Chamo de Londres. Acredito que alcançarei o trem das duas e meia. Chegarei ao mole às quatro e quarenta.
-Muito bem, senhor. Darei- instruções ao Oldfield.
-Tudo bem?.
-Bastante bem, senhor. Não se pode dizer que o ensaio geral da terça-feira tenha sido um êxito, mas tenho entendido que se considera de bom agouro para a representação.
-Resultou satisfatório o ensaio das luzes?.
-Sim, senhor. Se me permite dizê-lo, a companhia se mostra mais afortunada na capacidade de seus eletricistas aficionados que na de seus atores.
-E a senhora Munter? Conseguiu toda a ajuda que necessita para na sábado?.
-Não toda. Duas das garotas do povo não se apresentaram, mas a senhora Chambers virá com sua neta. entrevistei à moça e parece bem disposta embora
carece de experiência. Se a função no Courcy tem que converter-se em um acontecimento anual, senhor, teremos que reconsiderar nossas necessidades de pessoal,
ao menos para esta semana do ano.
Gorringe respondeu, serenamente:.
-Não acredito que nem você nem a senhora Munter tenham por que supor que a obra se repetirá todos os anos. Se sentir a necessidade de planejar com doze meses de
antecipação,
será melhor que pense que esta é a última atuação que lady Ralston
oferecerá no Courcy.
-Obrigado, senhor. Devo lhe informar que telefonou lady Ralston. Sir George deve assistir a uma reunião imprevista e não é provável que chegue antes do sábado por
a tarde, possivelmente depois da representação. Lady Ralston se propõe consolar-se da privação marital trazendo consigo a uma secretária-acompañante, a
senhorita Cordelia Gray. Chegará com o resto do grupo na sexta-feira pela manhã. Lady Ralston parecia pensar que não precisava falar pessoalmente com você ao
respeito.
A desaprovação do Munter chegou através da linha com a mesma nitidez que sua ironia meticulosamente dosada. Era um perito em julgar até onde podia chegar,
e como sua velada insolência nunca ia dirigida contra seu patrão, Gorringe era indulgente. Um homem, sobre tudo um servente, tinha direito a estas reafirmaciones
de sua própria dignidade. Gorringe tinha notado com antecedência que a personalidade do Munter -inspirada como estava no Jeeves e seu quase homônimo Bunter- aproximava-se
marcadamente à paródia quando via alterado qualquer de seus cuidadosos planos domésticos. Durante as visitas da Clarissa ao castelo, voltava-se quase intolerablemente
bunteriano. Dado que gozava com as excentricidades de seu criado, com o contraste entre seu extravagante aspecto e sua forma de ser, e que não sentia a menor cutiosidad
por seu passado, Gorringe já nem se incomodava em perguntar-se se existia um Munter real e, em caso afirmativo, que classe de homem era. Ouviu-lhe dizer:.
-Pensei que seria correto instalar à senhorita Gray no dormitório Do Morgan, sempre que você dê sua aprovação.
-Parece-me correto. E se chegar sir George na sábado de noite, podemos lhe dar o Memento Mori. Um militar tem que estar habituado à morte. Sabemos algo
da senhorita Gray?.
-Acredito que é jovem. Suponho que compartilhará a mesa do comilão.
-Naturalmente.
À margem do que Clarissa se propor, tinha conseguido emparelhar o número de comensais. Mas pensar na Clarissa com acompanhante, e além mulher, era fascinante.
Abrigou a esperança de que sua incorporação ao grupo não voltasse o fim de semana mais complicado do que já prometia ser.
-Adeus, Munter.
-Adeus, senhor.
Quando Gaskin retornou ao despacho, encontrou a seu cliente sentado, em atitude comtemplativa, com os olhos fixos no braço de mármore. Um involuntário calafrio
recortió seu corpo. Gorringe deixou a talha em sua almofada e observou ao Gaskin enquanto este procurava uma pequena caixa de cartão e a forrava com papel de seda.
-Não gosta, verdade?.
Gaskin podia permitir o luxo de ser sincero. O braço estava vendido e o senhor Gorringe jamais tinha rechaçado uma peça uma vez acordado o preço. O antiquário
depositou delicadamente a talha no interior da caixa, cuidando-se muito bem de tocar unicamente a almofada.
-Não posso dizer que lamente me desprender dele. Em geral tolero muito bem os modelos em porcelana da mão humana, aos que os vitorianos eram tão aficionados,
como suportes de anéis e usos semelhantes. A semana passada tive uma muito formosa, mas o volante da boneca estava descascado e sei que a você não haveria
interessado. Mas o bracito de uma criatura! E para cúmulo, cerceado! Eu diria que é algo brutal, quase morboso. Tenho uma sensação com respeito a essa peça.
Já sabe você como sou..., recorda-me a morte.
Gorringe jogou um último olhar aos broches antes de que o antiquário os envolvesse e guardasse em suas caixas.
-Menos racionalmente, sem dúvida, que estas jóias e a touca de viúva. Estou de acordo com você, não acredito que seja um mármore aviso.
-É muito distinto -disse Gaskin em tom firme-. Os avisos nunca me inquietaram. Mas isto é diferente. Para lhe dizer a verdade, agarrei-lhe ojeriza assim que
entrou na loja. Cada vez que o Miro me parece que sangra.
Gorringe sorriu.
-Provarei-o com minhas hóspedes e observarei suas reações. O próximo fim de semana poremos "A duquesa do Malfi" no Courcy. Se esta peça fora uma mão masculina
em tamanho natural, poderíamos usá-la para o instrumental. Mas nem a duquesa no limite de suas forças confundiria isso com a mão morta do Antonio.
A alusão não teve efeito porque Gaskin nunca tinha lido ao Webster. De todos os modos, murmurou:.
-Claro que não, senhor.
Gaskin esboçou seu sempre fugidio e senil sorriso.
Cinco minutos depois se despediu de seu cliente e os pacotes, felicitando-se com prematura satisfação -pois, apesar de sua bem alimentada sensibilidade, nunca havia
pretendido ser clarividente porque não voltaria a ver nem ouviria falar mais do braço da princesa difunta.
.
4.
A pouco mais de três quilômetros de distância, em um consultório da Harley Street, Ivo Whittingham deslizou as pernas pelo bordo da maca de reconhecimento
e observou ao doutor Crantley-Mathers enquanto este voltava para seu escritório arrastando os pés. Como de costume, o médico vestia seu traje a raias velho mas bem
talhado. Nunca tinha entrado em seu consultório um pouco tão asséptico como uma bata branca; o recinto parecia mais um estudo privado, com seu tapete estampado Axminster,
seu escritório eduardiano com as fotografias dos netos e os pacientes distinguidos de sir James emolduradas em prata, suas gravuras esportivas e o retrato de
um antepassado de sólida fortuna, destacando a dignidade do lugar em cima do suporte de mármore esculpido da chaminé. Não se notavam intentos de manter a raia
aos contágios, embora, pensou Whittingham, os gérmenes se guardariam muito bem de espreitar na poltrona estofada onde os pacientes de sir James esperavam seus conselhos.
Até a maca se via pouco clínica, com seu estofo de pele cor tabaco e a que subia por meio de uns elegantes degraus de biblioteca do século dezoito.
supunha-se que embora alguns dos pacientes de sir James desejassem tirá-la roupa por capricho, semelhante excentricidade não podia ter nada que ver com seu estado
de saúde.
O médico levantou a vista de seu talonário de receitas e perguntou:.
-Incomoda-lhe o baço?.
-Tendo em conta que deve pesar uns dez quilogramas, que tenho o aspecto e me sinto como uma mulher desproporcionalmente grávida, poderíamos dizer que sim, que
incomoda-me.
-Chegará um momento em que o melhor será extrai-lo. Mas não há pressa. Voltaremos a pensá-lo dentro de um mês.
Whittingham se dirigiu ao biombo oriental atrás do qual estava sua roupa, dobrada sobre uma cadeira, e começou a vestir-se, acomodando a calça sobre seu posado ventre.
Pensou que era o mesmo que levar com um a própria morte, sentir que tira dos músculos, uma carga fetoide que nunca se movia e que com seu peso morto lhe recordava,
pela deformidade que via no espelho cada vez que se banhava, o que era o que arrastava em seu interior. Levantou a vista por cima do biombo e disse, com a voz
amortecida pela camisa:.
-Acreditei que me tinha explicado que o baço está dilatado porque assumiu a produção de glóbulos vermelhos que meu sangue já não fabrica.
SirJames não lhe olhou. Replicou, com deliberada indiferença:.
-Sim, isso é mais ou menos o que está ocorrendo. Quando um órgão deixa de cumprir sua função, outro tende a substitui-lo.
-Considera que seria uma falta de tato lhe perguntar que órgão assumirá complacente a tarefa quando me tiver tirado o baço?.
Sir James riu a gargalhadas ante tão graciosa acuidade.
-Já cruzaremos a ponte quando chegarmos a ele.
Nunca, pensou Whittingham, destacou-se por sua originalidade expressiva.
Pela primeira vez desde que se declarou sua enfermidade, ao Whittingham teria gostado de lhe perguntar diretamente ao médico quanto tempo ficava. Não porque
tivesse assuntos que pôr em ordem. Divorciado de sua esposa, afastado dos filhos, agora que vivia sozinho, seus assuntos -como seu piso, ordenado até o obsessivo-
tinham estado deprimentemente ordenados durante os últimos cinco anos. A necessidade de saber era pouco mais que uma leve curiosidade. Tivesse-lhe alegrado saber
que
seria dispensado de outro Natal, a época do ano que mais gostava. Mas compreendeu que a pergunta seria de péssimo gosto. O mesmo consultório estava destinado
a que isso fora algo impronunciável: sir James tinha a habilidade de obter que seus pacientes não lhe fizessem perguntas que sabiam angustiosas para ele. Sua filosofia
-e Whittingham não discrepava inteiramente dela- consistia em que os pacientes compreenderiam, ao seu devido tempo, que estavam agonizando, e que chegado esse momento
a debilidade física se ocuparia de que essa compreensão fosse menos dolorosa que uma condenação a morte ditada quando o sangue ainda corre vibrante pelas veias.
Nunca tinha acreditado que a perda da esperança lhe fizesse bem a ninguém..., e além disso os médicos podiam equivocar-se. Esta última asseveração era um gesto convencional
de humildade. Pessoalmente, sirJames não acreditava que pudesse equivocar-se, e era, por certo, um diagnosticador excelente. Não era culpa dela, pensava Whittingham,
que
a capacidade da profissão médica para diagnosticar estivesse tão avançada com respeito a sua faculdade de curar. Enquanto passava os braços pelas mangas da
jaqueta, repetiu em voz alta as palavras do Brachiano em "EI diabo branco":.
-Sou pena de morte, que nenhum homem me mencione a morte: é uma palavra imensamente terrível.
SirJames compartilhava, era óbvio, esse ponto de vista. Ao Ivo surpreendeu que, se conhecia a obra, não tivesse gravado aquelas palavras sobre o dintel de sua casa.
-Sinto muito, senhor Whittingham, não ouvi bem o que há dito.
-Nada, sir James. Estava citando ao Webster.
O médico acompanhou a seu paciente até a porta do consultório, onde o aguardaba.una enfermeira muito bonita que iria com ele até a porta da rua.
antes de separar-se sir James lhe perguntou:.
-Passará este fim de semana fora de Londres? Seria uma lástima que não aproveitasse este tempo.
-Irei ao Dorset. Ao Courcy Island, à altura do Speymouth. Uma companhia de aficionados, com algum apoio profissional, representará "A duquesa do Malfi" e escreverei
uma resenha para um Suplemento dominical. Referirei-me principalmente à restauração do teatro vitoriano da ilha e a sua história -adicionou, e imediatamente
desprezou-se a si mesmo pela explicação. O que era, salvo uma forma de dizer que podia estar moribundo mas que ainda não se viu reduzido a fazer críticas
de aficionados?.
Bem, bem. -SirJames bramou uma nota de aprovação que podia ter divulgado excessiva inclusive em boca de Deus o sétimo dia.
Quando a imponente porta principal se fechou a suas costas, Whittingham se sentiu tentado de agarrar o táxi que acabava de frear, provavelmente para deixar a outro
paciente. Mas decidiu que conseguiria caminhar o quilômetro e médio que o separava de seu piso do Russell Square. No Marylebone High Street havia uma cafeteria nova
cujo jovem casal de proprietários usava café recém moído e fazia seus próprios bolos, e onde algumas sela situadas sob sombrinhas davam aos vizinhos a ilusão
de que o verão inglês se emprestava para comer ao ar livre. Descansaria ali dez minutos. Era extraordinário o importantes que se tornaram aquelas satisfações
corriqueiros. À medida que se resignava a acritud de sua enfermidade mortal, ia adquirindo algumas das manias da velhice, uma predileção pelos pequenos prazeres,
uma exigência no referente à rotina, uma renúncia a incomodar-se nem sequer por suas mais antigas relações, uma indolência que convertia em uma carga o ato
de vestir-se e de banhar-se, uma preocupação por suas funções corporais. Desprezava ao homem pela metade que tinha chegado a ser, mas inclusive essa repugnância
por
si mesmo formava parte do quejumbroso pesar da senilidade. Entretanto, sirJames tinha razão: era difícil lamentar a perda de uma vida tão diminuída; quando
a enfermidade tivesse acabado com ele, a morte não seria mais que a desintegração final de um corpo do que o espírito se separou tempo atrás, esgotado
pela dor, pelo aborrecimento e por um mal-estar que impregnava mais fundo que a debilidade física, de um frágil traidor do coração que nunca se armou de coragem
para lutar.
Enquanto baixava Wimpole Street sob a suave luz do sol outonal, pensou nas grandes atuações que tinha visto e resenhado, e mentalmente pronunciou os nomes
como se passasse lista: o Ricardo III do Olivier, Wolfit no papel do Malvolio, o Hamlet do Gielgud, o Falstaff do Richardson, Peggy Ashcroft como Porcia. Recordava
a todos, recordava os teatros, os diretores, inclusive alguns das passagens mais citadas de suas críticas. Era interessante observar que, depois de trinta anos
de afeição pelo teatro, eram os clássicos os mais perduráveis em seu interior. Mas sabia que embora aquela noite ocupasse seu assento acostumado na terceira
fila de poltronas, trajeado como é devido em uma estréia, atento ao murmúrio prévio que é distinto a qualquer outro som do mundo, nada do que ocorresse quando
levantasse-se o pano de fundo lhe comoveria nem lhe exaltaria além de um interesse distante. A glória e a capacidade de assombro tinham desaparecido. Jamais voltaria
a sentir
aquele comichão na nuca, aquela quebra de onda quase física do sangue, que durante toda sua juventude tinha sido sua resposta ante uma grande atuação. Era paradoxal
que agora, esgotada toda sua paixão, estivesse por escrever a última crítica de uma obra, e que se tratasse de uma representação de aficionados. Mas de algum sítio
extrairia a energia necessária para fazer o que tinha que fazer no Courcy Island.
A ilha era famosa por sua beleza e o castelo um interessante exemplo de miscelânea vitoriana. Provavelmente, vê-los compensasse o esforço da viagem, e isso era
o mais próximo ao entusiasmo que podia sentir. Mas não estava tão seguro com respeito a outros convidados. Clarissa tinha mencionado que sua prima Roma Lisle iria
com um amigo. Ivo não conhecia Roma, mas tinha tido que suportar durante muitos anos as mordazes observações denigratorias da Clarissa para acreditar que desfrutaria
estando sob o mesmo teto que ambas, enquanto a omissão do nome do amigo não era nada tranqüilizadora. Aparentemente também estaria o moço. A decisão
da Clarissa de fazer-se carrego do filho de seu defunto marido, Martin Lessing, tinha sido um de seus impulsos mais espetaculares; perguntou-se quem o lamentaria
mais,
se a benfeitora ou a vítima. Nas três ocasiões em que tinha visto o Simon Lessing -dois no teatro e uma em uma festa no piso da Clarissa, no Bayswater-,
tinha-lhe chocado a desmaña do menino, unida a uma sensação de profunda desdita pessoal que, a seu entender, tinha menos que ver com a adolescência que com a Clarissa.
Havia algo canino em seu servilismo, uma desesperada necessidade de obter a aprovação dela sem a menor ideia do que era o que esperava dele. Whittingham havia
visto o mesmo olhar nos olhos de seu pai e o aguilhão da lembrança não lhe resultou agradável. Simon passava por ser um pianista de talento. Era provável que Clarissa
imaginou-se esplendidamente projetada em um dos camarotes de proscenio do Royal Festival Hall, enquanto seu prodígio, lhe dedicando um olhar de adoração,
inclinava triunfante a cabeça. Para ela devia ser desconcertante ver-se, em troca, enfrentada à volubilidade e a falta de graça da adolescência. Ivo se
descobriu poseído por um leve interesse, o de ver como as arrumavam aqueles dois. E haveria outras satisfações secundárias, a menor das quais não seria
a de ver como as arrumava Clarissa Lisle com sua própria neurose. Se aquela falar de ser sua última função, experimentava certa satisfação ao saber que
também podia ser a última dela. Clarissa devia saber que ele se estava morrendo, para isso tinha olhos. Mas não lhe invejava o prazer que podia obter observando
o processo de desintegração física. Existiam prazeres mais sutis; entre eles, observar a desintegração mental, suspeitava Ivo. Estava descobrindo que até
o ódio se extinguia um pouco ao final. Mas durava mais que o desejo, inclusive mais que o amor. Andando lentamente ao amparo do morno sol e pensando no fim de
semana que lhe aguardava, sorriu ao descobrir que o que agora estava mais vivo nele era a capacidade de maldade.
.
5.
No porão de uma pequena loja de um beco, mais à frente do extremo norte do Tottenham Court Road, Roma Lisle se ajoelhou para desempaquctar e classificar
uma caixa cheia de livros de segunda mão. Embora o estou acostumado a era de ladrilhos, o porão -que em seu dia tinha sido cozinha e que ainda continha uma velha
pilha de porcelana,
uma fileira de despensas montadas na parede e uma cozinha de gás desconectada, tão pesada que os esforços misturas do Colin e ela não tinham sido suficientes
para deslocá-la- despedia um calor insuportável. Fora, o abafado acumulado durante o agonizante verão parecia haver-se concentrado na zona inferior às
grades de ferro e aderir-se à única ventanita como uma manta empapada de suor e vapores, que obstaculizava ao mesmo tempo o passado do ar e a luz. Vamos
a única lâmpada pendente arrojava mais sombras que claridade; era ridículo ter que recorrer à eletricidade, tão cara, em um dia semelhante. Certamente estava
louca quando pensou que aquele buraco podia transformar-se em uma íntima e acolhedora livraria de lance, prazenteira para quem gosta de bisbilhotar em busca de livros.
Descobriu que o conteúdo da caixa não valia grande coisa. Tinha puxado por aqueles livros e os tinha comprado baratos em um leilão de uma casa de campo. Agora,
a primeira inspeção real pôs de relevo que o lote não era nenhuma ganga. Os melhores livros estavam na fila de acima. O resto era uma matizada coleção
de sermões vitorianos, reminiscências de generais retirados, biografias de políticos de segunda fila tão medíocres na morte como o tinham sido em vida, novelas
que não despertavam o menor interesse, salvo para maravilhar-se de que alguém as tivesse publicado.
Sentia os joelhos intumescidos contra os ladrilhos, as fossas nasais entupidas pelo aroma de pó, a cartão bolorento e a papel em processo de desintegração.
Em sua imaginação todo tinha sido distinto: Colin ajoelhado a seu lado, a alegria de revolver, as exclamações de prazer quando um tesouro saía à luz, a
risada, os projetos, a diversão. Recordava o último dia no Instituto Pottergate, a festa de despedida com xerez barato, as inevitáveis batatas fritas em
bolsas de plástico, o aperitivo de queijo; a inveja apenas encoberta de seus colegas porque ela e Colin se foram e instalariam um negócio, o adeus aos honorários,
as notas, os exames, a cotidiana e desalentadora luta por impor ordem na classe de quarenta alunos de uma escola suburbana de segundo ensino, onde
a pedagogia sempre tinha estado subordinada ao esforço por manter certa aparência de disciplina.
E aquilo tinha ocorrido só nove meses atrás! Nove meses durante os quais tudo o que tinham comprado, tudo o que necessitavam, encareceu-se, nos
que a loja tinha estado tão inerte como se a houvessem cerca e declarado em quebra. Nove meses de trabalho excessivo e magros benefícios, de esperanças desvanecidas
e pânico pela metade reconhecido. Nove meses -era possível?- da lenta morte do desejo. Esteve em um tris de gritar a modo de protesto, mas se limitou a golpear
suas fortes mãos contra a caixa, como se aquela idéia e sua concomitante dor pudessem ser apartados fisicamente de seus pensamentos. Então ouviu os passos de
Colin na escada. Roma se voltou em direção a ele e se obrigou a sorrir. Ele logo que tinha falado durante o almoço. Claro que isso tinha ocorrido três horas
antes e às vezes seu mau humor se dissipava. Suas primeiras palavras destruíram toda esperança:.
-Este lugar empresta!.
--- Trocará quando o limparmos a fundo.
-E quanto tempo levará isso? Aqui faria falta um exército de criadas e decoradores. E mesmo assim seguiria parecendo o que é, um tugúrio de má morte.
Colin se desabou sobre uma caixa de livros sem abrir e começou a examinar o montão que ela tinha desempacotado, deixando cair os livros com desdém em uma pilha
desordenada. Sob a tênue luz seu rosto atrativo e mal-humorado parecia sulcado pela fadiga. Roma não compreendia a causa: era ela a que fazia todo o trabalho.
Estendeu a mão e uns segundos depois ele a colheu com gesto desacordado. "Deus, quanto te amo! -pensou-. Amamo-nos. Não me tire isso".
Colin apartou sua mão da dela quase furtivamente e fingiu um repentino interesse por um dos livros. Quando o abriu saiu revoando de suas páginas uma pequena
folha de papel grosso e desbotado.
-O que é isso? -inquiriu Roma.
-uma espécie de velho gravado em madeira, ao que parece. Não acredito que tenha nenhum valor.
-Poderíamos perguntar-lhe ao Ambrose Gorringe quando formos ao Courcy Island. Ele entende destas coisas embora não correspondam a seu período.
Observaram juntos a tarieta. Sem dúvida era antiga, de princípios do século dezessete, conjeturou Roma, a julgar pelo uso da língua e a sintaxe; encontrava-se
em perfeito estado. Tinha a modo de cabeçalho uma tosca gravura em madeira que representava um esqueleto com uma flecha na mão direita, e na esquerda um relógio
de areia. Debaixo levava o título "Mensageira Benjamima da Mortalidade", seguido por uma poesia. Roma leu em voz alta os quatro primeiros versos:.
Agraciada ricafembra, seus suntuosos vestidos desprezem,) não lhes vangloriem já de seu orgulho,) abandonem tudo gorado deleite carnal;) esta noite a lhes levar
vim)).
O pé, sem data, indicava que o impressor era John Evans, do Long Lane, Londres.
-Recorda a Clarissa -disse Roma.
-A Clarissa? por que?.
-Não sei, não sei por que.
Colin a pressionou com irritante insistência, como se importasse, como se ela o houvesse dito com alguma intenção.
-Só são palavras, algo que me ocorreu. Não significa nada. Deixa esse papel junto à pilha, sobre o escurridero. O mostraremos ao Ambrose Gorringe.
Colin fez o que lhe pedia e depois retornou com cara larga a sua caixa.
-Foi um engano comprar este lixo -opinou-. Teríamos que nos haver conformado com as estoque novas. Londres parece ter um excesso de livrarias. Saberá
Deus por que razão te permiti que me convencesse de comprar todo esse material de esquerdas que está acima. A ninguém interessa. Os esquerdistas já têm muitos
fornecedores neste bairro e isso afasta ao resto dos clientes. Quão único fazem esses panfletos é juntar pó. Devia estar louco.
Roma sabia que não se referia unicamente à literatura de esquerdas. A injustiça de suas palavras lhe chegou à alma. decidiu-se a falar, embora sabia que era
um desatino. Ele precisava ser mimada, mimado, confortado. As disputas que provocava cada vez com maior freqüência o deixavam carrancudo e ressentido, e a ela
exausta. Mas não suportava mais.
-Ouça, não cojiste este local para me agradar. Estava tão ansioso como eu por sair do Pottergate. Detestava o ensino, recorda? Eu estava até o cocuruto,
reconheço-o, mas não teria renunciado se você não tivesse dado o primeiro passo.
-Quer dizer que tudo é minha culpa ..... .
-Tudo! O que quer dizer "tudo"? Não é culpa de ninguém. Ambos fizemos o que queríamos.
-Então do que te queixa?.
-É que estou farta de que me faça sentir que sou um estorvo, pior que uma esposa, como se só seguisse na loja por mim.
-Sigo..., seguimos porque não há alternativa. Pottergate não voltaria a nos aceitar embora o solicitássemos.
E a que outra parte podiam dirigir-se? Ele não precisava lhe falar do desemprego na docencia, da redução de gastos, da desesperada busca de trabalho incluso
por parte dos melhor preparados. Até sabendo que discutir era um disparate que só alimentaria a irritação do Colin, Roma disse:.
-Se mandasse a loja a passeio, Stella seria muito feliz. Suponho que isso é o que espera para poder dizer "já lhe adverti isso" e te entregar convenientemente algemado,
como uma vítima propiciatoria, a seu querido papai e à empresa familiar. Deve estar rogando que nos declaremos em bancarrota! Sente saudades que não esteja à espreita
na porta, contando os clientes.
O protesto do Colin foi mais triste que veemente. Não era a primeira vez que discutiam a questão.
-Stella sabe que estou preocupado, obviamente, e também ela o está. E tem dereeho a está-lo, já que a metade do dinheiro que investi aqui era dele.
Como se fora necessário dizê-lo. Como se ela não soubesse exatamente quanto dinheiro da generosa ajuda de papai tinha posto a magnânima Stella. Um gesto generoso
por sua parte, generoso ou estúpido ou matreiro. Ou as três coisas. Porque Stella tinha que saber que Colin se associaria com seu amante, não era cega. Claro que
sabia!
Certamente não entendia o que tinha visto ele em Roma -nesse sentido não era a única pessoa que se fazia a mesma pergunta-, mas conhecia o pano. Esse tinha sido
precisarnente sua desforra: o dinheiro para criar uma sociedade que estava destinada ao fracasso dada a inexperiência dos dois, o escasso capital, as vões ilusões;
um fracasso que o faria voltar, castigado, aonde lhe correspondia, ao lugar, bem pensado, que nunca tinha abandonado. E que saída haveria para ele, salvo o
negócio de papai? Salvo o armazém do Kilburn, que vendia a prazos móveis baratos de madeira compensada a compradores muito ignorantes para saber quando os
enganavam, ou muito orgulhosos em sua pobreza para percorrer os mercados guias de ruas e comprar boas peças de sólido carvalho, de segunda mão. As porcarias que
deslumbravam-nos -móveis bar, biombos, recarregados jogos de dormitório- cairiam em pedaços ou seriam destruídos a patadas muito antes de que tivessem terminado
de pagá-los. Era isso o que Colin queria fazer com sua vida? Para isso tinha deixado o ensino? E todo aquilo o tinha pensado Stella sozinha, ou papai lhe havia
dado uma mão? O dinheiro que lhes tinha emprestado, não estava minuciosamente calculado até a última libra? O suficiente para fazer possível a empresa, mas não
tanto como para fazê-la prosperar. Stella era bastante listilla.
Tinha um perspicaz cerebrito que harmonizava com suas afiadas unhas pintadas, com seus dentes níveos e infantis. Além disso, possuía outras armas: Justin yJoanna.
A cobiça e a posesividad tinham sido santificadas pela maternidade. Tinha aos gêmeos. E bem que sabia usá-los! Todos os mal-estares familiares infantis,
tudas as partilhas de prêmios escolar, todas as visitas ao dentista, todas as festas familiares, tudo os natais, exigiam a presença do Colin no lar,
como se Stella dissesse a ela na cara: "Pode deitar-se contigo, jogar livreiro contigo, imaginar que está apaixonado por ti, te ter confiança. Mas nunca
dará-te filhos. E nunca se divorciará de mim para casar-se contigo". Espantada ante seus próprios pensamentos, aterrada ao ver o que lhes estava ocorrendo, gritou:.
-Não briguemos, querido. Estamos fatigados, temos calor e é um dia odioso. na sexta-feira fecharemos a porta e iremos ao Courcy Island. Três dias de paz, de sol,
de bons vinhos, de comida deliciosa e de mar. A ilha só tem cinco quilômetros por quatro, conforme me há dito Clarissa, mas conta com paragens maravilhosas.
Podemos nos separar do resto dos convidados. Clarissa estará ocupada com a obra. Não acredito que ao Ambrose Gorringe importe o que façamos. Não haverá credores,
nem gente: só paz. E vá se a necessito! -Esteve a ponto de adicionar "e necessito a ti, querido, cada vez mais, sempre", mas levantou a vista e viu sua expressão.
Não lhe era desconhecida aquela mescla de vergonha, irritação, confusão. Tinha-a visto antes. A fim de contas, essa tinha sido a pauta de suas vidas: os planos
elaborados confidencialmente, os cancelamentos de último momento. Mas nunca lhe tinha importado tão desesperadamente. As lágrimas lhe arderam nos olhos. disse-se
que devia conservar a calma, que não tinha que abater-se; mas quando conseguiu falar, o tom de amarga recriminação foi inconfundível inclusive para seus próprios
ouvidos
e notou que o olhar do Colin se endurecia até converter-se em um desafio.
-Não pode me fazer isto! Não pode! Prometeu-me isso! Eu disse a Clarissa que levaria a meu sócio. Está tudo arrumado.
-Sei e o lamento. Mas esta manhã telefonou o pai do Stella para dizer que deveria passar o fim de semana. Tenho que estar em casa. Já te hei dito como
é. Sentou-lhe muito mal que abandonasse o ensino. Nunca nos levamos bem. Ele pensa que não sei apreciar a sua filha em tudo o que vale, já sabe o que ocorre com
as filhas únicas. Não gostará de nada saber que me fui a passar um comprido fim de semana fora, deixando que ela as arrume sozinha com os meninos. E não se tragará
o conto de que tive que ir a um leilão. Parece-me que tampouco Stella crie.
Então era por isso. Papai chegava. Papai, que pagava a escola dos gêmeos, que provia o carro, as férias, os luxos que se transformaram em necessidades.
Papai, que tinha idéias pessoais sobre o futuro de seu genro.
-O que pensará Clarissa? -disse Roma com uma voz que era quase um gemido.
-Não seria melhor perguntar-se o que pensaria se fosse? Sabe que estou casado, suponho que isso é algo que terá deixado traslucir. Não seria estranho que chegássemos
juntos? Não é quão mesmo se pudéssemos compartilhar um dormitório ou algo assim.
-Suponho que com "algo assim" quer  dizer que não poderíamos nos deitar juntos. por que não? Clarissa não é exatamente um modelo de pureza e não acredito que Ambrose
Gorringe se deslize furtivamente pelos corredores para verificar que cada hóspede está em seu dormitório.
-Não é isso -murmurou Colin-. Já lhe expliquei isso. trata-se do pai do Stella.
-Mas este fim de semana poderia te haver liberado dos dois. Me ocorreu que poderíamos nos justificar com a Clarissa, lhe falar da loja, lhe perguntar se nos ajudaria.
Para isso me ocupei de que nos convidassem. depois de tudo, a terceira parte de seu dinheiro virá a minhas mãos se morrer sem ter descendência. Assim o especifica
o testamento
de meu tio. A ela não a prejudicará me deixar uma parte quando mais o necessito. Só lhe estaríamos pedindo um empréstimo.
Roma fez um esforço para não reparar no brilho esperançado que percebeu no olhar do Colin. De qualquer maneira, em seguida se desvaneceu e lhe disse:.
-Nunca lhe pediria dinheiro a uma mulher.
-Não teria que fazê-lo. O pediria eu. O que pensei era que te conheceria e lhe cairia bem. Não esqueça que te veria nas melhores condicione possíveis. Depois
eu falaria com ela, quando me parecesse oportuno. Vale a pena tentá-lo, querido. Inclusive vinte mil suporiam uma grande diferencia.
-Quanto te corresponderia se morrera?.
-Não estou segura. Umas oitenta mil, acredito. Possivelmente mais.
Colin desviou o olhar.
-Isso é mais ou menos o que necesitaríarnos se abandonasse ao Stella e me divorciasse. Mas Clarissa não morrerá só por nos dar o gosto. Vinte mil seriam úteis
para salvar a livraria, mas nada mais. E por que razão teria que te deixar vinte mil libras? Qualquer que tenha um grama de sentido financeiro tem que saber que
é como atirar o dinheiro pela amurada. Não tem sentido. Não poderei te acompanhar este fim de semana.
Ouviram ranger o chão da livraria. Tinha entrado alguém.
-Parece que chegou um cliente -apressou-se a dizer Colin, agradecido-. Se não haver ninguém, fecharei às cinco em ponto e te ajudarei com tudo isto. Terá que deixá-lo
em condições como é.
Quando Colin subiu, Roma apareceu a ventanita, em postura rígida, obstinada com tanta firmeza aos borde da pilha, que os nódulos lhe puseram brancos.
Tinha o olhar perdido além das grades, do estuque quebrado das paredes do porão, para onde se aglutinavam e tremiam os brilhantes vermelhos, verdes
e amarelos do posto de frutas da calçada de em frente. de vez em quando se ouviam pisadas, vozes, o beco cobrava vida momentaneamente. Mas a silenciosa figura
aparecida na janela permaneceu impassível. Um momento depois exalou um breve suspiro. Os ombros rígidos se afrouxaram, os dedos soltaram a pilha. Roma agarrou a
gravura
em madeira do escurridero e o estudou como se o visse pela primeira vez. Logo abriu sua bolsa de bandoleira e o guardou.
.
6.
Simon Lessing estava ante a janela aberta de seu estudo do Melhurst, contemplando a grama que se estendia até onde o rio distribui seu lento fluxo entre
castanhos de Índias e limeiras. Tinha na mão a carta da Carissa, ainda sem abrir. Havia. chegado com o correio da manhã, mas encontrou desculpas para não lê-la.
A primeira hora tinha tido que praticar uns exercícios no piano; a seguir deveu assistir ao seminário do sexto curso. prometeu-se a si mesmo que
esperaria até o recreio. Mas transcorreu toda a manhã e já era a hora de almoçar. antes de cinco minutos soaria o sino. Não podia postergá-lo indefinidamente.
Era ridículo e humilhante ter tanto medo, estar como um pirralho de primeiro ano com um relatório escolar temível sabendo que, apesar das demoras, por último
chegaria o momento da verdade.
Aguardaria a que soasse realmente o sino e logo a leria depressa, ao descuido, e com o pensamento posto no almoço. Ao menos poderia fazê-lo em paz.
No Melhurst, de terceiro em adiante cada aluno tinha seu próprio estudo. A importância de um período diário de silêncio e intimidade era um dos mais ilustres
preceitos do piedoso fundador da escola lá pelo século dezessete e, sobre tudo obrigado a que tinha ficado incorporado na arquitetura quase monástica,
essa norma conseguiu sobreviver a trezentos anos de cambiantes modas educativas. Esse era um dos aspectos do Melhurst que mais apreciava Simon, um dos privilégios
que lhe tinha proporcionado o mecenato da Clarissa, o dinheiro da Clarissa. Nem a ela nem a sir George tinha passado pela imaginação o escolher outra escola,
e Melhurst não teve nenhuma dificuldade em encontrar uma vacante para o enteado de um de seus ex-alunos mais distinguidos. Seu lema -em grego e não no mais acostumado
latim- elogiava as virtudes da moderação, e durante trezentos anos, de conformidade com a sentença da teogonía a escola tinha sido moderadamente famosa,
moderadamente cara e de moderado êxito. Nenhuma escola lhe teria agradado mais ao Simon. Reconhecia que suas tradições e seus ritos em ocasiões extravagantes -que
aprendeu logo e que observava diligentemente- estavam destinados tanto a desalentar um encargo muito pessoal como a promover uma identidade coletiva. Simon
era tolerado e lhe deixavam em paz, e ele não pedia mais. Inclusive suas aptidões eram aceitáveis para o caráter da escola, que, talvez por causa de uma forte antipatia
pessoal entre um diretor do século dezenove e o doutor Arnold do Rugby, evitava por tradição o cristianismo vital e quase todas as manifestações do espírito
de equipe, e abraçava o anglicanismo rigoroso e o culto do excêntrico. Mas o ensino de música era boa, as duas orquestras da escola tinham alcançado
fama nacional. Além disso a natação, única atividade física em que destacava, era um dos esportes mais aceitos. Em comparação com o Instituto Norman Pagworth,
Melhurst lhe parecia um refúgio de civilizada ordem. No Pagworth se havia sentido como um estrangeiro abandonado sem tão sequer um dicionário de bolso em um
país anárquico, mal governado e estranho cujo idioma e costumes eram pavorosamente incompreensíveis. A perspectiva de ter que abandonar Melhurst e voltar para seu
velha escola tinha sido um de seus piores terrores desde que começou a notar que as coisas andavam mal entre ele e Clarissa.
Era estranha a forma em que o temor e a gratidão podiam fundir-se. A gratidão era autêntica. Só desejava poder experimentá-la como sem dúvida devia experimentar-se,
como uma graça, uma bênção recíproca livre do lastro da obrigação e a culpa. A culpa era o mais difícil de suportar. Quando sua carga se volvia quase insuportável,
tentava exorcizá-la mediante pensamentos racionais. Era ridículo sentir-se culpado; era ridículo e inclusive desnecessário sentir uma obrigação muito opressiva.
Ao fim e ao cabo, Clarissa lhe devia algo. Era ela quem tinha destruído o matrimônio de seus progenitores, seduzido a seu pai, contribuído à morte de sua mãe
pela pena; quem tinha feito dele um órfão que deveu suportar os desconfortos, as vulgaridades e o sufocante aborrecimento da casa de seu tio. Era Clarissa
e não ele quem devia sentir-se culpado. Mas inclusive o fato de permitir que esse pensamento reptara traidor até sua mente, aumentava o peso de suas obrigações.
Devia-lhe tanto! O problema residia em que todos sabiam exatamente quanto. Sir George estranha vez estava ali, mas quando estava se apresentava ante o Simon como
a
muda e acusadora personificação de todas as qualidades masculinas que -ele sabia muito bem- eram alheias a sua personalidade. Às vezes intuía no marido da Clarissa
uma silenciada boa vontade que com muito gosto teria posto a prova se tivesse reunido o valor suficiente. Mas a maior parte do tempo imaginava que em
realidade sir George nunca tinha aprovado que Clarissa o levasse consigo e que suas conversações privadas estivessem salpicadas de frases como "disse-lhe isso, você
o
adverti". A senhorita Tolgarth sabia; Tolly, cujo olhar não se atrevia a sustentar por medo a encontrar uma daquelas expressões sentenciosas nas que acreditava
detectar desgosto, ressentimento e desprezo. Clarissa sabia, provavelmente até o último penique. Cada vez estava mais convencido de que Claussa se arrependeu
de sua generosidade que ao princípio continha todo o encanto da novidade do gesto generoso, em seu momento soberbiamente teatral em toda sua excentricidade, mas
que agora lhe tinha imposto a carga de um adolescente com acne, incômodo entre seus amigas, a carga das faturas escolar, as disposições para as
férias, as visitas ao dentista, todas as irritações menores da maternidade e nenhuma de suas compensações essenciais. Percebia que ela requeria dele
algo que não estava em condições de identificar nem de lhe dar, alguma compensação não especificada mas considerável, que algum dia lhe exigiria com a brutal insistência
de um coletor de impostos.
Agora Clarissa estranha vez lhe escrevia e, quando Simon viu em seu cuartito aquela caligrafia alta e curva -era inimizade de que as cartas pessoais se escrevessem
a
máquina-, teve que acorazarse para decidir-se a abrir o sobre. Nunca antes tinha sido tão capitalista sua apreensão. A carta parecia haver lhe pego à mão, carregada
de ameaças. Soou o sino da uma. Com repentina veemência rasgou uma esquina do sobre. O papel de linho azul claro que sempre usava Clarissa era consistente.
Simon introduziu o polegar e praticou uma abertura delicada entre o sobre e a carta, veloz como um amante que não pode esperar para conhecer seu destino. De soslaio
viu que a carta era breve, e sua reação imediata foi um gemido de alívio. Se pensava lhe jogar, se não ia haver um último curso no Melhurst, se não existia a
possibilidade de uma vacante no Real Colégio de Música nem mais ajuda econômica, certamente a desculpa, a justificação, requereria mais de meia página. De qualquer
maneira, a primeira oração afugentou seus temores.
Esta é para te transmitir os acordos relativos ao próximo fim de scmana. George nos levará ao Tolly e a mim até o Speymouth a primeira hora da sexta-feira, mas será
melhor que você chegue com o resto dos convidados a tempo para almoçar. A lancha juntará com o trem das nove e trinta e três do Waterloo. Tem que estar
no embarcadero do Speymouth às onze e quarenta. Ivo Whittingham e minha prima Roma chegarão nesse trem, e também conhecerá uma garota, Cordelia Gray. Necessitarei
ajuda durante o fim de semana e ela é uma espécie de secretária ocasional, de modo que na ilha haverá alguém jovem para que pratique conversação. Também
poderá nadar, de modo que não terá motivos para te aborrecer. Leva seu smoking. Ao Ambrose Gorringe gosta de vestir de etiqueta de noite. Entende um pouco de música,
assim deve selecionar algumas de suas melhores peças, as que conheça bem, nada muito pesado. Já lhe tenho escrito ao diretor pelo dia de licença suplementar.
Entregou-te a enfermeira a loção para o acne que lhe enviei o mês passado? Espero que a esteja usando. Abraços.
Clarissa.
Era estranha a forma em que o alívio podia transtornar-se em uma ansiedade nova e distinta, inclusive em ressentimento. Ao ler a carta pela segunda vez, Simon se
perguntou
por que lhe teriam convidado à ilha. Era obra da Clarissa, é obvio. Ambrose Gorringe não o conocla e muito provavelmente não lhe teria incluído entre suas hóspedes
em caso de lhe conhecer. Recordava vagamente ter ouvido falar da ilha, do teatro vitoriano restaurado, dos planos para pôr em cena a tragédia do Webster,
e tinha notado que a função era importante para a Clarissa, embora se tratava de uma representação de aficionados. Mas, por que tinha que ir ele? esperava-se de
ele que se mantivera longe de sua protetora, que não se convertesse em um estorvo, isso era evidente. Poderia entreter-se no mar ou na piscina. Supunha que havia
piscina e imaginou a Clarissa, pálida e dourada, tendida ao sol com a garota nova a seu lado, aquela Cordelia Gray com a que teria que praticar conversação.
E que mais queria Clarissa que praticasse? O modo de ser simpático? De dizer cumpridos? De saber o que fale gostam às mulheres e quando contá-los? De paquerar?
De demonstrar que era um hoterosexual bem disposto? Lhe secou a boca de só pensar em semelhante perspectiva. Não era que lhe desgostasse a idéia de que houvesse
uma garota. Em sua mente já tinha criado a que gostaria de ter a seu lado no Courcy Island..., em qualquer ilha; sensível, formosa, inteligente, boa e, sem
embargo, com um ardoroso desejo de que ele fizesse essas coisas terrivelmente excitantes e vergonhosas que deixariam de ser vergonhosas porque se amavam, atos que
conciliariam
dentro dele -em doce carne, finalmente e para sempre- essa dicotomia, que ocupava suas horas de sonho, entre o romantismo e o desejo. Não esperava encontrar
a essa garota no Courcy nem em nenhum outro sítio. A única com a que até então tinha tido algo que ver era sua prima Susie. Detestava ao Susie, detestava seus
desdenhosos olhos; sua boca que perpetuamente mascava, sua voz que alternativamente gemia ou chiava, seu cabelo tingido, seus dedos encrespados e imundos.
Mas embora aquela garota nova fosse diferente, embora gostasse, como podia chegar a conhecê-la se Clarissa lhe estaria vigiando, estaria pontuando sua pronúncia,
seu atrativo, seu engenho, sua conduta social, da mesma forma em que ela e aquele Ambrose Gorringe se dedicariam a julgar seus dotes musicais? A referência a
a música lhe tinha aceso as bochechas. sentia-se bastante inseguro com respeito a seu talento sem necessidade de vê-lo diminuído por aquela afetada alusão
a seus "peças", como se fosse um menino ao que luzem ante as vizinhas à hora do chá. Mas as instruções eram claras. Devia levar algo vistoso, ou popular, ou
ambas as coisas, algo que pudesse interpretar com estudada fanfarronice, para que ela não se sentisse desonrada por alguma falha nervosa na pulsação, para que
ela e Ambrose Gorringe decidissem se tinha talento suficiente para justificar o último ano na escola e o intento de conseguir uma vacante no Colégio Real
ou na Academia.
E se o veredicto fosse negativo? Não podia retornar ao Mornington Avenue, à casa de seus tios. Clarissa não podia lhe fazer isso. Ao fim e ao cabo era ela a que
tinha apresentado a ordem de liberação. Tinha chegado sem anunciar uma calorosa tarde das férias do verão, quando ele estava sozinho na casa como de costume,
lendo na mesa do salão. Não recordava como se apresentou Clarissa, se lhe havia dito que o homem silencioso e erguido que estava com ela era seu novo
marido. Mas recordava seu aspecto, dourada e resplandecente, uma milagrosa visão fresca e fragrante que instantaneamente se apoderou de seu coração e de sua vida
como o
faria um socorrista que resgata das águas a um menino e o instala em uma rocha ensolarada. Muito bom para durar, é obvio. Mas que maravilhosamente brilhava
na lembrança aquela longínqua tarde estival!.
-É feliz aqui?.
-Não.
-Não vejo como poderia sê-lo. Este lugar é horrível. Tenho lido em algum sítio que se venderam milhões de cópias desse gravado, mas jamais me ocorreu que a
gente o pendurasse realmente nas paredes de sua casa. Seu pai me comentou que tinha inclinações musicais. Segue tocando o piano?.
-Não posso, aqui não há piano. Na escola só ensinam percussão. formaram uma banda antilhana. Só lhes interessa a música em que qualquer possa participar.
-As coisas nas que qualquer possa participar, pelo general não merecem a pena. Não teriam que ter posto dois papéis diferentes nas paredes. Três ou
quatro teriam sido o bastante curiosos para criar um efeito divertido. Dois resultam vulgares. Quantos anos tem? Quatorze, verdade? Você gostaria de viver conosco?.
-para sempre?.
-Nada é para sempre. Mas é possível. Ao menos até que seja adulto.
Sem esperar resposta, sem sequer lhe olhar à cara para ver a reação que produziam nele suas palavras, voltou-se para o homem calado que a acompanhava.
-Acredito que podemos fazer algo melhor que isto pelo filho do Martin.
-Se você estiver segura, querida. Não é coisa que possa decidir-se precipitadamente. Não se pode conquistar a um menino em um impulso.
-Querido, onde estaria você se eu não te tivesse conquistado em um impulso? E é provavelmente o único filho que te darei.
Os olhos do Simon passeavam de uma ao outro. Recordava ainda os gestos de sir George, as facções endurecidas como se os músculos se estivessem fortalecendo
contra a dor, contra a vulgaridade. Mas Simon tinha visto a ferida, visível e inconfundível, antes de que sir George voltasse a cabeça.
-Incomodará a seus tios?.
A desdita, as ofensas, evaporaram-se. Tinha tido que conter-se para não pendurar-se de seu vestido.
-Não lhes importará! Estarão encantados! Ocupo a habitação de hóspedes e não tenho dinheiro. Sempre me estão dizendo quanto os costa me alimentar. E não gostam.
Francamente, não lhes incomodará.
Logo, por impulso, fazia exatamente o que devia fazer. Possivelmente foi a única vez que fez exatamente o que devia fazer no que respeita a Clarissa. Em
o batente da janela havia um vaso com um gerânio de cor rosa, seu tio era entusiasta da jardinagem e cultivava galhos no abrigo acristalado lhe confinem
com a cozinha. Uma das cabezuelas da flor era pequena e delicada como uma rosa. Cortou-a e a ofereceu, olhando-a aos olhos. Ela riu, agarrou-a e a deslizou,
a modo de adorno, no cinturão do vestido. Logo olhou a seu marido e voltou a rir em uma espécie de alegre repico triunfal.
-Bem, parece que já está decidido. Esperaremos a que voltem. Não vejo a hora de conhecer os donos deste empapelado. Depois iremos comprar um pouco de roupa.
Com essa promessa, sob o efeito estimulante do gozo imprevisto, tinha começado tudo. Agora tratou de recordar quando se desvaneceu o sonho, quando haviam
começado a andar mal as coisas. Embora além daquele primeiro encontro, alguma vez tinham ido realmente bem? Simon percebia que era pior que um fracasso, que era
o último de uma série de fracassos, que as primeiras decepções haviam agudizado o atual descontente da Clarissa. Simon já começava a temer as férias embora
sabia que veria muito pouco a Clarissa e ao George. A vida oficial se desenvolvia no piso de Londres, com vista ao Hyde Park. Mas estranha vez coincidiam ali. Clarissa
tinha um apartamento na praça Regency de Brighton e seu marido um compartimento chalé de pedra nas restingas deste costa. Nesses dois sítios viviam suas vidas
reais, ela em companhia de suas amizades da farándula, ele dedicado à observação dos pássaros e, se os rumores eram certos, a conspirações de direitistas.
Simon nunca tinha sido convidado a nenhuma das duas residências, embora com freqüência imaginava naqueles mundos secretos, Clarissa em um redemoinho de diversões,
sir George reunido com seus misteriosos e anônimos correligionários de severos rostos. Por alguma inexplicável razão, aquelas imagens, que ocupavam uma parte desproporcionada
de suas horas de férias, lhe apareciam em forma de velhos filmes. Clarissa e seus amigas, vestidas na moda sem talhe dos anos vinte, a juba ao
"garçon", esgrimindo largas boquilhas, balançavam suas pernas em um febril charlestón, enquanto os amigos de sir George chegavam a suas entrevistas em carros antigos,
talheres com trincheiras, com a asa dos chapéus flexíveis lhes ocultando os olhos. Excluído de ambos os mundos, Simon passava as férias no piso do Bayswater,
atendido de vez em quando por uma Tolly quase muda ou cuidando de si mesmo, jantando todas as noites em um restaurante próximo, tal como Clarissa tinha acordado
de
antemão. Ultimamente as comidas eram piores, não dispunham dos pratos que elegia -embora os serviam a outros clientes-, deixavam-lhe a pior mesa e lhe faziam
esperar. Alguns garçons se mostravam quase abertamente ofensivos. Sabia que desse modo Clarissa não recebia a atenção que merecia o valor de seu dinheiro, mas
ele não se atrevia a queixar-se. Quem era ele, um mantido de luxo, para falar do valor do dinheiro?.
Era hora de sair se queria comer algo. Fez uma bola com a carta e a meteu no bolso. Entreabriu os olhos para evitar o reflexo da erva, das folhas
das árvores e da água trêmula; tirou o chapéu rezando, lhe rogando a Deus -em quem já não acreditava-, com a desesperada urgência e a cândida rabugice de um menino:.
-Por favor, faz que o fim de semana seja um êxito. Não me deixe fazer o ridículo. Por favor, que essa garota não me despreze. Por favor, que Clarissa esteja de bom
humor. Por favor, não deixe que Clarissa me abandone. OH, Deus, por favor, não permita que ocorra nada terrível no Courcy Island.
.
7.
Eram as dez da noite da quinta-feira; no último piso do edifício do Thames Street, na City, Cordelia concluía os preparativos para o fim de semana. As
janelas oblongas e sem cortinas tinham persianas de madeira, que ainda estavam levantadas, e enquanto passava da enorme sala de estar ao dormitório vislumbrou, estendidas
a seus pés, iluminada-las ruas, os escuros becos, as torres e campanários da cidade e, mais à frente, o colar de luzes penduradas junto ao dique, a Lisa
e deslumbrante curva do rio. O panorama, à luz do dia ou depois que obscurecia, maravilhava-a constantemente e o piso mesmo se convertia em motivo de assombrado
encanto.
Só depois da morte do Bernie e ao concluir Cordelia seu traumático primeiro caso, inteirou-se de que por fim a pequena herança de seu pai tinha sido
esclarecida. Não esperava nada salvo dívidas e foi uma surpresa descobrir que era proprietário de uma pequena casa de Paris. Supôs que a tinha comprado anos atrás,
quando
sua situação era relativamente boa e se encontrava em condições de proporcionar uma casa segura, ocasional refúgio para os camaradas e para si mesmo; de outra
forma, um revolucionário tão fervoroso teria desprezado a aquisição de uma propriedade, embora fora tão ruída e insalubre como aquela. Não obstante, a zona
declarou-se mejorable, e a casa se vendeu a um preço surpreendentemente alto. Uma vez pagas as dívidas, a Cordelia ficou dinheiro suficiente para financiar
a agência seis meses mais e para começar a procurar um piso o bastante barato para comprá-lo. Nenhuma sociedade de empréstimo imobiliário se interessou por um
apartamento em um edifício de seis novelo, em cima de um armazém de mercadorias vitoriano, sem elevador nem as comodidades mínimas, nem em uma aspirante com ganhos
tão incertos como irregulares. Mas o diretor de seu banco, aparentemente tanto para sua surpresa como para a dela, mostrou-se pormenorizado e tinha autorizado
um empréstimo a cinco anos.
Cordelia tinha pago a instalação de uma ducha e o equipamento da pequena cozinha, estreita como a de um navio. Fazia o resto do trabalho por sua conta;
mobiliou o piso comprando o mobiliário em brechós e leilões suburbanos. A imensa sala de estar era branca, com uma parede coberta por uma biblioteca feita
com tablones pintados apoiados em amontoamentos de tijolos. A mesa onde comia e trabalhava era de carvalho escovado, e a calefação provinha de uma estufa de ferro
forjado. Só o dormitório era luxuoso, em estranho contraste com a espartana nudez da sala. Como só media dois metros e médio por um e médio, Cordelia havia
sentido justificado o esbanjamento de escolher um papel estampado à mão, caro e exótico, com o que havia talher o teto e a porta do armário, além das
paredes. De noite, com a janela que ocupava quase todo o largo de uma parede aberta ao céu, permanecia tendida em excêntrico luxo, abrigada como em um casulo,
sentindo que se elevava em sua brilhante cápsula e que flutuava sob as estrelas.
Protegia sua intimidade. Nenhum de seus amigos e ninguém da agência tinha posto os pés no piso. Os escarcéus amorosos tinham lugar em outros sítios. Sabia que
se algum homem compartilhava aquela estreita cama, para ela significaria um compromisso. Só conseguiu imaginar ali a um homem, um comandante de New Scotland Yard.
Sabia
que também ele vivia na City: compartilhavam o mesmo rio. Mas se dizia a si mesmo que o fugaz delírio tinha passado, que em um momento de tensão e aterradora insegurança
tinha procurado nele a figura paterna perdida. Algo têm a seu favor umas ligeiras noções de psicologia: permitem exorcizar lembranças que, do contrário, podem
resultar embaraçosos.
Na parte exterior de todas as janelas corria um estreito parapeito com um parapeito o bastante largo para alojar fileiras de vasos com ervas e gerânios, e
uma tumbona no verão. Abaixo havia armazéns e escritórios, misteriosos tráficos simbolizados, mais que identificados, por uma dobro fila de antigas placas. Durante
o dia o edifício tinha uma vida secreta, multilingüe e às vezes estridente. Mas às cinco da tarde todo começava a diluir-se e de noite albergava um imenso
silêncio quase inquebrável. Uma das empresas importava especiarias. Quando Cordelia subia a seu piso ao final do dia, aquele aroma picante e estranho que penetrava
nas escadas representava a segurança, o bem-estar, seu primeiro lar verdadeiro.
A parte mais difícil dos preparativos para aquele novo caso era decidir que roupa levar. Em seus momentos mais puritanos, Cordelia desdenhava às mulheres que dedicavam
uma quantidade desmesurada de tempo e dinheiro a seu aspecto. Considerava que tanta preocupação pela aparência exterior demonstrava a necessidade de compensar alguma
deficiência no núcleo da personalidade. Mas sabia reconhecer que seu próprio interesse pela roupa e a maquiagem, embora intermitente, era intenso enquanto durava,
e que jamais tinha conhecido o estado de despreocupação absoluta por seu aspecto. Nessa questão como em todas, preferia viajar ligeira de bagagem e a totalidade
de seu guarda-roupa podia acomodar-se facilmente no único armário e as três gavetas embutidas na parede de seu dormitório. Abriu-os e meditou o que seria necessário
para um fim de semana que, além da investigação, podia oferecer algo da navegação a vela e a escalada, até o teatro de aficionados. Pensou
que a saia vincada de lã fina, de cor camurça clara, com as duas peças de cachemira a jogo -tudo comprado nas ofertas de julho no Harrods- serviriam virtualmente
para qualquer ocasião; com um pouco de sorte, o suposto esbanjamento no conjunto de cachemira podia inspirar confiança na prosperidade da agência. Se se
mantinha o tempo quente, as calças bombachos de veludo cotelê cor castanha podiam ser calorosos para explorar ou caminhar, mas eram resistentes, e gostava do espartilho
e a jaqueta, com os que combinavam muito bem. Os texanos e um par de blusas de algodão era uma decisão óbvia, quão mesmo seu Guernsey. Resolver a vestimenta
noturna era mais problemático. Na atualidade muito pouca gente se vestia para jantar; mas ela ia a um castelo, Ambrose Gorringe podia ser um excêntrico e qualquer
coisa era possível. Necessitaria algo afresco e de certa etiqueta. decidiu-se por seu único vestido comprido, de algodão índio em delicados tons rosados, vermelhos
e ocres,
e uma saia vincada com blusa a jogo.
Empreendeu aliviada a tarefa mais concreta de verificar sua equipe "para a cena do crime". A idéia primitiva tinha sido do Bernie, inspirado na equipe distribuída
entre os membros da Brigada de Homicídios de New Scotland Yard. A equipe do Bernie não era tão completo, mas continha todo o essencial: sobre e pinzas para
recolher amostras, pós para detectar impressões digitais, uma câmara Polaroid, uma lanterna, luvas de borracha fina, uma lupa, tesouras e um canivete, uma lata de
argila para fazer moldes de chaves, tubos de ensaio com plugue para amostras de sangue. Bernie tinha famoso que idealmente estes últimos deviam conter um produto
de conservação e um agente anticoagulante. Nada de todo isso tinha sido necessário, antes nem agora. Resgatar gatos perdidos, seguir os passos de maridos errantes
e rastrear os rastros de adolescentes fugitivos tinha exigido perseverança, boas pernas, calçado cômodo e infinito tato em lugar da ciência esotérica que
com tanta veemência lhe tinha irradiado Bernie, compensando -durante essas largas sessões estivais no Epping Forest dedicadas a espreitar, a praticar seguimentos,
combates físicos e inclusive manejo de armas- seu próprio fracasso profissional, com a intenção de recrear através da Agência Pryde o perdido mundo hierárquico e
fascinante do Departamento Metropolitano de Investigação Criminal.
Da morte do Bernie só tinha introduzido umas poucas alterações na equipe; prescindiu do estojo original, que substituiu por uma bolsa de bandoleira de
lona, com bolsos interiores, comprado em uma loja de material de refugo do exército. depois de seu primeiro caso, tinha incluído um novo elemento: o comprido
cinturão de couro com fivela com que se enforcou aquela primeira vítima. Não tinha o menor desejo de rememorar aquele caso que tanto prometia e que tinha acabado
tão tragicamente, um caso que a tinha deixado com seu próprio legado de culpa. Mas em uma ocasião o cinturão lhe tinha salvado a vida e reconhecia que a unia a ele
uma adesão quase supersticiosa, justificando sua inclusão com a idéia de que uma parte de couro forte sempre pode ser útil.
Por último agarrou um arquivo de cartolina no que escreveu Clarissa Lisle em letras maiúsculas claras e regulares. Freqüentemente pensava que esta era a parte mais
satisfatória de uma nova investigação, um momento de esperança amadurecida de exaltação, no que a flamejante pasta e a resolvida inscrição adquiriam o caráter
de símbolos de um novo começo. Jogou uma última olhada a sua caderneta de notas antes de adicioná-la ao arquivo. Exceto sir George e sua esposa apenas vista, seus
companheiros na ilha só eram nomes, uma lista de suspeitos em potência: Simon Lessing, Roma Lisle, Rose Tolgarth, Ambrose Gorringe, Ivo Whittingham, meros
sons postos por escrito, embora continham a promessa do descobrimento, do desafio, da fascinante variedade da personalidade humana. E todos eles, o
enteado da Clarissa Lisle, sua prima, sua garçonete, seu anfitrião, seu amigo, giravam como planetas ao redor dessa dourada figura central.
Estendeu sobre a mesa os vinte e três anônimos, para estudá-los antes de incorporá-los à pasta na ordem que os tinha recebido Clarissa Lisle. Logo tomou
sua prateleira dois volúmenes de entrevistas, a edição em rústica do "Diccionano Penguin de Entrevistas", e a segunda edição do "Dicionário Oxford". Como esperava,
todas
apareciam em algum dos dois, e todas, salvo três, no Penguin. Quase com certeza, este tinha sido o dicionário utilizado: podia comprar virtualmente em
qualquer livraria e por seu tamanho resultava ligeiro e, também, fácil de esconder. A seleção de entrevistas não representava nenhuma dificuldade nem exigia tempo:
bastava
procurar no índice sob o compartimento Morte ou Agonia, ou uma rápida leitura das quarenta e cinco páginas dedicadas às obras do Shakespeare e das duas que
cobriam Marlowe e Webster. Tampouco era difícil averiguar em que obras tinha aparecido Clarissa Lisle. Tinha sido membro da Malvern Repertory Company durante
três anos, e seu forte eram Shakespeare e os dramaturgos jacobinos. Qualquer nota descritiva de sua carreira enumeraria suas principais interpretações. Mas era
muito provável que, dadas as exigências de uma produção shakespeariana com os recursos de uma companhia de repertório não muito numerosa, tivesse atuado como mínimo
de bloco em todas as obras.
Só duas das entrevistas que provisoriamente tinha identificado como pertencentes ao Webster não figuravam no Penguin. Mas era possível as encontrar estudando
os textos. Todas as entrevistas eram conhecidas; ela não tinha tido nenhuma dificuldade em reconhecer a maioria embora não soubesse com certeza a que obra correspondiam.
Mas as datilografar literalmente e de cor era outra questão. Em cada fragmento as linhas estavam corretamente separadas e a pontuação era impecável, outro
motivo para chegar à conclusão de que o datilógrafo ou a datilógrafa tinha trabalhado com o Penguin ao alcance da mão.
A seguir as examinou com ajuda da lupa, perguntando-se ao mesmo tempo de quanta atenção científica as tinha considerado merecedoras a polícia metropolitana.
Por isso ela podia julgar, só três estavam datilografadas na mesma máquina. A qualidade e a dimensão das letras variavam: algumas eram desiguais,
outras fracas ou parcialmente quebradas. A mecanografia não era particularmente perita: parecia obra de uma pessoa acostumada a usar a máquina possivelmente para
seu
própria correspondência, mas não de um profissional. Nenhum das mensagens tinha sido escrito com uma máquina elétrica. Quem podia ter acesso a vinte máquinas
diferentes? Sem dúvida alguém que tratasse em máquinas de escrever de segunda mão, ou que fora proprietário ou empregado de uma academia profissional. Não era provável
que se tratasse de um serviço de secretaria, pois a qualidade das máquinas deixava muito que desejar. Tampouco tinha que tratar-se, necessariamente, de uma escola
profissional. Muito provavelmente os institutos de segundo ensino mais modernos ensinavam taquigrafia e mecanografia. O que podia impedir a um membro do pessoal
docente, qualquer que fosse sua disciplina, ficar depois da classe e usar as máquinas?.
Existia outro procedimento pelo que podiam haver-se escrito as mensagens, procedimento que Cordelia considerou muito factível. Tinha comprado máquinas trocas de
segunda mão, para sua agência, depois de visitar lojas e salas de exposição onde as exibiam encadeadas a suas mesas; tinha-as provado, movendo-se com toda
liberdade e sem que ninguém a vigiasse, de uma a outra. Qualquer pessoa provida de um bloco de papel de papel e um dicionário de entrevistas podia acumular uma produção
suficiente
para a continuidade das ameaças, fazendo uma série de breves visita uma diversidade de lojas em bairros onde não era provável que a reconhecessem. Uma olhada
às páginas amarelas da guia Telefónica completaria a tarefa permitindo marcar o percurso.
antes de arquivar as mensagens na pasta, Cordelia fixou sua atenção no que sir George lhe havia dito que correspondia a sua máquina de escrever. Seria seu
imaginação a que lhe fez ver que a caveira tinha sido desenhada por uma mão diferente, mais cuidadosa e menos segura? As cabeças das duas mornas cruzadas tinham
distinta forma e eram ligeiramente maiores que nos outros exemplos, enquanto que o crânio se via mais largo. As diferenças, em realidade, eram mínimas, mas
considerou-as significativas. As caveiras e os ataúdes restantes eram
virtualmente idênticos. E a entrevista propriamente dita, datilografada com um espaçado irregular entre letra e letra, não continha veneno:.
Sou pena de morte que nenhum homem me mencione a morte:) é uma palavra imensamente terrível)).
Cordelia desconhecia a entrevista e não conseguiu encontrá-la no Penguin. Mais provável Webster que Shakespeare, pensou; possivelmente de "O diabo branco" ou de
"O pleito do diabo".
A pontuação parecia correta, embora teria esperado ver uma vírgula depois da primeira aparição da palavra "morte". Possivelmente a entrevista tinha sido copiada
de cor
e não verificada, e indubitavelmente a tinha datilografado uma mão diferente e menos perita. E pensou que sabia de quem se tratava.
O grau de ameaça das restantes entrevistas variava.
O inferno carece de limites e não está ctrcunscrito) ao próprio lugar; pois onde estamos é o inferno) e onde está o inferno devemos sempre estar)).
O negro desespero do Christopher Marlowe não podia descrever-se certeiramente como uma ameaça mortal embora seu rígido niilismo contemporâneo pudesse resultar
desagradável a um destinatário sensível. A única outra entrevista do Marlowe, recebida seis semanas atrás, era bastante direta, mas a ameaça carecia de fundamento:.
Agora só fica uma hora de vida). E logo será tua a condenação perpétua!)).
Clarissa tinha vivido mais de uma hora. Entretanto, Cordelia tinha a impressão de que desde aquelas primeiras mensagens, as entrevistas eram cada vez mais ameaçadoras
e tinham sido
selecionadas com ânimo de criar uma espécie de clímax, da sinistra ameaça datilografada debaixo de um ataúde, "Desejo-te prazer dos vermes", até os
brutalmente explícitos versos de "O rei Enrique VI": "Baixa, baixa ao inferno e dava que eu lhe envio".
Vista em conjunto, a sonora reiteração da morte e o ódio era opressiva, os tolos desenhos infantis estavam tintos de ameaça. Começou a compreender o que
efeito podia causar aquele organizado programa de intimidações a uma mulher sensível e vulnerável, a qualquer mulher, nublando suas manhãs, voltando terríveis tão
ordinários feitos como a chegada do correio, uma carta na bandeja do vestíbulo, uma nota deslizada sob a porta. Resultava fácil aconselhar à vítima de
um anônimo que jogasse as mensagens ao inodoro como o lixo que eram. Mas em todas as sociedades existe um atávico temor ao malévolo poder de um inimigo secreto
que trabalha a favor do mal, nos desejando o fracasso, possivelmente a morte. Ali operava uma inteligência tenebrosa e aterradora, e não era agradável pensar que
o autor
dos anônimos podia encontrar-se no reduzido grupo que estaria com ela no Courcy Island, que o olhar que se cruzaria com a seu do outro lado da
mesa podia ocultar tanta malignidad. Pela primeira vez se perguntou se Clarissa Lisle estaria no certo, se realmente ameaçavam sua vida. Deixou de lado essa idéia,
dizendo para seus adentros que as mensagens começavam a exercer seu espanto incluso sobre ela. Um criminoso não está acostumado a anunciar suas intenções durante
compridos meses.
Mas aquela frase feita, era necessariamente certa? Para uma mente consumida pelo rancor, o mero ato de matar não seria muito rápido, sua satisfação muito
fugaz? Podia Clarissa Lisle ter um inimigo tão implacável que precisava vê-la sofrer, destrui-la lentamente mediante o terror e a angústia antes de atirar
o golpe mortal?.
Cordelia se estremeceu. A calidez do dia começava a dissipar-se, o ar noctumo que penetrava através da janela aberta, inclusive naquele mirante urbano, continha
o sabor e o aroma do outono. Guardou o último mensje e fechou a pasta. As instruções recebidas eram claras: proteger a Clarissa Lisle de toda preocupação
ou angústia antes da representação de "A duquesa do Malfi", que teria efeito na sábado, e, se podia, descobrir quem lhe enviava as mensagens. E isso era o
que faria na medida do possível.
.
SEGUNDA PARTE
ENSAIO GENERAL.
8.
A vitoriana Speymouth, que para surpresa de seus habitantes tinha convertido as luzes em sistema de iluminação de gás sem que se produziram explosões nem outros
desastres,
não tinha encontrado motivos para rechaçar a nova ferrovia ou, aceitando seu inevitabilidad, para desterrá-lo a uma distância pouco conveniente da cidade, como
ocorresse em Cambridge. A pequena e primorosa estação se encontrava a só quatrocentos metros da estátua da rainha Vitória que assinala o centro do passeio
marítimo, e quando Cordelia saiu à luz do sol, com a mala em uma mão e a máquina de escrever portátil na outra, viu-se ante uma mixórdia de casas de
cores brilhantes, um porto minúsculo como uma piscina cercado de pedras, e mais à frente o diminuto embarcadero e as tornasoladas água do mar. Quase lamentou deixar
a estação. Com sua pintura branca brilhante e seu teto em abóbada, de ferro forjado, delicado como um encaixe, recordava-lhe os números do verão da revista infantil
de sua infância, onde o mar era sempre azul, a areia amarela, o sol uma bola de ouro e a ferrovia uma variopinta cidade de brinquedo que dava a bem-vinda a
imaginados prazeres. A senhora Wilkes, a mais pobre de todas suas mães adotivas, era a única que lhe tinha comprado revistas de historietas, a única a quem Cordelia
recordava com afeto. Possivelmente fosse de bom augúrio que agora pensasse nela.
Já havia penetra na parada de táxis, mas decidiu não somar-se a ela. O caminho era costa abaixo e o mole estava à vista. Pôs-se a andar, quase inconsciente do
peso de sua bagagem em um dia tão benigno. A pequena população estava banhada pela luz do sol, e as casas georgianas, em fileira, singelas, nada pretensiosas,
e dignas com suas elegantes fachadas e balcões de ferro forjado, pareciam tão encantadoramente artificiais e brilhantemente iluminadas como um cenário. Na
baía, a forma cinza de um navio de guerra pequeno descansava tão rígida e imóvel como um brinquedo recortável. Cordelia chegou quase a imaginar que estendia a mão
e o resgatava da água. Enquanto baixava uma levantada rua de paralelepípedos, fileiras de casas de cor ante, rosa e azul, curvavam-se para cima ante um fundo apenas
entrevido de colinas distantes, enquanto, mais abaixo, a estátua de resplandecentes cores da rainha Vitória, majestuosamente embelezada, apontava séria seu cetro
para os lavabos públicos.
Em todas partes havia gente, gente que se empurrava nas calçadas, que saía do passeio marítimo para a praia, gente tendida em fila sobre a granulada areia, agrupada
em afundadas tumbonas, fazendo fila diante do quiosque de sorvetes, aparecida nos guichês dos carros em busca de um lugar onde estacionar. perguntou-se de onde
teriam chegado aquele fim de semana de meados de setembro, com o período de férias já concluído e os meninos de volta às escolas. Todos tinham faltado
ao trabalho ou às salas-de-aula, arrancados da hibernação outonal por aquele renascimento do verão, com as caras vermelhas e manchadas em cima de seus pescoços brancos,
o
torso e os braços reluzentes, recém talheres para proteger-se dos frios septembrinos, deixando à vista uma vez mais a pouco atrativa evidência de sóis mais
caniculares? O dia mesmo cheirava a pleno verão, a algas, a corpos quentes e a pintura descascada.
O pequeno e concorrido embarcadero era um confuso montão de barcos oscilantes e velas pregadas, mas Cordelia identificou em seguida a lancha e seu nome, Shearwater,
pintado na proa. Tinha uns dez metros de comprimento, com uma cabine central de teto baixo e assentos de fitas de seda a popa; um marinheiro feito uma passa parecia
estar
a seu cargo. encontrava-se em cuclillas em um noray, as magras pernas cruzadas, botas impermeáveis e um macaco azul com as palavras "Courcy Island" gravadas em
o peito. parecia-se tanto ao Popeye, que Cordelia suspeitou que a pipa, que com grande lentidão retirou das gengivas aparentemente desdentadas ao vê-la aproximar-se,
era chupada mais com uma intenção de efectismo que por prazer. levou-se a mão ao chapéu e sorriu quando lhe disse seu nome, mas não abriu a boca. Agarrou
a máquina de escrever e a bolsa, guardou-os na cabine, logo se voltou e lhe tendeu a mão. Mas Cordelia já tinha saltado a bordo e se sentou na
parte de atrás. O velho retornou a seu assento no noray e juntos se dispuseram a esperar.
Três minutos mais tarde freou na embocadura do mole um táxi do que se apearam um moço e uma mulher. Esta pagou a carreira -aparentemente não sem discutir-
enquanto o menino permanecia incômodo a um lado; logo ele se entreteve no bordo do mole, contemplando a água. A mulher se reuniu com ele e juntos se aproximaram
à lancha, ele um pouco atrasado, como um pirralho resistente. Esta, pensou Cordelia, deve ser Roma Lisle com o Simon Lessing a reboque, claramente nenhum dos dois
contente
da casualidade que os tinha obrigado a compartilhar um táxi. Cordelia observou à mulher, que se deixou ajudar para abordar a lancha. A primeira vista não tinha nada
em comum com sua prima, exceto a forma do lábio inferior. Também ela era loira, embora de uma ordinária tonalidade anglo-saxã em que o forte sol já punha
de relevo os reflexos cinzas. Levava o cabelo curto e amoldado à cabeça. Era mais alta que sua prima e se movia com certa segurança em si mesmo. Mas a cara,
com as rugas que lhe sulcavam a frente e uniam nariz e boca, tinha aspecto de descontente, e não havia paz em seus olhos. Levava um traje de calça de corte perfeito,
cor canela, com galão azul no pescoço e um pulôver rajado nos mesmos tons, conjunto que deu a Cordelia a impressão de combinar uma superficial adequação
a um fim de semana de férias com uma elegância inapropriada, talvez porque o acompanhava com sapatos de salto alto que fizeram menos que gracioso o descida
à lancha.
Além disso, a cor favorecia pouco sua pele. Era impossível não dar-se conta de que ali habia uma mulher que se preocupava com o vestir sem ter uma idéia clara do
apropriado, tanto para ela como para a ocasião. Quanto ao jovem, Cordelia teve menos possibilidades de emitir um julgamento, já fosse com respeito à roupa como
a qualquer outra coisa. Divisou a Cordelia na popa, ruborizou-se e fugiu à cabine com uma prontidão que não prometia contribuir à alegria do fim de semana.
Roma Lisle se sentou a popa enquanto o barqueiro voltava a ocupar seu assento no noray. Aguardaram em silêncio enquanto a lancha se balançava brandamente contra
a defesa de pneumáticos velhos pendurados ante as pedras do mole e pequenas embarcações passavam junto a eles, caminho de alta mar. Uns minutos depois, Roma
Lisle gritou:.
-Não teríamos que nos pôr em marcha? Esperam-nos para almoçar.
-Falta um passageiro. O senhor Whittingham.
-Não pode ter chegado no trem das nove e trinta e três, pois em tal caso já estaria aqui. Tampouco o vi na estação. É possível que venha de carro
e se tenha atrasado.
-O senhor Ambrose disse que viria de trem. Pediu que lhe esperasse.
Roma franziu o sobrecenho e fixou a vista no mar. Transcorreram outros dois minutos. Então o barqueiro gritou:
-Aí está. Já chega. Esse é o senhor Whittingham.
Uma vez pronunciada a triplo afirmação, o homem se levantou e começou a preparar-se para zarpar. Cordelia elevou a vista e através de uma lhe deformem massa de sol,
viu o que ao princípio lhe pareceu a cabeça de um cadáver aproximando-se de puxões sobre pernas de pau, com seus esqueléticos dedos agarrados a uma mala de lona.
Cordelia
piscou e o quadro se compôs, ficou enfocado, voltou-se humano. O crânio se revestiu de carne, estirada e cinza sobre a finura dos ossos, mas carne humana
ao fim. As conchas se umedeceram até convertitse em olhos, olhos penetrantes e um pouco divertidos. Sua imagem seguia sendo a do homem mais magro e mais desesperadamente
doente que Cordelia tivesse visto andar por próprio pé, mas a voz era firme e as palavras fluíram naturais e sinceras:.
-Lamento lhes haver feito esperar. Sou Ivo Whittingham. Vi o mole engañosamente perto e, uma vez iniciada a caminhada, não consegui encontrar um táxi.
Rechaçou a mão que o ofrecia Oldfield, embora sem impaciência, e desceu por sua conta até um assento da proa, onde encaixotou sua mala entre as pernas. Ninguém
disse uma palavra. O extremo da pirueta se soltou do noray e ficou enrolado a bordo. O motor cobrou vida. Quase imperceptivelmente, a lancha se afastou do embarcadero
em direção à embocadura do porto.
Dez minutos depois não parecian estar mais perto da ilha, a que se dirigiam a passo de tartaruga, embora a costa retrocedia visivelmente. Os pescadores do
mole se encolheram até parecer figuritas feitas com fósforos e armadas de varinhas mágicas; o bulício da cidade foi afogado pelo ruído do motor; a estátua
real se converteu em uma mancha de cores. O horizonte era um manto purpúreo coalhando-se de nuvens baixas, das quais se separavam grandes ilhotas de cremosa brancura
que se elevavam e flutuavam quase imóveis sobre um céu opalino. As pequenas ondas saltavam com brilhos luminosos que se refletiam iridescentes no azul celeste.
Cordelia pensou que o mar e a borda distante eram como de um quadro do Monet: cores brilhantes contra cores brilhantes nos que a luz se voltava visível.
inclinou-se sobre a amurada e afundou o braço na esteira saltitanta. O frio a fez ofegar, mas manteve o braço sob a água, abrindo os dedos para que três
pequenas cristas se chocassem contra a luz do sol, observando como o pêlo de seu antebraço apanhava e retenia as trêmulas gotas. De repente uma voz de mulher interrompeu
sua concentração. Roma Lisle habia rodeado a cabine e estava junto a ela.
-É típico do Ambrose Gorringe enviar ao Oldfield e deixar que seus convidados se pressentem por sua conta. Sou Roma Lisle, a prima da Clarissa.
Cordelia lhe estreitou a mão. Seus dedos eram firmes e agradavelmente frescos.
-Eu me chamo Cordelia Gray. Mas não sou uma convidada. Vou à ilha a trabalhar.
O olhar de Roma se dirigiu à máquina de escrever.
-Santo céu, espero que Ambrose não esteja escrevendo outro mamotreto!.
-Que eu saiba, não -replicou Cordelia-. Empregou-me lady Ralston.
Cordelia pensou que teria sido mais exato dizer que a tinha empregado sir George, mas percebeu que isso só podia trazer complicações. De todos os modos, como tarde
ou cedo terei que dar uma explicação a sua presença, pareceu-lhe que o melhor era fazê-lo no primeiro momento. preparou-se para as inevitáveis pergunta.
-Clarissa! Para fazer o que, por amor de Deus?.
-Para que me ocupe de sua correspondência, das chamadas telefônicas... Em geral, para lhe facilitar as coisas enquanto esteja concentrada na obra.
-Para lhe facilitar as coisas está Tolly. O que pensa disso? Refiro ao Tolly ..... .
-Não tenho a menor ideia. Ainda não a conheço.
-Parece-me que isto não lhe sentará nada bem -dedicou a Cordelia um olhar em que a suspicacia se mesclava com a perplexidade-. Tenho lido sobre esses curiosos fanáticos
das pranchas, sem talento, que tratam de integrar-se ao clube pegando-se a um de seus ídolos, para o que cozinham, fazem as compras, realizam recados e, em linhas
generais, atuam como uma espécie de perrito mulherengo. Revistam morrer por excesso de trabalho ou esgotados por uma crise nervosa. Espero que você não pertença
a essa
esperpéntica variedade. Não, já vejo que não. Mas não considera que seu trabalho é... digamos estranho?.
-Você o que faz? Seu trabalho é menos estranho?.
-Desculpe, acredito que me mostrei ofensiva. Digamos que sou uma professora fracassada. Agora tenho uma livraria. Pode soar muito rotineiro mas lhe asseguro que
tem
seus bons momentos. Apresentarei ao Simon Lessing, o enteado da Clarissa. Provavelmente será a pessoa mais próxima a sua idade durante este comprido fim de semana.
Ao oir seu nome, o menino saiu da cabine e entreabriu os olhos, para proteger do deslumbrante sol. Possivelmente, pensou Cordelia, preferia uma aparição voluntária
a ser miserável por Roma Lisle. Estendeu a mão e Cordelia a estreitou, surpreendida de que seu apertão fosse tão firme. Murmuraram uma saudação convencional. Era
mais arrumado do que parecia com primeira vista, com sua cara alargada e sensível e aqueles olhos cinzas e muito separados. Mas sua tez tinha rastros de um velho
acne
que estava rebrotando na frente, e sua boca era débil. Cordelia sabia que ela, com sua frente larga, seus maçãs do rosto altos e sua expressão felina, parecia mais
jovem
pelo que era, mas não conseguiu imaginar nenhum momento em que não se houvesse sentido maior que aquele moço coibido.
Então interveio uma nova voz. O último passageiro se abria caminho para popa para reunir-se com eles.
-Quando o príncipe do Gales ia ao Courcy Island a finais do século passado -disse-, cruzando a baía na fumegante lancha de vapor, o velho Gorringe estava acostumado
a ter
a sua banda particular lhe aguardando no mole. Por alguma razão ignorada, foram vestidos com trajes tiroleses. Crcen vocês que a paixão do Ambrose com o passado
fará que nos dêem uma bem-vinda semelhante?.
antes de que ninguém tivesse a possibilidade de responder, a lancha virou pelo extremo oriental da ilha e de improviso o castelo ficou à vista.
.
9.
Embora Cordelia não recordava ter pensado conscientemente na arquitetura do castelo do Courcy, em sua mente este tinha adquirido a forma de uma ruína almenada,
de pedra cinza maciça, excessivamente ornada em sua vitoriana solidez, uma sorte de término meio insatisfactorio entre o doméstico e a grandiosidade. A realidade
que apareceu repentinamente ante seus olhos sob a radiante luminosidade matinal, obrigou-a a conter o fôlego, maravilhada. O castelo se elevava à beira do
mar, como se brotasse de entre as ondas, com seus tijolos avermelhados, cuja única obra de pedra eram o pálido alinhamento a nível e as altas janelas curvas que
agora
cintilavam ao sol. Ao oeste se elevava uma esbelta torre redonda coroada por uma cúpula sólida embora etérea. Cada detalhe dos muros mate, as almenas e os
contrafortes decorados era nítido, definido, nada rebuscado. O conjunto resultava compacto, inclusive maciço, e entretanto os altos telhados inclinados e a esbelta
torre davam uma impressão de ligeireza e repouso que ela nunca tinha relacionado com a alta arquitetura vitoriana. A fachada sul olhava a uma ampla esplanada
-certamente banhada pelas ondas no inverno- da qual dois lances de degraus conduziam a uma estreita praia de areia e calhaus. As proporções do castelo
pareceram-lhe exatamente acertadas para sua convocação. Se tivesse sido maior teria parecido ostentoso, em caso de ser mais pequeno teria sugerido um fácil
encanto. Mas aquele edifício, por mais que fosse um ajuste entre castelo e lar, pareceu-lhe um lucro clamoroso. De puro prazer, esteve a ponto de tornar-se a rir.
Não se deu conta de que Ivo Whittingham estava a seu lado até que o ouviu falar.
-É sua primeira visita, não? O que lhe parece?.
-Notável. E inesperado.
-Interessa-lhe a arquitetura vitoriana?.
-Interessa-me mas não estou informada.
-Se eu fosse você, não diria isso ao Ambrose. Dedicaria todo o fim de semana a instrui-la em suas paixões e prejuízos. Como algo conheço, anteciparei a ele lhe dizendo
que o arquiteto foi E. W. Godwin, que trabalhou para o Whistler e Oscar Wilde, e estava relacionado com os estetas. Segundo ele, apontava a uma minuciosa adaptação
de sólidos vazios. Neste caso o obteve. Construiu algumas prefeituras perfeitamente horríveis, incluindo uma no Northampton, embora Ambrose jamais reconhecerá que
é atroz; mas acredito que coincidiríamos em que este castelo é um verdadeiro lucro. Atua na obra?.
-Não, vim a trabalhar. Sou a secretária interina da Clarissa Lisle.
O rápido olhar que lhe dirigiu foi de surpresa. Logo seus lábios se curvaram em um sorriso.
-Teria que havê-lo imaginado. Todas as relações da Clarissa revistam ser provisórios.
Cordelia se apressou a dizer:.
-Sabe algo a respeito da obra? Quero dizer, que companhia a subida?.
-Não o explicou Clarissa? São os Cottringham Players, conforme diz a companhia de aficionados mais antiga da Inglaterra, fundada em 1834 pelo então sir
Charles Cottringham, e a família a manteve mais ou menos desde aquela época. Os Cottringham sentaram paixão pelas pranchas durante mais de três gerações,
com um entusiasmo em proporção invariavelmente inversa a seu talento. O atual Charles Cottringham fará o papel do Antonio. Seu bisavô estava acostumado a participar
das
farras que se corriam aqui, até que cometeu a imprudência de dedicar um olhar lascivo ao Lillie Langtry. O príncipe do Gales evidenciou seu desgosto e desde
então nenhum Cottrmgham aconteceu a noite sob o teto do castelo, tradição muito conveniente para o Ambrose, que só precisa albergar a protagonista e
a uns poucos convidados pessoais. Judith Cottringham tem uma casa para o diretor e o resto da companhia. Amanhã virão todos na lancha.
-Onde atuavam antes de que Gorringe lhes oferecesse o castelo?.
-Suspeito que o ofereceu Clarissa e não Gorringe. Faziam uma representação anual no velho salão de atos do Speymouth, ocasião que era mais social que cultural.
Mas a de manhã não tem por que ser muito desalentadora. Um açougueiro do Speymouth fará o papel da Bosola, como corresponde, e tem fama de bom ator.
O agente do Cottringham fará do Ferdinand. Não pode dizer-se que seja um Gielgud, mas Clarissa me assegurou que sabe dizer o verso.
O som do motor se reduziu até converter-se em uma suave vibração e a lancha avançou lentamente para o embarcadero. O dique de pedra se curvava desde
a terraço em dois braços, formando um diminuto porto. A intervalos, levantados degraus festoneados de algas descendiam até a água. No extremo do braço oriental,
o mais largo, elevava-se um encantador disparate: um quiosque de música circular, em ferro de delicada forja, pintado de branco e azul claro, com magros pilares
que sustentavam uma marquise abovedada. Debaixo se encontrava o grupo de recepção: dois homens e duas mulheres tão imóveis e cuidadosamente situados como se compuseram
um quadro. Clarissa Lisle estava um pouco adiantada, com o anfitrião à altura de seu ombro esquerdo. A suas costas, aguardando com o impassível e cuidadoso
distanciamento da servidão, apareciam um homem e uma mulher vestidos de escuro, e o primeiro ultrapassava a todos em estatura.
Mas a figura dominante era Clarissa Lisle. A impressão imediata, já fosse por acaso ou de propósito, era a de uma deusa da mitologia clássica, rodeada por seus
servidores. À medida que a lancha se aproximava do embarcadero, Cordelia viu que levava o que parecia uma calça curta e uma blusa sem mangas, de musselina cor
nata, com um vincado muito estreito, e ainda por cima uma túnica solta e quase transparente, do mesmo tecido, de largas mangas, e uma corda atada à cintura. junto
a essa
elegância engañosamente singela, Roma Lisle parecia gotejar, com seu traje de calça, um mal-estar febril que capturava o olhar. O grupo espectador, como se houvesse
recebido instruções, manteve sua pose até que a lancha topou brandamente com o desembarcadouro. Então Clarissa emitiu um aflautado grito de bem-vinda, estendeu
suas asas de morcego de lhe revoem algodão e correu para eles. A imagem se dispersou.
Durante o bate-papo que seguiu às apresentações formais e enquanto Ambrose Gorringe fiscalizava a descarga de bagagens e de caixas com provisões retiradas
de um paiol de popa, Cordelia observou ao dono da casa. Ambrose Gorringe era de estatura média, suave cabelo negro, mãos e pés delicados. Producia uma impressão
de ágil gordura, não porque tivesse um excesso de graxas a não ser por causa da feminina brandura e redondez de seus braços e cara. Sua cútis, rosado e terso, brilhava,
o rubor circular de cada maçã do rosto parecia quase artificial. Sua característica mais sobressalente eram os olhos: grandes e faiscantes como calhaus negros banhados
pelo mar, com os brancos circundantes claros e translúcidos; por cima as sobrancelhas se curvavam em um forte arco tão bem formado como se as tivesse depiladas.
As comissuras dos lábios se curvavam para cima em um sorriso fixo, de modo tal que todo seu semblante contenia a graciosa animação de alguém que goza de
uma piada interna e perpétua. pôs-se umas calças de algodão de cor canela e uma camiseta negra, de manga curta, ambos os objetos muito adequados para o
clima e a ocasião, embora a Cordelia resultaram incongruentes. Era necessário um pouco mais formal para definir e controlar a força latente do que, conjeturou,
era uma personalidade complexa e talvez formidável.
A sua maneira, o criado -que agora vigiava a carga dos
bagagens e as caixas em uma pequena vagoneta motorizada-- era igualmente notável. Deve medir, pensou Cordelia, bastante mais de um metro oitenta e cinco; com seu
traje
escuro e sua lúgubre cara pálida expressava a tristeza espúria de um mudo empresabo de pompas fúnebres vitoriano. Sua cabeça larga e um tanto bicuda terminava
em uma frente alta e radiante, rematada por uma peruca espessa e negra que não tinha a menor pretensão de realismo. Levava-a com raia no meio e tinha sido
inexpertamente podada mais que recortada. Cordelia pensou que tão extravagante aparência não podia passar inadvertida e se perguntou que perversão ou secreto apresso
tinha-lhe levado a idear e a apresentar ao mundo uma imagem tão absolutamente excêntrica. Seria a repulsão ante o tédio, a conformidd ou a deferência que exgíasu
trabalho? Não lhe pareceu provável. Quão servidores encontravam frustrantes ou desagradáveis seus deveres, hoje em dia contavam com um remédio singelo: podiam largars.
Intrigada pelo aspecto do homem, logo que olhou a sua esposa, uma mulher baixa e de cara redonda que em todo momento permaneceu ao lado de seu marido e não abriu
a
boca durante todo o curso do desembarque.
Clarissa Lisle não se deu por inteirada de sua chegada, mas Ambrose Gorringe se adiantou, sorriu e lhe disse:.
-Você deve ser a senhorita Gray. Bem-vinda ao Courcy Island. A senhora Munter a atenderá. preparamos seu dormitoriro ao lado do da Clarissa.
Cordelia espero a que os Munter terminassem de descarregar a lancha. Logo, minta os três seguiam ao grupo principal, Munter engregó a sua mulher uma pequena bolsa
de lona e disse:.
-- Pouco correio esta manhã. O pacote da Biblioteca de Londres não chegou, o que significa que o senhor Gorringe não terá seus livros até na segunda-feira.
A mulher deixou oir sua voz pela primeira vez:.
-Este fim de semana  terá bastante que fazer sem os novos livros da biblioteca.
Nesse momento Ambrose Gorringe voltou a cabeça e chamou o Munter. Este avançou, carnbiando seus rápidos passos por um andar lento e majestoso que provavelmente formava
parte de seu número. Assim que Cordelia viu que estava fora do alcance do ouvido, disse à mulher:.
-Se chegar algo para a senhorita Lisle, primeiro devo vê-lo eu. Sou sua nova secretária. Também atenderei todas suas chamadas telefônicas. Jogarei uma olhada ao
correio,
esperamos uma carta.
Para sua surpresa, a senhora Munter lhe entregou a saca sem vacilar. Só havia oito cartas em total, sujeitas com uma banda elástica. Duas estavam dirigidas a Clarissa
Lisle. A do sobre grosso era, evidentemente, um convite para um desfile de modas. O nome do prestigioso desenhista, embora não o domicílio, aparecia gravado
na lapela. O segundo, um sobre branco corrente, estava escrito a máquina e dirigido a:.
A duquesa do Malfi.
para entregar a Clarissa Lisle.
Courcy Island.
Speymouth.
Dorset.
Cordelia se adiantou uns passos. Sábia que o sensato era chegar à intimidade de seu dormitório, mas não pôde conter-se. Com pleno domínio de sua excitação e curiosidade,
deslizou o dedo indicador por debaixo da lapela. Estava pouco pega e se separou facilmente. Imaginou que a comunicação era breve e acertou. No interior, em uma
pequena folha do mesmo papel havia uma caveira desenhada e debaixo, datilografados, dois versos que instintivamente soube -mais que reconheceu- que pertenciam à
obra.
Chamem a nossa dama em voz alta) e convidem rapidamente a vestir seu sudário)).
Voltou a guardar a mensagem no sobre e o colocou rapidamente no bolso da jaqueta; atrasou-se até que a senhora Munter a alcançou.
Cordelia viu que as habitações principais davam a terraço, com ampla vista ao canal, mas que a entrada ao castelo se encontrava na protegida fachada
oriental, longe do mar. Atravessaram uma arcada de pedra que conduzia a um jardim murado, desceram por um largo atalho entre extensões de grama e por último
cruzaram um alto alpendre arqueado, para entrar na grande sala. Cordelia se deteve na porta e imaginou a aqueles primeiros convidados do século dezenove, às
damas de anquinhas com suas sombrinhas enroladas, seguidas por suas donzelas, os baús de couro de tampa arredondada, as chapeleiras, as capas das escopetas,
o distante compasso da banda enquanto o pesado príncipe germânico deslocava sua imponente barriga baixo os privilegiados pórticos do primeiro Gorringe. Claro que
então a grande sala devia estar ostentosamente arrumada, como um luxuoso depósito de sofás, poltronas e mesitas, ricos tapetes e enormes vasos com palmeiras.
Ali se congregariam os convidados ao cair o dia, antes de avançar lentamente em procissão e em estrita ordem hierárquica através das portas dobre que comunicavam
com o comilão. Agora a sala tinha como único mobiliário uma larga mesa de refeitório e duas cadeiras, uma a cada lado da chaminé de pedra. Na parede oposta
havia uma tapeçaria de dois metros, quase com certeza obra do William Morris: Flora, coroada de rosas, com suas donzelas, os pés brilhantes entre as açucenas e as
malvas. Uma ampla escalinata que se abria a esquerda e direita conduzia a uma galeria que rodeava três flancos da grande sala. este parede estava quase totalmente
ocupada por uma vidraça que mostrava as viagens do Ulises. Bolinhas de colorida luz dançavam no ar, dotando a grande sala da serena solenidade de uma igreja.
Seguiu à senhora Munter escada acima.
Os dormitórios principais davam à galeria. A habitação que atribuíram a Cordelia era deliciosa e possuía uma luminosidade e elegância que não esperava. As duas
janelas, altas e curvas, tenian cortinas de zaraza com flores de lis estampadas, motivo que se repetia na colcha e no almofadão embutido na cadeira de mogno
com respaldo de ralo. A singela chaminé de pedra tinha um friso revestido com painéis de azulejos de quinze centímetros cujo desenho de flores e folhagem se
repetia nos azulejos maiores que rodeavam a churrasqueira. por cima da cama havia uma fileira de delicadas aquarelas: lírios brancos, morangos silvestres, tulipas
e açucenas. Pensou que aquela seria a habitação Do Morgan que habia mencionado a senhorita Maudsley. Olhou a seu redor com prazer, e a senhora Munter, ao notar
seu interesse, assumiu o papel de guia. Mas recitou a informação sem o menor entusiasmo, como se tivesse aprendido os dados de cor.
-O mobiliário não é tão antigo como o castelo, senhorita. A cama e a cadeira foram desenhados pelo A. H. Mackmurdo em 1882. Os azulejos, quão mesmo os do
quarto de banho, são do William do Morgan. Quase todos os do castelo foram desenhados por ele. O primeiro Herbert Gorringe, que reconstruiu o castelo nos anos
sessenta do século passado, viu uma casa que Do Morgan tinha decorado no Kensington e fez tirar daqui todos os azulejos originais, que substituiu pelos seus.
O armário de mogno e pinheiro foi pintado pelo William Morris e os quadros são do John Ruskin. A que hora quer que lhe sirva o chá da manhã, senhorita?.
-Às sete e meia, por favor.
Quando a senhora Munter saiu, Cordelia foi ao quarto de banho. Ambas as estadias davam a poente, e qualquer perspectiva ampla da ilha ficava obstruída por
a torre que se elevava imediatamente a sua direita, um simbolo fálico de tijolo moldado que se remontava até perfurar o azul do céu. Contemplando seu suave
redondez Cordelia sentiu que a cabeça lhe dava voltas e que a torre mesma se cambaleava vertiginosamente. À esquerda vislumbrou o extremo da terraço sul,
e mais à frente uma vasta extensão de mar.
*******
debaixo da janela do quarto de banho, uma escada de incêndios, de ferro forjado, baixava até as rochas, de onde provavelmente era possível chegar à
terraço. Mesmo assim, a rota de escapamento lhe pareceu precária: em meio de uma tormenta, certamente qualquer se sentiria apanhado entre o fogo e as águas.
Cordelia tinha começado a desfazer sua mala quando a porta de comunicação entre seu dormitório e o contigüo se abriu e apareceu Clarissa Lisle.
-Ah, está aqui. Quer vir? Tolly se ocupará de suas coisas.
-Obrigado, mas prefiro fazê-lo eu.
À margem do fato de que a pouca roupa que tinha levado podia pendurar-se rapidamente e preferia fazê-lo pessoalmente, Cordelia não tinha a menor intenção de
permitir que vissem sua equipe de investigação. Já tinha notado, com alívio, que a gaveta inferior do armário tinha chave.
Seguiu a Clarissa a seu dormitório. Este dobrava ao suas em dimensões e era de estilo muito diferente; aqui a opulência e a extravagância substituíam a luminosidade
e a simplicidade. Estava dominado pela cama, um meio dossel de mogno com baldaquín, colcha e cortinas laterais de damasco carmesim. A cabeceira e o pé levavam
complicadas talhas com querubins e ramalhetes de flores, tudo coroado por uma diadema de condessa. Cordelia se perguntou se o primitivo proprietário, em sua escalada
através da hierarquia social vitoriana, o teria encarregado para render comemoração a uma convidada de especial importância. A ambos os lados da cama havia uma pequena
cômoda de frente abombado e ao pé uma "chaise longue" também esculpida. O penteadeira estava entre as duas janelas, das quais, entre as cortinas recolhidas,
Cordelia só conseguiu ver uma expansão de serenas águas azuis. Dois pesados roupeiros cobriam a parede oposta. Havia cadeiras baixas e uma tela de tapeçaria, de

berlinense, diante da chaminé de mármore, em que já tinham empilhado alguns lenhos. A principal convidada do Ambrose Gorringe contaria com o luxo de um autêntico
fogo. Cordelia pensou se alguma criada entraria nas pontas dos pés a hora temprana para acendê-lo, como tinha feito sua homóloga vitoriana quando a já difunta condessa
agitava-se em seu magnífico leito.
A habitação estava muito desordenada. Roupas, pacotes, lenços de papel e bolsas de plástico apareciam esparramados sobre a "chaise longue" e a cama; a parte
superior do penteadeira era uma confusão de frascos e potes. Uma mulher ia de um lado a outro, reunindo serena e sem olhar reprobadora a roupa dispersa. Clarissa
Lisle disse:.
-Esta é minha garçonete, a senhorita Tolgarth. Tolly, apresento-te à senhorita Cordelia Gray. veio a me ajudar com a correspondência. trata-se de um experimento.
Não estorvará a ninguém. Se necessitar algo, te ocupe de solucioná-lo.
Não é uma apresentação muito auspiciosa, pensou Cordelia. A mulher não sorriu nem falou, mas Cordelia não viu que o firme olhar que encontrou a sua contivesse o
menor
ressentimento. Nem sequer expressava curiosidade. Tolly era uma mulher de busto generoso, um tanto robusta, com um rosto que aparentava mais idade que seu corpo
e um
par de pernas notáveis pelo elegantes, cujas formas se viam realçadas por meias muito finas e sapatos de salto alto, um incongruente toque vaidoso que acentuava
a simplicidade do vestido negro, de pescoço alto, cujo único adorno era uma cruz de ouro que pendia de uma cadeia. Seu cabelo escuro, com raia no meio e jogado para
atrás em um coque rematado na nuca, já tinha mechas cinzas; sua frente estava cruzada por rugas profundas como fissuras, linhas que se repetiam nos extremos
de sua larga boca. Era um rosto de expressão forte e reservada, pensou Cordelia, não o de uma mulher que aceita ser dócil de boa vontade. Quando Tolly desapareceu
no quarto de banho, Clarissa disse:.
-Suponho que teremos que falar, mas agora me é impossível. Munter dispôs o almoço no comilão, o que é ridículo com um dia como o de hoje. Temos
que comer ao ar livre. Hei-lhe dito que almoçaremos na terraço, mas isso significa que se ocupará de que não possamos fazê-lo até a uma e meia, de modo que
o melhor será fazer uma rápida visita ao castelo até esse momento. Sua habitação é cômoda?.
-Muito cômoda, obrigado.
-Suponho que o melhor será que te dê algumas cartas para datilografar, com o propósito de evitar suspicacias. Preciso responder a um par delas. Será conveniente
que faça algum trabalho enquanto esteja aqui. Espero que saiba datilografa.
-Se, sei datilografar, mas não vim para isso.
-Sei muito bem a que vieste. Fui eu quem o pediu. Mas falaremos disso esta noite, até então não teremos a menor possibilidade. Charles Cottringham e
o resto das primeiras figuras virão depois de almoçar, para o ensaio de uma ou duas cenas, e não se irão até depois do chá. conheceste a meu enteado,
Simon Lessing?.
-Se, apresentaram-nos na lancha.
-Busca o e lhe diga que é hora de que vá nadar um momento, antes do almoço. Não tem sentido que o levemos a reboque na visita ao castelo. Provavelmente
encontrará-lhe escondido em seu dormitório, duas portas mais à frente do teu.
Cordelia pensou que tivesse sido muito mais adequado que a mensagem proviesse da própria Clarissa, mas se recordou que sua suposta função era de secretária-acompañante
-significasse isto o que significasse- e que provavelmente entre suas tarefas figurava a de fazer recados. Bateu na porta do Simon. Ele não respondeu, mas depois
pelo que pareceu a Cordelia uma pausa excessiva, a porta se abriu lentamente e o menino apareceu seu rosto medroso. ficou avermelhado quando viu quem tinha chamado.
Cordelia lhe transmitiu a mensagem da Clarissa convenientemente corrigido; o moço obteve sonreir e sussurrar "obrigado" antes de fechar a porta depressa. Cordelia
compadeceu-se do jovem. Não devia ser fácil ter a Clarissa por madrasta. Não estava segura de que fora mais fácil tê-la como cliente. Pela primeira vez sentiu
que uma parte de sua euforia se dissipava. O castelo e a ilha eram ainda mais cativantes do que habia imaginado. O tempo era excelsa e nenhuma mudança ameaçava
o balsâmico ressurgimento do verão. Prometia ser um fim de semana cômodo, inclusive luxuoso. E por cima de tudo, o sobre guardado em seu bolso confirmava que
o trabalho era real, que por fim se devanaría os miolos e espremeria todo seu engenho frente a um adversário humano. por que tinha que lutar, então, contra a
repentina e assustadora convicção de que sua tarefa estava condenada ao fracasso?.
.
10.
-E agora -anunciou Clarissa, que ia à cabeça do grupo ao cruzar a grande sala-, terminaremos com uma visita à câmara dos horrores do Ambrose.
A visita ao castelo tinha sido rápida e incompleta. Cordelia sentiu que a terraço banhada de sol emitia sinais chamando-a e que os pensamentos do grupo estavam
menos centrados nos tesouros do Ambrose que no xerez do aperitivo. Mas havia tesouros e se prometeu que, se mais adiante tinha oportunidade disso, desfrutaria
sem pressas do que era um direto mas completo museu representativo dos triunfos artísticos e o espírito do prolongado reinado de Vitória. O percurso
tinha sido muito fugaz e sua mente era uma confusão de formas e cores: as porcelanas, os quadros, os cristais e a prata se empurravam para fazer-se sitio; cerâmicas
exibidas na Grande Exposição de 1851, jaspes, louças gregas, terracotas, mayólicas; vitrines com pratos Wedgwood pintados e delicadas "pates-sul-pates" feitas
pelo M. L. Solon para o Minton; parte de uma baixela do Coalport dada de presente pela rainha Vitória ao czar da Rússia e decorada com ordens britânicas e russas
arredondando
a coroa real e as águias russas.
Clarissa tinha flutuado diante de todos agitando os braços e produzindo uma corrente de informação dudosamente exata. Ivo ficou atrasado cada vez que se o
permitiram e logo que tinha aberto a boca. Roma se arrastava detrás deles com expressão de esmerado desapego e de vez em quando emitia um ácido comentário sobre
a desdita e a exploração dos pobres, representados por aqueles pomposos monumentos ao bem-estar e ao privilégio. Cordelia experimentou certa simpatia por
ela. A irmã Magdalen, que ensinava história do século dezenove no convento, não compartia o critério de algumas de seus confrades no sentido de que, se
terei que rechaçar os prazeres do mundo, também podiam rechaçar-se alguns de seus pesares substitutivos, e tinha tentado inculcar certo sentido social a seus
privilegiadas discípulas. Cordelia não conseguia imaginar a aquela matriarca de rosto bochechudo com meninos simples e de aspecto descontente a seu redor, sem ver
também às macilentas costureiras de olhos fatigados que trabalhavam dezoito horas diárias, as meninas da fábrica semidormidas ante seus teares, as que faziam
encaixe de bilros encurvadas sobre suas almofadas, e de uma vez as fumegantes casas de vizinhança do East End.
Cordelia tinha encontrado coisas mais interessantes que admirar que a coleção de quadros do Ambrose. Tudo o que lhe desgostava da arte vitoriana estava ali: o
erotismo forçado, o esmerado naturalismo que nada tinha que ver com a natureza, as insípidas pinturas anedóticas e a religiosidade degradada. Mas também
havia um Sickert e um Whistler. Enquanto percorriam a galeria, Roma lhe disse:.
-Em minha habitação há um William Dyce titulado "As colecionadoras de conchas". De fato, não está mal pintado, é bastante bom. Um grupo de damas de miriñaque
examinando seus achados em uma praia do Kent. Mas, qual é a realidade? Um grupo de féminas da classe alta, superalimentadas e excessivamente cobertas, aborrecidas
e sexualmente frustradas, sem nada que fazer com seu tempo salvo recolher conchas para decorar inúteis caixas, pintar insossas aquarelas, entreter aos cavalheiros
tocando o piano depois do jantar e esperar a que um homem outorgue posição social e propósito a suas vidas.
Enquanto estavam paradas diante de um Holman Hunt sem saber o que dizer, Ambrose se aproximou delas.
-Possivelmente não seja um de seus melhores quadros. Os vitorianos podem ter obtido seu dinheiro nas escuras e satânicas fábricas, mas sentiam paixão pela beleza.
Sua tragédia foi que, a
diferença de nós, sabiam muito bem o longe que estavam de alcançá-la.
A visita havia meio doido virtualmente a seu fim. Clarissa os guiou por um corredor azulejado até o despacho do Ambrose. Evidentemente, ali se encontrava a prometida
câmara dos horrores.
A habitação era mais pequena que a maioria das do castelo e tinha vista ao jardim que dava à entrada oriental. Em uma parede pendurava uma coleção emoldurada
de literatura popular patibularia da era vitoriana, os folhetos grosseiramente impressos e ilustrados que se vendiam a chusma depois de um processo ou uma execução
notáveis. Roma mostrou especial interesse por eles. Assassinos de curiosa esbeltez e de aparência elegante com suas calças de montar, escrevendo suas últimas confissões
sob a janela de altas grades da cela dos condenados a morte, escutando na capela do Newgate o último sermão, com seu ataúde ao alcance da mão,
ou pendurados do extremo da corda, enquanto o togado capelão lhes observava, com a Bíblia na mão. Cordelia sentia aversão pelas imagens de execuções
na forca e se uniu ao Ivo e Ambrose, que estavam examinando uma prateleira com figuras do Staffordshire. Ambrose identificou seus favoritas.
-Apresento-lhes a meus assassinas e assassinos famosos. Esse casal são os infaantes María e Frederick Manning, enforcados em novembro de 1847 diante do cárcere do
Horsemongers
Lane, frente a uma desenfreada turfa de cinqüenta mil pessoas. Charles Dickens presenciou a execução e depois escreveu que a conduta do povo tinha sido
tão indescritível que acreditou estar vivendo em uma cidade de demônios. Maria se tinha vestido de cetim negro para representar seu papel no espetáculo, eleição
que não contribuiu em nada a seu posterior atrativo. O cavalheiro, adequadamente embelezado com um jaquetão, é William Corder apontando com sua pistola a pobre
Maria Marten. Observem o celeiro vermelho, ao fundo. Teria saído bem liberado se a mãe dela não tivesse sonhado repetidas vozes que ali estava enterrado o cadáver
de sua filha. Penduraram-lhe no Bury St. Edmunds em 1828, também diante de um público numeroso e exaltado. Ao lado, a dama com touca que leva um saco negro é Kate
Webster. O saco contém a cabeça de sua senhora, a que matou a golpes, despedaçou e ferveu na caldeira da cozinha. Conforme se diz, pouco depois percorreu as
lojas do contorno oferecendo graxa a bom preço. Justiçaram-na, como estava acostumado a dizer-se, em julho de 1879.
Ao sair do despacho, fizeram uma pausa ante duas elegantes vitrines de palisandro, uma a cada lado da porta. a da esquerda continha uma série de objetos
pequenos detalladamente etiquetados: uma boneca e um jogo de solitário com pequenos gudes de cores, que tinham pertencido à rainha em sua infância; um leque,
cartões de Natal, perfumeros de cristal chapados em prata e esmalte, e uma coleção de pequenos objetos de prata: cadeia de pinjentes, colchete de cintura, suporte
de devocionario e ramalhete. Mas o que atraiu todas as olhadas foi a vitrine da direita. tratava-se de lembranças menos agradáveis, prolongações do museu
do crime do Ambrose.
-Esse cabo de corda forma parte da soga do verdugo que enforcou ao doutor Thomas Neill Cream, o envenenador do Lambeth, em novembro de 1892 -explicou seu proprietário-.
A camisola manchada, de linho com volantes impregnados, foi usado por Constance Kent. Não é o mesmo que tinha posto quando lhe cortou o pescoço a seu pequeno meio-irmão,
mas de todos os modos tem certo interesse. Esse par de algemas com a chave, foram aplicadas ao jovem Courvoisier, que assassinou a seu amo, lorde William Russell,
em
1840. Os óculos pertenceram ao doutor Crippen. Como lhe penduraram em novembro de 1910, em realidade está nove anos fora de meu período, mas não pude resistir a
tentação.
-E esse mármore que representa um braço de bebê? -inquiriu Ivo, interrompendo a explicação.
-Que eu saiba, carece de interesse criminal. Deveria estar no Memento Mori ou na outra vitrine, mas não tive tempo de acomodar as coisas. De todas formas, não
parece desconjurado entre os acessórios do crime. O homem que me vendeu passaria isso no que digo. Confessou-me que em sua imaginação o braço sangrava constantemente.
Clarissa não havia dito uma só palavra; ao olhá-la, Cordelia viu que tinha os olhos fixos no mármore, com uma mescla de medo e repugnância que nenhum dos
objetos expostos lhe tinha provocado. O braço, uma gorducha réplica em mármore branco, jazia sobre uma almofada purpúrea, pacote com uma corda. A própria Cordelia
pensou que era um objeto desagradável, sentimentaloide e morboso, inútil e nada decorativo e, em tal sentido, tipico da arte menor de sua época.
-É absolutamente detestável! -exclamou Clarissa-. É asqueroso! Onde demônios o encontrou, Ambrose?.
-Em Londres. Vendeu-me isso um conhecido. Pode ser o único exemplar existente de um dos braços dos meninos reais, feito para a rainha Vitória no Osborne, depende
crie-se pela Mary Thornycroft. Esta pode ser a pobre Pussy, a princesa real. Do contrário, trata-se de um aviso. Se te desgostar, Clarissa, teria que
ver a coleção do Osborne. Todas as peças parecem restos de um holocausto, como se o príncipe consorte tivesse atacado a creche real com um facão, como
muito bem pôde sentir-se tentado a fazer, pobre homem.
-É repulsivo! -insistiu Clarissa-. Está louco, Ambrose? te desprenda desse objeto.
-Nem o sonhe. Provavelmente se trate de uma peça única. Considero-a uma interessante contribuição a minha coleção de arte vitoriana menor.
-Vi as peças do Osborne e também as encontro repulsivas -interveio Roma-. Mas arrojam uma interessante luz sobre a mentalidade vitoriana, em particular
a da rainha.
-Bom, isto arroja uma interessante luz sobre a mentalidade do Ambrose.
Ivo disse com voz suave:.
-Como peça de mármore, está bastante obtida. Possivelmente o que encontram desagradável é a associação. A morte ou a mutilação de uma criatura sempre produz angústia,
não te parece, Clarissa?.
Mas Clarissa não deu amostras de lhe haver ouvido. voltou-se e disse:.
-- Por Deus, não comecemos a discutir sobre isso. te desprenda desse objeto, Ambrose. Agora necessita um gole e  meu almoço.
.
11.
A meia milha da praia Simon Lessing interrompeu sua lenta e regular braçada, voltou-se de costas e posou os olhos no horizonte. O mar estava deserto. Enfrentado
a aquele estremecedor esbanjamento de água, era-lhe possível imaginar que também havia vazio detrás dele, que a ilha e seu castelo se afundaram sob as ondas, silenciosamente
e sem turbulência, e que flutuava a sós em um azul infinito. Essa sensação de isolamento provocada por ele mesmo lhe excitou mas não lhe arredou. Nada relativo ao
mar lhe assustava. Era o elemento no que se sentia mais em paz; o sentimento de culpa, a ansiedade e o fracasso se esfumavam em um suave e perpétuo batismo de
redenção.
alegrou-se de que Clarissa não lhe tivesse miserável a percorrer o castelo. Possivelmente lhe interessasse visitar algumas habitações, mas haveria tempo suficiente
para explorar
por sua conta. E seria outra desculpa para manter-se afastado de seu caminho. Não podia nadar mais de duas vezes diárias como máximo sem que parecesse estranho e
deliberadamente
insociável, mas resultaria perfeitamente natural perguntar se podia perambular pelo castelo. Talvez o fim de semana não resultasse tão funesto.
Só teve que adotar a posição vertical para sentir a mordida da fria corrente submarina. Então flutuou, com os membros estendidos sob o sol, sentindo
que o mar reptaba sobre seu torso e seus braços, tão calidamente morno como um banho. de vez em quando inundava a cara, abrindo os olhos à magro filme de
verdor, deixando que lhe lavasse docemente as conchas dos olhos. E no profundo bulia o conhecimento, um saber aprazível e quase reconfortante que dissolvia tudo
temor: só tinha que abandonar-se, que entregar-se ao poder e a ternura do mar para que jamais voltasse a haver sentimento de culpa, ansiedade nem fracasso. Sabia
que não o faria; a idéia era uma indulgência consigo mesmo que, como uma droga, podia experimentar-se enquanto as dose fossem minúsculas e mantivera dominada a
situação. Agora a mantinha. dentro de uns minutos seria hora de voltar para a praia, pensar no almoço e na Clarissa e em agüentar os dois dias seguintes
sem confusões, sem cometer enganos. Mas agora eram suas aquela paz, aquele vazio, aquela plenitude.
Só em momentos semelhantes podia pensar em seu pai sem sentir dor. Assim devia ter morrido, nadando sozinho no Egeu aquela manhã do verão, depois de descobrir
que a maré era muito forte para ele, deixando-se ir por fim sem lutar, sem temer, entregando-se ao mar que amava, abraçando sua majestade e sua paz. Com tanta freqüência
habia imaginado aquela morte enquanto nadava em solitário, que os velhos pesadelos tinham ficado quase exorcizadas. Já não despertava na escuridão da madrugada
como nos primeiros meses posteriores à morte de seu pai, suado de terror, atirando desesperadamente das mantas que lhe arrastavam para baixo, revivendo
cada segundo daqueles fatais minutos, os olhos urticantes, a agonia enquanto vislumbrava através das ondas a praia perdida, longínqua, inalcançável. Mas não
tinha sido assim. Não podia ter sido asi. Seu pai tinha morrido seguro de seu grande amor, sem resistir e em paz.
Era hora de retornar. Volteou sob a água e reemprendió sua poderosa braçada uniforme. Logo seus pés encontraram os calhaus e chegou à borda, mais frio e fatigado
pelo que esperava. Levantou a vista e viu surpreso que alguém lhe esperava, uma silhueta escura e imóvel que permanecia como um guardião junto ao montão de seu
roupa. sacudiu-se a água dos olhos e reconheceu ao Tolly.
aproximou-se dela. Ao princípio, Tolly não disse uma palavra; agachou-se, recolheu a toalha e a alcançou. Ofegante e tremente, Simon se secou os braços e o pescoço,
incômodo por seu olhar fixo, perguntando-se que fazia ali. Finalmente a mulher disse:.
-por que não te larga? -Deveu perceber seu olhar atônito, pois repetiu-: por que não te larga? por que não deixa este lugar, por que não a abandona?.
como sempre, sua voz era baixa mas dura, quase inexpressiva. Ele a olhou com olhos exagerados sob o cabelo lhe jorrem.
-Que abandone a Clarissa? por que? O que quer dizer?.
-Ela não te quer, não te deste conta? Você não é feliz. Para que seguir fingindo?.
-Se for muito feliz! -protestou a gritos-. Além disso, aonde poderia ir? Minha tia não me receberia. Não tenho dinheiro.
-Em meu piso há uma habitação disponível. Em um princípio, poderia viver ali. Não é mais que uma habitação infantil, mas poderia ficar até que encontrasse
algo melhor.
Uma habitação infantil. Recordou ter ouvido dizer que Tolly tinha tido um filho, uma menina que depois morreu. Já ninguém falava dela. Simon não queria pensar em
isso. Já tinha pensado bastante na agonia e na morte.
-Como poderia encontrar algo? Do que viveria?.
-Tem dezessete anos, não? Não é uma criatura. tiraste cinco sobressalentes. Poderia encontrar algo que fazer. Aos quinze eu trabalhava já. A maioria de
os meninos, em todas partes, começam mais jovens.
-O que poderia fazer? Quero tocar o piano, ser um concertista. Necessito o dinheiro da Clarissa.
-Claro -disse Tolly-, necessita o dinheiro da Clarissa.
Quão mesmo você, pensou Simon. Tudo reside nisso. Experimentou uma sensação de confiança, de astúcia adulta. Não era um pirralho ao que se podia enganar facilmente.
Acaso
não tinha percebido sempre a aversão que sentia Tolly por ele, seu desdenhoso olhar quando lhe servia o café da manhã os dias que estavam sozinhos no piso, acaso
não
tinha observado o silencioso ressentimento com que juntava sua roupa suja e limpava sua habitação? Se ele não tivesse estado ali, ela não teria tido que acudir
à casa, salvo duas vozes por semana para comprovar que tudo estava em ordem. Queria lhe afastar, é obvio. Provavelmente esperava que Clarissa lhe deixasse algo
em seu testamento, devia ter dez anos menos que ela, embora não se notasse. E ao fim e ao cabo, só era uma faxineira. Que direito tinha a lhe perturbar, a criticar
a Clarissa, a lhe tratar com condescendência, lhe oferecendo seu sórdido cuartucho como se lhe fizesse um favor? Seria tão mau como viver no Mornington Avenue, ou
pior.
O pequeno e sedutor fantasia de diabo do mais recôndito de seus pensamentos assobiava lhe tentando. Por difíceis que ficassem às vezes as coisas, teria que estar
louco
para renunciar tão estupidamente à filantropia da Clarissa, que era rica, para ficar a mercê do Tolly, que era pobre.
Possivelmente ela captou uma parte de seus pensamentos, pois disse, quase humildemente, embora sem mansidão:.
--Não teria nenhuma obrigação. Só se trata de um lugar onde viver.
Desejou que Tolly desaparecesse de sua vista, mas ele mesmo se sentiu incapaz de afastar-se, de começar a vestir-se enquanto a escura e opressiva figura permanecia
ali,
obstruindo toda a praia. ergueu-se e disse, com a maior severidade que lhe permitiu seu corpo tremente:.
-Obrigado, mas sou perfeitamente feliz assim.
-Supón que se cansa de ti como se cansou de seu pai.
Olhou-a sobressaltado e aferrou a toalha. No alto chiou uma gaivota, com um grito estridente como o de um menino atormentado.
-O que quer dizer? -murmurou-. Clarissa amava a meu pai! amavam-se mutuamente! Explicou-me isso antes de nos deixar a mamãe e a mim. Foi o mais maravilhoso que lhe
ocorreu
na vida. Não tinha opção.
-Sempre há opção.
-adoravam-se! Papai era tão feliz ..... .
-Então, por que se afogou?.
-Não é verdade! Não te acredito! -gritou Simon.
-Não tem por que me acreditar se não o desejar. Mas quando te chegar o turno, recorda o que te hei dito.
-por que o teria feito? Para que?.
-Para fazê-la desgraçada, suponho. Não é por isso pelo que está acostumado a suicidarse a gente? Mas ele teria que ter compreendido que Clarissa não sabe o que é
a culpabilidade.
-me hão dito que houve uma investigação e que descobriram que se tratou de uma morte acidental. Além disso, não deixou nenhuma nota.
-Se a deixou, não a viram. Foi Clarissa quem encontrou a roupa na praia.
Os olhos do Tolly se posaram nas calças e a jaqueta do Simon, feitos um novelo debaixo de uma rocha. Uma imagem ocupou espontaneamente o cérebro do jovem,
uma imagem tão nítida que poderia ter sido memória. A areia granulosa, quente como cinza, um mar estranho que se estendia em púrpura e anil para o horizonte,
Clarissa de pé, com o vento inchando as mangas de seu vestido, uma nota na mão. Depois os estragados farrapos de papel branco batendo as asas como pétalas, tocando
apenas a água antes de flutuar e dissolver-se na escolho. Ocorreu três semanas antes de que o cadáver de seu pai -o que ficava do cadáver de seu pai- fosse
miserável à borda. Os ossos e a carne, mesmo que os peixes dêem conta deles, duram mais que uma parte de papel. Não era verdade. Nada de todo aquilo era
verdade. Como Tolly mesma lhe havia dito, sempre existia uma opção e ele optava por não acreditar a versão que lhe dava.
Baixou a vista para não ter que encontrar seu olhar, aquele premente olhar muito mais convincente que todas as palavras que ela pudesse pronunciar. Simon notou
que tinha um envoltório de algas ao redor da pantorrilha, parda como uma navalhada em que se secou o sangue. inclinou-se e atirou dela. A viscosa ligadura
ateu-se ainda mais à perna. Sabia que ela o estava olhando e a ouviu dizer:.
-Supon que morrera. O que faria então?.
-por que teria que morrer? Não está doente. Nunca me há dito que tivesse nenhuma enfermidade. O que lhe ocorre?.
-Nada. Não lhe ocorre nada.
-Então, por que menciona a morte?.
-Ela crce que vai morrer. Às vezes, quando a gente o pensa com suficiente intensidade, morre.
O coração do Simon se alagou de alívio. Aquilo era ridículo! Tolly queria lhe assustar. Agora o via tudo claro. Sempre tinha estado ciumenta dele, como tinha estado
ciumenta de seu pai. Levantou a jaqueta e tratou de resultar digno em que pese a que lhe tocavam castanholas os dentes:.
-Se morrer, estou seguro de que será recordada em seu testamento. Em seu caso, eu não me preocuparia. E agora, deixa que me vista. Tenho frio e é hora de almoçar.
Logo que pronunciar essas palavras se sentiu envergonhado. Tolly deu meia volta e pôs-se a andar sem lhe responder. Logo olhou para trás e seus olhares se cruzaram
por
última vez. Simon compreendeu que ela encontrou na sua vergonha e temor. Por sua parte, ele estava preparado para encontrar indignação e ressentimento na de
ela. Mas o que não esperava ver era compaixão.
.
12.
Uma larga arcada -de tijolos, embora com colunas e arcos de pedra lavrada- conduzia da asa oeste do castelo, passando por uma rosaleda e um lago,
até o teatro. Em seu solitário caminho para ver parte do último ensaio, um tanto atrasado, Ivo imaginou a lenta procissão -depois de jantar- de convidados vitorianos
passando sob os arcos, os braços e os pescoços pálidos por cima do luxo do raso e o veludo, as jóias brilhantes nos peitos e nas cabeleiras
laberínticamente trabalhadas, os peitilhos brancos das camisas masculinas reluzentes à luz da lua. O teatro propriamente dito lhe surpreendeu, menos por
a perfeição de suas proporções -que esperava- que por seu contraste com o resto do castelo. perguntou-se se não seria obra de outro arquiteto e decidiu falar
disso com o Ambrose. Mas se o responsável era Godwin, evidentemente a insistência do cliente na opulência e a ostentação tinha prevalecido sobre qualquer
inclinação que ele mesmo tivesse manifestado para a simplicidade de linhas e a moderação. Inclusive agora, com apenas a metade das luzes da sala acesas, a
sala transbordava luxo. O veludo vermelho escuro dos panos de fundo e as poltronas se desbotou mas seguia bem conservado. A iluminação de velas tinha sido
substituída por eletricidade -conversão que deveu causar romordimientos ao Ambrose-, mas as delicadas telas entrelaçadas seguiam em funcionamento e a primitiva
aranha de cristal cintilava do teto abovedado. em qualquer parte se viam adornos luxuosos, floridos e em ocasiões encantadores, mas sempre esplêndidos em seu
artesanato. Através do frontal dos camarotes dourados, querubins de gordinhas nádegas sustentavam ramalhetes de flores ou se levavam trompetistas a seus boquitas
aborrecidas,
enquanto o camarote real ricamente esculpido, com as plumas do príncipe do Gales e seus assentos gêmeos, régios como tronos, deveu satisfazer até a mais ardente
visão monárquica do que se devia ao persumido herdeiro. Ivo se tinha instalado no extremo da quarta fila de poltronas, com intenção de não ficar mais de
uma hora. Estava ansioso por lhe tirar da cabeça à companhia a idéia de que se encontrava na ilha principalmente para comentar sua atuação, e aquela aparição
casual, para presenciar o ensaio final, recordaria-lhes que estava menos interessado no que conseguissem fazer com a tragédia do Webster que nas glórias, escândalos
e lendas do teatro propriamente dito. alegrou-se de que as poltronas, desenhadas para amplas nádegas vitorianas, fossem tão voluptuosamente cômodas. A tarde
era sempre o pior momento para ele, quando o almoço, por frugal que tivesse sido, jazia pcsadamente em seu deformado estômago e o monstruoso baço parecia crescer
e endurecer-se sob suas mãos. acomodou-se na aveludada felpa, consciente da presença da Cordelia, sentada silenciosa e erguida na mesma fila, e fez
um esforço por fixar sua atenção no cenário.
Evidentemente, Do Ville -um diretor que se encontrava mais a gosto com os modernos- tinha dado instruções à partilha para que se concentrasse no sentido do
texto e deixasse que a poesia cuidasse de si mesmo, estratégia que teria resultado desastrosa com o Shakespeare, mas que ia bastante bem com a métrica mais rígida
do Webster. Ao menos contribuía ao ritmo. Ivo sempre tinha sustentado a convicção de que havia uma só maneira de pôr em cena ao Webster: um drama costumbrista
extremamente estilizado cujos personagens, meras personificações rituais da luxúria, a decadência e a voracidade sexual, moviam-se em uma majestosa pavana para
o inovitable e orgiástico triunfo da loucura e a morte. Mas Do Ville, semihundido em tétrica repugnância ao encontrar-se dirigindo a aficionados, pretendia
obviamente certa aparência de realismo. Seria interessante ver como as arrumava com os horrores mais gratuitos. Teria sorte se saía bem sacado da
cena da mão cerceada, e do corro de loucos, sem perceber alguma risilla contida. A tragédia de vinganças não era um gênero para atores inexperientes...,
embora em realidade nenhum clássico o era. Sem dúvida, aquele poeta de ossário, que amontoava horror detrás horror até a náusea e súbitamente perfurava o coração
com
linhas de redentora beleza, exigia algo mais que aquele entusiasta punhado de atores. Não obstante, Do Ville só devia obter deles uma representação. O que
diferenciava ao profissional do aficionado não era o que podia obter-se em uma noite a não ser o que podia continuar fazendo-se noite detrás noite, e duas tardes
por semana,
durante três ou mais meses.
Sabia que a obra ficaria com vestuário vitoriano. A idéia lhe tinha parecido excêntrica, um critério algo grotesco. Mas comprovou que tinha suas vantagens. O
cenário e a pequena sala se fundiam em uma claustroióbica câmara de maldade, os vestidos de pescoço alto e os polisones insinuavam uma sexualidade tão mais lasciva
por estar encoberta, revestida de respeitabilidade vitoriana. E havia certo engenho na decisão de vestir a Bosola de montanhês com saia escocesa, embora fosse
difícil imaginar ao bom Brown de Vitória naquela complexa criatura niilista e de frustrada nobreza.
Os quatro protagonistas levavam ensaiando perto de cinqüenta e cinco minutos. Do Ville os tinha deixado atuar virtualmente a seu ar: seu fatigado rosto de rã
só expressava uma melancolia consuetudinária. Provavelmente estava ressentido porque o tinham privado de sua sesta, submetendo-o a outra travessia marítima só para
satisfazer o capricho da Clarissa por um ensaio final de suas cenas mais importantes. Ivo olhou a hora. Começava a ganhar o aborrecimento, como sabia que ocorreria,
mas o esforço de moverlhe pareceu excessivo. Olhou de soslaio a fila de poltronas e observou a cara da Cordelia, levantada para o cenário, o queixo firme
embora delicado, a suave curva do pescoço. Dois anos atrás, pensou, me teria atormentado por ela, tramando a forma de me colocar em sua cama antes de que concluíra
o fim de semana, com os nervos a flor de pele ante um possível fracasso. Recordou suas passadas façanhas, não com desgosto a não ser com um indiferente assombro
por haver
dedicado tanto tempo e energias a aqueles insignificantes recursos contra o aborrecimento. A dificuldade tinha sido desproporcionada com respeito à satisfação;
o desejo, menos urgente que a necessidade de demonstrar-se que ainda era desejável. Em resumidas contas, o que teria significado deitar-se com ela como índice do
êxito do fim de semana, salvo um pequeno estímulo do ego, situado apenas um degrau mais alto que a qualidade do vinho e a comida e o engenho da conversação
de sobremesa? Sempre tinha procurado vlvir suas aventuras ao nível de um intercâmbio de prazeres civilizado e não comprometido. E suas aventuras sempre tinham terminado
em broncas, recriminações, animações e desgostos. Não tinha sido diferente com a Clarissa, exceto as rixas foram mais amargas, o desgosto mais duradouro. Claro
que com ela tinha cometido o engano de deixar-se enredar. Com a Clarissa -ao menos durante aqueles primeiros seis meses em que tinha feito cornudo ao pai do Simon-
havia tornado a conhecer as agonias, os êxtase, as incertezas do amor.
obrigou-se a olhar outra vez o cenário. Estavam representando a segunda cena do terceiro ato. Clarissa, vestindo uma volumosa bata adornada com encaixes, estava
sentada ante seu espelho atendida por Cario-a, que empunhava uma escova para o cabelo. O penteadeira, como o resto do instrumental, era autêntico, provavelmente
tirado do
castelo, deduziu Ivo. Havia mais de uma vantagem em montar a obra em sua época. A cena se interpretava com o acompanhamento de uma caixa de música situada sobre
o penteadeira, que fazia tilintar uma composição de ares escoceses. Com toda probabilidade também era uma das peças da coleção do Ambrose, embora suspeitava
que a idéia procedia da Clarissa. A cena começou bem. Ivo tinha esquecido a faculdade da Clarissa de adquirir uma beleza quase luminosa, o poder de sua voz alta
e ligeiramente aguda, a graça com que movia os braços e o corpo. Não era uma Suzman nenhuma Mirren, mas conseguia comunicar algo da mais elevada vibração erótica,
a vulnerabilidade e o ímpeto de uma mulher profundamente apaixonada. Não era surpreendente: tratava-se de um papel que com freqüência tinha representado na vida
real. Mas obter tamaña convicção com um galã que evidentemente via no Antonio um cavalheiro rural inglês que pecava esquecendo sua posição, era um verdadeiro triunfo.
Em troca Cario-a, nervosa e frívola, percorrendo o cenário a passo ligeiro com sua touca frisada como a de uma confidente de uma farsa francesa, era um desastre.
Quando vacilou pela terceira vez em seu parlamento, Do Ville gritou impaciente:.
-Só tem que recordar três linhas, pelo amor de Deus. E elimina essa afetação. Não está interpretando "Não, Não, Nanette". Começa outra vez desde o começo.
Repitam a cena!.
Clarissa protestou:.
-Necessito ritmo, agilidade. Perco o impulso se tiver que voltar para princípio.
-Voltem para princípio -reiterou Do Ville.
Clarissa titubeou, encolheu-se de ombros, e decidiu calar. O resto dos atores se olhavam furtivamente, moviam-se inquietos, aguardavam. de repente o interesse
do Ivo se reanimou. Pensou: "está-se pondo nervosa. Em seu caso quer dizer que está a ponto de perder os estribos".
De improviso, Clarissa agarrou a caixa de música e fechou a tampa de repente. O estalo foi tão intenso como a detonação de uma arma de fogo. A lhe tilintem melodia
interrompeu-se. Seguiu um silêncio absoluto no que todos pareciam conter o fôlego. Logo Clarissa se aproximou das lamparinas:.
-Essa maldita caixa me põe os nervos de ponta. Se for necessário que tenhamos música de fundo nesta cena, sem dúvida Ambrose poderá encontrar algo mais adequado
que
esses condenados ares escoceses. me estão voltando louca, e sabe Deus o que lhe ocorrerá ao público.
Ambrose falou em voz baixa do fundo da sala. Ivo se surpreendeu para ouvi-lo e se perguntou quanto faria que estava sentado ali.
-Que eu recorde, foi tua idéia.
-Eu queria uma caixa de música, mas não uma maldita melodia escocesa. E é necessário que tenhamos público? Cordelia, não pode encontrar alguma tarefa útil? Deus
sabe que lhe pagamos o bastante. Ao Tolly não viria mal que a ajudasse a engomar os trajes, a menos que te proponha te acontecer toda a tarde com o traseiro em
a poltrona.
Cordelia ficou em pé. Inclusive nas penumbras, Ivo detectou que o rubor subia por seu pescoço, viu sua boca semiabierta para protestar e em seguida resolutamente
fechada. Apesar de seus olhos cândidos, da desconcertante sinceridade, da impressão de fria competência, no fundo era uma garota sensível. Ivo sentiu crescer
em seu interior a ira, satisfatoriamente forte e simples. regozijou-se de poder senti-la ainda. levantou-se de sua poltrona com dificuldade. Tinha consciência de
que
todas as olhadas estavam fixas nele.
-A senhorita Gray e eu sairemos a dar um passeio -disse serenamente-. até agora a representação não foi exatamente atrativa e estaremos melhor ao ar livre.
Uma vez fora, depois de sair silenciosamente observados por toda a companhia, Cordelia disse:.
-Obrigado, cavalheiresco senhor.
Ivo sorriu. de repente se sentiu bem, extraordinariamente bem, possuidor de um corpo misteriosamente ligeiro.
-Acredito que em meu atual estado seria muito mal bailarino, e se tivesse que lhe adjudicar algum papel na Emma, não seria precisamente o da pobre Harriet. Terá
que
desculpar a Clarissa. Quando está nervosa, está acostumado a ser propensa à grosseria.
-Essa pode ser sua desgraça, mas não me parece desculpável.
-A grosseria pública provoca em mim o tipo de réplica infantil que só é satisfatória um segundo depois de ter sido pronunciada -adicionou Ivo-. Desculpará-se
com muita graça quando a vir a você a sós.
-Não me cabe a menor duvida. -voltou-se para ele e sorriu-: A verdade é que eu gostaria de dar um passeio, se não lhe parecer muito exaustivo.
Cordelia era a única pessoa da ilha, pensou Ivo, que podia lhe dizer aquilo sem lhe provocar irritação nem aborrecimento.
-O que lhe parece se formos à praia?.
-Encantada.
-Temo-me que a marcha será lenta.
-Não tem importância.
Que doce se veia com sua reserva e sua comedida dignidade! Sorriu e lhe tendeu a mão:.
-- "Sobre tais sacrifícios, Minha Cordelia, até os deuses arrojam incenso". Vamos?.
.
13.
Avançaram juntos, lentamente, até o bordo mesmo da maré, onde a areia era mais firme e facilitava o passo. A praia era estreita, interrompida por quebra-mar
podres e limitada por uma baixa taipa de pedra além da qual se elevavam os escarpados talheres de árvores. Grande parte do pendente deveu ter sido
cultivada em outros tempos. Entre as haja e os carvalhos se viam grupos de louros, velhas roseiras entrelaçadas na folhagem mais densa dos rododendros, os
lenhosos gerânios deformados pelo vento, as hortênsias com seus matizes outonais de bronze, lima e púrpura, muito mais sutis e mais interessantes -pensou Cordelia-que
as chillonas cabezuelas de pleno verão. sentiu-se em paz com seu companheiro e por um instante lamentou não poder confiar nele, que seu trabalho lhe impor tantos
dissimulações. Caminharam dez minutos em silêncio:
-Possivelmente a pergunta lhe pareça estúpida. Gray não é um sobrenome pouco comum. De todos os modos, por acaso não será parente do Redvers Gray?.
-Era meu pai.
-Notei algo nos olhos. Só o vi uma vez, mas seu rosto era dos que não se esquecem. Teve grande influencia em minha geração, em Cambridge. Possuía o dom de fazer
que a retórica soasse sincera. Agora que a retórica e os sonhos não só estão desacreditados, o que de por si é bastante desalentador, mas também passados de moda,
o qual é fatal, suponho que é um homem quase esquecido. Mas me teria gostado de lhe conhecer.
--A mim também.
Ivo a olhou:.
-Assim são as coisas, não? O idealista revolucionário dedicado à humanidade em abstrato não é muito bom na atenção de seus próprios filhos. Eu não sou quem para
lhe criticar. Tampouco o fiz muito bem com meus. Os meninos necessitam que alguém lhes fale, que jogue com eles, que lhes dedique tempo quando são pequenos. Se um
diz-lhes que não devem incomodar, não é surpreendente descobrir, quando chegam à adolescência que não há comunicação entre pais e filhos. Claro que quando os
meus foram adolescentes, tampouco eu gostava de muito sua mãe.
-Acredito que me teria gostado de meu pai se tivéssemos tido tempo de nos tratar -disse Cordelia-. Passei seis meses com ele e seus camaradas na Alemanha e Itália.
Depois
morreu.
-Você faz que a morte soe a traição. E o é, é obvio.
Cordelia recordou aqueles seis meses. Meio ano cozinhando para os camaradas, fazendo as compras para os camaradas, levando e trazendo mensagens, às vezes não sem
perigo, procurando habitações, aplacando a patronas e lojistas, costurando para os camaradas. Tanto eles como seu pai acreditavam implicitamente na igualdade das
mulheres, sem incomodar-se em adquirir as noções domésticas básicas que teriam feito possível essa igualdade. E foi levá-la a essa precária e nômade existência
para o que ele a tinha tirado do convento, lhe impossibilitando ocupar um lugar em Cambridge. Já não experimentava nenhum ressentimento por isso. Aquele período
de
sua vida estava resolvido. Abrigava a esperança de que se deram algo mutuamente, embora só fora confiança. Com antecedência ela tinha abandonado o Redvers
de seu sobrenome, dizendo-se que era um agregado desnecessário em sua bagagem. Por então lia ao Browning. Agora se perguntava se não se tratava de um rechaço mais
significativo,
inclusive de uma pequena desforra. A idéia não gostou de nada e a separou de sua mente. Ouviu dizer ao Ivo:.
-Como foi a formação de você? Sempre víamos fotos dele levado a rastros pela polícia. Um pouco muito admirável na juventude, sem dúvida alguma, mas na idade
média começa a parecer embaraçoso e ridículo. Não recordo ter ouvido falar de uma filha... e nem sequer de uma esposa, se a isso vamos.
-Minha mãe morreu quando eu nasci.
-Quem se ocupou de você?.
-A maior parte do tempo tive pais adotivos. Aos onze anos ganhei uma beca para ingressar no Convento do Menino Deus. Foi um engano, não me refiro à beca
a não ser à eleição da escola. Confundiram meu nome com o de outra C. Gray, que era católica. Não acredito que a papai gostasse, mas quando se incomodou em responder
à carta do Ministério de Educação, eu estava instalada e ninguém quis me transladar. Além disso, eu queria ficar.
-Redvers Gray com uma filha educada em um convento! -Ivo riu-. E não conseguiram convertê-la? Isso teria ensinado a papai, devoto ateu, a responder as cartas com
maior
prontidão.
-Não, não me converteram. Nem o tentaram. Eu não era crente, mas sim feliz em minha invencível ignorância, um estado bastante invejável. E eu gostava do convento.
Suponho que foi a primeira vez na vida que me senti segura. A vida já não era um enredo.
Nunca tinha falado com tanta liberdade, ela que era tão lenta para as confidências, sobre sua época do convento. perguntou-se se aquela insólita franqueza era
possível só porque sabia que ele tinha os dias contados. A idéia lhe pareceu ignóbil e fez todo o possível por apartar a de sua mente.
-Coincide você com o Yeats -apontou Ivo-. "Como a não ser nos costumes e nas cerimônias nascem a inocência e a beleza?" Compreendo que deveu ser tranqüilizador,
sobre tudo o fato de ter os pecados detalladamente classificados em veniais e mortais. Pecado mortal. Eu gosto da expressão embora rechaço o dogma. Possui
uma nota de esplêndida finalidade. Dignifica o mal, quase lhe outorga forma e substância. A gente pode imaginar-se a si mesmo dizendo: O que tenho feito com meu
pecado mortal?
Tenho que havê-lo posto em alguma parte. A gente poderia levá-lo consigo a todos lados, bem empacotado.
Ivo tropeçou. Cordelia estendeu a mão para lhe sustentar. Sem a palma dele fria, a pele seca deslizando-se sobre os ossos. Notou-o muito fatigado. A caminhada sobre
os calhaus não tinha sido fácil.
-nos sentemos um momento -disse Cordelia.
Em cima deles havia uma espécie de gruta recortada em escarpado, com uma terraço de mosaicos, agora gretada e quase coberta de ervas, e um assento curvo,
de mármore. Cordelia lhe ajudou a subir a costa, vigiando que seus pés encontrassem matas de ervas e degraus de pedras semiocultos. O respaldo do banco, a pesar
de estar morno pelo sol, fez que um calafrio atravessasse sua magra camisa. sentaram-se um ao lado do outro, sem tocar-se, com a cara volta para o sol. Em cima
deles pendurava um haja: o tronco e os ramos possuíam a tenra luminosidade do braço de uma menina, suas folhas -que começavam a tingir-se de ouro outonal- eram jaspeadas
maravilhas de luz reflete. A atmosfera era aprazível, só de vez em quando o silêncio era penetrado pelo grito esporádico de uma gaivota, mientra a seus pés
o mar vaiava e oscilava em seu eterno desassossego.
Poucos minutos depois, com os olhos fechados, Ivo disse:.
--Suponho que um pecado mortal tem que ser algo especial, um pouco mais original e transcendente que os instaure, as mesquinharias, as pequenas delinqüências que
compõem a vida cotidiana de quase todos.
-É uma ofensa grave contra a lei de Deus -disse Cordelia-, que põe a alma em perigo de condenação eterna. Tem que haver pleno conhecimento e consentimento. Está
tudo estabelecido. Qualquer católico pode explicar-lhe -Algo malo, si esa palabra significa algo, si uno cree en la existencia del mal.
-Algo mau, se essa palavra significar algo, se a gente acreditar na existência do mal.
Cordelia pensou na capela do convento, nos círios do altar que piscavam trêmulos, em sua própria cabeça, inclinada e coberta por uma mantilha, entre as
filas de susurrantes conformistas: "... e libra nos de todo mal". Durante seis anos tinha repetido como mínimo duas vezes por dia aquelas palavras sem haver-se perguntado
nunca do que queria que a liberassem. Teve que acostumar-lhe seu primeiro caso, depois da morte do Bernie. Ainda recordava, dormindo e em estado de vigília, o horror
que em realidade não tinha visto: um pescoço branco alargado, o rosto desfigurado de um menino pendurando do laço, os pés retorcidos assinalando o chão. Quando finalmente
olhou cara a cara ao assassino, compreendeu o que era o mal.
-Sim, acredito na existência do mal.
-Então, Clarissa fez uma vez algo que você poderia definir como expressão do mal. Não sei se as boas monjitas o considerariam pecado mortal. Embora havia
conhecimento e consentimento. E suspeito que para a Clarissa pode resultar mortal.
Cordelia não disse nada: não o poria fácil. Mas não havia nenhum domínio em seu silêncio. Sabia que ele seguiria adiante.
-Ocorreu durante a representação do Macbeth, em julho de 1980. Tolly, a senhorita Tolgarth, tinha tido uma filha ilegítima quatro anos atrás. Não era nenhum secreto
e quase todos os que formávamos parte do círculo da Clarissa conhecíamos a existência do Viccy. Era uma menina muito doce. De expressão séria, mas bem calada, acredito
que inteligente na medida em que é possível julgar a inteligência a essa idade. Algumas vezes, muito poucas, Tolly a levava consigo ao teatro, mas quase sempre
manteve além do trabalho sua vida privada. Pagava a alguém para que cuidasse do Viccy enquanto ela trabalhava, e devia lhe resultar conveniente ter uma ocupação
noturna. Nunca quis aceitar um céntimo do pai. Acredito que era muito possessiva com respeito ao Viccy para compartilhar nem tão sequer os gastos de sua alimentação.
Ocorreu dois dias antes da estréia. Clarissa estava no teatro, no ensaio final, e Viccy tinha ficado a cargo de sua babá. A menina escapou à rua e se
entreteve com algo na sarjeta, detrás de um caminhão estacionado. A sabida tragédia: o condutor não a viu e retrocedeu. Ficou gravemente ferida. Transladaram-na
ao hospital e a operaram; superou muito bem a intervenção. Acreditávamos que se salvaria. Mas a noite da estréia telefonaram do hospital, às dez menos quarto,
para dizer que tinha sofrido uma recaída e lhe pedir ao Tolly que acudisse imediatamente. Clarissa recebeu a chamada. Acabava de chegar aos camarins para trocar-se
de traje antes do terceiro ato. Aterrorizou-a a idéia de perder a sua garçonete nesse preciso momento. Recebeu a mensagem e pendurou. Depois disse ao Tolly que em
o hospital queriam falar com ela mas que não havia nenhuma pressa, que dava igual a fora depois da função. Tolly quis telefonar ao hospital, mas Clarissa
não o permitiu. Imediatamente depois de terminada a representação voltaram a telefonar do hospital para informar que a menina tinha morrido.
-Como sabe todo isso?.
-Porque tomei o trabalho de me pôr em contato com o hospital e fazer averiguações sobre a primeira mensagem. Além disso, eu estava no camarim da Clarissa quando
ela atendeu a chamada. Digamos que então eu me encontrava em uma situação de certo privilégio. Não estive presente quando Clarissa disse ao Tolly que não podia
partir. Me teria ocupado de que as coisas ocorressem de outro modo, ao menos acredito que o teria feito. Mas estava ali quando chamaram. Logo voltei para minha poltrona.
Quando acabou a obra e retornei aos camarins em busca da Clarissa, para levá-la para jantar, Tolly seguia ali. Um quarto de hora mais tarde telefonaram do hospital
para dizer que Viccy habia morto.
-E quando você se inteirou do que tinha ocorrido deixou de ser uma pessoa privilegiada?.
-Me gustaria poder lhe dizer que assim foi, mas a verdade é menos aduladora. Clarissa se tinha convertido em meu amante por duas razões. Em primeiro lugar porque
eu
tinha alcançado certa fama e para ela o poder sempre foi um afrodisíaco; em segundo lugar porque imaginou que um pó semanal lhe garantiria boas críticas.
Quando descobriu seu engano..., cessaram os privilégios. Devo lhe dizer que, como a maioria dos homens, sou capaz de trair, mas não com esse tipo de traição.
Não é prudente pagar certos favores adiantado.
-por que me conta todo isto?.
-Porque você eu gosto. Porque não quero que me danifique este fim de semana vendo como outra pessoa que respeito é seduzida pelo encanto da Clarissa. Asseguro-lhe
que possui encanto, embora ainda não se incomodou em exercê-lo em você. Não tenho o menor interesse em vê-la comportar-se como todos outros. Suspeito que você
pode estar poseída por esse divino sentido comum que é impermeável às zalamerías do egocentrismo, já seja sexual ou de outra natureza, embora nunca se sabe.
Ou seja que estou cometendo outra pequena traição para fortalecê-la contra a tentação.
-Quem era o pai do Viccy?.
-Ninguém sabe, exceto Tolly, que provavelmente não o dirá jamais. A questão radica em quem acreditava Clarissa que era o pai da menina.
Cordelia o olhou fixamente.
-Por exemplo seu marido?.
-O pobre e atordoado Lessing? Suponho que é possível, embora pouco provável. Ele e Clarissa só levavam um ano de casados. É sabido que o fazia viver em
um inferno, mas não me imagino escolhendo essa forma de vingança. Conjeturo que o pai era Do Ville. Seus únicos requisitos para possuir a uma mulher é que esta
seja medianamente atrativa e esteja bem disposta, além de não ser atriz. Conforme dizem, é impotente com qualquer que pertença à sociedade de atores, mas
possivelmente este só seja um subterfúgio para riscar uma linha divisória entre sua vida pessoal e sua vida profissional.
-O diretor da obra do Webster? que está aqui? Você acredita que Clarissa estava apaixonada por ele?.
-Eu não sei o que entende Clarissa por essa expressão. Pode havê-lo desejado embora só fora para demonstrar-se que era capaz de consegui-lo. Mas há algo seguro:
se
não lhe seguiu o jogo, ela não esqueceria facilmente uma aventurilla com sua própria garçonete.
-por que acredita que veio? É famoso e não tem nenhuma necessidade de dirigir a aficionados. especialmente fora de Londres.
-por que está aqui qualquer de nós? Pode considerar a ilha como um futuro centro de teatro experimental mundialmente famoso. Possivelmente esta seja uma forma
de introduzir-se. Não esqueçamos que neste momento não está muito solicitado. Seus efeitos especiais foram muito admirados, mas na atualidade há uns quantos cachorrinhos
inteligentes na profissão. E se Ambrose estiver disposto a gastar, poderia fazer algo de seu Festival Courcy. Não em forma comercial, é obvio, já que um teatro
com capacidade para um centenar de pessoas não pode aspirar a isso, sobre tudo se se tem em conta que a noite da estréia poderia ficar isolado por uma tormenta.
Mas poderia divertir-se um pouco assim que se libere da Clarissa.
-Ele quer liberar-se da Clarissa?.
-Claro -apressou-se a responder Ivo-. Não se deu conta? Ela tem a intenção de expropriá-lo, quão mesmo a seu teatro e sua ilha. Ao Ambrose gosta de seu reino
privado. Clarissa é uma invasora tenaz.
Cordelia pensou na menina, a sós em sua alta e asséptica cama do hospital, detrás das cortinas jogadas. Estaria consciente? Sabia que estava agonizando? Havia
gritado chamando a sua mãe? Tinha empreendido a sós e assustada a última viagem?.
-Não entendo como pode viver Clarissa com essa lembrança -comentou.
-Não estou seguro de que possa. Quando uma pessoa tem terror a morrer, pode dever-se a que uma parte de sua mente considera que o merece.
-Como sabe que está aterrada?.
-Porque há algumas emocione que nem sequer uma atriz tão experimentada como Clarissa pode ocultar.
Ivo se voltou para olhá-la, viu a expressão de seu rosto, elevado para o brilho de vibrantes verdes e ouros, e prosseguiu em voz baixa:.
-Possivelmente tenha desculpas. Se não desculpar, ao menos explicações. Estava a ponto de fazer uma importante mudança de vestuário. Reveste não o teria obtido e
não havia outra
garçonete disponível.
-Buscou-a?.
-Não acredito. Desde seu ponto de vista, não estava no mundo dos hospitais e os meninos doentes. Era lady Macbeth. Estava no Dunsinane Castle. Duvido de que houvesse
abandonado o teatro para assistir a seu próprio filho agonizante, não naquele momento. Não lhe passou pela imaginação que outro pudesse desejá-lo.
-Você não pode desculpá-la! -gritou Cordelia-. Não pode querer lhe dar uma explicação. Você, em realidade, não acredita que uma obra, nenhuma obra, nenhuma função,
seja
mais importante que um menino moribundo.
-Eu não acredito por um só instante que Clarissa pensasse que a menina estava morrendo, isso no suposto de que tivesse pensado.
-Mas você opina o mesmo? Que uma função, nenhuma função, pode ser mais importante?.
Ivo sorriu:.
-Agora nos estamos aproximando do antigo campo minado da filosofia. Se um edifício se incendiar e você só pode resgatar a um velho vagabundo sifilítico ou
um Velázquez, a qual deixa perecer?.
-Não, não é essa a opção. Estamos falando de uma menina agonizante que quer ver sua mãe, e sopesando essa necessidade frente a uma representação do Macbeth. Além
disso
estou farta dessa velha analogia. Eu arrojaria o Velázquez pela janela e começaria a arrastar ao vagabundo para uma zona segura. A verdadeira eleição moral
apresenta-se quando a gente descobre que o inválido é muito pesado. Escapa sozinha ou insiste, correndo o risco de morrer com ele?.
-Isso é fácil. Obviamente a gente escapa sozinho, e sem deixar muito conscientemente a decisão para o último momento. Quanto à menina, não, não acredito que nenhuma
representação possa ser mais importante, sobre tudo nenhuma representação da Clarissa. Satisfeita?.
-Não compreendo como a senhorita Tolgarth pode seguir trabalhando para ela. me resultaria impossível.
-Mas seguirá fazendo-o. Confesso que me intriga sua função exata aqui. Embora suponha que não quererá pôr as cartas sobre a mesa.
-É distinto, ao menos me persuadirei de que é distinto. Só sou uma empregada eventual. Mas Tolly acreditou na Clarissa quando lhe disse que não havia perigo imediato,
confiava nela. Como pode seguir a seu lado?.
-estiveram juntas quase toda sua vida. A mãe do Tolly foi nodriza da Clarissa. A famila, com "f" minúscula, serve à Família, com "F" maiúscula, durante três
gerações. Clarissa nasceu para ser servida e Tolly para servi-la. Possivelmente, dada a tradição de servidão e subordinação, um menino morto de vez em quando não
troque nada.
-Isso é odioso! É algo ridiculo e degradante! É vitoriano!.
-Não esteja tão segura. O instinto de idolatria é muito perseverante. O que outra coisa é, se não, a fé religiosa? Tolly teve a sorte de que seu Deus caminhasse
por
a terra com sapatos que precisam limpar-se, roupas que precisam dobrar-se, cabeleiras que precisam escovar-se.
-Mas não pode seguir lhe servindo. Não pode lhe ter simpatia a Clarissa.
-O que tem que ver a simpatia? "Embora me mate, confiarei nela". É um fenômeno corrente. Embora, reconheço-o, às vezes me pergunto o que ocorreria se abordasse
a verdade a respeito de seus próprios sentimentos. Se a isso vamos, o que ocorreria se qualquer de nós o fizesse? Está refrescando, verdade? Não sente frio? Possivelmente
seja hora de retornar.
.
14.
Logo que falaram enquanto retornavam ao castelo. Para a Cordelia, a luz do sol se murchou; a beleza do mar e a praia deixaram indiferente a seu desolado
coração. Ivo estava indubitavelmente fatigado quando chegaram a terraço e disse que iria descansar a sua habitação, que não tomaria o chá. Cordelia se disse a si
mesma que sua tarefa consistia em permanecer perto da Clarissa, por pouco que agradasse a ambas. Necessitou de um esforço de vontade para encaminhar-se novamente
para o teatro e sentiu alívio ao descobrir que o ensaio ainda não tinha terminado. ficou um minuto no fundo da sala e logo se retirou a seu dormitório. A
porta de comunicação estava aberta e viu o Tolly ir e vir do quarto de banho à habitação da Clarissa. Mas a idéia de falar com lhe resultou intolerável
e fugiu.
Quase por impulso abriu a porta seguinte do corredor, que dava acesso à torre. Uma escada circular, de ferro primorosamente decorado, marcava uma curva ascendente
para a penumbra logo que iluminada por esporádicas ventanitas de menos de um tijolo de largura. Viu um interruptor mas preferiu seguir na semioscuridad de
o que aparecia como uma espiral interminável. Não obstante, chegou ao alto, para encontrar-se em uma pequena habitação circular muito luminosa, com seis altas janelas.
A estadia carecia de móveis, exceto uma poltrona de vime com respaldo curvo; evidentemente se utilizava para armazenar as aquisições às que Ambrose ainda
não tinha dado destino ou que tinha herdado do anterior proprietário, principalmente uma coleção de brinquedos vitorianos. Havia um cavalo de madeira sobre rodas,
um arca do Noé com animais esculpidos, três bonecas de porcelana de rosto amável e membros cheios, uma mesa de brinquedos mecânicos que incluía um organillero com
seu bonito, uma orquestra de gatos sobre uma plataforma giratória, vestidos de raso de cores vivas e cada um com seu instrumento, um granadeiro de brinquedo com
seu tambor,
uma caixa de música de madeira.
O panorama era espetacular. Toda a ilha, vista como de um avião, era um mapa de cores esmeradamente desenhada e situado com absoluta precisão em um mar ondulado.
Ao este havia um borrão que podia ser a ilha do Wight. Ao norte, a costa do Dorset se via surpreendentemente perto; quase conseguiu distinguir o achaparrado mole
e as casas de cores. Baixou a vista para observar a ilha, as restingas norteñas orladas de gaivotas brancas, as terras altas centrais, os campos, pequenos
remendos de verde entre a matizados agrupamentos de árvores outonais, os pardos escarpados que se deslizavam para a borda, a agulha da igreja, lhe sobressaiam
em meio das haja, o telhado da arcada que conduzia a um teatro de brinquedo. Desde seu casita no bloco de estábulos, avançava a figura em figura do Oldfield
com um cubo em cada mão; de repente emergiu Roma de um soto de terá que demarcavam o jardim e se encaminhou, com as mãos afundadas nos bolsos, para o
castelo. Um pavão cruzava majestoso a grama, arrastando sua deteriorada cauda.
Ali, flutuando entre a terra e o céu em uma aguilera de tijolos, o rumor do mar chegava como um surdo gemido quase inseparável do suspiro do vento. De
logo, Cordelia se sentiu imensamente sozinha. O trabalho que tanto prometia, agora o parecia uma humilhante perda de tempo e esforço. Já não lhe importava quem
enviava as mensagens nem por que. Sentiu que apenas lhe importava se Clarissa vivia ou morria. perguntou-se o que estaria ocorrendo no Kingly Street, como as arrumaria
a senhorita Maudsley, se o senhor Morgan teria ido reparar a placa. E pensando nele, recordou a sir George. Ele
tinha-lhe pago para que cumprisse sua tarefa. Estava ali para proteger a Clarissa, não para julgá-la. Só ficavam dois dias. no domingo todo teria concluído e seria
livre de retornar a Londres, não tinha por que voltar a ouvir o nome da Clarissa. Recordou as palavras do Bernie em uma ocasião em que a tinha arreganhado por ser
muito suscetível: "Neste trabalho não pode emitir julgamentos morais sobre seus clientes, companheira. Se começar a fazer isso, o melhor será que feche a loja".
afastou-se da janela e impulsivamente abriu a caixa de música. O cilindro girou lentamente e os delicados filamentos de metal dedilharam a melodia "Mangas verdes".
Então pôs em movimento outros brinquedos mecânicos, um a um. O granadeiro golpeou o tambor, os gatos giraram sorridentes, agitando seus braços de raso, os
címbalos chocaram, a quejumbrosa "Mangas verdes" perdeu-se no meio do discordante estrépito. Assim, em uma suave cacofonia de sons infantis -que não obtiveram
apartar por completo de sua mente a imagem de uma menina agonizante, embora contribuíram a relaxar em parte sua tensão-, Cordelia contemplou o reino de colorines
do Ambrose.
.
15.
Ivo estava equivocado. Clarissa não se desculpou por sua conduta no ensaio, embora se empenhou em ser particularmente.encantadora com a Cordelia durante o chá, um
buliçoso
e prolongado festim com sandwiches e deliciosos bolos. Eram mais das seis quando a lancha que transportava a Do Ville e a outros protagonistas até o Speymouth
afastou-se do embarcadero. Clarissa passou a hora anterior ao momento de vestir-se para o jantar jogando com o Ambrose ao Scrabble na biblioteca. Jogava ruidosamente
e mau, chamando constantemente a Cordelia para que procurasse palavras no dicionário ou para que a defendesse contra as acusações do Ambrose de que fazia armadilhas.
Cordelia, felizmente abismada em velhos exemplares do "Illustrated London News" e do "Strand Magazine" -onde podia ler os contos do Sherlock Holmes tal como
tinham aparecido pela primeira vez-, lamentou que não a deixasse em paz. Aparentemente, Simon devia entretê-los com sua música depois do jantar, e os distantes acordes
do Chopin do salão, onde estava praticando, pareceram-lhe agradavelmente sedativos e evocadores de seus tempos de colégio. Ivo seguia em sua habitação e Roma
lia em silêncio os semanários e o "Te prive Eye". A biblioteca, com seu teto abovedado e seus estanterías com frontal de cobre cinzelado montadas entre os quatro
ventanales, era uma das estadias mais belamente proporcionadas do castelo. A totalidade da parede sul estava ocupada por uma imensa janela decorada com
painéis redondos de vidro colorido. À luz do dia a janela só emoldurava uma paisagem de mar e céu. Mas agora a biblioteca estava na escuridão, salvo
pelos três pontos de luz dos abajures do escritório, e a grande janela se elevava como uma lâmina de mármore banhada pela chuva, negriazul e salpicada por
umas poucas estrelas. É uma lástima, pensou Cordelia, que nem sequer aqui Clarissa seja capaz de manter um pacífico silêncio.
Quando chegou a hora de vestir subiram junts;  Cordelia abriu as portas das duas habitações e revisou o dormitório da Clarissa antes de lhe permitir a entrada.
Tudo estava bem. vestiu-se rapidamente, apagou a luz e logo se sentou ante a janela a contemplar os distantes grupos de árvores, negros ante o céu noturno,
e o débil resplendor do mar. Súbitamente se acendeu e apagou uma luz para o sul. Emprestou atenção. Três segundos mais tarde voltou a cintilar e logo o fez
por terceira e última vez. Lhe ocorreu que devia ser  algum tipo de sinal, talvez em resposta a outra recebida da ilha. por que e quem a tinha emitido?
Mas se disse que a idéia era infantil e melodramática. Provavelmente se tratava de um marinheiro solitário que retornava ao porto do Speymonth e acendia e apagava
uma luz sobre o mole. Entretanto, persistiu algo inquietante e quase sinistro no triplo cintilação, como se alguém tivesse feito gestos indicativos de que
a companhia estava reunida, a primeira atriz esplendidamente instalada sob o teto do castelo, de que a ponte levadiça poderia levantar-se e dar passo à função.
Mas aquele era um castelo sem ponte levadiça, seu fosso era o mar. Pela primeira vez desde sua chegada, Cordelia experimentou uma sensação de claustrofóbico mal-estar.
As únicas linhas de comunicação da ilha eram o telefone e a lancha e ambas podiam ficar facilmente fora de serviço. Tinham-lhe atraído o mistério e a
solidão da ilha; agora sentia falta do sólido amparo da terra firme, das cidades e os campos e colinas que se estendiam a suas costas. Então ouviu
fechá-la porta da Clarissa e afastaras pisadas do Tolly. Clarissa devia estar preparada. Cordelia cruzou a porta de comunicação e juntas se encaminharam a
a sala.
O jantar foi excelente: alcachofras seguidas por "poussin" e espinafres "au gratin". A sala, de cara ao sul, mantinha a calidez do dia e a chaminé tinha sido acesa
mais pelo aroma e o reconfortante brilho que por necessidade. Os três castiçais altos arrojavam uma luz uniforme sobre o centro de mesa de cristal de cor
e mármore de Paradas, a baixela Davenport de ricos dourados, verdes e rosas, e a cristalería gravada. Em cima da chaminé havia um óleo das duas filhas do Herbert
Gorringe. Seus detrás eram torpes, quase angulares, e as caras, com seus brilhantes olhos exoftálmicos sob as densas sobrancelhas Gorringe e seus lábios úmidos logo
que separados,
pareciam avermelhadas e febris, enquanto que os vermelhos e azuis escuros dos trajes de noite com que estavam embelezadas eram tão gritões como se a pintura acabasse
de secar-se. A Cordelia resultou difícil apartar os olhos do quadro, que longe de ser tranqüilo ou caseiro lhe pareceu carregado de uma potente energia sexual. Ambrose
seguiu a direção de seu olhar e disse:.
-O autor é Millais, um dos relativamente poucos retratos de família que realizou. A baixela que estamos usando foi um presente de bodas dos príncipcs do Gales
à filha maior. Clarissa insistiu em que a pusesse esta noite.
A Cordelia pareceu que havia muitas coisas sobre as que Clarissa insistia no castelo do Courcy. perguntou-se se também vigiaria o esfregão da louça.
Teria que ter sido uma reunião festiva, mas o prazer não foi parangonable à comida nem à excelência dos vinhos. Por debaixo da brilhante superfície
e da afável conversa social fluía uma corrente de desconforto que de vez em quando brotava a jorros em forma de antagonismo. Ninguém exceto Simon e ela, com seus
apetites juvenis, fez verdadeira honra à comida, comida que ele se levava a boca furtivamente e olhando a Clarissa de reojo, como um pirralho ao que por primeira
vez lhe permite assistir ao jantar no comilão e que espera ser banido em qualquer momento ao quarto dos meninos. Clarissa, elegante com seu vestido de pescoço
alto, de gaze verdiazul, começou
a chatear a sua prima pela ausência de seu sócio, tema que Roma parecia pouco disposto a tocar.
-É muito estranho de sua parte, querida. Espero que não lhe tenhamos afugentado. Crer que queria luzi-lo. Acaso não foi para isso para o que conseguiu o convite?
De quem te envergonha, dele ou de nós?.
O rosto de Roma adquiriu um rosado violento que não sentava bem ao azul de seu vestido de tafetán.
-Este sábado passará pela livraria um cliente norte-americano e Colin tinha as contas atrasadas. Espera as pôr ao dia antes da segunda-feira.
-Trabalhará todo o fim de semana? Que homem tão consciencioso! De todos os modos, alegra-me saber que têm contas que fazer. Meus parabéns.
Cordelia, ao ver que fazia poucos progressos na conversação com o Simon -o qual parecia temeroso de falar-, esqueceu a seus companheiros de mesa e se concentrou
na
comida. A voz beligerante de Roma a obrigou a emprestar atenção. dirigia-se ao Ambrose do outro lado da mesa, blandiendo sua faca como se fora uma arma.
-Mas não pode evitar toda responsabilidade pelo que está ocorrendo em seu próprio país! Não basta com que diga que não te corresponde, que nem sequer está interessado.
-Sim que posso. Não intervim na depreciação de sua moeda, a espoliação de seus campos, a profanação de suas cidades, a destruição de suas escolas ou inclusive
a mutilação da liturgia de seu Igiesia. por que razão espera que sinta alguma responsabilidade pessoal?.
-Estava pensando em aspectos que alguns de nós consideramos mais importantes. O crescimento do fascismo, o fato de que nossa sociedade seja mais violenta,
menos compassiva e mais desigual do que foi do século passado. Além disso, está o Fronte Nacional. Ao menos essa organização, suponho, não pode te ser indiferente.
-Sim que pode, junto com a tendência militante, os trotskistas e o resto do povo. Surpreenderia-te minha capacidade de indiferença pelo indiferente.
-Não pode recorrer ao singelo expediente de viver em outra época!.
-Sim que posso. Posso viver no século que me deseje muito. Não tenho por que escolher as cidades das trevas, sejam antigas ou modernas.
Interveio Ivo, em tom repousado:.
-Agradeço que não rechace as comodidades nem a tecnologia modernas. Se nos próximos dias entrasse na fase final de minha doença e necessitasse ajuda médica para
me facilitar o caminho, entendo que não porá reparos em usar o telefone.
-Se algum de vós decide morrer nos próximos dias -Ambrose sorriu a todos e levantou sua taça-, tomarão-se todas as medidas necessárias para que efetivamente
encontrem facilmente o caminho.
produziu-se um breve silêncio, ligeiramente embaraçoso. Cordelia olhou a Clarissa, mas a atriz tenta os oios fixos em seu prato. Os largos dedos tremeram um segundo
e logo permaneceram imóveis. Roma disse:.
-E o que ocorre no paraíso quando Adão, sem o distração da Eva, retorna finalmente ao pó?.
-Seria um prazer ter um filho que acontecesse a um aqui, reconheço-o, quase valeria a pena casar-se e reproduzir-se. Mas os filhos são pouco dignos de confiança,
embora viessem por encargo, e o processo de fazê-los, engañosamente pura fisiologia, não estivesse tão carregado de complicações práticas e emocionais. Ivo, você
é entre todos nós o único que conheceu a experiência de ser pai.
-Sem dúvida alguma é insensato procurar neles uma imortalidade sub-rogada -respondeu o aludido.
-Ou qualquer outra coisa, não? Um filho poderia facilmente converter o castelo em um cassino, projetar um campo de golfe de nove fossas, voltar irrespirável o ar
com lanchas barcos a motor e esquis aquáticos, celebrar bregas bailes sabatinos para os aldeãos, a oito e cinqüenta por cabeça com jantar de três pratos, traje de
etiqucta
obrigatório, extras não incluídos.
-Falando de filhos -Clarissa olhou ao Ivo-, que novidades tem que os teus? Matthew segue vivendo na casa que ocuparam ilegalmente no Kensington?.
Cordelia viu que Ivo habia deixado o frango quase intacto a um lado do prato, e, embora deshacta os espinafres com o garfo, muito poucas chegavam a sua boca. Não
obstante,
habia bebido sem parar. A garrafa do clarete estava junto a ele e voltou a agarrá-la, somando contido à taça, que ainda estava enche em suas três quartas partes.
Levantou a vista em direção a Clarissa, os olhos faiscantes à luz da vela.
-Matthew? Suponho que segue com os Filhos do Sol ou como se chamam. Como não mantemos relações, não posso te responder. Por sua parte, Angela me escreve uma larga
e aborrecida carta filial todos os meses. Agora tenho duas netas, conforme me informa. Dado que ela e seu marido se negam a visitar um país no que poderiam encontrar-se
compartilhando a mesa com um negro e que me desgosta compartilhar a mesa com meu genro, não é provável que chegue às conhecer. Meu ex algema, em caso de que esteja
incluída em sua pergunta, vive com eles no Johannesburgo e parece encantada com o país, o clima, a companhia e a piscina em forma de rim.
Clarissa riu, com um leve retintín de triunfo.
-Não te estava pedindo uma história familiar, querido.
-Não? -disse Ivo com indiferença-. Pareceu-me o contrário.
Os comensais caíram em um silêncio que, para alívio da Cordelia, durou, com poucas interrupções, até o término do jantar; Munter abriu a porta, para que
as mulheres seguissem a Clarissa ao salão.
.
16.
Ivo não queria café nem licor mas se levou a salão a garrafa de clarete e sua taça; se apoltronó em uma poltrona, entre a chaminé e as portas vidraças abertas.
Não experimentava nenhuma responsabilidade social cn quanto ao resto da velada. O jantar tinha sido bastante desagradável e tinha a intenção de ficar serena
mas profundamente bêbado. Tinha escutado demasíado aos médicos: lhes jogue os remédios aos cães, eu não as quero. Obviamente o que precisava era beber
mais, não menos, e se podia ser vinho de primeira qualidade e a gastos do Ambrose, tão melhor. O desgosto consigo mesmo por ter permitido que Clarissa lhe provocasse
um acesso de ira começou a desvanecer-se sob a influência do vinho, ocupando seu lugar uma suave euforia em que sua mente se voltou extraordinariamente clara enquanto
os rostos e as palavras dos outros adquiriam uma dimensão diferente, de modo que podia vislumbrar seus gracejos com olhos irônicos, como fazia quando observava
a atores em um cenário.
Simon se estava preparando para tocar o piano, acomodando as partituras no suporte de livro com mão insegura. Por Deus, nada do Chopin seguido do Rachmaninov, pensou
Ivo.
E por que se inclinava Clarissa sobre o menino, disposta a voltar as páginas? Nem sequer sabia ler música. Se se tratava do prólogo de seu habitual sistema
de bondade e crueldade alternativas, terminaria voltando louco ao moço, como tinha feito com seu pai. Roma, com seu vestido de tafetán, que teria parecido muito
iuvenil em uma ingênua de dezoito ânus, estava rigidamente sentada no bordo de sua cadeira, como uma mãe em um concerto escolar. por que teria que lhe importar
como interpretava o moço? por que teria que imporrarle qualquer dos pressente? O nervosismo do Simon começou a transmitir-se a todos os reunidos. Mas
tocava melhor do que esperava Ivo, e em muito poucas ocasiões tentou encobrir algum engano mediante um ritmo muito rápido e o uso excessivo do pedal. Mesmo assim,
era muito semelhante a uma interpretação pública para resultar prazenteira; as peças habtan sido escolhidas para luzir sua técnica, a ocasião se voltou mais solene
pelo que todos desejavam. E durou muito. Ao concluir, Ambrose disse:.
-Obrigado, Simon. O que são, entre amigos, umas poucas notas equivocadas? Agora, as canções de antigamente.
O conteúdo da garrafa se reduziu a um quarto. Ivo se afundou mais profundamente no assento e deixou que as vozes chegassem a ele de uma enorme distancia.
Todos rodearam o piano para mugir sentimentais balidas vitorianas de salão. Ouviu a voz de contralto de Roma, invariavelmente atrasada e um tanto desafinada;
a diáfana voz de soprano da Cordelia, uma voz conventual, algo insegura mas poda e doce. Estudou a cara ruborizada do Simon inclinada sobre as teclas, a
olhar de intensa e exultante concentração. Tocava com mais segurança e sensibilidade que quando o tinha feito sem acompanhamento. Por uma vez, o menino desfrutava.
depois de uma meia hora, Roma se afastou do piano e se aproximou de observar os dois óleos do Frith, lotados tecidos anedóticos que mostravam viajantes que foram
em
trem ao Derby, em primeira e em terceira classe. Roma passava de um ao outro contemplando-os intensamente, como se queria verificar que nenhum detalhe de contraste
social ou na indumentária tinha sido omitido pelo artista. de repente, Clarissa deixou cair a mão que apoiava no ombro do Simon, passou junto ao Ivo majestuosamente
enquanto as gazes flutuavam em torno de seus joelhos, e saiu a terraço. Agora os únicos que cantavam eram Cordelia e Ambrose. Os três que ocupavam o piano
estavam vinculados por seu gozo, aparentemente desentendidos dos ouvintes, transportando e consultando-se, escolhendo, comparando e rendo a gargalhadas quando um
fragmento resultava estar além de seu alcance ou competência. Ivo só reconheceu algumas das canções: os pastiches isabelinos do Peter Warlock, "Brilhante
é o anel das palavras", do Vaughan Williams. Emprestou atenção com o mais próximo à felicidade que tinha conhecido desde que sua enfermidade fora diagnosticada.
Nietzsche estava equivocado: não é a ação a não ser o prazer o que ata à existência. E ele habá chegado a lhe temer ao prazer; admitir sequer a possibilidade do
agradar para seus murchos sentidos era o mesmo que abrir a mente à angústia e a pena. Mas de repente, ouvindo aquela doce voz combinada com a de barítono
do Ambrose e ondulando além dele por volta do mar, tornou-se para trás, leve, em um sonhado contente desprovido de amargura e de pesar. Gradualmente seus
sentidos começaram a formigar adquirindo vida. Cobrou consciência do sopro de ar que lhe chegava à cara da janela; nada tão violento como uma corrente:
a sensação apenas perceptível de um dedo acariciador, do vermelho vivo do vinho reluzente na jarra e sua suavidade na língua, do aroma de fogo de madeira, evocador
de perdidos outonos infantis.
Entopnces o encanto se quebrou. Clarissa entrou como uma tromba da terraço. Simon a ouviu e deixou de tocar em metade de um compasso. As duas vozes emitiram umas
poucas notas e se interromperam.
-- Ficarei farta de aficionados antes de que termrine o fim de semana sem necessidade de que vós três lhes somem à aporrinhação --sentenciou Clarissa--. Vou a
deitar. Simon, é hora de que dê por terminado o dia. Sairemos juntos, quero te acompanhar a seu quarto. Cordelia, chama o Tolly e lhe diga que a espero dentro de
quinze minutos, quero falar sobre os planos para amanhã. Ivo,tengo a impressão de que está bêbado.
Esperou estremecida de impaciência até que Ambrose lhe abriu a porta, e saiu com porte senhorial, detendo-se apenas para lhe oferecer a bochecha. Ambrose se inclinou
mas chegou muito tarde e seus lábios bicaram grotescamente o ar. Simon fez um cilindro com as partituras, com mãos trementes, passeou o olhar a seu redor
como pedindo auxílio e correu atrás dela. Cordelia se aproximou do cordão bordado que pendurava a um lado da chaminé. Roma disse:.
-Más notas para todos. Teríamos que ter sabido que estamos aqui para aplaudir o talento da Clarissa e não para exibir o nosso. Se pensa fazer carreira
como secretária-acompañante, Cordelia, terá que aprender a ser mais estratégica.
Ivo se deu conta de que Ambrose se inclinava sobre ele, percebeu suas bochechas avermelhadas, os olhos negros faiscantes e maliciosos sob os densos semicírculos.
-Está bêbado, Ivo? Noto-te muito calado.
-Acreditei está-lo, mas agora me parece que não. A sobriedade se deu procuração de mim. Mas se quer abrir outra garrafa, poderia reatar tão agradável processo. O
bom
caldo é uma amável criatura quando se usa corretamente.
-Não teria que manter limpa a mente para a tarefa de amanhã?.
Ivo lhe tendeu a garrafa vazia. Surpreendeu-lhe comprovar que sua mão se movia com perfeita estabilidade.
-Não se preocupe -disse-. Estarei o suficientemente sóbrio para o que tenho que fazer amanhã.
.
17.
Cordelia aguardou exatamente um quarto de hora, não aceitou a última taça que Ambrose lhe ofereceu e se encaminhou escada acima. A porta de comunicação entre seu
dormitório e o da Clarissa estava entreabrida e entrou sem chamar. Encontrou a Clarissa sentada ante seu penteadeira, com a bata de rasa cor nata. Tinha o cabelo
pacote
à nuca com uma cinta e uma diadema de braçadeira de luto separava a cabeleira da frente. Esquadrinhava seu rosto no espelho e não se voltou.
A habitação só estava iluminada pela luz brilhante do penteadeira e o reflexo, mais tênue, do abajur da mesinha de noite. Uns magros lenhos crepitavam
na churrasqueira, arrojando saltarinas sombras sobre a riqueza do damasco e a mogno. O ar cheirava a fumaça e perfume; a estadia, em penumbras e misteriosa, pareceu
a Cordelia mais pequena e luxuosa que à luz do dia. A cama, entretanto, era mais dominante que antes, ressaltando sob seu dossel escarlate, sinistra e prodigiosa
como um catafalco. Cordelia teve a certeza de que Tolly tinha andado por ali antes que ela. O embuço estava dobrado e a camisola da Clarissa tinha sido estendido,
com a cintura solta. Parecia uma mortalha. Na sombria meia luz lhe resultou fácil imaginar que estava no vão da porta de um dormitório do Amalfi, com
a já condenada duquesa do Webster, de fulgurante cabeleira, ante seu penteadeira, enquanto o horror e a corrupção espreitavam nas sombras e ao outro lado da janela
entreabierta um Mediterrâneo sem marés se abria à lua.
A voz da Clarissa interrompeu seus pensamentos.
-Ah, está aqui. despedi do Tolly para que possamos falar. Não fique aí parada. Busca lhe uma cadeira.
A cada lado da chaminé havia uma cadeira baixa, de respaldo em forma de colher e braços e patas esculpidos. Cordelia empurrou uma para frente sobre suas rodinhas
e se sentou à esquerda do penteadeira. Clarissa se olhou no espelho, desentupiu um pote de algodões desmaquilladores e começou a tirá-la sombra e o rimel. Magros
partes de tisú manchados de negro caíram sobre a polida mogno. O olho esquerdo, limpo de maquiagem, parecia reduzido, quase inánime, dotando a da máscara
de um palhaço com a cabeça inclinada. Clarissa se observou a pálpebra nua, franziu o sobrecenho e disse:.
-Parece ter desfrutado de esta noite. Devo te recorde que foste contratada como detetive e não como animadora de sobremesa.
O dia tinha sido comprido e Cordelia não conseguiu reunir a energia suficiente para indignar-se.
-Se você fosse sincera com eles e lhes dissesse por que estou aqui, provavelmente não me tratariam como uma convidada mais. Que eu saiba, não se conta com que os
detetives
privados cantem. É possível que nem sequer queriam comer comigo. Um detetive não é um agradável companheiro de mesa.
-Do que serviria isso? Se não te mesclar com eles, não poderá vigiá-los. Além disso, gosta aos homens. Já vi como lhe olhavam Ivo e Simon. Não finja que não
sabe. Detesto este tipo de afetação sexual.
-Não pensava fingir nada.
Clarissa agarrou um enorme pote de nata faxineira, lubrificou-se a cara e pescoço com generosidade, e a retirou com movimentos ascendentes do algodão. Engordurada-las
bolinhas descartadas se somaram à confusão do penteadeira. Cordelia se encontrou estudando o rosto da Clarissa com tanta intensidade como sua proprietária. Tinha
os olhos
muito separados; a pele era grosa e opaca, mas quase não tinha rugas; as bochechas eram chatas e largas; a boca, com seu lábio inferior franzido, resultava
muito pequena para ser formosa. Mas era um rosto capaz de adquirir encanto a vontade, e mesmo assim, sem realces e em repouso, continha a certeza de seu latente
e excêntrica beleza.
-O que opina da interpretação do Simon? -perguntou de repente.
-Não estou capacitada para julgar. É evidente que tem talento.
Esteve em um tris de adicionar que podia ter mais êxito como acompanhante que como solista, mas o pensou melhor. Era absolutamente certo: não estava capacitada para
julgá-lo. Além disso, teve a sensação de que, por ignorante que fosse, algum tipo de decisão dependia de sua resposta.
-Talento! Isso é algo corrente. Não se investem seis mil libras esterlinas ou algo assim pelo mero talento. O importante é saber se tiver guelra para alcançar
o êxito. George opina que não, mas terá que lhe dar a oportunidade.
-Sir George o conhece melhor que eu.
-Mas o dinheiro não é do George, verdade? -disse Clarissa em tom incisivo-. Consultarei-o com o Ambrose, mas não antes da função. Não posso me preocupar com nada
até então. Provavelmente condenará ao pobre menino. Ambrose é tão perfeccionista! Embora entenda de música. Seria melhor juiz que George. Se Simon houvesse
escolhido um instrumento de corda, em última instância poderia procurar um posto em uma orquestra. Mas o piano! Embora suponha que sempre poderia encontrar trabalho
como acompanhante.
Cordelia se perguntou se seria oportuno assinalar que o trabalho de um acompanhante profissional, longe de ser uma opção fácil, exigia uma formidável combinação
de
habilidade técnica e sentido musical, mas se recordou que não a tinham empregado para que desse conselhos sobre a carreira do Simon. Além disso, aquela conversação
sobre
o menino era uma perda de tempo.
-Parece-me que deveríamos falar sobre as mensagens e de nossos planos para o fim de semana, especialmente amanhã. Teríamos que havê-lo feito antes.
-Sei, mas não houve tempo, entre o ensaio e o alarde que fez Ambrose de seu castelo. De qualquer maneira, já sabe para que está aqui. Se aparecerem mais
mensagens, não quero recebê-los. Não quero que me mostre isso. Não quero nem me inteirar de sua existência. É vital que supere o dia de amanhã. Se pudesse recuperar
minha confiança como atriz, poderia confrontar virtualmente algo.
-Inclusive saber quem lhe está fazendo isto?.
-Inclusive isso.
-Quantas das pessoas que estão no castelo sabem algo das mensagens? -inquiriu Cordelia.
Clarissa tinha terminado de limpá-la cara e começou a tirar o esmalte das unhas. O aroma de acetona dominou o do perfume e a maquiagem.
-Tolly sabe. Não tenho secretos para ela. De todos os modos, estava comigo no camarim quando o porteiro me entregou alguns, os que me enviaram por correio ao
teatro. Suponho que Ivo estará informado: no West End não ocorre nada sem que chegue a seus ouvidos. E Ambrose. Estava em meu camarim do Duque of Clarence quando
passaram um por debaixo da porta. Recolheu-o, abri-o e quando aparecemos em corredor o encontramos deserto. Claro que qualquer poderia ter entrado. Os
camarins do Clarence são como conejeras e Albert Betts bebia muito e não sempre estava na porta quando devia. Já lhe puseram que patinhas na rua, mas
ainda trabalhava ali quando enviaram a nota. Meu marido sabe, é obvio. Simon o ignora, a menos que Tolly o haja dito, embora não vejo por que haveria
de fazê-lo.
-E sua prima?.
-Roma não sabe, e se soubesse não lhe importaria.
-me fale dela.
-Não há muito que dizer e o pouco que há é aborrecido. Somos primas carnais, embora suponha que George já lhe haverá isso dito. É uma história bastante comum. Meu
pai fez um matrimônio como correspondia; seu irmão menor se fugiu com uma garçonete, abandonou o exército, bebeu como um velhaco e fez de sua vida um verdadeiro
desastre, e depois confiou em que papai lhe tirasse as castanhas do fogo. E por certo que o fez, ao menos no que a Roma se refere. De menina sempre estava com
nós, sobre tudo depois da morte de meu tio. Era a pobre huerfanita! Taciturna, mal vestida e eternamente desventurada. Nem sequer papai podia suportá-la
muito tempo. Ele era uma pessoa maravilhosa e eu realmente o adorava. Mas a pobre Roma era uma verdadeira boba sem o menor atrativo, pior que agora. Papai
era uma dessas pessoas que não suportam a fealdade, especialmente nas mulheres. Amava a alegria, o engenho, a beleza. Era incapaz de lhe dirigir o olhar a
um rosto ordinário.
Cordelia pensou que papaíto, ao parecer um pomposo farsante pago de si mesmo, devia ter acontecido a maior parte de sua vida com os olhos fechados, dependendo,
é obvio, de qual fora seu critério sobre a fealdade.
-E não foi nada agradecida -adicionou Clarissa.
-Teria que havê-lo sido?.
Clarissa pareceu perceber que a pergunta merecia certa consideração, ao menos a que pudesse lhe escamotear à tarefa de limá-las unhas.
-É obvio. Ele não tinha nenhuma obrigação de carregar com a menina. E suponho que não esperaria que a tratasse como a mim, sua própria filha.
-Podia havê-lo tentado
-Isso não é razoável e você sabe. Você não o faria, de modo que não vejo por que teria que havê-lo feito ele. Acredito que debos te cuidar se não querer te converter
em
uma escrupulosa. Aos homens não gosta de nada a gazmoñería.
-A mim tampouco -esclareceu Cordelia-. Alguém me disse uma vez que é o resultado de ter tido um pai ateu, uma educação conventual e uma consciência inconformista.
produziu-se um silêncio, embora não insociável. Logo Cordelia disse impulsivamente:.
-Essas notas... poderiam ter algo que ver com a senhorita Tolgarth?.
-Tolly! Claro que não. Como te ocorre semelhante ideia? Adora-me. Não deve te deixar enganar por suas maneiras. Sempre foi assim. Mas estivemos juntas desde
que eu era uma menina. Tolly me é leal. Se não ser capaz de vê-lo, não é uma grande detetive. Além disso, não sabe escrever a máquina. Se por acaso não te deste
conta, todos
as mensagens foram datilografados.
-Teria que me haver contado o de sua filha -disse Cordelia em tom grave-. Se tiver que ajudá-la, preciso saber tudo o que possa ser pertinente.
Aguardou com certa apreensão a resposta da Clarissa. Mas suas mãos, abismadas na tarefa de embelezar-se a si mesmos, não titubearam.
-Isso não é pertinente. Foi um engano e Tolly sabe. Todo mundo sabe. Suponho que lhe contou isso Ivo. Muito típico de sua malícia e deslealdade. Não te dá conta
de que está doente? está morrendo! E o devoram o ciúmes. Sempre esteve ciumento. Sempre foi ciumento e malvado.
Cordelia pensou que deveria ter exposto a questão com mais tato, inclusive que tinha sido uma insensatez expô-la. Ivo não lhe tinha pedido que guardasse o segredo
da conversação, mas provavelmente esperava certa reserva. O fim de semana prometia ser bastante complicado já, sem necessidade de instigar a um convidado
contra outro. Nunca lhe tinha resultado fácil mentir abertamente mas disse com soma cautela:.
-Ninguém foi desleal. É obvio, fiz algumas averiguações antes de vir aqui. A gente fala destas coisas. Tenho um amigo no mundo do teatro. -Era
bastante certo, embora o pobre Bevis estava acostumado a estar mais tempo fora que dentro do mundo.
Clarissa não mostrou o menor interesse por seus amigos do teatro.
-Me gustaria saber que direito tem Ivo a me criticar. Dá-te conta de quantas carreiras arruinou com sua crueldade? Sim, crueldade! Vi a atores, atores
repito-te, feitos muito lágrimas depois de ler uma de suas resenhas. Se tivesse contido o impulso de ser engenhoso, poderia ter sido um dos grandes críticos
britânicos. Poderia ter sido um segundo Agate ou um Tynan. E o que é agora? Um homem que vai para a morte por seu próprio pé. Não tem nenhum direito a estar aqui,
com esse aspecto. É o mesmo que compartilhar a mesa com uma caveira. É indecoroso.
Era interessante, pensou Cordelia, a forma em que a morte tinha substituído ao sexo como grande tabu, que debia negar-se em perspectiva, suportar-se em uma discreta
intimidade, preferivelmente detrás das cortinas jogadas de uma cama de hospital, e seguida por um duelo sóbrio. Debia reconhecer, em favor do Convento do Menino
Deus, que a visão das irmãs sobre a morte habra sido explícita, firmemente sustentada e não de tudo tranqüilizadora, mas ao menos não a habian considerado
de mau gosto.
-As primeiras mensagens, os que chegaram quando você interpretava a lady Macbeth e que jogou no lixo, eram iguais aos últimos, datilografados em papel
branco?.
-Acredito que sim. Foi faz tanto tempo!.
-Mas não pode havê-los esquecido.
-Têm que ter sido iguais. Que importância tem? Não quero falar disso agora.
-Possivelmente não tenhamos outra oportunidade. Não pude vê-la a sós em todo o dia, e amanhã não será mais fácil.
Agora Clarissa estava de pé, passeando-se entre o penteadeira e a cama.
-Eu não tive a culpa. Eu não a matei. Não estava bem atendida. Se o tivesse estado não habria sofrido aquele acidente. Que sentido tem trazer um filho ao mundo,
e para cúmulo ilegítimo, se não o cuidar?.
-Acaso Tolly não estava trabalhando, cuidando-a a você?.
-O hospital não tinha nenhum direito a telefonar alterando ao meio mundo. Sua obrigação era saber que chamavam um teatro, que no West End o pano de fundo se levanta
às oito, que nos interromperiam em metade de uma função. Se a tivesse deixado ir, não teria podido fazer nada. A menina estava inconsciente e não a teria reconhecido.
Sentar-se ao lado de uma cama a esperar a que alguém mora é algo sentimental e morboso. Do que serve? Eu tinha três mudanças de roupa no terceiro ato. Kalenski
desenhou pessoalmente o vestuário do banquete: deslumbrantes jóias, uma coroa engastada com grandes pedras vermelhas como sangue, uma saia tão rigida que apenas
podia me mover. Desenhou-a assim a propósito, para que o peso me fizesse caminhar rígida como uma menina sobrecarregada. "Pensa que é uma princesa do século dezessete
que tem que suportar, perplexa, uma imprópria majestade", disse-me. Essas foram suas palavras, e me manteve todo o tempo baixando as mãos pelos flancos da saia,
para dar a impressão de que nem eu mesma podia acreditar que levasse realmente tanta riqueza. É obvio, era um maravilhoso contraste com o singelo vestido reto
cor nata da cena do sonambulismo. Não era uma camisola, pois ao parecer dormian nus. Eu o usava para me limpar as mãos. Kalenski decia: "Mãos, querida,
mãos, mãos, só de mãos trata esta parte". Uma interpretação original, naturalmente. Eu não era o tipo habitual de lady Macbeth, alta, dominante, desumana;
interpretei-a como a uma gatita em zelo com as unhas ocultas.
Uma original interpretação do papel, pensou Cordelia, e sem dúvida não de tudo acorde com o texto. Embora possivelmente ao Kalenski, como outros diretores shakespearianos,
não lhe preocupasse isso.
-Mas era fiel ao texto? -perguntou.
-A quem lhe importa o texto, querida minha? Não quero dizer exatamente isso, mas Shakespeare é como a Bíblia: pode lhe fazer dizer algo. Por isso os
diretores o adoram
-me fale do filho.
-O filho do Macduff? Fez-o Desmond Willoughby, um pirralho intolerável, com um espantoso acento barriobajero. Hoje é impossível encontrar a um menino ator que saiba
pronunciar. Além disso, era muito major para o papel. Graças a Deus não tive que aparecer com ele em nenhuma cena.
Um texto bíblico ocupou a mente da Cordelia, um texto brutalmente explícito em seu significado, mas não o expressou em voz alta:.
A quem escandalise a uma destas criaturas que acreditam em mim, mais lhe valeria que lhe atassem uma roda de moinho ao pescoço e lhe jogassem nas profundidades do
mar.
Clarissa se voltou e a olhou. Algo no rosto da Cordelia deveu ferir seu narcisismo, e gritou:.
-Não te pago para que me julgue! por que me olha com essa cara?.
-Não a estou julgando. Quero ajudá-la, mas tem que ser sincera comigo.
-Estou sendo sincera, tanto como posso. Quando te vi por prímera vez aquele dia em casa do Nettie Fortescue, soube que podia confiar em ti, que foi uma pessoa com
quem podia falar. É degradante ter tanto medo. George não o entende e não poderia entendê-lo, pois nunca temeu a nada em sua vida. Acredita que sou uma neurótica.
Só foi verte porque o obriguei.
-por que não o fez você?.
-Pensei que era mais provável que aceitasse o trabalho se lhe propunha isso ele. Eu não gosto de lhe pedir favores a ninguém. E aquele dia tinha uma prova de vestuário.
-Não se tratava de um favor. Eu necessitava o trabalho. Provavelmente teria aceito quase algo que não fora ilegal e não me repugnasse.
-Sim, George me há dito que seu escritório é bastante pobretona. Não, patética mais que pobretona. Mas você não o é. Em tí não há nada pobretón nem patético. Não
haveria
suportado à espécie habitual de detetive de sexo feminino.
Cordelia inquiriu, brandamente:.
-A que lhe teme em realidade?.
Clarissa a olhou aos olhos; sua cara apenas brilhante, poda e descolorida parecia pela primeira vez, em toda sua nudez, vulnerável à idade e ao pesar; esboçou
um triste sorriso, levantou as mãos no ar, em um eloqüente gesto de desespero.
-Não sabe? Cres que George lhe havia isso dito. À morte. A isso temo. Só à morte. Uma estupidez, não? Sempre lhe tive medo, inclusive de menina. Não sei
quando começou, mas conheci a realidade da morte antes de conhecer a da vida. Não recordo nenhum momento em que não visse a caveira sob a pele. Não existiu
nada traumático que o desencadeasse. Não me obrigaram a olhar a minha babá morta em seu ataúde, nem nada semelhante. Quando morreu mamãe, eu estava na escola, e
não
significou nada para mim. Não se trata da morte dos outros. Não é o fato da morte. Tenho-lhe medo a minha própria morte. Não todo o tempo nem em todo momento.
Às vezes passam semanas inteiras sem que pense nisso. Depois chega, geralmente de noite; apresentam-se o pavor e o espanto e o conhecimento de que o medo
é real. Refiro-me a que ninguém pode dizer "não se preocupe, que possivelmente nunca ocorra", ninguém pode dizer "é sua imaginação, querida, em realidade não existe".
Não
sei descrever esse temor, não sei dizer como é, quão terrível é. Aparece em um ritmo, onda detrás onda de pânico arrasando meu corpo em uma espécie de dor. Deve
ser
como dar a luz, exceto eu não dou vida, que tenho à morte entre as pernas. Às vezes levanto a mão, assim, a Miro e penso: aqui está, forma parre de mim.
Posso tocá-la com a outra mão, movê-la, esquentá-la, cheirá-la e lhe pintar as unhas. Mas um dia pendurará branca e fria e insensível e inútil, e também eu serei
todas
essas coisas. Depois se apodrecerá. E eu me apodrecerei. Nem sequer posso beber para esquecer. Outros podem fazê-lo, e desse modo suportam a pena. A mim beber me
adoece.
Não é justo que tenha que experimentar este terror e não possa beber! Agora que lhe hei isso dito, pode dizer que sou estúpida, morbosa e covarde. Pode me desprezar.
-Não a desprezo -disse Cordelia.
-E não serve de nada dizer que teria que acreditar em Deus. Não posso. E embora acreditasse, não seria nenhum consolo. Tolly se converteu depois da morte do Viccy,
e suponho que tem fé. Mas se alguém dissesse ao Tolly que vai morrer amanhã, estaria tão pouco disposto como eu a deixar este mundo. É uma característica que
notei nos crentes: estão tão assustados como o resto dos mortais. aferram-se à vida. Em teoria, aguarda-lhes um céu, mas não têm a menor pressa
em chegar. Talvez seja pior para eles, que acreditam no julgamento final, no inferno e a condenação eterna. Ao menos, eu só lhe temo à morte. Acaso não a
temem todos? Não a teme você?.
Cordelia se perguntou se temia à morte. Às vezes. Mas o medo a morrer era menos urgente que as preocupações mundanas: o que ocorreria quando vencesse o
contrato do Kingly Street?, passaria o Mini a inspeção técnica?, como faria para olhar à cara à senhorita Maudsley se a agência se ia a rivalidade? Possivelmente
só os triunfadores e os ricos podiam permitir o luxo de sentir um doentio temor a morrer. A maioria dos humanos necessitavam de todas suas energias para
encarar a vida. Disse, prudentemente, sabendo que não podia lhe oferecer nenhum consolo:.
-Não me parece razoável lhe ter medo a algo que é inevitável e universal e que, de qualquer maneira, não poderei experimentar.
-Justas palavras! Mas só significam que é jovem, que está sã e que não tem que pensar na morte. É estar tendida em uma fria cavidade e te apodrecer.
Isso dizia uma das mensagens.
-Sei, li-o.
-Tenho outro para que o adicione à coleção. Guardei-o para ti. Chegou por correio ao piso de Londres ontem pela manhã. Encontrará-o no fundo por mim
joalheiro. Está sobre a cômoda da esquerda.
A indicação quanto ao lugar era desnecessária; apesar da tênue luz e da desordem da mesinha, o reluzente cofre era um objeto que monopolizava o olhar.
Cordelia tomou em suas mãos. Media uns vinte centímetros por doze, tinha patas como garras, delicadamente forjadas, a tampa e os flancos esculpidos em relevo,
com uma representação do julgamento de Paris. Deu volta à chave: o interior estava forrado em seda acolchoada, de cor nata.
-Ambrose me deu isso quando cheguei, é um presente para me desejar boa sorte na representação de amanhã -disse Clarissa-. Me encapriché dele quando o vi faz seis
meses, mas me levou tempo obter que compreendesse a mensagem. Ambrose tem tantas quinquilharias vitorianas, que uma menos não pode supor nada para ele. O cofre
que usamos no terceiro ato também lhe pertence, como a maioria dos acessórios. Mas este é mais bonito. Além disso é mais valioso, embora não tanto como o que
guardo dentro. Encontrará a carta no caixote pequeno secreto. Em realidade, não tão secreto. Basta com que pressões o centro de uma das folhas. Se te fixar bem,
verá a linha que o marca. alcance-me isso Mostrarei-te como se faz.
O cofre era surpreendentemente pesado. Clarissa retirou seu punhado de colares e braceletes como se fossem bagatelas de fantasia. Cordelia pensou que provavelmente
algumas peças o eram: brilhantes conta de pedras de cores e vidro entrelaçadas com o brilho de autênticos diamantes, as safiras, a leitosa lisura de
as pérolas. Clarissa apertou o centro de uma das folhas que decoravam o flanco, e um cajoncillo da base se abriu lentamente. Dentro Cordelia viu, em primeiro
lugar, um recorte de periódico, dobrado. Clarissa o tirou e explicou:.
-Fiz o papel do Hester em uma reposição de "O profundo mar azul", do Rattigan, no teatro Speymouth. Foi em 1977, ano aposentar, que Ambrose passou em seu exílio
fiscal. Agora o teatro foi enclausurado. Mas parece que gostaram. De fato, provavelmente este seja o comentário mais importante que me tenham dedicado em toda
minha vida.
Desdobrou o papel e Cordelia viu o titular: "Clarissa Lisle triunfa na reposição do Rattigan". Sua mente reparou apenas um segundo em quão estranho era que Clarissa
concedesse tanta importância à crônica de um reestreno em uma pequena cidade de províncias e notou, quase inconscientemente, que o recorte tinha uma forma estranha
e era maior que o espaço ocupado pela crítica. Seu interesse se centrou na carta. O sobre era idêntico ao que lhe tinha entregue a senhora aquela Munter
amanhã, mas o domicílio tinha sido datilografado em um máquina distinta e evidentemente mais velha. O matasello era de Londres, estava datado dois dias atrás,
e ao igual ao anterior o tinham dirigido à duquesa do Malfi, embora ao gestos da Clarissa no Bayswater. No interior estava a habitual folha de papel
branco com seu negro desenho de um ataúde e as siglas R.I.P. Debaixo aparecia uma entrevista da obra:.
Quem tem que me matar?) Considero este mundo um tedioso teatro,) pois devo desempenhar nele um papel contrário a minha vontade)).
-Não parece muito adequado -comentou Cordelia-. Lhe devem estar esgotando as entrevistas pertinentes.
Clarissa se tirou a diadema de um puxão. Do espelho, seu reflexo contemplava a ambas: uma expressão fantasmal debaixo de um arbusto de cabelo claro despenteada,
os
grandes olhos preocupados baixo os pesadas pálpebras.
-Possivelmente sabe que não necessitará muitas mais. Só fica o dia de amanhã. Talvez saiba, melhor que ninguém, que manhã todo terá terminado.
.
TERCEIRA PARTE
O SANGUE FLUI PARA CIMA.
18.
Cordelia dormiu profundamente e mais do que esperava. Despertou uma suave chamada à porta. Saltou da cama, jogou-se a bata sobre os ombros e abriu. Era
a senhora Munter, com o chá. Cordelia se tinha proposto esperá-la levantada, pois não desejava que a encontrasse dormindo detrás de uma porta fechada com chave,
como se confundisse o castelo do Courcy com um hotel. Mas se a senhora Munter se surpreendeu por sua excentricidade, não o demonstrou; deixou a bandeja sobre a mesinha
de noite, deu-lhe os bom dia em voz baixa e se retirou tão discretamente como tinha chegado.
Eram as sete e meia. Na habitação flutuava a imprecisa meia luz do amanhecer. Cordelia apareceu à janela e viu que o céu começava a vetearse de tons
claros, que sobre o jardim flutuava a névoa, frisando-se como fumaça entre as taças das árvores. Seria outro dia esplêndido. Não havia sinais de fogo, mas a
atmosfera continha a fumegante e outonal fragrância da madeira queimada; ao fundo a grande massa de água marinha ondeava, cinza e prata, como exsudando uma misteriosa
luz.
deslizou-se até a porta do dormitório contigüo e a abriu sigilosamente. Era pesada mas não rangeu. As cortinas estavam jogadas, mas desde seu quarto chegava
suficiente luz para ver a Clarissa ainda dormida, com um níveo braço ao redor do travesseiro. Cordelia se aproximou nas pontas dos pés à cama e permaneceu imóvel
escutando
sua serena respiração. Sem saber exatamente por que, experimentou uma sensação de alívio. Em realidade. em nenhum momento tinha acreditado que a vida da Clarissa
estivesse
ameaçada. Além disso, suas precauções contra qualquer perigo tinham sido minuciosas. Tinha fechado com chave as duas portas que davam ao corredor, as deixando postas
nas fechaduras. Embora alguém possuísse uma cópia, não tinha forma de entrar. Não obstante, para tranqüilizar-se necessitou da pacífica respiração da Clarissa.
Então divisou o papel, um retângulo pálido que ressaltava sobre o tapete: tinham enviado outra mensagem, deslizando-o debaixo da porta. Em conseqüência, o
responsável estava na ilha. Sentiu que lhe encolhia o coração. recuperou-se imediatamente, zangada consigo mesma por não ter pensado na possibilidade de uma
missiva passada por debaixo da porta, zangada por causa de seu próprio medo. Recolheu o papel e o levou a seu quarto, fechando a porta a suas costas.
Era outro parágrafo de "A duquesa do Malfi", apenas oito palavras rematadas por uma caveira.
O ato se consuma:) vim a te matar)).
A forma era a mesma; o papel, diferente. Aquela mensagem tinha sido escrito a máquina no dorso de uma antiga gravura de madeira que levava por título "Mensageira
Benjamima da Mortalidade". Debaixo aparecia a brutal figura da morte com um relógio de areia e uma flecha, seguida por quatro versos.
Tragou o chá, ficou as calças e a camisa e correu a procurar o Ambrose. Em realidade não abrigava a esperança de lhe encontrar acordado tão cedo, mas ele
já estava na salita de cafés da manhã, com uma taça de café na mão, a vista fixa no jardim. Era um dos aposentos que Cordelia tinha visto no fugaz percurso
da sexta-feira, com todos os móveis e acessórios desenhados pelo Godwin. Havia uma singela mesa de refeitório com um jogo de cadeiras de respaldo impregnado; uma
das
paredes oblongas estava totalmente coberta por um conjunto de aparadoras e prateleiras abertas, deliciosamente trabalhados em madeira ligeira e coroados por um friso
azulejado no que laranjeiras em brilhantes vasos azuis alternavam com cenas românticas da lenda do rei Arturo e a Tabela Redonda. na sexta-feira Cordelia
tinha-o visto como um interessante exemplo do viraje do arquiteto para a simplicidade do movimento estético, mas agora seu tímido encanto se diluiu.
Para ouvi-la entrar, Ambrose se voltou e lhe sorriu:.
-bom dia. Parece que teremos sorte com o tempo. Os convidados chegarão com luz de dia e retornarão sem perigo de ter que abandonar seu jantar. A travessia
pode ser traiçoeira com mau tempo. despertou nossa primeira dama?.
-Ainda não.
Cordelia adotou uma decisão repentina: não podia prejudicar a ninguém dizer-lhe a ele. A gravura em madeira provinha, quase com certeza, de seu castelo. Clarissa
o
tinha comunicado que Ambrose já estava informado das mensagens anônimas. Além disso, a atriz era sua convidada. O que Cordelia queria, por cima de tudo, era observar
a reação do Ambrose quando visse o bilhete. A alcançou e lhe disse:.
-Esta manhã encontrei isto, que alguém passou por debaixo da porta do dormitório da Clarissa. É dele? Em caso afirmativo, informo-lhe que está quebrado. Olhe-o
do outro lado.
Ambrose o estudou brevemente e guardou silêncio um instante.
-De modo que as mensagens seguem chegando -comentou a seguir-. Suspeitava-o. Viu-o? -Não teve necessidade de esclarecer a quem se referia.
-Não, nem o verá.
-Muito sensato por sua parte. Devo entender que a supressão deste tipo de moléstias é um de seus deveres de secretária- acompanhante?.
-É um de meus deveres. Agora bem, é dele ou não?.
-Não. É interessante mas não corresponde a meu período.
-Mas esta é sua casa e Clarissa Lisle sua hóspede.
Ambrose sorriu e se aproximou do aparador.
-Café? -inclinou-se sobre o calientaplatos, serve-lhe uma taça e voltou a encher a sua. Logo prosseguiu-: Aceito a crítica implícita. É indubitável que meus convidados
têm direito a não ser importunados nem ameaçados sob meu próprio teto. Mas, o que me sugere que faça? Não sou polícia. Não posso interrogar a outros hóspedes,
atitude que, à margem de um fracasso seguro, só daria como resultado seis pessoas ofendidas, em lugar de uma. Duvido que Clarissa me agradecesse isso. Por outro
lado,
desculpe-me, mas, não se está tomando isto muito a sério? Admito que é uma brincadeira pesada e de mau gosto. Mas é algo mais que uma brincadeira? Estou seguro de
que
a melhor resposta a este tipo de tolice é um silêncio digno, inclusive certo desdém. Clarissa é atriz. Teria que estar em condições de simular uma resposta
ou a outra. Se na ilha há alguém que tenta estragar sua atuação, breve renunciará se Clarissa demonstrar uma total indiferença.
-Isso é o que fará, ao menos até depois da função. Não verá isto. Posso confiar em que não o dirá?.
-Naturalmente. Tenho um grande interesse no êxito da Clarissa, recorde-o. Por acaso, não o terá posto você mesma?.
-Não.
-Já me parecia. Perdoe meu interrogatório, mas compreenda minha situação. Se não foi você, provavelmente tenha sido seu marido..., se não fora porque não se encontra
aqui neste momento; seu enteado, sua prima, sua fiel garçonete ou um de seus mais velhos amigos. Quem sou eu para sondar essas relações familiares e de larga data?
A propósito, essa gravura pertence a Roma.
-A Roma! Como sabe?.
-Acaba de falar você com a violência de uma professora de escola. Como saberá, Roma se dedicou ao ensino. Geografia e esportes, conforme me contou Clarissa.
É uma estranha combinação. Não consigo imaginar a Roma com o apito na boca, ofegando pelo campo de hóquei e exortando a suas garotas a realizar maiores esforços,
ou mergulhando-se na parte profunda da piscina. Bom, possivelmente possa imaginar isto último. Tem as costas llamativamente musculadas.
-O que opina da gravura em madeira?.
-Disse-me que o encontrou em um livro de segunda mão e pensou que podia me interessar. Ontem me mostrou isso, justo antes do ensaio. Deixei-o em cima do secante
de meu escritório,
no despacho.
-Onde qualquer podia vê-lo e agarrá-lo?.
-Parece você um detetive. Como diz, onde qualquer podia vê-lo e agarrá-lo. A propósito, parece que a mensagem foi escrito em minha máquina, que também está em
meu escritório.
Ao menos seria fácil verificar os tipos. O melhor seria fazê-lo em seguida. Mas antes de que tivesse a oportunidade de propô-lo, Ambrose acrescentou:.
-Há algo mais. Desculpe se o considero mais fastidioso que os anônimos da Clarissa. Alguém tem quebrado a fechadura da vitrine que está ao outro lado da porta
do despacho e se levou o braço de mármore. Se atendendo a suas obrigações de secretária-acompañante se inteira de quem foi, agradeceria-lhe que lhe sugerisse
deixá-lo outra vez em seu lugar. Admito que não é do gosto de todos, mas eu lhe tomei carinho.
-O braço da princesa real? -assombrou-se Cordelia-. Quando notou seu desaparecimento?.
-Munter diz que estava na vitrine quando ontem lhe jogou a chave. Isso foi dez minutos depois de meia-noite. Abriu-o esta manhã, pouco depois das seis, mas
não observou o interior da vitrine, embora acredita que se o braço não tivesse estado em seu sítio, lhe teria chamado a atenção. Mas não pode estar seguro. Fui eu
quem se deu conta de que faltava e que tinham forçado a fechadura, quando me dirigia para a cozinha para preparar o chá, antes das sete.
-Não pode ter sido Clarissa -afirmou Cordelia-. Estava dormida quando me levantei esta manhã. Além disso, duvido que tenha força suficiente para romper uma fechadura.
--Não se necessita muita força. Basta tendo um corta-papel robusto. Precisamente, havia um corta-papel robusto sobre o escritório de meu escritório.
-O que pensa fazer? -quis saber Cordelia.
-Nada, ao menos até depois da representação, embora não vejo no que pode afetar isso a Clarissa. Sou eu quem perde, não ela. Mas me parece que você prefere
que não se inteire.
-Acredito que é fundamental que não saiba. Algo poderia alterá-la. Temos que abrigar a esperança de que ninguém mais note a falta do braço.
-Se alguém a nota, posso dizer, suponho, que o retirei porque Clarissa o encontrava muito desagradável. É humilhante ter que mentir sem necessidade, mas
se você considerar importante que Clarissa não saiba..... .
-Assim é. Muito importante. Agradecerei-lhe que não diga nem faça nada até depois da função.
Então ouviram pisadas em firmes e velozes no estou acostumado a ladrilhado. voltaram-se simultaneamente para fixar a vista na porta. Ante seus olhos apareceu sir
George
Ralston, com casaco de tweed e uma maleta na mão.
-Ontem a reunião acabou muito tarde. Conduzi quase toda a noite e dormi em uma hospedaria da estrada -explicou o recém-chegado-. Pensei que a Clarissa gostaria que
se me era possível fizesse ato de presença.
-Como chegaste à ilha? -perguntou Ambrose-. Não ouvi a chegada de nenhuma lancha.
-Encontrei a um par de pescadores madrugadores. Deixaram-me na baía pequena e tive que me molhar os pés, mas não me ocorreu. nada pior. Faz mais de duas horas que
cheguei mas não queria incomodar. Isso é café?.
Muito pensamentos assaltaram a mente da Cordelia. Seguia sendo necessária? Não podia perguntar-lhe diretamente a sir George em presença do Ambrose. Oficialmente,
estava na ilha como secretária da Clarissa, e não era verossímil que seu trabalho se visse afetado pela repentina aparição do marido.
E seu dormitório? O mais provável era que sir George queria estar junto a sua esposa. Consciente de que devia parecer menos que agradada ao vê-lo e de que
Ambrose a observava com um olhar sardônico em que reconhecia seu desconcerto, murmurou uma desculpa e desapareceu.
Clarissa se revolvia na cama, embora Tolly ainda não lhe tinha levado o café da manhã. Cordelia correu as cortinas e abriu o ferrolho. Permaneceu de pé junto à
cama até que Clarissa abriu os olhos e então disse:.
-Acaba de chegar seu marido. Aparentemente, a reunião terminou antes do previsto.
Clarissa levantou a cabeça do travesseiro.
-George? Isso é ridículo! Não o esperávamos até última hora da noite, ao menos.
-Pois está aqui.
Cordelia pensou que tinha feito bem em lhe advertir a Clarissa a chegada de seu marido. Sir George não se habria sentido adulado por sua forma de receber a notícia.
incorporou-se, com o olhar fixo ante si e o rosto inexpressivo.
-Tira desse cordão, quer? -disse uns segundos depois-. que está ao lado da chaminé. É hora de que Tolly me sirva o chá.
-Parece-me que agora já não me necessita.
A voz da Clarissa soou aguda, quase assustada:.
-Claro que te necessito! Que diferença há entre agora e antes? Sabe muito bem para que está aqui. Se alguém vier a me buscar, não se deterá porque George haja
vindo.
-Se quer posso trocar de habitação.
Clarissa se levantou e se dirigiu ao quarto de banho.
-Não seja ingênua, Cordelia! Fique onde está. lhe diga ao George que se quiser lombriga já estou acordada.
Cordelia decidiu esperar no dormitório até que chegasse Tolly com o chá. Se podia evitá-lo, entre esse momento e o de levantar o pano de fundo não haveria um só
minuto
em que Clarissa carecesse de amparo.
Clarissa saiu do quarto de banho e voltou a meter-se na cama. -antes de que chegue a senhorita Tolgarth, podria me dizer qual é o programa de hoje? -inquiriu
Cordelia.
-Não sabe? Acreditei que lhe o habia explicado tudo. O pano de fundo se levantará às três e meia. Ambrose disporá o almoço cedo, ao redor de meio-dia, e eu
descansarei aqui sozinha, da uma até as três menos quarto. Eu não gosto de acontecer muito tempo em meu camarim antes de uma função. Pode despertar às dois
e quarenta e cinco, momento em que decidiremos o que quero que faça durante a representação, se é que quero que faça algo. A lancha irá procurar ao grupo de
Cottringham ao Speymouth. Devem chegar aqui às duas e meia ou pouco depois. contrataram uma lancha maior para os convidados, que chegará às três. Tomaremos
o chá no entreato, às quatro e meia, sob a arcada, se a temperatura o permitir, e o jantar às sete e meia, na grande sala. As lanchas de volta
estão citadas para as nove.
-E pela manhã? Que projetos há para as três horas compreendidas entre o café da manhã e o almoço? Acredito que teríamos que tratar de estar juntas.
-Todos estaremos juntos. Ambrose sugeriu uma excursão ao redor da ilha na "Shearwater", mas lhe hei dito que não somos um de seus grupos de turistas do verão
a cinco libras por dia. Me ocorreu algo melhor. No Courcy há coisas que ainda não nos mostraram. Não tema, que não te aborrecerá. Começaremos por uma visita
às caveiras do Courcy.
-As caveiras do Courcy? Quer dizer que há caveiras de verdade no castelo?.
Clarissa soltou uma gargalhada.
-São reais e estão na cripta da igreja. Ambrose recitará a famosa lenda. A visita porá a todos a tom para os horrores do Amalfi.
Chegaram simultaneamente sir George e Tolly com a bandeja. O homem foi bastante bem recebido. Clarissa estendeu seu lânguido braço. Ele se levou a mão aos
lábios, inclinou-se com um movimento rígido e desajeitado, e apoiou apenas sua cara na dela.
-Que encantador, querido! -gritou Clarissa com voz aguda e frágil-. foi muito inteligente por sua parte encontrar a alguém que te trouxesse.
Sir George não olhou a Cordelia. Disse com voz rouca:.
-Está bem?.
-É obvio, querido. Pensou que não o estava? Que comovedor! Como verá, ainda está aqui a duquesa do Malfi.
Cordelia os deixou. perguntou-se se sir George encontraria a oportunidade de falar a sós com ela e, em tal caso, se devia lhe falar da gravura em madeira passado
por debaixo da porta. Ao fim e ao cabo, era ele quem a tinha contratado. Mas quem lhe pagava para que a protegesse era Clarissa. Algo instintivo lhe aconselhou
guardar silêncio, ao menos até depois da função. Então recordou o braço de mármore desaparecido. Com a surpresa da chegada de sir George, tinha-o esquecido.
Mas agora sua pálida imagem ocupou seus pensamentos com a sinistra força de um presságio. Não devia ao menos comunicar a sir George que a peça tinha desaparecido?
Mas contra o que lhe alertaria? Só se tratava da cópia esculpida da extremidade de um bebê, de uma princesa morta muito tempo atrás. Que dano podia lhe fazer
a ninguém? por que conter em seus rechonchos dedos tão prodigioso poder? Nem sequer conseguia explicar-se a si mesmo por que motivo considerava tão importante que
Clarissa não se inteirasse da sustracción, exceto porque o mármore lhe tinha repugnado e sua só menção podia perturbá-la. comportou-se corretamente lhe pedindo
ao Ambrose que não dissesse nada, ao menos até depois da representação? Acreditava que sim. Em tal caso, para que mencionar-lhe a sir George? Ele nem sequer o havia
visto. Haveria tempo suficiente para dizer-lhe a todos quando Ambrose começasse a fazer averiguações depois da função, o que ocorreria aquela mesma noite.
Só era necessário esperar a que terminasse a jornada. Teve consciência de que não discorria com toda claridade.
Um pensamento em particular a surpreendeu e preocupou. Sem dúvida alguma, a presença do marido da Clarissa na ilha tinha que facilitar seu trabalho. Teria que
sentir-se aliviada ao compartilhar a responsabilidade. Então, por que via naquela chegada inesperada uma nova e inoportuna complicação? por que sentia por
primeira vez que estava apanhada em um labirinto pelo que avançava com os olhos enfaixados enquanto mãos invisíveis a faziam girar, empurravam-na e atiravam dela,
no que uma inteligência desconhecida vigiava, aguardava e dirigia a obra?.
.
19.
O café da manhã foi um prolongado refrigério ao que os hóspedes do castelo se apresentaram de um em um, comeram com tranqüilidade e se mostraram resistentes a concluir.
Os pratos teriam feito justiça às vitorianas noções do Herbert Gorringe quanto à forma correta de começar o dia. À medida que se levantavam as
tampas das fontes de prata, a sala de cafés da manhã começou a impregnar-se dos discordantes aromas de ovos com toucinho, salsichas, rins e abadejo, sufocando
o apetite. face à promessa de outro dia quente, Cordelia teve a sensação de que ninguém estava a gosto e de que não era quão única contava mentalmente as horas
que faltavam para a chegada da noite. Parecia flutuar no ambiente uma conspiração implícita para não perturbar a Clarissa, e quando esta anunciou seu plano de
visitar a igreja e a cripta, o murmúrio de aprovação foi sospechosamente unânime. Se alguém preferia uma excursão ao redor da ilha ou um passeio em solitário,
não o reconheceu. Provavelmente todos sabiam quão precário era seu domínio de si mesmo antes de uma função e ninguém queria ser responsável pela perda desse controle.
Enquanto caminhavam em grupo junto à arcada, mais à frente do teatro e sob a sombra das árvores que conduziam à igreja, Cordelia teve a impressão de que
Clarissa estava rodeada dos solícitos cuidados que se dedicam a um inválido ou a uma vítima predestinada.
Sir George era o único que estava a suas largas. Quando entraram na igreja e o resto dos componentes do grupo olhou a seu redor com o ar de quem está
resolvido a encontrar algo positivo que dizer, sua reação foi foto instantânea e decidida. Evidentemente não lhe caía bem aquela fusão decimonónica de entusiasmo
religioso
e romantismo medieval; observou com olhar que denotava prejuízos o ábside ricamente decorado com seu mosaico de Cristo na glória, os azulejos de cores e
os arcos em policromados.
-Parece mais um clube londrino da época vitoriana, ou um banho turco, que uma igreja -disse-. Sinto muito, Gorringe, mas não posso admirá-la. Quem disse que
era o arquiteto?.
-George Frederick Bodley. Meu bisavô havia renhido com o Godwin quando chegou à reconstrução da igreja. Suas relações com os arquitetos foram sempre
impetuosas. Lamento que você não goste. Os retablos são de lorde Leighton, dito seja de passagem, e os cristais, da empresa do William Morris, que se especializava
nesses matizes claros. Bodley foi um dos primeiros arquitetos que recorreu à assinatura. A janela oriental se considera um trabalho primoroso.
-Não compreendo que ninguém possa rezar neste lugar. Esse é o monumento aos cansados?.
-Sim. Fez-o erigir meu tio e eu o herdei. É o único agregado arquitetônico que construiu na ilha.
O monumento era uma simples laje de pedra montada na parede sul do altar, em que se lia:.
Em rnemoria dos homens do Courcy Island que caíram nos carnpos de batalha das duas guerras mundiais e cujos restos descansam em chão estrangeiro.
1914 - 1918   -   1939 - 1945.
Ao menos esse texto contou com a aprovação de sir George:.
-Eu gosto. Digno e singelo. Pergunto-me quem terá posto essa coroa. Por seu aspecto, leva bastante tempo aí.
Ambrose os tinha alcançado:
-Haverá uma nova em onze de novembro. Faz-as Munter com nossos próprios louros e a troca todos os anos. Seu pai morreu na guerra. Acredito que emprestava serviços
na Marinha e que se afogou. Isso é tudo o que me há dito.
-E você assiste ao rito? -inquiriu Roma.
-Não, não me pediu isso. trata-se de uma cerimônia estritamente privada. Nem sequer estou seguro de que saiba que estou informado.
-Isso arroja uma nova luz sobre o Munter. Quem podia suspeitar nele esta nervura de romantismo? -Roma se voltou-. Mas eu diria que o monumento não é de tudo apropriado.
Seu pai não viveu nem trabalhou na ilha, verdade?.
-Que eu saiba, não.
-E se se afogou, seus ossos não descansam em nenhum chão, estrangeiro nem nacional. Tudo parece um sinsentido. Claro que tampouco tem sentido o Dia do Armistício.
Já ninguém parece saber para que se celebra.
-Para recordar aos bons homens que se foram -replicou sir George-. Uma vez ao ano e só dois minutos. Não me parece muito pedir. por que degradá-lo convertendo-o
em um rito sentimentaloide? Em nossa última revista o capelão pregou um sermão sobre o Terceiro Mundo e do Conselho Ecumênico das Iglesias. Vi com meus próprios
olhos como alguns dos mais anciões da Legião ficavam inquietos.
-Suponho que o padre acreditou que seu sermão tinha algo que ver com a paz mundial -observou Roma.
-O Dia do Armistício não tem nada que ver com a paz. Tem que ver com a guerra e com a lembrança de nossos mortos. Uma nação que não sabe recordar a seus
mortos deixa de ser uma nação pela que valha a pena morrer. E o que tem de pacífico o Terceiro Mundo?.
Sir George se apartou, e por um momento Cordelia acreditou que tinha os olhos úmidos. Depois se deu conta de que era um efeito luminoso e se sentiu turvada por seu
ingenuidade. Podia estar recordando a seus homens e as causas perdidas, esquecidas e desacreditadas pelas que tinham morrido, mas o recordava sem lágrimas. Havia
visto tantos cadáveres, tantas mortes... Cordelia se perguntou se para ele qualquer morte seria agora algo mais que uma estatística.
Uma porta da sacristia conduzia à cripta. Baixar os estreitos degraus de pedra sob a luz da lanterna do Ambrose era o mesmo que descender a um mundo
diferente, a outra época. Só ali havia vestígios do primitivo edifício normando. O teto era tão baixo que Ivo, o de mais estatura entre eles, logo que podia permanecer
erguido; os achaparrados e pesados pilares pareciam suportar sobre seus capiteis o peso de nove séculos. Ambrose estendeu a mão para um interruptor de parede
e na câmara brotou uma violenta e pouco favorecedora luz. de repente apareceram as caveiras ante seus olhos. Uma parede inteira estava adornada com elas, em um alarde
de caretas da morte. encontravam-se alinhadas sobre prateleiras de carvalho sem desbastar e tão apertadas que Cordelia pensou que seria impossível as separar exceto
a machadadas. tomaram-se muito poucas moléstias em sua disposição. Em alguns lugares tinha cansado cimento, notando boca com boca na paródia de um beijo. Em
outros, a areia fina de anos se filtrou entre uma e outra as obrigando a unir-se, bloqueando as cavidades nasais, amontoando-se nas conchas dos olhos e
tendendo sobre as polidas abóbadas uma pátina de pó semelhante a um sudário.
-como sempre nestes casos, existe uma lenda a respeito -disse Ambrose-. No século dezessete a ilha pertencia à família do Courcy; de fato, estavam
aqui do quinze. O do Courcy daquela época era um representante particularmente odioso de sua estirpe. Alguém deveu lhe falar das atividades do Tiberio
no Capri, pois não acredito que soubesse ler, e tentou as emular aqui. Lhes podem imaginar isso: donzelas raptadas em terra firme, "droit de seigneur" exercido em
uma
escala que até os mais acessíveis aldeãos encontraram desmesurada, cadáveres mutilados devolvidos pela maré, com a desaprovação geral de todos os habitantes.
Nesse então, Speymouth era uma pequena aldeia de poscadores. A população só alcançou alguma dimensão ou importância com a Regência. Mas o rumor se propalou.
É obvio, ninguém fez nada. Entretanto, conta-se que o pai de uma das jovens raptadas, cujo corpo torturado chegou flutuando à borda três semanas
depois, denunciou os fatos ante o magistrado do lugar. Posteriormente Do Courcy foi julgado mas resultou absolvido. Cabe supor que o obteve à maneira acostumada:
um juiz venal, testemunhas perjuras, jurados subornados, uma mescla de servilismo e temor. Não havia provas concludentes, certamente. Ao final do julgamento o pai,
que segundo a lenda era um homem muito forte, levantou-se e amaldiçoou a Do Courcy e todo seu clã nos dramáticos términos habituais de morte ao primogênito, repulsivas
enfermidades contagiosas, o castelo em ruínas, a família extinta. Todos deveram desfrutar enormemente do espetáculo. Logo, em 1665, chegou a peste.
Cordelia pensou que a pausa do Ambrose, se tinha a intenção de obter um efeito dramático, era desnecessária. O reduzido grupo o rodeava e escutava com a absorta
atenção de turistas estrangeiros cujo guia, por uma vez, justificava dignamente o preço da entrada. Ambrose prosseguiu:.
-A peste se enfureceu particularmente nesta costa. diz-se que a trouxe uma família do Cheapside que tinha parentes na aldeia e foi em busca de segurança.
As famílias do lugar caíram vítimas da epidemia, uma atrás de outra. O pastor e sua família foram os primeiros em falecer e não ficou ninguém para dizer as honras
funerárias. Breve só ficou um ancião disposto a enterrá-los. Reinava a anarquia. A ilha se considerava a salvo e Do Courcy ameaçou de morte a quem quer
lhe ocorresse desembarcar nela. Conforme se diz, um bote carregado de mulheres e meninos, no que só ia um adulto de sexo masculino para guiá-lo, tentou-o.
Mas se abrigavam a esperança de despertar a compaixão de o Courcy, ficaram defraudados. Não obstante, neste caso seu comportamento foi razoável. A única
via de escapamento da peste era a quarentena. Claro que não foi tão razoável praticar orifícios nas pranchas do fundo do bote, antes de obrigá-lo a voltar para alta
mar, para que a carga humana se afogasse antes de chegar à outra borda, embora isto último só seja, possivelmente, um agregado pitoresco à história. Ao menos em
o que a isso se refere, acredito que devemos lhe conceder o benefício da dúvida. E assim nos chegar ao ponto culminante.
-A esta história só falta o vestuário do Motley e a música de fundo do Menotti -murmurou Ivo, mas Cordelia se deu conta de que estava tão interessado como
todos outros.
-Não sei se souber como é a poste bubônica, refiro aos sintomas -prosseguiu Ambrose-. Em primeiro lugar, as vítimas têm a sensação de cheirar maçãs podres.
Depois aparece a temível erupção na frente. Chegou o dia em que o pai da jovem assassinada cheirou a maçãs podres, viu no espelho a marca da morte.
Era uma noite do verão, mas o mar estava encrespado e tormentosa. O homem sabia que ficava pouca vida: Do Courcy e sua coorte estavam jantando quando se abriu
a porta da grande sala e apareceu arrastando os pés a enorme figura do pai ultrajado, impregnado até os ossos, aproximando-se de seu inimigo com olhos febris.
Houve um instante em que todos os pressente se sentiram muito atônitos para atuar, instante em que o homem se aproximou de o Courcy, rodeou-o com os braços
e o beijou em plena boca.
Todos permaneceram mudos. A Cordelia lhe ocorreu que em qualquer momento estalariam em um aplauso. A história estava bem contada e, em sua simplicidade, seu horror,
sua quase simbólica confrontação da inocência e a malignidad, possuía extraordinária força.
-Com esse argumento podia fazer uma ópera -disse Ivo-. Já tem o cenário. Tudo o que precisa é um Verdi ou um novo Benjamin Britten.
Roma Lisle olhou as caveiras com fascinada repugnância e perguntou:.
-cumpriu-se a maldição?.
-Sim. Do Courcy e todos os seus contraíram a Peste bubônica e foram apagados do mundo dos vivos. A família se extinguiu. Transcorreram quatro anos
antes de que alguém viesse a enterrá-los. Então uma espécie de supersticioso pavor rodeava à ilha. A gente de terra firme apartava os olhos dela. Os
pescadores, recordando a antiga religião, faziam o sinal da cruz se quando passavam sob sua sombra. O castelo se desmoronava. Permaneceu em ruínas até que meu bisavô
comprou-o em 1864, construiu um castelo de estilo moderno, arou a terra, limpou a maleza. Só as ruínas da velha igreja ficaram em pé. Do Courcy e
seus ilhéus não tinham sido enterrados no cemitério. Os aldeãos não pensaram que merecessem cristã sepultura. Como corolário, Herbert Gorringe se passou o
tempo desenterrando esqueletos à medida que semeava seu jardim das delícias. Seus homens reuniram as caveiras e as colocaram aqui, em um justo término médio
entre as disposições cristãs e o impulso das jogar na fogueira.
-Na prateleira de acima há um pouco esculpido, umas palavras e uns números -observou Roma-. A talha é algo áspera. Poderia ser uma referência bíblica.
-trata-se de um comentário pessoal de um dos operários vietorianos, que pensou que a colocação desta fileira do Yorick era uma oportunidade para extrair uma
moral e realçar uma narração. Não, não lhes direi qual é a frase. Leiam vós mesmos.
Cordelia não precisou levantar a vista. Um conhecimento eventual do Velho Testamento e uma conjetura afortunada a conduziram infalivelmente ao texto: "me
touca julgar, disse o Senhor. Farei justiça".
Cordelia pensou que era um desacertado comentário sobre uma vingança que, se o relato do Ambrose era autêntico, tinha sido tão singular e satisfatoriamente humana.
Na cripta fazia muito frio. A conversação tinha decaído. Permaneceram em círculo observando a série de caveiras como se aquelas abóbadas ósseas, as banguelas
orifícios nasais, as conchas vazias, pudessem revelar o segredo de sua morte. Que pouco temíveis eram aqueles seculares símbolos da mortalidade, pensou Cordelia,
acomodados como uma pilha de demônios sorridentes para assustar aos meninos em um parque de atrações e, em seu descarnado anônimo, despojassem toda pretensão humana
ante a risível evidencia de que o que mais durava no homem eram os dentes.
Durante a narração do Ambrose, Cordelia tinha cuidadoso de vez em quando a Clarissa, perguntando-se que efeito teria nela aquele recital de horrores. Pareceu-lhe
estranho que a caricatura grosseiramente desenhada de uma caveira lhe produzira tanto medo, enquanto que a realidade não lhe provocava mais que um exagerado calafrio
de desgosto. Mas a refinada sensibilidade da Clarissa era aparentemente capaz de suportar qualquer ataque, sempre que os horrores estivessem anestesiados por
o tempo e não contivessem nenhuma ameaça pessoal. Sob o gritão e seco colorido da cripta, suas bochechas incluso pareciam avermelhadas, e seus enormes olhos,
mais brilhantes. Cordelia duvidou de que lhe agradasse visitar a cripta a sós, mas nesse momento, sentindo o eixo do grupo, desfrutava de um estremecimento de
temor assumido, como uma criatura ante um filme de terror, que sabe que nada daquilo é real, que fora está a rua conhecida, os rostos correntes, o
confortável mundo do lar. Fora o que fosse o que temia Clarissa -e Cordelia não podia crcer que seu medo era fingido-, não experimentava a menor compaixão por
aquelas almas atormentadas, o menor temor de uma visita sobrenatural a altas horas da noite. Esperava que quando chegasse sua hora a morte se presentarta com
rosto humano, qualquer que fosse seu disfarce. Mas agora a excitação a tinha estimulado e disse ao Ambrose:.
-Querido, sua ilha é um armazém de horrores, encantado na superfície e agitado no fundo. Mas, não há algo mais próximo no tempo, um assassinato que ocorreu
realmente? nos fale da Caldeira do Diabo.
*********
Ambrose evitou seu olhar. Um dos crânios não estava alinhado com relação ao resto. Sujeitou entre suas mãos a branca bola e tentou acomodá-la em seu lugar. O
resultou impossível movê-la e de repente a mandíbula se separou. Ambrose voltou a empurrá-la até encaixá-la, limpou-se as mãos com um lenço e disse:.
-Não se trata de nada especial, e é uma história aborrecível. Em realidade, só tem interesse para os que desfrutam mentalmente contemplando o padecimento do
próximo.
A advertência e a crítica implícita não afetaram a Clarissa.
-Não seja tão pentelho, querido! A história tem pelo menos quarenta anos e, de todos os modos, conheço-a. George me contou isso tudo. Mas quero ver onde ocorreu.
Tenho um interesse pessoal. Nessa época, George estava na ilha. Sabia que George esteve aqui?.
-Sim -respondeu Ambrose secamente.
-Seja o que fosse, será melhor que nos mostre isso -interveio Roma-. Clarissa não te deixará em paz até que o faça, e outros têm direito a ver satisfeita
nossa curiosidade. Nada pode ser mais impressionante que o que já vimos.
Ninguém pronunciou palavra. Cordelia pensou que Clarissa e sua prima não eram boas aliadas nem sequer na persuasão, e se perguntou se Roma estaria verdadeiramente
interessada ou se só abrigava a esperança de acabar com tudo aquilo para poder sair da cripta de uma vez por todas. A voz da Clarissa adotou o tom lisonjeador
de um menino pesado:.
-Por favor, Ambrose. Prometeu-me que alguma vez o faria. por que não agora? Ao fim e ao cabo, já estamos aqui.
Ambrose olhou ao George Ralston. O olhar parecia solicitar seu consentimento, ou ao menos algum comentário. Mas se o que esperava era apoio para resistir a Clarissa,
enganou-se. A expressão de sir George era impassível, por uma vez sua inquietação se sossegou.
-De acordo, já que insiste... -disse Ambrose a Clarissa.
Conduziu-os até uma porta desce no extremo ocidental da cripta. A porta era de carvalho quase negro pela idade, com fortes braçadeiras de ferro e dobro
ferrolho. Ao lado havia um prego de que pendurava uma chave. Ambrose abriu os fechos e logo inseriu a chave na fechadura. A chave girou facilmente, mas
ele necessitou de todas suas forças para abrir a porta. Transpô-la e acendeu a luz. Apareceu uma estreita passagem abovedado cuja largura só permitia o passo de
duas pessoas a um tempo. Ambrose saiu em cabeça, com a Clarissa lhe pisando os talões. Roma avançou sozinha, seguida pela Cordelia e Simon, com sir George e Ivo
na
retaguarda.
depois de uns seis metros, o corredor dava passo a um lance de levantados degraus de pedra que torciam à esquerda. No fundo se ampliava, mas o teto
seguia sendo tão baixo que Ivo tinha que encurvar-se. O corredor estava iluminado por lâmpadas sem telas, embora protegidas, que penduravam de um cabo. A atmosfera
embora rarefeita era o bastante fresca para resultar respirável. Reinava o silêncio e suas pegadas ressonavam sobre o chão de pedra. Cordelia calculou que deviam
de ter percorrido ao redor de duzentos metros quando chegaram a uma curva e em seguida a outro lance de degraus, mais profundo e grosseiro que o anterior, que parecia
esculpido na rocha. Nesse momento se apagou a luz.
O choque da escuridão foto instantânea e total depois da claridade artificial do túnel, cortou-lhes o fôlego e uma das mulheres -a Cordelia pareceu que era
Clarissa- lançou um grito. enfrentou-se a uma momentânea sensação de pânico, serenando mediante um esforço de vontade seu palpitante coração. Instintivamente avançou
a mão na escuridão e encontrou um braço firme e morno sob uma camisa de algodão magro: o do Simon. Cordelia se soltou mas quase imediatamente sentiu que
o moço lhe apertava a mão. Então ouviu a voz do Ambrose:.
-me desculpem. Tinha esquecido que as luzes funcionam com um interruptor automático. Em um segundo encontrarei o botão.
Mas Cordelia calculou que transcorreram quinze segundos até que voltou a luz. Todos piscaram a causa do repentino resplendor e sorriram com certo acanhamento.
Simon retirou a mão com presteza, como se se tivesse escaldado, e voltou a cara.
-Eu gostaria que nos advertisse antes de nos jogar uma má passada -disse Clarissa mal-humorada.
-Asseguro-te que não foi uma brincadeira -respondeu Ambrose-. Não voltará a ocorrer. A câmara de em cima da Caldeira do Diabo tem um sistema de iluminação comum
e corrente. Só faltam quarenta metros. Recordo-te que foi você quem insistiu nesta excursão.
Baixaram os degraus com ajuda de uma corda com laços passados através de argolas cravadas na rocha. Trinta metros mais adiante o passadiço se alargava dando
forma a uma cova de teto baixo. Ivo disse com uma voz que resultou anormalmente sonora:.
-Devemos estar a mais de doze metros sob a superfície. Como se ventila?.
-Por meio de poços de ventilação. Um deles sobe até a casamata de cimento construída durante a guerra para proteger o acesso sul da ilha. Há uns
quantos mais. Conforme se crie, o primeiro foi instalado por Do Courcy. É muito provável que a Caldeira do Diabo lhe tenha resultado útil.
No estou acostumado a havia uma trampilla de carvalho provida de dois fortes fechos. Ambrose os abriu e abriu a portinhola de par em par. Todos se amontoaram e seis
cabeças apareceram. Viram uma escala de ferro que conduzia a uma cova. Sob seus pés ondeava o mar. Era difícil saber em que sentido fluía a maré, mas distinguiram
a luz que brotava de uma fresta em forma de meia lua e ouviram pela primeira vez o débil sussurro do mar e cheiraram o aroma salobre das algas. Com cada onda
a água entrava em fervuras e quase em silencio na cova, formando redemoinhos-se ao redor dos degraus da escala. Cordelia se estremeceu. Havia algo desumano,
quase macabro naquele sereno e regular fluir da água.
-nos conte! -insistiu Clarissa.
Ambrose guardou silêncio um minuto e logo disse:.
-Ocorreu em 1940. A ilha e o castelo foram expropriados pelo governo e utilizados como centro de recepção e interrogatório de súditos das potências do
Eixo que ficaram isolados no Reino Unido pela guerra; também chegavam outros, incluído certo número de cidadãos britânicos dos que se suspeitava que eram,
no pior dos casos, agentes do inimigo ou, no melhor deles, simpatizantes do nazismo. Meu tio vivia no castelo com a única companhia de seu criado e
ambos foram transladados a casita do bloco de estábulos que atualmente ocupa Oldfield. O que ocorria no castelo era absolutamente secreto, é obvio.
Só se retinha os internatos um tempo relativamente breve e não tenho nenhuma razão para supor que sua estadia fosse especialmente incômoda. Alguns eram liberados
depois do interrogatório e a reabilitação, outros foram internados na ilha do Man e suponho que alguns encontraram um fim menos agradável. Mas deste
lugar sabe mais George que eu. Como disse Clarissa, esteve estacionado aqui durante uns meses em 1940, quando era um jovem oficial.
Fez uma pausa mas não houve resposta por parte do aludido. Foi como se sir George não estivesse ali. Cordelia percebeu que Roma observava ao Ralston surpreendida,
duvidosa. Abriu a boca para dizer algo mas o pensou melhor. Manteve o olhar fixo nele com instada intensidade, como se o visse pela primeira vez.
-Não conheço os detalhes -continuou Ambrose-. Suponho que alguém os conhece, ou ao menos na medida em que saíram à luz. Em algum sítio tem que haver registros
oficiais do incidente, embora nunca se publicaram. Só sei o que me contou meu tio em uma de minhas estranhas visitas..., e em sua major parte eram rumores.
Clarissa se permitiu um desdobramento de bem calculada impaciência. Um pouco tão artificial, pensou Cordelia, como a fingida careta de asco com que tinha contemplado
por
primeira vez a estantería das caveiras. Clarissa não tinha por que impacientar-se: sabia muito bem o que se morava.
Ambrose estendeu suas gordinhas mãos e se encolheu de ombros. como resignado a dar um recital que preferia ter evitado. Embora se realmente queria evitá-lo, pensou
Cordelia, o teria tentado. Pela primeira vez se perguntou se aquela conversação, incluída a visita à cripta, não seria o resultado de uma cumplicidade.
-Em março de 1940 havia ao redor de cinqüenta internados no Courcy, entre eles um núcleo de devotos nazistas, em sua maioria alemães que se encontravam em Grã-Bretanha
quando estalou a guerra. Suspeitavam que um dos seus, um menino de vinte e dois anos, tinha revelado seus segredos às autoridades britânicas durante o interrogatório.
Possivelmente o fizesse. Por outro lado, pode ter sido um agente segredo britânico que se infiltrou no grupo. Tudo o que conheço são rumores e, para cúmulo,
de segunda mão. O que parece estar fora de toda dúvida é que o grupo de nazistas convocou um julgamento secreto na cripta da igreja, declarou culpado de traição
a seu companheiro e o condenou a morte. Amordaçaram-no, ataram-lhe os braços e o desceram pelo corredor até essa cova, a Caldeira do Diabo. Como podem ver, existe
uma estreita abertura que conduz à baía oriental, mas sempre que há enjoa alta a cova fica alagada. Ataram a sua vítima à escala de ferro e a deixaram
para que se afogasse. Era um jovem muito alto, que demorou para morrer, em meio da escuridão. Depois um deles baixou a desatá-lo e deixou que o cadáver flutuasse
mar
dentro. Quando o mar arrojou seu cadáver à praia, dois dias mais tarde, tinha as bonecas cortadas quase até o osso. Um de seus companheiros contou algo sobre a
crescente depressão do jovem, e alguém insinuou que se atou as bonecas a propósito para impedir de-se nadar. Seus juizes e executores jamais abriram a boca.
-Então como transcendeu a história? -interpelou Roma.
-Suponho que finalmente alguém falaria, mas depois da guerra. Naquela época, Oldfield vivia no Speymouth e o exército o tinha contratado para trabalhar
aqui. Pode ter ouvido rumores. Agora não quer admiti-lo, mas alguém tem que ter falado. Inclusive alguém pode ter permitido que ocorresse o que ocorreu,
ou ao menos fechado os olhos. Não esqueçamos que tudo isto estava a cargo do exército e, entretanto, conseguiram agarrar as chaves da cripta e da passagem secreta,
e as devolver sem ser vistos. Isto sugere como mínimo certo grau de negligência por parte de alguém.
Clarissa se voltou para seu marido:.
-Como se chamava o menino que morreu, querido?.
-Carl Blythe.
Agora Clarissa se dirigiu a todos em geral, com a voz destemperada de uma histérica:.
-E o mais extraordinário de tudo é que era inglês..., bom, ao menos seu pai, pois a mãe era alemã. Foi condiscípulo do George, verdade, querido? Estudaram
juntos no Melhurst. O moço era três anos maior que ele; um jovem odioso e cruel, um desses galos de briga que atormentam a seus companheiros, de modo que George
e ele
não eram exatamente amigos. De fato, George o detestava. E que surpresa encontrá-lo aqui e a sua mercê! Não é estranho?.
-Não necessariamente -opinou Ivo em tom lacônico-. As escolas privadas britânicas produziram sua dose de simpatizantes nazistas, e aqui é onde cabia esperar encontrá-los
em 1940.
Cordelia fixou a vista na escala de ferro. A luz da passagem, crua e intensa, não conseguia mitigar o horror, mas bem o acrescentava. Nos velhos tempos,
a crueldade do homem para com o homem ficava decorosamente envolta na escuridão; a mente morava em calabouços mau ventilados e sem iluminação salvo a
claridade que se filtrava através das frestas de pequenas janelas. Mas as salas de interrogatório e câmaras de tortura modernas resplandeciam de luz. Os
tecnocratas da dor precisavam ver o que faziam. Repentinamente o lugar se voltou intolerável para ela. Esticou os braços e apertou os punhos, para que seu tremor
não fora visível. Em sua imaginação o túnel que se extendra a suas costas se prolongava até o infinito, e estavam condenados a escapulir-se por ele como ratos
encurraladas. Sentiu que o suor perlaba sua frente em gotas que o escocian os olhos, mas soube que nada disso tinha que ver com o frio. obrigou-se a falar, com
a esperança de que sua voz não a delatasse:.
-Não podemos sair daqui ? Me sinto como uma "voyeuse".
-E eu tenho frio -disse Ivo.
Seguindo com presteza a indicação, Clarissa se estremeceu. Então falou sir George por primeira vez. Cordelia não soube se o que fez que a voz do homem soasse
tão distinta foram seus confusos sentidos ou o eco produzido pelo teto baixo.
-Se minha esposa já tiver satisfeito sua curiosidade, poderíamos ir daqui.
A seguir deu um imprevisto salto para frente. antes de que ninguém adivinhasse o que se propunha, apoiou um pé detrás da armadilha aberta e a empurrou. A portinhola
caiu com grande estrépito. As paredes pareceram rachar-se e a passagem tremeu sob os pés dos reunidos. Provavelmente todos gritaram, mas suas vozes se
perderam no meio do retumbante estrondo. Quando este se desvaneceu, ninguém pronunciou palavra. Sir George tinha girado sobre os talões e se encaminhava para
a entrada.
Cordelia se encontrou um pouco adiantada com respeito a outros. O susto e um embotado sentido de amargura que se somava a sua claustrofobia, empurravam-na para
diante. Inclusive a cripta, com seu bem disposto ossário, era preferível a aquele espantoso âmbito. agachou-se quase instintivamente e sem a menor curiosidade, para
recolher o retângulo de papel dobrado, e nem sequer olhou o dorso para ver o nome do destinatário. Sob a crua luz da única lâmpada ressaltavam com toda
claridade a caveira desenhada e a entrevista escrita a máquina; compreendeu que antes de vê-lo já sabia do que se tratava:.
Sua morte está urdida: hei aqui a conseqüência do crime. Não valoramos mérito nem hálito cristão quando sabemos que as ações ruins se pagam com a morte.
Não é de tudo exato, pensou. Sem dúvida a primeira palavra devia ser "Meu" e não "Seu". Mas a mensagem era clara. guardou-se o papel no bolso da camisa e se
voltou para esperar a outros. Tratou de recordar onde estavam todos quando se apagaram as luzes. Tinha ocorrido aproximadamente naquele ponto, na curva
do túnel. Só lhe teria levado uns segundos a qualquer deles retroceder como uma flecha ao amparo da escuridão; alguém que tivesse a mensagem preparada
alguém a quem  não lhe importava -a quem inclusive podia lhe gostar de- que Clarissa soubesse que seu inimigo estava naquele reduzido grupo de pessoas. E se outro
e não
ela o tivesse visto antes, ou se todos tivessem estado juntos, alguém o teria posto em mãos da Clarissa. Estava dirigido a ela, com a mesma tipografia. O
autor mais provável era Ambrose: as luzes se apagaram muito oportunamente. Mas qualquer de outros podia havê-lo feito, qualquer exceto Simon. Ela havia
sentido a mão dele firmemente sujeita à sua.
O resto do grupo fez sua aparição. Cordelia permaneceu sob a luz e esquadrinhou seus rostos. Nenhum delatava ansiedade, nenhum mostrava surpresa, ninguém baixou
a
vista. Ao reunir-se com eles, sentiu que comprendia plenamente e pela primeira vez por que estava tão assustada Clarissa. Até então as mensagens pareciam pouco
mais que uma perseguição infantil a que nenhuma mulher inteligente dedicaria mais de um instante de verdadeira inquietação. Mas eram uma manifestação de rancor,
e
o rancor, à margem de qualquer outra coisa, nunca podia ser insignificante. Eram pueris, mas detrás da infantilidade se ocultava uma malícia adulta e complexa,
e o perigo com que ameaçavam podia ser real e iminente. Duvidou de se fazia bem em ocultar aquela mensagem e os anteriores a Clarissa, e pensou se não seria melhor
pô-la em guarda. Não obstante, suas instruções eram claras: economizar a Clarissa toda angústia ou mal-estar antes da representação. depois da função haveria
tempo suficiente para decidir que mais podia fazer-se. Faltavam menos de quatro horas para que se levantasse o pano de fundo.
Enquanto passavam ao lado da fileira de caveiras, esta vez sem lhes dedicar um olhar, Cordelia se encontrou caminhando junto ao Ivo. O ritmo dele, já fosse por
necessidade ou de propósito, era mais lento que o de outros e ela não se adiantou.
-resultou um episódio muito instrutivo, não lhe parece? -comentou Ivo-. Pobre Ralston! Suponho que todo o incidente, e seus posteriores escrúpulos morais, foram
uma oferenda de expansão conjugal. O que pensa de tudo isto, OH, sensata Cordelia?.
--Opino que foi horrível.
Ambos sabiam que não se referia só à agonia daquele pobre renegado, a sua solitária e terrível morte. Roma se aproximou dela. Cordelia a notou animada por primeira
vez, com olhos maliciosamente iluminados.
-Que espetáculo tão pouco edificante! Para os que temos a sorte de conservar o celibato, faz que o sagrado matrimônio pareça uma instituição infernal,
quase macabra.
-O matrimônio é espantoso -afirmou Ivo-. Ao menos, para mim foi.
Roma não estava disposta a abandonar o tema.
--Sempre tem que dar-se ânimos com uma exibição de crueldade antes de uma função?.
-É indubitável que está nervosa e o nervosismo é algo que afeta de distintas maneiras às pessoas.
-Por favor! Se só se tratar de uma representação de aficionados. A avaliação do teatro logo que ultrapassa as oitenta pessoas. E Clarissa passa por ser uma profissional!
O que criem que sentia George Ralston quando estávamos nessa masmorra?.
A nota de satisfação era inconfundível. Cordelia se sentiu tentada de dizer que bastava olhar a sir George à cara para saber o que sentia, mas decidiu calar.
Ivo disse:.
-Como a maioria dos militares profissionais, Ralston é um sentimental. aferra-se aos valores absolutos, a honra, a justiça, a lealdade, e os sujeita a
seu coração com aros de aço. E o encontro comovedor..., embora gere certa rigidez.
Roma se encolheu de ombros.
-Se quer dizer que é um homem de extraordinário domínio de si, coincido contigo. Mas será interessante ver o que ocorre se alguma vez perde esse domínio.
Clarissa se voltou e os chamou com voz alegremente imperiosa:.
-lhes dê pressa, vós três. Ambrose tem que fechar a cripta. E eu quero almoçar.
.
20.
O contraste entre a terraço esquentada pelo sol -onde tinham disposto o almoço sobre uma mesa de cavaletes com jogo de mesa de linho- e o escuro e fedorento
fossa da Caldeira do Diabo era tão grande que Cordelia se sentiu desorientada. O breve descida ao inferno do passado podia ter ocorrido em outro tempo e
lugar. Contemplando o mar salpicado de luz por volta de onde o velamen dos navegantes dos sábados se curvava para captar a brisa, era possível imaginar que nada
de todo aquilo tinha acontecido, que a emprestada corte de o Courcy e os sofrimentos do Carl Blythe enquanto lutava contra o horror de sua larga agonia eram os
remanescentes de um pesadelo tão irreal como as caricaturas de uma historieta de terror.
A comida foi ligeira: salada de agriões e abacate seguida por um "soufflé" de salmão, selecionada provavelmente para suavizar uma digestão nervosa. Mesmo assim,
ninguém comeu com apetite nem evidente prazer. Cordelia bebeu um copo do frio riesling e se obrigou a comer o salmão sem saboreá-lo, até sabendo que era delicioso.
O frágil otimismo da Carissa tinha dado passo a uma silenciosa preocupação que ninguém queria perturbar. Roma se sentou no degrau do extremo da terraço, sem
emprestar a menor atenção ao prato que tinha apoiado em seu regaço, e observava melancólica as águas. Sir George e Ivo permaneciam em pé um junto ao outro, mas
nenhum dos dois falou. Todos eles, exceto Clarissa e Cordelia, beberam copiosarnente. Ambrose falou muito pouco, mas se moveu entre eles servindo bebidas,
os olhos faiscantes de diversão e indulgência, como se estivesse com pirralhos que se comportavam como cabia esperar em um momento de tensão.
O mais animado da partida resultou, inesperadamente, Simon. Bebeu como uma esponja -sem ser visto pela Clarissa-, dando conta do vinho como se fora cerveja, com
as mãos um tanto instáveis e os olhos brilhantes. ao redor da uma menos dez anunciou em voz alta que queria nadar um momento e passeou o olhar a seu redor
como se esperasse que outros se interessassem pela notícia. Ninguém o fez, mas Clarissa disse:.
-Acaba de comer, querido. Melhor será que antes dê um passeio.
A carinhosa frase foi tão inesperada que todos levantaram a vista. O moço se ruborizou, inclinou a cabeça com rigidez e desapareceu. Pouco depois Clarissa deixou
de lado seu prato, olhou a hora e anunciou:.
-É hora de descansar. Nada de café, obrigado, Ambrose. Nunca o provo antes de uma função. Acreditava que sabia. Pedirá ao Tolly que me suba em seguida a bandeja?
Chá chinês. Ela sabe muito bem qual é o que prefiro. Por favor, George, sobe dentro de cinco minutos. Depois te verei ti, Cordelia. Sobe à uma e dez.
Atravessou lentamente a terraço, com a graciosa deliberação de um mutis. Pela primeira vez pareceu a Cordelia que era vulnerável, quase melodramática em seu solitário
e ensimismado terror. Sentiu o impulso de segui-la, mas estava segura de que só conseguiria enfurecê-la. Sabia que não encontraria outra mensagem sob a porta, pois
tinha revisado a habitação imediatamente antes de baixar a almoçar. Agora tinha a certeza de que o autor dos anônimos formava parte do pequeno grupo que
tinha visitado a Caldeira do Diabo, e durante a comida todos estiveram submetidos a seu vigilante olhar. Só Simon se retirou antes, e nem por um sozinho
instante imaginava que fosse culpado.
De repente, Roma se incorporou e saiu detrás de sua prima, quase correndo. Ivo e Ambrose intercambiaram um olhar, mas não disseram nada, possivelmente inibidos pela
presença
de sir George. Este se aproximou do extremo da terraço, de costas a todos, com uma taça de café na mão. Parecia estar contando os minutos. Depois consultou
a hora, deixou a taça sobre a mesa e se encaminhou à porta vidraça. Passeou o olhar a seu redor, com um pé no degrau da escada, e perguntou:.
-A que hora se levanta o pano de fundo, Gorringe?.
-Às três e meia.
-Devemos nos trocar antes?.
-Isso é o que espera Clarissa. De qualquer maneira, depois não haverá tempo. O jantar se servirá às sete e meia.
Sir George fez um gesto de assentimento e saiu.
-Clarissa organiza a seus ilotas com a brutal precisão de um comandante -disse Ivo-. Faltam dez minutos para que tenha que apresentar-se a ela, Cordelia. Fica
tempo para outra taça de café.
Quando Cordelia entrou em seu dormitório e transpôs a porta de comunicação, sir George estava com sua esposa, de pé junto à janela, o olhar perdido no
mar. A bandeja de prata redonda, com uma só taça e um pires além da elegante bule, repousava sobre a mesinha de noite, ainda intacta. Clarissa, que
ainda não se tinha tirado as bermuda e a camisa, passeava-se de um lado a outro, evidentemente alterada.
-Pediu-me vinte e cinco mil, ruborizada como uma menina que pede que lhe aumentem a atribuição de bolso. E precisamente agora! Nem sequer pôde esperar a que concluíra
a função. Acabo de confirmar que é vítima da mais crassa estupidez! Tenta me alterar deliberadamente ou algo pelo estilo?.
Sir George respondeu sem voltar-se:
-Suponho que para ela é importante e não podia suportar a incerteza. Tinha que sair de dúvidas. Não é fácil te encontrar a sós.
-Jamais teve o menor sentido da oportunidade, nem sequer de pequena. Se havia um momento inadequado para algo, seguro que Roma o encontrava. É algo que forma
parte de sua insensibilidade geral. E vá se tiver ido escolher o pior momento!.
-Existe a possibilidade de encontrar um bom momento? -disse a voz do marido da janela.
Clarissa não pareceu ouvi-lo.
-Disse-lhe que não estava disposta a desembolsar um céntimo para manter a um amante que nem sequer tem as guelra ou o decoro de pedi-lo pessoalmente. Dava-lhe
um conselho: se tiver que comprar um homem, não se merece que o tenha; se não poder ter prazer sexual sem comprá-lo, compra-o barato. Está perdidamente apaixonada
dele, é obvio. Por isso montou a livraria, a modo de estratagema para apartar o de sua mulher. Roma apaixonada! Quase o sentiria por ele se não fosse tão tolo.
Quando uma virgem feia de quarenta e cinco anos se apaixona pela primeira vez e vive sua primeira experiência sexual, que Deus tenha piedade do pobre homem.
-É nosso assunto, querida?.
-O dinheiro é meu assunto -respondeu Clarissa em tom cáustico--. Além de qualquer outra coisa, não têm nenhuma esperança de êxito. Carecem de capital, experiência,
de sentido comum. por que teria que atirar eu o dinheiro pela janela? -Sem transição se voltou para a Cordelia-: Será melhor que vás vestir te. Depois fecha
com chave e sal por aqui. Não quero te ter alvoroçando na habitação contigüa enquanto eu descanso. Suponho que voltará a te pôr essa coisa hindu. Não deve levar
muito tempo meter-se dentro.
-Não me leva muito tempo me pôr nada do que tenho.
-Nem lhe tirar isso suponho.
Sir George se voltou e exclamou em voz baixa:.
-Clarissa!.
Ela sorriu satisfeita, aproximou-se dele e lhe acariciou brandamente a bochecha, como se fora um cão:.
-Você sempre tão galante, meu querido George.
-Não prefere que fique em meu dormitório enquanto descansa? -sugeriu Cordelia-. A porta de comunicação poderia estar aberta ou fechada, como prefiro. Não farei
ruído.
-Já te hei dito o que prefiro! Não quero que esteja na habitação do lado nem nos arredores. Me pode ocorrer ensaiar alguns versos e não posso fazê-lo
se souber que alguém anda perto. Com as três portas fechadas com chave e sem telefone, acredito que posso abrigar a esperança de que me deixem em paz. Tolly!  -gritou
inesperadamente.
Tolly saiu do quarto de banho, vestida de escuro e inexpressiva como sempre. Cordelia se perguntou quanto tinha ouvido, se é que tinha ouvido algo. Sem que Clarissa
o pedisse, Tolly se dirigiu ao armário, tirou a bata de raso e a pregou sobre seu braço. Logo aguardou em silencio junto a sua ama. Clarissa se desabotoou a camisa
e a deixou cair. Tolly não fez nenhum movimento para recolhê-la e se dedicou, em troca, a desabotoar o sustento a Clarissa. Esta o arrancou e também o deixou
cair. Por último se abriu os pantaloncitos, baixou-os, junto com as calcinhas, até os joelhos e tudo foi parar ao chão. Clarissa permaneceu um instante imóvel,
com seu pálido corpo pintalgado pela luz do sol; os peitos plenos, a cintura estreita, os angulares quadris sobressalentes e o arbusto de cabelo dourada como um
trigal.
Sem urgência, Tolly desdobrou a bata e a deixou nos braços da Clarissa. Logo se ajoelhou, recolheu o vulto de roupas descartadas e voltou para quarto de banho. Cordelia
pensou que tinha sido um desdobramento ritual de sensualidade quase inocente, menos vulgar do que cabia esperar, narcisista mais que provocador. Então a atacou
uma certeza irracional: aquela era a imagem da Clarissa que recordaria toda sua vida. E qualquer que fosse o motivo, o instante de franco exultação da Clarissa
em sua beleza pareceu serená-la.
-Não me façam conta, queridas -disse-. Já sabem como se sente uma antes de subir ao cenário. -dirigiu-se pessoalmente a Cordelia-: Agarra o que queira de sua habitação
e me deixe as duas chaves. Porei o despertador a três menos quarto; volta aproximadamente para essa hora e te farei saber se quiser que te ocupe de algo durante
a função. Não te faça ilusões de ocupar uma poltrona, possivelmente te necessite entre bastidores.
Cordelia passou a seu dormitório pela porta intermédia. Enquanto se trocava os texanos e a camisa pelo vestido comprido, de algodão, pensou na surpreendente petição
de Roma. por que não tinha feito o que obviamente correspondia e aguardado até depois da função, momento em que possivelmente teria encontrado eufórica a sua prima
pelo êxito? Embora talvez tinha compreendido que aquele era o mais propício, possivelmente o único momento possível. Se a representação era um fiasco, Clarissa seria
inabordável; até era possível que abandonasse a ilha sem esperar à reunião posterior. Sem dúvida alguma, Roma devia conhecer sua prima o suficiente para saber
que, em qualquer instante que escolhesse, a sua era uma causa perdida. O que esperava? Que Clarissa repetisse o gesto de grandiosa generosidade que tinha tido
com o Simon Lessing? Que não seria capaz de resistir ao papel insidiosamente grato de mecenas e salvadora? Cordelia pensou que ambas as coisas eram reais. Roma devia
necessitar desesperadamente aquele dinheiro e não apostava em favor do êxito da Clarissa.
escovou-se o cabelo energicamente, olhou-se por última vez no espelho, sem entusiasmo, e fechou a porta de seu dormitório, deixando a chave na fechadura. Chamou
à porta de comunicação e passou. A chave estava na fechadura do lado da Clarissa. Sir George e Tolly se foram e a atriz estava sentada no penteadeira,
escovando o cabelo com golpes firmes e prolongados.
-O que tem feito com sua chave? -perguntou sem voltar-se.
-Fechei e a deixei na fechadura. Devo jogar a chave à porta de comunicação?.
-Não. Eu me ocuparei. Quero verificar se tiver jogado a chave à porta exterior de seu dormitório.
-Estarei ao alcance de sua voz -disse Cordelia-. Se me necessitar me encontrará ao fundo do corredor. Posso tirar uma cadeira de meu dormitório e me sentar ali a
ler. A
cólera da Clarissa estalou:.
-Em que idioma falo? O que tenta, me espiar? Já lhe hei isso dito! Não quero que esteja ao lado nem quero ouvir suas pegadas de gatita de uma parte a outra do corredor.
Não quero te ter perto, nem a ti nem a ninguém. O que agora quero é que me deixem em paz!.
A nota de histeria era agora inconfundível.
-Então me fará o favor de enrolar uma de suas toalhas e pô-la contra a porta? Eu não gostaria que lhe entregassem uma mensagem em suas próprias mãos.
-O que quer dizer? -a voz da Clarissa soou com virulência-. Desde que cheguei não ocorreu nada. Nada!.
-Só quero me assegurar de que tudo siga assim -replicou Cordelia, tranqüilizadora-. Se o responsável desembarcar na ilha, poderia tentar que recebesse um último
mensagem. Não acredito que ocorra. De fato, estou segura de que não ocorrerá. Provavelmente os bilhetes se interromperam para sempre. Mas não quero correr nenhum
risco.
-De acordo. Não é má idéia. Tamparei a parte inferior da porta.
Não parecia haver nada mais que dizer. Quando Cordelia saiu, Clarissa a seguiu, fechou com firmeza a porta a suas costas e fez girar a chave. O chiado do
metal e o leve estalo foram débeis, mas os aguçados ouvidos da Cordelia os perceberam claramente. Clarissa estava encerrada. Não podia fazer nada mais até
as três menos quarto. Olhou a hora. Era uma e vinte.
.
21.
Só faltava uma hora e meia, mas Cordelia se encontrou poseída por uma irritável quietude que fazia que os lentos minutos se alargassem interminavelmente. Era um
chateio ter a entrada proibida a seu dormitório e haver-se esquecido, antes de fechá-lo, de agarrar seu livro. Foi à biblioteca, com a esperança de passar uma
hora entretida com velhos exemplares encadernados do "Strand Magazine", mas encontrou ali a Roma, que não estava lendo, a não ser sentada direita perto do telefone,
e o olhar que lhe dedicou foi tão pouco acolhedora que para a Cordelia resultou óbvio que abrigava a esperança de receber uma chamada e que queria atendê-la em privado.
Ao fechar a porta, Cordelia pensou com inveja no Simon, que provavelmente seguia nadando em solitário, e também em sir George, que certamente andava a pernadas
com os prismáticos preparados. Lamentou não poder lhe acompanhar, mas sua saia larga não era adequada para caminhar e, de qualquer maneira, acreditava que não devia
sair do castelo.
encaminhou-se ao teatro. As luzes da sala já estavam acesas, e o ouro e carmesim, com suas fileiras de poltronas vazias, parecia aguardar em silenciosa, nostálgica
e prodigiosa calma. Atrás do cenário, Tolly revisava o camarim feminino principal,
acomodando caixas de lenços de papel e toalhas de mão. Cordelia lhe perguntou se necessitava ajuda e recebeu como resposta uma negativa amável mas decidida. Então
recordou que havia algo que podia fazer. Quando foi ver a à agência, sir George tinha mencionado a conveniência de registrar o cenário. Não sabia muito bem
o que pensava sir George, pois embora o anônimo mensageiro conseguisse ocultar uma missiva no cenário ou entre o instrumental, Clarissa não poderia abri-la e lê-la
durante
a representação. De todas maneiras, sir George tinha razão. Revisar o cenário e os acessórios era uma precaução sensata, E Cordelia se alegrou de ter algo
concreto que fazer.
Tudo estava em ordem. A disposição do primeiro um jardim vitoriano exterior ao palácio, era singela: um pano de fundo de foro azul, louros e gerânios em recipientes
de pedra, a sentimental estatua de uma mulher com um alaúde, e duas poltronas de vime com almofadas e reposapiés. Ao flanco do cenário havia uma mesa com o objeto
de cenário.
Registrou a série de objetos vitorianos do Ambrose reunidos para os interiores: floreiros, quadros, leques, taças, inclusive um cavalinho balancim. Uma luva de
pelica cheio de lã de algodão estava preparado para a cena do cárcere, e na verdade se parecia desagradablemente a uma mão cerceada. Ali estava a
cajita de música, além disso do joalheiro com guarnições de prata para o segundo ato. Cordelia o abriu mas não encontrou nenhuma missiva aguardando em suas profundidades
de pau-rosa.
Não ficava nada útil por fazer. Ainda faltava uma hora para despertar a Clarissa. Perambulou um momento pela rosaleda, mas o sol esquentava menos ali que na fachada
ocidental do castelo e decidiu retornar a terraço. sentou-se na esquina do último degrau que levava a praia, um autêntico solário; até as pedras
atiam-se cálidas a suas coxas. Fechou os olhos e elevou a cara para receber uma boa dose de sol, desfrutando de do suave ar nas pálpebras, do aroma a pinheiros
e algas marinhas, sossegada pelo débil vaio do fluxo sobre a praia.
Deveu dormitar fugazmente, pois despertou a chegada da lancha. Ambrose e os Munter estavam no embarcadero para receber aos membros da companhia.
O anfitrião já se trocou e levava uma volumosa capa de seda sobre o smoking, o que lhe conferia o aspecto de um prestidigitador de music-hall vitoriano.
A seus ouvidos chegaram murmúrios entusiastas enquanto os componentes da partilha -alguns dos homens já levavam vestimentas vitorianas- saltavam a terra e
desapareciam através do arco que conduzia ao jardim do este e à entrada principal do castelo. Cordelia olhou a hora. Eram as duas e vinte, a lancha havia
chegado cedo. Voltou a acomodar-se mas não se atreveu a fechar os olhos. Vinte minutos depois, cruzou as portas vidraças para ir chamar a Clarissa.
Interrompeu seus passos ante a porta do dormitório e voltou a olhar a hora. As duas e quarenta e dois. Clarissa lhe tinha pedido que a chamasse as três menos
quarto, mas uns poucos minutos não lhe importariam. Chamou, brandamente ao princípio e logo mais forte. Não obteve resposta. Possivelmente Clarissa já se levantou
e
estava no quarto de banho. Tentou o trinco, que, para sua surpresa, cedeu; baixou a vista e viu que a chave estava na fechadura. A porta se abriu facilmente,
sem que nenhuma toalha a obstruíra. assim, Clarissa tinha que estar levantada.
Por alguma razão que mais adiante nunca conseguiu compreender, não experimentou nenhuma premonição, nenhuma inquietação. Avançou na penumbra, chamando brandamente:.
-Senhorita Lisle, senhorita Lisle, são quase as três menos quarto.
Pesada-las cortinas de brocado estavam jogadas, mas um vivo resplendor atravessava a abertura magra como um papel que ficava entre ambas, e nem sequer seus
grossas dobras conseguiam excluir do todo o sol vespertino que penetrava como uma tênue difusão de luz rosada. Clarissa jazia, fantasmal, sobre seu leito carmesim,
com ambos os braços delicadamente pregados aos flancos, as Palmas para cima, o arbusto de cabelo em uma deslumbrante cascata sobre o travesseiro. A roupa de cama
havia
sido dobrada aos pés; viu-a de barriga para cima, descoberta, com a clara bata de raso levantada quase até os joelhos. Quando elevou os braços para abrir as cortinas,
Cordelia pensou que a evanescente luz da estadia lhe estava gastando uma brincadeira: o rosto sombreado da Clarissa parecia tão escuro como o dossel, o mesmo que
se sua pele tivesse absorvido o vivo carmesim.
Quando apartou a segunda cortina e a habitação se iluminou, Cordelia se voltou e viu claramente e pela primeira vez o que
havia sobre a cama. Durante um segundo de incredulidade, sua imaginação dío voltas em delirante e vertiginoso redemoinho, hacíendo girar fantásticas imagens: Clarissa
aplicou-se uma máscara facial, uma enegrecida e pegajosa porcaria que gotejava inclusive nos dois discos para os olhos; o dossel se estava desintegrando
e suas fibras escarlates gotejavam, lhe apagando o rosto com seu lhe impactem cor. Logo as ridículas fantasias se esfumaram e sua mente aceitou a crua realidade
de
o que tinham visto seus olhos. Claríssa já não tinha cara. Não se tinha posto nenhuma máscara de beleza. Aquela polpa era a carne da Clarissa, o sangue da Clarissa,
escura, coagulada e transbordante de soro, dedilhada pelos quebradiços fragmentos de ossos amassados. Permaneceu junto à cama, tremente. A habitação estava
infestada de sonídos, um tamborilo regular esmurrava seus ouvidos e lhe açoitava as costíllas. Devo procurar a alguém, devo pedir ajuda, pensou. Mas não havia ajuda
possível:
Clarissa estava morta. Cordelia sentiu que tinha os músculos paralisados, que só podia mover os olhos. Mas foi suficiente para ver as coisas com claridade, com
muita claridade. Lentamente desviou a mírada do horror que jazia sobre a cama e a fixou na mesinha de noite. Faltava algo. O joalheiro, o cofre de prata.
Mas a pequefia bandeja redonda seguia ali. Viu a taça pouco profunda, com rosas delicadamente pintadas, os pálidos restos de chá nos que flutuavam duas folhas,
a mancha de carmim no bordo. Ao lado da bandeja havia algo que antes não estava: o braço de mármore, pegoteado de sangue, apoiado em cima de uma folha de papel
branca que os rechonchos dedos sanguinolentos pareciam sujeitar à madeira lustrada. O sangue tinha cansado sobre o papel, apagando quase a consabída caveira,
mas a mensagem datilografada tinha escapado ao insidioso líquido e Cordelia leu, sem nenhuma dificuldade:.
Outros pecados só falam, o crime grita:) o elemento água molha a terra,) mas o sangue flui para cima e umedece os céus)).
Então ocorreu. Na outra cômoda soou o despertador, fazendo-a saltar aterrorizada. Seus membros recuperaram a vida. Deu a volta à cama precipitadamente
e tentou silenciá-lo, cogíéndolo com mãos tão trementes, que o relógio se chocou contra a madeira. OH, Deus! OH, Deus! Nada o deteria? Logo seus dedos encontraram
o botão. A habitação voltou a ficar em silencio, e no eco daquele horrível zumbido voltou a escutar o tamborilar surdo de seu coração. tirou o chapéu observando
à monstruosidade que ocupava a cama, como se temesse que o estrépito a tivesse despertado, como se esperasse que de repente Ciarissa saltasse rígida como uma marionete
e lhe encarasse com aquele horror sem rosto.
serenou-se. Tinha coisas que fazer. Devia dizer-lhe ao Ambrose e ele teria que chamar à polícia. Ninguém devia tocar nada até a chegada da polícia. Passeou a
olhar pela habitação, percebendo todos os detalhes com grande intensidade: as bolas de algodão manchadas de cosmétícos sobre o penteadeira, o frasco de loção
para os olhos destampado, as sapatilhas bordadas da Clarissa sobre o toalha de mesa do lar, sua caixa de maquiagem aberta sobre uma das cadeiras, sua exemplar do
texto
cansado junto à cama.
Quando se voltou para a porta, esta se abriu e viu o Ambrose seguido por sir George, que levava os gêmeos de teatro ao redor do pescoço. Os dois homens intercambiaram
um olhar. Nenhum falou. Então sir George se adiantou e se aproximou da cama.    Ainda sem decír palavra, permaneceu contemplando a sua esposa, as costas rígida.
deu-se a volta. Tinha a cara tensa: todo seu desassossego se aquietou, sua cútis estava quase verde. Tragou saliva e se levou uma mão ao pescoço, como se estivesse
a ponto de vomitar. Cordelia fez um instintivo movimento para ele e gritou:.
-Sinto muito! Quanto o sinto!.
As palavras, em sua inútil trivialidade, consternaram-na assim que as pronunciou. Depois viu a cara do homem, uma máscara de atônito horror. Cordelia pensou: OH,
meu deus, acredita que estou confessando. Pensa que eu a matei.
-Você me empregou para que a cuidasse -gritou-. Vim aqui para protegê-la. Não teria que me haver movido de seu lado.
Viu que a expressão de horror desaparecia do rosto de sir
George. Ouviu-lhe dizer serenamente, quase cortante:.
-Você não podia sabê-lo. Em nenhum momento acreditei que corresse perigo. Ninguém acreditava. Além disso, não lhe teria permitido ficar a seu lado, nem a você nem
a ninguém. Não
culpe-se.
-Mas eu já sabia que tinham retirado o mármore!  Teria que
haver o advertido.
-lhe haver advertido o que? Você não podia esperar que ocorresse isto. Deixe de culpar-se, Cordelia -repetiu secarnente, como
quem dá uma ordem.
Era a primeira vez que empregava seu nome de pilha. Ambrose
seguia no vão da porta e de ali perguntou:.
-Está morta?.
-Pode vê-lo com seus próprios olhos.
Ambrose se aproximou da cama e olhou o cadáver. Suas bochechas se tingiram de um vermelho profundo. Ao lhe observar, Cordelia pensou
que parecia mais confundido que impressionado. Ambrose se
voltou.
-Mas isto é incrível! -A seguir sussurrou-: É
horrível! Horrível!.
De repente se precipitou à porta de comunicação e moveu o atirador. A porta não estava fechada com chave. Seguiram-no ao dormitório da Cordelia e entraram
no quarto de banho. A janela que dava à escada de incêndios estava aberta tal como  ela a tinha deixado.
-Pode ter saído por aqui e descido pela escada de
incêndios -conjeturou sir George-. Será melhor que organizemos um registro da ilha. Também do castelo, naturalmente. Quantos homens podemos reunir, incluindo
aos que participam da obra?.
Ambrose fez um cálculo rápido:.
-Uns vinte e cinco da companhia e seis da casa, incluindo o Oldfield. Não sei se Whittingham servirá de muito.
-É suficiente para quatro partidas: uma para o castíllo e
três para cobrir a ilha. Terá que fazê-lo sistematicamente. Será
melhor que telefone à polícia imediatamente. Eu organizarei
aos homens.
Cordella pensou no transtorno que ocasionariam trinta pessoas pisoteando a casa e a ilha.
-Não devemos tocar nada -disse-. Estas duas habitações devem enclausurar-se. É uma lástima que o senhor Gorringe haja meio doido o pomo da porta. Além disso, será
melhor
evitar que o público desembarque. Quanto ao registro, não seria mais aconselhável esperar a chegada da polícia?.
Ambrose parecia indeciso. Sir George se apressou a dizer:.
-Não estou disposto a esperar. Isso não é possível. Não é
possível, Gorringe!.
Sua voz era feroz e tinha os olhos quase extraviados. Ambrose
respondeu, tranqüilizador:.
-Não, claro que não.
-Onde está Oldfield? -inquiriu sir George.
-Suponho que em seu casita. No bloco de estábulos.
-Direi-lhe que saque a lancha e patrulhe o canal entre a
ilha e Speymouth. Isso impedirá uma fuga por mar. Depois me
reunirei contigo no teatro. Adverte aos homens que os necessitarei.
Desapareceu.
-É melhor que esteja ocupado -disse Ambrose-. De qualquer maneira, não acredito que as partidas façam nenhum desastre.
Cordelia se perguntou o que se esperava do Oldfield se interceptava uma barco que abandonasse a ilha. Que a abordasse e detivera sem ajuda a um homícida? Ambrose
ou sir George contavam seriamente descobrindo a um intruso no Courcy? Não lhes podia ter passado por cima o significado daquela mão ensangüentada.
Juntos provaram a porta do quarto da Cordelia que dava ao corredor. Estava fechada por dentro e a chave seguia em seu lugar. Ou seja que o assassino não podia haver
saído por ali. Continuando,
fecharam e jogaram chave à porta de comunicação. Por último aferrolharam a porta do dormitório da Clarissa, depois de sair, e Ambrose se guardou a chave
no bolso.
-duplicou? -quis saber Cordelia.
-Não, nenhum. Se havia cópias, não estavam aqui quando herdei o castelo, e nunca me incomodei em fazer outras. Tampouco teria sido facil. As fechaduras são complicadas,
estas são as
chaves originais.
Enquanto se voltavam ouviram pisadas e viram aparecer ao Tolly na curva da galeria. Saudou-os movendo apenas a cabeça, aproximou-se da porta da Claríssa
e chamou. A Cordelía palpitava o coração. Olhou ao Ambrose, mas este parecia privado da fala. Tolly insistiu, esta vez mais forte. Então se voltou
em direção a Cordelia.
-Acreditava que você a chamaria as três menos quarto. A senhorita Lisle teria que havê-lo deixado em minhas mãos.
-Não pode entrar -conseguiu dizer Cordelia entre seus lábios tão secos e inchados que acreditou se rachariam-. Está morta. Assassinaram-na.
Tolly voltou a chamar.
-Chegará com atraso. Tenho que despertá-la. Sempre me necessita antes da função.
Ambrose avançou um passo. Por um momento, Cordelia pensou que apoiaria uma mão no ombro do Tolly, mas imediatamente viu que deixava cair o braço. Ambrose disse,
em tom que soou anormalmente duro:.
-Não haverá função. A señoríta Lisle morreu. Assassinaram-na. Neste momento ia telefonar à polícia. Ninguém pode entrar nesse quarto até que cheguem.
Esta vez Tolly compreendeu. voltou-se e o encarou sem expressão no rosto, tão pálido que Cordelia, acreditando que se deprimiria, estendeu uma mão e lhe agarrou
o
braço. Notou que Tolly se estremecia em um espasmo de rechaço, quase de inconfundível asco, tão chocante como uma bofetada. Rapidamente apartou a mão.
O menino. Sabe o menino? -perguntou Tolly.
-Simon? Ainda não. Não sabe ninguém exceto sir George. Acabamos de descobrir o cadáver.
A voz do Ambrose continha um sotaque de ofendida impaciência, como se fora um criado do que todos abusavam. Cordelia quase esperava lhe ouvir dizer que não dava
provisão.
Tolly seguia com os olhos fixos nele.
-Diga-lhe com delicadeza, senhor -rogou-. Será um golpe para o moço.
-É um golpe para todos -respondeu Ambrose secamente.
-Para um de nós não, senhor.
Tolly deu meia volta e os deixou, sem adicionar palavra. Ambrose disse:.
-Extraordinária mulher! Nunca consegui entendê-la. Duvido de que a própria Clarissa a compreendesse. E a que se deverá essa repentina preocupação pelo Simon? Nunca
mostrou
muito interesse pelo moço. Bom, será melhor que vamos chamar à polícia.
Baixaram a escada e atravessaram a grande sala. Já estavam em marcha os preparativos para o jantar frio. A larga mesa aparecia coberta com uma toalha e em um extremo
tinham acomodado fileiras de taças de vinho. A porta que dava ao comilão estava aberta e Cordelia viu o Munter retirando as cadeiras da mesa e as pondo em
fila, provavelmente para as levar a grande sala e as dispor ali para o jantar.
-me espere aqui um momento, por favor -disse Ambrose.
Retornou um minuto depois.
-O hei dito ao Munter -informou-lhe-. Baixará ao mole para evitar que amarrem as lanchas.
Entraram juntos no despacho.
-Se Cottringham estivesse aqui, provavelmente insistiria em falar pessoalmente com o chefe de polícia -comentou Gorringe-. Mas suponho que corresponde chamar a
a polícia do Speymouth. 0 teria que pedir a intervenção do Departamento de Investigação Criminal?.
Eu telefonaria ao cuartelillo do Speymouth e deixaria que
eles se ocupassem da questão. Conhecem o procedimento que terá que seguir.
Cordelia procurou o número no agendinha de telefones, se o dío ao Ambrose e aguardou enquanto ele fazia a chamada. Relatou os fatos sucintamente e sem emoção, mencionando
que
tinha desaparecido o joalheiro de lady Ralston. A Cordelia chamou a atenção que tivesse notado sua falta; ninguém havia dito nada ao respeito rnientras estavam em
o dormitório. produziu-se uma considerável demora ao outro lado da linha e logo se ouviu o som de uma voz.
-Sim, já cuidamos que isso -respondeu Ambrose. E adicionou-: Isso é o que me proponho fazer assim que corte. -Pendurou o receptor e anunciou-: Mais ou menos o que você
dizia. Fechar as habitações com chave. Não tocar nada. Manter às pessoas reunida. Não permitir que ninguém desembarque. Enviarão a um tal inspetor Grogan.


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                                    CONTINUA
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As luzes da sala do teatro estavam acesas. A porta da esquerda do proscenio conduzia aos vestuários. Através das portas abíertas dos dois camarins principais chegavam risadas e uma confusão de vozes. Quase todos os componentes da partilha se trocaram de roupa e agora se estavam maquiando em meio de risillas afogadas e conselhos mútuos. O ambiente era evocador de uma festa de fim de curso. Ambrose chamou as portas fechadas dos dois camarins reservados para os protagonistas e logo disse em voz bem alta:.
-Por favor, venham todos ao cenário imediatamente.
Saíram a tropicões, em alvoroçada turma, alguns sujeitando-a roupa ao corpo. Mas um sozinho olhar à cara do Ambrose os sossegou e todos se apinharam em
o cenário, reprimidos e espectadores. Parcialmente embelezados e maquiados pela metade com as caras brancas exceto pelos gritões emplastros de ruge, pareciam
-pensou Cordelia- os clientes e as pupilas de um lupanar vitoriano aos que a polícia tinha reunido para um interrogatório.
-Lamento ter que lhes transmitir más notícias -disse Ambrose-. A senhorita Lisle morreu. Por todos os indícios, assassinada. telefonei à polícia, que
chegará breve. Enquanto isso, pediram-me que todos permaneçam juntos aqui, no teatro. Munter e sua esposa lhes trarão chá, cafe e qualquer outra coisa que desejem.
Cottringham, se não ter inconveniente, rogo-lhe que se ocupe deste lugar. Há gente a que ainda devo informar da má nova.
Uma das mulheres, uma jovem loira de rosto vivaz, vestida de donzela, com avental com volante e touca frisada de largas cintas, perguntou:
-E a função?.
Era uma pergunta nascida da comoção e Cordelia pensou que provavelmente a moça a recordaria morta de calor toda sua vida. Alguém pigarreou e à loira se subiram-lhe as cores à cara. Ambrose replicou com voz apática


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-A função se suspendeu.
Deu meia volta e saiu. Cordelia lhe seguiu.
-O que tem que as partidas de registro?.
-Deixarei que isso resolvam Ralston e Cottringham. Hei dito aos atores que devem permanecer reunidos. Não posso tratar de impor as instruções da polícia contra a determinação do desconsolado marido de demonstrar sua eficácia. Onde acredita que estarão outros?
-Suponho que Simon estará nadando. Roma estava na biblioteca, mas é muito provável que agora se esteja vestindo. Imagino que Ivo estará em seu dormitório, descansando.
-Por favor, vá ver os e lhes dê a notícia. Eu procurarei o Simon. Depois devemos nos reunir até que chegue a polícia. Suponho que seria uma amostra de cortesia que fizesse companhia a meus convidados do    -Compreendo. Quer dizer que devemos guardar silêncio quanto à verdadeira causa da morte?
-Não conhecemos a verdadeira causa da morte. Mas sim acredito que deveríamos dizer o menos possível.
-Parece-me que a causa da morte é óbvia. Tinha a cara completamente esmagada.
-Isso podem haver-lhe fato depois de matá-la. Havia menos sangue da que cabia esperar.
-Para mim havia mais que suficiente. Você sabe muito destas coisas, para ser uma secretária-acompañante.
-Não sou uma secretária-acompañante. Sou detetive privada. Não tem sentido seguir fingindo. De todos os modos, sei que você já o tinha adivinhado. E se pensa me dizer que fui ineficaz, também sei.
-Minha querida Cordelia, que mais poderia ter feito você? Ninguém podia esperar este desenlace. Deixe de culpar-se. Teremos que permanecer aqui, entupidos, ao menos...

 

 

                            

                                  

                                                   

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